para falar de regras - noel
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Artigo importante sobre o tema ''Regras''TRANSCRIPT
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Noel Struchiner
PARA FALAR DE REGRAS O Positivismo Conceitual como Cenrio para uma Investigao
Filosfica acerca dos Casos Difceis do Direito
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno de ttulo de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Danilo Marcondes de Souza Filho
Rio de Janeiro Agosto de 2005
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Noel Struchiner
PARA FALAR DE REGRAS O Positivismo Conceitual como cenrio para uma Investigao
Filosfica acerca dos Casos Difceis do Direito
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno de ttulo de Doutor em Filosofia. Aprovada pela comisso abaixo assinada
Prof. Orientador: Dr. Danilo Marcondes de Souza Filho Departamento de Filosofia da PUC-Rio Prof. Dr. Antonio Cavalcanti Maia Departamento de Direito da PUC-Rio e da UERJ Prof. Dr. Fernando Galvo de Andra Ferreira Departamento de Direito da PUC-Rio
Prof. Dr. Marcelo de Araujo (UERJ / UFRJ) Departamento de Direito da UFRJ e de Filosofia da UERJ
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Prof. Dra. Margarida Maria Lacombe Camargo (UFRJ) Departamento de Direito da UFRJ Suplentes: Prof. Dr. Claudio Pereira de Souza Neto Departamento de Direito da UFF Prof. Dr. Oswaldo Chateaubriand Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Jrgen Walter Bernd Heye Coordenador Setorial de Ps-Graduao e Pesquisa
Rio de Janeiro, 4 de agosto de 2005
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao da Universidade, do autor e do orientador.
Noel Struchiner
Graduou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1998. Iniciou o curso de graduao em Filosofia na PUC-Rio em 1996, interrompendo-o para ingressar no Mestrado em Filosofia na mesma Universidade, em 1999. Desde ento tem se dedicado pesquisa na rea de filosofia da linguagem e teoria do direito, tendo publicado sua dissertao de mestrado pela Editora Renovar, sob o ttulo Direito e Linguagem. Uma anlise da textura aberta da linguagem e sua aplicao ao direito.
Ficha catalogrfica CDD: 100
Struchiner, Noel Para falar de regras : o positivismo conceitual como cenrio para uma investigao filosfica acerca dos casos difceis do direito / Noel Struchiner ; orientador: Danilo Marcondes de Souza Filho. Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Filosofia, 2005. 191 f. ; 30 cm Tese (doutorado) Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia. Inclui bibliografia 1. Filosofia Teses. 2. Direito - Filosofia. 3. Positivismo conceitual. 4. Inrcia normativa. 5. Casos difceis do direito. 6. Modelos de tomada de deciso. 7. Particularismo. 8. Formalismo. I. Souza Filho, Danilo Marcondes de. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Ttulo.
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Para o Arthur, minha obra mais perfeita.
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Agradecimentos Ao meu orientador, Prof. Dr. Danilo Marcondes de Souza Filho, pelo estmulo, pelo exemplo e pela dedicao minha pesquisa nos ltimos seis anos. Ao professor Antonio C. Maia, pelo apoio constante nos ltimos doze anos. Ao professor Frederick Schauer, pela calorosa recepo durante o perodo de doutorado sanduche em Harvard e pelas animadas discusses sobre a natureza das regras. Ao professor Frank Sauter, pelas sugestes de leituras referentes lgica jurdica. Aos professores Marcelo de Araujo, Margarida Lacombe Camargo e Fernando Galvo de Andra Ferreira, pela leitura cuidadosa e pelas sugestes valiosas. Aos professores do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, to importantes para a minha formao intelectual. Fundao de Amparo Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), pela concesso da bolsa de doutorado na modalidade Nota 10 e Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela bolsa de estgio no exterior. Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva, na figura de seus coordenadores, pela compreenso, pelo incentivo e pela construo de uma atmosfera propcia ao desenvolvimento desta tese. Aos meus alunos, sob cujo escrutnio muitas das idias aqui desenvolvidas foram aperfeioadas. Ao trio Diego, Alexandre e Fernando, auditrio qualificado, me impulsionando a elevar o nvel dos meus argumentos. minha musa, Cinthia.
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Resumo
Struchiner, Noel; Marcondes, Danilo (orientador). Para Falar de Regras: O Positivismo Conceitual como Cenrio para uma Investigao Filosfica acerca dos Casos Difceis do Direito. Rio de Janeiro, 2005, 191p. Tese de Doutorado Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
A presente tese primordialmente um trabalho de filosofia do direito. No
obstante, tambm pode ser encarada como uma contribuio para o estudo
filosfico sobre a natureza das regras prescritivas (e do uso diretivo ou prescritivo
da linguagem), englobando: uma investigao sobre as regras e suas notas
caractersticas e contingentes e um estudo sobre as diferentes maneiras por meio
das quais elas podem integrar o raciocnio prtico dos seus destinatrios. Para no
usar a linguagem de frias, as regras sero discutidas dentro do cenrio do
positivismo conceitual. O objetivo mostrar alguns dos principais problemas que
devem ser enfrentados quando se pretende levar as regras a srio. Trata-se de uma
incurso nas fontes filosficas dos casos difceis do direito, quando encarado
como um sistema de regras.
Palavras-chave
Filosofia do direito; positivismo conceitual; inrcia normativa; casos difceis do direito, Frederick Schauer; regras; modelos de tomada de decises; particularismo; formalismo; particularismo sensvel s regras; positivismo presumido
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Abstract
Struchiner, Noel; Marcondes, Danilo (advisor). Talking about Rules: Conceptual Positivism as the Stage for a Philosophical Investigation of Hard Cases in Law. Rio de Janeiro, 2005, 191p. Doctoral Thesis Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
The present thesis is primarily an exercise in philosophy of law. However,
it can also be viewed as a contribution to the recurring philosophical
investigations about the nature of prescriptive rules (and the directive or
prescritive use of language in general), encompassing: an inquiry about rules and
their characteristic and contigent marks, and a research of several ways by means
of which they can play a part in the practical reasoning of its addressees. In order
not to use language on holiday, the discussion about rules will be held on the
stage set up by conceptual positivism. The aim is to point out some of the main
problems that must be faced when rules are taken seriously. In a nutshell, the
thesis is an incursion into the philosophical sources of hard cases, when law is
conceived as a system of rules.
Keywords
Philosophy of law; conceptual positivism; normative inertia; hard cases; Frederick Schauer; rules, decision-making models; particularism; formalism; rule-sensitive particularism, presumptive positivism.
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Sumrio 1. Introduo
13
2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito: O Debate
Jusnaturalismo vs. Juspositivismo
20
2.1. Jusnaturalismo 23
2.2. Juspositivismo 25
2.2.1. O Positivismo Jurdico como Ceticismo tico 27
2.2.2. O Positivismo Jurdico como Positivismo Ideolgico 28
2.2.3. O Positivismo Jurdico como Formalismo Jurdico 31
2.2.4. O Positivismo Jurdico como Positivismo Conceitual 32
3. A Primazia do Positivismo Conceitual 35
3.1. A nica Tese Compartilhada por Todos os Positivistas 35
3.2. Levando em Considerao a Importncia das Regras 36
3.3. Levando em Considerao a Diferenciao do Direito 42
3.4. A Vantagem do Ponto de Vista Prtico e Moral 47
3.5. Estabelecendo um Solo Comum 50
3.6. As Perguntas Certas no Momento Adequado 52
4. A Regra de Reconhecimento O Problema
Ontolgico/Sociolgico sobre a Existncia de Regras
55
4.1. A Filosofia do Direito de H. L. A. Hart 56
4.2. As Crticas Teoria Imperativa do Direito 60
4.3. O Direito como Unio de Regras Primrias e Secundrias 67
4.4. A Regra de Reconhecimento 71
5. Conflitos Normativos O Problema Lgico 82
5.1. Breves Consideraes sobre a Possibilidade de uma Lgica
Normativa
82
5.2. Construindo Modelos Normativos 84
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5.3. Algumas Possveis Estratgias para Lidar com os Problemas
Normativos
93
6. Intoxicaes Lingsticas O Problema Semntico 97
6.1. A Textura Abertura da Linguagem: Waismann e Wittgenstein 99
6.2. A Textura Aberta da Linguagem e o Direito 107
6.3. A Vaguidade e o Direito 113
7. A Teoria da Argumentao Jurdica 119
8. O Problema Pragmtico 136
8.1. Excurso sobre Princpios 138
8.2. A Sobreincluso e a Subincluso das Regras Prescritivas 147
8.3. Regras Srias 155
9. Modelos de Tomada de Decises 160
9.1. Dois Modelos Extremos: O Particularismo e o Formalismo 160
9.2. O Particularismo Sensvel s Regras 168
9.3. O Positivismo Presumido 171
10. Concluso 174
11. Referncias Bibliogrficas 180
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Lista de Tabelas Tabela 1 mbito Ftico do Exemplo 1 86
Tabela 2 Sistema Normativo 1 88
Tabela 3 mbito Ftico do Exemplo 2 89
Tabela 4 Sistema Normativo 2 90
Tabela 5 Sistema Normativo 3 92
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The writer and teacher of philosophy is a lucky person, fortunate as few human beings are, to be able to spend her life expressing her most serious thoughts about
the problems that have moved and fascinated her most.
(Nussbaum, M. The Therapy of Desire)
"The core of intellectual honesty is to take into account the best argument against your point and say why it doesnt persuade you"
(Schauer, F. Aula do curso Legal and Political Institutions in Development, Universidade de Harvard, 18 fev. 2004)
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Introduo
A presente tese primordialmente um trabalho de filosofia do direito. No
obstante, tambm pode ser encarada como uma contribuio para o estudo
filosfico sobre a natureza das regras prescritivas (e do uso diretivo ou prescritivo
da linguagem), englobando: uma investigao sobre as regras e suas notas
caractersticas e contingentes e as diferentes maneiras por meio das quais elas
podem integrar o raciocnio prtico dos seus destinatrios. Uma anlise cuidadosa
das regras pode lanar luz sobre uma srie de questes recorrentes da filosofia do
direito. Por outro lado, o mbito do direito constitui um contexto adequado para se
desenvolver e testar as construes tericas sobre a natureza das regras. Ao
delimitar e especificar o campo no qual se pretende operar, observada uma
recomendao wittgensteiniana: no utilizar a linguagem de frias, fora de
qualquer contexto de comunicao ou, o que d no mesmo, criar um contexto de
discusso artificial e abstrato que foge de qualquer situao normal onde os
conceitos so usados. Assim, percebe-se a existncia de uma relao de simbiose
ou retro-alimentao: a discusso sobre regras esclarece vrias questes da
filosofia do direito, ao mesmo tempo em que o direito serve como um habitat
natural para a elucidao de insights sobre a natureza das regras.
