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  • 93fragmentum. Santa Maria: Editora Programa de Ps-Graduao em Letras, n. 45,Abr./Jun. 2015. ISSN 2179-2194 (online); 1519-9894 (impresso).

    PARA LER A TEORIA: O EFEITO DE DESCONSTRUO E O FUTURO DA CRTICA

    READING THEORY: THE EFFECT OF DECONSTRUCTION AND THE FUTURE OF CRITICISM

    Nabil ArajoUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    Resumo: Este texto enfoca a abordagem da Teoria como gnero heterogneo na obra de Jonathan Culler, a fim de contrapor ao gesto estabilizador a em jogo o efeito de desconstruo (Derrida) inerente a uma historiografia que, revertendo o discurso normalizado das teorias e metodologias do estudo literrio, identifica-se com a reconstituio no do passado da crtica, mas de sua possibilidade de futuro.Palavras-chave: Teoria; crtica literria; efeito de desconstruo; monstruosidade; historiografia da crtica.

    Abstract: This text focuses on Jonathan Cullers approach to Theory as heterogeneous genre, in order to contrast the stabilizing gesture at stake therein with the effect of deconstruction (Derrida) inherent to a historiography that, reversing the normalized discourse of the theories and methodologies of literary study, identifies itself with the reconstitution not of the past of criticism, but of its future possibility.Keywords: Theory; literary criticism; effect of deconstruction; monstrosity; historiography of criticism.

    A novidade americana: theory como gnero heterogneo

    Cerca de uma dcada atrs, Fabio Akcelrud Duro iniciava suas Breves observaes sobre a Teoria, suas contradies e o Brasil com uma constatao taxativa:

    apenas devido nossa profunda ignorncia em relao aos Estados Unidos que um fenmeno dos mais instigantes nas cincias humanas nos ltimos quarenta anos pde nos passar despercebido: o surgimento e consolidao daquilo que hoje j se convencionou chamar simplesmente de Teoria (DURO, 2004, p. 81).

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    Sete anos (e diversos artigos sobre o assunto) depois, a j longa e prolfica cruzada do autor para dirimir o referido lapso ganharia sua sntese definitiva Teoria (literria) americana: uma introduo crtica (2011) , livro ento destinado a preencher a lacuna editorial em torno da Teoria entre ns.

    De volta, contudo, ao pioneiro artigo de 2004, salta aos olhos que, nele, a obra em que mais ostensivamente se apoia Duro no sentido de caracterizar o dito fenmeno ignorado pelos brasileiros Literary theory: a very short introduction (1997), de Jonathan Culler citada justamente a partir de sua edio brasileira Teoria literria: uma introduo (1999) , surgida dois anos depois da publicao original, e, desde ento, um dos ttulos a que mais frequentemente se referem nefitos e especialistas, no pas, quando se trata de discutir a dimenso e o papel da teoria nos estudos literrios e culturais. Acrescente-se a isso o fato de j contarmos, quela altura, com uma edio corrente de On deconstruction (1982) Sobre a desconstruo (1997) , outro importante e influente livro de Culler acerca do mesmo fenmeno abordado por Duro, como fica claro por seu subttulo Theory and criticism after Structuralism [Teoria e crtica depois do estruturalismo] , e se faz preciso admitir que a ignorncia de que fala ento o autor no era assim to profunda, nem to grande e vergonhoso o desconhecimento, por parte do pblico acadmico brasileiro, em torno daquilo que hoje j se convencionou chamar simplesmente de Teoria.

    Parece-me, pois, que nosso problema maior a esse respeito menos o do acesso informao do que o do modo privilegiado pelo qual esse acesso se d entre ns: e aqui seria preciso, antes mais nada, evidenciar o deletrio efeito acadmico-pedaggico da abordagem do fenmeno da Teoria empreendida nos clebres manuais de Culler at para que se possa aquilatar o quanto dessa abordagem (e de suas consequncias) permanece onde quer que, em ingls ou em portugus, nos EUA ou no Brasil, se insista em caracterizar e apresentar a Teoria como fenmeno.

    ***O pargrafo de abertura do hoje clssico On deconstruction descreve

    a cena crtica daquele momento, primrdios dos anos 1980, nos seguintes termos:

    Se os observadores e beligerantes dos recentes debates crticos pudessem concordar em alguma coisa, seria em que a teoria crtica contempornea confundidora e confusa [confusing and confused]. Houve um tempo em que poderia ter sido possvel pensar a crtica como uma atividade nica

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    praticada com diferentes nfases. A acrimnia do debate recente sugere o contrrio: o campo da crtica contenciosamente constitudo por atividades aparentemente incompatveis. At mesmo tentar uma lista estruturalismo, reader-response criticism, desconstruo, crtica marxista, pluralismo, crtica feminista, semitica, crtica psicanaltica, hermenutica, crtica antittica, Rezeptionssthetik... flertar com um vislumbre transtornador do infinito que Kant chama o sublime matemtico (CULLER, 1982, p. 17)1.

    H a um advrbio para o qual preciso chamar a ateno: as atividades que constituem o campo da crtica so, segundo Culler, apparently, aparentemente incompatveis. Ainda no mesmo pargrafo, Culler afirma: A contemplao de um caos que ameaa derrotar a capacidade de sensatez pode produzir, como Kant sugere, uma certa exultao, mas a maioria dos leitores fica apenas perplexa ou frustrada, e no tomada de admirao (CULLER, 1982, p. 17). E ento: Ainda que no prometa [causar] admirao, este livro procura enfrentar a perplexidade; tentar uma explicao, especialmente se ela pode tambm beneficiar os muitos estudantes e professores de literatura que no tm nem o tempo nem a inclinao para acompanhar o debate terico e que, sem guias confiveis, encontram-se numa moderna feira de so Bartolomeu (CULLER, 1982, p. 17). Mais frente: Este livro tenta dissipar a confuso, fornecer sentido e fins, discutindo o que est em jogo nos debates crticos de hoje e analisando os projetos mais interessantes e valiosos da teoria recente (CULLER, 1982, p. 18).

    Culler parte, portanto, da percepo de uma confuso no campo da crtica contempornea que deixa as pessoas perplexas. Ele pretende eliminar a confuso e a perplexidade, fornecendo sentido e fins para o leitor; e ele o far, basicamente, tentando mostrar que aquilo que gera a confuso e a perplexidade a incompatibilidade das atividades reunidas no campo da crtica no passa, na verdade, de um fenmeno aparente: tais atividades so apenas aparentemente e no realmente incompatveis.

