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OUTROS SUJEITOS, OUTROS FAZERES: A EDUCAÇÃO EM CONTEXTOS
DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
Painel prevê a apresentação de três pesquisas que analisam a relevância educação
escolar em diferentes contextos e enfatizam seu significado em espaços de privação de
liberdade. Na singularidade da prisão, instituição regida por normas rígidas e que acolhe
as diversidades, a educação na perspectiva emancipadora, se constitui como
possibilidade de humanização das pessoas. O primeiro estudo – Observar e entender a
paisagem da educação em prisões: um mapa sempre provisório – analisa que a educação
não pode ser anunciada numa lógica unidimensional, aprisionada em uma única
instituição específica – a escola, pois os processos educativos acontecem em diferentes
configurações, e que, se estamos diante outros sujeitos sociais – pessoas em privação de
liberdade – faz-se necessário ressignificar currículos, didáticas, materiais de ensino e
aprendizagem, na dimensão de redes e tramas, em tessituras que se relacionam
permanentemente. A segunda pesquisa – A escola ideal: o que alunos em privação de
liberdade têm a dizer? – discute os processos do que ensinar e como ensinar, em diálogo
com as especificidades do contexto prisional, e coloca em destaque, que o papel e a
tarefa do professor ganham dimensões diferenciadas, uma vez que ele está sujeito às
especificidades deste local de trabalho que exige atenção às regras e normas, mas, não
precisa (e não deve) reproduzir os mecanismos de controle da cultura prisional no
espaço escolar. O terceiro texto – Possíveis diálogos sobre relações étnico-raciais na
escola e na prisão defende que o racismo institucional que invisibiliza e inferioriza
mulheres no contexto escolar, pode ser responsável pelo perfil étnico-racial de mulheres
em situação de privação de liberdade, e discute o reconhecimento da escola como
possibilidade de conscientização de pessoas (negras e não negras) sobre os processos de
opressão.
Palavras-Chave: Educação Escolar na Prisão, Escola na Prisão, Práticas Pedagógicas
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
11785ISSN 2177-336X
POSSÍVEIS DIÁLOGOS SOBRE RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA
E NA PRISÃO
Camila Simões Rosa
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
Resumo
O presente artigo tece possíveis diálogos sobre duas pesquisas em contextos diferentes
sobre a temática de gênero e étnico-racial. A pesquisa de mestrado, voltada para a
construção identitária em mulheres negras, evidenciou nas práticas de escolarização as
primeiras manifestações de racismo individual quando tinham sua beleza
constantemente negada, e racismo institucional quando não se reconheciam nos
materiais didáticos e não receberam uma educação capaz de valorizar seus
pertencimentos étnicos-raciais. Discute-se a necessidade do reconhecimento do espaço
escolar como possibilidade de conscientização de pessoas negras e não negras sobre os
processos de opressão em relação à questão étnico-racial. Além disso, estabelece uma
relação que evidencia que o mesmo racismo institucional que invisibiliza e inferioriza
mulheres no contexto escolar é responsável pelo perfil étnico-racial de mulheres em
situação de privação e restrição de liberdade. O fato de mulheres negras estarem em
maior número no espaço prisional evidencia a atuação do racismo no sistema penal.
Nestas duas situações percebemos que as políticas públicas são absorvidas de forma
desigual por diferentes grupos étnico-raciais. O racismo institucional que se faz presente
na realidade de mulheres negras das duas pesquisas tem atuação diferente, mas marca
intensamente suas vivências. A mesma ideologia machista e racista que define padrões
estéticos sobre o corpo de mulheres negras, também é responsável pela seletividade no
sistema de justiça e sistema penal. É necessário, enquanto educadores/as, voltarmos
nossas atenções para os diferentes espaços onde a educação ocorre, reconhecendo as
diferentes formas de opressão e lutando por políticas públicas capazes de atender as
especificidades das populações marginalizadas.
Palavras-chave: Racismo institucional; Escola; Prisão.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
11786ISSN 2177-336X
O racismo institucional e as práticas escolares
O presente artigo apresenta desdobramentos da pesquisa finalizada de mestrado
sobre questões étnico-raciais e os caminhos que levaram a construção da pesquisa de
doutorado que trabalha a mesma temática num espaço diferenciado e muito necessitado
de visibilidade: o espaço prisional.
A atual realidade de desigualdade e injustiça frente à população negra,
evidencia, cada vez mais a necessidade de nos mantermos atentos/as a todas as
manifestações de racismo, sejam elas a nível pessoal ou institucional.
O trabalho de mestrado desenvolvido nos anos 2013 e 2014 na Universidade
Federal de São Carlos, intitulado Mulheres negras e seus cabelos: um estudo sobre
questões estéticas e identitárias discute o processo de construção identitária em
mulheres negras a partir da relação que estabelecem com seus cabelos. A importância
do estudo fundamenta e se justifica em discriminações relacionadas às questões de
gênero, principalmente étnico-raciais, que quando analisadas como construções sociais
causam prejuízos e conflitos na edificação das identidades das mulheres negras.
A pesquisa, que contou com a colaboração de cinco mulheres negras, buscou
responder à questão de pesquisa De que forma o cabelo marca a construção da
identidade na trajetória de vida da mulher negra?, utilizando como instrumentos
metodológicos a observação com registros em diários de campo, as entrevistas e a roda
de conversa.
O estudo teve como referencial teórico, autores da pedagogia da libertação
dentre os quais destacamos Enrique Dussel, Paulo Freire e Ernani Maria Fiori. Estes
referenciais nos possibilitaram compreender a América Latina, em seu contexto
histórico, social e cultural, permitindo a reflexão e análise das práticas racistas e
discriminatórias das quais os latino-americanos estão sujeitos.
Partiu-se da importância de reflexões sobre as relações étnico-raciais em nossa
sociedade a partir de um conhecimento histórico-social que fundamente e “justifique”
historicamente o racismo e as discriminações tão recorrentes em nosso meio. Não
podemos naturalizar estas práticas e continuar na crença de que vivemos em uma
sociedade democraticamente racial; é preciso desvelar os motivos que nos levaram a ser
uma sociedade racista e discriminatória, para, a partir disto, podermos buscar os
caminhos para a libertação.
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A opressão sustentada por teorias ideológicas eurocêntricas, desde tempos
remotos, contribuiu e ainda contribui para a existência de construções históricas
distorcidas e perpetuação de mitos que serviram como fonte de imagens estereotipadas
sobre os povos tidos como oprimidos, dentre os quais se podem salientar os da América
Latina.
Concordamos com Andrade (2006) sobre a importância em estudarmos a
recriação das culturas na sociedade latino-americana, pois esta tem reflexos na
construção do pertencimento étnico-racial de homens e mulheres negras. Temos que
observar que sempre se buscou uma cultura nacional ilusória que desconsidera a
pluralidade cultural do nosso país e o resultado disto é a perpetuação da ideologia do
branqueamento e do mito da democracia racial, o que fortalece ainda mais o racismo e a
discriminação racial contra negros/as.
Há a necessidade de grupos étnicos, constantemente oprimidos - como é o caso
da população africana e afrodescendente - se conscientizarem por meio de uma reflexão
comprometida e buscarem caminhos nas mais diversas práticas sociais para a libertação
e para o rompimento da dominação racial.
Fiori (1986), apesar de não tratar diretamente das questões étnico-raciais, aponta
importantes caminhos para pensar na importância de nos educarmos em nossas
diferenças de forma dialógica e crítica. O autor alerta que há uma consciência do mundo
num dualismo que promove a negação do sujeito, a intersubjetividade, deixando seu
reconhecimento e se tornando dominação da consciência, mas, apesar disto, afirma que
a coisificação total do homem não é possível porque a ele sempre existe alguma
subjetividade que permite sua desalienação.
Logo, a luta contra a dominação racial só se torna possível com o rompimento
estrutural para que surja o homem novo, e esta seria a verdadeira revolução: a
conscientização restaura o homem como sujeito que domina o mundo. O autor, que
entende a cultura como valorização do ser humano, aponta que para a libertação da
pessoa há necessidade de devolver sua posição de sujeito, rompendo com as estruturas
que o coisifica.
Ações para a libertação, voltadas para a construção de identidades positivas, não
podem, então, aceitar uma cultura que se faz alienada e alienante, porque esta é um
instrumento de dominação, o que explica uma postura sempre favorável dos agentes
dominantes em relação a ela.
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Ainda de acordo com Fiori (1986), a educação seria o ser humano e o que este
produz no seu mundo e a luta pela libertação seria a forma de como reverter o papel que
a educação tem instaurado, de apenas fortalecer o sistema de dominação. A
conscientização surge como a luta pela libertação, e como neste processo de dominação,
muitas vezes, somos levados a não considerar a estrutura vigente como promotora e
mantenedora de opressão, há necessidade de estarmos envolvidos e engajados numa luta
que busca avanços em prol da libertação de povos histórica e socialmente oprimidos,
pois somente assim, quebraremos as relações de poder que permeiam e escravizam
nossa sociedade.
A educação, nesse processo de conscientização, é a responsável pela obtenção da
condição humana. Dentro do processo de aprisionamento em que a América Latina se
encontra, torna-se imprescindível a conscientização dos povos que nela habitam. A
reflexão comprometida é a chave para a práxis da libertação, a ação necessária para que
o sistema de dominação seja rompido através da educação.
