parte i conceitos bÁsicos e sua articulaÇÃo nas … · contrapartida da organização em termos...

32
26 PARTE I CONCEITOS BÁSICOS E SUA ARTICULAÇÃO NAS ORGANIZAÇÕES A forma como as organizações efetuam a gestão de pessoas passa por grandes transformações em todo o mundo. Essas transformações vêm sendo motivadas pela inadequação dos modelos tradicionais de gestão de pessoas no atendimento às necessidades e às expectativas das organizações e das pessoas. Modelos de gestão são constituídos por um conjunto de pressupostos, práticas e instrumentos, conforme detalharemos no Capítulo 4. Os modelos tradicionais têm sua gênese nos movimentos de administração científica, na busca da pessoa certa para o lugar certo (TAYLOR, 1982), e estão ancorados no controle como referencial para encarar a relação entre as pessoas e a organização (BRAVERMAN, 1980; GORZ, 1980; FRIEDMANN, 1972; FLEURY, 1987; FISCHER, 1987; HIRATA et al, 1991; ALBUQUERQUE, 1992; FLEURY; FISCHER, 1992). A falência das abordagens tradicionais da gestão de pessoas foi motivada por pressões que emergiram durante a década de 60 e se consolidaram no início dos anos 80. Essas pressões provêm de duas fontes: o ambiente em que a organização se insere e as pessoas que nela trabalham. Os processos de globalização, a turbulência crescente, a maior complexidade das arquiteturas organizacionais e das relações comerciais, a exigência de maior valor

Upload: hoangdang

Post on 04-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

26

PARTE I

CONCEITOS BÁSICOS E SUA ARTICULAÇÃO NAS

ORGANIZAÇÕES

A forma como as organizações efetuam a gestão de pessoas passa por grandes

transformações em todo o mundo. Essas transformações vêm sendo motivadas

pela inadequação dos modelos tradicionais de gestão de pessoas no atendimento

às necessidades e às expectativas das organizações e das pessoas. Modelos de

gestão são constituídos por um conjunto de pressupostos, práticas e instrumentos,

conforme detalharemos no Capítulo 4. Os modelos tradicionais têm sua gênese nos

movimentos de administração científica, na busca da pessoa certa para o lugar certo

(TAYLOR, 1982), e estão ancorados no controle como referencial para encarar a

relação entre as pessoas e a organização (BRAVERMAN, 1980; GORZ, 1980;

FRIEDMANN, 1972; FLEURY, 1987; FISCHER, 1987; HIRATA et al, 1991;

ALBUQUERQUE, 1992; FLEURY; FISCHER, 1992).

A falência das abordagens tradicionais da gestão de pessoas foi motivada por

pressões que emergiram durante a década de 60 e se consolidaram no início dos

anos 80. Essas pressões provêm de duas fontes: o ambiente em que a organização

se insere e as pessoas que nela trabalham.

Os processos de globalização, a turbulência crescente, a maior complexidade das

arquiteturas organizacionais e das relações comerciais, a exigência de maior valor

27

agregado dos produtos e serviços levaram as organizações a buscar mais

flexibilidade e maior velocidade de resposta na estruturação das ocorrências

internas e no enfrentamento de situações inusitadas e de complexidade crescente.

A partir daí as organizações passam a necessitar de pessoas mais autônomas e

com maior iniciativa, com perfil bem diferente do exigido até então, de obediência e

submissão; na medida em que o processo decisório é cada vez mais

descentralizado, ele fica mais sensível no âmbito do comprometimento das pessoas

com os objetivos e as estratégias organizacionais. Pode-se dizer que o atual e

grande desafio da gestão de pessoas é gerar e sustentar o comprometimento delas,

o que só é possível se as pessoas perceberem que sua relação com as

organizações lhes agrega valor.

A necessidade do comprometimento das pessoas foi ampliando sua importância

estratégica para criar e manter diferenciais competitivos por parte das organizações.

Ao ganharem voz dentro das organizações, as pessoas se tornam uma fonte de

pressão, a segunda fonte de pressão sobre a organização, uma pressão

proveniente do contexto interno.

Quanto mais as organizações buscam flexibilidade e velocidade decisória, mais

dependem das pessoas; em decorrência, tornam-se mais dispostas a atender às

expectativas e necessidades que elas manifestam. As pessoas que estabelecem

algum tipo de relação de trabalho com a organização, por seu lado, procuram

satisfazer um novo conjunto de necessidades: maior espaço para desenvolvimento

28

profissional e pessoal, manutenção da competitividade profissional e exercício da

cidadania organizacional, entre outras pressionando as organizações a se

estruturarem para tanto.

A duas fontes de pressão exercem mútua influência e, desde os anos 80, exigem

uma revisão de conceitos, premissas, técnicas e ferramentas. Essas exigências,

aliadas à crescente importância do elemento humano para construir e manter

diferenciais competitivos para a organização, originaram maior atenção à gestão de

pessoas.

Desde os anos 80 fala-se da necessidade de rever a forma de gestão de pessoas

e de repensar conceitos e ferramentas de gestão. Apesar disso, somente a partir

dos anos 90 é que surgem propostas mais concretas de mudança e se observam

resultados positivos com novas formas de gerir pessoas. Essas experiências

positivas permitem observar a existência de um novo conjunto de premissas e

conceitos que explicam melhor a relação entre a organização e as pessoas.

Pudemos verificar que os referenciais conceituais de competência, complexidade e

espaço ocupacional, quando utilizados em conjunto, têm a capacidade de explicar

a realidade da gestão de pessoas em organizações bem-sucedidas (EBOLI, 1999;

FLEURY, 2000; DUTRA, 2001: DUTRA; FLEURY; RUAS, 2008; RUAS, 2005).

