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Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e agentes
23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP)
OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A REPRESENTAÇÃO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT):
aproximações e distanciamentos da teoria democrática contemporânea
Claudio André de Souza (UFBA)1
1 Mestre em Ciências Sociais (UFBA). Doutorando em Ciências Sociais (UFBA) e professor de Ciência
Política da Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e da Faculdade Baiana de Direito. E-mail:
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Resumo2
Este trabalho resulta de pesquisa concluída sobre a influência de atores organizados na atuação dos vereadores de Salvador pertencentes ao Partido dos Trabalhadores (PT). A partir da revisão bibliográfica ligada ao tema, busca-se entender como se conforma atualmente a relação entre os movimentos sociais e o PT. Diante dos resultados obtidos por esta e pelas demais pesquisas estabelecidas nos últimos anos a respeito de grandes transformações “representativa” e “participativa” do partido, busca-se analisar os pontos de aproximação e divergência do seu contexto atual com a agenda de pesquisa da teoria democrática contemporânea que tem contribuído vastamente na formulação de alternativas que permitam maior representatividade no relacionamento entre representantes e representados, sugerindo que estes devem assumir um ativismo situado na dimensão democrática da participação e representação.
Introdução
Ao longo do processo de amadurecimento do pensamento político moderno, a
representação adquire o sentido de tornar presente algo que, no entanto, não
está literalmente presente (PITKIN, 1967). O debate proposto pela teoria
democrática enfatiza o desenvolvimento de modelos de representação mais
“legítimos”: por um lado, o que vincula os mandatos aos seus eleitores,
devendo aquele perseguir os interesses destes; ou, do outro, a constituição de
mandatos distantes dos interesses particulares, isto é, cujo objetivo são os
interesses gerais da nação sem se curvar aos seus eleitores de maneira
atomizada. Somente no século XX os debates em torno da dicotomia entre
representação e democracia direta ensejam os aspectos formais da política
ateniense.
A teoria democrática atual se mantém empenhada no estudo da representação,
problematizando o caráter deficitário da democracia representativa diante do
descrédito dos cidadãos comuns no âmbito formal da política (MANIN, 1998). O
afastamento dos cidadãos em relação à política é o cerne do que Lechner
(2004) analisa a partir de duas dimensões políticas a serem observadas: a da
política (prática institucionalizada) e a do político (como o conjunto de formas
2 Este artigo compreende os resultados de Dissertação de Mestrado defendida ao final de 2011 e
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFBA). A pesquisa de mestrado esteve
sob orientação da Profa. Dra. Maria Victória Espiñeira (Departamento de Ciência Política).
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em que imaginamos, vivemos e valorizamos, em termos democráticos, a
comunidade de cidadãos). A crise da política para ele residiria nas práticas
institucionalizadas, pouco afetando os sentidos do político.
O sistema político brasileiro tem conseguido processar de modo satisfatório os
conflitos, embora, devamos considerar que os partidos políticos são dotados de
precário enraizamento social (MELO, 2007). Os partidos políticos exercem
como atribuição fundamental organizar o processo de seleção e representação
dos interesses, opinião e ideias presentes em cidadãos comuns, havendo,
assim, uma circularidade entre Estado e sociedade civil. Ao seu papel de
“educador” nos regimes democráticos soma-se a função primaz em fazer a
ligação entre os cidadãos e o governo. Os partidos organizam as atividades do
Legislativo e do Executivo, ao mesmo tempo em que recrutam cidadãos que
desejam entrar na política.
A pergunta de partida empreendida neste trabalho está ligada ao tema da
representação política, ou seja, se o PT ainda pode ser considerado um partido
que mantém fortes vínculos com seus representados e, nesse sentido, se ainda
são os mesmos atores políticos mobilizados no momento de sua fundação e a
posteriori. Cabe entender, portanto, em que medida é possível aproximar
analiticamente o PT às questões suscitadas pela teoria democrática
contemporânea, no que se refere a manutenção de uma representação
democrática baseada em um maior vínculo entre representante e representado
(ARAUJO, 2006; MIGUEL, 2003; 2005; 2010; NOGUEIRA, 2008; URBINATI,
2006; YOUNG, 2006).
O parlamento tornou-se espaço vital de atuação do PT mesmo afirmando,
conforme suas primeiras resoluções oficiais, que se tratava de um locus
secundário e limitado diante do objetivo de criar condições políticas para a
transformação social do Brasil. O papel da atuação parlamentar enquanto
acúmulo de forças por parte do PT pode ser constatado nos seus documentos
e resoluções aprovadas desde a sua fundação no início da década de 1980.
As mudanças observadas na trajetória do partido nos últimos anos reafirmam a
sua guinada a um padrão institucionalizado de competição eleitoral, mas, antes
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disso, uma nova face ideológica de concepção socialdemocrata, estabelecendo
alianças com partidos de centro e direita como garantia de vitórias eleitorais de
grande impacto, exemplificada nas vitórias alcançadas nos últimos três pleitos
para a presidência da república. A mudança que nos interessa problematizar
em relação ao PT passa ao largo das questões muito difundidas, mas sem rigor
empírico, de autonomia e cooptação dos movimentos sociais que
tradicionalmente apoiam o partido. Interessa-nos compreender de que forma o
partido mantém nos dias atuais vínculos representativos e participativos com
atores políticos posicionados ao longo da trajetória do partido.
Este trabalho compreende que a representação política vive uma crise em
parte fruto da ausência de vínculos e controles dos cidadãos em relação aos
representantes eleitos nas principais democracias. Tal problema tem sido
“checado” pela teoria democrática contemporânea, que aponta como
necessidade a produção de vínculos, bem como mecanismos formais e
informais de participação dos cidadãos comuns. Desse modo, as mudanças
vividas atualmente pelo PT apontam para a tensão na sua concepção e prática
da representação política, ainda expressando os movimentos sociais e atores
organizados, mas transformando o conteúdo dessa representação nos últimos
anos diante da valorização de novas pautas e interesses que condensam a
ligação do partido ao seu espectro político oposto. Essa questão irrompe a
fragilidade teórica da concepção de representação caso seja observado
apenas o aspecto da expressão do representado por meio da atuação do
representante. O fundamento teórico-analítico da representação democrática
se refere a expressão, presença e participação dos representados em torno do
representante (NOGUEIRA, 2008; URBINATI, 2006; YOUNG, 2006; ARAUJO,
2006).
