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PARTE I
CONCEITOS BÁSICOS E SUA ARTICULAÇÃO NAS
ORGANIZAÇÕES
A forma como as organizações efetuam a gestão de pessoas passa por grandes
transformações em todo o mundo. Essas transformações vêm sendo motivadas
pela inadequação dos modelos tradicionais de gestão de pessoas no atendimento
às necessidades e às expectativas das organizações e das pessoas. Modelos de
gestão são constituídos por um conjunto de pressupostos, práticas e instrumentos,
conforme detalharemos no Capítulo 4. Os modelos tradicionais têm sua gênese nos
movimentos de administração científica, na busca da pessoa certa para o lugar certo
(TAYLOR, 1982), e estão ancorados no controle como referencial para encarar a
relação entre as pessoas e a organização (BRAVERMAN, 1980; GORZ, 1980;
FRIEDMANN, 1972; FLEURY, 1987; FISCHER, 1987; HIRATA et al, 1991;
ALBUQUERQUE, 1992; FLEURY; FISCHER, 1992).
A falência das abordagens tradicionais da gestão de pessoas foi motivada por
pressões que emergiram durante a década de 60 e se consolidaram no início dos
anos 80. Essas pressões provêm de duas fontes: o ambiente em que a organização
se insere e as pessoas que nela trabalham.
Os processos de globalização, a turbulência crescente, a maior complexidade das
arquiteturas organizacionais e das relações comerciais, a exigência de maior valor
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agregado dos produtos e serviços levaram as organizações a buscar mais
flexibilidade e maior velocidade de resposta na estruturação das ocorrências
internas e no enfrentamento de situações inusitadas e de complexidade crescente.
A partir daí as organizações passam a necessitar de pessoas mais autônomas e
com maior iniciativa, com perfil bem diferente do exigido até então, de obediência e
submissão; na medida em que o processo decisório é cada vez mais
descentralizado, ele fica mais sensível no âmbito do comprometimento das pessoas
com os objetivos e as estratégias organizacionais. Pode-se dizer que o atual e
grande desafio da gestão de pessoas é gerar e sustentar o comprometimento delas,
o que só é possível se as pessoas perceberem que sua relação com as
organizações lhes agrega valor.
A necessidade do comprometimento das pessoas foi ampliando sua importância
estratégica para criar e manter diferenciais competitivos por parte das organizações.
Ao ganharem voz dentro das organizações, as pessoas se tornam uma fonte de
pressão, a segunda fonte de pressão sobre a organização, uma pressão
proveniente do contexto interno.
Quanto mais as organizações buscam flexibilidade e velocidade decisória, mais
dependem das pessoas; em decorrência, tornam-se mais dispostas a atender às
expectativas e necessidades que elas manifestam. As pessoas que estabelecem
algum tipo de relação de trabalho com a organização, por seu lado, procuram
satisfazer um novo conjunto de necessidades: maior espaço para desenvolvimento
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profissional e pessoal, manutenção da competitividade profissional e exercício da
cidadania organizacional, entre outras pressionando as organizações a se
estruturarem para tanto.
A duas fontes de pressão exercem mútua influência e, desde os anos 80, exigem
uma revisão de conceitos, premissas, técnicas e ferramentas. Essas exigências,
aliadas à crescente importância do elemento humano para construir e manter
diferenciais competitivos para a organização, originaram maior atenção à gestão de
pessoas.
Desde os anos 80 fala-se da necessidade de rever a forma de gestão de pessoas
e de repensar conceitos e ferramentas de gestão. Apesar disso, somente a partir
dos anos 90 é que surgem propostas mais concretas de mudança e se observam
resultados positivos com novas formas de gerir pessoas. Essas experiências
positivas permitem observar a existência de um novo conjunto de premissas e
conceitos que explicam melhor a relação entre a organização e as pessoas.
Pudemos verificar que os referenciais conceituais de competência, complexidade e
espaço ocupacional, quando utilizados em conjunto, têm a capacidade de explicar
a realidade da gestão de pessoas em organizações bem-sucedidas (EBOLI, 1999;
FLEURY, 2000; DUTRA, 2001: DUTRA; FLEURY; RUAS, 2008; RUAS, 2005).
Verificamos que as organizações que adotam os conceitos de competência sem a
utilização dos conceitos complementares conseguiram resultados pobres ou
simplesmente não conseguiram resultado algum. Muitas abandonaram o conceito
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de competência ou restringiram seu uso aos processos de recrutamento e seleção
e de desenvolvimento. A não utilização dos conceitos complementares de
complexidade e espaço ocupacional gerou restrições ao uso do conceito de
competências para a gestão de pessoas, tanto por parte de profissionais quanto por
parte de teóricos (LAWLER,1996).
Observamos, ainda, que o mau uso do conceito criou uma série de efeitos
perversos. O mais sério deles foi o aumento de pressão sobre as pessoas sem a
contrapartida da organização em termos de reconhecimento e da criação de
condições concretas para o desenvolvimento profissional. O conceito de
competência, quando compreendido em toda a sua extensão e utilizado em
conjunto com outros conceitos, permite um grande avanço na compreensão da
gestão de pessoas.
O presente momento não só permite, mas exige a sistematização das reflexões
conceituais efetuadas e o alinhamento das experiências de organizações brasileiras
com essas reflexões, analisando:
A capacidade explicativa da realidade organizacional pelos conceitos;
A possibilidade de criação de instrumentos de gestão a partir dos conceitos;
Os futuros desdobramentos da gestão de pessoas com base em
competências.