Verificamos que as organizações que adotam os conceitos de competência sem a

utilização dos conceitos complementares conseguiram resultados pobres ou

simplesmente não conseguiram resultado algum. Muitas abandonaram o conceito

29

de competência ou restringiram seu uso aos processos de recrutamento e seleção

e de desenvolvimento. A não utilização dos conceitos complementares de

complexidade e espaço ocupacional gerou restrições ao uso do conceito de

competências para a gestão de pessoas, tanto por parte de profissionais quanto por

parte de teóricos (LAWLER,1996).

Observamos, ainda, que o mau uso do conceito criou uma série de efeitos

perversos. O mais sério deles foi o aumento de pressão sobre as pessoas sem a

contrapartida da organização em termos de reconhecimento e da criação de

condições concretas para o desenvolvimento profissional. O conceito de

competência, quando compreendido em toda a sua extensão e utilizado em

conjunto com outros conceitos, permite um grande avanço na compreensão da

gestão de pessoas.

O presente momento não só permite, mas exige a sistematização das reflexões

conceituais efetuadas e o alinhamento das experiências de organizações brasileiras

com essas reflexões, analisando:

A capacidade explicativa da realidade organizacional pelos conceitos;

A possibilidade de criação de instrumentos de gestão a partir dos conceitos;

Os futuros desdobramentos da gestão de pessoas com base em

competências.

30

Mudanças na forma de gerir pessoas

Os trabalhos desenvolvidos, ao longo dos anos 90 e 2000, junto às organizações

brasileiras, permitiram observar importantes transformações na forma de gerir

pessoas, as quais podem ser agrupadas da seguinte forma:

Alteração no perfil das pessoas exigido pelas organizações. Saímos de

um perfil obediente e disciplinado para outro autônomo e empreendedor. A

mudança no padrão de exigência gerou a necessidade de uma cultura

organizacional que estimulasse e apoiasse a iniciativa das pessoas, a

criatividade e a busca autônoma de resultados para a organização;

Deslocamento do foco da gestão de pessoas do controle para o

desenvolvimento. A marca dos modelos tradicionais de gestão de pessoas,

inspirada no paradigma fordista e taylorista de administração, é o controle

das pessoas. Nesse paradigma as pessoas são objeto de controle e,

portanto, espera-se delas uma postura passiva. Com a mudança do perfil de

pessoas exigido pela organização, porém, há uma grande pressão para que

a gestão de pessoas seja marcada pela ideia do desenvolvimento mútuo. De

um lado, a organização, ao se desenvolver, desenvolve as pessoas, de outro,

as pessoas, ao se desenvolverem, desenvolvem a organização. O foco no

desenvolvimento visualiza a pessoa como gestora de sua relação com a

empresa e do seu desenvolvimento e carreira.

Maior relevância das pessoas no sucesso da organização. O

comprometimento das pessoas com a organização de forma integral - ou

31

seja, mobilizando não somente músculos e parte da inteligência, mas todo

seu potencial criador, sua intuição e capacidade de interpretar o contexto e

de agir sobre ele - gera vantagens competitivas únicas. As pessoas são as

depositárias do patrimônio intelectual da organização, da capacidade e

agilidade de resposta da mesma aos estímulos do ambiente e, ainda, da

capacidade de visualização e exploração de oportunidades de negócio e/ou

de desenvolvimento organizacional.

Essas transformações não foram acompanhadas pelos conceitos e ferramentas que

dão suporte a gestão de pessoas. O resultado é que a forma de gerir pessoas, na

maior parte das organizações, não dá conta da realidade. É comum observar as

organizações sabotando constantemente seu sistema formal de gestão. Essa

sabotagem visa a criar brechas no sistema formal para adequá-lo à realidade, já

que esta se impõe àquele. Repetidas sabotagens descaracterizam o sistema formal,

retirando-lhe legitimidade e credibilidade. Como decorrência desse quadro, existe

um descontentamento generalizado com a forma de gerir pessoas. A pergunta óbvia

é: por que não mudar?

Não mudamos ainda porque não temos um modelo de gestão confiável para

substituir integralmente o tradicional. Muitas empresas, entretanto, vêm

conseguindo bons resultados com novas propostas de gestão de pessoas e, ao

observá-las, encontramos alguns elementos comuns, passíveis de reprodução para

diferentes realidades organizacionais. Dessas experiências extraímos bons

32

exemplos no uso dos conceitos que serão descritos nos capítulos 1, 2 e 3 que

constituem esta parte do livro.

No Capítulo 1 apresentamos o conceito de competência, dando ênfase às várias

escolas encontradas nas organizações brasileiras e o diálogo entre as

competências da organização e as individuais;

No Capítulo 2 discutimos os conceitos de complexidade e espaço organizacional e

como, ao se articularem com o conceito de competência, permitem uma melhor

compreensão da gestão de pessoas e, por decorrência, a criação de instrumentos

mais eficazes.

No Capítulo 3 abordaremos a distribuição das competências individuais, verificamos

ao longo de muitos anos que as competências naturalmente se organizam em

função das trajetórias de carreira. Apresentamos neste capítulo exemplos de

organizações privadas e públicas.

33

CAPÍTULO 1

Competência: um olhar mais arguto da gestão de pessoas

Introdução

No final dos anos 80 e início dos anos 90, buscando compreender melhor os

critérios de valorização das pessoas pelas organizações observamos uma

tendência clara para destacar as pessoas que mais agregavam valor para o

desenvolvimento da organização. Até os anos 80 a maior parte de nossas

organizações valorizava o “tempo de casa”, ou seja, a permanência da pessoa na

organização era símbolo de sua fidelidade e dedicação à mesma. Tão logo o

ambiente, em nosso país, tornou-se mais competitivo essa realidade foi

transformada, a pessoa valorizada era a que mais contribuía para o

desenvolvimento da organização e/ou do negócio.

