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PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE PROCURADORIA-GERAL DO MUNICÍPIO
PARECER Nº 202/2006
PROCESSO Nº 1.024733.06.7.000
INTERESSADO: Procuradoria-Geral do Município
ASSUNTO: Reconhecimento Administrativo de Prescrição ex officio
EMENTA: A PRESCRIÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA TEM OS MESMOS EFEITOS DA DECADÊNCIA PORQUE EXTINGUE A OBRIGAÇÃO PRINCIPAL. NA SISTEMÁTICA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002, A PRESCRIÇÃO FICOU SUBMETIDA AO REGIME DAS OBJEÇÕES SUBSTANCIAIS E, POR ISSO, PODE SER DECLARADA EX OFFICIO PELA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. ENTENDIMENTO REFORÇADO PELA LEI PROCESSUAL. SE A ADMINISTRAÇÃO TEM COMO FINALIDADE ÚLTIMA A REALIZAÇÃO DA IDÉIA MATERIAL DE DIREITO QUE CARACTERIZA AS FUNÇÕES LEGISLATIVA E JUDICIAL E CONCRETIZA NORMAS JURÍDICAS NO MESMO PLANO DO JUDICIÁRIO, PODE DECIDIR, POR CONTA PRÓPRIA, PROBLEMAS DE FUNDAMENTAÇÃO E APLICAÇÃO DE NORMAS. ALTERNATIVIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO RELATIVAMENTE AO PROCESSO JUDICIAL. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO ADMINISTRATIVO DE PRESCRIÇÃO EX OFFICIO POR RAZÕES DE EFICIÊNCIA E MORALIDADE.
A questão dos efeitos do reconhecimento da prescrição em direito
tributário não é nova, tendo sido objeto de inúmeros trabalhos
doutrinários, decisões judiciais e, inclusive, de regulamentação
específica, como é o caso da Portaria 250/80, vigente na esfera federal e
da Instrução Normativa nº 03/98, do Município de Porto Alegre.1 A
conclusão de toda a controvérsia pode ser assim resumida: a prescrição
1 Instrução Normativa nº 03/98, da Secretaria Municipal da Fazenda.
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em matéria tributária acaba por alcançar o direito e esta pode ser
declarada pela Autoridade Administrativa se houver provocação.
No Parecer Coletivo nº 188/1998, da Procuradoria-Geral do
Município de Porto Alegre, o relator, Procurador Gamaliel Valdovino
Borges, concluiu no sentido de que “ocorrendo a prescrição de crédito
tributário, seja a mesma declarada pela autoridade administrativa, para
o fim de excluir o débito da dívida ativa, em razão de sua extinção, com o
fornecimento de Certidão Negativa, desde que haja pedido, para tanto, do
prescribente, vedado o reconhecimento de ofício, e, desde que seja
analisado pela autoridade, caso a caso, a inexistência de causas
interruptivas ou suspensivas da prescrição, que possam afastar a sua
declaração, permitindo, assim, a propositura da competente Execução
Fiscal, sob pena de responsabilidade funcional. Decisão esta que sempre
deverá ser submetida ao reexame necessário do Eg. Conselho Municipal
de Contribuintes.”.
Os tribunais brasileiros já vinham firmando posição neste
sentido, e com a recente promulgação da Lei 11.051, de 29.12.04 e Lei
11.280, de 16.02.06, passou-se a admitir, no ordenamento jurídico
brasileiro, a proclamação de ofício da prescrição na via judicial.
Considerando que tais dispositivos legais modificam, em parte, a
tese do Parecer Coletivo 188/98, é necessário apreciar novamente a
questão à luz da indagação que surge, imediatamente, da nova situação
que se apresenta, a saber: se a prescrição pode ser declarada de ofício
pelo Juiz da execução fiscal, por que a Administração Fiscal não pode
fazê-lo, no âmbito de um processo administrativo? Para responder tal
questão e orientar a atuação da Administração Fazendária, foi aberto o
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presente expediente (de ordem da Procuradora-Geral) e a mim
distribuído para parecer. É o sucinto relatório.
Para responder à indagação posta, primeiramente, deve ser
verificado o tratamento dogmático que vem sendo dado à prescrição em
matéria civil e tributária, no Brasil (I). Após este exame, há que se
considerar os modos pelos quais o ordenamento jurídico se concretiza,
para então, fundamentar-se a possibilidade de declaração de prescrição
ex officio na via administrativa (II).
I – PRESCRIÇÃO EM MATÉRIA CIVIL E EM MATÉRIA
TRIBUTÁRIA
Através do cânone hermenêutico da totalidade do sistema
jurídico, uma definição, qualquer que seja a lei que a enuncie, vale para
todo o direito, de modo que toda norma jurídica tem a mesma estrutura
lógica e atuação dinâmica (regra, fattispecie e efeitos da incidência: a
relação jurídica e seu conteúdo - direito e dever, pretensão e obrigação,
ação e sujeição). 2 Sendo assim, para o correto enfrentamento da
questão, é essencial fazer-se a abordagem sistemático-conceitual do
direito válido (de seus conceitos fundamentais), das construções
jurídicas e a investigação da estrutura do sistema jurídico e da
fundamentação sobre a base dos direitos. Daí necessária a distinção
entre prescrição e decadência(a), a verificação da natureza jurídica das
relações obrigacionais tributárias (b) e do significado da prescrição em
matéria tributária (c). Finalmente, há que se fixar qual é a compreensão
dos Tribunais e da legislação no que diz respeito à prescrição em
2 Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, pp. 110 e ss.
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matéria tributária, de modo a verificar, no plano empírico, o que é
positivamente válido no País (d)
A. Considerações a respeito da distinção entre prescrição e
decadência
A tradição doutrinária do direito civil brasileiro, assente no direito
romano, entende que prescrição é juridicamente exceção, e como tal, é
faculdade que assiste a quem aproveita.3 Sendo “exceção”, diz respeito
à eficácia do direito, da pretensão ou da ação, ou, no dizer de Pontes de
Miranda,4 é “contradireito”, na medida em que encobre, paralisa o
direito, ação ou pretensão. No direito brasileiro, prescrição é exceção
(fato jurídico da prescrição) “que alguém tem, contra o que não exerceu,
durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou
3 A relação obrigacional é um vínculo ideal, formado de dois elementos - dever (schuld) e responsabilidade/sujeição (haftung) - polarizada pela satisfação do interesse do credor. O crédito (fordenung) é diferente da relação de obrigação (schuldverhältnis). O conteúdo da relação obrigacional pode ser o crédito singular como o dever correlativo (aspectos passivos e ativos) ou decorrente de uma relação total, de que brotam direitos singulares de crédito, como a relação de serviços, etc. A relação se dirige a uma pessoa determinada ou determinável e, nisso, se distingue da relação real. O dever do obrigado (devedor) se dirige a uma ação ou omissão, isto é, a uma prestação. É da essência do crédito que ele se extinga quando o interesse do credor está satisfeito por qualquer maneira. O devedor está obrigado mediante sua força de trabalho e o seu patrimônio (poder jurídico) a servir ao interesse do credor. O crédito outorga ao credor o direito de exigir a prestação e obriga o devedor a fazê-lo. Se o devedor não cumprir a prestação, o credor tem direito a dirigir-se contra o seu patrimônio, mediante o auxílio da autoridade. O direito de crédito, por sua vez, é protegido por uma ação (processual) - execução forçada. As obrigações imperfeitas são aquelas em que, por razões especiais, se negam a ação e a execução forçada. São obrigações sem ação mas não sem sujeição (material), e nisso são diferentes das obrigações naturais romanas. “Não obstante, são verdadeiros créditos, pois podem ser cumpridos. O pagamento efetuado, conhecendo a circunstância de não poder ser executado forçosamente, não constitui doação, e o pagamento feito, (...) não pode ser repetido sob pena de enriquecimento injusto,’’ assevera Ennecerus. Para as considerações seguintes, ver COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo, passim; ENNECERUS, Ludwig. Derecho de Obligaciones. V. I. Barcelona: Bosch, 1954, pp. 2 a 13, 286 e 302 e ss; PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Tomo 6, p. 42 e ss. 4 PONTES DE MIRANDA, cit., p. 6 e ss.
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ação”.5 A prescrição, então, diz respeito à paz e segurança públicas,
para que se limite temporalmente a eficácia das pretensões ou ações.
Via de regra, a prescrição não atinge só a ação: atinge também a
pretensão, encobrindo-lhe a eficácia, de modo que, como assevera
Pontes de Miranda, “quando se diz que “prescreveu o direito”, emprega-
se elipse reprovável, porque em verdade se quis dizer que “o direito teve
prescrita a pretensão (ou a ação), que dêle se irradiava, ou teve
prescritas tôdas as pretensões (ou ações) que dêle se irradiavam”.
Quando se diz “dívida prescrita” elipticamente se exprime “dívida com
pretensão (ou ação) prescrita”, portanto dívida com pretensão encobrível
(ou já encoberta) por exceção de prescrição.”6 O que a prescrição atinge,
por conseguinte, é a eficácia de pretensões e ações e não aos direitos.