    No prefcio ao livro, Culler (1982, p. 8) explica, com efeito, que, de acordo com uma nova compreenso do assunto, os trabalhos de teoria literria esto estreita e vitalmente relacionados a outros escritos dentro de um domnio at agora no nomeado, mas frequentemente chamado de theory para abreviar. Mais do que um domnio disciplinar, o termo theory denominaria, na verdade, segundo Culler (1982, p. 8), um novo gnero de escrita. Esse novo gnero , com certeza, heterogneo, acrescenta Culler (1982, p. 8), e explica:1 Esta e as demais tradues de trechos em lngua estrangeira citados neste artigo so de minha responsabilidade.

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    Theory um gnero por causa do modo como seus trabalhos funcionam. [...] esses trabalhos extrapolam o quadro disciplinar dentro do qual eles normalmente seriam avaliados e que ajudaria a identificar suas slidas contribuies ao conhecimento. [...] o que distingue os membros desse gnero sua habilidade para funcionar no como demonstraes dentro dos parmetros de uma disciplina, mas como redescries que desafiam as fronteiras disciplinares (CULLER, 1982, p. 9, destaques do autor).

    Se a heterogeneidade radical da crtica contempornea se afigura como uma caracterstica intrnseca e definidora de um novo gnero discursivo, o qual, apesar, ou justamente por causa dessa caracterstica, se v imbudo de uma coeso interna capaz de distingui-lo de outros gneros, deveria ser possvel um panorama do desenvolvimento e da consolidao da theory no campo dos estudos literrios, algo que o prprio Culler, alis, no tarda a oferecer. Em Criticism and institutions: the American university [Crtica e instituies: a universidade americana] (1987), Culler volta questo da aparente incongruncia no corao da crtica contempornea. A teoria crtica, ele ento pondera, encoraja-nos a pensar na crtica como escolas beligerantes, ou, no vocabulrio mais recente, comunidades interpretativas, cada uma com seus prprios axiomas de crtica (CULLER, 1987, p. 85). Contra a ideia de uma crtica normal monoparadigmtica, isto , regida por este ou aquele paradigma crtico em detrimento dos demais, Culler sustenta, por sua vez, que as prticas institucionais de ensino e escrita sobre literatura criam uma crtica normal mutvel, ecltica, que ao mesmo tempo fomenta a inovao e a recupera (CULLER, 1987, p. 86). Um tal estado de coisas se deveria mesmo s especificidades institucionais dos estudos literrios nos Estados Unidos, em comparao, por exemplo, com a Gr-Bretanha; tendo esboado as diferenas bsicas entre esses dois contextos acadmicos, Culler oferece a seguinte sntese a respeito da situao americana:

    O principal desenvolvimento crtico dos ltimos 20 anos na Amrica foi o impacto de vrias perspectivas e discursos tericos: lingustica, psicanlise, feminismo, estruturalismo, desconstruo. Um corolrio disso foi a expanso do domnio dos estudos literrios para incluir muitos interesses previamente afastados de tais estudos. Na maioria das universidades americanas de hoje, um curso sobre Freud mais provvel de ser oferecido no departamento de Ingls ou de Francs do que no de Psicologia; Nietzsche, Sartre, Gadamer, Heidegger e Derrida so mais frequentemente discutidos por professores de literatura do que por professores de filosofia; Saussure negligenciado por linguistas e apreciado por estudantes e professores de literatura. Os escritos de autores como esses recaem num gnero miscelnico [miscellaneous genre], cuja designao mais conveniente simplesmente theory, a qual, hoje, tem vindo referir-se a trabalhos que logram desafiar e reorientar o pensamento em

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    campos fora daqueles aos quais eles ostensivamente pertencem, porque suas anlises da linguagem, ou da mente, ou da histria, ou da cultura oferecem originais e persuasivas abordagens do significado (CULLER, 1987, p. 87).

    Uma dcada mais tarde, o mpeto sintetizador e didtico de Culler atingir o pice com seu pequeno (e at hoje muito influente) manual Literary theory: a very short introduction [Teoria literria: uma introduo muito breve]. Muitas introdues teoria literria descrevem uma srie de escolas de crtica. A teoria tratada como uma srie de abordagens em competio, cada uma com suas posies e compromissos tericos, explica Culler (1997, p. vii) nas primeiras linhas do prefcio ao manual, afirmando, na sequncia, que esses movimentos tericos identificados em tais introdues tm, na verdade, muito em comum, e que isso que se tem em vista quando se fala em theory (CULLER, 1997, p. vii). Culler justifica, dessa forma, sua opo por discutir questes e asseres compartilhadas ao invs de fazer o levantamento de escolas tericas, ainda que venha a oferecer, no Apndice ao livro, que pode ser lido no comeo ou no fim ou consultado constantemente, o que chama de breves esboos de importantes escolas ou movimentos crticos (CULLER, 1997, p. vii). Eis a lista: formalismo russo, New Criticism, fenomenologia, estruturalismo, ps-estruturalismo, desconstruo, teoria feminista, psicanlise, marxismo, novo historicismo/materialismo cultural, teoria ps-colonial, discurso das minorias, queer theory.

    No parece razovel, contudo, projetar toda essa heterogeneidade de perspectivas num nico e mesmo gnero discursivo chamado theory, sob a alegao de que tais movimentos ou escolas compartilhariam entre si um desafio amplo ao senso comum e investigaes sobre como o sentido criado e como identidades humanas ganham forma (CULLER, 1997, p. vii).

    Ningum melhor do que Jacques Derrida, o grande mestre para Jonathan Culler, evidenciou o que est em jogo numa tal homogeneizao, justamente ao se pronunciar sobre as formas de manifestao da desconstruo no contexto da ascenso da theory nos Estados Unidos. Isso ele o fez de modo lapidar e definitivo numa conferncia de 1987, curiosamente intitulada Some statements and truisms about neo-logisms, newisms, postisms, parasitisms, and other small seismisms [Algumas declaraes e trusmos sobre neo-logismos, novismos, ps-ismos, parasitismos e outros pequenos cismismos], proferida, ironicamente, no colquio que marcou a fundao do Critical Theory Institute em Irvine (California), colquio que se chamou The states of theory [Os estados da theory].