O aprendizado das organizações com sede no Brasil foi longo, observamos que nas

organizações sadias, a agregação de valor é para a organização e/ou para o

negócio, em organizações patológicas, essa agregação de valor é para um feudo

ou para a chefia imediata ou mediata. Ao longo do tempo as organizações sentiram

a necessidade de explicitar com maior clareza suas expectativas em relação às

pessoas. A competência foi a melhor forma de fazê-lo, entretanto, algumas

organizações multinacionais atuando no Brasil e de capital brasileiro que utilizavam

a gestão de pessoas com base em competências utilizavam o conceito

desenvolvido nos Estados Unidos.

34

Esse conceito de competência foi proposto de forma estruturada pela primeira vez

em 1973, David McClelland (1973), na busca de uma abordagem mais efetiva que

os testes de inteligência nos processos de escolha de pessoas para as

organizações. O conceito foi rapidamente ampliado para dar suporte a processos

de avaliação e para orientar ações de desenvolvimento profissional. McClelland, a

partir de experiências nas quais obteve bons resultados, propõe verificar pessoas

que tiveram sucesso em suas ocupações ou cargos, investigar os fatores

determinantes de seu sucesso e verificar o quanto podem ser ensinados para outras

pessoas. Aos fatores determinantes do sucesso chamou de competências

diferenciadoras. O uso do conceito de McClelland pelas organizações no Brasil

poderia ser resumido da seguinte maneira:

1. Definição das competências diferenciadoras para cada um dos cargos ou

grupos de cargos da organização que em português seriam: conhecimento,

habilidades e atitudes resumidos pela sigla CHA;

2. Definido o CHA ou o perfil ideal para o ocupante de cada cargo ou grupo de

cargos, era realizado um confronto entre o perfil ideal e o real da pessoa.

Deste confronte entre os perfis ideal e real eram estabelecidos os pontos a

desenvolver;

3. Os pontos a desenvolver ou chamado por muitas organizações de “gap”

representava a base para a construção de agendas de desenvolvimento

individual ou coletiva.

35

É importante perceber que esse conceito não rompe com a lógica taylorista de

gestão, trata-se de adequar as pessoas às posições de uma forma mais dinâmica,

tendo sempre como base o cargo ou as ocupações das pessoas. Algo impensável

em nossa realidade cada vez mais fluída onde as pessoas alteram seus papeis e

ocupações de forma cada vez mais intensa e frequente. O conceito desenvolvido

por McClelland (1973) era utilizado por 67% das organizações privadas e por 82%

das organizações públicas que tinham gestão de pessoas com base em

competências, quando efetuamos a primeira medição em 2005 (DUTRA; FISCHER;

RUAS, 2008) e por 52% das organizações privadas e 65% das organizações

públicas quando medimos em 2010.

Outro expoente na estruturação do conceito nos Estados Unidos é Boyatzis

(1982:13) que a partir da caracterização das demandas de determinado cargo,

procura fixar ações ou comportamentos efetivos esperados. Em seu trabalho, o

autor já demonstra preocupação com questões como a entrega da pessoa para o

meio no qual se insere.

Buscávamos um conceito para explicar o que observávamos nas organizações e o

encontrado foi o de competência, desenvolvido para oferecer suporte a movimentos

de qualificação profissional em pequenas e médias empresas do setor moveleiro

francês em meados da década de 80 (ZARIFIAN,2001). A base desse conceito

desenvolvido pelos franceses é o deslocamento do foco sobre o estoque de

conhecimentos e habilidades para a forma como a pessoa mobilizava seu estoque

e repertório de conhecimentos e habilidades em determinado contexto, de modo a

agregar valor para o meio no qual se inseria (FLEURY, 2000:21).

36

Verificávamos que a gestão de pessoas deveria cada vez mais distanciar-se do

cargo como referência e aproximar-se mais da pessoa. Encontramos essas

respostas em autores como Le Boterf (1995, 2000, 2001 e 2003) e Zarifian (1996 e

2001) que exploram o conceito de competência associado à idéia de agregação de

valor e entrega a determinado contexto de forma independente do cargo, isto é, a

partir da própria pessoa. Le Boterf (1995 e 2000) trabalha a ideia de que o

importante não é a pessoa saber ou saber fazer ou querer fazer, mas sim o saber

ser. O saber ser é o resultado de um aprendizado obtido ao longo da vida da pessoa.

Essa construção do conceito de competência explica de forma mais adequada o

que observamos na realidade das organizações.

Aprendemos com Le Boterf e Zarifian que não basta a pessoa possuir a

capacitação necessária ou querer contribuir para o contexto é necessário que

compreenda a demanda do contexto sobre ela. Observamos que atualmente as

organizações abandonam gradativamente a visão americana de competências para

incorporar a visão francesa.

Vários autores procuraram estruturar o desenvolvimento do conceito de

competência e/ou efetuar uma revisão bibliográfica. Dentre eles, cabe destacar os

seguintes: Parry (1996), McLagan (1997) e Woodruffe (1991). Além desses autores,

vários alunos de nossos cursos de pós-graduação efetuaram boas revisões

bibliográficas, cabendo destacar os trabalhos de Amatucci (2000), Hipólito (2000),

Bitencourt (2001), Sant’anna (2002) e Silva (2003).