O encontro entre consciência e mundo é, de acordo com Fiori (1986), o
surgimento destes, pois:
Antes do mundo consciente, a consciência é vazio total: fora da
consciência do mundo, este é ausência sem nome. Juntos,
consciência e mundo ganham realidade. Um não se perde no
outro, perdendo sua identidade, identificam-se através do outro
(p. 4).
Haveria então, a premência do mundo ser significado por meio da consciência,
já que ambos - mundo e consciência - fazem parte de uma relação dialógica. A
conscientização seria a ação transformadora do mundo.
A pesquisa realizada, ao discutir questões estéticas com mulheres negras,
evidenciou alguns pontos importantes em relação a essa educação necessária para o
caminho de conscientização e transformação da realidade. Conversando com as
mulheres colaboradoras, um dos pontos de convergência das falas se refere à fase da
infância e às vivências que elas tiveram no contexto familiar e escolar.
Os resultados sobre evidenciam que as colaboradoras, ao analisar e refletir sobre
suas histórias, trouxeram questionamentos sobre o que significa ser uma criança negra
em nossa sociedade e quais os mecanismos de defesa e combate contra o racismo que
estas mulheres aprenderam desde muito jovem.
O contexto familiar é descrito por elas como espaço de respeito, diálogo e
valorização de sua raça e seus atributos estéticos. Esta situação se torna crítica e
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problemática ao ingressarem na escola. As colaboradoras da pesquisa apontam que
durante o ingresso no meio escolar vivenciam as primeiras dificuldades em ser menina
negra, principalmente por passar a frequentar um espaço onde a beleza negra e a cultura
africana e afrodescendente são marginalizadas ou negadas.
A instituição escolar se revela então como um espaço reforçador das situações
de desigualdade racial, e os relatos das mulheres evidenciam suas dificuldades em lidar
com as situações e práticas racistas sofridas por elas e as agressões verbais que recebiam
por serem negras e por terem cabelo crespo.
Além disso, percebemos que com graus diferentes de criticidade e militância,
nenhuma delas se sentia representada pelo currículo e pelo material didático e literário
que fizeram parte de sua formação escolar. Percebemos também que o fato de terem
pouco ou nenhum contato com outras pessoas negras durante a fase de escolarização
também foi prejudicial nos processos de construção identitária.
Assim como na pesquisa realizada por Gomes (2002), percebemos nas falas das
mulheres negras que a trajetória escolar tem grande influência no processo de
construção da identidade negra, e que na maioria dos casos a escola surge como espaço
que reforça estereótipos e representações negativas sobre o padrão estético de meninas
negras, não contribuindo para a educação crítica e transformadora.
Quando pensamos nas vivências da menina negra ao ingressar no meio escolar
ficam evidentes os processos de apelidação e outras práticas racistas sofridas por ela.
Figueiredo (2010) traz que os silêncios escolares frente à discriminação podem
influenciar negativamente no rendimento e na permanência da criança negra na escola, e
o mais agravante é que o posicionamento do silêncio frente a estas agressões ganha
significados ambíguos nas relações estabelecidas, podendo agravar ainda mais as
práticas racistas e discriminatórias nestes espaços.
Além disto, é importante observar que a cultura africana é muitas vezes
invisibilizada no meio escolar. Além da negação de seu pertencimento étnico e de sua
estética o espaço escolar, e principalmente os componentes curriculares, podem também
contribuir para a negação e/ou desvalorização da cultura e história africana, o que
agrava ainda mais a construção de identidade em meninos e meninas negras.
Nos relatos das mulheres colaboradoras percebemos que há um sentimento de
indignação, pois não se sentiam representadas nos materiais didáticos e não tiveram em
sala de aula acesso ao conhecimento de cultura e história africana e afro-brasileira.
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Silva (1999) nos traz que a invisibilidade da cultura e história africana, assim
como a inferiorização dos seus atributos, faz com que povos africanos e
afrodescendentes desenvolvam comportamentos negativos, “resultando em rejeição e
negação dos seus valores culturais, e em preferência, pela estética e valores culturais
dos grupos sociais valorizados nas representações” (SILVA, 1999, p. 22).
Conforme nos indica Brito (2011), o momento de aprovação da Lei 10.639/2003
uma das iniciativas impulsionadas no decorrer da década passada e que possibilita
avanços para o momento presente.
A Lei 10.639/2003, que, alterando a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional atualmente vigente, dispõe sobre a
obrigatoriedade de incorporação da temática do ensino da
história do continente africano e das culturas afro-brasileiras no
currículo das escolas de educação básica brasileiras, públicas e
privadas. Esse dispositivo legal, longe de expressar uma
imposição governamental de caráter autoritário sobre o trabalho
que se desenvolve no interior das escolas, sintetiza o acúmulo
de mobilizações históricas empreendidas pelo Movimento
Social Negro ao longo de sua trajetória histórica (BRITO, 2011,
p.58).
No campo educacional, refletir sobre os avanços desta lei é fundamental uma
vez que, conforme nos aponta Andrade (2006), o currículo escolar tende a construir uma
ideologia de superioridade e inferioridade dentro do nosso intercâmbio cultural. O autor
parte do entendimento de que não há dominância quando nos referimos à cultura, já que
todas têm seu valor e sua importância, e nos mostra que a depreciação de uma cultura é
tão forte que faz com que alguns questionem se suas raízes culturais têm importância na
construção do conhecimento na sociedade.
Pensar em uma educação libertadora conforme discutido em Fiori (1986) requer
o reconhecimento do espaço escolar como possibilidade de conscientização de pessoas
negras e não negras sobre os processos de opressão em relação à questão étnico-racial.
Nesse sentido, este artigo problematiza como políticas públicas, em diferentes contextos
– escolar e prisional – são importantes caminhos para pensar e caminhar no sentido de
libertação de povos marginalizados, como é o caso da população negra. Acreditamos,
assim,na educação como chave da libertação de práticas opressoras.
A atuação do racismo institucional
O desenvolvimento da pesquisa de mestrado trouxe importantes avanços na
compreensão da educação das relações étnico-raciais no contexto escolar.
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Compreendeu-se que a ausência da discussão sobre racismo e discriminações na
instituição escolar marcou de forma negativa a construção de identidade das mulheres
negras.
A escola surge como espaço para pensarmos na atuação do racismo institucional.
Conforme evidenciado por Moraes (2013):
O termo Racismo Institucional foi cunhado com o intuito de
ampliar o conceito clássico de racismo, levando-o para além do
escopo limitado do indivíduo. O conceito interpela as
instituições a se repensarem diante de sua seletividade racial em
relação a indivíduos e grupos, seletividade esta que opera de
forma estrutural na contemporaneidade, demarcando de maneira
inequívoca espaços e privilégios e solapando a plenitude do
conceito de dignidade da população negra (p.11).
Compreende-se então esta diferenciação entre o racismo individual que se
aproxima de experiências singulares vivenciadas pelos sujeitos por conta do seu
pertencimento étnico que é desvalorizado e inferiorizado, e o racismo institucional que
ocorre quando estruturas e instituições agem de forma diferenciada em relação aos
grupos étnico-raciais.
A analisar do estudo aqui apresentado sobre construção de identidade em
mulheres negras, possibilita compreender que estas mulheres, além dos racismos
individuais que sofriam, também eram vítimas em processos de racismo institucional,
como quando seus processos de escolarização não eram voltados para seus
pertencimentos étnico-raciais.
Juntamente com a realização deste estudo, houve possibilidade de vivências em
algumas atividades com discussões sobre a educação em espaços de privação e restrição
de liberdade. A possibilidade de crescimento acadêmico a partir de diferentes
experiências permite que possamos aprimorar nossas buscas e desenvolver pesquisas
cada vez mais comprometidas com a mudança da realidade social segregadora e
excludente.
Ao voltar olhares pautados nas discriminações de gênero e raça para o contexto
prisional, foi possível compreender que o mesmo racismo institucional que anula o
pertencimento étnico-racial negro na sala de aula, é também responsável pelo perfil de
mulheres que ocupam os espaços prisionais brasileiros. Nestas duas situações
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percebemos que as políticas públicas são absorvidas de forma desigual por diferentes
grupos étnico-raciais.
O sistema prisional brasileiro evidencia que as consequências do machismo e
racismo que definem o lugar da mulher negra na pirâmide social, também garantem o
espaço deste segmento étnico-racial de mulheres nas prisões. De acordo com o Infopen,
existem atualmente 34.058 mulheres encarceradas no Brasil, o que expressa cerca de
7% do total da população penitenciária brasileira. Em relação à cor de pele e
pertencimento racial destas mulheres 61% foram consideradas negras ou pardas – 16%
negras e 45% pardas, enquanto apenas 37% foram consideradas brancas.
Essa grande quantidade de negros encarcerados nos aponta que este grupo é tido
como alvo de controle para as instituições da segurança pública e da justiça criminal. O
sistema de justiça corrobora com este racismo institucional criando desvantagens em
relação ao curso dos processos judiciais. Os valores que justificam as práticas racistas
do país a partir de estereótipos estigmatizantes são utilizados por estas instituições para
justificar um olhar diferenciado para este grupo étnico-racial da população e suas
práticas são mais criminalizadas do que quando são cometidas por outros grupos.
