os tecelões de gerhart hauptmann: luta de classes no ... · mas, no que diz respeito ao...

16
Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no naturalismo alemão Rodrigo Conçole LAGE* Resumo O objetivo desse trabalho é apresentar a peça Os tecelões do dramaturgo alemão Gerhart Hauptmann, prêmio Nobel de Literatura de 1912, analisando como elaborou sua obra. Para isso, utilizamos o conceito de luta de classes. Palavras-chave: Gerhart Hauptmann. Teatro alemão. Luta de classes Abstract The aim of this paper is to present the play The Weavers of german playwright Gerhart Hauptmann, Nobel Prize winner for literature in 1912, analyzing how it developed. To that end, we use the concept of class struggle. Keywords: Gerhart Hauptmann. German theater. Class struggle. 1. Introdução Gerhart Hauptmann, prêmio Nobel de Literatura de 1912, foi um romancista, poeta, novelista e dramaturgo alemão nascido na Silésia, em Obersalzbrunn, no ano de 1862. Apesar de ser um dos grandes nomes do naturalismo1 alemão, tendo sido profundamente influenciado por Henrik Ibsen, enquadrá-lo unicamente como um membro dessa escola é construir uma visão limitada de sua obra. Sobre a questão, Voigt afirma que “houve quem quisesse considera-lo naturalista, realista, romântico ou neorromântico, simbolista, clássico e, até mesmo, supra-realista” (VOIGT, 1973, p. 42). Contudo, como sua obra passeia por diferentes escolas literárias nenhuma dessas classificações da conta da complexidade de sua obra. * Graduado em História (UNIFSJ), especialização em História Militar (UNISUL), em andamento, CEP: 28300-000, Itaperuna, Rio de Janeiro, [email protected]. 1 “O Naturalismo é uma forma de escrita derivada do Realismo. Nos dois casos o autor procura retratar de maneira objetiva a realidade, sendo que, neste, a retração passa por uma análise do indivíduo influenciando e sendo influenciado pelo meio, enquanto que, naquele, a retratação demonstra uma predominância da animalidade do ser, na medida em que o comportamento humano é fruto do meio em que vive o homem” (SILVA, 2014, p. 38). Essa influência do meio em que se vive é visível em Os tecelões, na forma de agir e pensar da burguesia e dos próprios tecelões, como veremos na última parte deste artigo.

Upload: doankhuong

Post on 09-Nov-2018

251 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no naturalismo alemão

Rodrigo Conçole LAGE 1*

Resumo

O objetivo desse trabalho é apresentar a peça Os tecelões do dramaturgo alemão Gerhart

Hauptmann, prêmio Nobel de Literatura de 1912, analisando como elaborou sua obra.

Para isso, utilizamos o conceito de luta de classes.

Palavras-chave: Gerhart Hauptmann. Teatro alemão. Luta de classes

Abstract

The aim of this paper is to present the play The Weavers of german playwright Gerhart

Hauptmann, Nobel Prize winner for literature in 1912, analyzing how it developed. To

that end, we use the concept of class struggle.

Keywords: Gerhart Hauptmann. German theater. Class struggle.

1. Introdução

Gerhart Hauptmann, prêmio Nobel de Literatura de 1912, foi um romancista,

poeta, novelista e dramaturgo alemão nascido na Silésia, em Obersalzbrunn, no ano de

1862. Apesar de ser um dos grandes nomes do naturalismo2

1 alemão, tendo sido

profundamente influenciado por Henrik Ibsen, enquadrá-lo unicamente como um

membro dessa escola é construir uma visão limitada de sua obra.

Sobre a questão, Voigt afirma que “houve quem quisesse considera-lo

naturalista, realista, romântico ou neorromântico, simbolista, clássico e, até mesmo,

supra-realista” (VOIGT, 1973, p. 42). Contudo, como sua obra passeia por diferentes

escolas literárias nenhuma dessas classificações da conta da complexidade de sua obra.

* Graduado em História (UNIFSJ), especialização em História Militar (UNISUL), em andamento, CEP:

28300-000, Itaperuna, Rio de Janeiro, [email protected]. 1 “O Naturalismo é uma forma de escrita derivada do Realismo. Nos dois casos o autor procura retratar de

maneira objetiva a realidade, sendo que, neste, a retração passa por uma análise do indivíduo

influenciando e sendo influenciado pelo meio, enquanto que, naquele, a retratação demonstra uma

predominância da animalidade do ser, na medida em que o comportamento humano é fruto do meio em

que vive o homem” (SILVA, 2014, p. 38). Essa influência do meio em que se vive é visível em Os

tecelões, na forma de agir e pensar da burguesia e dos próprios tecelões, como veremos na última parte

deste artigo.

Page 2: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre

os anos de 1887-1896. Além disso, há o chamado “realismo da velhice”

(HAUPTMANN, 1968, p. X) que engloba as peças:

Herbert Engelmann (1924, completada por Zuckmayer em 1952),

Dorotéia Angerliwnn (1925) e Antes do Crepúsculo (1931). Trata-se

de um realismo ligado à análise psicológica, e, em lugar da simples

apresentação de anti-heróis, de miséria e de desgraça, surge agora a

acusação às injustiças sociais e à corrupção (Idem).