37

A partir do início dos anos 90, procuramos empregar o conceito de competência em

trabalhos de intervenção em empresas brasileiras e na adaptação, em empresas

multinacionais, de estruturas de gestão de pessoas globais para a realidade

brasileira. Os resultados foram bons, mas a aplicação do conceito de competência

abrangia apenas alguns aspectos da gestão de pessoas nessas empresas. A

primeira oportunidade de aplicação do conceito em um sistema integrado de gestão

de pessoas ocorreu em 1996 e 1997 em uma empresa do setor de

telecomunicações (DUTRA et al, 2000). A partir desse trabalho, que contou com a

participação de todos os gestores da organização, foi possível discutir aspectos

importantes da gestão de pessoas. Destacamos os seguintes:

Entrega exigida pela organização – foram questionadas as

abordagens metodológicas para a determinação das entregas

requeridas das pessoas. A origem dessas entregas deveria estar no

intento estratégico da empresa. Ao mesmo tempo, não era possível

pensar que haveria o mesmo padrão de entrega para diferentes

grupos profissionais dentro da empresa;

Caracterização da entrega – A forma de descrever a entrega

requerida das pessoas deveria ser facilmente identificável e o mais

objetiva possível. Essa era uma questão da maior relevância, pois

teria influência nos parâmetros remuneratórios e deveria contemplar

as limitações legais impostas pela Justiça do Trabalho brasileira;

38

Forma de mensurar a entrega – Além da descrição objetiva da

entrega havia o desafio de criar uma escala para mensurá-la.

Essas discussões foram importantes para a validação do conceito de competência

e sua transformação em instrumento de gestão. Foi também importante para

consolidar a agregação de outros conceitos ao de competência visando à obtenção

dos resultados necessários, como veremos no Capítulo 2. Outro aspecto relevante

foi a consolidação de abordagens metodológicas para a concepção e a

implementação de um sistema de gestão de pessoas integrado com base em

competências, como veremos na parte III deste livro.

Finalmente, vale ressaltar que percebemos com maior nitidez a possibilidade de

integrar a gestão de pessoas ao intento estratégico da empresa através da

discussão das competências organizacionais. Essa temática já vinha sendo

trabalhada no Brasil por Maria Tereza Fleury (2000) “da abordagem dos recursos

da firma”, a partir da qual se verifica a interação do intento estratégico das

competências organizacionais e das competências individuais (FLEURY, 2000:57;

RUAS, 2002), como será examinada mais adiante.

A proposta deste capítulo é colocar em perspectiva a utilização do conceito de

competência para a construção de um sistema integrado e estratégico de gestão de

pessoas.

Articulação entre estratégia empresarial e competências individuais

39

A competência pode ser atribuída a diferentes atores. De um lado temos a

organização, com o conjunto de competências que lhe é próprio. Essas

competências decorrem da gênese e do processo de desenvolvimento da

organização e são concretizadas em seu patrimônio de conhecimentos, que

estabelece as vantagens competitivas da organização no contexto em que se insere

(RUAS, 2002; FLEURY, 2000). De outro lado, temos as pessoas, com seu conjunto

de competências, aproveitadas ou não pela organização. Empregaremos aqui a

definição para a competência das pessoas estabelecida por Maria Tereza Fleury

(2000): “Saber agir responsável e reconhecido, que implica mobilizar, integrar,

transferir conhecimentos, recursos, habilidades, que agreguem valor econômico à

organização e valor social ao indivíduo”.

Ao colocarmos organização e pessoas lado a lado, podemos verificar um processo

contínuo de troca de competências. A organização transfere seu patrimônio para as

pessoas, enriquecendo-as e preparando-as para enfrentar novas situações

profissionais e pessoais, na organização ou fora dela. As pessoas, ao

desenvolverem sua capacidade individual, transferem para a organização seu

aprendizado, capacitando-a a enfrentar novos desafios.

Desse modo, são as pessoas que, ao colocarem em prática o patrimônio de

conhecimentos da organização, concretizam as competências organizacionais e

fazem sua adequação ao contexto. Ao utilizarem, de forma consciente, o patrimônio

de conhecimento da organização, as pessoas o validam ou implantam as

modificações necessárias para aprimorá-lo. A agregação de valor das pessoas é,

40

portanto, sua contribuição efetiva ao patrimônio de conhecimentos da

organização, permitindo-lhe manter suas vantagens competitivas no tempo.

Há, pois, uma relação íntima entre competências organizacionais e individuais. O

estabelecimento das competências individuais deve estar vinculado à reflexão

sobre as competências organizacionais, uma vez que é mútua a influência de umas

e de outras. Na abordagem das competências organizacionais, cabe a analogia de

Prahalad e Hamel (1990), que compara as competências às raízes de uma árvore,

ao oferecerem à organização alimento, sustentação e estabilidade. As

competências impulsionam as organizações e seu uso constante as fortalece na

medida em que se aprendem novas formas para seu emprego ou utilização mais

adequada (FLEURY, 1995); como vimos, o processo de aprendizado organizacional

está vinculado ao desenvolvimento das pessoas que mantêm relações de trabalho

com a organização.

O olhar atento sobre as competências organizacionais revela uma série de

questionamentos sobre sua instituição, desenvolvimento e acompanhamento. Um

primeiro questionamento, que está na raiz da abordagem dos recursos da firma, é

a distinção entre recursos e competências. Para autores como Mills et al (2002) e

Javidan (1998), os recursos articulados entre si formam as competências

organizacionais. Recursos e competências, entretanto, diferenciam-se quanto ao

seu impacto, abrangência e natureza. Para Mills et al (2002), existem recursos e

competências importantes para a organização - por serem fontes para sustentar

atuais ou potenciais vantagens competitivas - e existem recursos e competências

da organização que não apresentam nada de especial no momento presente.