O problema jusfilosfico que se pretende perquirir a questo dos hard
cases ou casos difceis do direito. Os casos difceis so aqueles casos para os quais
no existe uma nica soluo correta ou os casos diante dos quais a comunidade
jurdica fica perplexa a respeito da soluo que deve ser oferecida. Embora a
discusso sobre os hard cases do direito tenha surgido dentro do cenrio
construdo pelas obras de H. L. A. Hart e Ronald Dworkin1, a existncia de casos
difceis no mbito do direito no um privilgio dos sistemas jurdicos complexos
1 Essa questo tratada, por exemplo, nos livros The Concept of Law (HART, 1998), principalmente no captulo VII: Formalism and Rule-Scepticism e Taking Rights Seriously (DWORKIN, 1978), principalmente no captulo IV: Hard Cases.
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Captulo 1. Introduo
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e sofisticados contemporneos. Os casos difceis existem desde a Antigidade. O
fsico e matemtico Douglas Hofstadter (1982), em um artigo escrito para a
revista Scientific American, relata um caso muito interessante que teria ocorrido
na Grcia Antiga, e que se enquadra facilmente dentro da definio de casos
difceis supramencionada.
O caso envolveu o mais proeminente professor de retrica, do sc. V a.C.,
o inventor da antilgica2 e das tcnicas ersticas3, Protgoras de Abdera, e um
indivduo chamado Euatlo. De acordo com a histria, Euatlo teria procurado
Protgoras para aprender retrica, a arte do bem falar, para se tornar um
advogado. Entretanto, os sofistas cobravam quantias exorbitantes pelas suas aulas.
Diz Olivier Reboul, em seu livro Introduo Retrica (1998, p.6), que os
sofistas ganhavam por dia de trabalho o fabuloso salrio de cem minas, o
equivalente ao que recebiam dez mil operrios como salrio dirio. Portanto,
Protgoras e Euatlo estabeleceram o seguinte contrato entre eles: Euatlo disse que
iria pagar a primeira metade do valor do curso assim que comeasse suas lies, e
que pagaria a outra metade assim que ganhasse o primeiro caso na justia.
Todavia, aps ter completado o curso de retrica, Euatlo ficou procrastinando o
exerccio da advocacia. Em funo disso, Protgoras, preocupado tanto com sua
reputao quanto em receber o restante do pagamento, e sendo o sofista sagaz que
era, resolveu iniciar um processo contra Euatlo.
O argumento formulado por Protgoras perante a corte do Arepago
consistia na seguinte colocao: Ou eu vou ganhar essa causa ou vou perd-la. Se
eu ganhar, ento Euatlo ter que me pagar por determinao da corte. Se eu
perder, Euatlo ter que me pagar em funo do contrato. Portanto, ganhando ou
perdendo o litgio, Euatlo dever me pagar.
2 Protgoras teria escrito um tratado intitulado Antilogia, no qual supostamente desenvolveu a antilgica, a arte de argumentar a favor e contra qualquer assunto, independente do contedo ou tese proposta, indicando que ambas as posies so igualmente verdadeiras e defensveis. Infelizmente esse tratado foi perdido (MARCONDES, 1997, p. 43). 3 A palavra grega ris significa controvrsia. Portanto, as tcnicas ersticas constituem o conjunto de procedimentos utilizados para vencer uma discusso contraditria (REBOUL, 1998, p.7).
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Captulo 1. Introduo
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Euatlo, demonstrando que havia assimilado bem os conhecimentos
passados por seu mestre durante o curso de retrica, respondeu: O que Protgoras
prope um absurdo, j que eu tambm vou ganhar ou perder esta causa. Se eu
ganhar, no precisarei pagar, por determinao da corte, e se eu perder, no
precisarei pagar, em funo do contrato. Portanto, ganhando ou perdendo, no
precisarei pagar.
Diante das argumentaes expostas acima, a corte do Arepago ficou
extremamente perplexa e no consegui encontrar uma soluo. O paradoxo criado
pela estratgia argumentativa dos envolvidos fez com que a corte do Arepago
entrasse em recesso durante cem anos4.
importante ressaltar, tambm, que aquilo que considerado como
sendo um caso difcil do direito vai variar em funo da concepo que se tem
sobre a natureza do direito. Portanto, para aqueles que adotam uma viso
jusnaturalista do direito, isto , para aqueles que identificam direito e moral, que
consideram que a aplicao do direito deve estar norteada por critrios morais e de
justia, um caso difcil vai ser aquele no qual no se sabe qual a soluo justa ou
moralmente correta. Se o direito analisado sob o ponto de vista econmico,
ento um caso difcil sob essa tica ocorre quando no se consegue estabelecer a
soluo mais interessante do ponto de vista econmico.
O foco da presente empreitada incidir na elucidao e investigao dos
desdobramentos dessa definio de casos difceis do direito dentro de um
contexto, ou pano de fundo, positivista, que concebe o direito como um sistema de
regras. Quando o direito assim concebido, os casos difceis ocorrem justamente
em decorrncia de certas caractersticas pertencentes s regras. Quando as regras,
tomadas abstratamente ou no momento de aplicao, no so capazes de resolver
satisfatoriamente um caso concreto, ento surge um caso difcil ou inslito.
4 Esse impasse, que indica um transtorno insanvel do ponto de vista lgico, no pode persistir no mundo jurdico atual. Hoje, impera a proibio do non liquet, isto , o juiz no pode se eximir da responsabilidade de oferecer uma soluo alegando a falta de clareza do caso.
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Captulo 1. Introduo
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A tarefa inicial, que funciona como pedra de toque para toda a
investigao restante da tese, a busca pelas fontes dos casos difceis. Os temas
dos casos difceis do direito e da indeterminao jurdica possuem grande
relevncia para todos que se interessam pela natureza do direito e pela prtica
jurdica. Como diz Timothy Endicott, no prefcio de uma edio especial temtica
sobre a vaguidade do direito, no Journal of Legal Theory, no 7 (2001):
A natureza e as implicaes (e at mesmo a existncia) de indeterminaes nos requerimentos do direito tm sido questes importantes na filosofia do direito [...] O assunto apresenta conseqncias importantes para o entendimento do direito, j que levanta questes fundamentais sobre o papel dos juzes e o Estado de direito: se os juzes no esto dando efeito aos direitos das partes em certos casos, ento o que esto fazendo, e como isso pode ser justificado? E como pode uma comunidade alcanar o ideal do Estado de direito se os requerimentos do direito so indeterminados?
Em suma, o estudo dos casos difceis e da indeterminao do direito
importante porque traz conseqncias para o direito, para a filosofia do direito e
para a atividade dos juzes (e ainda, conforme mencionado anteriormente, auxilia
na construo de teorias sobre as regras prescritivas). Tanto a identificao e
discusso acerca das fontes dos casos difceis do direito, como a anlise das
conseqncias de sua existncia, sero abarcadas seguindo a seguinte trajetria:
Em primeiro lugar, ser montado o cenrio a partir do qual a discusso
sobre os hard cases ser realizada, e a sua escolha como ponto de partida ser
justificada. O cenrio fornecido pelo chamado positivismo conceitual. Para
tanto, ser necessrio distinguir o positivismo jurdico do direito natural e do
realismo jurdico. Tambm se faz necessrio diferenciar o positivismo conceitual
de outras verses do positivismo jurdico, como o positivismo ideolgico, o
formalismo jurdico e o ceticismo tico. A concluso que o positivismo
conceitual apresenta uma tese sobre como identificar o direito existente de uma
determinada sociedade. Trata-se de uma tese descritiva que diz que o direito deve
ser identificado recorrendo-se s suas fontes e no ao seu mrito. Dessa forma, o
direito pode ser visto como um conjunto de regras (em sentido amplo,
incorporando regras e princpios) colocadas por uma autoridade. Entretanto, como
a tese do positivismo conceitual normativamente inerte, ela nada nos diz sobre
como trabalhar com as regras que foram identificadas como sendo o material
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Captulo 1. Introduo
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bruto do direito. Investigar os problemas que permeiam essas normas jurdicas e a
maneira de manej-las no contexto de razo prtica caracteriza o cerne do restante
da tese de doutorado.
Aps descrever o cenrio no qual o tema dos casos difceis do direito ser
analisado, e tendo tomado como ponto de partida a concepo do direito como um
sistema de regras, ser realizada uma investigao dos tipos de problemas que se
encontram atrelados s regras jurdicas (tomadas como um sistema ou
individualmente, seja de forma abstrata ou no momento efetivo de aplicao),
problemas estes que devem ser enfrentados caso se pretenda levar o direito a
srio. Alguns dos temas a serem discutidos nesta etapa so: o problema das
lacunas normativas; o problema do conflito de normas; e o problema das
indeterminaes lingsticas. Esses problemas podem ser organizados,
respectivamente, dentro do que passa a ser denominado como: a questo
ontolgica, a questo lgica e a questo semntica.
A percepo de que existem lacunas normativas, antinomias e
indeterminaes lingsticas no direito conduz naturalmente ao tema da teoria da
argumentao jurdica. A argumentao jurdica necessria na medida em que os
problemas inerentes s regras jurdicas fazem com que em certos casos no exista
uma nica soluo correta (ou porque no existe nenhuma ou porque existem duas
ou mais solues conflitantes). Em determinados momentos, o direito
simplesmente se esgota. Pavimentado o caminho para a teoria da argumentao
jurdica, algumas consideraes gerais sobre a mesma so realizadas.