Não é nosso objetivo apresentar um perfil biográfico do escritor, mas deve-se

destacar o fato de que entre seus antepassados encontravam-se tecelões silesianos, o que

lhe permitiu ter contato com sua pobreza. Tais reminiscências serão uma matéria-prima

importante para a construção da peça. Sua dramaturgia é pouco conhecida no Brasil e

as únicas peças traduzidas foram Os tecelões e Michael Kramer.

Suas peças naturalistas causaram reações controversas, que iam do aplauso ao

protesto, mas, ao mesmo tempo “demonstraram a exatidão da descrição do ambiente, a

técnica de sua arte dramática, a precisão de sua linguagem, a compreensão da psique de

seus personagens” (ROMANUS, p. 145). O maior exemplo dessas controvérsias, no que

se refere a peça aqui estudada, foi o fato de que após a sua apresentação no Deutsches

Theater, em 1894, “o Imperador Guilherme II cancelou, irado "pelo tom revolucionário

do drama", o camarote imperial naquele teatro, e as discussões prosseguiram agitadas”

(HAUPTMANN, 1968, p. XIV). Guilherme II jamais lhe perdoou o fato.

2. Os tecelões3

2

A peça, escrita em 1892, dramatiza um fato histórico: a revolta dos tecelões da

Silésia, em 1844, motivada pela utilização de máquinas nas fábricas (o que gerou

desemprego e, consequentemente, a miséria entre os tecelões). Para escrevê-la, ele não

só leu várias obras sobre o assunto como também viajou para a região tendo “encontros

com o mencionado Baginski, um "partidário dos vermelhos", que – segundo a imprensa

local e voz corrente das autoridades de Langcnbielau – se compraziam em exagerar a

miséria dos pobres para "insuflar a revolução" (HAUPTMANN, 1968, p. XIII-XIV).

2 Existem duas versões da peça, uma no dialeto silesiano e outra parcialmente adaptada ao alto alemão. A

tradução não contém nenhuma indicação sobre qual foi a versão utilizada.

Page 3: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

A peça é dividida em cinco atos nos quais vemos, dentro de um processo

gradativo, como a exploração inicialmente aceita gera tensões que vão se ampliando até

explodirem e gerarem uma revolta coletiva que inicialmente é local, mas depois se

espalha para outros lugares. Vemos como a insatisfação e a revolta contra a exploração

vai aumentando. A partir desse viés vemos que, nessa peça, ele inova ao colocar como

protagonista não um personagem principal e sim o grupo. Mesmo que Bäcker e Moritz

Jäger “liderem” a revolta eles tem um papel secundário diante da coletividade, podemos

vê-los como uma espécie de canal das insatisfações e da revolta coletiva.

Anatol Rosenfeld, ao tratar da peça, afirma que não há uma unidade de ação,

nem uma continuidade progressiva. Nela, uma “série de “quadros”, sem encadeamento e

progressão inerente, é “escolhida” pelo autor (já que a própria dialética das cenas não

assegura o desenvolvimento) para “ilustrar” as condições de desamparo e sofrimento em

que se debatem os tecelões” (ROSENFELD, 1985, p. 95).

Examinado a peça vemos que são poucas as indicações temporais e elas

aparecem principalmente nos diálogos. Pela fala dos tecelões e tecelãs, no primeiro ato,

somos informados que ainda não é inverno: “É, principalmente se a gente pensar o que

vai ser no inverno, se isso aqui continua assim com êsses cortes de salário”

(HAUPTMANN, 1968, p. 17). Na didascália que abre o segundo ato vemos que ele se

inicia no final da tarde devido à menção “a luz fraca e rósea do crepúsculo”

(HAUPTMANN, 1968, p. 23). No terceiro ato vemos que ele transcorre à tarde: “UM

JOVEM GUARDA FLORESTAL E UM CAMPONÊS – (Êste com um chicote.

Ambos.) Boa tarde! (Ficam parados junto ao balcão.)” (HAUPTMANN, 1968, p. 54).

O cenário é descrito com precisão e abundância de detalhes, algo típico do

realismo, incluindo a forma como os personagens se posicionam. Todavia, as parcas

indicações sobre a iluminação nas didascálias são superficiais como vemos, por

exemplo, quando informa que “a luz fraca e rósea do crepúsculo penetra por duas

pequenas janelas da parede esquerda” (HAUPTMANN, 1968, p. 23) ou quando diz que

“do lado esquerdo, a luz penetra em todos os Aposentos” (HAUPTMANN, 1968, p. 96).

A didascália que contém a descrição dos cenários, localizada no início de cada ato, pode

vir acompanhada de outras informações:

(Langenbielau. - A modesta sala de trabalho do velho Hilse. À

esquerda uma janelinha, à sua frente um tear, à direita, uma cama,

perto dela uma mesa. No canto direito o fogão com o banco. Ao redor

Page 4: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

da mesa, no escabelo, na beira da cama e no banquinho de madeira

estão sentados: o velho Hilse, sua mulher, igualmente velha, cega e

quase surda, seu filho Gottlieb e sua mulher Luise, absortos na oração

matinal. Uma bobina com dobadeira encontra-se entre a mesa e o tear.

Uma porção de instrumentos de fiar, dobrar e tecer estão guardados

sôbre as vigas enegrecidas do fôrro. Delas pendem Jongas (sic)

madeixas de fios. Uma porção de quinquilharias espalhadas pelo

quarto. O aposento, muito estreito e baixo, possui uma porta no fundo,

que dá para a casa. Na casa defronte a esta porta, uma outra porta

encontra-se aberta, permitindo vislumbrar o interior de outra seleto.