Os dados são alarmantes, mas ainda assim as buscas em banco de dados de teses
e dissertações revelam que a temática da mulher negra em situação de privação de
liberdade é infimamente discutida. Porque a temática continua em zona de
invisibilidade?
É possível encontrar alguns caminhos para responder esta questão, a partir da
interseccionalidade - conceito da epistemologia feminista negra.
Crenshaw (2002), que inicia o debate sobre este conceito, discute a
discriminação étnico-racial marcada pelo gênero, evidenciando que, muitas vezes,
mulheres vivenciam discriminações e abusos dos direitos humanos diferente dos
homens. Daí a importância da incorporação do gênero no contexto das questões étnico-
raciais. Além disto, a feminista negra evidencia que outros fatores relacionados a
identidades sociais de mulheres, tais como classe, casta, raça, cor, etnia, religião, origem
nacional e orientação sexual, são diferenças que marcam discrepância na forma como
vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação. Estes elementos geram
vulnerabilidades peculiares de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem
desproporcionalmente apenas algumas mulheres.
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A autora defende a necessidade de incorporação do gênero na questão do
racismo como forma de integrar essas duas temáticas nas discussões de direitos
humanos. Gênero intersecta-se com outras identidades que contribuem para a
marginalização de grupo de mulheres de um determinado pertencimento étnico-racial e
considerar uma análise que englobe estas dimensões é fundamental. É necessário,
portanto, considerar as especificidades das mulheres negras que são marginalizadas nos
discursos sobre direitos.
O número de mulheres em situação de privação de liberdade tem crescido
consideravelmente, e isso nos alerta para um problema de gênero. Ainda assim, esta
realidade não é incluída na agenda dos grupos de mulheres, porque a questão afeta
apenas um subgrupo. Isso é o que Crenshaw (2002) chama de subinclusão.
A interseccionalidade é um caminho importante nos estudos sobre racismo
institucional, pois somente deste modo se torna possível a realização de análises
aprofundadas e a formulação de políticas públicas mais eficazes. A interseccionalidade
permite a compreensão de um problema a partir de dois ou mais eixos da subordinação,
tratando da forma como ações e políticas específicas geram opressões e promovem o
desemponderamento.
Algumas reflexões
Neste artigo apresentamos os possíveis diálogos entre uma pesquisa de mestrado
voltada para construção de identidade em mulheres negras e a pesquisa de doutorado
sobre a realidade prisional e o perfil étnico racial de mulheres. É possível compreender
que apesar de aparentemente se colocarem como realidades diferentes, o diálogo é
possível e importante.
O racismo institucional vivenciado pelas mulheres das duas pesquisas age de
forma diferenciada, mas marca intensamente suas vivências. A mesma ideologia
machista e racista que define padrões estéticos sobre o corpo de mulheres negras,
também é responsável pela seletividade no sistema de justiça e sistema penal. O
Racismo Institucional demonstra o fracasso das instituições, públicas e privadas, em
atuar de forma equânime com os cidadãos.
Ao compreender a educação presente em diferentes espaços para além dos
muros da escola, vemos a importância de educadores/as se comprometerem ao estudo
de outras realidades para assim poderem pensar não só em suas atuações docentes como
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também a atuação enquanto sujeito histórico, que por estar em constante movimento e
mudança, é ferramenta para a transformação da realidade social e luta pelo fim das
desigualdades.
Na luta de enfrentamento de práticas racistas e discriminatórias é necessário
voltarmos atenções para como o racismo se engendra nas instituições. Não se trata de
uma melhoria somente para a população negra – ao nos reeducarmos para as relações
étnico-raciais possibilitamos crescimento social independente de nosso pertencimento.
Referência:
ANDRADE, Paulo Sérgio de. Pertencimento étnico- racial e Ensino de História.
2006. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de São Carlos. São
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BRITO, José Eustáquio de. Educação e relações étnico-raciais: desafios e perspectivas
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CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da
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FIORI, Ernani Maria. Conscientização e educação. Educação e Realidade. Porto
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GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de
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MORAES, Fabiana. No país do racismo institucional: dez anos de ações do GT
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11795ISSN 2177-336X
OBSERVAR E ENTENDER A PAISAGEM DA EDUCAÇÃO EM PRISÕES: UM
MAPA SEMPRE PROVISÓRIO
Elenice Maria Cammarosano Onofre
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Resumo: O estudo que se apresenta parte da premissa da existência de espaços
educativos nas prisões, que assumem a contradição, uma vez que estas se caracterizam
como espaços de confronto, de luta e de resistência. Busca discutir: o que pode fazer a
educação escolar nesses espaços singulares? Que escola é essa? Como ali se ensina e
aprende? O recorte teórico estabelecido para a construção das reflexões ancora-se em
pesquisadores que defendem a escola como prática social relevante nos espaços
prisionais, pois é geradora de interações entre os indivíduos, enraíza, recompõe
identidades, valoriza culturas marginalizadas, promove redes afetivas e permite (re)
conquistar cidadania. Tomou-se como material reflexivo, dados coletados em
entrevistas realizadas com professores e estudantes, em investigação realizada no curso
de doutorado, e em registros sistemáticos, conversas e observações de vivências, em
cursos de formação continuada para educadores que atuam em espaços prisionais. As
análises evidenciam que, a educação não pode ser anunciada numa lógica
unidimensional, aprisionada em uma única instituição específica – a escola, pois os
processos educativos acontecem em diferentes configurações, com vistas a formar
pessoas capazes de ser sujeitos de suas vidas, conscientes de suas opções, valores e
projetos de referência. Por outro lado, conhecer as realidades que se desvelam e trazem
outros sujeitos para o cotidiano da escola, se constitui em desafio a ser problematizado
por nós, educadores – pesquisadores, conscientes de que as prescrições pedagógicas nos
aprisionam em explicações definitivas. Nessa perspectiva, o estudo evidencia que, se
estamos diante outros sujeitos sociais, há que se ressignificar currículos, didáticas,
materiais de ensino e aprendizagem, na dimensão de redes e tramas, em tessituras que se
relacionam permanentemente, uma vez que estamos diante de novas pedagogias.
Palavras-chave: Educação Escolar em Prisões, Processos Educativos na Prisão,
currículos e didáticas para outros sujeitos sociais.
Introdução e problema
Pensar a educação e os sistemas escolares na contemporaneidade, diante as
crises que permeiam o continente latino-americano, nos leva a problematizar o sentido
da educação, relacionando-a com o tipo de sociedade e de cidadania que se quer
construir. O debate sobre as questões educacionais vem sofrendo um esgarçamento, pois
tem sido, cada vez mais, reduzido aos processos de escolarização. No entanto, a
América Latina tem rica experiência de criação de práticas educativas e de produção de
conhecimento a partir da educação não escolar. É tempo de resgatar e trazer este acervo,
uma vez que a realidade educacional é heterogênea e plural, com desafios e alternativas,
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o que nos impele a buscar caminhos para não cairmos na armadilha do pensamento
único. A educação nas sociedades em que vivemos, complexas, contraditórias e
desiguais, se realiza em diferentes âmbitos, instituições e práticas sociais.
Um dos desafios do momento é ampliar, reconhecer e favorecer distintos
ecossistemas educacionais, diferentes espaços de produção da informação e do
conhecimento, de criação e reconhecimento de identidades, práticas culturais e sociais.
Concordamos com Candau (2000), que é preciso ter clareza que nos diferentes espaços
educativos diversas linguagens são trabalhadas, uma pluralidade de sujeitos interage,
trazendo suas experiências de vida, de maneira mais espontânea.
Nessa pluralidade e encontro de culturas a educação não pode ser anunciada
numa lógica unidimensional, aprisionada em uma única instituição específica. Os
processos educativos acontecem a partir de diferentes configurações, com vistas a
formar pessoas capazes de ser sujeitos de suas vidas, conscientes de suas opções,
valores, projetos de referência e atores sociais comprometidos com um projeto de
sociedade e humanidade.
A escola está chamada a ser, nestes tempos, mais que um lócus de apropriação
do conhecimento socialmente relevante (o científico). Trata-se de um espaço de diálogo
entre diferentes saberes e linguagens, de análise crítica, estímulo ao exercício da
capacidade reflexiva e de uma visão plural e histórica do conhecimento, da ciência, da
tecnologia e das diferentes linguagens. Para Candau (2000, p. 14), “é no cruzamento, na
interação, no reconhecimento da dimensão histórica e social que a escola está chamada
a se situar”.
Tomando nossas reflexões nesta perspectiva, concordamos com Candau (2000)
que a cultura escolar, a partir da ênfase na questão da igualdade e da afirmação da
hegemonia da cultura ocidental europeia, potencializou a ausência de outras vozes
presentes nas práticas escolares – dos grupos marginalizados da sociedade. A cultura
escolar plural incorpora contribuições de diferentes etnias e questiona os estereótipos
sociais, de gênero, entre outros, a configuração escolar como um todo, bem como o seu
diálogo com as demais práticas sociais do cotidiano com o intuito de construir um
processo educativo mais inclusivo e humanizado.