O captulo seguinte aborda um outro problema que deve ser levado em
conta se pretendemos levar as regras a srio. Trata-se de um problema de natureza
diferente: a regra existe, no est em conflito com nenhuma outra regra do
sistema, porm por alguma razo, gera um resultado insatisfatrio. o chamado
problema pragmtico, ou problema da aplicao infeliz, que ocorre porque as
regras so necessariamente sobreinclusivas ou subinclusivas. Nesse ponto da tese
tambm discutida a idia de regras como relaes entre o seu significado
autnomo e as suas justificaes subjacentes. A tomada de conscincia de que a
mera subsuno de certos casos concretos sob certas formulaes normativas pode
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Captulo 1. Introduo
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gerar conseqncias indesejadas, nos leva prxima parte do trabalho: a
discusso acerca dos diferentes modelos de tomada de decises como os agentes
decisrios usam ou deveriam usar as regras no contexto de razo prtica para
justificar suas decises. Aqui sero investigados: a idia de regras como razes
para a ao; a idia de razes excludentes, entrincheiradas ou opacas; o modelo de
deciso baseado em regras; o modelo de deciso particularista (all things
considered); o modelo de deciso particularista mas sensvel s regras; e o
positivismo presumido.
Vrias subteses so defendidas ao longo do trabalho, como por exemplo: a
idia de que o positivismo jurdico no se confunde com o positivismo ideolgico;
a idia de que existe uma primazia do positivismo conceitual em relao a outras
teorias sobre o direito; a idia de que o positivismo conceitual normativamente
inerte; a idia de que casos difceis existem, na medida em que o direito apresenta
lacunas normativas, intoxicaes lingsticas, conflitos normativos e resultados
no desejados; a idia de que regras so relaes; e a idia de que existem vrios
modelos de tomada de decises, todos eles plausveis na prtica jurdica. A tese
central e que articula vrios desses pontos consiste na defesa de que, em funo da
inrcia normativa do positivismo conceitual, a prtica jurdica consiste em um
terreno de opes diferentes sobre como trabalhar com as informaes
identificadas pela regra de reconhecimento. A prtica jurdica est imersa em
opes, todas elas concebveis e compatveis com o positivismo conceitual, mas
nem todas elas compatveis com a noo de regras como relaes. A rocha dura
(WITTGENSTEIN, 1996) da prtica jurdica (o ponto onde a p entorta nas
explicaes das decises jurdicas) constituda pelas nossas escolhas por um ou
outro modelo de tomada de decises.
No se pretende enfrentar espantalhos ou falsos adversrios no presente
trabalho; ou seja, acredita-se que realmente existem algumas objees s idias
defendidas aqui. Entretanto, mesmo supondo o contrrio, mesmo que a maioria
esmagadora dos envolvidos na prtica jurdica concordasse com os pontos
discutidos aqui, fato que raramente se debruam sobre esses problemas de uma
maneira to sistemtica. A discusso aqui desenvolvida e apresentada pode lanar
luz a uma srie de questes que normalmente so enfrentadas de uma maneira
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Captulo 1. Introduo
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intuitiva e no lapidada. O atuante na prtica jurdica, ao ler os captulos desta
tese, pode reconhecer os problemas com os quais lida no seu dia-a-dia e pensar no
tipo de opo que feita por ele muitas vezes sem se dar conta. Como nos ensina
Locke, na Carta ao Leitor, no Ensaio sobre o Entendimento Humano (1973),
consiste em suficiente ambio pretender limpar um pouco o terreno para remover
o entulho que se encontra no caminho do conhecimento. Conforme diz Locke:
A comunidade cientfica de nossa poca no se encontra sem um arquiteto, cujos notveis desenhos, impulsionando o progresso das cincias, deixaro monumentos permanentes posteridade. Mas nem todos devem almejar ser um Boyle ou Sydenham, e numa poca em que so produzidos mestres como o notvel Huygenius e o incomparvel Newton, e outros da mesma estirpe, consiste em suficiente ambio ser empregado como um trabalhador inferior, que limpa um pouco o terreno e remove parte do entulho que est no caminho do conhecimento (LOCKE, 1973, p.143).
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2 Algumas Proposies Fulcrais5 acerca do Direito: O Debate Jusnaturalismo vs. Juspositivismo
O presente captulo inicia abrindo espao para uma concesso. Conforme
salientam os jusfilsofos argentinos Carlos Alchourrn e Eugenio Bulygin, no
livro Normative Systems (1971, p.9), um modelo abstrato no pode reproduzir
toda a realidade, mas no existe nenhum aspecto da realidade que no possa ser
reproduzido em algum modelo. O direito uma dessas realidades extremamente
complexas, cuja essncia ou natureza no pode ser capturada por um nico
modelo abstrato. Da a pluralidade de perspectivas, movimentos e escolas tericas
que surgiram sobre o direito.
Como bem aponta Roger Shiner, em seu Norm and Nature - The
Movements of Legal Thoughts (1992), a palavra movimento possui dois
sentidos principais: (1) movimento no sentido de um grupo de pessoas com
objetivos e crenas em comum, ou um conjunto de propsitos compartilhados (ex:
Movimento dos Sem Terra), e (2) movimento em um sentido de deslocamento
ou variao de posio ou lugar, seja esse deslocamento literal ou metafrico. Em
relao ao primeiro significado, possvel destacar trs movimentos
paradigmticos que tm fornecido as lentes tericas a partir das quais o direito
analisado: o direito natural, o positivismo jurdico e o realismo jurdico. Em
relao ao segundo sentido, movimento como deslocamento ou variao de
posio, importante frisar que para que o movimento ocorra faz-se necessria a
existncia de foras responsveis pelo seu acontecimento.
5 A expresso wittgensteiniana proposies fulcrais (hinge propositions) utilizada de maneira livre, sem preocupao em ser fiel ao sentido wittgensteiniano em todos os seus aspectos. A expresso utilizada simplesmente para chamar ateno para o fato de que as proposies que sero tratadas neste trabalho so algumas das proposies bsicas sobre o direito, proposies em torno das quais giram as outras proposies jurdicas ou sobre as quais se acoplam as outras proposies a respeito do direito.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
21
Tradicionalmente, o que tem movimentado as diferentes teorias a
questo do erro, ou seja, uma determinada teoria ou perspectiva entra em cena
para apontar os erros que acredita ter identificado em outra(s) e substitu-la(s)
como a detentora da verdade ou a melhor apresentao do direito. Porm, a fora
propulsora ou mola mestra da filosofia do direito deveria ser o acerto e a preciso.
Cada um dos movimentos mencionados reconstri acertadamente alguns aspectos
da realidade jurdica6. Tanto o jusnaturalismo quanto o juspositivismo e o
realismo jurdico tm o seu mrito na iluminao do fenmeno jurdico e na
anlise do conceito de direito. A melhor forma de entender o que o direito, de
resgatar a sua natureza, de se fazer uma reconstruo racional do conceito de
direito ou realizar a transformao do direito de explicandum em explicatum , de
fato, por meio da investigao dinmica ou relao dialgica dos movimentos
mencionados. A filosofia do direito no esttica, mas uma conversa incessante.
Para usar a imagem sugerida por Shiner (1992): como se cada um dos
movimentos supramencionados estivesse na ponta de um elstico, e conforme o
filsofo comeasse a se afastar muito de uma das pontas na direo de alguma
outra, ele sentisse o elstico tensionando e puxando-o de volta.
Porm, no obstante ter-se aberto um espao para a concesso de que
todos os movimentos elencados contribuem para a elucidao do direito, o que se
pretende fazer , no prximo captulo, defender a primazia de um desses
movimentos: o positivismo conceitual. A primazia do positivismo jurdico, mais
especificamente, do positivismo jurdico conceitual, se manifesta em diversos
sentidos e dimenses. Para sustentar a primazia do positivismo conceitual e a sua
maior relevncia como cenrio para a discusso acerca dos casos difceis do
direito, faz-se necessrio, antes de qualquer coisa, distinguir o positivismo jurdico
do direito natural, bem como de outras verses do positivismo jurdico, como o
normativismo jurdico, o formalismo jurdico e o ceticismo tico. Essa
tarefa configura o escopo do presente captulo7.
6 s vezes, quando usamos a palavra direito, estamos falando de normas logicamente anteriores e eticamente superiores, que deveriam nortear as normas positivas; s vezes usamos a palavra direito para fazer referncia ao direito positivado; e s vezes a usamos para tratar da prtica jurdica, principalmente da prtica judiciria. 7 A distino entre o positivismo conceitual e o realismo jurdico ser abordada no prximo captulo.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
22
Trata-se de um lugar comum j consagrado, um topos recorrente, a
afirmao de que o epicentro ou a fora motriz da filosofia do direito se
consubstancia no debate positivismo jurdico / direito natural8. Recentemente,
vem ecoando no meio acadmico o mais novo clich de que a filosofia do direito
contempornea se caracteriza pela superao da dicotomia juspositivismo
/jusnaturalismo. Prova disso a alta produo de rtulos que visam a caracterizar
essa nova era da filosofia do direito: direito ps-moderno, ps-positivismo,
no-positivismo principiolgico... Embora seja comum a exposio a essas
formas de se conceber a filosofia do direito, o que raramente tem acompanhado tal
exposio uma anlise minuciosa das teses ou proposies que servem como
notas definitrias do jusnaturalismo e do juspositivismo. O caso grave. No se
trata apenas da falta de uma anlise rigorosa desses conceitos. Muitas vezes esse
cenrio conceitual foi construdo no apenas de maneira simplria, mas tambm
errada9, atingindo uniformidade, mas pagando o preo da distoro10. Diante
disso, a tarefa aqui proposta um esforo de dilucidao conceitual: sero
analisadas as teses fundamentais dessas duas correntes de pensamento sobre o
direito.