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    O efeito de desconstruo e o campo de foras da crtica

    Comentando o j referido texto de Culler (1987) publicado naquele mesmo ano, Derrida observa que, nele, o autor corretamente sugere que a palavra theory a mais conveniente designao para o que acontece em alguns departamentos de literatura nos Estados Unidos no que se refere ao estudo de certos corpora, campos e autores, acrescentando, ento, por sua vez, que isso, na verdade, no acontece nem em outros departamentos desse pas nem nos departamentos de literatura de outros pases de algum modo estatisticamente notvel, o que o leva a considerar a palavra e o conceito de theory como um artefato puramente norte-americano (DERRIDA, 1994, p. 71). Mais frente, jogando com o ttulo do colquio de que ento participava, Derrida afirma pensar que o conceito de theory em jogo na expresso states of theory um conceito que poderia ganhar forma apenas in the States [nos EUA], que apenas tem um valor, um sentido e uma especificidade in the States e num momento especfico (DERRIDA, 1994, p. 81). A partir de ento, quilo que Culler chama simplesmente theory, Derrida se referir, com frequncia, como the States theory [a teoria dos Estados Unidos/a teoria americana], numa brilhante corruptela do ttulo do colquio.

    Derrida (1994) considera positiva a emergncia da States theory em sua irredutibilidade mesma de emergncia, isto , naquilo mesmo que no pode, no vai e no deve querer reivindicar o ttulo de uma cincia ou uma filosofia, justamente por implicar uma forma de questionamento e de escrita [...] que desestabiliza a axiomtica, a fundao e os esquemas organizadores da cincia e da filosofia elas prprias (DERRIDA, 1994, p. 83). desestabilizao a em foco Derrida julga por bem chamar um efeito de desconstruo [an effect of deconstruction]; com essa expresso, ele no se refere nem a textos especficos nem a autores especficos, e, sobretudo, no a essa formao que disciplina o processo e o efeito de desconstruo em uma teoria ou um mtodo crtico chamado desconstrucionismo ou desconstrucionismos (DERRIDA, 1994, p. 83).

    Com esse efeito de desconstruo, explica Derrida, ver-se-ia desorganizado no apenas a axiomtica dos discursos filosficos e cientficos como tais, do discurso epistemolgico, das vrias metodologias da crtica literria (New Criticism, formalismo, tematismo, historicismo clssico ou marxista), mas at a axiomtica de conhecimento simultaneamente em ao na States theory e a Derrida cita a listagem de Culler das perspectivas e discursos tericos que teriam impactado o desenvolvimento da crtica

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    contempornea: lingustica, psicanlise, feminismo, estruturalismo, explicando que o ltimo elemento da srie culleriana, desconstruo, introduz na mesma um elemento de perturbao, desordem ou irredutvel caos (DERRIDA, 1994, p. 84). Mas, se o efeito de desconstruo de que fala Derrida no se deixa reduzir nem a uma teoria ou mtodo crtico nem States theory na forma em que a descreve Culler, ele no consistiria, por outro lado, em opor-se reativamente teorizao, mas, ao contrrio, em regularmente desconstruir os pressupostos filosficos de teorias existentes ou das teorias implcitas nos discursos que denigrem a filosofia ou a teoria, tratando-se de exceder o terico ao invs de impedi-lo e de tomar posies contra a teoria [against theory]2 (DERRIDA, 1994, p. 87).

    Da adviria um resultado to paradoxal quanto previsvel, observa Derrida: a prpria coisa que excede ao mesmo tempo o terico, o temtico, o ttico, o filosfico e o cientfico provoca, como gestos de reapropriao e sutura, movimentos tericos, produes de teoremas (DERRIDA, 1994, p. 87). Gestos e movimentos, bem entendido, eminentemente instauradores ou instituidores, algo que constri e fortifica teorias, oferece temticas e teses, organiza mtodos, disciplinas, at escolas (DERRIDA, 1994, p. 88).

    Derrida destaca, nesse sentido, o chamado ps-estruturalismo, vulgo desconstrucionismo [poststructuralism, alias deconstructionism], que consiste na formalizao de certas necessidades estratgicas do impulso desconstrutivo, propondo um sistema de regras tcnicas, procedimentos metodolgicos ensinveis, uma disciplina, fenmenos escolares, um tipo de conhecimento, princpios, teoremas, que so, em sua maioria, princpios de interpretao e leitura (ao invs de escrita) (DERRIDA, 1994, p. 88). Derrida reconhece que o chamado desconstrucionismo no monoltico, havendo diferenas entre os desconstrucionismos e os entre os desconstrucionistas, mas considera ser possvel afirmar que h desconstrucionismo em geral cada vez que o impulso [jetty] desestabilizador fecha-se e estabiliza-se num conjunto ensinvel de teoremas, cada vez que h auto-apresentao de uma, 2 A Derrida reage a um debate ento em curso na universidade americana desencadeado pelo clebre manifesto de Steven Knapp e Walter Benn Michaels Against Theory (1982). Enquanto o advento da teoria estruturalista e ps-estruturalista no final dos anos 1960 foi atacada por tradicionalistas que reclamavam a perda de um foco prprio na literatura, nos anos 1980 a theory tornou-se um modo dominante nos estudos literrios, estimulando um renascimento da produo crtica. Against Theory introduziu dvidas junto s tropas de uma gerao de jovens crticos acerca do iminente estabelecimento da theory, afirmando uma atitude revisionista que veio a ser chamada neopragmatismo. [...] Apesar de no ter colocado um freio no trabalho em theory, Against theory desencadeou um dos mais vibrantes debates dos anos 1980 e pressagiou a mudana para mtodos crticos com um foco mais prtico notavelmente, o New Historicism [novo historicismo] e os estudos culturais que se tornaram proeminentes do final dos anos 1980 em diante (LEITCH, 2001, p. 2458).