Este trabalho está divido em três partes: no primeiro momento apresenta-se um
balanço de literatura acerca dos debates sobre a representação política de
acordo com as contribuições da teoria democrática contemporânea, que
problematizam o afastamento dos representados somado as constatações dos
limites visíveis da democracia representativa, ou seja, de “representatividade”
do sistema político.
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A segunda parte do trabalho expressa uma análise da relação do PT com os
movimentos sociais com base na literatura pertinente ao tema. Busca-se a
partir de pesquisa concluídas e em andamento promover um balanço provisório
no qual é possível apontar se o PT ainda representa interesses e forças
políticas da sociedade civil que coincidem com a sua trajetória.
A terceira parte apresenta alguns dados primários de uma pesquisa concluída
sobre a relação do PT com os movimentos sociais de Salvador, que reitera no
plano teórico e empírico resultados presentes nas demais pesquisas que
compõem uma agenda específica de estudos interdisciplinares sobre o partido,
particularmente da ciência política.
Representação política e teoria democrática
Para Pitkin (2006) o conceito de representação da política contemporânea se
origina do termo em latim repraesentare atribuído aos romanos para dar
significado ao ato de trazer literalmente à presença algo previamente ausente.
Este significado não manteve ligação às instituições políticas até o século XIII.
A representação – a ação pela qual uma pessoa age por outra – obteve um
sentido político somente a partir do século XVII.
Há nesta definição de representação – o de trazer à presença algo que se faz
ausente – o paradoxo entre o ato de tornar o ausente presente, seja concebida
como standing for, nas suas acepções marcadas descritiva e simbolicamente,
ou como acting for, a representação concebida pela idéia de autorização, que
envolve o sentido de “tornar o representado presente”. Seja na arte, que a
representação é entendida enquanto standing for tornando presente algo
ausente pelo reflexo ou semelhança; ou na política, que a representação ocorre
acting for, o ausente está presente na ação do representante como se
estivesse agindo.
A presença do representante justifica-se e se valida pela ausência do
representado, do mesmo modo que a ausência do representado se valida pela
presença do representante. A “presença da ausência”, portanto, torna a
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representação nada menos que o ato de “tornar presente algo que, no entanto,
não está literalmente presente” (PITKIN, 2006). Em outras palavras, “ser
representado significa ser feito presente em algum sentido, enquanto não
estando presente literalmente ou plenamente de fato” (PITKIN, 1967, p. 153
apud FERES JÚNIOR & POGREBINSCHI, 2010, p. 139).
O conceito de representação no sentido político é fundamentado “a partir de
um problema normativo que apenas se revela de modo empírico quando o
representante é chamado não apenas a tornar presente a ausência do
representado, mas a lidar com a presença – constante e inafastável – de sua
ausência” (FERES JÚNIOR & POGREBINSCHI, 2010, p. 139). O representante
enquanto tal depende da ausência do representado, que se torna presente
através do seu ato. Distante de uma polifonia do conceito de represnetação, a
“presença da ausência” é um ponto de partida para sua definição, embora se
perceba na atualidade novas interpretações no que se refere a atuação do
representado ao mesmo tempo em que mantém-se a legitimidade do
representante.
Manin (1998) compreende que o governo representativo “foi instituído com a
plena consciência de que os representantes eleitos seriam e deveriam ser
cidadãos proeminentes e socialmente diferenciados daqueles que os elegeram
(...) a isso chamaremos de ‘princípio de distinção’” (p. 94).
A relação do representante com os representados através do mandato do
representante se baseia em duas possibilidades, conforme Schmitt (apud
LEYDET, 2004): em primeiro lugar, o viés republicano, fundado numa
comunidade que confere legitimidade a uma unidade política capaz de interferir
nas atividades privadas, objetivando a igualdade e “corrigindo” os interesses
particulares cristalizados numa sociedade civil que antecede a criação da
comunidade política.
O modelo liberal ocorre através da vinculação do mandato aos representados
através de instruções estabelecidas particularmente pelos eleitores. O
representante neste modelo cumpriria o papel de um advocate que atua em
substituição ao outro, mas com delimitações explícitas do que o mesmo deve
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representar na ausência do soberano. Para a autora, ambos os modelos
apresentam desvantagens, sendo que a limitação republicana reside no
“sobrevoo”
que o modelo republicano confere ao Estado (retomo essa expressão de Spitz e Gauchet), seu estatuto de criador dos direitos dos cidadãos, não deixa espaço para um contra-poder legítimo capaz de contestar a utilização eventualmente abusiva desse poder (LEYDET, 2004, p.76-77).
O ideal para a autora seria o encontro de um ponto de equilíbrio entre os dois
modelos, haja vista o fato do modelo liberal apresentar desvantagens enquanto
uma concepção bastante fraca do autogoverno, enquadrado, limitado, que é pela existência de uma sociedade civil que lhe preexiste e que ele deve respeitar; limitado também pela inclusão dos direitos individuais numa constituição diante da qual os parlamentos devem se inclinar (p. 77).
O conceito de representação revela diversos enfoques analíticos (KINZO,
1980). A representação possibilita o significado de autoridade. Em relação ao
conceito, Hobbes possui a noção de que tendo um homem o direito de
executar uma ação, ou seja, a propriedade da ação (o que ele define como
“autor”), ele pode executá-la ou pode autorizar alguém a fazê-la por ele. A
pessoa que age em nome de quem lhe passou o direito – o “ator” – detém
autoridade, portanto, para agir pelo “autor” da ação.