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Mudanças na forma de gerir pessoas
Os trabalhos desenvolvidos, ao longo dos anos 90 e 2000, junto às organizações
brasileiras, permitiram observar importantes transformações na forma de gerir
pessoas, as quais podem ser agrupadas da seguinte forma:
Alteração no perfil das pessoas exigido pelas organizações. Saímos de
um perfil obediente e disciplinado para outro autônomo e empreendedor. A
mudança no padrão de exigência gerou a necessidade de uma cultura
organizacional que estimulasse e apoiasse a iniciativa das pessoas, a
criatividade e a busca autônoma de resultados para a organização;
Deslocamento do foco da gestão de pessoas do controle para o
desenvolvimento. A marca dos modelos tradicionais de gestão de pessoas,
inspirada no paradigma fordista e taylorista de administração, é o controle
das pessoas. Nesse paradigma as pessoas são objeto de controle e,
portanto, espera-se delas uma postura passiva. Com a mudança do perfil de
pessoas exigido pela organização, porém, há uma grande pressão para que
a gestão de pessoas seja marcada pela ideia do desenvolvimento mútuo. De
um lado, a organização, ao se desenvolver, desenvolve as pessoas, de outro,
as pessoas, ao se desenvolverem, desenvolvem a organização. O foco no
desenvolvimento visualiza a pessoa como gestora de sua relação com a
empresa e do seu desenvolvimento e carreira.
Maior relevância das pessoas no sucesso da organização. O
comprometimento das pessoas com a organização de forma integral - ou
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seja, mobilizando não somente músculos e parte da inteligência, mas todo
seu potencial criador, sua intuição e capacidade de interpretar o contexto e
de agir sobre ele - gera vantagens competitivas únicas. As pessoas são as
depositárias do patrimônio intelectual da organização, da capacidade e
agilidade de resposta da mesma aos estímulos do ambiente e, ainda, da
capacidade de visualização e exploração de oportunidades de negócio e/ou
de desenvolvimento organizacional.
Essas transformações não foram acompanhadas pelos conceitos e ferramentas que
dão suporte a gestão de pessoas. O resultado é que a forma de gerir pessoas, na
maior parte das organizações, não dá conta da realidade. É comum observar as
organizações sabotando constantemente seu sistema formal de gestão. Essa
sabotagem visa a criar brechas no sistema formal para adequá-lo à realidade, já
que esta se impõe àquele. Repetidas sabotagens descaracterizam o sistema formal,
retirando-lhe legitimidade e credibilidade. Como decorrência desse quadro, existe
um descontentamento generalizado com a forma de gerir pessoas. A pergunta óbvia
é: por que não mudar?
Não mudamos ainda porque não temos um modelo de gestão confiável para
substituir integralmente o tradicional. Muitas empresas, entretanto, vêm
conseguindo bons resultados com novas propostas de gestão de pessoas e, ao
observá-las, encontramos alguns elementos comuns, passíveis de reprodução para
diferentes realidades organizacionais. Dessas experiências extraímos bons
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exemplos no uso dos conceitos que serão descritos nos capítulos 1, 2 e 3 que
constituem esta parte do livro.
No Capítulo 1 apresentamos o conceito de competência, dando ênfase às várias
escolas encontradas nas organizações brasileiras e o diálogo entre as
competências da organização e as individuais;
No Capítulo 2 discutimos os conceitos de complexidade e espaço organizacional e
como, ao se articularem com o conceito de competência, permitem uma melhor
compreensão da gestão de pessoas e, por decorrência, a criação de instrumentos
mais eficazes.
No Capítulo 3 abordaremos a distribuição das competências individuais, verificamos
ao longo de muitos anos que as competências naturalmente se organizam em
função das trajetórias de carreira. Apresentamos neste capítulo exemplos de
organizações privadas e públicas.
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CAPÍTULO 1
Competência: um olhar mais arguto da gestão de pessoas
Introdução
No final dos anos 80 e início dos anos 90, buscando compreender melhor os
critérios de valorização das pessoas pelas organizações observamos uma
tendência clara para destacar as pessoas que mais agregavam valor para o
desenvolvimento da organização. Até os anos 80 a maior parte de nossas
organizações valorizava o “tempo de casa”, ou seja, a permanência da pessoa na
organização era símbolo de sua fidelidade e dedicação à mesma. Tão logo o
ambiente, em nosso país, tornou-se mais competitivo essa realidade foi
transformada, a pessoa valorizada era a que mais contribuía para o
desenvolvimento da organização e/ou do negócio.
O aprendizado das organizações com sede no Brasil foi longo, observamos que nas
organizações sadias, a agregação de valor é para a organização e/ou para o
negócio, em organizações patológicas, essa agregação de valor é para um feudo
ou para a chefia imediata ou mediata. Ao longo do tempo as organizações sentiram
a necessidade de explicitar com maior clareza suas expectativas em relação às
pessoas. A competência foi a melhor forma de fazê-lo, entretanto, algumas
organizações multinacionais atuando no Brasil e de capital brasileiro que utilizavam
a gestão de pessoas com base em competências utilizavam o conceito
desenvolvido nos Estados Unidos.