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    ou, mais problematicamente, da teoria (DERRIDA, 1994, p. 88). Isso posto, e seria preciso reconhecer a States theory nos termos em

    que Culler a define e a apresenta como um gnero discursivo, heterogneo, verdade, mas ainda assim, ou justamente por isso, um gnero, com todas as caractersticas estveis que permitem identific-lo como tal e diferenci-lo de outros gneros discursivos , e, sobretudo, na forma em que ele o faz por meio de snteses didticas que assumem o formato de livros de referncia ou manuais, guias confiveis a serem utilizados na divulgao e no ensino da theory, nos EUA ou em outros pases (como j se disse, ambos foram traduzidos e editados no Brasil) , que a States theory, em suma, nos termos e na forma em que Culler a define e apresenta, configura-se como uma espcie de gesto estabilizador do impulso desconstrutivo ou efeito de desconstruo de que fala Derrida, um gesto que, como todo movimento de estabilizao, procede por clusulas predicativas, assegura com declaraes assertricas, com asseres, com declaraes como isso aquilo: por exemplo, desconstruo isso ou aquilo (DERRIDA, 1994, p. 84) ou, poder-se-ia acrescentar: a theory isso ou aquilo, um gnero heterogneo, por exemplo.

    Derrida toma a estabilizao terica como uma consequncia ou um resultado, a um s tempo paradoxal e previsvel, do efeito de desconstruo no que ele tem de essencialmente desestabilizador; mas a ordem das coisas bem que poderia, aqui, ser alterada, uma vez que o efeito de desconstruo s se faz possvel e necessrio onde quer que uma teoria ou a teoria se imponha como um horizonte estvel e institucionalmente hegemnico. Isso vem tona na intepretao muito particular do ttulo do colquio que Derrida oferece logo no incio de sua conferncia. Por que o plural em The states of theory? Declarar um nico possvel estado de teoria, a teoria, pondera Derrida (1994), equivaleria a presumir:

    [...] a possibilidade de totalizar todos os fenmenos tericos, todas as produes tericas, todos os teoremas numa tabela, numa tbua, logo numa superfcie legvel, que poderia, como qualquer tabela estvel e estabilizada, permitir a leitura da tabularidade taxonmica, as entradas e os lugares, ou ainda a genealogia, finalmente fixada numa rvore de teoria, de identidades, entidades e nomes sejam comuns ou prprios de teoria. Uma tabela botnica (DERRIDA, 1994, p. 64).

    O plural states, estados, por sua vez, desestabiliza ou aponta para a instabilidade, na verdade para a essencial desestabilizao de tal tabela, colocando em questo a prpria possibilidade de um discurso

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    que pressuporia, hoje, apressadamente, tal objetivao taxonmica (DERRIDA, 1994, p. 64); tal pressuposio, contudo, lembra Derrida, feita por tantas pessoas, dentro e fora da universidade, quando a doxa [...] joga com os ttulos de teorias e teoremas como se com peas num tabuleiro de xadrez: New Criticism, estruturalismo, ps-estruturalismo, ps-modernismo, ps-marxismo, novo historicismo, etc. (DERRIDA, 1994, p. 64-65). Esses teoremas, teorizaes, teorias, prossegue Derrida, compartilham ou postulam um campo que, certamente, no comum e unificvel, [nem] na verdade identificvel (DERRIDA, 1994, p. 65). Se h, de fato, algo como um campo [field] em que esses elementos se encontram em jogo, tratar-se-ia, antes, de um campo de foras [field of forces], um campo de foras plurais [field of plural forces]: em seus fenmenos e ttulos usuais, essas foras podem ser chamadas foras libidinais, foras poltico-institucionais ou histrico-scio-econmicas, ou foras concorrentes de desejo e poder (DERRIDA, 1994, p. 65). E ainda: Foras nunca vo sem suas representaes, suas imagens especulares, os fenmenos de refrao e difrao, o reflexo ou reapropriao de foras distintas ou opostas, a identificao com o outro ou o oponente, etc. (DERRIDA, 1994, p. 65).

    Bem entendido, Derrida refere-se a a foras que seriam mesmo anteriores prpria constituio e institucionalizao de uma teoria como teoria, de um mtodo como mtodo. Nesse campo de foras plurais, onde mesmo contar no mais possvel, h apenas jetties tericos, afirma Derrida (1994, p. 65), explicando que com a palavra jetty [jete] ele quer referir-se fora daquele movimento que no ainda sujeito, projeto ou objeto, nem mesmo rejeio, mas na qual ganha lugar qualquer produo e qualquer determinao, que encontram sua possibilidade no jetty (DERRIDA, 1994, p. 65).

    Poder-se-ia querer enxergar a o trajeto que vai do jetty terico indeterminado teoria propriamente dita como um processo de crescente determinao do pr-terico (pr-subjetivo, pr-objetivo) rumo ao propriamente terico, descrevendo-se algo como um amadurecimento da teoria. Mas isso equivaleria a ignorar o carter intrinsecamente conflitual, por assim dizer, do campo de foras de que fala Derrida. Cada jetty terico bem como sua reapropriao como um conjunto terico, uma teoria com seus axiomas, seus procedimentos metdicos, suas estruturas institucionais entra a priori, originalmente, em conflito e competio, enfatiza, com efeito, Derrida (1994, p. 65). Se a constituio das teorias e dos mtodos crticos tem, de fato, num campo de foras plurais, suas condies de possibilidade, essas condies, no entanto, so essencialmente tensas, conflituais, no podendo haver nada, em suma, como uma linha reta

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    de desenvolvimento ou de amadurecimento levando de uma prototeoria teoria propriamente dita.

    Mas como, ento, as teorias, os mtodos, as escolas crticas ganhariam forma a partir desse horizonte de indeterminao conflitual?

    Hegemonizao do campo de foras, reorientao para a monstruosidade

    Derrida identifica certo procedimento retrico pelo qual o mpeto de hegemonia das foras tericas em conflito tem vazo por meio de uma declarao de novidade. Cada jetty terico a instituio de uma nova declarao sobre a totalidade do estado e de um novo establishment visando a uma hegemonia oficial (DERRIDA, 1994, p. 68). Refletindo sobre a funo do adjetivo new [novo] em ttulos como New Criticism e New Historicism, Derrida chama a ateno para isso que tende a tornar-se a tcnica de autolegitimao, auto-instituio e autonominao:

    Houve um tempo em que ttulos e cabealhos [letterheads] seguiam-se ao estabelecimento de uma instituio e ao trabalho de seus membros fundadores. Hoje, sabemos que, certas vezes, melhor comear com cabealhos e auto-representao. Todos os fundadores de instituies sabem disso. Quanto a decidir se ttulos em new [novo] so mais eficientes do que aqueles em post [ps], [...] se mais apropriado periodizar violentamente e tornar em telos historicista o mensageiro que anuncia uma nova era ou o heri que supera ou abate um velho drago, isso uma questo de detalhe. Trata-se, basicamente, do mesmo gesto, o estratagema cultural como um inevitvel resduo do mais velho dos historicismos (DERRIDA, 1994, p. 68).