O conceito de representação também situa-se na dimensão simbólica e
descritiva, que torna presente algo que de fato se encontra ausente, ou seja,
buscando, isto é, a representação no sentido simbólico e descritivo tem como
objetivo a correspondência de características entre o corpo representativo e o
de representado.
Por fim, a representação como atividade explicita duas perspectivas de acordo
com Kinzo (1980):
1.Como é e como se dá a atividade representativa, ou seja, qual é o papel de um representante num corpo legislativo. A discussão desta questão tem sido marcada pela controvérsia entre livre mandato ou representação independente versus mandato imperativo ou representação mandatária, delegada. 2. O que orienta a atividade de um representante. Uma vez que uma atividade não se conduz no vácuo, falar de atividade de um representante implica levantar a questão da natureza dos interesses e/ou desejos, como eles são concebidos, de forma a nortear o ato de representar (p. 29).
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O questionamento potencial do mandato livre nas democracias
contemporâneas se refere à valorização de uma “exigência de presença”3, isto
é, a aproximação em termos de similitude entre representante e representado.
Esse caráter da representação de grupos especiais ressalta a inclusão política
através da identidade (YOUNG, 2006).
Mesmo com a coincidência entre representante e representado, o exercício do
mandato ocorre com a substituição física dos cidadãos. O reconhecimento
desse fato reafirma que há diferença,
uma separação entre o representante e os representados. Evidentemente, nenhuma pessoa pode pôr-se por (stand for) e falar como uma pluralidade de pessoas. A função do representante de falar por não deve ser confundida com um requisito identitário de que o representante fale como os eleitores falariam, tentando estar presentes por eles na sua ausência (...) o representante inevitavelmente irá se afastar dos eleitores, mas também deve estar de alguma forma conectado a eles, assim como os eleitores devem estar conectados entre si (p. 149).
Nas democracias contemporâneas, observa-se o papel intermediário do partido
político, se posicionando entre os eleitores e eleitos:
a formação e o constante crescimento dos partidos fizeram com que eles se interpusessem – por inércia e não pela má intenção de um ou outro grupo ávido de poder – entre o corpo eleitoral e o parlamento e, de um modo mais geral, entre o titular da soberania e aqueles que de fato deveriam exercer a própria soberania (BOBBIO, 2003, p. 296).
As reflexões sobre a representação produzidas pela teoria democrática
contemporânea buscam compreender: a) como os representantes devem ser
escolhidos, havendo discussões sobre governos, sistemas eleitorais e sistemas
partidários; b) como os representantes, uma vez escolhidos, devem se
comportar, a qual enseja estudos sobre o comportamento dos atores políticos e
o funcionamento das instituições políticas (FERES JÚNIOR &
POGREBINSCHI, 2010, p. 138).
Pesquisas empíricas e proposições normativas da teoria democrática
reconhecem de alguma forma que as “eleições ‘engendram’ a representação,
mas não ‘engendram’ os representantes” (URBINATI, 2006, p. 193), buscando 3 Aproxima-se da forma de representação simbólica e descritiva acima mencionada.
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compreender como tornar o representante mais suscetível às vontades dos
governados em termos de responsividade (MIGUEL, 2005).
Nessa direção, as principais reflexões da atualidade pretendem debater a
oposição entre participação e representação, na medida em que objetivam ao
nosso olhar uma representação “representativa e participativa” sem
desvalorizar a legitimidade dos partidos políticos (ARATO, 2002; MIGUEL,
2003; URBINATI, 2006; YOUNG, 2006). A representação democrática, nesse
aspecto, necessita da presença da sociedade civil nos mandatos
parlamentares, pois a representação atribui uma dinâmica de circularidade
entre as instituições estatais e as práticas sociais, portanto, de transformação
do social em caráter político (HOCHSTETLER & FRIEDMAN, 2008; LAVALLE
& CASTELLO, 2008; NOGUEIRA, 1998; URBINATI, 2006).
Urbinati (2006) defende que o problema da representação consiste no seu
déficit de democracia4 - uma representação democrática precisa
ativar uma variedade de formas de controle e supervisão dos cidadãos [...] a democracia representativa é uma forma de governo original, que não é idêntica à democracia eleitoral [...] a soberania popular, entendida como um princípio regulador “como se” guiando a ação e o juízo político dos cidadãos, é um motor central para a democratização da representação (p.191).
A autora confere ao representado legitimidade relativa a sua presença junto ao
mandato, exercendo poder negativo, observando que
não é novidade dizer que embora os procedimentos possam conter a desordem social, sua eficácia é amplamente dependente de fatores éticos ou culturais. Isso é verdadeiro particularmente no caso da representação, pois o mandato que amarra o(a) representante à sua consciência é essencialmente voluntário; não é legalmente vinculativo. (p. 216).
Para Nogueira (2008) a representação política não exclui graus de participação
ativa dos cidadãos antes e depois da ida as urnas. O autor entende que
a representação não exclui que os indivíduos, os grupos, as associações, participem diretamente da vida pública, tanto no sentido de eleger bons representantes e de fiscalizá-los quanto no sentido de
4 A produção da autora tem sido uma das mais importantes no objetivo de estudar os desafios e
possibilidades da representação política. Para Feres Júnior & Pogrebinschi (2010) “a representação
pertence à história e à prática da democratização e que tão importante quanto repensar o conceito de
representação é pensar um conceito de representação democrática. O que está em jogo,portanto, é indagar
as condições por meio das quais a representação pode ser (e pode vir a se tornar ainda mais) democrática”
(p. 141).
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exercer pressão e controlar o poder do Estado, quanto enfim no sentido de agir para organizar melhor a comunidade (p. 115).
No que concerne o poder democrático, tanto a participação quanto a
representação assumem uma posição de complementaridade, uma vez que em
um contexto democrático “todos participam e se fazem representar. Os
representantes mantêm vínculos fortes com os representados. Representam-
nos politicamente e por isso têm autonomia para decidir, mas não se descolam
deles, nem viram as costas para eles” (p. 116).