41

Todos, entretanto, são recursos e competências da organização; daí a importância

de criar categorias distintivas. Esses autores propõem as seguintes:

Competências essenciais – fundamentais para a sobrevivência da

organização e centrais em sua estratégia;

Competências distintivas – reconhecidas pelos clientes como

diferenciais em relação aos competidores; conferem à organização

vantagens competitivas;

Competências de unidades de negócio – pequeno número de

atividades-chave (entre três e seis) esperadas pela organização das

unidades de negócio;

Competências de suporte – atividades que servem de alicerce para

outras atividades da organização. Por exemplo: a construção e o

trabalho eficientes em equipes podem ter grande influência na

velocidade e qualidade de muitas atividades dentro da organização;

Capacidade dinâmica – condição da organização de adaptar

continuamente suas competências às exigências do ambiente.

Essas categorias são importantes para discutirmos sua relação com as

competências individuais. Inicialmente, as pessoas eram encaradas como um tipo

de recurso na construção de competências. Barney (1991) classificava os recursos

organizacionais em três categorias: físicos – planta, equipamentos, ativos; humanos

– gerentes, força de trabalho, treinamento; e organizacionais – imagem, cultura. A

42

literatura recente considera como recursos os conhecimentos e as habilidades que

a organização adquire ao longo do tempo (KING et al, 2002). Nesse contexto, as

pessoas estão inseridas em todos os recursos, independentemente da forma como

são classificados, e, portanto, na geração e sustentação das competências

organizacionais. Como exemplo: as pessoas estão presentes em todos os tipos de

recursos propostos por Mills et al (2002): tangíveis; conhecimento, experiência e

habilidades; sistemas e procedimentos; valores e cultura; rede de relacionamentos.

E são fundamentais para a contínua transformação da organização.

A partir dessas considerações, não podemos pensar as competências individuais

de forma genérica e sim atreladas às competências essenciais para a organização.

As entregas esperadas das pessoas devem estar focadas no que é essencial. Assim

procedendo, as pessoas estarão mais bem orientadas em suas atividades, no seu

desenvolvimento e nas possibilidades de carreira dentro da organização.

Parâmetros e instrumentos de gestão de pessoas estarão também direcionados de

forma consistente e coerente com o intento estratégico da organização. Por

exemplo: o que valorizar nas pessoas, como avaliar sua contribuição, como

estruturar as verbas remuneratórias, critérios de escolha etc.

A questão da origem das competências individuais é essencial para a

caracterização das expectativas da organização em relação às pessoas. Os

trabalhos desenvolvidos por Fleury (2000) mostram relação íntima entre o intento

estratégico da organização, as competências organizacionais e as competências

43

individuais. A partir das tipologias propostas por Treacy e Wiersema (1995) e por

Porter (1996), os autores estabelecem três formas de competir: (FLEURY, 2000;45)

Excelência operacional;

Inovação em produtos;

Orientada para clientes.

A partir dessas categorias, é possível verificar que a forma de competir influencia o

estabelecimento de competências organizacionais, ou seja, existem competências

organizacionais típicas de uma organização que se enquadra dentro de

determinada categoria. Cabe o mesmo raciocínio para as competências individuais.

Na organização cuja forma de competir se caracteriza pela excelência operacional,

naturalmente a pessoa deverá atender a um determinado conjunto específico de

exigências. É o que se vê no Quadro 1.1

Quadro 1.1 – Relação entre intento estratégico, competências

organizacionais e competências individuais

44

Definição das Competências por Eixo

Entregas exigidas das pessoas em cada eixo de carreira em função da estratégia e das competências organizacionais.

Volume de Vendas

Excelência Operacional

(bens de consumo, commodities)

Foco na Customização

Inovação em Produtos

(produtos para clientesou segmentos específicos)

Custo

Qualidade

Processo produtivo

Distribuição

Monitoramento mercado

Comercialização

Parcerias estratégicas

Inovação de produtos eprocessos

Qualidade

Monitoramento tecnológico

Imagem

Parcerias tecnológicasestratégicas

Orientação a custos equalidades

Gestão de recursos e prazos

Trabalho em equipe

Planejamento

Interação com sistemas

Multifuncionalidade

Relacionamento interpessoal

Capacidade de inovação

Comunicação eficaz

Articulação interna e externa

Absorção e transferência deconhecimentos

Liderança e trabalho em equipe

Resolução de problemas

Utilização de dados einformações técnicas

Aprimoramento deprocessos/produtos eparticipação em projetos

COMPETÊNCIAS ORGANIZACIONAIS

COMPETÊNCIASINDIVIDUAIS

ESTRATÉGIA

Fonte: Quadro desenvolvido pelo autor a partir das reflexões efetuadas por Fleury (2000).

Segundo o Quadro 1.1, os gerentes financeiros das duas organizações terão

diferentes conjuntos de entregas esperadas, mesmo que sua descrição de cargo

seja semelhante. Nesse exemplo, é possível notar que o tipo de empresa irá

determinar o conjunto de entregas esperado das pessoas, ainda que isso não esteja

formalizado ou consciente, influenciando os processos de escolha de candidatos

externos, os processos de ascensão, de valorização etc.

Caracterização das competências individuais

45

Muitas pessoas e alguns teóricos compreendem a competência, como o conjunto

de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias para que a pessoa

desenvolva suas atribuições e responsabilidades. Esse enfoque é pouco

instrumental, uma vez que, o fato de as pessoas possuírem determinado conjunto

de conhecimentos, habilidades e atitudes, não é garantia de que elas irão agregar

valor para a organização.

Para melhor compreender o conceito de competência individual é importante

discutir também o conceito de entrega.