Na confluência desses apontamentos iniciais, assumimos, portanto, uma postura
de reconhecimento da escola como um espaço de cruzamento de saberes e linguagens,
em que as propostas educativas contribuem para a construção de possibilidades e de
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respostas aos desafios atuais. De igual forma, concordamos com Candau (2000, p. 16),
neste ponto de partida: “sem horizonte utópico é impossível educar”.
Mas, de onde falamos? Qual é o problema que tematiza este estudo? A hipótese
que norteia a investigação é que a escola na prisão, instituição singular porque se propõe
punitiva, que encarcera corpos e mentes, pode educar. A escola na prisão tem um papel
relevante na formação de uma população que vive à margem porque cresceu nas
margens de uma sociedade que exclui pobres, negros, analfabetos. São pessoas
invisíveis até cometerem algum crime, assim definido pelos grupos sociais aos quais
nunca pertenceram.
Neste ponto nos deparamos com algumas questões para refletir sobre o papel da
educação escolar no interior da prisão: a sociedade prende, majoritariamente, as pessoas
que estavam nela inseridas? A prisão é um espaço alheio à sociedade ou uma instituição
da sociedade? Não ocorrem processos de socialização entre as pessoas que vivem no
interior da prisão? O que pode fazer a educação nesse espaço singular? Que escola é
essa? Como ali se ensina e aprende?
Procedimentos metodológicos
Na construção das reflexões apresentadas neste texto, tomou-se como material
reflexivo, dados coletados em entrevistas realizadas com professores e estudantes, em
investigação realizada no curso de doutorado, os quais têm sido aprofundados em
desdobramentos de estudos, por meio de conversas informais e observações
sistemáticas, registradas em diários de campo, decorrentes de vivências com educadores
prisionais, em cursos de formação continuada. Ao longo dos anos de 2006 a 2015, a
inserção em escolas de unidades prisionais do estado de São Paulo e de outros estados
brasileiros, em atividades colaborativas com grupos de professores e de estudantes, tem
nos levado à busca de compreensões para a seguinte questão: sendo o ato pedagógico
delimitado por dois indicadores – o sujeito que aprende (em situação de privação de
liberdade) e o contexto (instituição fechada) –, como os professores e os alunos
significam a escola e as aprendizagens que ali ocorrem?
As reflexões apresentadas neste texto, conforme explicitado anteriormente,
buscam trazer algumas contribuições para as discussões sobre a educação escolar na
prisão, evidenciando que as dificuldades ali encontradas apresentam traços comuns com
qualquer espaço onde acontecem processos educativos. Respeitando a singularidade da
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11798ISSN 2177-336X
instituição prisão, com regras e normas rígidas, a escola, embora tenha que se adaptar a
elas, guarda as regularidades da Educação de Jovens e Adultos „da rua‟.
Pode-se afirmar que os processos de adaptação dos indivíduos ao sistema social
do cárcere não são plenos e encerram contradições, uma vez que os aprisionados
encontram e constroem formas de resistência e a educação não permanece neutra nesse
processo. Os estudos sobre educação de jovens e adultos em situação de privação de
liberdade têm evidenciado a possibilidade de se construir a escola nas prisões, enquanto
espaço diferenciado das prerrogativas carcerárias.
Importante destacar que existem dois grupos de aprendizagens próprios das
prisões: as regras oficiais (da instituição) e as regras não oficiais (dos próprios presos),
ainda que algumas dessas regras se sobreponham umas às outras “tudo isso é educação
da prisão, não a educação na prisão” (DE MAEYER, 2013, p. 42).
Vale destacar que este estudo, tem seu foco nas aprendizagens que acontecem
nas salas de aula (educação escolar na prisão), no encontro entre pares e com seus
professores, mas não podemos desconsiderar as regras específicas da instituição prisão,
carregadas por normas rígidas e que têm seus princípios ancorados na segurança. Isto
significa que a instituição escola está inserida em uma instituição onde tudo se controla,
inclusive o vestuário dos professores, o material didático de ensino, os conteúdos
veiculados.
O recorte teórico estabelecido para a construção deste texto vincula-se a estudos
que temos desenvolvido, e que se ancoram em pesquisadores que defendem a escola
como prática social relevante nos espaços prisionais, como os de Onofre (2002), Vieira
(2008), Serrado Júnior (2009), Julião (2009), Cardoso (2013), Carvalho (2014), Campos
(2015), entre outros. Esses estudos evidenciam que a escola, assim como as demais
práticas sociais ali existentes, é geradora de interações entre os indivíduos, promove
situações de vida com melhor qualidade, enraíza, recompõe identidades, valoriza
culturas marginalizadas, promove redes afetivas e permite (re)conquistar cidadania.
Inserida em um espaço repressivo, ela potencializa processos educativos para além da
educação escolar, evidenciando-se a figura do professor como ator importante na
construção de espaços onde o aprisionado pode (re)significar o mundo como algo
dinâmico e inacabado.
Da confluência dos estudos elencados e do mundo experiencial decorrente de
nossa trajetória de pesquisadora e formadora de professores que atuam em escolas em
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11799ISSN 2177-336X
prisões e de gestores de unidades prisionais, trazemos, ainda que timidamente, algumas
reflexões, sínteses analíticas realizadas nas discussões com esses atores do processo de
ensinar e aprender – os professores, os gestores, os estudantes das escolas – e com
estudiosos do tema, em encontros acadêmicos e em rodas de conversas reflexivas.
Discussões ou provocações?
As características da instituição prisão e a situação social dos sujeitos que nela
vivem, tornam imprescindíveis trazermos alguns apontamentos desse espaço onde a
escola está inserida, a fim de evidenciar a estratégia educativa que contempla a
complexidade da instituição. Como afirmamos anteriormente, a “sociedade dos cativos”
se organiza em função de regras e códigos rígidos, o que nos leva a supor que produz
nos indivíduos efeitos em sua convivência diária, nas concepções sobre a realidade e em
sua própria situação no âmbito da escola.
A prisão se coloca, portanto, como aparato que busca adequá-los para viverem
em condições antissociais de vida, carentes de autoconfiança, aparentemente inafetivos,
insensíveis, desprovidos de perspectivas futuras. No dizer de De Maeyer (2011) não há
preocupação em (re)educá-los, pois o objetivo é o de não lhes ensinar nada para se estar
bem seguro de que nada poderão fazer ao sair da instituição. Tal situação pode, nessa
perspectiva, tornar a prisão um ponto de referência para eles, que acabam por
estabelecer vínculos com o aparelho carcerário, fazendo desse espaço seu território de
existência.
O que estamos a propor significa ir ao encontro de outras possibilidades,
compartilhando com a ponderação de De Maeyer (2011), que alguns avanços têm sido
lentamente alcançados. A educação nas prisões surgiu no plano das preocupações há
muito pouco tempo. Passamos da ignorância sobre essa problemática, entretanto,
podemos ter criado uma expectativa por vezes exagerada: redução da pena pela
frequência à escola, preparo para a vida em liberdade, ensino da leitura e escrita,
aprendizagem de um ofício e, supostamente, que o aprisionado “aprenda a aceitar” as
regras sociais.
De Maeyer (2011) sinaliza também, que a educação não é uma mercadoria nem
um produto, mas um processo que deve ser concebido e vivido pelo conjunto de atores
que vivenciam esse cotidiano. “É necessário transformar a prisão em um espaço
educativo e não transformar o aprisionado em receptor de sequências educativas.” (DE
MAEYER, 2011, p. 14).
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11800ISSN 2177-336X
Aprender ao longo da vida implica, para o referido autor, sair do status
provisório de aprisionado e inscrever-se em uma perspectiva de educar-se em longo
prazo. Nessa perspectiva, os processos de ensinar e aprender em prisões se caracterizam
por trabalhar com a diversidade, a diferença, o medo – enfrentar as situações tensas do
mundo do crime e apostar no ser humano. Isso exige do educador aprendizagens de
outra natureza, que não somente as oferecidas em salas de aula da universidade. E aos
estudantes, exige reconhecer que na escola podem se fazer presentes e afirmativos na
luta por seus direitos básicos – a privação da liberdade é a sentença pelo desvio social
cometido, mas seus demais direitos estão (por lei) preservados.
As práticas sociais que ocorrem no interior das unidades prisionais constroem
suportes sociais e culturais importantes, e a escola por se constituir em uma
comunidade, regida por normas diferenciadas, é um espaço onde os estudantes podem
exercitar a possibilidade da quebra de hierarquias, as relações de respeito e melhoria da
autoestima.
Trata-se, portanto, de um espaço onde as tensões se mostram aliviadas, o que
justifica sua existência e seu papel na (re)socialização do aprisionado. Inserida numa
ordem que “funciona pelo avesso”, oferece ao ser humano a possibilidade de resgatar ou
aprender uma outra forma de se relacionar, diferente das relações habituais do cárcere,
pois sendo o processo de educação contínuo, nesse espaço, ele se modifica em sua
natureza, em sua forma, mas continua, sempre, sendo processo educativo.