Como aponta o professor de Oxford John Gardner (2001), no artigo Legal
Positivism: 5 1/2 Myths, no mbito da argumentao filosfica, o que interessa
investigar so proposies ou teses. Talvez, no campo da histria das idias,
pensadores possam ser agrupados por temas, porm, na filosofia, um conceito ou
rtulo classificatrio s pode ser atribudo a um grupo de pensadores na medida
em que compartilhem as mesmas teses. Somente a partir de tal investigao
possvel clarificar sem distores os conceitos de jusnaturalismo e positivismo
jurdico que, de acordo com a concepo tradicional, so os conceitos-chave da
8 Como coloca Martn D. Farrel (1998, p.121): Com efeito: no centro mesmo da filosofia do direito aparece inexoravelmente a polmica entre jusnaturalistas e positivistas acerca do conceito de direito. 9 O cenrio tradicionalmente pintado de forma errada, exagerada e dramtica sobre o conflito direito natural/ direito positivo o seguinte: ... em um caso a moral tem relao com o direito, enquanto que no outro so dois sistemas normativos totalmente separados. Disso costuma seguir outra conseqncia igualmente dramtica: se for aceita a verso positivista, no existe maneira de avaliar moralmente o direito. D no mesmo o direito justo e o injusto, o correto e o incorreto, o bom e o mau; mais ainda: tambm se seguir que obrigatrio obedecer a qualquer direito, no importando seu grau de imoralidade (FARREL, 1998, p.122) . 10 A expresso vem de H. L. A. Hart distortion as the price of uniformity. (1998, p. 38).
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
23
filosofia do direito e que, de acordo com a as tendncias atuais, so as posies
que devem ser superadas.
2.1 Jusnaturalismo
De acordo com o filsofo do direito argentino, Carlos Santiago Nino
(1999, p.28), uma dissecao das vrias verses do direito natural nos levaria a
perceber que todos os chamados jusnaturalistas esto agrupados sob o mesmo
rtulo por defenderem as duas seguintes teses de maneira concomitante:
1) Uma tese de filosofia tica que sustenta que existem princpios morais e
de justia que so universalmente vlidos e acessveis razo humana11;
2) Uma tese sobre a definio do conceito de direito, segundo a qual um
sistema normativo ou uma norma no podem ser qualificados de jurdicos se
contradizem ou no passam pelo crivo de tais princpios.
A partir das duas teses expostas acima, poderia-se extrair uma terceira,
concernente questo da obedincia moral ao direito por parte dos juzes e
sujeitos jurdicos. Afinal, se os princpios morais e de justia universalmente
vlidos existem e podem ser conhecidos, e se o direito deve necessariamente se
identificar com esses princpios morais (verso forte da tese jusnaturalista), ou
pelo menos no contradiz-los (verso fraca da tese jusnaturalista), ento, no
seria sensato para os jusnaturalistas que os juzes e cidados no tivessem a
obrigao moral de obedecer ao direito. Para os jusnaturalistas, a expresso
direito justo um pleonasmo e a expresso direito injusto, uma contradio.
A obrigao de obedecer ao direito decorre do prprio contedo moral das normas
jurdicas (ou pelo menos da no ocorrncia de contedo imoral, na verso fraca).
Portanto, a terceira tese compartilhada pelos jusnaturalistas pode ser colocada da
seguinte forma:
3) Tanto os juzes quanto os sujeitos jurdicos tm a obrigao moral de
obedecer ao direito12.
11 Essa tese pode ser desdobrada em uma tese de carter ontolgico, acerca da existncia dos princpios morais universalmente vlidos, e uma tese de carter lgico ou epistemolgico, sobre a possibilidade de conhecimento desses princpios.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
24
Muito embora as trs teses supramencionadas caracterizem o substrato
comum a todas as vertentes do jusnaturalismo, legitimando o emprego desse
rtulo para classificar uma pletora de pensadores, ainda assim existem diferenas
significativas que justificam que se fale numa mirade de verses do direito
natural. Os jusnaturalistas divergem radicalmente acerca da origem ou fonte dos
princpios morais e de justia universalmente vlidos, ou seja, divergem acerca da
suposta natureza da qual emanam os princpios do direito natural. Alm disso,
mesmo quando concordam a respeito da fonte do direito natural, muitas vezes
divergem sobre o contedo que emana dessa fonte. Qual a natureza da qual se
extrai o direito natural? Teria provindo da vontade de uma divindade? Teria sido
fruto da razo humana? Seria a lei natural fisicamente co-natural a todos os seres
animados guisa de instinto (FASS, 1986, p.655)? Nesse ltimo caso, o homem
seria naturalmente (instintivamente) bom? Ou mau? Dadas essas diferenas
relevantes que se pode falar em um direito natural teolgico, um direito natural
racional, e um direito natural em sentido estrito.
O direito natural foi e continua sendo foco de diversas crticas13, porm
uma das acusaes mais contundentes ao jusnaturalismo foi elaborada pelo
jusfilsofo escandinavo Alf Ross:
Como uma prostituta, o direito natural est disposio de todos. No h ideologia que no possa ser defendida recorrendo-se lei natural. E, na verdade, como poderia ser diferente considerando-se que o fundamento principal de todo direito natural se encontra numa apreenso particular direta, uma contemplao evidente, uma intuio? Por que minha intuio no ser to boa quanto a dos outros? A evidncia como critrio de verdade explica o carter totalmente arbitrrio das asseres metafsicas. Coloca-as acima de toda fora de controle intersubjetivo e deixa a porta aberta para imaginao ilimitada e o dogmatismo (ROSS, 2000, p. 305).
E mais adiante Ross complementa:
12 Talvez a sustentao das duas primeiras teses e a concomitante rejeio da terceira no caracterize uma contradio lgica em sentido estrito, mas certamente consagra uma contradio performativa. 13 Para um corpo sistemtico de crticas ao direito natural, ver: ROSS, A. Direito e Justia, 2000. Ross critica o jusnaturalismo a partir de vrias frentes: pelo ponto de vista epistemolgico, psicolgico, poltico e jurdico.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
25
Um forte argumento em favor do ponto de vista de que as doutrinas jusnaturalistas so construes arbitrrias e subjetivas que a evidncia no pode ser um critrio de verdade. O que queremos dizer ao chamar uma proposio de verdadeira , obviamente, diferente do fato psicolgico de que a assero da proposio seja acompanhada por um sentimento de certeza (...). certo que um sentimento de evidncia acompanha muitas asseres verdadeiras, mas no h razo alguma para que o mesmo sentimento no esteja tambm associado a erros e falcias. A slida crena na verdade de uma proposio necessita estar sempre justificada e jamais pode ser sua prpria justificao (ROSS, 2000, p.305).
2.2 Juspositivismo
Tomados por uma conscincia aguda das crticas fulminantes ao
jusnaturalismo, vrios pensadores do direito aderiram a uma concepo positivista
e foram classificados como positivistas jurdicos. Entretanto, conforme
mencionado anteriormente, no mbito da argumentao filosfica, onde o que
interessa a investigao da solidez de determinadas teses, de nada adianta
agrupar pensadores por eixos temticos. Como diz Gardner, na filosofia no existe
condenao por associao nem redeno por associao (2001, p.199). Dizer
que os positivistas jurdicos so aqueles que se insurgem contra o jusnaturalismo
no suficiente e nada acrescenta de significativo em uma investigao filosfica.
Nesse plano, o que interessa so as teses defendidas pelos juspositivistas, e o
rtulo s pode ser aplicado na medida em que compartilhem as mesmas teses.
Mas se por um lado no existem maiores dificuldades no momento de
identificar as teses definitrias da corrente jusnaturalista, por outro, no se pode
dizer o mesmo das notas caractersticas do positivismo jurdico. A expresso
positivismo jurdico intoleravelmente ambgua (CARRI, 1994, p.321). A
extenso de significado dessa expresso comporta uma pluralidade de teses
heterogneas e, muitas vezes, incompatveis. O termo geral classificatrio
positivismo jurdico utilizado para se referir a posies inconsistentes, a
posies que muitas vezes foram explicitamente rechaadas por aqueles que so
considerados os principais expoentes do positivismo, e a posies que muitas
vezes foram defendidas pelos positivistas, mas no como teses essenciais ou
caractersticas da posio positivista (NINO, 1999, p.130) (trata-se de teses
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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incidentais ou contingentes). Tal espcie de ambigidade funciona como um
obstculo para a argumentao filosfica. O tipo de ambigidade que envolve o
rtulo geral classificatrio positivismo jurdico uma fonte de perplexidades.
De nada adianta criticar algum por ser um positivista sem complementar tal
afirmao indicando em que sentido ele um positivista. Na falta de tal
complementao, o rtulo existe em vo.
Em funo disso, muitos jusfilsofos canalizaram seus esforos na
tentativa de dissipar a nebulosidade que atrapalha uma viso mais clara do
conceito de positivismo jurdico. Tais pensadores primeiro tentaram mostrar quais
eram as possveis teses apresentadas de maneira oculta sob o rtulo positivismo
jurdico, para depois destacar quais dentre essas teses so as que realmente
podem ser consideradas como as teses mnimas e caractersticas do positivismo
jurdico. O professor de Oxford Herbert Lionel Adolphous Hart foi o primeiro a
impulsionar essa discusso com seu artigo, publicado na Harvard Law Review de
1958, Positivism and the Separation of Law and Morals. Mas este foi apenas o
pontap inicial nessa tentativa de lanar luz sobre esse conceito to marcadamente
ambguo. Como relata o professor Genaro Carri, em seu Notas Sobre Derecho y
Lenguaje:
Em 1960, em um seminrio levado a cabo em Bellagio, Itlia, sob o patrocnio da Fundao Rockefeller, um grupo de pensadores de primeira linha participou de discusses dirigidas elucidao de um tpico comum no campo da filosofia do direito: a anlise do conceito de positivismo jurdico. Entre eles se encontravam os professores Norberto Bobbio, da Universidade de Turim; Herbert Hart, da Universidade de Oxford; Alejandro Passarim dEntrves, da Universidade de Milo; Alf Ross da Universidade de Copenhague; Renato Treves, da Universidade de Milo, e vrios outros estudantes mais jovens, norte-americanos, italianos e ingleses (CARRI, 1994, p.322).
As discusses realizadas nesse encontro de estrelas da jusfilosofia e as
contribuies posteriores inspiradas no esprito de Bellagio representam
conquistas importantes:
Algumas das clarificaes alcanadas tm valor permanente. Passaram-se a ver com nitidez questes que, at ento, haviam sido submetidas a um tratamento confuso ou inadequado. Pela primeira vez foram feitas e elaboradas distines esclarecedoras, tornando assim inteligveis muitas das coisas encobertas por um uso pouco cuidadoso do rtulo positivismo jurdico. Desse modo, fez-se
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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possvel apreciar o grau de correo de crticas feitas indiscriminadamente, a partir de distintos pontos de vista, ao positivismo jurdico (CARRI, 1994, p.322).