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Esse conceito de competência foi proposto de forma estruturada pela primeira vez
em 1973, David McClelland (1973), na busca de uma abordagem mais efetiva que
os testes de inteligência nos processos de escolha de pessoas para as
organizações. O conceito foi rapidamente ampliado para dar suporte a processos
de avaliação e para orientar ações de desenvolvimento profissional. McClelland, a
partir de experiências nas quais obteve bons resultados, propõe verificar pessoas
que tiveram sucesso em suas ocupações ou cargos, investigar os fatores
determinantes de seu sucesso e verificar o quanto podem ser ensinados para outras
pessoas. Aos fatores determinantes do sucesso chamou de competências
diferenciadoras. O uso do conceito de McClelland pelas organizações no Brasil
poderia ser resumido da seguinte maneira:
1. Definição das competências diferenciadoras para cada um dos cargos ou
grupos de cargos da organização que em português seriam: conhecimento,
habilidades e atitudes resumidos pela sigla CHA;
2. Definido o CHA ou o perfil ideal para o ocupante de cada cargo ou grupo de
cargos, era realizado um confronto entre o perfil ideal e o real da pessoa.
Deste confronte entre os perfis ideal e real eram estabelecidos os pontos a
desenvolver;
3. Os pontos a desenvolver ou chamado por muitas organizações de “gap”
representava a base para a construção de agendas de desenvolvimento
individual ou coletiva.
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É importante perceber que esse conceito não rompe com a lógica taylorista de
gestão, trata-se de adequar as pessoas às posições de uma forma mais dinâmica,
tendo sempre como base o cargo ou as ocupações das pessoas. Algo impensável
em nossa realidade cada vez mais fluída onde as pessoas alteram seus papeis e
ocupações de forma cada vez mais intensa e frequente. O conceito desenvolvido
por McClelland (1973) era utilizado por 67% das organizações privadas e por 82%
das organizações públicas que tinham gestão de pessoas com base em
competências, quando efetuamos a primeira medição em 2005 (DUTRA; FISCHER;
RUAS, 2008) e por 52% das organizações privadas e 65% das organizações
públicas quando medimos em 2010.
Outro expoente na estruturação do conceito nos Estados Unidos é Boyatzis
(1982:13) que a partir da caracterização das demandas de determinado cargo,
procura fixar ações ou comportamentos efetivos esperados. Em seu trabalho, o
autor já demonstra preocupação com questões como a entrega da pessoa para o
meio no qual se insere.
Buscávamos um conceito para explicar o que observávamos nas organizações e o
encontrado foi o de competência, desenvolvido para oferecer suporte a movimentos
de qualificação profissional em pequenas e médias empresas do setor moveleiro
francês em meados da década de 80 (ZARIFIAN,2001). A base desse conceito
desenvolvido pelos franceses é o deslocamento do foco sobre o estoque de
conhecimentos e habilidades para a forma como a pessoa mobilizava seu estoque
e repertório de conhecimentos e habilidades em determinado contexto, de modo a
agregar valor para o meio no qual se inseria (FLEURY, 2000:21).
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Verificávamos que a gestão de pessoas deveria cada vez mais distanciar-se do
cargo como referência e aproximar-se mais da pessoa. Encontramos essas
respostas em autores como Le Boterf (1995, 2000, 2001 e 2003) e Zarifian (1996 e
2001) que exploram o conceito de competência associado à idéia de agregação de
valor e entrega a determinado contexto de forma independente do cargo, isto é, a
partir da própria pessoa. Le Boterf (1995 e 2000) trabalha a ideia de que o
importante não é a pessoa saber ou saber fazer ou querer fazer, mas sim o saber
ser. O saber ser é o resultado de um aprendizado obtido ao longo da vida da pessoa.
Essa construção do conceito de competência explica de forma mais adequada o
que observamos na realidade das organizações.
Aprendemos com Le Boterf e Zarifian que não basta a pessoa possuir a
capacitação necessária ou querer contribuir para o contexto é necessário que
compreenda a demanda do contexto sobre ela. Observamos que atualmente as
organizações abandonam gradativamente a visão americana de competências para
incorporar a visão francesa.
Vários autores procuraram estruturar o desenvolvimento do conceito de
competência e/ou efetuar uma revisão bibliográfica. Dentre eles, cabe destacar os
seguintes: Parry (1996), McLagan (1997) e Woodruffe (1991). Além desses autores,
vários alunos de nossos cursos de pós-graduação efetuaram boas revisões
bibliográficas, cabendo destacar os trabalhos de Amatucci (2000), Hipólito (2000),
Bitencourt (2001), Sant’anna (2002) e Silva (2003).
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A partir do início dos anos 90, procuramos empregar o conceito de competência em
trabalhos de intervenção em empresas brasileiras e na adaptação, em empresas
multinacionais, de estruturas de gestão de pessoas globais para a realidade
brasileira. Os resultados foram bons, mas a aplicação do conceito de competência
abrangia apenas alguns aspectos da gestão de pessoas nessas empresas. A
primeira oportunidade de aplicação do conceito em um sistema integrado de gestão
de pessoas ocorreu em 1996 e 1997 em uma empresa do setor de
telecomunicações (DUTRA et al, 2000). A partir desse trabalho, que contou com a
participação de todos os gestores da organização, foi possível discutir aspectos
importantes da gestão de pessoas. Destacamos os seguintes:
Entrega exigida pela organização – foram questionadas as
abordagens metodológicas para a determinação das entregas
requeridas das pessoas. A origem dessas entregas deveria estar no
intento estratégico da empresa. Ao mesmo tempo, não era possível
pensar que haveria o mesmo padrão de entrega para diferentes
grupos profissionais dentro da empresa;
Caracterização da entrega – A forma de descrever a entrega
requerida das pessoas deveria ser facilmente identificável e o mais
objetiva possível. Essa era uma questão da maior relevância, pois
teria influência nos parâmetros remuneratórios e deveria contemplar
as limitações legais impostas pela Justiça do Trabalho brasileira;
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Forma de mensurar a entrega – Além da descrição objetiva da
entrega havia o desafio de criar uma escala para mensurá-la.