    Em vista desses e de outros newisms [novismos], e de post-isms [ps-ismos] como Post-structuralism, Postmodernism, Post-Marxism, Derrida detecta, pois, a recorrncia do estratagema que consiste em responder ao que novo dando, imediatamente, a isso, o ttulo novo [...], ou ento anunciar como superado e fora de uso precisamente aquilo que precedido de um ps e que visto a partir de agora como uma pobre palavra com um ps afixado nela (DERRIDA, 1994, p. 73). Esse estratagema, Derrida (1994) o julga consoante com o mais velho dos historicismos. Relembre-se, quanto a isso, a funo da Histria da Crtica no mbito do New Criticism, isto , a de confirmar e legitimar historiograficamente, por meio de uma abordagem evolucionista e teleolgica da histria das ideias crticas, a pretensa revoluo intelectual e epistemolgica representada pela ascenso

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    e institucionalizao do New Criticism nas universidades americanas, reafirmando, assim, seu carter de marco definitivo da modernidade nos estudos literrios. Tendo o New Criticism perdido seu espao institucional para outras correntes tericas, esse esquema historiogrfico no deixou de ser atualizado, deslocando-se o telos da narrativa do marco formalista fixado nos anos 1940-50 para os pretensos marcos de outras pretensas revolues nas dcadas subsequentes. A propsito, no difcil imaginar, com base no que afirma Culler acerca da suplantao da teoria literria pela theory como gnero heterogneo, uma narrativa evolucionista da histria da crtica que tomasse por telos o pretenso marco institudo por essa nova pretensa revoluo. Da a importncia da questo levantada por Derrida (1994) a esse respeito, quando diz:

    Ao invs de continuar jogando o completamente tedioso jogo que consiste em aplicar os mais surrados esquemas da histria das ideias especificidade do que est acontecendo agora, especialmente neste pas [EUA]; ao invs de ceder a normalizar e legitimar representaes que identificam, reconhecem e reduzem tudo to apressadamente, por que no estar interessado, antes, em monstros tericos, nas monstruosidades que anunciam a si mesmas na teoria, nos monstros que, de antemo, superam e tornam cmicas todas as classificaes ou ritmos como: depois do New Criticism vem um ismo e, ento, um ps-ismo, e ento, de novo, outro ismo, e, hoje, ainda outro ismo, etc. (DERRIDA, 1994, p. 79).

    Mas uma monstruosidade nunca apresenta a si mesma, reconhece Derrida (1994, p. 79); ou ento, se vocs preferirem, ela apenas apresenta a si mesma, isto , deixa-se ser reconhecida, permitindo-se ser reduzida quilo que reconhecvel; isto , a uma normalidade, uma legitimidade que no ela. Em suma: Uma monstruosidade s pode ser desconhecida (mconnue), isto , no-reconhecida [unrecognized] e mal compreendida [misunderstood]. Ela s pode ser reconhecida depois, quando tornou-se normal ou a norma (DERRIDA, 1994, p. 79). Derrida (1994) associa, ento, na sequncia, o monstruoso quilo que acontece ou que irrompe sem que tenha sido previsto ou programado, numa palavra: ao evento; se h eventos tericos que marcam uma instituio, ele diz, eles devem ter a forma sem forma de uma monstruosidade; isto , eles no podem ser reconhecidos ou legitimados na hora e ainda menos programados, anunciados e antecipados de qualquer forma (DERRIDA, 1994, p. 80).

    Derrida (1994) toma ento como exemplo o famoso colquio The Languages of Criticism and the Sciences of Man [As linguagens da crtica e as cincias do homem], ocorrido em 1966 na Johns Hopkins University,

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    do qual ele prprio participou, e a respeito do qual se costuma dizer ter sido um evento no qual muitas coisas mudaram [...] na cena americana (DERRIDA, 1994, p. 80). Assim:

    O que agora chamado theory neste pas pode mesmo ter uma ligao essencial com o que se diz ter acontecido l em 1966. [...] O certo que se algo aconteceu l que poderia ter o valor de um evento terico, ou de um evento dentro da teoria, ou, mais provavelmente, o valor do advento de um novo sentido terico-institucional de teoria daquilo que tem sido chamado theory neste pas por cerca de vinte anos , esse algo somente veio luz posteriormente e ainda est tornando-se mais e mais claro hoje. Mas o que tambm certo que ningum, ou entre os participantes ou prximo a eles, teve qualquer conscincia temtica do evento; ningum poderia fazer ideia dele e, sobretudo, ningum poderia ou teria ousado program-lo, anunci-lo ou apresent-lo como um evento. Isso certo; e to certo que se algum reivindicasse hoje programar ou apresentar um evento similar, essa pessoa estaria equivocada no h dvida quanto a isso. Essa mesmo a receita mais segura para se estar equivocado (DERRIDA, 1994, p. 80).

    A imprevisibilidade de que fala Derrida (1994) pode ser aquilatada pelo fato de que o colquio que se costuma tomar como o grande marco franco-americano da teoria ps-estruturalista ou, simplesmente, da theory, foi originalmente pensado, como se pode ler no prefcio edio em livro dos anais do colquio, como abertura para um programa de dois anos de seminrios e colquios que procuravam explorar o impacto do pensamento estruturalista contemporneo sobre mtodos crticos em estudos humansticos e sociais, e que o grande propsito desses encontros era o de colocar em contato importantes proponentes europeus de estudos estruturais numa variedade de disciplinas com um amplo espectro de scholars americanos, esperando-se, com isso, estimular inovaes tanto no conhecimento [scholarship] recebido quanto no treinamento dos estudiosos [scholars] (MACKSEY; DONATO, 2007, p. xxi-xxii).