Daí o crédito prescrito ser um crédito acionável toda vez que, se não se
opõe a exceção de prescrição, tem por conseqüência a condenação do
devedor. Se o devedor alega prescrição, mesmo que a ação seja ineficaz,
subsistem certos efeitos do crédito. Assim, no caso de dívida prescrita,
exclui-se a repetição enquanto, e se, a exceção não for acolhida, de
modo que “o destinatário da pretensão desprovido de ação é obrigado;
tratando-se de pretensão do direito das obrigações, é devedor e está
sujeito a pagar.”7
Considerando ainda o aspecto da extinção das obrigações, o
certo é que só se extinguem com o cumprimento (solutio), isto é, com a
realização do mandato dirigido ao devedor: a realização do conteúdo da
obrigação pelo devedor, e enquanto tal não tem o caráter de negócio
jurídico. A solutio exige também a realização de uma prestação que seja
conforme à obrigação, de modo que a prestação não se pode dar sem
5 Cf.PONTES DE MIRANDA, cit., p. 110. 6 Cf.PONTES DE MIRANDA, cit., p. 103. 7 PONTES DE MIRANDA, cit., p. 46.
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uma declaração de aceitação do credor. Este deverá aceitar com
finalidade de cumprimento.8
Em síntese, para haver prescrição é necessário que exista
direito material da parte a uma prestação a ser cumprida a seu tempo,
por meio de ação ou omissão do devedor; que ocorra violação desse
direito material por parte do obrigado, configurando o inadimplemento
da prestação devida; que surja a pretensão como conseqüência da
violação do direito subjetivo (actio nata) e se verifique a inércia do titular
da pretensão em fazê-lo exercitar durante o prazo extintivo fixado em
lei. 9
Mesmo que existam dificuldades de distinguir prescrição de
decadência, alguns pontos são pacíficos, principalmente o
entendimento de que é a ação e não o direito que prescreve. O direito
está sujeito à decadência, cujos efeitos atingem a ação somente por via
reflexa. O critério é, porém, falho e inadequado, pois carece de base
científica.10
Nos termos da construção de Agnelo Filho, uma classificação
a priori tem que partir da noção de Chiovenda, de direitos potestativos:
a) direitos subjetivos que têm por finalidade um bem da vida, a
conseguir-se mediante uma prestação (reais e pessoais): há sempre um
8 Cf. ENNECERUS, cit., pp. 302 e ss. 9 Cf. CÂMARA LEAL, Antonio Luiz. Da Prescrição e da Decadência., 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 25. 10 FILHO, Agnelo Amorim. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais. Ano 49. Vol. 300. São Paulo, 1960, pp.7 a 37. Referindo-se ao Código Civil de 1916, Agnelo Filho asseverou que o diploma legislativo não diferenciou prescrição e decadência de forma inequívoca, englobando, “indiscriminadamente, os prazos de uma e de outra.” Conquanto o Código Civil de 2002 não tenha igualmente feito uma rigorosa distinção entre prescrição e decadência, continuam sendo pertinentes as conclusões do referido
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sujeito passivo obrigado a uma prestação positiva (pessoal) ou negativa
(direito real); b) a segunda categoria é a dos direitos subjetivos
potestativos: aqueles poderes que a lei confere a determinadas pessoas
de influírem sobre situações jurídicas de outras, mediante uma
declaração de vontade unilateral (estado de sujeição): “a sujeição é um
estado jurídico que dispensa o concurso da vontade do sujeito, ou
qualquer atitude dele.”11 São exemplos desses direitos: o direito que
têm o mandante e o doador de revogarem o mandato ou a doação; o
poder que tem o cônjuge de promover o divórcio; o poder que tem o
herdeiro de aceitar ou renunciar à herança; o poder que têm os
interessados de promover a invalidação dos atos nulos ou anuláveis;
poder que tem o sócio de promover a dissolução da sociedade; o poder
que tem o contratante de promover a rescisão do contrato por
inadimplemento, etc. Com isso, afirma-se que são direitos insuscetíveis
de violação, e a eles não corresponde uma prestação.
De outra parte, há várias categorias de direitos potestativos: a)
os que se exercitam e atuam mediante simples declaração de vontade
de seu titular, independentemente da via judicial e sem o concurso da
vontade daquele que sofre a sujeição: direito de revogação de mandato,
aceitação da oferta, etc; b) os direitos potestativos que podem ser
exercitados mediante simples declaração de vontade do titular, sem
apelo à via judicial mas com o concurso da vontade do que sofre a
sujeição: direito do condômino de exigir a divisão de coisa comum, o
que tem o doador de revogar a doação; c) na terceira categoria estão os
direitos potestativos que só podem ser exercidos por meio de ação, como
por exemplo, aqueles direitos potestativos que dizem respeito ao estado
trabalho, que é um clássico da doutrina civilista brasileira. ao lado do texto de Câmara Leal,. 11 Chiovenda, apud AGNELO FILHO, cit., p. 11.
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civil das pessoas.12 Relativamente às ações por meio das quais são
exercidos os direitos potestativos da segunda e da terceira categorias, o
autor não pleiteia do réu qualquer prestação: o que ele visa é a criação,
modificação ou extinção de determinada situação jurídica, sofrendo o
réu uma sujeição. São as ações constitutivas e, por isso, diz-se que os
direitos potestativos são, por definição, sem pretensão. Nas ações
condenatórias, ao contrário, pretende-se obter do réu uma determinada
prestação (positiva ou negativa), de modo que são meio de proteção
daqueles direitos suscetíveis de uma violação.
Seguindo estes critérios, verifica-se que é a lesão do direito que dá
origem a uma ação e à possibilidade de propositura desta, com a
intenção de reclamar uma prestação. Daí só as ações condenatórias
poderem prescrever, pois elas são as únicas ações por meio das quais
se protegem direitos sucestíveis de lesão. Por outro lado, também por
razões de segurança jurídica e tranqüilidade social, fundamento dos
institutos que tratam da incidência do tempo nas relações jurídicas
(prescrição e decadência), há a necessidade de se estabelecer prazo para
o exercício de alguns direitos potestativos. Nestes casos, o decurso do
prazo sem o exercício do direito implica extinção deste, de modo que, se
a lei fixa prazo para o exercício de um direito postestativo, o que ela tem
em vista é a extinção desse direito e não da ação: esta se extingue pela
via indireta. Então, se fala em decadência e não, em prescrição. Em
resumo: as ações constitutivas, porque não são ações de prestação nem
estão ligadas a um direito suscetível de lesão, não podem ficar
subordinadas a um prazo prescricional, pois prescrição e lesão do
direito são conceitos correlatos e inseparáveis (causa e efeito). Por isso,
quando o legislador subordina uma ação constitutiva a prazo extintivo,
tal prazo só pode ser de decadência. Em conclusão, estão sujeitas a
12 AGNELO FILHO, cit., p. 15.
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prescrição todas as ações condenatórias; estão sujeitas a decadência as
ações constitutivas que têm o prazo especial fixado em lei; são
perpétuas (imprescritíveis) as ações constitutivas que não têm o prazo
especial fixado em lei, e todas as ações declaratórias.
B. A relação obrigacional tributária
Na atualidade, a tarefa de formação e conservação da unidade
política13 é do Estado - atuação e atividade dos poderes que se
constituem sobre a base da unidade sempre a ser formada, conservada
e continuando a formar - . Como o nascimento da unidade política é
um processo permanente, necessita de uma colaboração organizada,
ordenada procedimentalmente, isto é, de uma ordem jurídica que
garanta “o resultado da colaboração formadora de unidade e o
cumprimento das tarefas estatais.”14 No direito brasileiro, como de
resto em todas as democracias ocidentais contemporâneas, o centro do
sistema jurídico é a Constituição - a ordem jurídica fundamental da
coletividade, pois ela determina os princípios retores da formação da
unidade política e das tarefas estatais, regulando os procedimentos de
vencimento de conflitos no interior da coletividade e fundamentando
competências.
A relação constitucional do Estado é uma atividade contínua
relacionada ao bem comum e se sustenta e se alimenta ‘da inteligência
13 Unidade política é “unidade de ação possibilitada e produzida por acordo ou compromisso, por aprovação tácita ou mera aceitação e respeito, eventualmente, até por coação exercida exitosamente, portanto, uma unidade funcional. Esta é pressuposto para isto, que no interior de um determinado território, decisões obrigatórias possam ser tomadas e sejam cumpridas, que, portanto, exista “Estado” e não anarquia ou guerra cvil”, diz HESSE, in: Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução da 20a. ed. alemã de Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, por Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998, p. 30.
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e vontade do homem’, cuja ‘energia dinâmica’ – “capacidade de agir
(poder ou força natural e racional) dos indivíduos humanos criadores do
Estado” – gera dois campos de força equilibrados e em sentido
contrário: o feixe de deveres centrípetos – a relação tributária – e o feixe
de direitos centrífugos – a relação administrativa. Os deveres
centrípetos são aqueles que o direito tributário define e disciplina; os
direitos centrífugos são definidos e disciplinados pelo direito
administrativo, de modo que os indivíduos, pólos da relação
constitucional, contribuirão para a Receita e participarão dos frutos da
Despesa. Então, o Estado, na relação jurídica15 de administração, figura
no pólo negativo, e os indivíduos, no pólo positivo; ao contrário, na
relação jurídica de tributação, quem está no pólo negativo são os
indivíduos e, no pólo positivo, o Estado. Ora, a relação tributária nada
mais é do que uma relação obrigacional, polarizada pelo interesse do
Estado (credor) e pelo interesse público. Contribuinte é quem tem uma
relação pessoal e direta com a situação que constitua o fato jurídico
tributário. Posta a questão neste termos, tem-se que a relação jurídico-
tributária é uma relação obrigacional – pessoal16-, sendo seu objeto a
renda, o patrimônio ou o consumo de determinado sujeito.
14 HESSE, cit., p. 35. 15 Consoante Paulo de Barros Carvalho, “relação jurídica é definida como aquele vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação.” In: Curso de Direito Tributário. 8ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 194. 16 Aqui não é o caso de se fazer a discussão sobre a natureza “real” de certos tributos, como o imposto sobre propriedade territorial urbana ou rural. A afirmação destacada acima parte, resumidamente, do seguinte ponto de vista: aplicar aos tributos a distinção “direito real”/’direito pessoal”, é uma incompreensão do ordenamento jurídico atual, mas, uma vez que isso tem sido repetido à exaustão, com base em um argumento de autoridade e em uma equivocada interpretação do direito romano, cabe esclarecer definitivamente a questão com base nos próprios argumentos utilizados pelo Ministtro Moreira Alves (RE ), julgador do leading case que firmou a posição do STF no sentido de ser o IPTU um imposto “real”. È impossível aceitar a distinção impostos reais/impostos pessoais porque estas categorias, herdadas do direito romano e conservadas pelo direito romano-germânico até nossos dias, correspondem à contraposição existente no direito romano primitivo entre actio e vindicatio ou entre
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A relação obrigacional tributária é constituída pelo fato gerador e
perfectibilizada pelo lançamento porque é dever jurídico significado pelo
art. 113 do CTN. Aqui se impõe uma precisão de conceitos, muitas
vezes confundidos, ou seja, a distinção entre dever e obrigação: dever é
uma categoria formal, não se vincula a um determinado direito positivo.