Essas discussões foram importantes para a validação do conceito de competência
e sua transformação em instrumento de gestão. Foi também importante para
consolidar a agregação de outros conceitos ao de competência visando à obtenção
dos resultados necessários, como veremos no Capítulo 2. Outro aspecto relevante
foi a consolidação de abordagens metodológicas para a concepção e a
implementação de um sistema de gestão de pessoas integrado com base em
competências, como veremos na parte III deste livro.
Finalmente, vale ressaltar que percebemos com maior nitidez a possibilidade de
integrar a gestão de pessoas ao intento estratégico da empresa através da
discussão das competências organizacionais. Essa temática já vinha sendo
trabalhada no Brasil por Maria Tereza Fleury (2000) “da abordagem dos recursos
da firma”, a partir da qual se verifica a interação do intento estratégico das
competências organizacionais e das competências individuais (FLEURY, 2000:57;
RUAS, 2002), como será examinada mais adiante.
A proposta deste capítulo é colocar em perspectiva a utilização do conceito de
competência para a construção de um sistema integrado e estratégico de gestão de
pessoas.
Articulação entre estratégia empresarial e competências individuais
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A competência pode ser atribuída a diferentes atores. De um lado temos a
organização, com o conjunto de competências que lhe é próprio. Essas
competências decorrem da gênese e do processo de desenvolvimento da
organização e são concretizadas em seu patrimônio de conhecimentos, que
estabelece as vantagens competitivas da organização no contexto em que se insere
(RUAS, 2002; FLEURY, 2000). De outro lado, temos as pessoas, com seu conjunto
de competências, aproveitadas ou não pela organização. Empregaremos aqui a
definição para a competência das pessoas estabelecida por Maria Tereza Fleury
(2000): “Saber agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar,
transferir conhecimentos, recursos, habilidades, que agreguem valor econômico à
organização e valor social ao indivíduo”.
Ao colocarmos organização e pessoas lado a lado, podemos verificar um processo
contínuo de troca de competências. A organização transfere seu patrimônio para as
pessoas, enriquecendo-as e preparando-as para enfrentar novas situações
profissionais e pessoais, na organização ou fora dela. As pessoas, ao
desenvolverem sua capacidade individual, transferem para a organização seu
aprendizado, capacitando-a a enfrentar novos desafios.
Desse modo, são as pessoas que, ao colocarem em prática o patrimônio de
conhecimentos da organização, concretizam as competências organizacionais e
fazem sua adequação ao contexto. Ao utilizarem, de forma consciente, o patrimônio
de conhecimento da organização, as pessoas o validam ou implantam as
modificações necessárias para aprimorá-lo. A agregação de valor das pessoas é,
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portanto, sua contribuição efetiva ao patrimônio de conhecimentos da
organização, permitindo-lhe manter suas vantagens competitivas no tempo.
Há, pois, uma relação íntima entre competências organizacionais e individuais. O
estabelecimento das competências individuais deve estar vinculado à reflexão
sobre as competências organizacionais, uma vez que é mútua a influência de umas
e de outras. Na abordagem das competências organizacionais, cabe a analogia de
Prahalad e Hamel (1990), que compara as competências às raízes de uma árvore,
ao oferecerem à organização alimento, sustentação e estabilidade. As
competências impulsionam as organizações e seu uso constante as fortalece na
medida em que se aprendem novas formas para seu emprego ou utilização mais
adequada (FLEURY, 1995); como vimos, o processo de aprendizado organizacional
está vinculado ao desenvolvimento das pessoas que mantêm relações de trabalho
com a organização.
O olhar atento sobre as competências organizacionais revela uma série de
questionamentos sobre sua instituição, desenvolvimento e acompanhamento. Um
primeiro questionamento, que está na raiz da abordagem dos recursos da firma, é
a distinção entre recursos e competências. Para autores como Mills et al (2002) e
Javidan (1998), os recursos articulados entre si formam as competências
organizacionais. Recursos e competências, entretanto, diferenciam-se quanto ao
seu impacto, abrangência e natureza. Para Mills et al (2002), existem recursos e
competências importantes para a organização - por serem fontes para sustentar
atuais ou potenciais vantagens competitivas - e existem recursos e competências
da organização que não apresentam nada de especial no momento presente.
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Todos, entretanto, são recursos e competências da organização; daí a importância
de criar categorias distintivas. Esses autores propõem as seguintes:
Competências essenciais – fundamentais para a sobrevivência da
organização e centrais em sua estratégia;
Competências distintivas – reconhecidas pelos clientes como
diferenciais em relação aos competidores; conferem à organização
vantagens competitivas;
Competências de unidades de negócio – pequeno número de
atividades-chave (entre três e seis) esperadas pela organização das
unidades de negócio;
Competências de suporte – atividades que servem de alicerce para
outras atividades da organização. Por exemplo: a construção e o
trabalho eficientes em equipes podem ter grande influência na
velocidade e qualidade de muitas atividades dentro da organização;
Capacidade dinâmica – condição da organização de adaptar
continuamente suas competências às exigências do ambiente.