    Ora, a simples meno de alguns nomes da misso estruturalista francesa ento enviada aos EUA, nomes particularmente importantes para a teoria crtica do sculo XX como os de Georges Poulet, Lucien Goldmann, Tzvetan Todorov, Roland Barthes, Jacques Lacan e Jacques Derrida, d uma ideia do nvel de fragmentao e contradio internas do pensamento (dito estruturalista) que se gostaria, ento, de apresentar e divulgar nos EUA. Como agrupar e conciliar, afinal, num mesmo espao ou campo, a hermenutica da interioridade, claramente pr-estruturalista, de um Poulet, o estruturalismo sui generis, dito gentico (dada sua filiao

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    piagetiana), de um Goldmann, o projeto todoroviano de uma potica estruturalista que se desvencilhasse, enfim, da subjetividade inerente ao trabalho da interpretao, o cada vez maior distanciamento barthesiano em relao a esse mesmo projeto (que o prprio Barthes, no obstante, chegara a subscrever) rumo a uma teoria do Texto de colorao ps-estruturalista, mas num sentido dessa expresso que no se confundiria nem com a extrapolao de um estruturalismo mais ortodoxo no pensamento de Lacan, nem com a desconstruo do estruturalismo lvi-straussiano em Derrida? Um tal agrupamento, no seria ele, em vista de sua improbabilidade, de sua artificialidade (de que outra maneira todos esses autores viriam a se reunir pessoalmente e a se discutir mutuamente a no ser por ocasio de um colquio estruturalista num pas estrangeiro?), de sua heterogeneidade radical, de sua oposicionalidade interna, no seria ele, em suma, algo de monstruoso? O fato de que os anais com as contribuies do grande acontecimento estruturalista em terras americanas tenha aparecido em livro, quatro anos mais tarde (em 1970), com o subttulo The Structuralist Controversy [A controvrsia estruturalista], e, sobretudo, que essa expresso tenha sido alada a ttulo principal do livro a partir da edio de 1972, parece sugerir que sim.

    Em suas ressalvas em relao ao modo como o colquio de Johns Hopkins veio a ser arquivado pela memria acadmica norte-americana, pelas reconstituies histricas do pensamento crtico ps-New Criticism, Derrida estimula-nos a recuar ao ponto em que, aqum das rotulaes a posteriori, v-se desenhado pelo conjunto nada harmonioso daquelas comunicaes feitas em 1966, bem como das frequentemente acaloradas discusses que a cada uma delas se seguiram (cf. MACKSEY; DONATO, 2007), algo como um campo de foras plurais e conflituais em torno de problemticas como estrutura, estruturalismo, sujeito, linguagem, literatura, interpretao, crtica, etc. Ora, nesse campo conflitual que tem, ento, lugar a interveno derridiana destinada a celebrizar-se, sua hoje clssica comunicao Structure, sign, and play in the discourse of the Human Sciences [Estrutura, signo e jogo no discurso das cincias humanas], bem como o debate que a ela se seguiu (cf. MACKSEY; DONATO, 2007, p. 265-272) a voz de Derrida erigindo-se em tenso com as demais vozes estruturalistas l presentes, mas tambm, e sobretudo, com a voz maior, ausente, de Claude Lvi-Strauss. O que quer que viesse a ser afirmado na ocasio acerca, por exemplo, da estrutura, o seria de maneira necessariamente dificultosa, conflitual e sem libis tericos e isso no poderia nunca ter sido anunciado ou programado.

    isso o que se v completamente obliterado quando, sem que se o

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    leia, sem que se volte a l-lo com a devida ateno, se se refere ao texto de Structure, sign, and play in the discourse of the Human Sciences como uma espcie de certido de nascimento do post-structuralism, ou da deconstruction, ou da theory. Retornando, com efeito, ao prprio texto, em vista da sugesto derridiana de uma produtividade originria aqum de qualquer rtulo estabilizador a posteriori, surpreendente acompanhar Derrida, na concluso de seu discurso, refletindo mesmo sobre um certo nascimento por vir: Aqui, h uma espcie de questo, chamemo-la histrica, da qual ns estamos apenas vislumbrando, hoje, a concepo, a formao, a gestao, o parto (DERRIDA, 2007, p. 265). E ainda:

    Emprego essas palavras, admito, com um olhar sobre a atividade da procriao [childbearing] mas tambm com um olhar sobre aqueles que, da companhia dos quais eu no me excluo, desviam seus olhos em face do ainda inominvel que est proclamando a si mesmo e que pode faz-lo, como necessrio quando quer que um nascimento est para acontecer, apenas sob a espcie da no-espcie, na forma informe, muda, infante e aterradora da monstruosidade (DERRIDA, 2007, p. 265).

    Passadas duas dcadas do colquio de Johns Hopkins, Derrida reitera, no colquio de Irvine, em tom sentencioso: Monstros no podem ser anunciados. No se pode dizer: Aqui esto nossos monstros sem imediatamente transformar os monstros em animais de estimao (DERRIDA, 1994, p. 80).

    Por uma historiografia teratolgica da crtica

    A remisso monstruosidade aqum de toda domesticao adquire, a, em Derrida, os contornos de uma reverso do arquivamento (do evento), de um desarquivamento, pois o qual, medida que implica o abalo, a desestabilizao da axiomtica, por exemplo, do post-structuralism, da deconstruction, ou da theory, pode, tambm ele, ser considerado um efeito de desconstruo. Seria preciso admitir, alm do mais, que esse efeito, medida que coincide com um desvelamento ou um desrecalque das condies conflituais de possibilidade do discurso terico-metodolgico no campo dos estudos literrios, um desrecalque, portanto, da prpria historicidade desse discurso, vem claramente ao encontro de uma demanda historiogrfica conjuno essa que desmentiria, alis, a alegada a-historicidade da desconstruo, comprovando, como quer Derrida (1994, p. 92), que o jetty desconstrutivo , do comeo ao fim, motivado, posto

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    em movimento por uma preocupao com a histria, mesmo se ele leva desestabilizao certos conceitos de histria (DERRIDA, 1994, p. 92).

    Como conceitos de histria desestabilizados pela desconstruo, Derrida (1994, p. 92) menciona o conceito absolutizante ou hipostaziante de tipo neo-hegeliano ou marxista, o husserliano, o conceito heideggeriano de epocalidade histrica. De especial interesse, contudo, para a problemtica aqui abordada, a desestabilizao da modalidade de histria que se poderia chamar metodolgica, j que implicada pela figura do mtodo, pela existncia e pelo funcionamento de um mtodo, qualquer que seja ele.

