outubro2007

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ponto_e_virgula OUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7 *como você pode ver, a capa parece um tanto estranha... agora respira fundo e... vamos lá! bem-vindo ao devaneio! o porco A ORCA o MICTORIO , o RALO E A CODORNINHA

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Page 1: Outubro2007

ponto_e_virgulaOUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7

*como você pode ver, a capa parece um tanto estranha... agora respira fundo e... vamos lá! bem-vindo ao devaneio!

o porco

A ORCA

o MICTORIO,

o RALO

E A CODORNINHA

Page 2: Outubro2007

ponto_e_virgulaOUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7

ESCRITORESAdriana SeguroFernanda DutraJuliana Sakae

Luisa FreyMarina Almeida

Marina VeshagemMatheus JoffrePedro SantosThiago Bora

ESPECIALLuisa Nogueira Loch

EDIÇÃOAdriana SeguroMatheus JoffreMarina Almeida

DIAGRAMAÇÃOCarolina MouraFernanda DutraJuliana SakaeMaurício Tussi

CAPA Maurício Tussi

ARTE FINALJuliana SakaeMaurício Tussi

REVISÃOFernanda Volkerling

Lucas SarmanhoLuisa Frey

Marina VeshagemPedro Santos

Rodrigo Tonetti

;www.revistapontoevirgula.com

Florianópolis - SC

; ESPECIAL

TODA EDIÇÃO

Pedro Santos

Marina Veshagem

Marina Almeida

Thiago Bora

Matheus Joffre

Fernanda Dutra

Adriana Seguro e Luisa Frey

Carolina Moura

Entrevista

Causos&Coisas

Maurício Tussi

27

18

2504

24

21

17

14

12

10

06e seu script. Pronto pra filmar!

divaga fofuras infantis

conta do Faéco e do Saci

não vai para o céu!

foram ao Neco e trouxeram o bom samba

... e resolveu encostar o violão

ensaia 1 2 3 4 5 6

nem sabe direito o que fez

viaja no tempo, relembra o que passou

Francisco Bosco: ensaísta e letrista. E simpático (:

Orperat utat!!! Duiscil et, quam zzrit, velent do etum volortio odit at niam quis at, conulputet autat!?!?

Juliana Sakae07suas fotos e suas (novas) palavras

[ s u m á r i o ]

[email protected]

PROCON151

Page 3: Outubro2007

[ c a r t a a o l e i t o r ]

A lguém nos disse que um pouco de angústia faz bem, leva à reflexão. Foi por angústia que decidimos criar a ponto-e-vírgula, como uma forma de correr atrás das nossas

paixões jornalísticas. Mas nossas reflexões não tiveram fim no nascimento da

primeira edição desta revista, talvez elas tenham começado a amadurecer ali.

Neste sétimo mês, fazemos algo como uma auto-desconstrução. Depois de termos criado nossas próprias regras, nosso manual de redação, um semi-estilo, decidimos abandoná-los provisoriamente.

A ausência de critérios definidos à produção remete ao Projeto Piloto, publicação online que consideramos o embrião da revista.

Se de alguma forma retornamos, não é por negação a nossos êxitos, mas por que julgamos importante a reflexão e a auto-crítica. É assim, acreditamos, que desenvolveremos nossa prática jornalística.

Em outubro, a ponto-e-vírgula divide suas angústias, ques-tionamentos e idealismos (por que não?) contigo, leitor.

Page 4: Outubro2007

[Pedro Santos]

Abrimos em BLACK. CARACTERES: DROPS

FADE IN:

INT. CASA DE ANDRÉ/BANHEIRO – ANOITECER

ELE NO ESPELHO, FAZENDO A BARBA. Câmera fixa, cortes rápidos. Ele liga o chuveiro, espera dois segundos, entra no boxe. Corte. Pegando o xampu. Corte. Cabeça ensaboada. Corte. Plano médio.Desliga.

Sai enrolado em uma toalha. Corte. Ele de roupa enxugan-do os cabelos com a toalha. Corte.

INT. CASA DE ANDRÉ/SALA - ANOITECER

Já vestido, pega a carteira, o celular e um drops de bala. Fecha a porta e sai.

EXT. FESTA – NOITE

Ele com os amigos, conversando. Cerveja na mão (plano médio). Câmera atrás deles. Em primeiro plano, a cor dourada da cerveja. Ao fundo, ELA sentada em uma mureta, com duas amigas, conversando e tomando cerveja.

Jogo de olhares. Ele olha três vezes; ela, uma. Close nos olhos. Som alto. Ele sai para buscar mais cerveja.

DROPS

Pedro Santos

Outubr

4

por Pedro Santos

Page 5: Outubro2007

Enche o copo. Cumprimenta três pessoas no caminho, sem-

pre dando uma olhadela em direção à garota. Ela, in-

diferente.

Passa o tempo: pessoas dançando, bebendo. Ela, sempre

sentada. Jogo de olhares: ele sempre olha mais do que

ela. Pessoas indo embora. Festa acabando. De repente,

ele cumprimenta os dois amigos, dá uma última olhada

para a guria, que não corresponde. Ele sai. Vai embora,

andando sozinho, em direção a sua casa.EXT. RUA DESERTA, BEM ILUMINADA – NOITECâmera de frente. Ele andando, solitário, na calçada.