Obrigação é categoria material, jurídico-positiva, isto é, é definida em
seus contornos pelo direito positivo. É pacífico o entendimento de que o
dever comporta modais deônticos (autorização, proibição e
obrigatoriedade) e de que há dever jurídico quando a conduta é
prescrita e de observância obrigatória. Com isso, nas relações jurídico-
tributárias, observa-se a existência de vínculos com substância
patrimonial (regra matriz de incidência) e aqueles que tornam possível a
operatividade da instituição tributária, qual seja, os deveres
instrumentais e formais. Só aos primeiros vínculos se pode dar,
propriamente o nome de ‘obrigação’, na medida em que as outras
relações, cujo objeto é um fazer ou um não fazer, “não apresentam o
actiones in rem e actiones in personam, isto é, a formas diversas, porém equivalentes, de tutela judicial. A partir da época republicana, obligatio passa a ser um termo jurídico conhecido com o mesmo significado de obligare (atar), usado em relação às coisas (obligare rem - atar a uma coisa, dá-la em garantia) e pessoas (obligare personam - impor um dever a uma pessoa). Este uso, porém, não descaracterizava a natureza do vínculo, de modo que, no direito justinianeu, pode-se falar em obrigações pessoais e obrigações reais. Daí não se poder aproximar a obrigação tributária às chamadas obrigações propter ou ob rem, (categoria moderna) porque estas, em que pese nascerem de um direito real do devedor sobre determinada coisa (a que aderem), serem transmissíveis (se o direito de que se origina é transmitido, a obrigação o segue, qualquer que seja o título translativo) e constituírem uma exceção ao princípio da determinação dos sujeitos da relação obrigacional, continuam sendo, em substância, um vínculo jurídico obrigacional. A distinção para com as obrigações stricto sensu é tão-somente o fato de as denominadas obrigações propter rem admitirem, por sua própria natureza, a substituição do sujeito passivo que, assim, se determina mediatamente. Pode-se, inclusive, dizer que tais obrigações, por sua vinculação ao bem, têm seqüela. Por fim, a despeito de ser predominante no direito brasileiro a tese da realidade das obrigações propter rem, é irrecusável que constituem um vínculo jurídico pelo qual uma pessoa, embora substituível, fica adstrita a satisfazer uma prestação no interesse de outra. Não consiste em fazer de algo uma coisa nossa e, como nos direitos reais, tais obrigações obedecem ao princípio do numerus clausus, não existindo outros tipos além dos configurados em lei.
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elemento caracterizador dos laços obrigacionais, inexistindo nelas
prestação passível de transformação em termos pecuniários”.17 Daí a
relação obrigacional tributária corresponder, na linguagem do CTN, à
obrigação principal (dar); à relação jurídico-tributária, corresponde
àquela relação de caráter instrumental e preparatório denominada,
impropriamente, na lei tributária, de obrigação acessória. 18
17 CARVALHO, Paulo de Barros, cit., p. 198. 18 Cf. SOUTO MAIOR BORGES. Obrigação Tributária (uma introdução metodológica). 2ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 1999pp. 31 e ss. Na teoria geral do Direito, tecnicamente, sanção, em sentido amplo, é a conseqüência atribuída a determinados atos que a ordem jurídica tem por relevantes, isto é, que são suporte fático - hipótese de incidência, fato gerador, fattispecie - de regra jurídica, segundo a terminologia kelseniana e de Pontes de Miranda. As sanções, via de regra, podem ser negativas ou positivas, isto é, inibem ou premiam comportamentos. Daí que a sanção negativa, com a finalidade de inibir certas condutas, implica a retirada ou limitação de bens que são valiosos para aquele que se conduz contrariamente ao preceito estabelecido no padrão de comportamento (comando da norma). A sanção negativa, mais propriamente denominada pena, impõe-se ao sujeito mesmo contra sua vontade, afetando sua propriedade e/ou sua liberdade. No caso das execuções forçadas (limitações ao direito de propriedade), têm-se as chamadas sanções negativas civis. Quando a restrição afeta a liberdade, tem-se a pena stricto sensu. Assim, em última instância e de modo geral, sanções são conseqüências dos atos ilícitos, criadas pelas regras jurídicas, para os reprovar, ou “(...) o dever preestabelecido por uma regra jurídica que o Estado utiliza como instrumento jurídico para impedir ou desestimular, diretamente, um ato ou fato que a ordem jurídica proíbe”, porque ao criar uma prestação jurídica, concomitantemente, o legislador cria uma providência ao não-cumprimento do referido dever. No campo do direito tributário, a regra sancionatória descreve um fato que se consubstancia no descumprimento de um dever estipulado na regra-matriz de incidência, ou “a não- prestação do objeto da relação jurídica tributária.” Tal conduta é que se denomina ilícito ou infração tributária. De um ponto de vista rigorosamente formal, há que se salientar, neste particular, que as infrações tributárias constituem uma espécie de infração da ordem jurídica de natureza idêntica às incorporadas no Código Penal e nas leis penais especiais, uma vez que as normas que definem infrações e estabelecem sanções negativas são de natureza jurídico-penal, independentemente do texto positivo em que se encontram incorporadas. Relação jurídica sancionatória é, então, aquele vínculo entre o autor da conduta ilícita e o titular do direito violado e, no caso de penalidades pecuniárias ou multas fiscais, o liame é obrigacional, uma vez que tem substrato econômico, e , daí, o pagamento da quantia estabelecida ser promovido a título de sanção. Tratando-se de outro tipo de sanção, modifica-se apenas o objeto da prestação, que pode ser um fazer ou um não-fazer. Em matéria tributária, o ilícito advém, ou da não-prestação do tributo (da importância pecuniária), ou do não cumprimento de deveres instrumentais ou formais. Infração tributária, é, assim, conforme lição de Paulo de Barros Carvalho, “toda ação ou omissão que, direta ou indiretamente, represente o descumprimento dos deveres jurídicos estatuídos em leis fiscais”.Isto posto, tem-se que sanção tributária é a relação jurídica que se estabelece, por força da prática de um ato ilícito, entre o titular do direito violado – o Fisco – e o agente da infração – o contribuinte - , de forma que obrigação é o dever jurídico cometido ao sujeito passivo e sanção “a importância
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Embora o legislador tributário tenha sido impreciso quando separa
“obrigação” de “crédito”, pode-se assimilar a linguagem do CTN, no final
do §1º do art. 113, que, ocorrido o fato jurídico tributário, instaura-se a
relação obrigacional, com o crédito para o sujeito ativo e o débito para o
sujeito passivo. Na medida em que tal crédito (e seu correlato débito)
nem sempre são imediatamente determinados, certos e líquidos, faz-se
necessário um ato administrativo, conhecido por lançamento tributário.
Nos termos do CTN, o lançamento é concreção ou individualização de
norma tributária.19 Quer dizer, para aplicação das normas tributárias,
impõe-se verificar se ocorreu determinado fato - o fato jurídico
tributário (tatbestand, fattispecie, fato gerador, suporte fático), e isto é,
em parte, “a função concretizadora da norma individual posta pelo ato
administrativo de lançamento”.20 Assim, “à verificação da ocorrência
do fato jurídico tributário (CTN, art. 113, § 1º), segue-se um ato
administrativo concreto – o lançamento (CTN, art. 141, caput)”.21 À
autoridade administrativa compete, privativamente, constituir o crédito
tributário pelo lançamento. Desta forma, a Administração Fazendária
deve: a) verificar a ocorrência do fato gerador; b) determinar a matéria
tributável; c) calcular o montante do tributo devido; d) identificar o
sujeito passivo e, e)propor a aplicação da penalidade cabível, quando for
o caso.
devida ao sujeito ativo, a título de penalidade ou de indenização, bem como os deveres de fazer ou não-fazer, impostos sob o mesmo pretexto.” Tal relação jurídica (sancionatória) pode assumir caráter obrigacional stricto sensu, quando se tratar de penalidades pecuniárias, multas de mora ou juros de mora, ou veiculadora de deveres de fazer ou não-fazer, sem conteúdo patrimonial (obrigação lato sensu). Destarte, existem várias modalidades de sanções que o legislador brasileiro associa aos ilícitos tributários que elege. 19 Que a obrigação tributária surja com o fato gerador (tese declaratória do lançamento) é posição assente na doutrina e acolhida pelo CTN. 20 Cf. SOUTO MAIOR BORGES, José. Lançamento Tributário. 2a. Ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p.82.
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C. Extinção da obrigação tributária
A relação jurídica tributária, como nexo abstrato que é, nasce
com a ocorrência do fato gerador e, após haver realizado seus objetivos
reguladores de conduta ou por razões que o Direito estipula, extingue-
se. Desaparecendo os elementos integrativos da relação obrigacional
(sujeito ativo, sujeito passivo, objeto, direito subjetivo de que é titular o
sujeito pretensor - desaparecimento do crédito - e dever jurídico
cometido ao sujeito passivo - desaparecimento do débito), decompõe-se
a figura obrigacional. Afora o desaparecimento do objeto prestacional
estritamente considerado, o CTN contempla todos os demais casos de
desaparecimento dos nexos que compõem a obrigação.
O artigo 156 do Código Tributário Nacional dispõe
textualmente que a ocorrência de prescrição ou de decadência “extingue
o crédito tributário” e tem sido interpretação corrente que, equiparados
os dois institutos, quando ocorrer prescrição, “por via reflexa”, extingue-
se o direito material, isto é, opera-se também a decadência.
Independentemente da impropriedade de tal redação, os autores
nacionais têm-se esforçado para chegar a um acordo no que diz
respeito aos efeitos de prescrição e da decadência no direito tributário.
Dado que decadência e prescrição são “mecanismos de estabilização do
direito, que garantem a segurança de sua estrutura”, no direito
tributário, estas operam sobre as fontes de produção de normas
individuais e concretas, “interrompendo o processo de positivação do
direito tributário.” 22. Aplicando-se a regra da decadência, extingue-se o
direito de constituir o ato administrativo de lançamento tributário, o
direito ao crédito e o direito de pleitear o débito do Fisco; com a
21 SOUTO MAIOR BORGES, idem, ibidem.
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aplicação da regra de prescrição, extingue-se “o direito à ação executiva
fiscal, à ação de repetição do débito do Fisco ou ao crédito.” Assim, as
hipóteses elencandas no art. 174 da lei tributária orientam-se para
a extinção do direito de ação do Fisco; a constante do art. 156, V,
para a extinção do próprio crédito tributário. Com isso, ocorrendo
constituição do crédito pelo lançamento do Fisco e conduta omissiva
deste no fluxo de cinco anos contados da data em que o contribuinte foi
regularmente notificado (fato prescricional), configura-se a
impossibilidade de o Fisco exercer o seu direito de ação e, por via
reflexa, extingue-se o seu direito ao crédito constituído pelo lançamento
ou por ato de formalização do particular.