Essas categorias são importantes para discutirmos sua relação com as
competências individuais. Inicialmente, as pessoas eram encaradas como um tipo
de recurso na construção de competências. Barney (1991) classificava os recursos
organizacionais em três categorias: físicos – planta, equipamentos, ativos; humanos
– gerentes, força de trabalho, treinamento; e organizacionais – imagem, cultura. A
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literatura recente considera como recursos os conhecimentos e as habilidades que
a organização adquire ao longo do tempo (KING et al, 2002). Nesse contexto, as
pessoas estão inseridas em todos os recursos, independentemente da forma como
são classificados, e, portanto, na geração e sustentação das competências
organizacionais. Como exemplo: as pessoas estão presentes em todos os tipos de
recursos propostos por Mills et al (2002): tangíveis; conhecimento, experiência e
habilidades; sistemas e procedimentos; valores e cultura; rede de relacionamentos.
E são fundamentais para a contínua transformação da organização.
A partir dessas considerações, não podemos pensar as competências individuais
de forma genérica e sim atreladas às competências essenciais para a organização.
As entregas esperadas das pessoas devem estar focadas no que é essencial. Assim
procedendo, as pessoas estarão mais bem orientadas em suas atividades, no seu
desenvolvimento e nas possibilidades de carreira dentro da organização.
Parâmetros e instrumentos de gestão de pessoas estarão também direcionados de
forma consistente e coerente com o intento estratégico da organização. Por
exemplo: o que valorizar nas pessoas, como avaliar sua contribuição, como
estruturar as verbas remuneratórias, critérios de escolha etc.
A questão da origem das competências individuais é essencial para a
caracterização das expectativas da organização em relação às pessoas. Os
trabalhos desenvolvidos por Fleury (2000) mostram relação íntima entre o intento
estratégico da organização, as competências organizacionais e as competências
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individuais. A partir das tipologias propostas por Treacy e Wiersema (1995) e por
Porter (1996), os autores estabelecem três formas de competir: (FLEURY, 2000;45)
Excelência operacional;
Inovação em produtos;
Orientada para clientes.
A partir dessas categorias, é possível verificar que a forma de competir influencia o
estabelecimento de competências organizacionais, ou seja, existem competências
organizacionais típicas de uma organização que se enquadra dentro de
determinada categoria. Cabe o mesmo raciocínio para as competências individuais.
Na organização cuja forma de competir se caracteriza pela excelência operacional,
naturalmente a pessoa deverá atender a um determinado conjunto específico de
exigências. É o que se vê no Quadro 1.1
Quadro 1.1 – Relação entre intento estratégico, competências
organizacionais e competências individuais
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Definição das Competências por Eixo
Entregas exigidas das pessoas em cada eixo de carreira em função da estratégia e das competências organizacionais.
Volume de Vendas
Excelência Operacional
(bens de consumo, commodities)
Foco na Customização
Inovação em Produtos
(produtos para clientesou segmentos específicos)
Custo
Qualidade
Processo produtivo
Distribuição
Monitoramento mercado
Comercialização
Parcerias estratégicas
Inovação de produtos eprocessos
Qualidade
Monitoramento tecnológico
Imagem
Parcerias tecnológicasestratégicas
Orientação a custos equalidades
Gestão de recursos e prazos
Trabalho em equipe
Planejamento
Interação com sistemas
Multifuncionalidade
Relacionamento interpessoal
Capacidade de inovação
Comunicação eficaz
Articulação interna e externa
Absorção e transferência deconhecimentos
Liderança e trabalho em equipe
Resolução de problemas
Utilização de dados einformações técnicas
Aprimoramento deprocessos/produtos eparticipação em projetos
COMPETÊNCIAS ORGANIZACIONAIS
COMPETÊNCIASINDIVIDUAIS
ESTRATÉGIA
Fonte: Quadro desenvolvido pelo autor a partir das reflexões efetuadas por Fleury (2000).
Segundo o Quadro 1.1, os gerentes financeiros das duas organizações terão
diferentes conjuntos de entregas esperadas, mesmo que sua descrição de cargo
seja semelhante. Nesse exemplo, é possível notar que o tipo de empresa irá
determinar o conjunto de entregas esperado das pessoas, ainda que isso não esteja
formalizado ou consciente, influenciando os processos de escolha de candidatos
externos, os processos de ascensão, de valorização etc.
Caracterização das competências individuais
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Muitas pessoas e alguns teóricos compreendem a competência, como o conjunto
de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para que a pessoa
desenvolva suas atribuições e responsabilidades. Esse enfoque é pouco
instrumental, uma vez que, o fato de as pessoas possuírem determinado conjunto
de conhecimentos, habilidades e atitudes, não é garantia de que elas irão agregar
valor para a organização.
Para melhor compreender o conceito de competência individual é importante
discutir também o conceito de entrega.
Para efeitos de admissão, demissão, promoção, aumento salarial etc. a pessoa é
avaliada e analisada em função de sua capacidade de entrega para a empresa. Por
exemplo, ao escolhermos uma pessoa para trabalhar conosco, além de verificar sua
formação e experiência avaliamos também como ela atua, sua forma de entregar o
trabalho, suas realizações; enfim, cada um de nós usa diferentes formas de
assegurar que a pessoa que estamos escolhendo terá condições de obter os
resultados de que necessitamos. Embora, na prática organizacional, as decisões
sobre as pessoas sejam tomadas em função do que elas entregam o sistema formal,
concebido em geral a partir do conceito de cargos, as vê pelo que fazem. Este é um
dos principais descompassos entre a realidade e o sistema formal de gestão. Ao
avaliarmos as pessoas pelo que fazem e não pelo que entregam, criamos uma lente
que distorce a realidade.