Rua deserta. Um carro vem correndo e pára. Três garotas

no interior. ELA está entre elas.ELAVem cá! Entra aqui!Sem hesitar, ele ENTRA. Banco de trás, senta no meio das

duas garotas. ELA simplesmente o beija. Em seguida, a

outra repete o gesto. André, entre as duas, sendo bei-

jado e agarrado.Corte. Ele andando, solitário, na rua. Corte. A cena no

carro de novo. Corte. Ele ENTRA em casa e deita na cama, um terço

do corpo para fora. A câmera se afasta lentamente em

direção à porta semi-aberta. FADE OUT.FIM.

5

;

Page 6: Outubro2007

O louco e a criança olham para o teto

*pintura Van Gogh “Girassóis”

;;

- Branco, branco...- Peraí, um ponto preto!- E o que é?- Ah, é uma mosca.

- Mosca, mosca... Tá aqui, achei!- O que diz?- Pequeno inseto do filo dos artrópodes, que tem um par de antenas. Excretam por tubos de Malpighi...

- Tubos... Eu também gosto de tubos.- Presta atenção! Olha, as aranhas são parentes das moscas!- Mas então, por que elas fazem teias para prender seus parentes?

- Ah, sei lá! Meu pai disse que parentes são chatos e só sabem pedir as coisas.- Vai ver é por isso... Mas seu pai tam-bém constrói teias pra pegá-los?

- Não, ele finge que gosta deles.- Ah bom... Mas o que mais tem aí em cima?- Hum... Tem uns buracos.- Não gosto de buracos...

- Por quê?- Quando eles tão perto são tão escu-ros... E eu não os conheço, parece que o medo mora lá dentro.

- E quando tão longe?- Aí o medo fica pequenino e dá uma curiosidade danada, uma vontade de ir lá!- Mas neste caso é bom!

- Não é, porque se está longe é quase impossível chegar lá.- Mas o buraco longe não é o mesmo que o perto?- É...

- Então, por que você quer o que não pode pegar, se há um igual do seu lado?- Não sei...- Olha, olha! Achei mais uma coisa!

- O quê, o quê???- Um nada.- Um o quê?- Nada.- Como assim?

- Olhe para aquele canto mais ali. O que você vê?- ... nada...- Então, o nada tá ali.- Mas como você sabe que ele tá ali se não tem nada?

- Tá vendo aquela sombra no canto?- Tô.- É o olho do nada que piscou pra mim.- Olha, tá se mexendo...- O quê?

- A sombra, o olho do nada.- O que parece agora?- ... um homem!- O que ele tá fazendo? - Tá andando.

- Pra onde?- Pro buraco. Vai vê ele tá curioso para saber o que tem lá também.- Mas qual buraco, o perto ou o longe?- O longe, né!? O perto dá medo.

- Tá saindo alguma coisa do buraco.- O quê?- Uma aranha, a parente da mosca.- O que ela tá fazendo?- Uma teia.

- O quê?- É, uma teia.- E fez o que com ela?

- ... enroscou no homem e puxou pro buraco...

6

por Marina Veshagem

Page 7: Outubro2007

do Lat. quererev.tr.,

querer não-querer.

s.f.,consciência de sentir-se acordado durante o sono.

do Lat. molev.int.,sentir a propriedade física de um objeto erroneamente.

“nomear é fazer ver, é criar, levar à existência”

Pierre Bourdieu

*fotos Juliana Sakae

7

por Juliana Sakae

Page 8: Outubro2007

s.f.,vontade involuntária de contrair os músculos do corpo;

op;espreguiçar.

s.f.,perceber uma parte do corpo como algo estranho a ele

s.m.,reação involuntária que transmite a sensa-

ção interior de pensar uma dada reação.

*fotos Juliana Sakae

8

Page 9: Outubro2007

s.f.,reprodução inconsciente de uma imagem fixa na mente. s.f.,

nó no peito que indica agonia profunda;ansiedade;Bot.,cada uma das peças do cálice das flores.

do Fran. trés penserconcentrar-se pontualmente;

visão atordoada pelo excesso de concentração.

adj.,perspectiva de visão alterada ao imaginar-se no corpo de outrem.

*fotos Juliana Sakae

;;

9

Page 10: Outubro2007

HISTÓRIA DO FAÉCO

o Faéco é meu pai. Ouvi essa história por toda a minha infância. Ele jura

que é verdade.o A Bruxa Gilda é, na verdade,

minha tia. Segundo meu pai ela era realmente uma bruxa, mas virou fada quando se casou. Ela andava em uma vassoura que não fazia

curvas, obrigando-a a descer cada vez que precisava mudar de direção. Minha tia nunca confirmou a história,

mas também nunca desmentiu.o Guilhermina era mesmo a

cozinheira da casa do meu pai, quando ele era criança.

Sempre a conheci como Lena, mas meu pai insiste em

chamá-la de Guilhermina. Ela também nunca disse que

era mentira.

Faéco era um menino muito sapeca. Ao longo de seus seis anos adquiriu uma capacidade de criar confusão

maior do que a de qualquer outra crian-ça. Por morar em uma cidade pequena, estava acostumado a brincar na rua, no quintal, sem se preocupar com nada. A única pessoa capaz de fazer com que Faéco ficasse quieto era a bruxa Gilda. Ela deixava o menino amarrado ao pé da mesa da sala, com uma corda que chegava apenas ao banheiro.