Para efeitos de admissão, demissão, promoção, aumento salarial etc. a pessoa é

avaliada e analisada em função de sua capacidade de entrega para a empresa. Por

exemplo, ao escolhermos uma pessoa para trabalhar conosco, além de verificar sua

formação e experiência avaliamos também como ela atua, sua forma de entregar o

trabalho, suas realizações; enfim, cada um de nós usa diferentes formas de

assegurar que a pessoa que estamos escolhendo terá condições de obter os

resultados de que necessitamos. Embora, na prática organizacional, as decisões

sobre as pessoas sejam tomadas em função do que elas entregam o sistema formal,

concebido em geral a partir do conceito de cargos, as vê pelo que fazem. Este é um

dos principais descompassos entre a realidade e o sistema formal de gestão. Ao

avaliarmos as pessoas pelo que fazem e não pelo que entregam, criamos uma lente

que distorce a realidade.

46

Fomos educados a olhar as pessoas pelo que fazem e é dessa forma que os

sistemas tradicionais as encaram. Intuitivamente, valorizamos as pessoas por seus

atos e realizações e não pela descrição formal de suas funções ou atividades. Ao

mesmo tempo, somos pressionados pelo sistema formal e pela cultura de gestão a

considerar a descrição formal, gerando distorções em nossa percepção da

realidade. Por exemplo: tenho dois funcionários em minha equipe com as mesmas

funções e tarefas, que são remunerados e avaliados por esses parâmetros. Um

deles, quando demandado para resolver um problema, traz a solução com muita

eficiência e eficácia e é, portanto, uma pessoa muito valiosa. O outro não deixa o

problema acontecer. Este é muito mais valioso só que, na maioria das vezes, não é

reconhecido pela chefia ou pela empresa.

Considerar as pessoas por sua capacidade de entrega nos dá uma perspectiva mais

adequada para avaliá-las, orientar seu desenvolvimento e estabelecer

recompensas. Sob essa perspectiva é que vamos analisar os conceitos de

competência individual. Muitos autores procuraram discutir a questão tentando

entender, como competência, a capacidade das pessoas em agregar valor para a

organização. Nessas tentativas, surgiram vários conceitos.

Para alguns autores, a maioria de origem norte americana, que desenvolveram seus

trabalhos nos anos 70, 80 e 90, competência é o conjunto de qualificações

(underlying characteristics) que permite à pessoa uma performance superior em um

trabalho ou situação. Os conceitos de seus principais expoentes McClelland, (1973),

Boyatzis (1982) e Spencer & Spencer (1993), formaram a base dos trabalhos onde

as competências podem ser previstas e estruturadas de modo a se estabelecer um

47

conjunto ideal de qualificações para que a pessoa desenvolva uma performance

superior em seu trabalho.

Com essa abordagem, Parry (1996:50) resume o conceito de competência como

sendo “um cluster de conhecimentos, skills e atitudes relacionados que afetam a

maior parte de um job (papel ou responsabilidade), que se correlaciona com a

performance do job, que possa ser medido contra parâmetros bem aceitos, e que

pode ser melhorada através de treinamento e desenvolvimento”. Parry (1996), no

entanto, questiona se as competências devem ou não incluir traços de

personalidade, valores e estilos, apontando que alguns estudos fazem a distinção

entre soft competencies que envolveriam os traços de personalidade e hard

competencies, que se limitaria a apontar as habilidades exigidas para um trabalho

específico. Autores que defendem a não inclusão das soft competencies nos

programas de desenvolvimento apontam a necessidade de focar a performance e

não a personalidade, uma vez que, embora ela influencie o sucesso, não é passível

de ser desenvolvida através de treinamento (PARRY, 1996). Já Woodruffe (1991)

destaca a importância de se arrolar também as competências “difíceis de se

adquirir”, para que sejam trabalhadas no processo seletivo. Segundo ele, “quanto

mais difícil a aquisição da competência, menos flexíveis devemos ser no momento

da seleção”.

48

Durante os anos 80 e 90, muitos autores contestaram a definição de competência

associada ao estoque de conhecimentos e habilidades das pessoas e procuraram

associar o conceito às suas realizações àquilo que elas provêm, produzem e/ou

entregam. Segundo eles o fato de a pessoa deter as qualificações necessárias para

um trabalho não assegura que ela irá entregar o que lhe é demandado. Essa linha

de pensamento é defendida por autores como Le Boterf (1995) e Zarifian (1996).

Para Le Boterf, por exemplo, a competência não é um estado ou um conhecimento

que se tem, nem é resultado de treinamento. Na verdade, competência é colocar

em prática o que se sabe em determinado contexto, marcado geralmente pelas

relações de trabalho, cultura da empresa, imprevistos, limitações de tempo e de

recursos etc. Nessa abordagem, portanto, podemos falar de competência apenas

quando há competência em ação, traduzindo-se em saber ser e saber mobilizar o

repertório individual em diferentes contextos.

Atualmente, os autores procuram pensar a competência como a somatória dessas

duas linhas, ou seja, como a entrega e as características da pessoa que podem

ajudá-la a entregar com maior facilidade (MCLAGAN, 1997; PARRY, 1996). Outra

linha importante é a de autores que discutem a questão da competência associada

à atuação da pessoa em áreas de conforto profissional, usando seus pontos fortes

e tendo maiores possibilidades de realização e felicidade (SCHEIN, 1990; DERR,

1988).

Há grande diversidade de conceitos sobre competências que podem ser

complementares. Estruturamos esses vários conceitos na Figura 1.1, na qual temos,

49

de um lado, as competências entendidas como o conjunto de conhecimentos,

habilidades e atitudes necessárias para a pessoa exercer seu trabalho; e de outro

lado, temos as competências entendidas como a entrega da pessoa para a

organização.