Em sintonia com o esprito de Bellagio, na tentativa de elucidar vrias
dvidas a respeito da expresso positivismo jurdico, ser feita uma
reconstruo das principais conquistas oriundas dos trabalhos que surgiram
durante e depois do seminrio ocorrido na Itlia. A reconstruo que ser
empreendida utiliza como pedra de toque os seguintes trabalhos: Derecho y
Lenguaje (1994), livro de Genaro Carri; Introduccin al Anlisis del Derecho
(1999), de Carlos Santiago Nino; o artigo de Martn D. Farrel, Discusin entre el
Derecho Natural y el Positivismo Jurdico (1998); e o artigo Legal Positivism: 5
1/2 Myths (2001), de John Gardner. Esses trabalhos primam pela clareza e
preciso com que distinguem as principais teses atribudas aos positivistas
jurdicos por seus opositores como sendo notas essenciais dessa posio, das teses
que so genuinamente compartilhadas por todos os positivistas.
2.2.1 O Positivismo Jurdico como Ceticismo tico
De acordo com Nino, uma das proposies que freqentemente atribuda
aos positivistas como constituindo o trao distintivo dessa posio a que sustenta
a tese do ceticismo tico. Esta proposio representa uma rejeio explcita
primeira tese dos jusnaturalistas14 e pode ser elaborada da seguinte forma:
1) Ou no existem princpios morais e de justia universalmente vlidos
ou, mesmo que existam, no podem ser conhecidos pela razo humana.
Entretanto, como observa Nino, essa no pode ser a tese distintiva do
positivismo jurdico, uma vez que no so todos os positivistas que aderem
posio ctica. Alguns autores, cuja classificao sob o rtulo de positivistas
jurdicos ponto pacfico, como Jeremy Bentham e John Austin, no podem ser
vistos como cticos em matria tica, j que sustentaram um princpio moral
14 Uma tese de filosofia tica que sustenta que existem princpios morais e de justia que so universalmente vlidos e acessveis razo humana.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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universalmente vlido: o princpio da utilidade15. Alm disso, mesmo aqueles
positivistas jurdicos que, influenciados por concepes filosficas empiristas e
pelos postulados do positivismo lgico (como Alf Ross e Hans Kelsen), adotaram
uma postura ctica em relao possibilidade de se justificar racionalmente a
verdade ou falsidade de juzos morais, no identificavam o positivismo com essa
posio16. Portanto, a tese do ceticismo tico deve ser descartada como uma
possvel candidata a expressar a essncia do juspositivismo. Como se isso no
bastasse para rejeit-la como a nota caracterstica da posio juspositivista, cabe
ainda apontar para uma outra deficincia dessa tese: ela nada nos diz sobre o
direito, apenas nega a existncia ou possibilidade de conhecimento de princpios
morais universais. A nica coisa que se pode inferir a partir da informao de que
algum ctico em matria tica a concluso de que no pode ser um
jusnaturalista (em funo da primeira tese que define o jusnaturalismo). Ainda
resta saber qual a sua concepo sobre o direito. Assim, faz-se necessrio abrir
mo da idia de que essa tese pode definir o positivismo jurdico. A tese do
ceticismo tico no nem necessria nem suficiente para circunscrever essa
posio.
2.2.2 O Positivismo Jurdico como Positivismo Ideolgico
Outras vezes, tem-se definido o positivismo como uma atitude valorativa
em relao ao direito posto (posited). Em outras palavras, os positivistas seriam
aqueles que adotam uma posio ideolgica acerca do direito positivo. Os
15 ... Bentham e Austin, que podem ser considerados fundadores do positivismo jurdico moderno, acreditavam na possibilidade de justificar racionalmente um princpio moral universalmente vlido do qual derivam todos os outros juzos valorativos: o chamado princpio da utilidade, o qual sustenta, substancialmente, que uma conduta moralmente correta quando contribui para incrementar a felicidade do maior nmero de pessoas (NINO, 1999, p.31). 16 Negar que a verdade ou a falsidade de juzos morais possa ser racionalmente estabelecida ou justificada por critrios objetivos no significa aceitar, do ponto de vista pessoal, que qualquer comportamento possa ser adotado em qualquer situao. Os juzos morais expressam sentimentos subjetivos e portanto no se pode falar na sua verdade ou falsidade. Os juzos morais no existem objetivamente no mundo, como os fatos e as coisas e, portanto, no servem como critrios cientficos de identificao do direito vlido. Como diz o jusfilsofo escandinavo Alf Ross: ... perfeitamente possvel, sem nenhuma auto-contradio, negar a objetividade dos valores e da moral, e ao mesmo tempo ser uma pessoa decente e um companheiro de luta digno de confiana contra um regime de terror, corrupo e desumanidade. E, logo em seguida, Ross explica que o ceticismo da sua posio positivista no se refere moral, mas sim lgica do discurso moral; no se refere tica mas sim metatica (ROSS, 2001, p. 21).
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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positivistas ideolgicos (rtulo utilizado por Norberto Bobbio e Carlos Santiago
Nino para classificar esses pensadores que transformam o positivismo jurdico em
uma posio ideolgica) sustentam que qualquer que seja o contedo das normas
do direito positivo, este tem validade ou fora moral obrigatria, ou seja, os
sujeitos jurdicos e os juzes tm o dever moral de obedecer ao direito positivo
independentemente do seu contedo.
O chamado positivismo ideolgico pressupe as seguintes teses:
1) Para que um determinado sistema normativo receba o nome de direito,
ou que uma determinada norma seja qualificada como jurdica, no necessrio
que passe pelo escrutnio de critrios ou testes morais. Para identificar uma norma
como jurdica e, portanto, como existente e vlida, devem-se investigar as suas
fontes e no o seu mrito.
2) Os juzes e sujeitos jurdicos tm a obrigao moral de obedecer ao
direito positivo. O direito positivo dotado de fora moral obrigatria.
Os positivistas ideolgicos (NINO, 1999, p.32) (ou positivistas normativos
[GARDNER, 2001, p.205], ou positivitywelcomers [GARDNER, 2001, p.205],
ou quase-positivistas [ROSS, 2001, p.19]), realizam uma fuso entre uma tese
puramente descritiva, que permite identificar e descrever o direito vlido, e uma
tese normativa ou prescritiva acerca do dever moral de obedincia ao direito. Aqui
camos no problema clssico da filosofia do direito e da tica: a questo
concernente possibilidade de se extrair o dever-ser do ser (o tradicional
problema da falcia naturalista). De acordo com os positivistas ideolgicos, o
direito, pelo simples fato de ser posto, tem mrito. Resta saber se esto
legitimados a derivar concluses normativas sobre o dever de obedecer ao direito
a partir do direito que .
De acordo com Carri (1994) e Nino (1999), a transformao do
positivismo jurdico em uma ideologia gera uma concepo incongruente e
equivocada. O positivista ideolgico, ao defender simultaneamente as duas teses
dispostas acima, est ao mesmo tempo dizendo que podem existir regras jurdicas
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
30
inquas (a primeira tese do positivismo ideolgico diz que as regras jurdicas
podem ser vlidas prescindindo de testes morais) e adotando a atitude do
jusnaturalista ortodoxo para quem elas no podem existir (a segunda tese sustenta
a fora moral obrigatria do direito). A diferena entre o jusnaturalista e o
positivista ideolgico que, enquanto para o primeiro o dever moral de obedecer
ao direito decorre do contedo moral das regras jurdicas, para o segundo, o dever
moral de obedincia ao direito decorre da validade do direito positivo. Os
positivistas normativos identificam validade e justia: o direito vlido
automaticamente justo.
Supor que o positivismo ideolgico sustenta uma posio neutra ilusrio.
Ao se exigir que os juzes (e cidados) se limitem a decidir de acordo com o
direito vigente, assume-se uma posio valorativa que sustenta que os juzes (e
cidados) devem levar em conta em suas decises um nico princpio moral: o
que prescreve a observncia do direito vigente e exclusivamente do direito
vigente. O positivista ideolgico, ao determinar que o direito, pelo simples fato de
existir, justo e deve ser obedecido, est privilegiando e optando por certos
valores, como a segurana e a previsibilidade, em detrimento de outros valores
que poderiam entrar em choque com estes. Ao mesmo tempo, est fechando as
portas para qualquer possibilidade de critica ao direito positivo17 pelos sujeitos
jurdicos e pelo judicirio. Essa a atitude que se revela no slogan: Gesetz ist
Gesetz (A Lei a Lei), que significa que toda ordem jurdica direito e, como tal,
quaisquer que sejam seu esprito e suas tendncias, deve ser obedecido (ROSS,
2001, p.22).
Todavia, difcil encontrar algum expoente do positivismo jurdico que
realmente sustente essa concepo18. Na verdade, alguns rejeitam explicitamente
essa possibilidade. O positivismo ideolgico no passa de uma caricatura do
17 Verdross qualifica essa atitude de Kadavergehorsan (obedincia estpida, no crtica)... (ROSS, 2001, p.20). 18 Certamente no se pode atribuir tal posio a pensadores como H. L. A. Hart, Alf Ross e Joseph Raz.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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positivismo jurdico19 e os principais caricaturistas so os jusnaturalistas e os
juristas prticos20. Apesar dos mais destacados positivistas no aderirem ao
positivismo ideolgico, essa a posio que com maior freqncia tem sido
imputada aos positivistas pelos jusnaturalistas. Eles atribuem essa tese aos
positivistas e vo critic-los por aderirem a ela dizendo que o positivismo serve
para legitimar qualquer regime de fora (ex.: nazismo). Tal argumento falacioso,
na medida em que os principais positivistas no defendem o positivismo
ideolgico: os jusnaturalistas deturpam as teses do positivismo jurdico para tornar
mais fcil a sua oposio21. Sendo assim, fica patente que o positivismo jurdico
tambm no se identifica com o positivismo ideolgico.