A bruxa Gilda não gostava de des-perdícios e, por isso, exigia que se trans-formasse os restos de sabão em novas pedras. É aí que a história começa.

Em um belo dia de sol, Guilhermi-na, a cozinheira da casa, estava mexen-do uma enorme panela com os restos de sabão enquanto Faéco brincava no quin-tal, subindo em árvores e pulando para assustar as galinhas. Quando o menino percebeu que Guilhermina tinha entra-do na casa, foi correndo bisbilhotar.

Por um descuido, Faéco caiu dentro da panela de sabão. O que ele não sabia é que a bruxa Gilda havia feito uma má-gica, que transformava em sabão tudo o que caia na panela. Faéco sentiu seu corpo ficar cada vez mais mole.

A cozinheira não percebeu que Fa-éco virou espuma e o jogou no ralo que dava no rio da cidade. Ele foi arrasta-

do pela correnteza, viu diversos peixes, todos muito coloridos e conversando alegremente entre si. Faéco tentou se comunicar, para avisá-los que era uma criança e precisava voltar para casa an-tes que a bruxa Gilda chegasse, mas cada vez que falava saiam várias bolhas e nenhum som. O menino estava cada vez mais assustado e tratou de se pren-der num galho para não ir mais longe do que já tinha ido.

Guilhermina estava desesperada, quando alguns peixinhos saíram da tor-neira para dizer que a espuma que veio da casa estava se comportando de modo estranho. Ela percebeu que Faéco virou espuma por causa do feitiço da bruxa Gilda. Então, pegou um pote de marga-rina e correu para o rio, guiada por um peixinho muito jovem, todo listrado de azul e a amarelo. Recolheu a espuma e a levou para o freezer. Aquilo tinha que dar certo, pois Faéco não podia passar a vida inteira como espuma.

Após algumas horas, o pote come-çou a tremer e, ao abri-lo, Faéco saiu com o olhar assustado de lá de dentro. A bruxa Gilda chegou, viu Faéco senta-do na mesa e Guilhermina preparando o jantar, como se nada tivesse aconte-cido.

Ufa - pensou Faéco - escapei de mais uma.

´

arte: Juliana Sakae

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Conto do Faeco por Marina Almeida

Page 11: Outubro2007

Certo dia, o Saci Pererê estava sentado na Mata do Japi, pensando em como poderia ir visitar seus parentes de

Botucatu, na serra do Tico Tico. Pererê foi logo atrás de seu primo, o Curupira.

Curupira ficou animado e aceitou o convite. Mas disse logo:

- Como vamos até lá? É muito longe e não dá para ir pulando numa perna só.

O Saci respondeu, com um sorriso de moleque levado:

- A gente vai pela trilha atrás do Vale das Fadas que é mais perto. Assim dá para ir pulando.

Então eles arrumaram tudo, se des-pediram dos outros moradores da Mata do Japi e foram viajar. Porém, o caminho era longo e eles se cansaram. Encon-traram uma cabana e decidiram parar.

- Quem mora aqui? - Perguntou o Saci.

- Olhe em cima da porta! Essa ca-bana é da fadinha Fadita, eu a conheço, mora lá no Vale das Fadas. É muito boa-zinha, mas não gosta de travessuras!

A cabana era toda arrumada: quar-to, cozinha, banheiro. O Saci tirou sua roupa e colocou no cesto encantado, to-mou um banho e depois foi para a cozi-nha comer os doces que o Curupira ain-da não tinha comido enquanto estava sozinho. Depois de comerem, deixaram todos os pratos e copos sujos na pia e fo-ram dormir. De noite, a fada Fadita apa-receu e com sua varinha bateu no cesto de roupa suja. De lá saíram estrelinhas

e as roupas ficaram limpas e cheirosas. Depois, a Fadita foi para a cozinha, ba-teu sua varinha novamente, dessa vez na pia, e pratos e copos ficaram limpos. Na manhã seguinte, os primos acorda-ram e viram que tudo estava arrumado. Tinha café, bolacha e leite para o café-da-manhã.

Alguns dias se passaram, até que o Saci disse:

- Vamos dar um passeio pela mata. Quero ver se consigo aprontar com algu-ma criança.

- A Fadita é muito boa, mas não po-demos fazer travessuras, se não ela nun-ca mais vem aqui – alertou o Curupira.

O Pererê deu risada e disse:- Isso é mentira, vamos logo.Eles subiram nas árvores, mexeram

nos ninhos dos passarinhos e trocaram todos os ovos: pegaram um ovo de caná-rio e foram colocar no ninho da pomba, pegaram o ovo da arara e foram colocar no ninho dos patinhos, deram nó na crina dos cavalos, entre outras traquinagens. Quando os animais descobriram, ficaram furiosos e contaram tudo para a Fadita.

No dia seguinte, o Saci Pererê acor-dou, viu que sua roupa e toda a louça da casa estava suja:

- Curupira, acorde logo e venha ver. A nossa roupa não foi lavada, a cozinha está toda suja e não tem comida para a gente.

Curupira disse que havia avisado que a Fadita não gosta de travessuras e que agora teriam que arrumar a casa.