Na redação do dispositivo legal comentado, ou o legislador
tributário errou mudando o conceito de prescrição, ou “o CTN editou
norma própria, específica, no que concerne aos efeitos da prescrição”23,
pois, mesmo que a lei diga que a prescrição atinge o direito material,
isto não faz com que, repentinamente, prescrição e decadência sejam
uma e mesma coisa. Ocorrendo a prescrição, permanece o direito e, daí,
no caso das obrigações tributárias, mesmo que o débito seja excluído da
dívida ativa, não dever ser eliminado dos demais registros porque, com
isso, estar-se-ia extinguindo o direito e o correlativo dever: a prescrição
faz desaparecer a exigibilidade, mas não o direito e o correlativo dever.
O único modo de assim considerar é entender que o CTN chama de
“prescrição” é, na verdade, decadência, pois só esta tem a natureza
jurídica de extinguir o direito protegido por ação: a obrigação
principal. Ou seja, o instituto da prescrição, quando aplicado ao direito
tributário produz efeitos diversos daqueles produzidos no direito civil.
Nas palavras do relator do Parecer Coletivo 188/98, “a prescrição em
22 SANTI, Eurico Marcos Diniz. Decadência e Prescrição no Direito Tributário. 2ª. Ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 143.
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tema tributário tem uma conformação completamente diversa daquela,
tendo como criadora dessa nova e diferente roupagem a Lei
Complementar, na qual se traduz o Código Tributário Nacional.”
D. Prescrição em matéria tributária (plano empírico)
Na ocasião em que foi produzido o Parecer Coletivo ora
comentado (1998), o relator já apontava que o entendimento acima
estava sendo delineado pelos tribunais do Estado do Rio Grande do Sul.
Passados oito anos, esta posição acabou consagrada, e hoje a
jurisprudência dos tribunais brasileiros, de modo geral, e a do Estado,
de modo particular, é torrencial no sentido de que a prescrição, em
matéria tributária, “atinge o direito em toda a sua inteireza, retirando
do Estado qualquer possibilidade de exigir, de receber o crédito
tributário após ocorrida a prescrição” 24
De fato, a compreensão que os Tribunais brasileiros
emprestam ao CTN é exatamente a de que “ante o que dispõe o art. 156,
V, do Código Tributário Nacional, a prescrição não tem o condão apenas
de extinguir o direito de ação para a cobrança do crédito constituído.
Vai além, pois extingue o próprio crédito, ou seja, tem-se por extinta a
própria relação material tributária. Em termos práticos, tem o mesmo
efeito da decadência.” 25 O relator do Parecer Coletivo 188/98 já fizera
essa reflexão, mas na época, esta era uma tendência, que só
recentemente tomou corpo e se consolidou na Jurisprudência pátria. E
justamente porque, em matéria tributária, a prescrição tem os mesmos
23 BORGES, Gamaliel Valdovino. Parecer Coletivo nº 188/98, fl. 09 deste expediente. 24 BORGES, idem, fls. 13. 25 APELAÇÃO CÍVEL 70001436607. 1ª. Cãmara Cível do TJRGS. Relator Henrique Osvaldo Poeta Roenick, que se baseia no entendimento predominante do STJ. Todas as decisões juntadas no presente expediente administrativo vão na mesma direção.
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efeitos da decadência, é que se pode falar em reconhecimento ex officio
de prescrição.
O argumento dos Tribunais, antes da edição da Lei Federal
11.280/06, foi sempre no sentido de que a prescrição, ao extinguir a
própria relação material de direito tributário, poderia ser declarada de
ofício, na medida em que o Fisco perde a legitimidade para cobrar o
crédito. Esse entendimento, contudo, não era pacífico, muito antes pelo
contrário: a pesquisa da Jurisprudência interna comparada,
colacionada neste expediente, bem demonstra que a maioria das
decisões não admitia a possibilidade de decretação ex officio de
prescrição nas execuções fiscais, antes do advento da comentada lei.
Em que pesem as inúmeras discussões doutrinárias a respeito
da falta de técnica na redação do art. 3º da Lei 11.280/06, o fato é que
a mesma sepultou a discussão: doravante, os juízes podem - e devem -
decretar ex officio a ocorrência da prescrição no curso de um processo
fiscal. Nas palavras de Humberto Teodoro Júnior, 26 o Código Civil de
2002, já quebrara “a clássica distinção entre os casos de objeção e
exceção,” fazendo com que a prescrição ficasse submetida ao regime da
decadência - da objeção - , pois não paralisa a pretensão, mas a elimina
ou extingue totalmente. Daí o juiz poder apreciá-la de ofício, uma vez
que “a caducidade representa o desaparecimento completo do direito
potestativo de alguém. Se não existe mais direito subjetivo, não pode
evidentemente o juiz tutelá-lo”.27
26 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O Novo Código Civil e as Regras Heterotópicas de natureza processual. Colhido em http://americajuridica.com.br, acessado em 01/06/2006. 27 THEODORO JÚNIOR, idem, p. 3.
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Nesta perspectiva, cabe ao jurista reconhecer que o legislador,
talvez atento aos aspectos práticos e preocupado com a justiça das
decisões, tornou irrelevante a clássica distinção teórica entre exceção e
objeção substancial, aplicando à prescrição, em alguns casos, o regime
processual da decadência. Como assevera Theodoro Júnior, “é sempre
bom ter presente que o legislador não fica jungido às construções
teóricas do doutrinador, quando busca disciplinar concretamente as
relações sociais por meio do direito positivo. Ao jurista é que cabe
conformar suas teorias à nova ordem jurídica imposta pelo
legislador.” (grifei)
Remanesce, contudo, a questão da possibilidade de a
Administração declarar de ofício a prescrição, hipótese que o relator do
Parecer Coletivo 188/98 rechaçou, entendendo-a vedada pelo sistema
constitucional tributário nacional (fls. 181). É precisamente este
posicionamento que a signatária quer discutir: se a Administração
Fazendária pode, por si própria, verificar que o seu direito de lançar
decaiu, por que não poderá, diante da verificação da ocorrência de
eventos prescricionais (que, repete-se, operam os mesmos efeitos dos
fatos decadenciais), auto inibir-se de prosseguir em uma demanda
executiva que, ao final, será extinta pelo Judiciário? A resposta a esta
indagação passa necessariamente pela compreensão de que,
materialmente, o exercício da Função Administrativa não é muito
diferente do exercício da Função Jurisdicional. Se o ordenamento
jurídico é uma estrutura escalonada de normas, a Constituição é o grau
superior, o plano fundamental; a legislação ordinária, o seu grau
primário, e a Administração e a Jurisdição o seu grau secundário, com
idênticas tarefas de criar normas individuais, concretas, com
fundamento nas normas do grau primário. O meio pelos quais fazem
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esta concreção é diverso, mas a concreção é a mesma.28 Por isso, cabe
fazer uma apreciação mais minudente desta tese.
II - A CONCREÇÃO DO ORDENAMENTO OPERADA PELA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E PELO JUDICIÁRIO
A. A Função Administrativa
Com o advento do Estado Social de Direito e do Estado
Democrático de Direito, houve uma alteração global das relações entre
sociedade e Estado, convertendo-se o Estado em Estado econômico, que
provê as condições essenciais de vida ao cidadão, através de dirigismo e
planificação, com a prestação de bens, serviços e infra-estrutura
materiais, sem os quais, aliás, o exercício dos direitos fundamentais não
passa de uma possibilidade teórica, e a liberdade, de uma ficção.
Surgiram, então, os direitos fundamentais sociais, diluíram-se as
fronteiras entre a lei e a administração, incrementaram-se as funções
não jurídicas da Administração, o Poder Executivo passou a ter uma
certa prevalência sobre o Legislativo, culminando com o reconhecimento
dos mecanismos de democracia política como o último quadro capaz de
28 Grau superior é o plano fundamental, corresponde às normas no topo da pirâmide, criadas pelo Poder Constituinte e que formam a Constituição do Estado; grau primário é o Legislativo, o plano das normas gerais, criadas pelos órgãos autorizados pela Constituição a elaborar as leis, que têm, na Constituição, seu fundamento de validade, condicionando, por sua vez, as normas da base do ordenamento; finalmente, o grau secundário é composto por normas individuais criadas em nível concreto, via processo judicial (decisões judiciais) e via procedimentos administrativos (resoluções administrativas), com fundamento nas normas de nível primário. Cf. SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. Direito Constitucional, Direito ordinário e direito judiciário. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir/UFRGS. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nº 3, mar.2005, pp. 07 e ss.
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permitir o desenvolvimento de um processo de efetiva socialização do