Figura 1.1 Conceitos sobre competência

Fonte: desenvolvida pelo autor Dutra, 2002

As pessoas atuam como agentes de transformação de conhecimentos, habilidades

e atitudes em competência entregue para a organização. A competência entregue

pode ser caracterizada como agregação de valor ao patrimônio de conhecimentos

INPUTS OUTPUTS

Conhecimentos

Habilidades

Atitudes

Agregação de Valor

Estados Unidos

McClelland (McBer)

Boyatzis

Inglaterra / França

Billis / Stamp

Zariffian / Le Bortef

Elliot

Jacques

Scott Parry

Patrícia McLagan

50

da organização. Cabe destacar o entendimento de agregação de valor como algo

que a pessoa entrega para a organização de forma efetiva, ou seja, que permanece

mesmo quando a pessoa sai da organização. Assim sendo, a agregação de valor

não é atingir metas de faturamento ou de produção, mas sim melhorar processos

ou introduzir tecnologias.

Ao adotar essa compreensão de competência, somando a idéia de estoque de

qualificações à de mobilização do repertório individual, é possível discutir a

caracterização das competências dentro de determinado contexto organizacional.

Vamos definir esse contexto como sendo dinâmico e caracterizado por intentos

estratégicos e competências organizacionais. Partindo desse contexto, para definir

as competências individuais, identificamos três abordagens metodológicas não

conflitantes entre si, que podem ser utilizadas concomitantemente, possibilitando

maior segurança no processo.

A primeira é uma adaptação da abordagem recomendada por McClelland (1973).

Nela, são inicialmente apontadas pessoas consideradas pelos demais como tendo

uma performance acima da média. Em seguida, através de entrevistas individuais,

são identificadas as competências que diferenciam essas pessoas chamadas por

McClelland de competências diferenciadoras ou que permitem sua performance

superior. Finalmente, as competências levantadas são tabuladas e confrontadas

com os intentos estratégicos e as competências organizacionais consideradas pela

empresa como essenciais e distintivas.

51

A segunda abordagem parte da premissa de que há uma relação natural entre o

intento estratégico da organização, suas competências organizacionais e as

competências das pessoas (FLEURY, 2000). Mesmo que não haja consciência

desse processo, ele existe; caso contrário, a organização não conseguiria

sobreviver. A existência da organização significa que ela conseguiu atender a

demandas externas e integrar recursos (SCHEIN, 1986; FLEURY; FISCHER, 1989).

A consciência desse processo permite à organização obter melhor sincronia entre

o intento estratégico, as competências organizacionais e as individuais,

possibilitando o ajuste fino entre os três aspectos. Partindo da explicitação do

intento e das competências essenciais e distintivas, é possível estabelecer as

competências individuais fundamentais para essa sincronia. Inicialmente

levantadas em entrevistas com pessoas-chave da organização, as competências

individuais são posteriormente tabuladas e finalmente trabalhadas com o conjunto

de pessoas-chave para obter a melhor sincronia com o intento e as competências

organizacionais.

A terceira abordagem é uma derivação da segunda. Existem dentro das

organizações diferentes trajetórias de carreira, normalmente atreladas a processos

fundamentais, conforme veremos com maior profundidade no Capítulo 3. Para

essas diferentes trajetórias existem conjuntos específicos de entrega. Desse modo,

quero dos meus gerentes entregas diferentes das de meus profissionais técnicos.

Algumas competências individuais são exigências para todas as pessoas que

mantêm relação de trabalho com a organização e outras são exigências específicas

para determinados grupos profissionais. O processo de definição segue o mesmo

52

padrão da segunda abordagem. Inicialmente, são identificadas as trajetórias de

carreira existentes na organização; posteriormente, são levantadas as

competências existentes na organização em cada trajetória e, por fim, elas são

discutidas com o conjunto de pessoas-chave da organização de forma a obter a

melhor adequação aos intentos estratégicos e às competências organizacionais.

Temos recomendado que o número de competências individuais fique entre 7 e 12.

Um número inferior a cinco competências individuais pode gerar riscos de precisão

para a definição de parâmetros salariais. O número 7 nos permite trabalhar com

uma margem de segurança. Um número superior a 12 gera sobreposição entre

competências e torna mais trabalhoso o processo de avaliação e gestão das

competências.

A caracterização das entregas esperadas ao longo dos níveis da carreira deve ser

observável para que elas possam ser acompanhadas. É comum encontrar

descrições extremamente genéricas e vagas, ou efetuadas a partir de

comportamentos desejáveis, de observação difícil, o que dá margem a

interpretações ambíguas. As descrições devem retratar as entregas esperadas das

pessoas de forma a serem observadas tanto pela própria pessoa quanto pelos

responsáveis por acompanhá-las e oferecer-lhes orientação, como veremos com

maior profundidade na parte III deste livro. Cabe notar que a interpretação de

qualquer descrição será subjetiva e essa subjetividade poderá ser minimizada

quando:

As expectativas da empresa em relação à pessoa forem expressas de forma

clara;

53

Forem construídas coletivamente, expressando o vocabulário e a cultura da

comunidade;

As descrições das várias entregas estiverem alinhadas entre si, ou seja,

estamos olhando a mesma pessoa através de diferentes competências ou

por diferentes perspectivas. Esse alinhamento ocorrerá, como veremos

adiante, com a graduação das competências em termos de complexidade.

As competências devem ser graduadas em função do nível de complexidade

da entrega. A graduação permite melhor acompanhamento da evolução da

pessoa em relação à sua entrega para a organização e/ou negócio.