A cabana ficou desarrumada e eles re-solveram voltar para a Mata do Japi. Avisaram seus primos de Botucatu que não iriam mais visitá-los e vol-taram. O Curupira prometeu nun-ca mais desobedecer a uma fada, mas o Saci não ligou para o que aconte-ceu e já voltou a aprontar das suas.....;

HISTÓRIA DO SACI o Essa história meu pai contava para os meus primos. Eles acreditavam e sempre que viam meu pai, saiam correndo, querendo saber o que o Saci tinha feito.o A Mata do Japi existe. Ela fica em Jundiaí (SP), onde eu mora-va antes de me mudar para Florianópolis. Da janela do meu aparta-mento dava para ver um pedaço da Mata. Sempre que tinha neblina, meu pai falava que era fumaça da chaminé da casa do Saci.o Além do Saci e do Curupira, a Mata do Japi abriga o Vale das Fadas e a Fábrica de brinquedos do Papai Noel.o Quando eu era criança, meu pai dizia que a Fadita passava a noite em casa e dizia para ele o que eu queria ganhar de presente. Mi-nhas amigas queriam dormir em casa, só para ver a Fadita.

ilustração: Alexandre Santos; arte: Juliana Sakae 11(continuando...)

Conto do Saci

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Lembrei do cheiro de Bíblia. Um cheiro que provavelmente não sinto desde que, aos 13 anos, em

meu vestido branco, dirigi-me ao altar em “confirmação à minha fé”. Vontade de lê-la de novo – o cheiro era bom. En-trei na igreja e reparei a pintura nova. Está bonita. Sempre foi gostosa, peque-na e aconchegante. É, senti saudades.

As notas agudas sempre molharam meus olhos; ouvindo o coral, encho-os de lágrimas. Lembro-me do tempo de dou-trina, que ia ao culto e cantava tais hinos todo o mês. Abria a Bíblia e sentia seu

cheiro, todas as semanas. Por que nunca mais voltei? Sinto-me bem. Aguardo que as palavras do pastor, o mesmo que me confirmara, confortem-me ainda mais.

“Largo é o caminho que leva para destruição, e muitos há que entram nele: Porque estreito é o portão, e aper-tado é o caminho que leva até a vida, e poucos há que são achados nele” (Ma-teus 7:13-14). Mas o momento etéreo desfez-se. No altar, montou-se uma tela. As palavras da pregação completam-se com slides projetados por um da-tashow, onde não é “ñ” e sempre é “s/”.

Mesmo antes de o Bento pôr um fim nisso, como luterana, nunca me preocupei com essa história de purgar. Até que, numa bucólica manhã, descobri um futuro bem pior

Revelacoes Divinass~

por Carolina Moura

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As próprias palavras do pastor me ofen-dem. Primeiro, ao culpar a “mídia” por tudo de mal que existe sobre a Terra – serei a mídia, querido pastor. Segundo, por se utilizar do detestável recurso des-ta que cita e condena: o sensacionalis-mo. Meninos de gravata e meninas de branco ouvem-no falar de barbáries e estupros no dia em que abraçam a reli-gião sobre a qual ele discursa.

E, se não bastasse, depois disso descobri que vou para o inferno. Porque só existem dois caminhos, e se você está no caminho largo, sister, you’re going to hell. Não adianta se esgueirar para a es-trada apertadinha: santificar o domingo é mandamento (pré-requisito para a área VIP) – e isso significa ir ao culto, toda a semana. Viro para o lado e sussurro a notícia ao ouvido de minha mãe. Nosso destino, após a morte, é certo.

Meu pensamento remete novamen-te àquele dia, com os cabelos enrolados. O mesmo pastor contara uma anedota – sobre morcegos, bem mais leve e adequa-da que a história trágica (para mim) dos

caminhos – para salientar a importância de continuar indo ao culto. No carro, em direção à festinha, meu pai corrigiu-o e disse que Deus não mora na igreja. Posso falar com Ele onde quer que esteja.

Desde então, e até antes disso, acreditei que Deus pode me ouvir em qualquer lugar. Não que eu tenha lhe dito muito. Hoje, na verdade, nem sei se acredito que Ele exista – e para mim ele tem letra minúscula. E neste dia, na igreja, quando meu irmão, morrendo de calor naquela camisa, “se confirma nes-ta fé”, descubro que não pertenço à ela.

Quando o pastor finalmente se cala, o data show exibe a letra da músi-ca cantada pelo coral. Ainda é bonito, as notas altas ainda me tocam. Mas nun-ca tanto quanto aquele agudo da solis-ta: provoca-me um arrepio, profundo, que nota alguma jamais me causara. Se Deus realmente mora lá e isso foi sua mão repreendendo-me, só vou saber quando morrer. E se for verdade, I’m so going to hell, sister. ;

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Rancho do NecoO samba e a amizade se cruzam em Sambaqui

por Adriana Seguro e Luisa Frey

fachada do Rancho.....................

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arte: Maurício Tussi

foto: canasvieiras.com.br

Domingo, seis da tarde. Neste fim de dia de inverno, o sol já se pôs faz tempo. Mas o friozinho não é

suficiente para esfriar ninguém. Na beira da praia, um pequeno rancho de pesca. Paredes de madeira, chão de pedra, uma pia para lavar as ostras e um bar - cujo balcão é um casco de barco – dividem o pequeno espaço com os equipamentos de som, instrumentos e banquinhos em roda. É impossível não sentir calor em meio ao samba, à cerveja e ao clima de amizade e descontração do Rancho do Neco.