Estado. 29
29 Não é o caso de fazer aqui todo o apanhado da problemática do Estado Social.
Apenas para a compreensão do que se está a tratar, cabe fazer referência ao Estado Social (Estado de bem-estar ou Estado-providência; Estado-de-partidos ou Estado-de-associações), modelo surgido da crítica reformista ao direito formal burguês em um quadro de profundas transformações da sociedade e do Estado, na Europa do séc. XIX, palco de intensas lutas sociais, decorrentes, basicamente, do extremo estado de penúria das classes trabalhadoras e de sua conseqüente organização política. A feição do Estado, antes “liberal”, no qual os direitos fundamentais de liberdade pessoal, política e econômica constituíam um limite à intervenção estatal, mudou para sempre: surgem os direitos sociais como conseqüência direta das lutas dos trabalhadores, representando direitos de participação no poder político e na distribuição da riqueza social. A gradual integração do Estado com a sociedade civil acabou por alterar a sua forma jurídica, os processos de legitimação e a estrutura da Administração. O pluralismo democrático, a redefinição do papel dos parlamentos e a adoção da fidelidade partidária, bem como a adoção de novos direitos fundamentais que, ao lado das liberdades públicas, asseguram um quadro de valores mínimos a serem perseguidos (bem-estar social e distribuição mais eqüitativa da riqueza), são as principais características desta nova forma estatal. A tutela fundamental não é mais a propriedade privada e sim a dignidade da pessoa humana como centro invariável da esfera da autonomia individual que se procura garantir através da limitação jurídica do Estado. Exige-se agora do Estado uma intervenção positiva, para criar as condições de uma real vivência e desenvolvimento da liberdade e personalidade individuais. O que é problemático, no caso brasileiro, é que este modelo sequer chegou a se implementar totalmente, de modo que fica difícil falar de uma “crise” de algo que não chegou a existir como realidade substancial: o Estado de Direito existe como uma estrutura formal e não real. Contudo, na medida em que “somos, ao mesmo tempo, pós-modernos e pré-modernos, sem nunca termos sido modernos,” como acentua Judith Martins-Costa, a crise do modelo do Estado Social tem que ser, ao menos, referida por causa de suas conseqüências, que, no Brasil, foi (e está sendo) a implementação de uma reforma do aparelho do Estado, em direção ao seu “enxugamento”. Ver MARTINS-COSTA, Judith. ‘Almiro do Couto e Silva e a Re-significação do Princípio da Segurança Jurídica na relação entre o Estado e os cidadãos’, in: Fundamentos do Estado de Direito. Estudos em Homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. ÁVILA, Humberto (org.) et alii. São Paulo: Malheiros, 2005. É bastante extensa a bibliografia sobre o assunto, mas boas sínteses podem ser encontradas em: SOUZA JÚNIOR, Cézar Saldanha. Consensus e Tipos de Estado no Ocidente. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002 HABERMAS, J. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Tradução brasileira de Strukturwandel des Öffentlichkeit Flávio Kothe, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984 e HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução brasileira Faztizitat um Geltung. Beitr”age zur Diskustheorie des Rechts und des demokratischen Reschtsstaats. 4a. ed. Flávio Beno Siebenneichler Rio de Janeiro, 1997, v. 2.; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra, 1996, v. 4; CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993.; NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito. Coimbra: Coimbra, 1987; FLEINER, F., Les Principes Généraux du Droit Administratif Allemand. Paris: Delagrave, 1933; FORSTHOFF, Ernst. Tratado de Derecho Administrativo. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1958; JELLINECK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1970 e HELLER, Hermann. Teoria del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1955.
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Afora a realização de fins mediatos, há se que considerar ainda a
finalidade última da Administração, qual seja, a realização da idéia
material de direito que caracteriza as funções legislativa e judicial e que
está consubstanciada na Constituição, isto é, a realização do bem da
pessoa (a dignidade da pessoa humana) e do bem comum (bem de
todos).
Considerando a estrutura peculiar da formação da vontade do
Estado em diferentes estágios, a vontade formada pela legislação (edição
de normas gerais) é relativamente livre, e a que se forma pela execução
(administração e jurisdição) é vinculada. Isso é assim porque, segundo
a pré-compreensão que está sendo exposta, só é possível distinguir
duas funções estatais, (ainda que tal distinção não seja absoluta, por
força do “princípio dinâmico”): toda criação é execução, toda execução é
criação, com as duas exceções-limite: a norma fundamental e a
execução de sentença. Assim, legislação é a atividade de criação de
normas gerais, praticada preponderantemente pelo Legislativo, e
Execução (latu sensu), a aplicação das normas gerais a um caso
concreto (criação ou constituição da “norma concreta”), praticada
preponderantemente ou pelo Executivo, via atos administrativos, ou
pelo Judiciário, via atos judiciais.
De um ponto de vista material, todos os atos que aparecem nesta
estrutura escalonada como ‘formuladores de direito’ são
condicionantes, os que aparecem como ‘execução do direito’ são
condicionados. No ápice da pirâmide hierárquica, têm-se atos de pura
competência (só se manifesta o aspecto formulador); na base, atos de
pura execução, ou obrigação. Vista a estrutura de cima para baixo, os
atos intermediários apresentam caráter de formuladores (leis, decretos,
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22
sentenças judiciais); ao contrário, de baixo para cima, tais atos
intermediários apresentam duplo caráter - formulação e execução.
No entanto não é tão simples a distinção material entre
Administração e Jurisdição, na medida em que qualquer tentativa de
definição esbarra em questões de fundo que não podem ser
desconhecidas. A primeira controvérsia concerne à consideração de
jurisdição como função estatal, reduzindo a primeira e mais
fundamental experiência jurídica a uma abstração que termina por
estreitar uma visão unitária do ordenamento jurídico. Conforme Satta,
mesmo que seja correto do ponto de vista histórico conceber a
jurisdição como poder do Estado (emanação de sua soberania ante
todas as jurisdições particulares), afirmar que a mesma, juntamente
com a Administração e a Legislação, são exaustivas de toda a
complexidade e poder do Estado é um grave erro ou, no mínimo, uma
visão parcial, pois parte de uma premissa moderna, qual seja, de que o
Estado é uma ‘pessoa’ ou um ‘ente’. Por isso, Satta assevera ser
Jurisdição a concreção da ordem jurídica ou afirmação da ordem
jurídica no caso concreto, de modo que este resta subjetivado no
mecanismo da Jurisdição: um sujeito que postula a eficácia do
ordenamento em relação a outro sujeito. A postulação pelo
ordenamento comporta uma fundamental conseqüência, que gera o que
se chama ‘processo’: postular o ordenamento significa postular o juízo,
e o juízo é essencialmente processo (processus iudicii), actus trium
personarum, em cujo desenvolvimento estão vinculadas as partes e o
juiz. Ação, jurisdição e processo são três faces de uma única realidade.
Walter Baethgen (...) tem uma posição semelhabte: “A justiça, ou defesa
privada – como considerada nos tempos primitivos – constituindo o
modo normal de execução dos direitos, é sem dúvida o ponto de partida
de uma lenta evolução que culmina na atual idéia de justiça monopólio
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23
do Estado político e juridicamente organizado”. Para ele, a resolução de
conflitos intersubjetivos – supondo-se seja esta a finalidade da
jurisdição – envolve a necessidade de visualizar-se o problema sob dois
aspectos: a) o plano abstrato, que é o plano da norma jurídica (atividade
legislativa ou de outras fontes), propondo uma solução de
comportamento futuro, e b) o plano da concreção da norma abstrata,
em que a sentença realiza a “norma do caso”, da mesma forma que
também o fazem o “negócio jurídico privado” e o “ato administrativo”.
A segunda observação a ser feita diz respeito a uma concepção
geral das funções estatais através dos processos pelos quais elas se
desenvolvem no tempo - processo legislativo, processo jurisdicional e
processo administrativo – de modo que este desempenha, em relação à
função, “o papel de forma externa, no sentido de sua manifestação
sensível”.30
A Administração se organiza burocraticamente e age de forma
vinculada, sujeita ao Princípio da Legalidade. Esta burocracia e sua
estrutura hierárquica garantem o respeito e a vinculação à vontade do
povo manifestada na legislação. Mais do que isso, da burocracia
depende a imparcialidade da Administração, já que ela é titular de
interesses coletivos que não podem ser bloqueados por pressão de
grupos ou de quaisquer outros interesses. De fato, a Administração
deve tratar todos de forma impessoal (corolário do princípio da
30 Ver: MERKL, Adolf. Teoría General del Derecho Administrativo. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1935, p. 228; KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 267 a 374. Tradução brasileira do original inglês General Theory of Law and State, por Luís Carlos Borges; SATTA, Salvatore. Enciclopedia del Diritto. Vol. XIX. Milão: Giuffrè, 1964, verbete “Giurisdizione (nozione generali)”; BAETHGEN, Walter. Teoria Geral do Processo: a Função Jurisdicional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1982, pp. 34/36 e XAVIER, Alberto. Do Procedimento Administrativo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p.27. Tratei dessa
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24
igualdade) e não se pode valer do aparato administrativo para obter
proveito pessoal ou de outrem. Para além disso, deve “proceder com
objetividade na escolha dos meios necessários para a satisfação do bem
comum”,31 ser imparcial quando pratica atos que afetam interesses
privados e ser neutra, no sentido de impedir que seus agentes
sobreponham as suas convicções aos interesses que são de todos.
Na medida em que a Administração se programa a si mesma,
acaba tendo que abandonar a neutralidade no trato com as normas e
assumir algumas das tarefas do legislador, devendo decidir, por conta
própria, problemas de fundamentação e aplicação de normas. Tais
questões já não podem mais ser decididas sob o ponto de vista da
eficácia e exigem uma abordagem racional: na moderna administração
de prestações, a solução dos problemas exige o “escalonamento dos
bens coletivos, a escolha entre fins concorrentes e a avaliação
normativa de casos particulares”,32 bem como discursos envolvendo a
fundamentação e a aplicação de normas. Assim, nos casos em que a
discussão in: A delimitação da Função Administrativa na ordem estatal. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2000. 31 ÁVILA, Ana Paula de Oliveira. O Principio da Impessoalidade na Administração Pública. Por uma Administração Imparcial. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Editora Renovar, 2004, p. 26. “Bem comum” é o que edifica a sociedade humana e o que lhe orienta no plano temporal e natural: é a busca da felicidade. Considerada a pessoa humana como centro da ordem política, o bem comum passa a significar as condições de vida social relativas ao seu desenvolvimento integral, isto é, a finalidade do Estado e o fundamento último do Direito. Distinto do bem individual e do bem público (bem de todos por estarem unidos), o bem comum “é um valor que os indivíduos podem perseguir somente em conjunto, na concórdia”. Assim, o bem comum representa a tentativa de realizar a integração social pelo consenso e não se deixa descrever como o somatório dos bens individuais: se é o bem da pessoa na comunidade, depende de vários outros bens que são partilhados. Na prática, isso significa que, sendo impossível definir empiricamente quem seria o “intérprete do bem comum”, os cidadãos entram em conflito e disputam diferentes interpretações do que venha a ser o bem comum (ou de qual seja a finalidade da sociedade humana. Com isso, há necessidade de um debate racional (deliberativo) no âmbito das comunidades políticas, a fim de determinar o seu conteúdo e a sua partilha. Para isso, ver, entre outros: MATTEUCCI, Nicola. In: Dicionário de Política.., cit., pp. 206/207, verbete: “Bem Comum”; BARZOTTO, Luís Fernando. A Democracia na Constituição. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, pp. 34/35.