2.2.3 O Positivismo Jurdico como Formalismo Jurdico
Costuma-se tambm atribuir ao positivismo jurdico, como sua nota
caracterstica, uma certa concepo sobre a composio e estrutura do
ordenamento jurdico. Essa concepo denominada formalismo jurdico e
constitui-se das seguintes teses:
1) O direito composto exclusivamente ou predominantemente por
normas promulgadas explcita e deliberadamente por rgos legislativos e no por
normas consuetudinrias ou jurisprudenciais.
2) Esse sistema de normas possui as seguintes propriedades: O sistema
fechado, ou seja, o conjunto de normas promulgadas pelo legislativo exaustivo
do direito; o sistema completo, isto , no existem lacunas no sistema de
normas; o sistema consistente, o que significa que no h contradies e
antinomias normativas; e as normas do sistema so precisas, no existe nenhuma
19 No sei se algum autor j sustentou alguma vez a tese do positivismo ideolgico; o que posso dizer que o positivismo ideolgico uma caricatura do positivismo jurdico (FARREL, 1998, p.123). 20 Uma possvel sugesto para explicar a constante deturpao da posio positivista por parte dos juristas prticos, operadores do direito e professores de direito ser abordada no prximo captulo. 21 Esse tipo de estratgia argumentativa falaciosa conhecido como a falcia do espantalho (straw man fallacy). Ela consiste em defender ou atacar uma posio similar, mas diferente da posio defendida ou atacada pelos seus opositores. Primeiro a verso do seu oponente distorcida e depois se ataca essa verso deturpada. Ver: KAHANE, 1971, p.33-36.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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espcie de indeterminao lingstica, como ambigidades sintticas ou
intoxicaes semnticas como a vaguidade e a textura aberta da linguagem.
Em suma, o ordenamento auto-suficiente para oferecer para cada caso
uma nica soluo correta.
A partir disso, pode-se concluir que o formalismo jurdico caminha de
mos dadas com o positivismo ideolgico. O positivismo ideolgico determina
que os juzes devem aplicar e as pessoas devem obedecer ao direito vigente em
todas as circunstncias. O formalismo jurdico mostra como isso possvel: o
direito completo, consistente e preciso.
No entanto, o positivismo jurdico tambm no pode ser identificado com
o formalismo. Os principais positivistas contemporneos, como Hart, Carri, Raz,
Alchourrn e Bulygin, se destacam justamente por explicitarem as insuficincias
do sistema jurdico (mostrando a existncia indelvel de imprecises lingsticas e
antinomias no direito) e a necessidade de se recorrer, em certos casos, a critrios
que esto fora do direito (critrios que no contam como direito vlido) para
justificar uma deciso jurdica22.
2.2.4 O Positivismo Jurdico como Positivismo Conceitual
Se filsofos do direito como Bentham, Austin, Kelsen, Hart, Raz, Carri,
Alchourrn e outros no podem ser todos classificados como cticos, como
formalistas jurdicos, ou positivistas ideolgicos, ento o que justifica que todos
sejam agrupados sob um mesmo rtulo comum? Qual a tese compartilhada por
todos os jusfilsofos mencionados acima? Qual a tese que subjaz a toda e
qualquer verso do positivismo jurdico?
Trata-se da tese do positivismo conceitual, segundo a qual o direito no
deve ser identificado utilizando critrios valorativos, mas sim critrios fticos,
empricos, objetivos. O trao marcante do positivismo conceitual a neutralidade
22 Uma investigao mais especfica sobre os problemas inafastveis relacionados linguagem no mbito do direito ser realizada no captulo 6 desta tese.
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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com a qual possvel identificar e descrever o direito de um grupo social sem se
comprometer valorativamente com o contedo das normas jurdicas. A definio
do direito no est comprometida axiologicamente com as normas jurdicas
(MORESO, NAVARRO, e REDONDO, 2000, p.25). Desta forma, uma norma ou
um sistema de normas pode ser injusto e ainda assim ser qualificado como
jurdico (algo que no plausvel para a corrente jusnaturalista). O positivismo, na
sua essncia, um enfoque que no vai alm de estabelecer o que conta como
direito em uma determinada sociedade.
A proposio que expressa a tese do positivismo conceitual nada mais
nada menos do que a primeira parte da tese do positivismo ideolgico:
1) Para que um determinado sistema normativo receba o nome de direito,
ou que uma determinada norma seja qualificada como jurdica, no necessrio
que passe pelo escrutnio de critrios ou testes morais. Para identificar uma norma
como jurdica e, portanto, como existente e vlida, devem-se investigar as suas
fontes e no o seu mrito.
Tirando o ceticismo tico, que nem sequer representa uma tese sobre o
direito (trata-se apenas de uma tese acerca da existncia e possibilidade de
conhecimento dos princpios universais de moral e de justia), tanto o positivismo
ideolgico quanto o formalismo jurdico pressupem a tese do positivismo
conceitual. Alm disso, a tese do positivismo conceitual compartilhada tambm
pelos positivistas jurdicos que no so nem formalistas nem positivistas
normativos. Como resume John Gardner:
Aqueles normalmente conhecidos por constiturem as figuras histricas dominantes da tradio do positivismo jurdico Thomas Hobbes, Jeremy Bentham, John Austin, Hans Kelsen e Herbert Hart no convergem em muitas proposies acerca do direito. Mas, sujeitos a algumas diferenas de interpretao, eles convergem de forma unnime a respeito da proposio (LP)23. Em segundo lugar, a proposio (LP) aquela que positivistas jurdicos
23 A proposio (LP) aquela que foi descrita como sendo a proposio caracterstica do positivismo jurdico conceitual. Gardner a formula da seguinte maneira: (LP) Em qualquer sistema jurdico, se uma norma legalmente vlida, e conseqentemente se ela faz parte do sistema, depende das suas fontes e no dos seus mritos (GARDNER, 2001, p. 199). Gardner adota uma concepo ampla de fonte: tudo que no funciona como um critrio meritrio um critrio de fonte (GARDNER, 2001, p.200).
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Captulo 2. Algumas Proposies Fulcrais acerca do Direito
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contemporneos Joseph Raz e Jules Coleman creditam a si mesmos qua positivistas jurdicos e sobre cuja correta interpretao eles debatem quando discutem entre si qua positivistas jurdicos. Finalmente, o meu uso do rtulo condiz com o sentido literal do prprio rtulo. Em qu deveria acreditar um positivista jurdico, se no que as leis so positivadas (posited)? E isso o que, grosso modo, (LP) diz sobre as leis. Ela diz, para ser mais exato, que, em qualquer sistema jurdico, uma norma vlida enquanto uma norma daquele sistema somente em virtude do fato de que em algum tempo e lugar relevantes, algum agente ou agentes relevantes a anunciaram, a praticaram, a evocaram, a reforaram, a endossaram ou de alguma forma se engajaram nela. No se pode usar como objeo sua considerao como lei o fato de que era uma norma aberrante, na qual aqueles agentes nunca deveriam ter se engajado. De modo inverso, se nenhum agente relevante tivesse se engajado nela, ento ela no seria considerada como uma lei, muito embora possa ser uma excelente norma, na qual todos os agentes relevantes deveriam ter se engajado sem reservas. Como Austin notoriamente expressou: a existncia da lei uma coisa; seu mrito ou demrito outra (GARDNER, 2001, p.200)24.
24 Outra posio que no foi tratada no texto, mas que tambm pressupe a tese do positivismo conceitual a dos anarquistas. Os anarquistas defendem a primeira tese do positivismo ideolgico (que nada mais nada menos do que a proposio LP), mas se encontram no plo oposto da segunda tese defendida pelos positivistas normativos. Para os anarquistas, no importa o contedo das normas, pelo simples fato de terem sido postas, ou seja, por serem vlidas, no devem ser obedecidas.
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3 A Primazia do Positivismo Conceitual
Uma vez que as teses bsicas dos principais movimentos jusfilosficos
foram elucidadas, possvel ingressar nas consideraes sobre as vantagens do
positivismo conceitual, que, como j mencionado, se espraia em diversas
dimenses:
3.1 A nica Tese Compartilhada por Todos os Positivistas
A primeira vantagem do positivismo conceitual em relao s outras
verses do positivismo jurdico, e j foi explicitamente formulada no captulo
anterior. Correndo o risco de ser redundante, mas com o objetivo de resumir e
reforar aquilo que j foi dito, a tese do positivismo conceitual, segundo a qual o
direito identificado por meio de um critrio de fonte e no um critrio de mrito,
a nica tese genuinamente compartilhada por todos os positivistas jurdicos,
enquanto tais. Assim, a primazia do positivismo conceitual se d em funo da sua
autenticidade enquanto nota definitria da posio positivista. A posio do
ceticismo tico no compartilhada por todos os positivistas, e aqueles que
aderem a ela no a consideram necessria para que algum seja um positivista.
Alm disso, a tese do ceticismo tico nem sequer uma tese sobre o direito, mas
como o prprio rtulo indica, uma tese pertencente filosofia moral ou
metatica. J o positivismo ideolgico, assim como seu companheiro inseparvel,
o formalismo jurdico, no passam de caricaturas do positivismo jurdico. Mas,
ainda que sendo deturpaes do mesmo, incorporam no seu mago a tese do
positivismo conceitual. Assim, se o que se pretende tratar dos positivistas
enquanto um grupo, a nica tese legtima, capaz de descrever de forma fidedigna
aquilo que todo e qualquer positivista aceita enquanto tal, a tese do positivismo
conceitual.
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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3.2 Levando em Considerao a Importncia de Regras
A segunda vantagem do positivismo conceitual decorre de sua capacidade
de reconstruir algumas das nossas intuies mais bsicas sobre o direito. Nesse
sentido, tanto o positivismo quanto o jusnaturalismo apresentam uma primazia em
relao ao realismo jurdico. No toa que Tony Honord afirma que o
positivismo jurdico e o direito natural so os eternos finalistas na Copa do Mundo
da filosofia do direito25. O realismo jurdico e suas variantes contemporneas,
como o pragmatismo jurdico e o critical legal studies, esto sempre atrs, em
terceiro lugar, apresentando insights importantes, mas nunca chegando a ameaar
o reinado do jusnaturalismo e do juspositivismo. A razo disso o fato de que
ambas as teorias privilegiam a idia de regras na explicao do conceito de
direito. Assim como G. E. Moore, que identifica as proposies do senso comum
como sendo aquelas em que todos acreditamos e tambm temos certeza de saber
serem verdadeiras26, tanto o positivismo quanto o jusnaturalismo reconhecem e
partem do trusmo mais bsico acerca do direito para construir as suas teorias: a
idia de que o direito , mesmo quando no exaustivamente, um sistema de
regras27.