Jeans, camiseta com uma despoja-da camisa verde musgo por cima, sorriso simpático e receptivo. Orlando Carlos da Silveira Mello, o Neco, é gaúcho de São Leopoldo e vive em Florianópolis há 37 anos. Músico profissional, dedicou-se a essa arte por dez anos, até o casamen-to e o nascimento dos filhos. Em busca

de uma profissão mais estável, tornou-se servidor público no ramo da informática.

Neco comprou, com seis amigos, um rancho de pesca no Sambaqui, em 1993. O propósito do barraco era o lazer. Depois, o local passou a ser uma socie-dade entre ele e o maricultor Lourenço da Rocha Silveira. De início, tentaram o cultivo de camarão. “O camarão é difícil por ser sazonal. Eu e o Lourenço fizemos cursos e começamos a produzir ostras”, explica Neco. Hoje, a produção é peque-na, apenas para manter o rancho cujo foco passou a ser outro: o samba. Como técnico em informática e maricultor, Neco nunca deixou morrer o gosto pela música. Gosto esse que dispensa re-quinte ou sofisticação. Há quatro anos, todo domingo é dia de roda de samba no rancho. O programa – que já é tradição – começou como uma reunião de amigos, o que ainda não deixou de ser.

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Neco (esq.) e Reizinho (dir.). Para Reizinho, o samba e a Bossa Nova voltam a ocupar espaço na música brasileira

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O samba no oeste da ilha catari-nense atrai um público diversificado. “O ambiente é muito gostoso”, é o que diz a professora de yoga Maria Lúcia Moraes, moradora do Sambaqui. Ela freqüenta o rancho também para trazer a estudante alemã Johanna Diekmann, hospedada em sua casa. Johanna morou um ano no Brasil e fala um português que im-pressiona pela quase ausência de so-taque. Surpresa ainda maior do que o samba no pé é a moça pegar o microfone e mergulhar no ritmo com tamanha inti-midade. É linda a cena do dueto entre a loira germânica e uma negra carioca.

No rancho é assim, quem quiser cantar ou se arriscar no violão, na per-cussão e no tamborim, está convidado a entrar na roda. “Todos que querem tocar têm oportunidade. A gente vai abrindo espaço, brincando. Lógico que a gente procura ensinar. Tivemos pessoas que começaram aqui e hoje estão se apre-sentando bem”, conta Neco.

A cantora Nice costuma vir a cada duas semanas. Depois de cantar ener-gicamente, com um sorriso expresso na voz, ela diz que acha o ambiente mara-vilhoso. “Quase todos os freqüentadores se conhecem. O Neco é muito meu amigo

e esse barraco aqui é tudo de bom!”. Ou-tro que é músico profissional e costuma dar o ar da graça aos domingos é o Rei-zinho. Aos 58 anos, o cantor e composi-tor toca desde os 20 e conta ter vencido diversos festivais. Para Reizinho, a ilha gosta de samba e quem gosta de sam-ba vai ao rancho. Além disso, os jovens estão retornando aos ritmos brasileiros: “O samba, a Bossa Nova; a música bra-sileira está voltando, graças a Deus”.

No barraco, não existe jeito certo de sambar. No início da noite, apenas alguns mostram o samba no pé. O clima esquenta e, aos poucos, mesmo os que apenas sacudiam o corpo timidamen-te, experimentam passos mais ousados. Pode ser em par, como a gafieira, ou so-zinho, com o tradicional remexer de cal-canhares.

Quando inaugurada, a roda reu-nia cerca de 20 amigos. O boca-a-boca trouxe novas caras, o que exigiu de Neco maior organização. Ele ressalta que o rancho não tem alvará para funcionar como estabelecimento comercial. “Não é um bar. É um rancho de pesca onde, aos domingos, a gente tira as coisas de dentro pra fazer essa brincadeira. O lu-cro é muito pequeno, e essa não é a in-

arte: Maurício Tussi

fotos: Adriana Seguro e Lusia Frey

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tenção.” Na porta é cobrada uma taxa de R$ 5,00, mas conhecidos têm a entrada liberada.

Como em toda festa, não poderia faltar comida e bebida. Para quem qui-ser algo tradicional - afinal trata-se de um rancho de pesca na beira da praia - a irmã de Lourenço prepara um delicio-so risoto de frutos do mar. Servida em uma cumbuca de barro, a farta porção é vendida a R$3,00.

A irmã de Neco – Alda Isabel – também ajuda na organização da fes-ta, quando a casa enche. Na porta, ela ajuda a recepcionar e identificar rostos conhecidos. A esposa, quando não vêm, está presente através de um quadro que deu ao marido. Na parede, logo atrás dos músicos, está pendurada uma caricatu-ra perfeita do gaúcho quase manezinho. Para fazer o desenho, o artista plástico Sérgio Honorato foi várias vezes ao ran-cho, sem Neco saber. A encomenda da esposa fez sucesso: “Fiquei muito emo-cionado com a surpresa”, conta.

Ao longo da noite, que a cada do-mingo fica mais longa, o próprio Neco assume o microfone, não só para can-tar. Os recados e comentários do anfi-trião são em tom de conversa, como se fosse uma reunião de amigos em sua casa. Canta uma de suas músicas, es-crita em homenagem ao amigo e sócio Lourenço. A composição é de palavras simples e ritmo contagiante: “Olha o jogo da canoa/ Olha o balanço do mar/ Cuida com o rabo de arraia / Que a vida te pode machucar...”. A saideira é repe-tidamente anunciada. A animação dos presentes não deixa o samba terminar. À meia-noite, Neco encerra cantando o hino de Florianópolis, acompanhado pe-los convidados.