(sic) de trabalho, semelhante à; (sic) primeira. A casa é revestida de

pedras, apresenta rebôco danificado e possui uma escada ruinosa a

conduzir para a residência: Sobre um banquinho vê-se parte de uma

selha; peças de roupa surrada, utensílios domésticos de gente

amontoam-se desordenadamente. Do lado esquerdo, a luz penetra em

todos os aposentos.) (HAUPTMANN, 1968, p. 95-96)

Os personagens, por outro lado, pelo fato da peça ter como protagonista a

coletividade, são descritos de forma sumária: “os homens, parecidos uns com os outros,

todos mirrados, meio submissos, são na maioria pessoas pobres, de peito cavado e

tossegosas, cujos rostos apresentam um colorido pálido-sujo” (HAUPTMANN, 1968, p.

4). Isso acontece mesmo quando descreve um indivíduo como podemos ver na

descrição de August Baumert: “[...] seu filho August, dê vinte anos de idade, débil

mental, tronco e cabeça pequenos, extremidades longas, semelhantes às de uma aranha,

sentado em um banquinho, igualmente ocupado em enrolar o fio” (HAUPTMANN,

1968, p. 23).

As descrições físicas dão destaque à aparência, como forma de enfatizar o modo

como a exploração afeta a físico e a saúde dos tecelões, em contraste com outros

personagens de melhor condição financeira como vemos, por exemplo, na descrição da

filha do proprietário da hospedaria: “Anna Welzel, moça bonita de dezesseis anos, com

esplêndidos cabelos ruivos, (...), vestida discretamente [...]” (HAUPTMANN, 1968, p.

46). As referências à idade, quando aparecem, são aproximativas, “mais de cinquenta

anos”, “menos de trinta-e-cinco” (HAUPTMANN, 1968, p. 46). Raramente temos uma

descrição mais detalhada do figurino e mesmo essas são muito genéricas: “[...] a boina

de hussardo sôbre a cabeça, roupas e sapatos intactos, uma camisa limpa, sem

colarinho.” (HAUPTMANN, 1968, p. 30).

Pela própria natureza da peça, que tem como protagonista a coletividade, nós

temos como personagens tanto a multidão de anônimos (tecelões e tecelãs), não

havendo nenhuma indicação quantitativa na peça, quanto os personagens

individualmente listados (nominalmente ou não). E, como a cada ato novos personagens

Page 5: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

aparecem, enquanto outros não reaparecerão, isso faz com que sua encenação requeira

um grande número de atores. Isso também serve “para reforçar a linha do personagem

coletivo, já que não há só um como principal” (SANTANGELO, 2013, p. 5).

Devido às limitações de um artigo, não é possível analisar cada um dos

personagens, mas é preciso destacar que se dividem em três grupos. De um lado temos o

proletariado explorado pela burguesia que se revolta, no outro extremo temos a

burguesia que de opressora passa a ser oprimida, vítima da vingança dos tecelões.

No meio dos dois, temos os demais personagens que estão ou do lado da

burguesia (como o anônimo delegado) ou dos tecelões (como o professor Weinhold),

não sendo necessariamente membros do grupo que apoiam. A única exceção é o velho

Hilse que é um tecelão que, sem defender as ações exploratórias da burguesia, se opõe à

revolta, adotando a neutralidade na esperança da justiça divina.

São abundantes as indicações referentes ao momento da entrada, a

movimentação e a posição dos personagens, muitas delas acompanhadas de indicações

sobre a atuação ou a fala. Alguns exemplos são: “Levanta-se impetuosamente,

arrebatado, em fúria delirante” (HAUPTMANN, 1968, p. 43); “O almoxarife Pfeider

está de pé, atrás de uma grande mesa” (HAUPTMANN, 1968, p. 3); “Chegando”

(HAUPTMANN, 1968, p. 3).

São também abundantes as didascálias referentes à atuação. Elas englobam os

gestos (“Tocando o menino” (HAUPTMANN, 1968, p. 15)); as atitudes (“Subitamente

excitado, fanático” (1968, p. 40)); e expressões (“Com um sorriso idiota e espantado”

(HAUPTMANN, 1968, p. 34)). Assim como as da fala que descrevem o tom de voz,

“Grita para dentro” (HAUPTMANN, 1968, p. 119), e o modo como se fala, “Com

fúria” (HAUPTMANN, 1968, p. 107). Tais indicações visam não só a produção de um

efeito dramático, mas também dar maior realismo às cenas.

3. Proletariado X Burguesia em Os tecelões

Por meio da leitura do Manifesto Comunista vemos que, para o Marxismo, a

sociedade divide-se em duas classes: proletariado e burguesia. E o critério adotado para

dividi-la foi a relação entre os donos do capital e os que têm a força de trabalho para

vender. Essa divisão se encaixa perfeitamente na peça onde de um lado temos os

tecelões que produzem os tecidos, e do outro temos os proprietários das firmas que os

compram.

Page 6: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

A firma de Dreissiger é o cenário do primeiro ato, onde podemos ver,

inicialmente, a exploração e submissão dos tecelões. Vemos como Neumann, o caixa, e

Pfeifer, um ex-tecelão que havia ascendido ao cargo de almoxarife, exploram os

tecelões e os desprezam. Os dois agem como se não pertencessem ao proletariado, pois

há uma identificação deles com a burguesia. Essa identificação se apresenta por meio da

ideologia criada pela burguesia, que é difundida entre aqueles que ela domina. Assim,

alguns dos oprimidos (que não se veem como tais), atuam como instrumentos da

burguesia na opressão dos demais membros da classe trabalhadora.