Em diálogo com essas proposições, inferimos que o processo de ensinar e
aprender na escola na prisão deve ser permeado pelo diálogo, e que este só pode ser
construído entre iguais, portanto, só é possível nas relações não hierarquizadas e
autoritárias. Trata-se, pois, de conceber a prática pedagógica vinculada à leitura crítica
da realidade, isto é, do mundo. (FREIRE, 1975)
Dessa forma, o educador não apenas ensina, mas conduz a apropriação crítica do
que foi, e é ensinado, dimensão essa que permite aos homens e mulheres ser no mundo,
porque garante sua dimensão histórica, realiza e faz sua história, na medida em que
projeta seus sonhos.
Não pretendemos, neste texto, aprofundar os conceitos trazidos pela pedagogia
freiriana, mas reafirmar nossa postura, que opta por uma educação libertadora nos
espaços de privação de liberdade, e comunga com o preceito de que transportar para o
interior das escolas das unidades prisionais conhecimentos construídos por e para
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homens livres, é um caminho que nos mantém em nossa zona de conforto. Esse
conhecimento pode e deve ser levado, mas em dimensão diferente: em um processo de
busca da temática significativa para eles. É preciso investigar seu pensar, uma vez que
“este não se dá fora dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos homens e
entre os homens, e sempre referido a uma realidade” (FREIRE, 1993, p. 117).
Certamente, estamos diante de um desafio – o entorno que envolve a escola de
que estamos tratando, a instituição prisão e suas muralhas, parecem ter outras
características: o silenciamento, a máscara, a duplicidade – é um contexto movediço,
instável, transitório, forjado por várias verdades e que forçam os sujeitos a inventar
maneiras para sobreviver.
Concordamos com (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2010), que a existência de
uma cultura própria da prisão torna a escola singular, e o seu cotidiano, nem sempre
permite apreender os significados vividos naquele espaço-tempo. O desafio posto é
como se inserir nesse mundo, sem abdicar de seus elementos culturais próprios, sem
perder fios da tessitura da trama que revela a sua essência.
As práticas sociais vivenciadas na escola podem desvelar outras possibilidades
do fazer escolar, cabendo ao professor promover práticas anunciadoras de humanização
e produção de subjetividades, e isso implica ou exige a presença de educadores críticos,
criadores, instigadores, inquietos, humildes e persistentes. (ONOFRE, 2013).
Nessa perspectiva, temos procurado em nossos estudos e vivências formativas,
compartilhadas com professores e estudantes de escolas em unidades prisionais, avançar
na direção de opções metodológicas que têm a preocupação com a pessoa em situação
de privação de liberdade (o contexto e sua relação com o passado-presente-futuro) e o
desafio de quebrar as „amarras‟ da lógica linear em direção a uma educação
significativa.
Resultados ou em busca de significados?
A tessitura de algumas proposições para o fazer educativo nas escolas de
unidades prisionais, objeto deste texto, mas recorrentes aos demais espaços escolares,
nos reporta a Arroyo (2011, p. 279): “de que nos servem conhecimentos que não nos
ajudem a conhecer-nos?”
Reconhecendo que nos espaços prisionais é fundamental a escuta de pessoas que
são silenciadas pelas normas do sistema penitenciário, abrir espaços para as narrativas
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de vida é dar-lhes oportunidade de saber-se no passado-presente em que estão atolados.
É resgatar cidadania e dignidade, pois deixam de ser um número (conferido com base
no crime cometido ou em seu número de matrícula), assumem a sua palavra, a sua
história, ganham protagonismo – deixam de ser anônimos.
No dizer de Arroyo (2011, p. 282):
Contar de si, da indagação sobre o viver, passam de um viver
sem sentido para os sentidos do viver humano construídos em
coletivo na escola. A escola não se limita a transmitir saber
acumulado, mas reconhece que na escola, nas salas de aula há
autores, que continuam esses processos de partir de experiências
sociais de resistência [...] é preciso que se entendam na ordem-
desordem social, pois trata-se do exercício de interrogar-se, da
produção de conhecimentos sobre si mesmos e sobre a
sociedade. [...] Nessas narrativas de saber de si aparecem lutas
por viver, sobreviver por dignidade, de solidariedades que vão
dando sentido às perdas.
Portanto, para Arroyo (2011), nas narrativas de perdas há a busca por sentidos, a
luta, a vida no presente, a construção de outro futuro, de outro viver mais digno e justo,
pois, a incerteza e a perda estão entre as vivências mais marcantes do viver.
Tomando a perspectiva de currículo e didática de „grades rompidas‟, Arroyo
(2011) sinaliza:
Os currículos e as didáticas podem se propor como dever do
oficio da docência, que ao aprender a ler, aprendam a se ler, que
ao aprender ciências aprendam explicações científicas sobre seu
viver, que ao aprender história aprendam histórias e memórias,
sua história na História, que ao aprender geografia aprendam os
sem-sentido dos espaços precarizados, que aprendam os sentidos
históricos de suas lutas (p. 284).
O acúmulo de conhecimentos produzidos pelo ser humano faz-se necessário no
dizer de Arroyo (2011), “para entender o mundo, a história, conhecer-se, conhecer-nos,
entender-nos [...] trata-se da produção de conhecimentos para entender-nos como
humanos, para intervir na história” (p. 285).
Nesse sentido, é preciso propor para a Educação de Jovens e Adultos - EJA em
prisões, uma organização curricular flexível, tendo em vista as especificidades do
contexto e dos estudantes e atentar para a ausência de espaços apropriados.
Metodologicamente, pode-se optar por aulas compartilhadas, com organização de
atividades individuais e grupais, respeitando os ritmos e níveis de aprendizagem de cada
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estudante. Nessa perspectiva, devem ser propostas formas de trabalho pedagógico
interdisciplinares, adequadas ao contexto da EJA, cujos alunos possuem diferentes
histórias e experiências de vida, trajetórias escolares interrompidas e não bem
sucedidas, alta rotatividade, entre outras.
Nessa perspectiva, apostamos na possibilidade da existência de espaços
educativos nas prisões que assumam a contradição, uma vez que são espaços de
confronto, de diálogo, de luta e resistência, em busca de uma educação emancipatória
construída com os sujeitos e não para os sujeitos. Não é possível, portanto, defender
uma proposta de mera transposição de escola convencional, dos currículos, dos
materiais, das ferramentas metodológicas para o interior da prisão. Trata-se de assumir a
contradição e conceber espaços educativos como
[...] um lócus em que diferentes sujeitos, conhecimentos, valores,
culturas se entrelaçam. Reconhecer esta pluralidade, favorecer um
diálogo crítico entre seus atores, romper com o caráter monocultural
da escola, que inviabiliza identidades, saberes, tradições e crenças,
tendo-se ao mesmo tempo presente a função da escola, tanto no plano
cognitivo, quanto ético e sociopolítico, é uma tarefa complexa, mas
alguns passos já estão sendo dados nesta direção. (CANDAU, 2009, p.
43).
Estamos, portanto, diante concepções de autoras que nos levam a compreender a
instituição escola na prisão, como espaço de possibilidades e de aprendizagens
significativas para o convívio no encarceramento e, posteriormente, na chamada
sociedade dos homens livres.
(Im)possíveis considerações finais
Considerando as reflexões elaboradas, com base em estudos e vivências
formativas, buscamos neste texto nos aproximar do intrincado fenômeno da educação
em prisões, com o intuito de contribuir na superação, na área da educação, das análises
que oscilam entre a visão positivista e a visão crítica. O nosso desejo é provocar
possíveis diálogos entre a educação, a escola e o ensino nos contextos de privação de
liberdade. Se nestes espaços existe uma escola pública, uma sala de aula (mesmo que
improvisada, com turmas heterogêneas, multisseriadas, como tantas outras no Brasil),
professores (com salários aviltantes, ausência de material didático e outras ferramentas
para um trabalho com qualidade social, formação insuficiente para atuar em Educação
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de Jovens e Adultos) e estudantes (advindos em sua maioria de classes populares), não
estamos diante de uma realidade invisível em nosso país.
A diferença que se faz presente é que esta escola encontra-se inserida em um
espaço singular – a instituição prisão. Santos (2000) e sua concepção de fronteira nos
permite significar de maneira mais clara as intenções destas reflexões.
Viver na fronteira é viver em suspensão, num espaço vazio, num
tempo entre tempos. A novidade da situação subverte todos os
planos e previsões; induz à criação e ao oportunismo como
quando o desespero nos leva a recorrer ansiosamente a tudo o
que nos pode salvar [...] A fronteira, enquanto espaço, está mal
delimitada, física e mentalmente, e não está cartografada de
modo adequado. Por esse motivo, a inovação e a instabilidade
são, nela, as duas faces das relações sociais [...] (p. 348).
Tomando o contexto da prisão, sem referências ou verdades a serem defendidas,
somos convidados a reinventar a escola, como propõe Candau (2000), reconhecendo a
importância de construir, desvelar práticas de ensinar e aprender. Ora, se estamos diante
de outros coletivos sociais (de gênero, etnia, raça, camponeses, quilombolas, em
privação de liberdade, trabalhadores empobrecidos), que se afirmam como sujeitos de
direitos, não podemos mais adiar nosso compromisso de educadores para
pensar/repensar a realidade.