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25
Administração decide guiada apenas por pontos de vista de eficiência, é
necessário buscar a legitimação, desenvolvendo-se através de formas de
comunicação e de procedimento. Com isso, torna-se importante adotar
processos análogos aos judiciais para a tomada de decisões, isto é,
“processos destinados à legitimação de decisões, eficazes ex ante, os
quais, julgados de acordo com seu conteúdo normativo, substituem
atos da legislação ou da jurisdição.”33
B. A Processualização da Administração: submissão a pautas
formais
“Processo” é administração em movimento, é a sua “forma”, ou a
expressão dinâmica da função,34 e a extensão das formas processuais à
função administrativa marcou justamente a passagem de uma
concepção subjetivística (“manifestação da vontade da Administração”)
para outra mais objetiva, de modo que, “pelo enfoque da função, entre a
norma que atribui o poder e o ato administrativo, coloca-se a função e
não a autoridade com sua vontade; o ato administrativo é visto,
portanto, como produto da função e não como manifestação pré-
constituída de um sujeito privilegiado”.35
Dado que a função administrativa também se exterioriza na
“relação de administração”, quando esta se desenvolve segundo um
esquema seqüencial em que há contraditório, ela pode ser qualificada
como “relação processual administrativa”. Se a relação jurídica é um
32 Cf. HABERMAS, Direito e Democracia.., cit., p. 184. 33 HABERMAS, idem, ibidem. 34 A expressão é de BENVENUTI, Feliciano. Funzione amministrativa, procedimento,
processo. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1952, pp. 188 e ss. Para o autor, entre o poder e o ato há um hiato que tem que ser preenchido pela noção dinâmica de função, cuja forma sensível é o procedimento: a função é um momento da concretização do poder em ato.
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26
‘conceito-quadro’ que permite explicar fenômenos que vão além do ato
administrativo como os de participação – dos particulares ou outras
autoridades públicas - no procedimento, uma vez que este “constitui
uma das modalidades de relação jurídica”, a noção do que seja
‘processo administrativo’ é assimilada à de relação jurídica, na medida
em que aquele é um instrumento de regulação dessas relações, “cujos
intervenientes são chamados a actuar para a defesa de suas posições
jurídicas substantivas.”36
Ademais, os direitos subjetivos dos indivíduos e dos grupos têm
uma dimensão procedimental cada vez mais importante na
Administração moderna (conformadora de infra-estruturas), pois estes
têm faculdades de intervenção e oportunidades de influência no
processo administrativo. Essa dimensão procedimental dos direitos
subjetivos, que fez nascer um verdadeiro status activus processualis,37
acabou por constituir-se em um “princípio estruturador da
Administração jurídico-constitutiva”, adquirindo diferentes
35 MEDAUAR,Odete. A processualidade no Direito Administrativo. São Paulo:
RT,1993,p. 60. 36 Cf. PEREIRA DA SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias. Em Busca do Acto
Administrativo Perdido. Coimbra: Almedina, 1996, p. 161. 37 Tentando conciliar a teoria do status de Jellineck às novas realidades constitucionais e ampliando o sentido democrático-procedimental na participação no processo, estendendo-os aos direitos a prestações sociais em geral, Haberle considera a configuração de um status activus processualis, segundo a qual os direitos fundamentais não podem ser vistos em uma perspectiva exclusivamente material, pois implicam uma dimensão procedimental. Habermas considera que essa formulação “sobrecarrega do direito processual, transformando-o no substituto de uma teoria da democracia” ser o mérito dessa formulação, embora admita que ela teve o mérito de chamar a atenção “para o nexo interno entre autonomia privada e pública”. Com isso, independentemente das críticas, tanto a teoria de Jellineck quanto à “correção” proposta por Haberle podem ser aceitas porque são bastante explicativas a respeito das relações dos cidadãos com o Estado. Para isso, ver: JELLINECK, Georg.Diritti Pubblici Subbiettivi. Milano: Società Editrice Libraria. 1912. Tradução italiana da 2ª. Edição alemã, por Gaetano Vitagliano, todo o tempo e especialmente, pp. 96 e ss; HESSE, cit., p. 230; ALEXY, Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução castelhana da 1ª. Edição de Theorie der Grundrechte Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997,pp. 263 a 266; HABERMAS, Direito e Democracia…, cit. p. 150 e PEREIRA DA SILVA, cit., p. 332.
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27
configurações segundo a legislação, a jurisprudência e a doutrina
administrativa, conforme suas especificidades próprias.
Transferindo o centro da atenção do ato administrativo em
sentido estrito (provvedimento) para o procedimento, a perspectiva,
antes jurisdicional – o procedimento explicava a formação da decisão
final da Administração, como um instrumento a serviço do ato – foi
deslocada para o procedimento, visto de uma forma autônoma. Isso é
assim porque, se a Administração, cada vez mais, “privatiza a sua
actividade, ou a contratualiza, o valor publicístico dessa actividade não
pode mais ser encontrado no seu regime substancial, mas deve ser
procurado para além dela e dos seus resultados, isto é, na sua
organização.”38
Dada a progressiva aproximação entre a Administração e o
cidadão, o procedimento deixa de ‘pertencer’ à Administração, para
tornar-se uma “espécie de “condomínio”, no qual particulares e
autoridades administrativas se tornam “cúmplices” da realização das
tarefas administrativas”.39 Assim, o procedimento acabou por alterar o
‘tipo burocrático’ de administração delineado por Weber, o qual surge
hoje profundamente transformado pela participação, implicando uma
“verdadeira e própria repartição do poder (“potestade”) administrativo
entre o titular burocrático formal e a pluralidade dos intervenientes”.40
Por procedimento não se entende somente uma seqüência
ordenada de atos em vista de uma medida, mas, sobretudo, um modo e
um método de ordenar os múltiplos interesses e objetivos públicos que
38NIGRO, Mario. Procedimento Amministrativo e Tutela Giurisdizionale contro la Pubblica Amministrazione (Il probleme di una Legge Generale sul Procedimento Amministrativo) in: Rivista di Diritto Processuale. Nº 2, aprile-giugno 1980, p. 274, . 39 PEREIRA DA SILVA, cit., p. 304.
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são relevantes para diferentes centros de poder. Com isto, o centro de
gravidade do direito administrativo se desloca do ato administrativo e
sua concepção clássica de resultado conclusivo da atividade de
preparação e de elaboração da decisão para o caminho – o iter – mesmo
de formação da decisão. 41
A extensão das formas processuais à atuação da Administração
aconteceu em um quadro teórico que procurou explicar o seu novo
funcionamento. Em que pese a noção de ato administrativo ainda
ocupar um lugar central na formação do direito administrativo de cada
país, o fato é que as insuficiências e limitações da doutrina clássica
fizeram com que essa noção não pudesse mais ser o centro de gravidade
da Administração, pois domínios inteiros estão subtraídos da atividade
administrativa autoritária e unilateral, de modo que o ato
40 NIGRO, cit., idem. 41 Consoante Giannini, na Itália, a questão de saber se o ato administrativo devia ser concebido ao modo de uma sentença ou negócio jurídico ficou superada pelo estudo do procedimento administrativo, principalmente pela obra de um grupo mais recente de juristas, “que transferiram o centro de sua atenção do ato em sentido estrito ao procedimento administrativo”. De acordo com a corrente doutrinária italiana mais significativa (Cassesse e Nigro), a nova perspectiva acerca do procedimento apresenta duas vantagens em relação à tradicional doutrina do ato administrativo como centro de gravidade da atuação administrativa, a saber: a) a uniformização do tratamento dogmático da atividade administrativa porque o procedimento constitui um fenômeno comum a todos os domínios da Administração e faz a ponte entre a atuação de gestão pública e gestão privada; b) permite compreender a integralidade da ação administrativa e seu relacionamento com os privados, “ao longo do tempo”. A perspectiva é, então, como afirma Nigro, de “técnica de diluição do poder e método de coordenação de organizações”. A teoria austríaca e a alemã diferem um pouco da teoria italiana no sentido de que, para os germânicos, o procedimento é condicionante da decisão final (teoria da decisão). Os italianos integram a decisão no procedimento e, por isso, enxergam no procedimento “o novo conceito central da dogmática administrativista”, isto é, a nova realidade reconduz tanto “a actuação das autoridades administrativas como dos particulares a esquemas procedimentais, e preconizando a “objectivização” do Direito Administrativo, dado que todos esses sujeitos se encontram a realizar em conjunto a função administrativa”. Já a doutrina germânica considera a ‘relação jurídica’ como o novo conceito central da dogmática administrativista, e, relativamente ao procedimento, “caminha no sentido da radical “subjectivização” deste, procedendo ao equilíbrio das posições relativas dos particulares e das autoridades administrativas.” Ver: GIANNINI, Massimo Severo. Enciclopedia del
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administrativo foi absorvido por formas de atividade cada vez mais
complexas e articuladas. A resposta a este problema foi dada pela
doutrina italiana, através da revalorização do procedimento, que supera
o clássico dilema de saber se o ato administrativo deveria ser concebido
à maneira de uma sentença ou negócio jurídico, isto é, uma das ‘formas
de comunicação entre o poder público e os particulares’, ao lado da
sentença e da lei. A doutrina italiana seguiu, neste passo, o caminho
traçado pelo positivismo jurídico da Escola de Viena, cujos expoentes
foram Kelsen e Merkl.