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Fomos educados a olhar as pessoas pelo que fazem e é dessa forma que os
sistemas tradicionais as encaram. Intuitivamente, valorizamos as pessoas por seus
atos e realizações e não pela descrição formal de suas funções ou atividades. Ao
mesmo tempo, somos pressionados pelo sistema formal e pela cultura de gestão a
considerar a descrição formal, gerando distorções em nossa percepção da
realidade. Por exemplo: tenho dois funcionários em minha equipe com as mesmas
funções e tarefas, que são remunerados e avaliados por esses parâmetros. Um
deles, quando demandado para resolver um problema, traz a solução com muita
eficiência e eficácia e é, portanto, uma pessoa muito valiosa. O outro não deixa o
problema acontecer. Este é muito mais valioso só que, na maioria das vezes, não é
reconhecido pela chefia ou pela empresa.
Considerar as pessoas por sua capacidade de entrega nos dá uma perspectiva mais
adequada para avaliá-las, orientar seu desenvolvimento e estabelecer
recompensas. Sob essa perspectiva é que vamos analisar os conceitos de
competência individual. Muitos autores procuraram discutir a questão tentando
entender, como competência, a capacidade das pessoas em agregar valor para a
organização. Nessas tentativas, surgiram vários conceitos.
Para alguns autores, a maioria de origem norte americana, que desenvolveram seus
trabalhos nos anos 70, 80 e 90, competência é o conjunto de qualificações
(underlying characteristics) que permite à pessoa uma performance superior em um
trabalho ou situação. Os conceitos de seus principais expoentes McClelland, (1973),
Boyatzis (1982) e Spencer & Spencer (1993), formaram a base dos trabalhos onde
as competências podem ser previstas e estruturadas de modo a se estabelecer um
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conjunto ideal de qualificações para que a pessoa desenvolva uma performance
superior em seu trabalho.
Com essa abordagem, Parry (1996:50) resume o conceito de competência como
sendo “um cluster de conhecimentos, skills e atitudes relacionados que afetam a
maior parte de um job (papel ou responsabilidade), que se correlaciona com a
performance do job, que possa ser medido contra parâmetros bem aceitos, e que
pode ser melhorada através de treinamento e desenvolvimento”. Parry (1996), no
entanto, questiona se as competências devem ou não incluir traços de
personalidade, valores e estilos, apontando que alguns estudos fazem a distinção
entre soft competencies que envolveriam os traços de personalidade e hard
competencies, que se limitaria a apontar as habilidades exigidas para um trabalho
específico. Autores que defendem a não inclusão das soft competencies nos
programas de desenvolvimento apontam a necessidade de focar a performance e
não a personalidade, uma vez que, embora ela influencie o sucesso, não é passível
de ser desenvolvida através de treinamento (PARRY, 1996). Já Woodruffe (1991)
destaca a importância de se arrolar também as competências “difíceis de se
adquirir”, para que sejam trabalhadas no processo seletivo. Segundo ele, “quanto
mais difícil a aquisição da competência, menos flexíveis devemos ser no momento
da seleção”.
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Durante os anos 80 e 90, muitos autores contestaram a definição de competência
associada ao estoque de conhecimentos e habilidades das pessoas e procuraram
associar o conceito às suas realizações àquilo que elas provêm, produzem e/ou
entregam. Segundo eles o fato de a pessoa deter as qualificações necessárias para
um trabalho não assegura que ela irá entregar o que lhe é demandado. Essa linha
de pensamento é defendida por autores como Le Boterf (1995) e Zarifian (1996).
Para Le Boterf, por exemplo, a competência não é um estado ou um conhecimento
que se tem, nem é resultado de treinamento. Na verdade, competência é colocar
em prática o que se sabe em determinado contexto, marcado geralmente pelas
relações de trabalho, cultura da empresa, imprevistos, limitações de tempo e de
recursos etc. Nessa abordagem, portanto, podemos falar de competência apenas
quando há competência em ação, traduzindo-se em saber ser e saber mobilizar o
repertório individual em diferentes contextos.
Atualmente, os autores procuram pensar a competência como a somatória dessas
duas linhas, ou seja, como a entrega e as características da pessoa que podem
ajudá-la a entregar com maior facilidade (MCLAGAN, 1997; PARRY, 1996). Outra
linha importante é a de autores que discutem a questão da competência associada
à atuação da pessoa em áreas de conforto profissional, usando seus pontos fortes
e tendo maiores possibilidades de realização e felicidade (SCHEIN, 1990; DERR,
1988).
Há grande diversidade de conceitos sobre competências que podem ser
complementares. Estruturamos esses vários conceitos na Figura 1.1, na qual temos,
49
de um lado, as competências entendidas como o conjunto de conhecimentos,
habilidades e atitudes necessárias para a pessoa exercer seu trabalho; e de outro
lado, temos as competências entendidas como a entrega da pessoa para a
organização.