A postura cartesiana, de um mundo dividido em compartimentos, foi substituída
por redes mais fluidas, e na condição de sujeitos praticantes pesquisadores
(CERTEAU, 1994), faz-se imperioso problematizar a instituição escola, independente
do espaço onde está inserida. Certamente, trata-se de uma tarefa árdua, mas necessária.
Para ressignificar essa instituição é preciso fomentar discussões para além de
quais currículos, quais didáticas, quais materiais devem ser construídos. Estamos, no
dizer de Arroyo (2014), diante outros sujeitos e, portanto, diante de outras pedagogias.
Há que se pensar em redes e tramas, em tessituras que se relacionam permanentemente
para não cairmos, novamente, na redução aos conhecimentos disciplinares. Não estamos
afirmando que os conhecimentos disciplinares não são importantes, mas o momento nos
exige superar a lógica que compartimentaliza o conhecimento em áreas.
Por outro lado, conhecer as realidades que se desvelam e trazem outros sujeitos
para o cotidiano da escola se constitui em desafio para cada um de nós, rever, como
conceitua e se relaciona com a didática e com as experiências de sala de aula como
processos, problematizando situações vividas em nossas inquietações como educadores-
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pesquisadores, conscientes de que as prescrições pedagógicas nos aprisionam em
explicações definitivas. (FERRAÇO, 2012).
Fica o convite e o desafio: pensar a educação, a escola, as práticas de ensino com
o outro – com os pares, com o cotidiano singular, com as realidades, com as histórias de
vida, com os anseios. É preciso romper as grades e construir instituições e relações
sociais que não encarcerem corpos!
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11807ISSN 2177-336X
A ESCOLA IDEAL: O QUE ALUNOS EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE TÊM
A DIZER?
Aline Campos
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Este artigo é um recorte da pesquisa de mestrado Educação, escola e prisão: o “espaço
de voz” de educandos do Centro de Ressocialização de Rio Claro/SP e tem por objetivo
traçar reflexões sobre a didática e a prática de ensino na prisão a partir da análise dos
significados atribuídos à educação “ideal” por alunos em situação de privação de
liberdade. Os dados apresentados e analisados são resultantes do diálogo estabelecido
com 11 colaboradores por meio do recurso metodológico de Roda de Conversa. As
vozes pronunciadas neste encontro trazem à tona algumas das concepções e opiniões
idealizadas pelos colaboradores para a educação escolar brasileira, evidenciando o
abismo entre o real e o ideal para a educação escolar - dentro e fora da prisão. Apesar do
considerável aumento de estudos sobre a educação na prisão algumas perguntas ainda
persistem: o que e como ensinar no contexto de privação de liberdade? As reflexões
estabelecidas sobre o que ensinar evidenciam a necessidade de que o ensino propicie a
aquisição de ferramentas que auxiliem os/as alunos/as na construção novos caminhos,
ou seja, que os conhecimentos e habilidades contribuam para uma melhor inserção na
sociedade. Nas reflexões sobre como ensinar, por sua vez, a figura docente ganha
destaque, evidenciando-se que os professores atuam na prisão, não são, portanto,
professores da prisão. Estarão sujeitos às especificidades deste local de trabalho que
lhes exigirão atenção e cuidado às suas regras e normas, contudo, não precisam (e não
devem) reproduzir os mecanismos de controle da cultura prisional no espaço escolar.
São inúmeros os desafios postos tanto à educação escolar quanto à prisão e há muitos
caminhos para enfrentá-los. A escuta dos estudantes e a incorporação de suas vozes no
processo permanente do fazer escolar é, sem dúvida, um desses caminhos possíveis, no
qual acreditamos e apostamos.
Palavras-chave: educação popular; didática e práticas de ensino na prisão; vozes de
alunos
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Este artigo é um recorte da pesquisa de mestrado desenvolvida no ano de 2014,
com educandos de uma unidade prisional do interior do estado de São Paulo/Brasil.
O entendimento de Educação Popular adotado neste artigo se insere na
perspectiva de que a educação é um processo que ocorre permanentemente ao longo de
toda a vida, consistindo-se como instrumento de luta política. A Educação Popular, que
pode se manifestar tanto em espaços escolares como não-escolares, participa do esforço
dos sujeitos subalternos que buscam desenvolver um trabalho político que os conduzam
para a conquista de seus direitos e liberdade. É, portanto, uma educação comprometida
com a emancipação das classes subalternas e que está a serviço de seus interesses. É a
busca, a partir de um trabalho conjunto entre diferentes agentes, de formas coletivas de
aprendizado e investigação, que promove o aumento da capacidade crítica da realidade
e fortalece as lutas sociais, bem como contribui para a construção da participação
popular no direcionamento da vida social. (BRANDÃO, 1982 apud VASCONCELOS,
2007, p.20 e 21). Nesse sentido, é elemento metodológico fundamental, que o ponto de
partida dos processos pedagógicos seja o “saber da experiência” dos educandos. E o
acesso a esses saberes, dentre outros modos, passa pela escuta de seus detentores.
No entender de Valla (1996, p.178), a grande mudança nos trabalhos que vem
sendo feitos com pessoas das classes subalternas está relacionado “[...] à compreensão
que se tem de como as pessoas destas classes pensam e percebem o mundo”. Os
esforços do referido autor para compreender essa questão o levaram a entender que a
dificuldade de compreendermos a fala das classes subalternas decorre das nossas
dificuldades em aceitar que estas pessoas são capazes de produzir conhecimento sobre a
sociedade e de interpretarmos o que elas dizem, por não estarmos inseridos e não
fazermos parte de todo o seu contexto e realidade.
É necessário, portanto, buscar compreender com mais clareza as representações
e visões de mundo das classes subalternas, reconhecer seus saberes como conhecimento
acumulado, sistematizado, interpretativo e explicativo, como outro modo de
compreender e explicar a realidade, nem melhor, nem pior do que o nosso, apenas
diferente.
Na Educação Popular, parte-se do pressuposto de que “ninguém educa ninguém,
ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”
(FREIRE, 2011, p.95). O educar e educar-se estão, dessa maneira, intimamente
associados ao partilhar das vivências em grupos, nos quais os conhecimentos/saberes
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são produzidos/(re)significados/lembrados a partir das práticas sociais, pois têm o
“propósito de produzir bens, transmitir valores, significados, ensinar a viver e a
controlar o viver, enfim, manter a sobrevivência material e simbólica das sociedades
humanas” (OLIVEIRA et al, 2014, p.33). As pessoas vão, assim, sendo formadas em
todas as experiências de que participam ao longo da vida. Entretanto, nos grupos
marginalizados, o senso comum nos leva a pensar que não há nada de bom a ser
aprendido, o que não é verdadeiro.
Todas as práticas sociais desencadeiam processos educativos (OLIVEIRA et al,
2014). Reconhecer a existência de processos educativos inerentes às práticas sociais é
romper com o monopólio pedagógico dos sistemas educacionais, ampliando nossos
horizontes sobre a vastidão da educação. É importante lembrar, contudo, que nem todas
as práticas sociais são benéficas. A história da colonização dos povos latino-americanos
está marcada por práticas sociais desumanizantes, que se estendem até os dias atuais.
Entretanto, as práticas sociais que temos buscado investigar são aquelas que se dão em
espaços de sobrevivência, resistência, educação e construção de conhecimentos que
visem o enfrentamento das desigualdades e a recriação humanizadora do mundo
(OLIVEIRA et al, 2014). As prisões, apesar de desumanizadoras, possuem em seu
interior espaços onde essas recriações humanizadoras acontecem e é nelas que focamos
nossas atenções e esperanças.
Pesquisar as práticas sociais e os processos educativos por elas desencadeados
vai além da construção de conhecimento. É também uma busca por seu fortalecimento e
valorização, um reforço nessa luta que já vem sendo enfrentada por diversos grupos
oprimidos. Nesse sentido, consideramos a educação escolar nas prisões inserida no
contexto da pedagogia social e da educação popular por “ser uma educação que trabalha
com pessoas marginalizadas, buscando a reconstrução de uma cidadania possível”
(PEREIRA, 2011, p.49).
Nesse sentido, Gadotti (2014, p.26) complementa:
O termo “popular” pode ser entendido como tudo aquilo que atende às
necessidades populares, às demandas dos excluídos. Tem a ver com o
quantitativo – que atende a todos – e com o qualitativo, uma certa
concepção de Educação. Entendemos o “popular” da Educação na
perspectiva da emancipação, da transformação. Seria, então, tudo o
que se realiza na perspectiva da transformação, da libertação, da
conscientização.
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Portanto, se em espaços marcados pela opressão, como são as prisões, busca-se
uma efetiva mudança da realidade, a educação precisa ser “popular”.
Partindo-se desses entendimentos, o recorte da pesquisa apresentado neste artigo
tem por objetivo traçar reflexões sobre a didática e a prática de ensino na prisão a partir
da análise dos significados atribuídos à educação “ideal” por alunos em situação de
privação de liberdade.