    No texto da abertura do seminrio La langue et le discours de la mthode [A lngua e o discurso do mtodo] ministrado em 1983 na cole Normale Suprieure , Derrida detm-se, com efeito, no que chama de historicidade paradoxal do mtodo (DERRIDA, 1983, p. 37). O paradoxo em questo pode ser enunciado da seguinte forma: h uma historicidade diretamente relacionada repetio que instrui todo mtodo (DERRIDA, 1983, p. 36) isso porque todo mtodo implica regras gerais, [...] tcnicas de repetio, procedimentos recorrentes que se deve poder aplicar; numa situao dada e seguindo certos protocolos, um sujeito deve poder reiterar os processos, os procedimentos (DERRIDA, 1983, p. 37) , a qual se institui, entretanto, no sentido de uma tradio metodolgica, a custo de uma historicidade mais fundamental. No mbito metodolgico, historicidade confunde-se com repetibilidade, a histria constituindo-se de repeties, isto , de aplicaes do mesmo conjunto de protocolos, processos e procedimentos por diferentes sujeitos a diferentes objetos em diferentes circunstncias. Essa mesma histria revela-se, num certo sentido, profundamente a-histrica; ou, na formulao lapidar de Derrida: Por essa fora de repetio, o mtodo detm a um s tempo fora de histria e poder de anular uma certa historicidade ligada, ela, ao evento singular (DERRIDA, 1983, p. 37).

    Ora, no justamente essa historicidade ligada ao evento singular e anulada ou recalcada pela normalizao terico-metodolgica do conhecimento que se veria desvelada, trazida tona novamente, em seu carter monstruoso, por efeito de desconstruo? Um tal desvelamento da historicidade monstruosa no subsolo da normalizao terico-metodolgica no poderia confundir-se, bem entendido, com uma reconstituio de tipo historicista, pelo fato de que o evento, a monstruosidade, o evento no que ele tem de eminentemente monstruoso estaria ligado antes ao futuro do que ao passado, de modo que no o passado mas o futuro que a poderia se ver de alguma forma reconstitudo melhor dito: uma possibilidade de

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    futuro.Em uma entrevista concedida a Elisabeth Weber em 1990, trs anos

    depois, portanto, do colquio de Irvine, Derrida explica que a figura do porvir [avenir], isto , aquilo que no pode seno surpreender, aquilo para o que ns no estamos preparados, [...] anuncia-se sob as espcies do monstro. Um porvir que no fosse monstruoso no seria um porvir, seria j um amanh previsvel, calculvel e programvel (DERRIDA, 1992, p. 400) ou seja, poder-se-ia acrescentar, um amanh gerado por um golpe de mtodo. Derrida, ento, conclui:

    Toda experincia aberta ao porvir preparada ou se prepara para acolher o vindouro [arrivant] monstruoso, para acolh-lo, isto , conceder a hospitalidade a isso que absolutamente estrangeiro, mas tambm, preciso diz-lo, procurar domestic-lo, quer dizer, faz-lo entrar na casa, e faz-lo assumir os hbitos, fazer-nos assumir novos hbitos. o movimento da cultura. Os textos e os discursos que provocam, de partida, reaes de rejeio, que so denunciados justamente como anomalias ou monstruosidades, so frequentemente textos que, antes de ser por sua vez apropriados, assimilados, aculturados, transformam a natureza do campo da recepo, transformam a natureza da experincia social e cultural, a experincia histrica. Toda a histria mostrou que cada vez que um evento se produziu, por exemplo, na filosofia ou na poesia, ele tomou a forma do inaceitvel, at do intolervel, do incompreensvel, quer dizer, de uma certa monstruosidade (DERRIDA, 1992, p. 400-401).

    O fato de que esse movimento da cultura de que a fala Derrida com certo fatalismo, esse movimento pelo qual o evento monstruoso vem a ser assimilado pela cultura oficial apenas custa da domesticao de sua monstruosidade originria, ou seja, custa do prprio evento como evento, o fato de que ele no se mostre, em suma, rigorosamente irreversvel, o que se atesta pelos prprios efeitos desestabilizadores de desconstruo de que tambm fala Derrida, acena para a possibilidade de um tipo diferenciado de historiografia, de operao historio-grfica, que se identificasse justamente com a produo de tais efeitos de desvelamento da monstruosidade originria de um evento discursivo original ulteriormente domesticado isto : apropriado, assimilado, aculturado na forma de uma teoria, um mtodo, uma escola de pensamento. Em vista de seu escopo monstruoso, poder-se-ia chamar teratolgica a uma tal operao historiogrfica.

    Os mecanismos do processo de apropriao/assimilao/aculturao de eventos do passado a servio de objetivos diversos no presente tornaram-se mais e mais conhecidos e denunciados desde que h quase cento e cinquenta anos o jovem Nietzsche desmascarou a moderna cultura histrica

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    europeia como o grande motor desse processo. No um mrito menor, por exemplo, do mais importante livro de filosofia da cincia do sculo XX The Structure of Scientific Revolutions [A estrutura das revolues cientficas] (1962), de Thomas Kuhn o de ter evidenciado o complexo persuasivo e pedaggico (para empregar os termos do prprio Kuhn) formado pela figura do manual cientfico e de seu complemento diacrnico, a Histria da Cincia, a servio da fixao institucional de uma imagem a-histrica de cincia e de cientificidade.

    Essa imagem tem sido derivada, at pelos prprios cientistas, principalmente do estudo de realizaes cientficas acabadas, tal como registradas nos clssicos e, mais recentemente, nos manuais em que cada nova gerao de cientistas aprende a praticar seu ofcio, afirma, com efeito, Kuhn (1996, p. 1), logo na introduo de Structure. Sobre os manuais, Kuhn observa ainda que eles parecem sugerir que o contedo da cincia unicamente exemplificado pelas observaes, leis e teorias descritas em suas pginas, e que normalmente so lidos como se afirmassem que os mtodos cientficos so simplesmente aqueles ilustrados pelas tcnicas manipulativas empregadas na coleta das informaes do manual, juntamente com as operaes lgicas empregadas ao relacionar tais informaes s generalizaes tericas do manual (KUHN, 1996, p. 1). O resultado disso, conclui Kuhn a respeito, um conceito de cincia com profundas implicaes a respeito de sua natureza e seu desenvolvimento (KUHN, 1996, p. 1), conceito que vem a ser reforado, ento, pela tradicional historiografia da cincia, cujo escopo assim definido por Kuhn:

    Se a cincia a constelao de fatos, teorias e mtodos coletados nos textos atuais, ento os cientistas so os homens que, com ou sem sucesso, esforaram-se por contribuir com um ou outro elemento dessa constelao particular. O desenvolvimento cientfico torna-se o processo gradativo atravs do qual esses itens foram adicionados, isoladamente e em combinao, ao sempre crescente estoque que constitui a tcnica e o conhecimento cientficos. E a histria da cincia torna-se a disciplina que registra tanto esses incrementos sucessivos quanto os obstculos que inibiram sua acumulao. Preocupado com o desenvolvimento cientfico, o historiador, ento, parece ter duas tarefas principais. De um lado, deve determinar por que homem e em que ponto do tempo cada fato, lei e teoria cientficos contemporneos foram descobertos ou inventados. De outro lado, deve descrever e explicar o amontoado de erros, mitos e supersties que inibiram a acumulao mais rpida dos constituintes do moderno texto cientfico (KUHN, 1996, p. 2).