PFEIFER – (Tomando rapé.) Heiber, eu não tenho só você para

atender. Os outros também estão esperando a vez.

TECELÃO REIMANN – Foi assim que eu recebi os fios. Eu os

coloquei no tear e assim os tirei. Não posso trazer uma linha melhor

que aquela que levo.

PFEIFER - Se não lhe agrada, é só não vir mais buscar fio nenhum.

Há muita gente querendo esse serviço e que se contenta com qualquer

coisa.

NEUMANN (Para Reimann.) Você não quer pegar o dinheiro?

TECELÃO REIMANN - Mas de maneira alguma eu me posso dar por

satisfeito.

NEUMANN - (Sem mais se importar com Reimann.) Heíber, dez

moedas de prata. Desconto de cinco moedas de adiantamento. Sobram

cinco moedas de prata (HAUPTMANN, 1968, p. 107).

Reimann e os outros aceitam passivamente a exploração e a humilhação que

sofrem, da depreciação do seu trabalho (o que leva a uma diminuição do pagamento),

muitas vezes consequência da baixa qualidade da matéria-prima fornecida aos tecelões

(o que não deixa de ser uma forma de aumentar os lucros). Isso ocorre até que uma voz,

o tecelão Bäcker, levanta-se contra essa exploração:

BÄCKER - (Dirigindo-se aos que estão de pé por ali, sem abaixar a

voz.) Isso é uma gorjeta miserável e nada mais. A gente que trabalhe

de manhã até de noite. E depois que a gente estêve dezoito dias

debruçado em cima do tear, noite após noite, como um pano torcido,

meio zonzo de tanto pó e sufocando de calor, aí a gente afinal

consegue arrancar treze moedas e meia de prata (HAUPTMANN,

1968, p. 107).

Bäcker discute com Pfeifer que, indignado, chama Dreissiger, o proprietário da

firma, com quem também vem a discutir. Essa discussão reflete a famosa citação de O

manifesto comunista: “a história de todas as sociedades hoje existentes é a história das

lutas de classes" (MARX; ENGELS, 2005, p. 40). Apesar das diferenças sociais e

Page 7: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

econômicas Bäcker não fica intimidado diante das ameaças e da arrogância com que é

tratado:

DREISSIGER - (Toma o dinheiro do Caixa com a maior

precipitação e atira-o sôbre a mesa de pagamento, de maneira que

algumas moedas rolam no assoalho.) Tome! – tome aí! – e agora

depressa – desapareça da minha frente!

BÄCKER - Primeiro eu quero meu dinheiro.

DREISSIGER - Aí está seu dinheiro; e se você não tratar de

cair fora... É meio-dia... Meus operários de tinturaria estão em hora de

almôço ... !

BÄCKER - Eu quero meu dinheiro na minha mão. É aqui que

eu quero meu dinheiro. (Toca a palma da mão esquerda com os dedos

da direita.) (HAUPTMANN, 1968, p. 14).

Pouco depois, um menino desmaia de fome e, para evitar maiores problemas,

ele leva o garoto para o escritório para cuidar dele. Algum tempo depois, Dreissiger

retorna para informar que o menino já está bem e faz um longo discurso contra os pais

que enviam suas crianças para o trabalho, pois o fabricante é apontado como culpado

quando alguma coisa lhes acontece. Ele complementa o discurso dizendo como é difícil

a vida de um fabricante enquanto o tecelão é sempre agradado. Esse lamento é, em

parte, fruto das críticas que os fabricantes estavam sofrendo da parte daqueles que não

queriam mais se sujeitar a exploração e que davam os primeiros passos para a futura

revolta:

DREISSIGER – (Controla-se, pergunta com uma calma

aparente de homem de negócios.) Êsse fulano também não participou?

PFEIFER – Êle é de Bielau. Êsses estão em toda parte onde

haja desordem.

DREISSIGER – (Tremendo.) Vou lhes dizer uma coisa: se

isso me acontecer mais uma vez, se mais uma vez passar pela minha

casa um bando assim de quase-bêbados, uma corja assim de pilantras,

como ontem à noite – com aquela canção infame ...

BÄCKER – O senhor está se referindo ao "Tribunal de

Sangue"? (HAUPTMANN, 1968, p. 13).

Tal discurso é extremamente tendencioso pelo fato de não apresentar as

dificuldades vividas pelos tecelões, devido aos baixos salários e as más condições de

trabalho, que os obrigam a colocar os filhos para trabalhar desde pequenos. Dreissiger

acusa os trabalhadores que criticam os fabricantes de se calarem sobre a difícil vida dos

patrões, mas incorre no mesmo erro ao não ver a vida difícil que os tecelões levavam

devido aos baixos salários e as más condições de trabalho .

Page 8: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

Dreissinger reclama de sua situação dizendo: “E quanto não depende do

fabricante, e quanta gente não sorve dele e quer viver às suas custas!” (HAUPTMANN,

1968, p. 19). Todavia, esquece que como fabricante ele depende dos tecelões, sorve

deles e vive às custas deles por meio da exploração de seu trabalho. E, mesmo assim, os

tecelões concordam com ele e continuam a se submeter humildemente à exploração.