25 A imagem reproduzida no livro de Roger Shiner (1992). 26 A lista de trusmos de Moore (1980) dizia coisas do tipo: que existia um corpo humano vivo, que era seu, que nasceu em algum momento no passado; que teria existido continuadamente, desde o nascimento; que teria sofrido mudanas, tendo comeado menor e depois crescido ao longo do tempo; e que teria coexistido com muitas outras coisas que tinham forma e tamanho em trs dimenses com os quais ele teria ou entrado em contato, ou se localizado a diversas distncias dessas coisas, em momentos diferentes. 27 Shiner diz: Pr-filosoficamente, ou pr-analiticamente, existem no mundo leis, regras jurdicas, doutrinas jurdicas, instituies jurdicas e sistemas jurdicos. A filosofia almeja oferecer uma representao perspicaz dessas entidades como resposta s perplexidades sobre a sua natureza. A filosofia do direito, nesse sentido, no diferente da filosofia da cincia, filosofia da arte, ou filosofia da mente. A cincia e a arte existem, enquanto empreendimentos humanos, antes de qualquer tentativa dos filsofos de entender sua natureza. De forma um pouco mais controvertida, mas igualmente verdadeira, a mente existe anteriormente filosofia da mente, no sentido em que uma pessoa diz para a outra que sente dor ou o que ela est pensando, antes mesmo de qualquer tentativa feita pelos filsofos, sejam eles reducionistas ou dualistas, de entender o que significa existir mentes, dores e pensamentos. Assim sendo, teorias filosficas que rejeitam a existncia de entidades pr-filosficas devem ceder lugar para aquelas que assumem a existncia de tais entidades e procuram analisar, entender, ou interpret-las, mesmo que de forma reducionista. Logo, no caso presente, tanto o positivismo quanto o antipositivismo assumem diretamente a existncia do direito, de regras jurdicas, instituies e sistemas, apesar de cada um ter idias muito diferentes sobre como realizar a sua representao de maneira perspicaz. O realismo jurdico e os seus associados negam, se no a existncia, pelo menos o significado para a teoria do direito de regras jurdicas, doutrinas, instituies e sistemas. Portanto, seja qual for o valor do realismo jurdico enquanto uma teoria moral, poltica ou social, ele est destinado a ter menos importncia para a filosofia do direito (SHINER, 1992, p.5).
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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De acordo com os positivistas, o direito um artefato humano, o resultado
de uma escolha, conveno, ou prticas sociais convergentes. As regras jurdicas
vlidas so identificadas de acordo com um critrio de fonte28 e no de mrito. J
os jusnaturalistas adotam uma espcie de compromisso ontolgico dbio: por um
lado, admitem a existncia de regras postas por um critrio de fonte, por outro
lado, admitem uma realidade mais forte para um conjunto de regras logicamente
anteriores e eticamente superiores s normas positivadas. Assim, admitem um
hinderwelt ou back-world, um mundo atrs do mundo (no melhor estilo do
realismo platnico), que seria mais real do que o mundo perecvel e mutvel das
escolhas humanas contingentes. A seguinte passagem do j falecido ex-Arcebispo
Primaz do Brasil Cardeal Dom Lucas Moreira Neves mostra claramente como os
jusnaturalistas atribuem um papel importante s regras ao tratar da questo sobre a
natureza do direito:
em virtude do direito natural norma no escrita, mais inscrita com letras de fogo na conscincia de cada homem que heris e santos contestam, at com o sacrifcio da prpria vida, as violaes do direito, da justia, da verdade e do bem, da dignidade do homem29.
O trusmo mais bsico das opinies do senso comum sobre o direito, a
idia de que regras existem e devem desempenhar um papel importante na
explicao do conceito de direito, no compartilhada pelos realistas jurdicos30.
28 Para Hart, a prpria fonte do direito uma regra, a chamada regra de reconhecimento, conforme ser exposto no prximo captulo. Assim, a noo de regra central ou condio sine qua non para explicar o conceito de direito. O direito fruto de regras constitutivas de instituies e as instituies constitudas por regras produzem e colocam regras. 29 Fragmento de um texto publicado no Jornal do Brasil, intitulado Direitos Humanos, Direito Natural, de autoria de Dom Lucas Moreira Neves. Infelizmente, o documento uma fotocpia, e no foi possvel identificar a data da publicao. 30 Em primeiro lugar, importante deixar claro que o realismo jurdico no tem nada a ver com o realismo metafsico, realismo tico, ou qualquer outra posio filosfica classificada como realista ( para resolver essa ambigidade que Jerome Frank [1949], no artigo Legal Thinking in Three Dimensions, no Syracuse Law Review, sugere que o rtulo realismo jurdico seja substitudo por ceticismo construtivo). De certa forma, o realismo jurdico radicalmente oposto s outras posies realistas, j que os realistas jurdicos argumentam que os juzes no esto compelidos a identificar o que o direito por nenhuma fora externa s suas prprias preferncias (SCHAUER, 1998d, p.191). Ao contrrio do positivismo jurdico, que sustenta que a verdade das proposies jurdicas depende de fatos sociais ou institucionais, e do direito natural, que defende que a verdade no direito corresponde a uma ordem natural superior ao mero capricho do legislador momentneo, os realistas jurdicos clamam por uma nova atitude na anlise do direito. De acordo com eles, no devemos estabelecer um critrio a priori para decidir se uma proposio jurdica ou no verdadeira. Ao invs disso, sugerem que para entender a natureza e funcionamento do
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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Os realistas se caracterizam ou por rejeitarem a existncia de regras positivadas
(rule-nihilists31), ou pelo menos por menosprezarem a importncia das regras
enquanto peas-chave para explicar o fenmeno jurdico.
Os realistas oferecem um contraponto interessante viso dos
jusnaturalistas e positivistas. De acordo com eles, se queremos saber em que
consiste o direito, ento temos que prestar mais ateno quilo que de fato
interessa e que realmente merece ser objeto de investigao: a atividade dos
juzes. Para os realistas, se ns temos algum interesse em saber o que o direito,
para saber o que efetivamente pode acontecer conosco. Para responder a essa
pergunta, temos que adotar a perspectiva do homem mau e analisar a atividade
judiciria para saber como os juzes tm decidido os casos com os quais se
deparam. Os realistas privilegiam a questo da eficcia do direito. Conforme diz
Oliver Wendell Holmes (precursor do movimento realista):
Se voc quer saber o que o direito e nada mais, voc deve encar-lo como o homem mau, que se preocupa apenas com as conseqncias materiais que tal conhecimento permite prever, no como o homem bom que encontra as suas razes para agir, seja dentro do direito ou fora dele, nas mais vagas sanes postas pela conscincia. (...) Pegue a pergunta fundamental: o que constitui o direito? Voc vai encontrar alguns autores que vo afirmar que alguma coisa diferente daquilo que decidido pelas cortes de Massachusetts ou da Inglaterra, que se trata de um sistema da razo, que se trata de uma deduo a partir de princpios ticos ou axiomas admitidos, que pode ou no coincidir com as decises. Mas se ns adotamos a posio do nosso amigo, o homem mau, ns vamos descobrir que ele no d a mnima para os axiomas ou dedues, mas o que ele quer saber o que de fato faro as cortes de Massachusetts e da Inglaterra. Eu concordo com ele. As profecias sobre o que as cortes de fato faro, e nada mais pretensioso o que quero dizer com direito (HOLMES apud FRANK, 1931-1932, p.645).
No mesmo sentido, afirma Jerome Frank (um dos expoentes do
movimento realista):
direito, devemos realizar uma investigao emprica das atividades dos operadores do direito, principalmente da atividade dos rgos decisrios. Apenas para esclarecimento, as proposies jurdicas so as proposies sobre o direito, como, por exemplo: proibida a entrada de carros no parque. Dentro de uma concepo positivista do direito, essa proposio verdadeira se ela estiver de acordo com alguma regra do sistema legal que tenha passado pelo crivo da regra de reconhecimento. Por outro lado, dentro de uma concepo jusnaturalista, essa proposio verdadeira se estiver de acordo com os preceitos daquilo que considerado a ordem natural das coisas. 31 Hart diz que a rejeio ontolgica das regras, segundo a qual as regras legais seriam inexistentes, consagra uma posio absurda, que no merece ser discutida. O tipo de ceticismo que merece ser discutido aquele que subestima o papel das regras nas decises judiciais.
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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Existem algumas palavras (arte um bom exemplo) que talvez fosse bom abolir, se pudssemos, j que a sua vaguidade provoca disputas fteis, e s vezes rancorosas, sem fim. (...) Todavia, ao evitar, quando possvel, o uso de tais palavras escorregadias, desentendimentos podem ser reduzidos. Direito uma tpica palavra desse tipo. Suponha que sempre que surgisse uma disputa acerca do significado de direito no trabalho dos juristas prticos, algum entrasse no meio dos combatentes e dissesse, Por que no, ao invs disso, discutir o que as cortes fazem de fato? Essa substituio est justificada porque quase todo o trabalho do advogado gira em torno do que as cortes fazem (FRANK, 1931-1932, p.645-646).
Em suma, os realistas rejeitam a idia de que o direito consiste em um
sistema de regras previamente dadas (seja por alguma moral crtica, regra de
reconhecimento ou soberano humano). O que eles vo defender que o direito ou
bem o conjunto de profecias sobre o que faro os juzes, ou bem o que de fato
fazem os juzes32. Algumas crticas so normalmente levantadas em relao a
essas duas formas de se conceber o direito. Em primeiro lugar, a nica razo pela
qual conseguimos diferenciar um grupo especial de pessoas e reconhec-las como
juzes porque existem regras jurdicas que conferem certos poderes e
prerrogativas a elas. Portanto, a existncia de regras fica patente e continua sendo
um ponto central para explicar o direito. Em segundo lugar, talvez as pessoas,
advogados e cientistas do direito possam pensar como o homem mau, que apenas
presta ateno no que fazem os juzes para tentar prever o que pode acontecer de
fato. Porm, no faz sentido algum atribuir esse ponto de vista aos juzes. O juiz,
enquanto tal, no seu processo decisrio, no pensa no que o direito para saber o
que vai acontecer consigo mesmo, mas busca no direito a soluo para o caso em
questo. Portanto, para o juiz o direito no pode ser aquilo que vai fazer o juiz.