Conclusões

Após a segunda metade dos anos 90, realizamos inúmeros projetos de intervenção

em organizações de diferentes tamanhos, origem do capital e setor de atividade

econômica. Presentemente, é possível contabilizar 178 trabalhos de intervenção

direta para concepção e implementação de sistemas integrados de gestão de

pessoas em empresas com faturamento acima de US$ 100 milhões de dólares ano

e com mais de mil colaboradores, além do acompanhamento da experiência em 52

empresas na revisão de sistemas de gestão de pessoas por competência. Esse

conjunto de experimentos permitiu consolidar a utilização do conceito de

competência e abordagens metodológicas para concepção e implantação.

Pesquisas realizadas a partir de 1998 por André Fischer e Lindolfo Albuquerque

(FISCHER, 1998), constituindo um observatório da gestão de pessoas pelas

54

organizações brasileiras, e de 2006 por André Fischer e Joel Dutra (2008) com base

na pesquisa realizada para a revista VOCESA, indicam interesse crescente das

empresas pela gestão de pessoas com base em competências. Os fatos nos

permitem afirmar que o conceito de competência tem se mostrado muito adequado

para explicar a realidade vivida pelas empresas na gestão de pessoas.

Ao longo de nossos trabalhos observamos a jornada do uso do conceito pelas

organizações brasileiras. Para oferecer uma idéia dessa jornada, podemos dividir o

desenvolvimento do conceito, até o presente momento, nas fases descritas a seguir.

Elas foram classificadas em função de sua abrangência e impacto na gestão de

pessoas.

Primeira fase – Competência como base para seleção e desenvolvimento de

pessoas

Nesta fase o uso do conceito está centrado na concepção de McClelland (1973) e

Boyatzis (1982), elaborada a partir da observação das competências

diferenciadoras que conduziram pessoas ao sucesso profissional. Levantadas a

partir das histórias de sucesso, as competências servem de padrão para analisar

as demais pessoas da empresa e para orientar os processos de seleção, escolha,

avaliação para desenvolvimento e orientação do processo de capacitação.

A grande crítica efetuada a esse procedimento é o fato de a mesma caracterização

de competência ser aplicada indistintamente a todas as pessoas. Nessa época, final

dos anos 70 e início dos anos 80, os conceitos eram atribuídos a pessoas tidas

como estratégicas. Ao se conferir a definição das competências diferenciadoras de

forma indistinta, verificava-se que as exigências sobre uma pessoa em posição de

55

gerência operacional diferiam substancialmente das que incidiam sobre uma

pessoa em posição de gerência estratégica.

Segunda fase – Competência diferenciada por nível de complexidade

Ao incorporarem os conceitos de competência, as empresas foram naturalmente

criando escalas de diferenciação por níveis de complexidade. Normalmente, essas

escalas de complexidade se apresentavam como diferentes níveis de entrega da

competência (BOULTER, 1992).

Nesta fase, surgiram alguns desconfortos em relação ao uso do conceito de

competência. Os principais foram:

Vinculação da competência a trajetórias de sucesso em realidades passadas;

Ausência de vinculação das competências em relação aos objetivos

estratégicos da empresa;

Necessidade de estender a utilização do conceito para as demais políticas e

praticas de gestão de pessoas da empresa, como remuneração e carreira.

Terceira fase – Competência como conceito integrador da gestão de pessoas

e desta com os objetivos estratégicos da empresa

O conceito de competência organizacional estimula a discussão sobre como

compatibilizar as competências organizacionais e individuais. Dessa forma, as

competências humanas não mais derivariam das trajetórias de sucesso de pessoas

dentro da empresa, e sim dos objetivos estratégicos e das competências

organizacionais.

56

Esta fase inicia uma nova forma de se olhar para a gestão de pessoas, buscando

não só sua integração com os objetivos estratégicos da empresa, mas também a

integração da gestão de pessoas em si. Os grandes avanços vieram quando

começamos a utilizar, com maior ênfase, o conceito de competência como entrega

e agregação de valor, e a ele incorporamos conceitos complementares: o de

complexidade e o de espaço ocupacional. A incorporação desses conceitos permitiu

estender o uso da competência para trabalhar com questões ligadas a carreira e

remuneração. Durante a segunda metade da década de 90, foi possível observar a

rápida evolução do uso do conceito no aprimoramento da gestão de pessoas. Hoje,

a articulação entre os conceitos de competência, complexidade e espaço

ocupacional permite maior envolvimento dos gestores na administração de pessoas

e melhor avaliação das repercussões de suas decisões.

Quarta fase – Apropriação pelas pessoas dos conceitos de competência

No Brasil, temos verificado que as empresas que conseguiram grandes avanços na

gestão de pessoas trabalharam em duas frentes de forma simultânea: de um lado,

aprimoraram seus sistemas de gestão de pessoas, de outro, estimularam as

pessoas a construírem seus projetos de carreira e desenvolvimento profissional.

A apropriação, por parte das pessoas, dos conceitos de competência, complexidade

e espaço ocupacional é fundamental para seu contínuo aprimoramento. Quando as

pessoas não compreendem os conceitos e não os utilizam para pensar o próprio

desenvolvimento, reduzem os instrumentos e processos derivados desses

conceitos a rituais burocráticos.

57

Há pontos que precisamos trabalhar mais intensamente para aprimorar o uso dos

conceitos e principalmente para que sejam efetivamente internalizados pelos

gestores e pelas pessoas. Como veremos mais amplamente nos próximos

capítulos, ainda não está satisfatoriamente equacionada a conciliação de

expectativas entre as pessoas e a organização. O processo é dinâmico e depende

muito das lideranças organizacionais; talvez esta seja a quinta fase desse processo.