A casa se esvazia aos poucos. Aca-bado o movimento, Neco senta para to-mar uma cervejinha, ouvindo os causos contados pelo amigo Reizinho. Satisfeito com a noite agradável, põe sua caricatu-ra debaixo do braço e vai pra casa.

Rancho do NecoR. Gilson da Costa Xavier, 2800Ponta do Sambaqui – FlorianópolisDomingo, a partir das 18hR$ 5,00

........................................ .sambaqui

ilha De Santa Catarina

. cenTRo

..............arte: Maurício Tussi

fotos: Adriana Seguro e Luisa Frey

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Aula de violão17

fotos: Thiago Bora arte: Fernanda Dutra

Começa com sol(sol é G)Começa com sol,vai

mordeu os dedose nunca mais tentou ;

por Thiago Bora

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[ e n t r e v i s t a ] 18

ponto-e-vírgula - O que você quis dizer com o título Banalogias?

Enquanto eu escrevia o livro, assistia aos epi-sódios do Seinfeld em DVD. Percebi que o Sein-feld que se relacionava mais imediatamente com meu livro era o da abertura do programa, quan-do ele, no palco, fazendo stand up comedy, cha-mava a atenção para uma determinada situação do cotidiano, que viria a ser o tema do episódio. A operação dele é a de estranhar o banal, des-naturalizá-lo: quando se repara no banal, ele se torna estranho, meio absurdo. Já o que eu fiz foi levar adiante esse estranhamento e dar o próxi-mo passo: explorar o banal, investigar as suas lógicas constitutivas. Ora, a lógica do banal não pode ser outra coisa que uma “banalogia”. Essa é a arqueologia conceitual do título. Além disso, agradou-me muito o eco, no título, de um ou-tro livro com que o meu guarda alguma proxi-midade, que é Mitologias, de Roland Barthes.

;- Por que usar a estrutura dos aforismos para alguns dos textos? Tenho um amigo, filósofo, que sempre me diz que eu sou um “moralista latino”. Atenção: ele não está me chamando de Jece Valadão! É que há uma tradição filosófica – a de Cícero, Sêneca etc. – cujos escritos primam pela enunciação de máximas morais, de pequenas “verdades” sobre a vida, a sociedade, a cultura, sem se preocupar com demonstrações, explicações, notas de rodapé etc. Eu concordo com meu amigo filósofo: como os moralistas, não me preocupo em provar nada, penso que a verdade é mais uma fulgurância do que uma adequação, meu compromisso é maior com o sentido do que com a precisão factual.

sentia que a escrita poética, como tal, se esgotara em mim

como os moralis-tas, não me preocupo em provar nada

Franscisco Bosco é

ensaísta, letrista e

simpático. Concedeu esta

entrevista à ponto-e-vírgula

via email para falar do

seu último lançamento, Banalogias

(Editora Objetiva, 206

páginas, R$ 32,90)

Francisco

Bosco

por Fernanda Dutra

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;- Você escreveu letras de música, poesia, prosa, tra-balhos acadêmicos...Que tipo de texto te deixa mais confortável e qual te exige mais? Atualmente, escrevo quase que só ensaios – curtos ou mais longos –, não tenho tido tempo mental de escrever letras de música e desde meu antepenúltimo livro, Da Amizade, de 2003, não escrevo mais poesia. Justamen-te, Banalogias é o resultado de uma equação envolvendo essas e algumas outras variáveis. Ele começou a ser fei-to em 2004, em meio a uma insatisfação minha com a produção teórica acadêmica que eu vinha desenvolvendo naquele momento. Eu publicara esse livro, Da Amizade, no ano anterior, mesmo ano em que defendera minha dissertação de mestrado. Este livro era um híbrido de poesia e fragmentos teóricos: havia poemas metalingü-ísticos, pequenos filosofemas e poemas narrativos; poe-sia e prosa encontravam-se aí indiscerníveis. Eu queria que o prosseguimento do meu projeto de escrita fora da universidade, fosse de algum modo uma continuação do que conseguira ali. Ao mesmo tempo, sentia que a escrita poética, como tal, se esgotara em mim. A partir daí a questão que se co-locou era a seguinte: como inventar um ensaísmo com características poéticas? Assim, desde o primeiro ensaio pensado para equacio-nar esse problema (“O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca”), Banalogias era e sempre foi um projeto de livro. Com o tempo, fui experimentando diversas es-critas, até encontrar aquilo que me pareceu o tom de-sejado. Esse tom é o de um ensaísmo que se aproxima de uma prosa teórica, uma espécie paradoxal de teoria concreta, isto é, próxima da vida, como costuma ser a poesia. Isso é o fundamental. A isso se acrescem outros ingredientes, como o compromisso com o prazer da lei-tura e certa dose de humor.

A ques-tão que se colo-

cou era a seguinte:

como inventar

um en-saísmo com ca-

racterís-ticas po-

éticas?

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; -Você foi desenvolvendo a sua escrita, consciente do que queria atingir? Há ca-sos de escritores muito jovens, como Rim-baud, que escreveram obras de qualidade ainda na adolescência. O escritor precisa ter maturidade em relação à escrita?