Os representados, por sua vez,
escolhem representantes e o fiscalizam, mas agem para interferir diretamente em todo o circuito da tomada de decisões. Fazem isso mediante pressões e negociações, bem como mediante atos de contestação das ordens e dos comandos e mediante ações práticas de proposição positiva, destinadas a equacionar e resolver problemas [...] a política democrática não pode ser concebida sem participação, representação e institucionalização, tanto quanto de uma idéia de limitação e regulamentação do poder coercitivo. Só temos como admitir um Estado soberano (isto é, livre e responsável perante seus súditos e diante dos demais Estados) se admitirmos a presença de um povo soberano (isto é, capaz de se autodeterminar) (p. 116).
Embora os representantes atuem no intuito de satisfazer suas bases, ocorre
que as principais democracias exprimem o afastamento dos representantes em
relação aos representados, configurando uma dupla crise da representação
(LEYDET, 2004), afetando os dois modelos, um de caráter particular da
sociedade e referenciado por uma visão individualista (liberal); e o modelo
organicista, um todo (comunidade política) precedendo as partes (indivíduos).
Essa crise traduz-se
no sentido eminente, mas também crise da representação-mandato, na medida em que a radicalização da exigência de presença/de identidade, de que é portadora a democracia contemporânea, conduz ao questionamento da capacidade dos parlamentos para assegurar adequadamente essa segunda forma de representatividade. (p.81)
Nessa direção, Miguel (2005) entende que o êxito da democracia
representativa reforça a especialização da política em consequência da
influência da técnica. Segundo o autor,
nossos estados são muito extensos para que todos reúnam-se e muito populosos para que se possa imaginar um diálogo que incorpore cada um de seus cidadãos. As questões políticas são complexas demais para que dispensemos a especialização dos
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governantes, e, por sua vez, os afazeres privados absorvem demais cada um de nós, reduzindo ao mínimo o tempo para a participação política. (p.26)
Para ele, a democracia representativa apresenta diversas limitações,
destacando-se três aspectos:
(1) a separação entre governantes e governados, isto é, o fato de que as decisões políticas são tomadas de fato por um pequeno grupo e não pela massa dos que serão submetidos a elas; (2) a formação de uma elite política distanciada da massa da população, como consequência da especialização funcional acima mencionada. O “principio da rotação”, crucial nas democracias da Antiguidade – governar e ser governado, alternadamente -, não se aplica, uma vez que o grupo governante tende a exercer permanentemente o poder e (3) a ruptura do vinculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes, o que se deve tanto ao fato de que os governantes tendem a possuir características sociais distintas das dos governados, quanto a mecanismos intrínsecos à diferenciação funcional, que agem mesmo na ausência da desigualdade na origem social, conforme Michels (1982 [1914]) tentou demonstrar já no início do século XX (p. 26-27).
Em outro trabalho, Miguel (2005, p. 29) analisa as principais correntes da teoria
democrática contemporânea, destacando que os autores vinculados a teoria da
democracia participativa propõem a possibilidade de aprimoramento da
representação por meio da qualificação política dos cidadãos e das cidadãs
comuns. Em verdade, os participacionistas pretendem estimular uma política
representativa na medida em que engloba a “transferência de capacidade
decisória para cidadãos comuns dentro do espaço da vida cotidiana, ela não
tem como se esquivar do problema da reorganização das relações de
produção. Isto é, um ordenamento democrático participativo permanece
incompatível com a manutenção do capitalismo”.
O que Miguel assinala, entre outras coisas, é a proximidade conceitual da
representação nos modelos participativos, ressaltando que em potencial, todos
temos condições para entender e ter um papel ativo na discussão e na gestão
dos negócios públicos através do anseio por participação direta do cidadão no
espaço decisório.
Assim como Miguel (2005), que analisa a teoria da democracia participativa
como corrente crítica do instituto da representação, Aires (2009) apresenta um
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vasto panorama da participação como eixo das produções relevantes da teoria
democrática contemporânea. O argumento central da autora é que os diversos
estudos contemporâneos da representação acentuam, em alguma medida, a
ativação da sociedade civil e o fortalecimento do debate público, por formatos
que ampliam a participação política. Destaca a autora:
o que se pretende ressaltar é que todas elas passam, em alguma medida, pela ativação da sociedade civil e pelo debate público, ou seja, por formatos que aludem à ampliação da participação política. Um ponto central nesta discussão é que tais propostas, centradas na deliberação e na ampliação da participação, não pretendem se opor à representação, mas sim à agregação automática de preferências. A representação é, assim, um veículo da participação. Neste sentido, nos parece altamente pertinente problematizar as condições de participação, acesso e igualdade política nas associações civis, bem como nas arenas deliberativas, frequentemente apontadas como forma de ampliação da participação e, assim, da representação de grupos marginalizados (AIRES, 2009, p. 31).
A autora identifica uma relação conceitual entre participação e representação.
Em verdade, o que se pretende neste trabalho é problematizar as novas formas
de representação diante da reconstrução também de novas fronteiras analíticas
entre as experiências de representação e participação, reforçando a
perspectiva normativa de ampliação da participação sem menosprezar a
representação, ou seja, compreendendo a participação como requisito
essencial ao bom funcionamento do governo representativo.
A aproximação da representação à participação empreende na teoria
democrática atual a expectativa de que as limitações das democracias
contemporâneas não são exclusivas as experiências de representação, mas
também a implementação da participação.
Esta questão é abordada por Aires, especialmente, no que se refere ao
contexto brasileiro de assunção de novas formas participativas no período
democrático atual (2009, p. 33):
de modo geral, o que se pretende ressaltar aqui é que, apesar dos grandes avanços e possibilidades ensejados pelas experiências participativas, alguns estudos vêm apontando uma série de dificuldades no estabelecimento de processos efetivamente inclusivos. Tais verificações parecem sinalizar a necessidade uma atenção mais detalhada e cautelosa em relação às promessas que a introdução da participação da sociedade civil nestes espaços sugere. É importante não perder de vista que fatores impeditivos de processos participativos, advindos das desigualdades estruturais
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presentes na sociedade brasileira, são complexos e podem levar ao desigual preenchimento dos direitos políticos, ou seja, a uma situação na qual os direitos estão legalmente garantidos, mas são atravessados por assimetrias sistemáticas em sua efetivação.