No segundo ato, na casa de Ansorge, vemos com mais detalhes a dura vida dos

tecelões e como a insatisfação vai se espalhando entre eles. Insatisfação que Jäger já

havia canalizado para atos concretos: “Deixe estar, êle levou uma lição. Eu e o Bäcker

ruivo, nós lha (sic) ensinamos, e antes de ir embora ainda cantamos as palavras do

Tribunal de Sangue!” (HAUPTMANN, 1968, p. 40). Mas, se no início vemos somente

o sofrimento e a luta pela sobrevivência, posteriormente nasce a esperança.

Os momentos finais, quando Jäger começa a ler a “Canção de Dreissiger” para

os que ali estão, não só trazem a tristeza e a revolta pela exploração como lhes incute o

desejo de agir para mudar as coisas. Desejo expresso nas últimas palavras desse ato,

ditas por Ansorge: “Isso precisa mudar, digo eu, que aqui estou. Não vamos permitir

que continue assim, não vamos permitir, aconteça o que acontecer” (HAUPTMANN,

1968, p. 43). Essas palavras são o prenúncio da revolta e marcam o nascimento de um

dos líderes da revolta. Assim, vemos como aos poucos, as revoltas individuais e

esporádicas vão surgindo e confluindo para algo maior.

Sobre a canção, podemos dizer que é uma crítica mordaz e ofensiva à exploração

sofrida que, mesmo sendo dirigida a Dreissiger e seus funcionários, faz deste um tipo de

arquétipo4 dos fabricantes e pode ser visto como uma espécie de Hino dos revoltosos.

Ao mesmo tempo, a letra transmite um lamento pela sorte dos pobres tecelões. A partir

do trabalho de Arivaldo Sacramento (2008, p. 99-105) sobre as cantigas de escárnio e

maldizer defendemos a idéia de que a canção pode ser classificada como um tipo de

cantiga de maldizer5

4:

Canção de Dreissiger

4 A palavra "arquétipo" vem do grego ἀρχέτυπος (archetupos), que deu origem a palavra latina

archetypum, com o sentido de primeiro modelo de algo. Nesse sentido, “o termo "Arquétipo" foi usado

por filósofos neoplatônicos, como Plotino, para designar as idéias como modelos de todas as coisas

existentes, segundo a concepção de Platão” (NOVAES, 2011). É nesse sentido que utilizamos o termo

nesse artigo. Assim, Dreissiger pode ser visto como um modelo, um tipo universalmente reconhecido do

burguês. 4 É um tipo de canção surgida na Idade Média onde o eu-lírico faz uma sátira direta a uma pessoa, cujo

nome pode ou não ser revelado (na peça é), muitas vezes utilizando agressões verbais e palavrões (nela

temos, por exemplo, “filhos do diabo” e “patifes”, entre outras ofensas).

Page 9: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

Neste lugar existe um tribunal,

muito pior que o secreto.

Onde não há pronunciamento de sentença

Para tirar a vida ràpidamente.

Aqui se martiriza o ser humano.

aqui fica a sua câmara de torturas,

aqui suspiros inúmeros são contados

como testemunhas da miséria.

Os senhores Dreissiger são os algozes,

Os esbirros são seus criados,

Cada um dêles esfola o próximo,

sem procurar disfarçar seus instintos.

Todos vós, patifes, filhos do diabo...

exploradores vis, que

engordam às custas dos pobres,

maldição seja vossa recompensa.

Faça-se uma idéia desta angústia,

e da miséria dêstes pobres,

Muitas vêzes sem um pedaço de pão em casa,

Não é de se ter piedade?

Piedade, ah! um belo sentimento,

estranho para vós canibais,

cada um de vós já sabe o que quêr,

quereis a pele e a roupa dos pobres (HAUPTMANN, 1968, p.

41-43)

A sala de refeições de Welzel é o cenário do terceiro ato. Ali ficamos sabendo

que Dreissiger estava contratando mais tecelões e também da morte de um tecelão. Tais

acontecimentos demonstram que as condições de trabalho dos tecelões não sofreu

alterações. Pelas conversas temos uma visão das opiniões que os indivíduos de

diferentes setores da sociedade têm sobre eles. O viajante pode ser visto como um

arquétipo dos setores mais conservadores da sociedade ao demonstrar surpresa ao

comparar a suntuosidade do enterro com a miséria dos tecelões noticiada pela imprensa,

aparentando acreditar que tais notícias eram falsas.

No intuito de corrigir a visão equivocada do estrangeiro (e, consequentemente,

da sociedade influenciada pela ideologia burguesa) Wiegand explica que, por questões

de respeito aos familiares mortos, os tecelões contraem dívidas para pagar os enterros:

E quando se trata dos pais então, nesse caso predomina uma velha

superstição e os descendentes diretos e herdeiros juntam tudo, até o

último vintém, e o que os filhos não conseguem reunir, pedem

emprestado ao primeiro magnata que encontram. E depois as dívidas

submergem os pobres; pedem emprestado também ao padre ou ao

pastor, ao sacristão e a todos aquêles que encontram no caminho

(HAUPTMANN, 1968, p. 49).