DADOS QUE EMERGEM DO DIÁLOGO
Os dados apresentados e analisados neste artigo são resultantes do diálogo
estabelecido por meio do recurso metodológico de Rodas de Conversa. A escolha desse
recurso para coleta de dados se justifica, pois o mesmo se constitui como:
um meio profícuo de coletar informações, esclarecer ideias e posições,
discutir temas emergentes e/ou polêmicos. Caracteriza-se como uma
oportunidade de aprendizagem e de exploração de argumentos, sem a
exigência de elaborações conclusivas. A conversa desenvolve-se num
clima de informalidade, criando possibilidades de elaborações
provocadas por falas e indagações (SILVA; BERNARDES, 2007, p.
54).
Configura-se, desse modo, como um recurso que incentiva a participação e
reflexão na qual “buscamos construir condições para um diálogo entre os participantes
através de uma postura de escuta e circulação da palavra bem como com o uso de
técnicas de dinamização de grupo” (AFONSO; ABADE, 2008, p.19). Trata-se,
portanto, de um tipo de metodologia participativa que pode ser utilizada em diferentes
contextos com o objetivo de promover a reflexão sobre os mais diversos temas.
As leituras feitas sobre esse recurso metodológico sinalizam que nem sempre a
participação em Rodas de Conversa é fácil, sendo necessário que se estabeleçam
“condições dialógicas para que a reflexão aconteça” (AFONSO; ABADE, 2008, p.23).
No contexto prisional, a prática da reflexão é muitas vezes reprimida, uma vez
que estes espaços prezam pela obediência cega. Aprisionados que assumem postura
questionadora e reflexiva acabam enfrentando dificuldade em sobreviver nestes espaços.
Nesse sentido, tínhamos consciência de que esta seria uma proposta desafiadora de ser
estabelecida no interior de uma unidade prisional, uma vez que “a roda de conversa
deve se dar em um contexto onde as pessoas podem se expressar sem medo de punição
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social ou institucional” (AFONSO; ABADE, 2008, p.24) e não possuíamos mecanismos
que garantissem tal premissa.
Tínhamos o sigilo assegurado pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) e o vínculo estabelecido entre a pesquisadora e os colaboradores em
decorrência de sua relação professora-alunos, porém, havia a consciência que isso talvez
não fosse o suficiente para fazê-los se sentir seguros em participar das rodas de
conversa. Entretanto, nossas ponderações nos levaram a optar por esse recurso
metodológico, pois “o que se busca na roda não é uma disputa sobre „quem tem razão‟,
mas a apreciação das diversas razões, o alargamento da visão de cada um, a ampliação
dos horizontes e a possibilidade de melhor refletir sobre a questão abordada”
(AFONSO; ABADE, 2008, p.24). Acreditávamos que, em diálogo com diversos
colaboradores, poderíamos construir com eles alguns entendimentos sobre a educação
escolar, que não pertencessem a um ou outro especificamente, mas que fosse fruto de
uma reflexão com base em diversas razões. É nessa perspectiva que os dados serão
analisados neste texto, sempre como a voz do grupo e não de cada colaborador
individual e especificamente, inclusive como estratégia para preservar suas identidades.
Nesse contexto, e com o intuito de promover atividades de reflexão sobre o que
se concebe por uma escola ideal, o grupo de 11 colaboradores se reuniu em um encontro
de aproximadamente duas horas, para dialogar em Roda de Conversa. O encontro teve
início com uma proposta de reflexão, na qual os colaboradores escreveram e falaram
sobre seu retorno à escola dentro da unidade prisional. Depois desta reflexão inicial,
foram recapitulados diversos pontos que haviam sido discutidos nas rodas de conversa
anteriores e novas questões também foram apontadas. Por fim, o encontro foi encerrado
elencando-se todos os pontos citados durante a conversa de modo a criar um panorama
do que o grupo considerava uma escola ideal. Após a leitura compartilhada desse
registro, alguns colaboradores consideraram importante acrescentar ainda mais alguns
elementos. As vozes pronunciadas neste encontro trazem à tona algumas das
concepções e opiniões idealizadas pelos colaboradores para a educação escolar
brasileira - dentro e fora das prisões - as quais compartilhamos e analisamos neste
artigo.
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A ESCOLA IDEAL NA PERSPECTIVA DE ALUNOS EM PRIVAÇÃO DE
LIBERDADE
A escola ideal dos colaboradores é aquela que vai ao encontro dos ideais
freireanos da educação que liberta, que emancipa. Para eles, a escola ideal deve estar
preocupada com a formação de consciência e valores, alavancando o desenvolvimento
da participação ativa e protagonismo na resolução dos problemas reais que envolvem a
vida em sociedade. Deve ser uma escola que amplia os horizontes dos alunos e os
lancem para o mundo como pessoas éticas. Precisa ser, portanto, uma escola que exala a
realidade, o cotidiano e os contextos locais e globais. Por isso, deve usufruir dos
avanços tecnológicos, incorporando-os em suas atividades e propiciando o contato
crítico dos alunos com essas tecnologias. Lazer e cultura são dimensões que compõem
toda a rotina dessa escola. Essa escola ideal não é um depósito de pessoas que precisam
ser contidas durante o tempo em que ali permanecem. Trata-se de um espaço de
acolhida e aconchego, que inclui entre os seus compromissos a importância de trabalhar
a dimensão afetiva da vida, por isso se alicerça no diálogo entre os diferentes agentes
nela envolvidos. Conta com profissionais capacitados para ajudar os alunos a
compreenderem a si próprios: seus anseios, suas angústias, suas dificuldades. Nela, as
vozes dos alunos são ouvidas e eles aprendem a ser solidários, pois colaboram na
formação uns dos outros, descentralizando da figura do professor a responsabilidade
pelo processo de ensino e aprendizagem. Os professores que atuam nessa escola
trabalham movidos por ideais de transformação da sociedade, por isso são
comprometidos. E as famílias estão presentes em todo o seu dia-a-dia.
Vista assim, com todas as características pontuadas pelos colaboradores,
destaca-se nesta escola seu caráter ideal. Há muito por transformar para se chegar a essa
escola idealizada e os mais céticos provavelmente dirão não passar de idealismo.
O abismo entre o real e o ideal para a educação escolar advém do esgotamento
dos atuais modelos de ensino-aprendizagem frente aos desafios contemporâneos. Para
Mosé (2013, p. 54) “sem perspectiva diante dos inúmeros desafios do mundo atual, a
escola já não satisfaz ninguém: nem alunos, nem professores, nem gestores, nem
cidades, nem o mercado”. Seguimos reproduzindo modelos que não condizem com as
demandas atuais, e a insatisfação é cada vez mais generalizada. Ainda segundo a
referida autora, necessitamos “não mais uma escola que ensina – hoje sabemos que
ninguém aprende o que de algum modo já não sabia, intuía, percebia -, mas uma escola
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que aprende e se dedica a criar sempre novas situações de aprendizagem” (MOSÉ,
2013, p.56), o que corrobora os entendimentos de escola ideal apontados pelos
colaboradores. É consensual a necessidade de transformação do fazer escolar e se tem
caminhado muito em discussões a cerca dessa problemática. Os entraves se dão,
sobretudo, na prática, pois fazer diferente demanda novos exemplos, criatividade,
coragem e ousadia.
Se os desafios para a transformação da escola fora dos espaços prisionais é
imensa, dentro destes espaços ela se faz ainda maior. Como estimular o
desenvolvimento da capacidade crítica, quando a sobrevivência no espaço prisional está
marcada pela adaptação às normas e obediência? Como inserir as novas tecnologias,
quando a maior parte delas não tem sua entrada autorizada nesses espaços de controle?
Como incluir lazer e cultura, quando não há espaço nem estrutura para o
desenvolvimento destas atividades? Como fazer dos espaços educativos,
majoritariamente, improvisados, ambientes acolhedores e aconchegantes em meio a um
contexto de desumanização? Como trabalhar a dimensão afetiva da vida quando
professores e alunos não podem se aproximar? Como ouvir as vozes dos alunos quando
o sistema prisional está estruturado para silenciá-las? Como envolver as famílias quando
parte dos alunos já não as possui ou estão distantes delas? Como envolver essa escola
com a comunidade, quando ela se encontra dentro de uma instituição que se quer
isolada?
Frente a tamanhos desafios e a complexidade dessa realidade, o mais fácil é
acreditar que a mudança é impossível. Entretanto, é necessário romper com o fatalismo
incutido pela ideologia neoliberal de mercado que nos leva a crer que “não há
alternativa social melhor, ou não é possível transformar essa realidade” (OLIVEIRA,
2014, p.114) e nutrir a esperança defendida por Paulo Freire: a esperança que move a
busca, que inquieta, pois “mudar é difícil, mas é possível” (FREIRE, 2014, p.132).
Para o contexto específico dos espaços de privação de liberdade os
colaboradores acrescentam mais alguns pontos necessários à escola ideal, haja vista as
singularidades desse universo. Um dos aspectos apontados evidencia a necessidade da
escola considerar o anseio pela inserção no mercado de trabalho, visto que a educação
em espaços prisionais trabalha com jovens e adultos. Trabalhar é condição fundamental
para a inserção social e uma das necessidades mais imediatas das pessoas que encerram
suas penas e voltam ao convívio na sociedade livre. Essa é, portanto, uma dimensão que
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precisa se fazer presente no espaço escolar. Em concordância com os anseios dos
colaboradores Rangel (2009, p.78) afirma que “independientemente de los contenidos
curriculares que expone la educación formal, es de gran importancia desarrollar
capacidades que posibiliten su inserción en el ámbito social y laboral.”