    Ora, no outro seno esse mesmo modelo a um s tempo sincrnico (o manual) e diacrnico (a historiografia) de normalizao cognitiva aquele

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    impingido ao campo literrio por Ren Wellek com seu manual de teoria e metodologia dos estudos literrios publicado em 1949 (cf. WELLEK; WARREN, 1984) e sua monumental History of Modern Criticism (1955-1992). Mas preciso cuidado, aqui, para no converter o acontecimento em estrutura: a obra de Wellek seria apenas a realizao paradigmtica de um movimento de normalizao cognitiva nos estudos literrios que no nasce nem morre com ela, apenas ganha, com ela, uma formulao exemplar. preciso evitar, assim, atribuir ao acontecimento implicado pela obra de Wellek, ou a qualquer outro, e seja para endoss-lo ou contest-lo, o carter fundador e estrutural que, por exemplo, Foucault gostaria de atribuir ao que ele considera ser o nascimento, no sculo XVIII, do que chama de a cincia. Eis a narrativa de Foucault a esse respeito:

    O sculo XVIII foi o sculo da disciplinarizao [mise en discipline] dos saberes, ou seja, da organizao interna de cada saber como uma disciplina tendo, em seu campo prprio, a um s tempo critrios de seleo que permitem descartar o falso saber, o no-saber, formas de normalizao e de homogeneizao dos contedos, formas de hierarquizao e, enfim, uma organizao interna de centralizao desses saberes em torno de um tipo de axiomatizao de fato. Logo, organizao de cada saber como disciplina e, de outro lado, disposio desses saberes assim disciplinados do interior, o colocar-lhes em comunicao [leur mise en communication], sua distribuio, sua hierarquizao recproca numa espcie de campo global ou de disciplina global a que se chama precisamente a cincia. A cincia no existia antes do sculo XVIII. Existiam cincias, existiam saberes, existia tambm, se vocs quiserem, a filosofia. A filosofia era justamente o sistema de organizao, ou antes de comunicao, dos saberes uns em relao aos outros e nessa medida que ela podia ter um papel efetivo, real, operatrio no interior do desenvolvimento dos conhecimentos. Aparecem agora, com a disciplinarizao dos saberes, em sua singularidade polimorfa, ao mesmo tempo esse fato e essa restrio que ento fazem corpo com nossa cultura e a que se chama a cincia (FOUCAULT, 1997, p. 161-162).

    A narrativa foucaultiana do processo de disciplinarizao dos saberes s parece fazer sentido em vista do postulado de uma distino fundamental entre um espao propriamente cientfico, internamente homogneo, em que vigora a seleo, a normalizao, a hierarquizao e a centralizao do conhecimento, e um espao extracientfico, ou, de acordo com o que diz Foucault, pr-cientfico: o espao dos saberes polimorfos e heterogneos (FOUCAULT, 1997, p. 162), posteriormente disciplinados pela cincia. Mas insistir nessa distino equivale a corroborar a imagem a-histrica de cincia de que fala Kuhn (1996), derivada dos textos clssicos e dos manuais cientficos baseados em realizaes cientficas acabadas.

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    Foucault procede a uma crtica da conscincia setecentista dessa imagem de cincia como implicando um progresso da razo (FOUCAULT, 1997, p. 162), mas, ao faz-lo, deixa intocada a prpria imagem em questo. Uma obra como a de Kuhn, por sua vez, nos leva ao questionamento da prpria imagem do campo cientfico como internamente homogneo (e da prpria cientificidade como um trao ou critrio homogneo), percepo de uma heterogeneidade e de um polimorfismo internos a isso mesmo que se gostaria de chamar a cincia percepo essa extensiva, alm do mais, a isso que se gostaria de chamar a filosofia. Ora, essa percepo no um dado, mas uma conquista, resultado de uma atividade historiogrfica que consiste em reverter a normalizao cognitiva operada pelo complexo persuasivo-pedaggico composto pelos manuais cientficos e pelas tradicionais narrativas da histria da cincia.

    Ao futuro: da crtica Eis-nos em face, pois, dessa outra modalidade de historiografia da

    crtica, da percepo da heterogeneidade radical inerente ao campo de foras das teorias crticas como o resultado ou o efeito de um gesto historiogrfico que desestabiliza, desarquiva, reverte o discurso normalizado das teorias e metodologias crticas rumo disformidade, monstruosidade daquela oposicionalidade indecidvel da qual elas emergem como tais, e que fora recalcada pelo processo de normalizao cognitiva: espcie teratolgica de historiografia, identificada com a reconstituio no do passado da crtica, mas de sua monstruosa possibilidade de futuro.

    Contrariamente s espcies historiogrficas orientadas para o passado crtico, que tm na memria o seu grande instrumento, seja para antiquarizar, para monumentalizar ou para criticar o objeto dessa memria, a espcie teratolgica caracterizar-se-ia, antes, por um golpe de desmemria, por um monstruoso esquecimento em face dos ditos grandes marcos da teoria crtica ocidental, acarretando o desarquivamento, a reverso dos mesmos at o ponto em que a crtica pudesse, ento, uma vez mais, acontecer. De todo agir faz parte o esquecimento: assim como da vida de tudo o que orgnico faz parte no apenas a luz, mas tambm a obscuridade (NIETZSCHE, 1964, p. 9). nada menos do que a prpria vida da crtica que dependeria, pois, do advento desse esquecimento por vir.

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    Nbil Arajo [email protected]

    Manuscrito recebido em 26 de maio de 205 e aceito em 26 de junho de 2015.