Page 10: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

O viajante não entende o porquê dos párocos não se oporem a isso. Com isso

revela, numa postura crítica ao clero, que a exploração dos tecelões não vem só dos

capitalistas. Ele denuncia o fato de que o clero não adota mais os princípios da pobreza

e da misericórdia evangélica, pelo menos para com os mais pobres. Não há interesse em

ajudar os necessitados, como Cristo fazia. Os tecelões são vistos somente como uma

importante fonte de renda a ser explorada. O que vemos é a total falta de amor e

caridade para com os paroquianos. Segundo Wiegand:

Num entêrro assim grandemente concorrido, o clero vê sua evidente

vantagem. Quanto mais numerosa a assistência, tanto maiores as

ofertas e doações. Quem conhece as condições aqui prevalecentes,

pode afirmar, sem hesitação, que os senhores párocos encaram com

pouca simpatia aos enterros modestos e silenciosos (HAUPTMANN,

1968, p. 49-50).

Posteriormente Ansorge, o velho Baumert e outros tecelões entram no

estabelecimento e, pelas declarações de um guarda florestal e as discussões mantidas

com um camponês, vemos que os conflitos e a exploração estão presentes nas relações

entre camponeses e proletariados:

PRIMEIRO VELHO TECELÃO – Isto é assim agora: O camponês e

o aristocrata estão no mesmo barco. Se um tecelão quiser uma

morada, diz o camponês: dou-lhe um buraquinho qualquer, desde que

me pague um bom aluguel e me ajude a fazer a colheita e se você não

quiser, tem de procurar outro lugar. Indo o tecelão a outro camponês,

êle obterá dêsse resposta idêntica.

(...)

O CAMPONÊS - (Revoltado.) Vocês, sem-vergonhas famintos, para

que servem? Por acaso sabem trabalhar a terra com o arado? Sabem

traçar sulcos retos ou levantar a aveia colhida e carregar a corroça?

Não servem para nada além de vagabundear e deitar-se com suas

mulheres, Vocês são uns merdões! E muito úteis! (HAUPTMANN,

1968, p. 57)

Logo depois, chegam mais tecelões, liderados por Jäger e Bäcker, e podemos ver

como a revolta cresceu e, de certo modo, os tecelões estão mais ousados. Mesmo a

chegada de um policial não os intimida. O guarda Kutsche e Witting discutem

violentamente (HAUPTMANN, 1968, p. 66-67) e mesmo que ele proíba os tecelões de

cantar a música Bäcker, num gesto de desafio, faz com que os tecelões a cantem para

depois saírem com a intenção de obter um aumento de salário da parte de Dreissiger.

Page 11: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

O cenário do quarto ato é a residência de Dreissiger, que está revoltado com a

atitude dos tecelões. Ele perde o controle e discute com Weinhold, professor de seus

filhos, por defende-los. Enquanto isso, os tecelões estão se reunindo do lado de fora.

Pfeifer chega acompanhado pelo delegado, pois haviam prendido Jäger, ocorre uma

tentativa de interrogatório que fracassa. A atitude do Pastor Kittelhaus mostra, mais

uma vez, como os religiosos estavam a favor da burguesia, em detrimento dos tecelões.

O delegado sai com o preso para levá-lo à cadeia, mas a revolta explode na

libertação de Jäger e na surra dada aos que o prenderam. O pastor resolve sair para

tentar persuadir a multidão, mas também é atacado. Os tecelões começam a tentar

arrombar as portas para invadir e o medo invade o coração dos que ali estão. O ato

termina com a invasão da casa, sem que saibamos qual foi o fim dos que ali estavam.

A casa de Hilse é o cenário do último ato 6

5. Pelo desenvolvimento da peça era de

se esperar que a destruição da casa e da firma, combinada ao trágico fim dos que ali

estavam, fossem o ápice, mas não foi o que aconteceu. A ação desaparece de cena,

perdendo importância diante dos novos acontecimentos, e a história muda de rumo. A

peça passa a ter como ponto central o que ocorre na família de um tecelão quando ela se

divide entre quem adere e quem se opõe a revolta. Ali ficamos sabendo, por meio de

Horning, da destruição da casa e da firma de Dreissiger. Porém, em vez de apoiar a

atitude dos tecelões ele fica chocado com o que ouve: “Mas me contar que tecelões,

homens como eu e meu filho, fizeram coisas assim – nunca! Nunca, de modo algum vou

acreditar nisso” (HAUPTMANN, 1968, p. 101).

Vemos que o velho tecelão é um homem de rígidos princípios morais quando a

pequena Mielchen chega com uma colher de prata que ela, juntamente com outros filhos

de tecelões, encontrou jogada na frente das ruínas da casa do fabricante. Vemos que a

divisão na família começa a aparecer já que Luise hesita em devolver a colher: ”Se a

possuíssemos, teríamos do que viver por muitas semanas” (HAUPTMANN, 1968, p.

102). Por outro lado, a revolta continua se espalhando:

GOTTLIED – (Retorna. Ainda na casa, ofegante.) Eu os vi, eu os vi.

(A uma, mulher na, casa.) Estão aí tia, estão aí! (Na porta.) Estão aí,

pai, estão ai! Trazem varas de bambu, ancinhos e picartes, Já estão em

frente' da casa do Dietrich, fazendo barulho. Acho que estão

recebendo dinheiro. Ó Jesus, o que vai acontecer? Nem quero olhar.

Tanta gente, meu Deus, tanta gente! Se êles pegarem um impulso – ó

5 Deve-se destacar que o último ato gerou críticas devido a curva dramática da peça: “do 1o ao 4o ato há

uma elevação cada vez maior da ação, no 5o ato segue-se a queda” (ROSENFELD,1985, p. 95).