Figura 1.1 Conceitos sobre competência
Fonte: desenvolvida pelo autor Dutra, 2002
As pessoas atuam como agentes de transformação de conhecimentos, habilidades
e atitudes em competência entregue para a organização. A competência entregue
pode ser caracterizada como agregação de valor ao patrimônio de conhecimentos
INPUTS OUTPUTS
Conhecimentos
Habilidades
Atitudes
Agregação de Valor
Estados Unidos
McClelland (McBer)
Boyatzis
Inglaterra / França
Billis / Stamp
Zariffian / Le Bortef
Elliot
Jacques
Scott Parry
Patrícia McLagan
50
da organização. Cabe destacar o entendimento de agregação de valor como algo
que a pessoa entrega para a organização de forma efetiva, ou seja, que permanece
mesmo quando a pessoa sai da organização. Assim sendo, a agregação de valor
não é atingir metas de faturamento ou de produção, mas sim melhorar processos
ou introduzir tecnologias.
Ao adotar essa compreensão de competência, somando a idéia de estoque de
qualificações à de mobilização do repertório individual, é possível discutir a
caracterização das competências dentro de determinado contexto organizacional.
Vamos definir esse contexto como sendo dinâmico e caracterizado por intentos
estratégicos e competências organizacionais. Partindo desse contexto, para definir
as competências individuais, identificamos três abordagens metodológicas não
conflitantes entre si, que podem ser utilizadas concomitantemente, possibilitando
maior segurança no processo.
A primeira é uma adaptação da abordagem recomendada por McClelland (1973).
Nela, são inicialmente apontadas pessoas consideradas pelos demais como tendo
uma performance acima da média. Em seguida, através de entrevistas individuais,
são identificadas as competências que diferenciam essas pessoas chamadas por
McClelland de competências diferenciadoras ou que permitem sua performance
superior. Finalmente, as competências levantadas são tabuladas e confrontadas
com os intentos estratégicos e as competências organizacionais consideradas pela
empresa como essenciais e distintivas.
51
A segunda abordagem parte da premissa de que há uma relação natural entre o
intento estratégico da organização, suas competências organizacionais e as
competências das pessoas (FLEURY, 2000). Mesmo que não haja consciência
desse processo, ele existe; caso contrário, a organização não conseguiria
sobreviver. A existência da organização significa que ela conseguiu atender a
demandas externas e integrar recursos (SCHEIN, 1986; FLEURY; FISCHER, 1989).
A consciência desse processo permite à organização obter melhor sincronia entre
o intento estratégico, as competências organizacionais e as individuais,
possibilitando o ajuste fino entre os três aspectos. Partindo da explicitação do
intento e das competências essenciais e distintivas, é possível estabelecer as
competências individuais fundamentais para essa sincronia. Inicialmente
levantadas em entrevistas com pessoas-chave da organização, as competências
individuais são posteriormente tabuladas e finalmente trabalhadas com o conjunto
de pessoas-chave para obter a melhor sincronia com o intento e as competências
organizacionais.
A terceira abordagem é uma derivação da segunda. Existem dentro das
organizações diferentes trajetórias de carreira, normalmente atreladas a processos
fundamentais, conforme veremos com maior profundidade no Capítulo 3. Para
essas diferentes trajetórias existem conjuntos específicos de entrega. Desse modo,
quero dos meus gerentes entregas diferentes das de meus profissionais técnicos.
Algumas competências individuais são exigências para todas as pessoas que
mantêm relação de trabalho com a organização e outras são exigências específicas
para determinados grupos profissionais. O processo de definição segue o mesmo
52
padrão da segunda abordagem. Inicialmente, são identificadas as trajetórias de
carreira existentes na organização; posteriormente, são levantadas as
competências existentes na organização em cada trajetória e, por fim, elas são
discutidas com o conjunto de pessoas-chave da organização de forma a obter a
melhor adequação aos intentos estratégicos e às competências organizacionais.
Temos recomendado que o número de competências individuais fique entre 7 e 12.
Um número inferior a cinco competências individuais pode gerar riscos de precisão
para a definição de parâmetros salariais. O número 7 nos permite trabalhar com
uma margem de segurança. Um número superior a 12 gera sobreposição entre
competências e torna mais trabalhoso o processo de avaliação e gestão das
competências.
A caracterização das entregas esperadas ao longo dos níveis da carreira deve ser
observável para que elas possam ser acompanhadas. É comum encontrar
descrições extremamente genéricas e vagas, ou efetuadas a partir de
comportamentos desejáveis, de observação difícil, o que dá margem a
interpretações ambíguas. As descrições devem retratar as entregas esperadas das
pessoas de forma a serem observadas tanto pela própria pessoa quanto pelos
responsáveis por acompanhá-las e oferecer-lhes orientação, como veremos com
maior profundidade na parte III deste livro. Cabe notar que a interpretação de
qualquer descrição será subjetiva e essa subjetividade poderá ser minimizada
quando:
As expectativas da empresa em relação à pessoa forem expressas de forma
clara;
53
Forem construídas coletivamente, expressando o vocabulário e a cultura da
comunidade;
As descrições das várias entregas estiverem alinhadas entre si, ou seja,
estamos olhando a mesma pessoa através de diferentes competências ou
por diferentes perspectivas. Esse alinhamento ocorrerá, como veremos
adiante, com a graduação das competências em termos de complexidade.
As competências devem ser graduadas em função do nível de complexidade
da entrega. A graduação permite melhor acompanhamento da evolução da
pessoa em relação à sua entrega para a organização e/ou negócio.