Na minha opinião, essa precocidade absur-da é um fenômeno improvável no nosso mo-mento histórico pós-vanguardas. Hoje existe um infinito arquivo de formas da literatura universal, em inúmeras línguas, facilmente disponível a todos que queiram conhecê-lo. A literatura tornou-se mais consciente como um todo, e não admite ingenuidades nem pa-rece permitir essas obras súbitas e revolu-cionárias. Hoje, empregando uma expressão de Haroldo de Campos (e subvertendo-lhe o sentido original), a arte se dá no horizon-te do provável. Não há mais a experiência do choque estético: não há mais, por exemplo, a vaia, que é seu correlato psicossocial. As vanguardas cumpriram sua função, que foi a de revelar que não se pode julgar, a priori, o que é ou não é uma obra de arte. A partir das vanguardas, todo material, todo suporte, toda forma pode ser arte. O que não signifi-

ca que caímos num vale-tudo crítico: apenas que todo juízo deve ser feito a posteriori. Isso posto, retomando o início de sua pergunta, creio que sim, o escritor precisa ter maturi-dade em relação à sua escrita, ou ao menos a escrita tem que ter maturidade em relação ao escritor. Em outras palavras: o escritor pode até não ser consciente do que faz, não ser um teórico, mas a sua escrita deve ter cons-ciência de si. Uma coisa é a intuição, outra a ignorância. De minha parte, me interessa muito a aventura da construção conceitual do livro, do labirinto de questões que temos que percorrer durante a sua elaboração. Esse livro particular, livro dentro do livro, me in-teressa tanto quanto ou talvez mais até do que o livro propriamente dito: pois trata-se da aventura de viver o livro, do que significa a escrita do livro em nossas vidas. É por isso que eu não tenho interesse, por exemplo, em escrever um Banalogias II: não haveria o labi-rinto. Posso até acabar por escrevê-lo, já que continuo fazendo textos curtos para revistas e jornais, mas não terá sido um livro sonha-do, apenas um livro publicado...;

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o escri-tor pode até não

ser cons-ciente do que

faz mas a sua

escrita deve ter

consci-ência de

si

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Da pedra no caminho à pedra no lagoNão só de poemas concretistas inteligentes, ou filosofia clássica, reflete-se sobre a vida. A diversão de jogar pedrinhas no lago, ou as pequenas coisas da vida, pode levar a reflexões tão interessantes quanto às de Drummond

Morte, vida, ciência, amor, Estado, sociedade: estamos atolados de

grandiosas questões filosóficas. Os gre-gos já pensaram em tudo, mas, surpre-endentemente, não paramos de pensar. Certamente, questões com densidade dramática levam à necessidade humana dos questionamentos. Mas a liberdade do pensamento guiou alguns homens a assuntos pequenos, de aparente super-ficialidade. Banais.

por Fernanda Dutra 2Barthes pensou na sociedade fran-cesa de sua época através de pro-

pagandas de sabão em pó e detergen-te, marcianos, brinquedos, bife com batatas, astrologia, o cérebro de Eins-tein; ensaios que fazem parte do livro Mitologias, de 1957. Nesse livro, Bar-thes desenvolve o conceito de mito: um discurso, isto é, uma fala. Nem tudo é mito, mas alguns objetos, idéias, perso-nagens, adquirem um significado além do funcional. A interpretação dos mitos era um dos objetivos da Semiologia, a ciência dos signos. Devido a suas ca-racterísticas, principalmente o signifi-cado implícito, os mitos poderiam ser explorados pela mídia, mas Barthes foi além do pensamento de manipulação de consciência.

ilustrações: Luisa Nogueira Loch

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43Seinfeld precisava de bem menos.

Para o humorista americano, entrar no supermercado era o suficiente. Em um de seus atos da stand-up comedy, ele nos faz notar um comportamento quase universal no supermercado. En-tramos, decididos, tudo o que vamos comprar está escrito no papel ou é repe-tido várias vezes mentalmente. Na pri-meira gôndola, o perfil decidido se esvai. “Quero mais um miojo? Preciso de mais leite?” Aliás, o leite é um dilema. Nunca se sabe quantas caixas de leite se tem em casa e comprar a mais pode ser um desastre, afinal, o período de validade é muito curto. Seinfeld tinha o costume de iniciar seus quadros com a expres-são “Have you noticed that...” (Você já reparou que... ?) e, a partir daí, cha-mar a atenção para algo do cotidiano. “A operação dele é a de estranhar o ba-nal, desnaturalizá-lo: quando se repara no banal, ele se torna estranho, meio absurdo”, explica o ensaísta Francisco Bosco.

O ensaísta e letrista Francisco Bosco não se contenta com fazer notar o

bizarro do cotidiano, mas não analisa somente os mitos. Tudo pode servir de ponto de início para uma reflexão, e aí entram tanto as grandes questões huma-nas quanto as sinopses e a acne. A filo-sofia de Bosco encontra Barthes e Sein-feld, sem medo do pódio intelectual em que se encontra o primeiro ou da massi-va popularidade do segundo. O mestrado e doutorado na área de Letras reforça o viés lingüístico das análises. No ensaio O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca, Bosco parte do recorrente diálogo entre cariocas que não se vêem há muito tem-po e prometem se ligar para desvendar traços da personalidade do carioca.

ilustrações: Luisa Nogueira Loch

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entrevista pág. 18

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56Não só Barthes, Seinfeld, Bosco ou Amélie

Poulain notaram as pequenas coisas do cotidiano. No entanto, essa filosofia que se inspira nisso não está catalogada ou rotula-da. Até mesmo por que isso seria uma forma de diminuir o pensamento desses filósofos, uma vez que o banal é o ponto de partida, mas não o de chegada.