A relação entre o PT e a sociedade civil
As reflexões encetadas pela teoria democrática contemporânea são
aproximadas neste trabalho diante do desenho empírico de relação entre o PT
e os movimentos sociais no âmbito parlamentar.
Desde a fundação do PT na década de 1980 as ciências sociais foram capazes
de estabelecer uma agenda robusta de pesquisa de um conjunto diverso de
temáticas, contemplando, sobretudo, a arena estatal e os grupos pertencentes
a sociedade civil. Tais pesquisas produziram um número considerável de
bibliografias que fomentaram debates com interface sobre a democracia no
Brasil e no restante da América Latina.
A atenção dos cientistas sociais pelo PT, conforme Meneguello (1989, p. 36),
existiu em razão de ter sido o
primeiro partido de massas criado no Brasil: o PT é um partido de origem externa, extraparlamentar, de caráter societário; apresenta uma proposta definida de inserção da classe trabalhadora no sistema político; sua estrutura interna fundamenta-se em núcleos de base, órgãos básicos de trabalho e integração partidária; seu funcionamento interno define-se pela intensa articulação entre órgãos estabelecidos de forma hierárquica. Quanto á participação, o PT define-se em certo sentido, pela idéia “integralista” de partido: visa uma profunda integração com seus membros através de atividades políticas e tarefas de organização permanentes, fora dos períodos eleitorais (reuniões, debates, festas, contribuições financeiras periódicas, edição de boletins e jornal etc.). Finalmente, quanto á ação política, o PT confere bem menos importância à atividade eleitoral e parlamentar do que os demais partidos, priorizando os laços com os movimentos sociais.
A primeira década de atuação do PT fora analisada por Keck (1991),
identificando que o intuito do partido foi conciliar a influência política de atuação
na institucionalidade e na sociedade civil, revelando uma
tensão inerente ao desejo de ser um partido de ação e mobilização social e ao mesmo tempo agir com eficiência no plano das instituições políticas permaneceu um elemento-chave no caráter do partido, deixando de ser vista como uma contradição. Á medida que o partido se fortaleceu e ganhou experiência política, as vantagens de
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fazer alianças em torno de determinadas questões ou candidaturas tornaram-se mais relevantes do que os perigos. (p. 271).
A influência dual do partido esteve no horizonte petista desde o início, de
acordo com Singer (2001, p. 49). O intuito de imergir na vida institucional,
porém, não se consolidou como uma escolha livre de discordâncias, pois “não
foi, contudo, uma decisão isenta de tensões. Os grupos de esquerda presentes
na criação do partido sempre procuraram contrabalançar a ênfase pragmática
na busca do sufrágio com a insistência no papel dos movimentos sociais”.
A perspectiva do PT de fortalecer sua influência na sociedade civil e na
institucionalidade se verificou ao longo dos anos seguintes a sua fundação. No
âmbito parlamentar, Samuels (1997) aponta que o partido institucionalizou
algumas sanções, como a responsabilização política (accountability).
Para Forcheri (2004, p. 152) a articulação entre democracia e socialismo surge
para o PT “mediante a postulação da necessária articulação entre democracia
representativa e democracia direta, estendendo, aliás, os conteúdos da referida
democracia ao ambiente econômico”. Dando prosseguimento à análise, o autor
compreende que
a posição do PT em favor de uma democracia radical implicou a ressignificação dos conteúdos democráticos em múltiplos níveis: a canalização da participação organizada, ativa e direta da cidadania; a reforma do Estado priorizando os fins públicos e sociais do mesmo; e a ampliação da democracia para as esferas econômicas e sociais [...] a simbiose entre socialismo e democracia se efetivou mediante a radicalização da democracia, adquirindo essa radicalização um duplo sentido: de um lado, significou a extensão dos princípios igualitários da democracia aos âmbitos econômico e social e, de outro, aprofundou os pilares políticos reivindicando um funcionamento mais transparente das instituições políticas da democracia representativa e proclamando a necessidade de incorporação de mecanismos de participação direta da cidadania (p. 156).
Para Keck (1991 apud RIBEIRO, 2003), a rejeição inicial do PT tanto ao
dogmatismo leninista-marxista quanto à socialdemocracia refletia a concepção
antiestatista, enquanto partido que se reconhece de massas, socialista e
democrático. Esta concepção, no entanto, pensa a mudança social efetiva a
partir da mobilização da sociedade civil.
Ainda que inspirando-se na experiência anterior das lutas operárias no Brasil
sob liderança das organizações da esquerda marxista e das comunidades da
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Igreja Católica, o PT representou uma experiência nova de organização
política, diferenciada tanto pela trajetória social de suas lideranças quanto pela
relação que buscava manter com os movimentos populares que consistiam sua
base (MACHADO & MIGUEL, 2007).
A propalada novidade que se tornara o PT após os anos 1980 se articulou
apresentando um duplo movimento em meio a fundação do partido. De um
lado, a ditadura que caminhava para o seu fim e, do outro, os exilados políticos
que, alcançados pela anistia, retornavam ao país, somando-se às articulações
em torno da criação de novas legendas impulsionadas pelo ressurgimento de
grandes mobilizações sociais de aspiração democrática.
Nesse aspecto, a criação do PT legou ao quadro partidário brasileiro a
novidade de contar com uma agremiação surgida de um ambiente inovador de
cunho extraparlamentar: “a ligação que sempre manteve com os movimentos
sociais, os diversos grupos que ratificaram a sua fundação, as disputas
internas entre suas várias tendências e as ambiguidades na relação que nutriu
com as eleições, a representação política e o próprio Estado, tudo isso faz do
Partido dos Trabalhadores um objeto de pesquisa extremamente rico”
(ANGELO & VILLA, 2009, p.11).