Conclusões
Após a segunda metade dos anos 90, realizamos inúmeros projetos de intervenção
em organizações de diferentes tamanhos, origem do capital e setor de atividade
econômica. Presentemente, é possível contabilizar 178 trabalhos de intervenção
direta para concepção e implementação de sistemas integrados de gestão de
pessoas em empresas com faturamento acima de US$ 100 milhões de dólares ano
e com mais de mil colaboradores, além do acompanhamento da experiência em 52
empresas na revisão de sistemas de gestão de pessoas por competência. Esse
conjunto de experimentos permitiu consolidar a utilização do conceito de
competência e abordagens metodológicas para concepção e implantação.
Pesquisas realizadas a partir de 1998 por André Fischer e Lindolfo Albuquerque
(FISCHER, 1998), constituindo um observatório da gestão de pessoas pelas
54
organizações brasileiras, e de 2006 por André Fischer e Joel Dutra (2008) com base
na pesquisa realizada para a revista VOCESA, indicam interesse crescente das
empresas pela gestão de pessoas com base em competências. Os fatos nos
permitem afirmar que o conceito de competência tem se mostrado muito adequado
para explicar a realidade vivida pelas empresas na gestão de pessoas.
Ao longo de nossos trabalhos observamos a jornada do uso do conceito pelas
organizações brasileiras. Para oferecer uma idéia dessa jornada, podemos dividir o
desenvolvimento do conceito, até o presente momento, nas fases descritas a seguir.
Elas foram classificadas em função de sua abrangência e impacto na gestão de
pessoas.
Primeira fase – Competência como base para seleção e desenvolvimento de
pessoas
Nesta fase o uso do conceito está centrado na concepção de McClelland (1973) e
Boyatzis (1982), elaborada a partir da observação das competências
diferenciadoras que conduziram pessoas ao sucesso profissional. Levantadas a
partir das histórias de sucesso, as competências servem de padrão para analisar
as demais pessoas da empresa e para orientar os processos de seleção, escolha,
avaliação para desenvolvimento e orientação do processo de capacitação.
A grande crítica efetuada a esse procedimento é o fato de a mesma caracterização
de competência ser aplicada indistintamente a todas as pessoas. Nessa época, final
dos anos 70 e início dos anos 80, os conceitos eram atribuídos a pessoas tidas
como estratégicas. Ao se conferir a definição das competências diferenciadoras de
forma indistinta, verificava-se que as exigências sobre uma pessoa em posição de
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gerência operacional diferiam substancialmente das que incidiam sobre uma
pessoa em posição de gerência estratégica.
Segunda fase – Competência diferenciada por nível de complexidade
Ao incorporarem os conceitos de competência, as empresas foram naturalmente
criando escalas de diferenciação por níveis de complexidade. Normalmente, essas
escalas de complexidade se apresentavam como diferentes níveis de entrega da
competência (BOULTER, 1992).
Nesta fase, surgiram alguns desconfortos em relação ao uso do conceito de
competência. Os principais foram:
Vinculação da competência a trajetórias de sucesso em realidades passadas;
Ausência de vinculação das competências em relação aos objetivos
estratégicos da empresa;
Necessidade de estender a utilização do conceito para as demais políticas e
praticas de gestão de pessoas da empresa, como remuneração e carreira.
Terceira fase – Competência como conceito integrador da gestão de pessoas
e desta com os objetivos estratégicos da empresa
O conceito de competência organizacional estimula a discussão sobre como
compatibilizar as competências organizacionais e individuais. Dessa forma, as
competências humanas não mais derivariam das trajetórias de sucesso de pessoas
dentro da empresa, e sim dos objetivos estratégicos e das competências
organizacionais.
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Esta fase inicia uma nova forma de se olhar para a gestão de pessoas, buscando
não só sua integração com os objetivos estratégicos da empresa, mas também a
integração da gestão de pessoas em si. Os grandes avanços vieram quando
começamos a utilizar, com maior ênfase, o conceito de competência como entrega
e agregação de valor, e a ele incorporamos conceitos complementares: o de
complexidade e o de espaço ocupacional. A incorporação desses conceitos permitiu
estender o uso da competência para trabalhar com questões ligadas a carreira e
remuneração. Durante a segunda metade da década de 90, foi possível observar a
rápida evolução do uso do conceito no aprimoramento da gestão de pessoas. Hoje,
a articulação entre os conceitos de competência, complexidade e espaço
ocupacional permite maior envolvimento dos gestores na administração de pessoas
e melhor avaliação das repercussões de suas decisões.
Quarta fase – Apropriação pelas pessoas dos conceitos de competência
No Brasil, temos verificado que as empresas que conseguiram grandes avanços na
gestão de pessoas trabalharam em duas frentes de forma simultânea: de um lado,
aprimoraram seus sistemas de gestão de pessoas, de outro, estimularam as
pessoas a construírem seus projetos de carreira e desenvolvimento profissional.
A apropriação, por parte das pessoas, dos conceitos de competência, complexidade
e espaço ocupacional é fundamental para seu contínuo aprimoramento. Quando as
pessoas não compreendem os conceitos e não os utilizam para pensar o próprio
desenvolvimento, reduzem os instrumentos e processos derivados desses
conceitos a rituais burocráticos.
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Há pontos que precisamos trabalhar mais intensamente para aprimorar o uso dos
conceitos e principalmente para que sejam efetivamente internalizados pelos
gestores e pelas pessoas. Como veremos mais amplamente nos próximos
capítulos, ainda não está satisfatoriamente equacionada a conciliação de
expectativas entre as pessoas e a organização. O processo é dinâmico e depende
muito das lideranças organizacionais; talvez esta seja a quinta fase desse processo.