Com efeito, a aproximação da função administrativa com a
função jurisdicional enquanto funções executivas “lançou os
fundamentos teóricos da idéia de alternatividade do procedimento
administrativo relativamente ao processo judicial.”42
Até a década de 20 do séc. XX, entre administrativistas, e a
década de 40, entre processualistas, a idéia de ‘processo’ vinculava-se
exclusivamente à função jurisdicional do Estado 43 e, entre os
Diritto.Vol. IV. Milão: Giuffrè, 1988, verbete “Atto Amministrativo”, p.162 e PEREIRA DA SILVA, cit., pp. 302 e ss. 42 Cf. PEREIRA DA SILVA, cit, p. 320. Odete Medauar aponta que, na doutrina estrangeira, é atribuído a Merkl o pioneirismo no tratamento da processualidade no direito administrativo, através da obra publicada em 1927; outro momento doutrinário expressivo foi com a obra de Sandulli, editada pela primeira vez em 1940. Também é de 1940 a obra do espanhol Vilar y Romero. Em 1952, Feliciano Benvenutti, vincula a processualidade à função, como sua manifestação sensível. Em 1968, surge na França o livro de Guy Isaac, em que ele defende a visão global do fenômeno processual jurídico, admitindo a processualidade administrativa. Alberto Xavier, em 1976, na esteira de Benvenuti, publica, no Brasil, a obra Do Procedimento Administrativo, em que advoga a noção ampla de processo como expressão de uma vontade funcional. Na doutrina italiana, a obra de Mario Nigro, desde 1953, dedicou-se ao procedimento administrativo e, em suas obras posteriores, principalmente nos anos 80, o tema foi acentuado e aprimorado. Gergio Berti, em 1986, realizou estudo sobre o processo, “vinculando a função e ressaltando que processo não é necessariamente ligado à jurisdição, no sentido de que a atividade jurisdicional não tem a exclusividade do processo”. In: A Processualidade.,.cit., pp. 18 e ss 43 A partir dos anos 50 e 60, aumentaram os estudos a respeito do tema (processualidade dos poderes estatais), até se chegar, nos anos 70 e 80, à idéia, compartilhada por administrativistas e processualistas, de que o processo é um
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administrativistas, a fim de evitar a confusão entre o modo de atuar da
Administração e o modo de atuação do Judiciário, reservou-se para o
âmbito administrativo o vocábulo ‘procedimento’. Tais posturas podem
ser justificadas pela precedência histórica e pela força da construção
processual ligada à Jurisdição, pela idéia, presente durante longo
tempo, de que a administração é atividade livre, incompatível com
atuações cujo parâmetro seja o ‘processo’, bem como pela preocupação
com o termo final da decisão - o ato administrativo - “sem que a atenção
se voltasse para os momentos que precedem o resultado final. Ligado a
este aspecto, está o zelo doutrinário e jurisprudencial com a garantia a
posteriori dos direitos dos administrados, representada pelo controle
jurisdicional”.44 Odete Medauar prefere denominar ‘processo’ ao
procedimento administrativo, explicando que o receio de confusão com
o processo jurisdicional deixa de ter razão de ser quando se adota a
idéia de ‘processualidade ampla’, isto é, “a processualidade associada ao
exercício de qualquer poder estatal”.45
O processo tende a ser um instrumento para a realização da
atividade administrativa, pois acaba definindo a própria forma desta, a
teor do que ocorre com a função judicial através do processo ou com a
função legislativa, por meio do processo legislativo. Daí decorrem, duas
conseqüências: a primeira, de o procedimento jurisdicizar a atuação
administrativa, “submetendo-a a regra ou pautas formais”, e a
segunda, de o procedimento permitir “aos cidadãos conhecer,
anteriormente, o desenvolvimento da atuação administrativa,
“conjunto de princípios, institutos e normas estruturados para o exercício do poder segundo determinados objetivos”, para a qual muito contribuiu a obra de Niklas Luhmann, Legitimação pelo Procedimento, que dá um tratamento unitário, “sob o enfoque da sociologia do direito, aos procedimentos juridicamente regulados, com base em formas de procedimento que adquiriram importância especial, inclusive os processos de decisão administrativa”. Cf.MEDAUAR, A processualidade..., p. 12. 44 MEDAUAR, A processualidade...cit, , p. 14. 45 MEDAUAR, A processualidade.., p. 41.
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garantindo assim a defesa de seus direitos e interesses frente a
ela”.46
Ante essas considerações, pode-se relacionar a processualização
da Administração com um movimento em direção à sua legitimação e
moralização 47 e, com isso, pensar como viável a declaração de
prescrição ex officio pela Administração Fazendária.
C - Pressupostos da declaração de prescrição ex officio na via
administrativa
Em 1998, por ocasião da discussão do Parecer Coletivo nº
188/98, o então Procurador-Geral do Município já alertara para os
aspectos de moralidade e economicidade (eficiência) de não executar-se
dívida ativa prescrita, “com retardamento das demais execuções e
conseqüente prejuízo aos cofres públicos.” 48 Igualmente por razões de
moralidade e eficiência, em fevereiro de 2004, a PGM mudou o
entendimento no que diz respeito ao início da contagem do prazo
prescricional, adequando a prática da Administração Fazendária à
orientação dominante do STJ, no sentido de que o dies a quo da
contagem do mesmo deva ser a data da constituição definitiva do
crédito tributário, e não a data em que este se torna exigível.49 Com
isso, mediante pedidos formulados judicialmente pela PGM, inúmeras
execuções fiscais irremediavelmente atingidas pela prescrição do crédito
46 BARACHO, Teoria Geral...cit., p. 53. 47 CF. GIACOMUZZI, José Guilherme. A Moralidade Administrativa e a Boa- fé da Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 250 e ss. No texto, o autor afirma que “toda a principiologia da LPA vai ao encontro do que se pode chamar de “moralização” (...) da Administração”, e que vai na esteira do entendimento da doutrina italiana que só uma lei geral sobre procedimento administrativo é capaz de moralizar a Administração e torná-la mais eficiente e imparcial. 48 Ata de Reunião do Conselho Superior da PGM, de 26 de maio de 1998.
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tributário foram extintas. A Secretaria Municipal da Fazenda, a partir
da nova orientação do órgão consultivo, passou a observar idêntico
critério em seus procedimentos administrativos de inscrição e cobrança
da Dívida Ativa. De lá para cá, ainda que as execuções de dívida
prescrita tenham diminuído consideravelmente, mantém-se um alto
custo com a execução de dívida prescrita. Atualmente, de um universo
de 123 mil execuções fiscais, estima-se que mais de 45 mil ações
versam sobre crédito tributário parcial ou integralmente prescrito.
Pelo princípio da proteção à confiança, que compõe a moralidade
administrativa,50 não pode a Administração Pública modificar, em
casos concretos, orientações firmadas para fins de sancionar, agravar a
situação dos administrados ou denegar-lhes pretensões. Isto é assim
porque os valores da lealdade, da honestidade e da moralidade aplicam-
se necessariamente às relações entre a Administração e os
administrados.
Se a Administração não pode exercer seu poder, de forma a
atender a confiança daquele com quem se relaciona, tampouco o
administrado pode atuar em observância às exigências éticas. A
aplicação do princípio da proteção à confiança, sua absorção por
determinada realidade jurídica, permite ao administrado recobrar a
certeza (confiança de que não lhe será imposta uma prestação que só
superando dificuldades extraordinárias poderá ser cumprida) de que a
Administração não adotará uma conduta confusa e equívoca que mais
49 Parecer nº 1091/2004, da lavra do Procurador Cesar Emílio Sulzbach, juntado ao presente expediente. 50 De acordo com José Guilherme Giacomuzzi, o princípio da moralidade abrange três dimensões, a saber: a) a “boa-fé”, que no direito público se traduz pela tutela da confiança; b)a probidade administrativa (deveres de honestidade e lealdade) e c) a razoabilidade (expectativa de conduta civilizada, do homem comum, da parte do agente público).
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tarde lhe permita tergiversar sobre suas obrigações nem exigir do
administrado mais do que seja estritamente necessário para a
realização dos fins públicos perseguidos.51 Daí o referido princípio visar
à conservação de estados obtidos e se dirigir contra modificações
jurídicas posteriores.
Assim, pode-se afirmar, em relação à aplicação do princípio, que a
Administração Pública e o administrado hão de adotar um
comportamento leal em todas as fases de constituição das relações até o
aperfeiçoamento do ato e das possíveis conformações ao que haja
nascido defeituoso. A lealdade no comportamento das partes na fase
prévia de constituição das relações obriga a uma conduta clara,
inequívoca, veraz, pelo que se rechaça qualquer pretensão que se
baseie em uma conduta confusa, equívoca e maliciosa. Através do
princípio da proteção à confiança, presume-se iuris tantum que os
órgãos administrativos exercerão suas potestades de acordo com o
Direito, presunção que não pode ser destruída por simples conjecturas.
Resulta disso que a moralidade - na modalidade proteção à
confiança - abrange deveres e formula a exigência de comportamentos
justificados por parte da Administração, com várias conseqüências que
vão, desde a proibição ao venire contra factum proprium e a proibição à
inação inexplicável e desarrazoada, vinculada ao exercício de direito,
que gera legítima confiança da outra parte envolvida, até o dever de
sinceridade objetiva e dever de informação, isto é de não omitir
qualquer dado que seja relevante na descrição da questão controversa
e/ou que possa auxiliar na sua resolução.52 Por demais evidente que,
51 Cf. GONZALES PEREZ, Jesus. El principio general de la buena fe en el derecho
administrativo. Civitas, Madrid, 1983, passim. 52 Cf. GIACOMUZZI, A Moralidade Administrativa..., cit., p. 275, aceitando a tese de
Egon Bockman Moreira a respeito do telos do princípio da moralidade no art. 37 da
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se a prescrição, em matéria tributária, atinge o direito, fazendo-o
desaparecer, a Administração Pública, não pode, em nome do princípio
da moralidade (modalidade proteção à confiança) ajuizar dívida
prescrita.
Ademais de um juízo de moralidade, há que se fazer um juízo de
eficiência para fundamentar a possibilidade de a Administração
Fazendária declarar, ex officio, a prescrição de dívida tributária, já que
esta tem o efeito da decadência (objeção substancial) e prescinde de
provocação.
A eficiência é realização eficaz de fins pré-dados, modo de
realização ótima dos fins (noção formal que se traduz em uma relação
meios-fins) e exigência de celeridade. A Constituição de 1998, antes da
Emenda 19/98, já consagrava a exigência de eficiência para a
Administração Pública, como no caso do art. 74, inciso II e § 7º, que
determina aos Poderes Públicos a obrigatoriedade de manter, de forma
integrada, um sistema de controle interno com a finalidade de
“comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e
eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial de seus
órgãos” e a necessidade de lei para disciplinar “a organização e
funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de
maneira a garantir a eficiência de suas atividades”. A Emenda
Constitucional nº 42/03 introduziu, a seu turno, novas disposições de
conteúdo para a exigência de eficiência da Administração Tributária, ao
determinar que as administrações tributárias da União, Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, “atuarão de forma integrada,
inclusive com o compartilhamento de cadastros e informações fiscais,
CF, in Processo Administrativo. Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/1999. 2ª Edição, revista e aumentada. São Paulo: Malheiros, 2003, PP. 108/109.
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na forma de lei ou de convênio” (inciso XXII do art. 37), além de dispor
que compete privativamente ao Senado Federal a avaliação periódica da
funcionalidade do “Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e
componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União,
dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios” (art. 52, inciso XV).