Page 12: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

maldição, ó maldição! aí os nossos fabricantes vão passar por maus

pedaços (HAUPTMANN, 1968, p. 104-105).

Ao mesmo tempo em que a revolta vai crescendo, vemos como os participantes

chamam outros tecelões para também participarem e isso leva o velho Hilse a

condenação aberta da revolta, condenação alicerçada em seus princípios religiosos:

“Não vá se meter em uma coisa dessas, Gottlieb. O diabo tem parte nisso. O que êles

estão fazendo é obra de satanás” (HAUPTMANN, 1968, p. 105). Essa atitude revolta

Luise, dividindo totalmente a família.

LUISE – (Dominada por excitação apaixonada, com violência.) Sim,

sim, Gottlied, esconda-se atrás do fogão, pegue uma colher na mão e

ponha uma tigela cheia de leite nos joelhos, vista um paletó e diga

uma oraçãozinha, para que o pai fique satisfeito com você. – E isso

quer ser um homem? (HAUPTMANN, 1968, p. 105)

Dentro do teologia cristã encontramos o conceito de providencialismo.

Basicamente, o “ providencialismo” é um conceito teológico que exprime uma visão da

história dos indivíduos e das sociedades como processos governados e controlados por

Deus” (BALTODANO, 2011). Nesse sentido vemos que o velho tecelão se defende das

acusações de covardia e faz um longo discurso de defesa partindo de uma visão

providencialista da história a partir da qual os homens devem se sujeitar a vontade de

Deus. Ao mesmo tempo, ele é guiado pela ideia bíblica de justiça divina, ou seja, que

um dia todos os homens serão julgados por deus e terão que prestar contas dos seus

atos.

VELHO HILSE - Eu lhe digo, Gottlieb! Não duvide da única coisa

que nós, os pobres, possuímos. Para que eu teria ficado sentado aqui -

para que teria pisado os pedais durante quarenta anos e mais? Para que

eu teria olhado calmamente, vendo o outro lá em frente viver com

altivez e luxúria – fazendo ouro da minha fome e da minha miséria?

Para que então. Porque tenho urna esperança. Apesar de tôda a

pobreza, possuo alguma coisa. (Apontando pela janelas.) Pensei

comigo: você tem a sua parte aqui, eu a minha lá -no outro mundo. E

podem me esquartejar – eu tenho essa (sic) convicções. Foi-nos

prometido. Haverá um julgamento; mas não seremos nós os juízes. A

mim pertence a vingança, diz o Senhor, nosso Deus (HAUPTMANN,

1968, p. 108).

É possível interpretar a atitude de Hilse de duas formas. Primeiro, podemos ver

nela a adoção da ideologia burguesa pelo proletariado. Ao adotá-la, o tecelão passa a se

submeter docilmente aos burgueses, o que torna praticamente impossível a existência de

Page 13: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

algum tipo de revolta. Mesmo quando ela tem o objetivo de melhorar a situação dos

tecelões. Mas, ao mesmo tempo, como já foi dito, sua submissão está baseada na adoção

de princípios religiosos. Mesmo que a religião também possa ser utilizada pela

burguesia como um instrumento de dominação, como vemos na própria peça, ela não se

reduz a isso.

É importante destacar que, segundo Erwin Teodor, a peça é “uma obra

carregada de mensagem espiritual” (HAUPTMANN, 1968, p. XXIV). Tal fato,

combinado ao misticismo presente em algumas de suas obras nos permite uma leitura

do texto a partir de uma perspectiva meramente religiosa. Nesse sentido, dentro de uma

perspectiva cristã, essa submissão é vista como uma manifestação da virtude do tecelão,

de sua “superioridade moral” quando comparada às ações dos demais tecelões; nas

quais identificamos uma falta de ética que os leva a violência, ao roubo e a destruição

dos bens alheios.

Os tecelões vão até a residência e tentam convencer o velho tecelão a se juntar a

eles, porém ele se recusa, o que causa indignação. Hilse chega a ser ameaçado: “JÄGER

- E fizeram muito bem! (Segurando o punho diante do rosto do velho.) Se você disser

mais uma palavra, lhe parto a cara” (HAUPTMANN, 1968, p. 114). Vemos que

Hauptmann não apresenta a revolta de forma idealizada, ele procura retratá-la com seus

aspectos positivos e negativos, o que não tira o mérito da revolta. Se alguns partem para

extremos há aqueles que procuram impedir que a revolta se transformasse em mero

bandidismo: “BÄCKER - Calma, calma! Deixe o velho. Pai Hilse: pensamos assim:

antes morto do que recomeçar uma vida dessas” (HAUPTMANN, 1968, p. 114).

Louise e o velho Baumert partem com os demais enquanto os outros

permanecem com o velho. Pouco depois, os tecelões entram em confronto com os

soldados e Gottlieb parte para salvar a esposa que o havia abandonado para seguir com

os outros tecelões. Há outra salva de tiros e o velho, que estava na janela, é morto

enquanto outras pessoas vão se unir aos revoltosos. A peça termina em aberto, com

Mielchen e mãe Hilse falando com o morto sem terem ainda se dado conta do que havia

acontecido. Para alguns críticos, o dramaturgo optou por esse final em aberto porque

não pretendia apresentar “uma pequena totalidade em si fechada” (ROSENFELD,1985,

p. 96), e sim um fragmento dessa realidade.