As democracias contemporâneas tem vivenciado o crescimento de partidos
mais comprometidos em maximizar ganhos eleitorais. Identificados como
profissionais-eleitorais (PANEBIANCO, 1990 apud AMARAL, 2003, p. 156),
“apresentam como características, dentre outras, a maior profissionalização
das organizações do partido, a menor relação com seus militantes e o aumento
da preocupação com problemas concretos”. Embora tal tendência se aproxime
dos partidos realmente existentes, Amaral (2003, p. 156) entende que
“qualquer afirmação categórica sobre o PT a partir desses pressupostos será
leviana”.
As resoluções oficiais do PT na década de 2000 figuraram profundas
mudanças do partido rumo ao lugar comum das demais organizações
partidárias. A atuação parlamentar petista esboçada nos últimos anos enfoca a
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ação do representante em relação com o partido, não figurando os eleitores,
sejam atores organizados ou cidadãos difusos.
Nas décadas de 1980 e 1990 o PT estabelece significativas instruções
normativas que demarcam uma forte proximidade de representação política
com os representados, expressando-os nominalmente, assim como a
vinculação de ideias eopiniões. Ao contrário, posteriormente, dos anos 2000,
contexto que o partido entende o papel dos mandatos como uma relação
partidária com os representantes através do que deve ser a sua ação
legislativa, perdendo como norte que relação se terá (como e quem são os
representados).
Estas considerações são o pano de fundo da representação política atual nas
sociedades realmente democráticas, no sentido involuntário das regras
institucionais, assim como as questões voluntárias de opção dos
representantes estarem próximos aos seus representados. O cenário não é
diferente para o PT, que nos anos 2000 mantém uma atuação institucional
ainda com “caráter de dramaticidade”. Segundo Leal (2005) o partido teria sido
influenciado por uma série de mudanças ocorridas na sociedade com claro
reflexo nos sistemas eleitorais, denominado de nova ambiência eleitoral – “a
série de mudanças associadas à americanização das eleições” (p. 20).
As novas conquistas no âmbito eleitoral, incluindo a vitória presidencial nas
duas últimas eleições, transformaram o partido, resultando na atuação
direcionada pela dinâmica estatal. Para Ribeiro (2009, p. 214): “os vínculos
estatais são, hoje, muito mais importantes à sobrevivência do PT do que os
societários”. A sua direção nacional reflete a parlamentarização do partido. Ou
seja, os espaços de direção estão condicionados pela profissionalização do
partido, que, decerto, está determinado pelos êxitos eleitorais.
De acordo com Machado & Miguel (2007, p. 785) a guinada pragmática do
partido se deu em 1989:
ao chegar com Lula ao segundo turno das eleições presidenciais, o PT sentiu, pela primeira vez, que poderia alcançar o poder, pelo voto, em curto espaço de tempo. A partir daí, a obtenção de sucesso na competição eleitoral tornar-se-ia o objetivo cada vez mais exclusivo do partido. A postura leninista inicial, que via nas eleições um
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momento de educação política e entendia o partido como um instrumento de intervenção permanente na vida social, aos poucos sai de cena, e o PT se torna, plenamente, um partido eleitoral.
O pragmatismo do PT atualmente também é analisado por Werneck Vianna
(2007), compreendendo que os anos recentes da experiência petista na
presidência têm sido marcados pelo abandono de uma perspectiva de
representação política da classe trabalhadora, pois
se, no começo da sua trajetória, o PT se apresentava como portador da proposta de um novo começo para história do país, na pretensão de conformá-la a partir de baixo em torno dos interesses e valores dos trabalhadores – a parte recriando uma nova totalidade à sua imagem e semelhança –, a reconciliação com ela, levada a efeito pelo partido às vésperas de assumir o poder, conduziu-o aos trilhos comuns da política brasileira. A totalidade adquire precedência sobre os interesses das partes, ponto enunciado claramente pelo próprio presidente da República, nos seus primeiros dias de governo, em marcante discurso às lideranças sindicais, quando reclamou delas que, em suas reivindicações, levassem em conta o interesse nacional. Nessa chave, conceitua-se o próprio desenvolvimento do capitalismo no país e sua inscrição no chamado processo de globalização como processos a serem subsumidos ao interesse nacional, cuja representação tem sede no seu Estado. De fato, para uma orientação desse tipo, o melhor repertório se encontra em nossa tradição republicana (p. 5-6).
Vale destacar que Oliveira (2006) compreende que a relação do PT com os
movimentos sociais não estabelece-se exclusivamente nas instituições políticas
envoltas na relação entre eleito-eleitor, uma vez que
o PT e os movimentos sociais associados na “era da invenção” de 1970 a 1990 chegaram perto da “direção moral”: as consignas iam da crescente publicização dos conflitos à emergência de novos direitos consagrados na Constituição de 1988, que ampliaram a cidadania,à condenação das práticas patrimonialistas e fisiológicas,a um novo lugar do controle dos gastos públicos, à independência e reforço do Ministério Público que, pela primeira vez, propiciou uma nova vigilância sobre os negócios do Estado. Em suma, uma renovação republicana sem paralelo na história brasileira. Mesmo um governo tão neoliberal quanto o de FHC teve de acolher parcialmente essas demandas, até na nova Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, cujo propósito explícito era o de não permitir excessos de endividamento dos governantes de plantão, mas transformou-se num poderoso garrote para produzir superávits fiscais (p. 36).