Historicamente essa disposição pode remontar à Constituição
Italiana, de 1948, que, de forma pioneira, introduziu em seu texto a
garantia do bom andamento da Administração, “com vistas à efetiva
realização do conceito de buona amministrazione”, que, aperfeiçoado
pela Constituição Espanhola e inscrito na Constituição Brasileira em
1998, ganhou o nome de eficiência. 53
Quando a Constituição da República fala em “Princípio da
Eficiência”, segundo o STJ, refere-se ao fato de que “a atividade
administrativa deva orientar-se para alcançar resultado de interesse
público” (STJ – 6a. T – RMS nº 5.590/95). A doutrina brasileira, ao
discutir o conteúdo do referido princípio, consubstanciou duas
posições. A primeira é a de que a eficiência é nada mais do que manter
de forma integrada sistema de controle interno com a finalidade de
comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e
eficiência da gestão orçamentária, financeira e patrimonial dos órgãos
da administração em geral (aí incluídos os do Poder Judiciário, do
Legislativo e das entidades públicas). Significa dizer que nem precisaria
estar explícito na Constituição porque a eficiência não é um princípio,
mas uma finalidade da Administração. Neste sentido, todos os
princípios que regem a atividade da Administração devem ser
conjugados com o da boa administração (eficiência) que exige o exercício
53 Cf. MOREIRA NETO, Diogo F. , In: Fundamentos do Direito do Estado. Estudos em homenagem ao Prof. Almiro do Couto e Silva., cit., pp. 101/102.
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da função administrativa de forma eficiente e congruente. Daí que,
segundo esta corrente, o princípio da eficiência só veio a explicitar o que
sempre foi finalidade da Administração: garantir qualidade na atividade
pública e na prestação dos serviços.
A segunda corrente reconhece a eficiência como “princípio”
autônomo, cujo conteúdo é o de que o administrador deve laborar para
produzir o efeito desejado, isto é, aquele que dá bom resultado,
exercendo sua atividade sob o manto da igualdade, velando pela
objetividade e imparcialidade. Se é assim, o referido princípio impõe à
Administração a persecução do bem comum, por meio do exercício de
suas competências de forma imparcial, neutra, transparente,
participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade,
primando pela adoção de critérios legais e morais necessários para a
melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar
desperdícios e garantir a maior rentabilidade social. Assim, o princípio
da eficiência dirige-se para a razão maior e fim do Estado, a prestação
dos serviços sociais essenciais à população, visando a adoção de todos
os meios legais e morais possíveis para a satisfação do bem comum. A
conseqüência disso é que a eficiência “se soma aos demais princípios
impostos à Administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles,
especialmente o da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança e
ao próprio Estado de Direito.”54
A posição doutrinária mais forte é a segunda, que entende ser a
eficiência um princípio autônomo, que se estrutura como um dever da
Administração, qual seja, aquele dever que estrutura “o modo como a
54 DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. 10a. ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 73/74.
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Administração deve atingir seus fins e qual deve ser a intensidade da
relação entre as medidas que ela adota e os fins que ela persegue.”55
Mas isso, por si só, não diz muito a respeito do conteúdo da
eficiência, porque nem sempre, por exemplo, cabe escolher, dentre as
várias alternativas possíveis, a menos dispendiosa: o que a eficiência
determina é que opção menos custosa deva ser adotada somente se as
vantagens proporcionadas por outras opções não superarem o benefício
financeiro. Dito de outro modo, a Administração tem o dever de escolher
o meio mais econômico somente se restarem inalteradas a restrição dos
direitos dos administrados e o grau de realização dos fins
administrativos, mas este é o primeiro aspecto da eficiência. O segundo,
diz respeito ao dever de promover o fim de modo satisfatório: mais do
que adequação, a eficiência da Administração diz respeito à promoção,
de forma satisfatória, dos fins em termos quantitativos, qualitativos e
probabilísticos.56 Advém daí que escolher um meio para promover um
fim, mas promover esse fim “de modo insignificante, com muitos efeitos
negativos paralelos ou com pouca certeza, é violar o dever de eficiência
administrativa”, diz Humberto Ávila57 e, por isso, se pode compreender
por eficiência administrativa pela exigência de promover
satisfatoriamente os fins, considerando “promoção satisfatória” aquela
minimamente intensa e certa do fim.
Muito bem, de toda esta discussão conclui-se que a
Administração Fazendária, poderá, em nome da eficiência
55ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004., p. 428. 56 “Em termos quantitativos, um meio pode promover menos, igualmente ou mais o fim do que outro meio. Em termos qualitativos, um meio pode promover pior, igualmente ou melhor o fim que outro meio. Em termos probabilísticos, um meio pode promover com menos, igual ou mais certeza o fim do que outro meio”, assevera Humberto Ávila, in: Sistema, cit., p. 428. 57 In: Sistema, cit., p. 430.
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administrativa, declarar ex officio a prescrição de crédito tributário, por
várias razões. A primeira delas diz respeito ao enorme custo que o
ajuizamento e manutenção de executivos fiscais prescritos implica, a
começar pelo tempo gasto para preparar tais execuções, passando pela
intensa mobilização de recursos humanos, para se chegar a um
resultado zero. Daí, declarar-se administrativamente que ocorreu a
prescrição de crédito tributário significa reduzir o custo, além de liberar
a Administração Fazendária para atuar com mais eficiência para cobrar
a dívida não prescrita. A segunda razão diz respeito à inalterabilidade
das posições jurídicas dos administrados com a escolha desta
alternativa, porque, se a prescrição produz os mesmos efeitos da
decadência em matéria tributária (atinge o direito), o direito a ver a
mesma reconhecida já integra o seu patrimônio, não sendo necessária a
sua provocação na via administrativa. Finalmente, no que diz respeito
ao terceiro juízo de eficiência, a declaração ex officio da prescrição na
via administrativa, otimiza o fim da Administração Fazendária, qual
seja, arrecadar a maior quantidade de créditos tributários no menor
tempo possível.
Assim sendo, em termos quantitativos, a declaração ex officio de
ocorrência de prescrição promove mais o fim da Administração
Fazendária do que a declaração provocada, porque, ao reduzir, de
plano, o universo de ações ajuizadas, gasta menos tempo e dinheiro
para cobrar o crédito “bom” (não prescrito). Em termos qualitativos,
essa alternativa promove melhor a finalidade da arrecadação, porque, ao
prescindir da provocação administrativa do interessado, aquela poderá
mobilizar os seus esforços para resolver uma grande quantidade de
situações pendentes, com os recursos materiais e humanos de que
dispõe e efetuar melhor o controle de legalidade destas decisões. Em
termos probabilísticos, o meio escolhido - declaração administrativa ex
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officio de prescrição de crédito tributário - promove com igual certeza o
fim (incrementar a arrecadação e garantir o respeito às posições
subjetivas dos contribuintes), uma vez que, a partir de tais declarações,
a Administração Fiscal se libera do custo de manter a cobrança de
crédito prescrito e dirige os seus esforços para cobrar os créditos
íntegros. O respeito aos direitos dos contribuintes se dá com a mesma
certeza que as declarações provocadas, porque tais declarações também
deverão constar, necessariamente, de processos administrativos
submetidos ao controle do Tribunal Administrativo de Recursos
Tributários (TART) .
Diante desse quadro, a aceitar-se a tese aqui exposta, cabe fazer
uma apreciação do procedimento administrativo necessário para a
operacionalidade das declarações administrativas de prescrição. São
várias as hipóteses em que, a meu ver, isso pode ocorrer. A primeira
hipótese poderá ocorrer quando a Secretaria Municipal da Fazenda, por
ocasião da preparação dos documentos que instruirão a execução
fiscal, a ser ajuizada pela PGM, verificar a não ocorrência de causa
suspensiva ou interruptiva do curso do prazo prescricional.
Constatada tal situação, o próprio órgão responsável declarará prescrito
o crédito, em expediente aberto com este fim, fundamentando-se neste
Parecer, sujeitando tal decisão à apreciação do Secretário Municipal da
Fazenda.
A segunda hipótese é aquela em é constatada, pela SMF ou
pela PGM, a ilegitimidade do sujeito passivo da execução. Nesta
situação, deverá ser adotado o procedimento descrito na Informação nº
08/2006, da lavra do Procurador Gamaliel Valdovino Borges, nos
seguintes termos: a SMF emitirá nova CDA, substituindo o sujeito
passivo, para fins de ajuizamento de nova execução fiscal,
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contemplando somente os lançamentos hígidos, isto é, aqueles não
alcançados pela prescrição, ao mesmo tempo em que dará baixa àquele
executivo .
O terceiro caso é aquele em que há a declaração judicial de
nulidade da CDA, por vícios formais. Nesta situação, deverá haver o
mesmo juízo descrito na primeira hipótese, qual seja: a SMF verifica se
o crédito permanece ou não hígido. No caso do crédito em questão já ter
sido fulminado pela prescrição, adotar-se-ão os procedimentos para
cancelamento administrativo do crédito.
No caso de ação executiva em curso, não havendo arguição de
prescrição pela parte e o juiz, atendendo ao disposto na lei processual,
determinar a manifestação da Fazenda Pública, poderá o procurador
responsável concordar com a extinção do processo, desde que verificada
a ocorrência de prescrição e a impossibilidade de ajuizar-se nova
execução. Ressalte-se que esta hipótese não constitui qualquer
reconhecimento administrativo de prescrição ex officio, e sim anuência
da Administração com a extinção do processo, uma vez que a
ocorrência da prescrição do crédito será declarada pelo Judiciário.
Quando a declaração administrativa de prescrição implicar o
cancelamento de lançamento, cujo valor esteja inscrito em Dívida Ativa,
o órgão superior - a Secretaria Municipal da Fazenda -, deverá recorrer,
de ofício, ao TART, nos termos do art. 67, da LCM 07/73, cuja redação
foi alterada pela LCM 482/2002. Nestas condições, todas as
manifestações dos órgãos internos da Administração ficam sujeitas à
discussão em um procedimento formal e ao controle interno de
legalidade.
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Em conclusão, opino pela possibilidade de reconhecimento ex
officio de prescrição na via administrativa, nas hipóteses acima
elencadas e desde que observados os procedimentos administrativos
cabíveis.
Na medida em que este posicionamento contraria, em parte, o
entendimento consubstanciado no Parecer Coletivo nº 188/98, cujo
relator foi o colega, Procurador Gamaliel Valdovino Borges, a tese aqui
veiculada deve ser submetida à apreciação do Conselho Superior da
Procuradoria Geral do Município, para que se modifique (ou não) aquele
entendimento.
É como opino, s.m.j.
À Consideração Superior.
Porto Alegre, 06 de setembro de 2006.
Maren Guimarães Taborda Procuradora do Município de Porto Alegre
OAB/RS 19.670 / Matr. 41577006 ASSEALI – PGM