Outra dimensão apontada também se relaciona com o fato de ser uma educação
que trabalha com jovens e adultos, portanto, pessoas que trazem uma série de saberes
adquiridos ao longo de suas vidas. O universo cultural no interior das prisões é
riquíssimo, há os que jogam capoeira, os que tocam instrumentos musicais, os que
fazem repente, os que escrevem poesias, os que compõem rap, os que sabem desenhar e
pintar, os que dançam break, os que entendem de mecânica, os que dominam as
habilidades da carpintaria, os que sabem cozinhar, dentre tantas outras habilidades. Tais
saberes podem ser explorados no sentido de gerar uma rede de trocas entre os
educandos.
Por fim, os colaboradores enfatizam a importância dos professores que atuam
nesta escola não reproduzirem a lógica opressora do sistema prisional. É fundamental
que os professores que atuam nesse espaço ao olhar para seus alunos vejam o humano
inconcluso e não o condenado a ser punido e vigiado.
Espera-se das pessoas aprisionadas mudanças de atitudes, que elas regressem ao
convívio com outras posturas diferentes daquelas que os levaram ao encarceramento.
Tais mudanças não estão sendo produzidas a partir do modelo de sistema prisional que
se apresenta atualmente. A inserção de espaços escolares no interior prisional tem
nutrido a esperança por transformação e humanização deste espaço, por esta razão, “la
educación en prisiones implica la inclusión de valores éticos y humanos que posibiliten
dicho cambio de actitudes” (RANGEL, 2009, p.106).
A escola idealizada pelos colaboradores, tanto para a sociedade livre quanto para
as prisões, é uma escola que exige mudanças difíceis, porém possíveis. E nessa luta é
necessário lembrar, como ensina Freire (2013, p.325), “que a mudança não pode ser
feita por uma pessoa só. Ela nasce do desejo da gente sim, mas é coletiva, é social.
Todos nós temos de assumir responsabilidades no processo geral da mudança”.
PARA SEGUIR REFLETINDO...
É possível perceber que apesar da educação escolar nas prisões ser uma prática
relativamente recente, ela tem reproduzido o esgotamento do sistema de ensino. O
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projeto que temos de educação está em crise e essa crise aparece também nas prisões. O
que os colaboradores apontam como problemático na educação escolar em suas
vivências escolares dentro e fora da prisão é o que já vem sendo discutido pelos
estudiosos da temática. Por essa razão, a escola idealizada por eles condiz com os
documentos e orientações oficiais, assim como com o que vem sendo ensinado por
educadores como Paulo Freire. O desafio que as falas deles coloca é, na verdade, o
desafio que já está posto há algum tempo: como fazer a transposição da teoria e
legislação escolar para a prática escolar?
É praticamente consensual que a escola precisa se tornar um espaço de potência,
inventivo e criador, devendo estar contextualizada com a realidade e estar atrelada às
necessidades concretas dos/as alunos/as. Falta, porém, construir caminhos que nos
conduzam a práticas escolares que favoreçam essa transformação do espaço escolar.
No contexto prisional, é preciso compreender quais as necessidades concretas
dos/as alunos/as que vivem a situação de encarceramento. Nos últimos anos houve um
considerável aumento de estudos sobre a educação na prisão e alguns princípios estão
cada vez mais edificados. As perguntas que persistem são: o que e como ensinar no
contexto de privação de liberdade?
Certamente não existam respostas únicas e fechadas para essas perguntas.
Entretanto, a partir dos significados atribuídos à educação escolar pelos colaboradores é
possível vislumbrar alguns caminhos.
Estar em situação de privação ou restrição de liberdade impõe uma série de
peculiaridades ao aluno da EJA. Dentre essas peculiaridades, tem-se o aprisionamento
como um período marcado pela autorreflexão, um momento chave, portanto, para
pensar nos percursos e nas escolhas da vida. A educação escolar para essas pessoas
deve, desse modo, ter essa perspectiva: contribuir para que os/as alunos/as encontrem
caminhos para romper o “ciclo vicioso” do contexto de onde saíram; para que saiam da
condição de marginalidade e construam outros projetos de vida. Nesse sentido, ao
refletirmos sobre o que ensinar, devemos questionar: De que forma a escola pode ajudar
nesse rompimento? Quais as ferramentas necessárias para que eles construam novos
caminhos? Quais conhecimentos e habilidades contribuem para uma melhor inserção na
sociedade?
Outra peculiaridade vivida por estes/as alunos/as é a privação de liberdade. O
encarceramento limita o ir e vir, prendendo o corpo em um espaço determinado. Nesse
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contexto, a educação escolar deve ter o seguinte horizonte: despertar nos/as alunos/as a
compreensão de que a prisão só é capaz de prender seu corpo, suas mentes permanecem
livres e com elas podem ter inúmeras experiências e vivências. Podem esquecer, ainda
que temporariamente, que estão presos porque em suas cabeças podem ser o que
quiserem, inclusive livres. Essa é uma dimensão que deve permear as práticas
educativas nesses espaços.
Durante suas juventudes, os colaboradores tiveram outras demandas sociais que
se sobrepuseram a necessidade de estudar, e por isso, evadiram da escola. Reconhecem
que ao saírem do cárcere, terão novamente demandas sociais como trabalhar, cuidar de
filhos e sustentar a família, que dificultarão a conclusão do ensino básico. Por isso,
significam a educação escolar na prisão como uma oportunidade de retomada dos
estudos. Concordamos com Maeyer (2011) que ter tempo não é o suficiente para que as
pessoas se disponham a aprender, é necessário que essa aprendizagem seja atrativa e
significativa. Entretanto, ter disposição e não ter tempo inviabiliza a aprendizagem.
Nessa perspectiva, as prisões constituem-se como terreno fértil para o desenvolvimento
da EJA, pois nesse contexto os alunos possuem tempo. É necessário, entretanto,
encontrar caminhos para que ela se torne atrativa e significativa, para que os alunos se
disponham a aprender.
Ao refletir sobre como ensinar a figura docente ganha destaque. Os
colaboradores atribuíram à figura do/a professor/a considerável responsabilidade com a
formação e motivação do aluno e apontam que posturas autoritárias não contribuem
para o processo de ensino e aprendizagem. Nas prisões a figura do professor assume
uma responsabilidade ainda maior, por se constituírem como uma das poucas
possibilidades de estímulo e incentivo à busca de novos caminhos. Nesse contexto, é
necessário não perder de vista que estes profissionais são professores que atuam na
prisão, não são, portanto, professores da prisão. Estarão sujeitos às especificidades deste
local de trabalho que lhes exigirão atenção e cuidado às suas regras e normas, contudo,
não precisam (e não devem) reproduzir os mecanismos de controle da cultura prisional
no espaço escolar.
Em uma escola regular um conflito qualquer entre o professor e o aluno pode ser
resolvido por meio do intermédio do/a diretor/a ou da família. Nas prisões, um
desentendimento entre o professor e o aluno, se encaminhado para o/a diretor/a da
unidade tenderá a ser resolvido de acordo com a lógica da segurança e não com
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princípios pedagógicos. Nesse sentido, o problema dificilmente será tratado
considerando a condição de aluno, o mais provável é que ele responda na condição de
preso, podendo ser submetido a uma sanção disciplinar. Entretanto, o professor também
não pode se omitir em relação a situações que coloquem ele ou os demais alunos em
risco.
Essa e outras particularidades do contexto prisional não podem ser ignoradas
pelos professores que atuam nesse espaço, contudo, a formação básica não os preparam
para essas singularidades. O que fazer diante dessa realidade? É urgente a necessidade
de investir na formação continuada desses profissionais, porém, é importante também
que este profissional não fique só. Ele deve dialogar com os seus pares, compartilhar
suas angústias, tirar dúvidas, trocar experiências, perguntar se não souber como agir.
Nesse sentido, as Aulas de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC) constituem-se como
possibilidade de momentos férteis para a aproximação e fortalecimento da equipe
docente. Entretanto, é necessário que elas sejam planejadas para essa finalidade,
promovendo a leitura e discussão de textos sobre a temática, a troca de experiências de
sala de aula e o estímulo para desenvolvimento de atividades e projetos
interdisciplinares.
São inúmeros os desafios postos tanto à educação escolar quanto à prisão. As
duas instituições precisam ser reestruturadas para darem conta das demandas da
sociedade contemporânea e, por isso, a educação para pessoas em situação de restrição e
privação de liberdade está inserida num contexto complexo. Há muitos caminhos para o
enfrentamento desses desafios. A escuta dos estudantes e a incorporação de suas vozes
no processo permanente do fazer escolar é, sem dúvida, um desses caminhos possíveis,
no qual acreditamos e apostamos, pois, conforme saliente Onofre (2011, p.270), “é
sempre em torno deles que as pesquisas e as propostas são pensadas e não com eles”.
Encerramos este artigo, e não a reflexão, com a certeza de que a prisão, tal como
está estruturada atualmente, faz parte de um “mundo ao avesso” e é necessário colocar o
mundo no lugar, pois “o mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de
transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de
inventá-lo” (GALEANO, p.08, 2013).
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