Esse final trágico permite discutir a questão da neutralidade e das consequências

sofridas pelos proletários que tentam assumir tal postura diante dos conflitos sociais,

Page 14: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

mesmo correndo o risco de serem vistos como inimigos pelos companheiros. Mas, se

optarmos por examinar a peça dentro da ótica religiosa, adotando-se a interpretação

dada por Erwin Teodor no prefácio da peça, tal acontecimento faz do velho Baumert

uma espécie de mártir que está disposto a morrer por suas convicções religiosas.

Segundo Teodor (HAUPTMANN, 1968, p. XXIV), Hilse dá início a uma série de

personagens que atuam como porta-vozes de uma mensagem religiosa:

O velho Hilse é o primeiro representante de uma figura que, daí

por diante, será uma constante na obra de Hauptmann: o ser

humano bom, retraído, muitas vêzes passivo, indivíduo

geralmente religioso e simples, superior, pelas qualidades

morais e espirituais. Assim transforma-se, portanto, no seu

último ato, a peça de fundo social e profano em uma obra

carregada de mensagem espiritual.

Consequentemente, na visão do crítico, a temática social e religiosa estariam

presentes em Os tecelões.

Considerações finais

Ao examinarmos a peça Os tecelões à luz da teoria marxista podemos identificar

com clareza o tema da exploração do proletariado pela burguesia. Nesse sentido,

podemos ver a divisão do proletariado, o conflito entre os proletários que aderem a

revolta contra os que condenam a rebelião, como um de seus pontos centrais. A análise

da presença da temática religiosa, apontada em diferentes momentos, carece de maiores

estudos, o que fugiria aos objetivos desse trabalho, mas não pode ser ignorada. Ela abre

novas possibilidades e carece de maiores aprofundamentos.

Por fim, devemos destacar o fato de que o pequeno número de traduções e de

estudos, sobre o escritor e sua obra, contribui para que ele continue sendo pouco

conhecido entre nós. Esperamos que esse artigo possa servir para despertar o interesse

dos leitores e pesquisadores pela obra de Hauptmann.

Referências bibliográficas

BALTODANO, Andrés Pérez. A mudança social começa com a transformação da

idéia de deus: Providencialismo, pragmatismo resignado e neoliberalismo. Servicios

Page 15: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

Koinonía de la Agenda Latino Americana, 2011. Disponível em:

<http://www.servicioskoinonia.org/agenda/archivo/portugues/obra.php?ncodigo=357>.

CEIA, Carlos. Didascália. E-Dicionário de Termos Literários. Disponível em:

<http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=741&I

temid=2>.

CLARES, Fuensanta Muñoz. Teatro del siglo XIX: teatro realista y naturalista. Blog

artes escénicas, 2010. Disponível em:

<https://arteescenicas.wordpress.com/2010/02/10/teatro-del-siglo-xix-teatro-realista-y-

naturalista/>.

GASSNER, John. Mestres do teatro II. São Paulo: Perspectiva / Edusp, 2001.

GRUDEN, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova 1999.

HAUPTMANN, Gerhart. Os tecelões. Tradução de Marion Fleischer e Ruth Mayer

Duprat. Prefácio de Erwin Teodor. São Paulo: Brasiliense, 1968.

_________. O herege de Soana; Michael Kramer. Tradução de Augusto Meyer e

Herbert Caro. Rio de Janeiro: Editora Opera Mundi, 1971.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo

editorial, 2005.

NETTO, José Paulo. O que é o marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.

NOVAES, Adenáuer. ARQUÉTIPOS. Blog Psicologia Espiritual, 2011. Disponível

em: <http://psicologiaespiritualgs.blogspot.com.br/2011/10/arquetipos.html>.

ROMANUS, Petra Bossmann. Aspectos da vida de Gerhart Hauptmann. Revista

Letras, Curitiba, Vol. 19, 1971. Disponível em:

<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/letras/article/view/19754>.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

SANTANGELO, Cecilia. Análisis comparativo entre “Los Tejedores” y “Casa de

Muñecas”. Trabajo Pratico No 2, Faculdad de Diseño y Comunicación, Universidad de

Palermo, 2013. Disponível em:

<http://fido.palermo.edu/servicios_dyc/blog/docentes/trabajos/7483_18294.pdf>.

SEPA, Fernanda Mendonça. O teatro de William Butler Yeats: teoria e prática. São

Paulo: Ollavobrás/Abey, 1999.

SILVA, Ednilson Esmério Toledo da. Além do Cortiço: um estudo sobre o Naturalismo

na perspectiva lukacsiana. Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de

Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 1, n. 3, 2014, p. 37-43.

Disponível em:

<http://revistaalabastro.fespsp.org.br/index.php/alabastro/article/view/56/34>.

Page 16: Os tecelões de Gerhart Hauptmann: luta de classes no ... · Mas, no que diz respeito ao naturalismo, é uma fase de sua obra que se enquadra entre os anos de 1887-1896. Além disso,

SOUZA, Arivaldo Sacramento de. 154 f. A representação das relações entre homens

nas cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas. Dissertação (Mestrado em

Letras e Linguística) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. Disponível em:

<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/8533/1/Arivaldo%20Sacramento%20de%20S

ouza.pdf>.

VOIGT, Félix A.. Vida e obra de Gerhart Hauptmann, In: HAUPTMANN, Gerhart. Os

tecelões. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 29-57.