Embora o partido vivencie um afastamento dos propósitos de representar
setores da sociedade civil, traço marcante desde a sua fundação, é equivocado
definirmos este ato como de ruptura com tais perspectivas. Para Ribeiro (2009)
o partido ainda mantém as suas forças concentradas nas relações com os
movimentos sociais e demais atores da sociedade civil:
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algumas ressalvas devem ser feitas. Voltando os olhos para os vínculos societários, constatamos que o PT continua sendo a força hegemônica na maior central sindical do país. Embora não tenhamos dados seguros a respeito, há indicações de que o partido ainda domina, ou exerce grande influência sobre, uma ampla gama de movimentos sociais. Além disso, várias pesquisas têm demonstrado que os deputados federais do partido continuam mantendo vínculos sólidos com atores organizados da sociedade. A associação negativa entre profissionalização e militância social apoia o argumento de que a maior inserção estatal do PT tem como contrapartida um esfriamento dos vínculos com a sociedade civil. Porém, a proporção de líderes intermédios que participam de algum movimento continua elevada. Para muitos dirigentes, a profissionalização na política não é incompatível com a militância social. Também podemos lembrar que, mesmo com a diminuição do ativismo dos grupos setoriais nos últimos anos, o PT segue sendo o único partido nacional cuja estrutura ainda reserva um lugar de destaque a esses organismos [...] Embora o PT ainda consiga nadar na sociedade civil, está cada vez mais ajustado ao sólido terreno estatal, em um processo de adaptação evolutiva. Com um pé no Estado e outro na sociedade, trata-se de um modelo híbrido e, em grande medida, ainda singular no quadro partidário nacional (p. 214-215).
Estes resultados obtidos sobre o partido em ampla pesquisa realizada por
Ribeiro, coadunam com os resultados da nossa pesquisa concluída a respeito
da atuação parlamentar dos vereadores do PT em Salvador (2009-2012).
Nesta pesquisa, a partir da análise dos projetos de lei, pronunciamentos e
sessões especiais dos parlamentares petistas ressaltou-se a forte ligação do
partido com os movimentos sociais mais relevantes da cidade, que, em linhas
gerais, mantém-se no espectro eleitoral de apoio ao partido.
Neste sentido, concorda-se com Ribeiro, pois o PT mantém forte vínculo com a
sociedade civil, contudo, o terreno de ação do partido na sociedade civil move-
se diante do primado da ação estatal. Há, desse modo, uma tensão no modo
de representação política atual do partido, que está relacionado as duas almas
do PT, conforme assinala Singer (2010):
aspecto peculiar do atual modo petista de vida é que o espírito do Anhembi, embora dominante, não suprimiu o anterior: eles convivem lado a lado, como se um quisesse desconhecer a existência do outro. O PT nunca reviu suas posições históricas. Não houve um Bad Godesberg para retirar do programa os itens radicais. Não ocorreu a exclusão da famosa cláusula 4, momento em que o Partido Trabalhista britânico, conduzido por Tony Blair, abdicou da socialização dos meios de produção. Ao contrário, o Terceiro Congresso do PT, em 2007, reafirmou que "as riquezas da humanidade são uma criação coletiva, histórica e social" e que "o socialismo que almejamos só existirá com efetiva democracia econômica. Deverá organizar-se, portanto, a partir da propriedade
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social dos meios de produção". Além de disperso em milhares de militantes formados nos anos anteriores ao espírito do Anhembi, o espírito do Sion está nos cadernos destinados à formação dos ingressantes, editados pela direção partidária em 2009. "O Partido dos Trabalhadores define-se, programaticamente, como um partido que tem por objetivo acabar com a relação de exploração do homem pelo homem", diz um dos textos destinado aos recém-filiados. Ao descrever a evolução do partido, alude de modo elegante às eventuais incongruências entre teoria e prática: "O PT é um partido de massas e, como tal, permeável às contradições de nossa sociedade e de nossa época". Porém, reafirma o compromisso absoluto com a superação das "desigualdades sociais". A velha alma é encontrada, também, nas atividades da Fundação Perseu Abramo (FPA), instituída pelo Diretório Nacional em 1996, com o objetivo de "promover a reflexão política, disseminar os conhecimentos produzidos, formar quadros políticos, preservar a memória do partido e da esquerda brasileira". Lá, o pensamento que presidiu a criação do PT segue vivo. Na apresentação da coleção de livros que faz o balanço dos mandatos de Lula, Elói Pietá , vice-presidente da FPA, dá ênfase ao fato de ser "inédito ter no governo toda uma geração de lideranças sindicais e populares de esquerda". O resultado é que os dois mandatos de Lula à frente do Executivo formaram a síntese contraditória possível das duas almas que hoje habitam o PT. Foi o fato de ter implementado, simultaneamente, políticas que beneficiam o capital e promovem a inclusão dos mais pobres, com uma melhora relativa na situação dos trabalhadores, que permitiu a convivência dos espíritos do Sion e do Anhembi. A unidade dos contrários está expressa nas diretrizes para o período de 2011 a 2014, aprovadas em fevereiro de 2010. Delas estão excluídos os itens mais característicos de uma e outra fração. Não há menções ao socialismo, mas também não está posto o compromisso de preservar superávits primários altos. Se a "estabilidade econômica" foi incorporada como um valor, ela figura, lado a lado, com a defesa da distribuição da renda como núcleo do próximo governo5.
As novas posições assumidas pelo PT em privilégio ao campo institucional e
em defesa de aspectos socioeconômicos distantes da sua origem perfaz um
caminho de tensões e conflitos desta relação, que pensada como desafio da
representação política só favorece uma atitude de repensar a democracia para
além das crises e dilemas assumidos na contemporaneidade. Analisar e pensar
o PT não se desloca do estudo mais amplo acerca dos limites e desafios da
representação política.
Em suma, os estudos sobre o PT apresentam uma variedade empírica que
atesta o fato do partido ainda vivenciar a representação dos movimentos
sociais e demais organizações da sociedade civil, contudo, ampliando a
representação de novos atores (com os quais busca dialogar o espírito do
“Anhembi”), sabendo que estes atores sociais e políticas mudaram
5 Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000300006>
Acesso em 10/Dez. 2011.