Amélie Poulain aprecia toda a forma de pe-quenos prazeres. A personagem principal

do filme francês O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, de 2001, foi diagnosticada com proble-mas de coração quando pequena, o que a levou a viver em reclusão com os pais. Amélie, então, cria um novo mundo, onde pequenas coisas ganham importância sentimental. Enquanto Barthes, Seinfeld e Bosco racionalizam o banal, Amélie o sente. O filme chamou a atenção para o lado encantador das pequenas coisas e logo se tornou cult. A singularidade dos pequenos e ori-ginais prazeres colabora ao ego que deseja ser único e especial. Além disso, buscar uma outra visão no mundo caótico é uma salvação. O filme foi lançado no ano do 11/09.

ilustrações: Luisa Nogueira Loch

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Ah, como eu queria voltar aos tempos em que meus maiores problemas eram o oito e meio

em Matemática e quando a perninha do “éle” ultrapassava a margem supe-rior nos cadernos de caligrafia.

Ah, como eu queria voltar aos tempos em que batia o mini-bugue nos pneus ao redor a pista, e meu avô sor-ria e dizia: “Mais 10 voltas!”.

Ah, como eu queria voltar aos tem-pos em que cerrava os olhos ao sentar no carrinho do trem fantasma e saía de lá concordando com tudo que os outros fala-vam.

Ah, como eu queria voltar aos tempos em que gritava “gol” com todo meu fôlego, depois de meu pai me deixar marcar um no futebol de botão.

Ah, como eu queria voltar aos tempos do almoço de domingo na casa da vovó com a família toda reunida.

Ah, como eu queria voltar aos tempos do Natal com Pa-pai Noel e dos presépios feitos com um mês de antecedên-cia.

Ah, como eu queria voltar aos tempos das brincadeiras de rua: pega-pega, esconde-esconde, mamãe-da-rua e outras tantas.

Ah, como eu queria voltar aos tempos em que apostava com meus primos para ver quem ficava acordado até mais tarde, e todos capotávamos de sono sem haver um vence-dor.

Ah, como eu queria voltar aos tempos em que a segun-da-feira era colorida, bem como cada dia da semana; forman-do um lindo arco-íris.

Ah, como eu queria ser capaz de fazer essa singela re-gressão e sentir – ao menos por algumas 40 linhas – a felici-dade perene de uma criança.

Ah, como eu queria voltar aos tempos das li-ções da professora Helena e das travessuras cover do garoto propaganda do cigarrinho de chocolate.

Ah, como que queria voltar aos tempos em que conseguia compreender o latido de cães super as-

tros da TV.Ah, como eu queria voltar aos tempos

das minisséries japonesas e dos robôs gi-gantes que combatiam monstros devas-

todores de cidades inteiras. Ah, como que eu queria voltar

aos tempos do castelo do menino de 300 anos e do cavalete mágico do professor Tibúrcio .

Ah, como que queria voltar aos tempos dos conjuntos mu-sicais de cinco integrantes e do teclado eletrônico.

Ah, como eu queria voltar aos tempos das mil vidas do Su-

per Mário e do peculiar “glub” do Sonic na fase dentro d’água.Ah, como eu queria voltar aos tem-

pos em que ia escondido para o fliperama dirigir um Porsche conversível a mil ou baixar porrada no Street Fighter.

Ah, como eu queria voltar aos tempos dos Co-mandos em Ação e dos bonecos com articulações super resistentes.

Ah, como eu queria voltar aos tempos em que Literatura era se deleitar com os gibizinhos da Tur-ma da Mônica durante o verão.

Ah, como eu queria voltar aos tempos em que havia amizade entre quatro trapalhões e não uma guerra de egos entre dois atrapalhados.

Multimídia

por Matheus Joffre

Viagem ao tempo;

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foto e arte: Maurício Tussi

por Mauricio Tussi

tão especial

conta-me. conta-me o que há, que olhas ligeiramente perplexa. que vês? não me deixes morrer na angústia. preciso que me digas. mesmo que confuso, mesmo que fugaz. preciso desse instante

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foto e arte: Maurício Tussitão perto

não sei o que dizer sobre uma flor.

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Quando Julieta olhou para as estrelas, na terça-feira, decidiu que era hora de comprar caramelos. Gostava de mordê-los com força, como se lutasse,

e sentir os dentes brancos latejando. Sim, era hora de caramelos. Com a cartola na cabeça, passeava por uma rua do centro da cidade, em busca de uma confeitaria. Eu já sabia: aquela busca era inútil. Mas Julieta ignorava isso, ao que andou 40 minutos. Os brincos lhe pesavam a orelha, os sapatos sufocavam os pés, mas os dentes continuavam intactos, Julieta se irritava. Diante da urgente necessidade, Julieta mordeu as mãos finas, conseguiu que coubessem os cinco dedos na boca e admirou o sangue que aqueceu-lhe o queixo.

[ c a u s o s & c o i s a s ] 27

ilustração: Marc Bogo

uM BOM DIA PARA CARAmELOS

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;www.revistapontoevirgula.com