A definio do realista sobre o que o direito, um conjunto de profecias sobre o
que faro os juzes, em nada auxilia um juiz que est tentando descobrir o direito
para resolver um determinado caso concreto.
Dentre os vrios argumentos cticos em relao s regras jurdicas, um
deles se destaca como o mais interessante: como em qualquer sistema jurdico
desenvolvido existe um rgo judicial cujo poder de deciso supremo (a deciso
tomada por ele ser a deciso final), ento, mesmo que essa corte suprema no
32 Apenas para antecipar o que ser explicado adiante, os realistas afirmam que os juzes no aplicam as regras positivadas. O mximo que alguns realistas concedem que as regras convalidadas segundo o critrio de pedigree contam como apenas mais uma fonte de direito, entre diversas fontes possveis, e nunca se confundem com o direito mesmo.
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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recorra s regras jurdicas estabelecidas, nada poder ser feito, e as decises
desses rgos vo vigorar ainda assim. A afirmao de que a deciso tomada est
errada por no estar de acordo com as regras legais no gera conseqncia alguma
na prtica: os direitos e deveres decididos pela corte suprema no sero alterados,
ainda que no estejam de acordo com as regras legais. A concluso dos realistas
que adotam esse argumento a de que as regras jurdicas no tm um papel
fundamental no processo decisrio, e que o direito na verdade aquilo que os
juzes determinam como sendo o direito. Para os realistas, se o direito aquilo que
os juzes determinam como sendo o direito, se todo ato decisrio um ato de
criao do direito, ento no faz sentido afirmar que eles so falveis.
Desse modo, os realistas jurdicos, de forma consciente ou no, esto
atacando o princpio da legalidade, que constitui a base que sustenta o sistema
jurdico e o Estado de Direito, e que o torna legtimo. O princpio da legalidade
determina que as decises jurdicas no so arbitrrias, mas so decorrentes de
regras determinadas previamente dadas. Se as regras no tm fora normativa,
ento os rgos decisrios no aplicam o direito, mas criam o direito. A distino
entre os poderes legislativo e judicirio ilusria.
Para rebater esse argumento ctico, Hart faz uso de uma analogia na qual
ele compara o sistema jurdico com um jogo que tem regras de pontuao para se
determinar um vencedor. Quando determinamos um rbitro para o jogo, cujas
decises sobre a pontuao sero supremas, qualquer afirmao feita pelos
jogadores ou espectadores a respeito da deciso do rbitro ser irrelevante para o
resultado do jogo. Todavia, se o rbitro tiver um poder discricionrio absoluto,
isto , em todos os casos e no somente nos casos de penumbra, isso
descaracterizar o jogo. Afinal, o jogo s faz sentido se as suas regras so
preservadas: se o rbitro, num jogo de futebol, pudesse decidir que uma bola na
trave gol, que cada trs passes entre jogadores de um mesmo time gol, e assim
por diante, o jogo deixaria de ser futebol e se tornaria o jogo discricionariedade
do rbitro (scorers discretion). No jogo discricionariedade do rbitro a regra
de pontuao aquilo que o rbitro determinar como sendo um gol ser um gol.
Nesse jogo no faria sentido falar que o rbitro estava errado na sua deciso. No
obstante, tanto no futebol quanto no direito, apesar de o juiz ter a palavra final,
podemos afirmar que ele est errado. No porque a sua palavra a palavra final
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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que ele ser infalvel. O simples fato de podermos afirmar que o juiz est errado
demonstra que o direito no meramente aquilo que os juzes decidem. Como diz
Hart:
Ns somos capazes de distinguir um jogo normal de um jogo de discricionariedade do rbitro simplesmente porque a regra de pontuao, apesar de ter, assim como outras regras, a sua rea de textura aberta, onde o rbitro pode exercitar uma escolha, tambm tem um ncleo de significado determinado. desse ncleo de significado que o rbitro no est livre para se afastar, e que constitui o critrio de pontuao correta e incorreta, tanto para o jogador nos seus comentrios extra-oficiais, quanto para o rbitro nas suas decises oficiais. isso que torna verdade dizer que as decises dos rbitros, apesar de serem finais, no so infalveis. O mesmo verdade no direito (HART, 1998, p.144).
Hart diz que os realistas, cticos a respeito da importncia das regras no
processo decisrio, so muitas vezes absolutistas desapontados, que quando
descobrem que as regras no podem ser tudo aquilo que seriam no paraso
conceitual formalista, ou num mundo em que os homens so como deuses e
podem antecipar todas as combinaes entre fatos, chegam concluso extremada
de que no existem casos claros, mas apenas casos difceis (casos de penumbra)
(HART, 1998, p.139). Os realistas esquecem que apesar de muitas questes
jurdicas se encontrarem na regio de indeterminao semntica das regras, ainda
assim existem muitos casos que so facilmente classificados pelo ncleo de
significado das regras jurdicas. O erro dos realistas considerar que todos os
casos funcionam como casos difceis. Essa apenas uma viso parcial do direito.
A concluso a ser retirada dos pargrafos acima a de que a primazia ou
prioridade do jusnaturalismo e do juspositivismo em face do realismo jurdico se
d em funo de ambos valorizarem o trusmo mais bsico do senso comum
jurdico: a idia de que o direito constitudo por regras e de que elas so peas-
chave para a explicao do fenmeno jurdico. Os realistas, ao afirmarem que o
que importa o que os juzes fazem de fato, e que eles no precisam aplicar as
regras jurdicas previamente dadas (paper rules), esto menosprezando o papel
das regras na explicao do conceito de direito. Entretanto, a idia de que as
regras formam o ncleo daquilo que conhecemos como direito no a nica
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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intuio do senso comum jurdico33 (apesar de ser a mais bsica e a que mais salta
aos olhos).
3.3 Levando em Considerao a Diferenciao do Direito
Alm do trusmo j mencionado, o segundo ponto bsico compartilhado
pelo senso comum jurdico a idia da diferenciao do direito: o direito uma
esfera normativa que no se identifica, pelo menos no totalmente, com outras
esferas normativas. Em relao a esse ponto, podemos destacar a primazia do
positivismo jurdico conceitual face ao jusnaturalismo e ao realismo jurdico. Ao
contrrio do jusnaturalismo e do realismo jurdico, que so incapazes de dar conta
da diferenciao do direito, o positivismo jurdico conceitual o nico com o
potencial para tanto.
O positivismo conceitual, ao colocar que a existncia do direito depende
de um critrio de fonte, admite que a fonte pode estabelecer, como direito, um
conjunto de informaes extensionalmente divergente das informaes utilizadas
em outros mbitos de tomada de decises onde impera a razo prtica34, como a
moral, a poltica, etc... Dessa forma, o positivismo conceitual a nica teoria que
faz com que o conceito de direito seja capaz de funcionar como uma categoria
autnoma, socialmente relevante e til do ponto de vista analtico. Todos ns
acreditamos que as faculdades de direito ensinam coisas diferentes do que as
faculdades de cincias sociais e de cincias polticas, isso para no falar das
faculdades de administrao e medicina; aquilo que ocorre no mbito legislativo
diferente daquilo que acontece diante de um tribunal; o Exame da Ordem dos
Advogados e o Provo do MEC para os bacharis em direito testam um
conhecimento mais especfico do que outros testes de aptido; e as pessoas que
atuam na prtica do direito, de uma forma geral, costumam afirmar que retiram as
suas informaes jurdicas de fontes especiais como o dirio oficial ou as diversas
compilaes e organizaes de atos jurdicos preparados pelas editoras jurdicas
(SCHAUER, 1997a, p. 1081).
33 Assim como Moore tambm no restringe o seu rol de trusmos a uma nica intuio. 34 Uma questo importante aquela que caracteriza o motivo principal das disputas entre os positivistas: as fontes podem estabelecer critrios meritrios de identificao do direito ou no?
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Captulo 3. A Primazia do Positivismo Conceitual
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Apenas para aprofundar a discusso, quando se escuta que apenas 12,5%
dos candidatos foram aprovados no exame da Ordem dos Advogados de So
Paulo, isso significa que o restante dos inscritos deixaram a desejar em certos
aspectos. O mais provvel que os reprovados no deixaram a desejar em termos
morais ou polticos, mas sim porque no sabiam certas informaes jurdicas
relevantes. O fato de ser reprovado na prova da OAB no torna algum,
necessariamente, moralmente inapto nem mesmo significa, necessariamente, que
essa pessoa no domina certos mecanismos de raciocnio, como a induo e a
deduo. O mais plausvel que os candidatos reprovados simplesmente no
conheam o direito, que constitudo por um domnio limitado e diferenciado de
informaes (SCHAUER, 1997a). Se o que testado um conhecimento moral,
ento deveramos esperar ver atuando no direito apenas pessoas moralmente
qualificadas. Esse certamente no o caso. As pessoas provavelmente no
precisariam fazer cursos preparatrios especficos de direito penal, civil,
empresarial ou qualquer outro, se a prova testasse um conhecimento moral. Alm
disso, quando as pessoas dizem que a prova foi muito difcil, isso no quer dizer
que, do ponto de vista moral, as perguntas no tinham respostas claras. O fato
que aqueles que foram reprovados supostamente no esto aptos a entrar no
mundo jurdico porque no tm conhecimento de informao jurdica.
O jusnaturalista, ao colapsar os conceitos de direito e de moralidade,
exclui de forma categrica a possibilidade de o direito ser um campo diferenciado.
Para o jusnaturalista, chamar um sistema imoral de sistema jurdico, ou uma
norma injusta de norma jurdica cometer um erro conceitual. De acordo com
as teses do direito natural, direito e moral esto analiticamente entrelaados de
forma a priori. Afinal, de acordo com o jusnaturalista, a moral um critrio de
identificao do direito em todo e qualquer mundo possve