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estabelecendo novos contextos de opiniões e interesses, além do que, é
possível compreender que estas forças sociais se tornam políticas na medida
em que compartilham o mesmo projeto político ambientados na sociedade
política (DAGNINO, 2006)6. A sociedade civil brasileira possui uma trajetória de
forte conexão com a sociedade política, sendo possível a compreensão
analítica através da representação política do PT.
Próximo a esta argumentação que apresentamos, ou seja, de vinculação do PT
a uma miríade de grupos da sociedade civil, Amaral (2011) reitera as
mudanças conformadas nos últimos anos na organização interna do partido,
mas diante da manutenção da presença da sociedade civil no horizonte
representativo do partido:
já com relação ao binômio Estado/Sociedade, demonstramos que, como aponta Novaes (1993) e como argumenta Ribeiro (2008), o PT se aproximou das esferas estatais nos anos 1990, em grande medida como resultado da maior inserção na política institucional a partir daquela década. No entanto, essa aproximação não significou uma redução substantiva na permeabilidade do partido a atores da sociedade civil organizada. Como mostram os dados obtidos junto à liderança petista, os movimentos e as organizações sociais continuam presentes, inclusive entre aqueles que ocupam cargos eletivos e de confiança e indicam que uma importante conexão entre o Estado e a sociedade civil organizada por meio do PT. Hochstetler defende que, durante o governo Lula, o PT perdeu o monopólio de representação na arena institucional das demandas dos atores da sociedade civil organizada devido à continuidade da política econômica implantada na administração anterior e à decepção no desenvolvimento de mecanismos participativos sólidos no âmbito federal (2008). A nossa análise indica que o argumento da autora se confirma apenas em parte, especialmente quando observamos que atores tradicionais da sociedade civil organizada, como os sindicatos, vêm perdendo espaço entre as lideranças partidárias – o que pode redundar em transformações na agremiação. No entanto, o quadro mais amplo aponta para o fato de que o PT ainda conta, em suas fileiras, com um grande número de militantes e, principalmente, dirigentes de movimentos e organizações sociais e que esses números não declinaram entre 1997 e 2007, sugerindo que os próprios atores da sociedade civil organizada ainda enxergam o
6 Novos referenciais teóricos tem sido bastante debatidos no que se refere a relação entre movimentos
sociais e sistema político. Contribuições de Sidney Tarrow, Doug McAdam, Charles Tilly, entre outros,
fornecem um rico diálogo teórico-analítico possível de compreender a relação dos movimentos sociais
com a constituição do sistema político. Algumas publicações recentes em revistas científicas no Brasil
têm contribuído na direção de promover o debate desta corrente (Lua Nova, n. 84; Revista Brasileira de
Ciência Política, n.3; Revista Sociologias, n.28).
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partido como um representante institucional aberto às suas demandas e capaz de compartilhar propostas políticas7.
O enfoque de Amaral se refere a organização interna do PT, mas amplia-se
analiticamente ao investigar por um lado quem o partido busca representar na
atualidade.
Considerações Finais
Este trabalho buscou estabelecer de forma despretensiosa o delineamento
atual da representação política do PT, reiterando a tensão no que se refere a
manutenção dos vínculos do partido com a sociedade, especialmente, os
grupos da sociedade civil presentes na fundação do partido. Além disso,
buscamos compreender os interesses com os quais o PT mantém relação de
representação no âmbito parlamentar.
Nos dois casos, o partido demonstra ainda estar conectado com a sociedade
conforme aponta Ribeiro (2009) e Amaral (2011), entre outros, mesmo diante
da tensão em torno da convivência das duas almas petistas, como assinala
Singer (2010) e diversos autores que direta e indiretamente tem concluído que,
apesar das mudanças de grande magnitude vividas pelo PT, ainda é possível
compreender o vinculo do partido com a sociedade civil. Talvez este fato reitere
a importância que o partido apresenta na política brasileira (desempenho
eleitoral, presença na sociedade civil, preferência partidária, apoio político aos
governos, etc.).
Da nossa parte, o argumento central deste trabalho é que o forte vinculo
representativo e participativo do PT com a sociedade civil traduz-se em um
ponto de contato com as perspectivas encampadas pela teoria democrática
contemporânea, voltadas a questão da representação ser compatível com a
participação, em verdade, a posição de valor da atividade representativa dever
ser fortalecida pelo ativismo da sociedade civil.
7 AMARAL, Oswaldo. Ainda conectado: o PT e seus vínculos com a sociedade. Revista Opinião
Publica, Campinas, v. 17, n. 1, Junho de 2011. Link: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
62762011000100001&script=sci_arttext> Acesso 29/mar. 2013
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Nesse sentido, é possível reiterar o PT como um “desenho empírico” em que a
atividade representativa surge apoiada pela intensidade da participação, sendo,
grosso modo, uma “representação participativa”. Na democracia brasileira,
decerto, o partido revela um modo de representação política, portanto, que
mantém-se próximo da normatividade da teoria democrática, orientada pelo
debate da responsividade, representatividade e de “presença” física e virtual
dos representados no exercício da representação.
Seria desejável e necessário mais pesquisas da ciência política que
problematizassem as mudanças vividas pelo PT enquanto dilemas situados na
representação política, especialmente, as mudanças de interesses (políticas
econômicas, sociais, reformas constitucionais, direito de propriedade, etc.),
mas sob a sólida proximidade (de participação e representação) com a
sociedade civil. Neste aspecto, as mudanças de representação do PT
enriquece-se analiticamente com a investigação da sociedade civil, talvez em
torno do compartilhamento de um mesmo projeto político. O que, assim,
haveria mudado na sociedade civil, que apesar da “derrota parcial” dos seus
interesses mantém-se sob a insígnia petista?8
Se por um lado este modo de atuação política foi levado a cabo pelo partido
enquanto fato e valor durante suas duas primeiras décadas de existência, a
atualidade balizou-se em favor da perda de espaço do ethos participativo na
organização partidária e na representação posta em prática. Mas, sob o signo
da tensão (cf. Singer, 2010)9, acreditamos que não há sufragados definitivos
nesta disputa.
Em grande medida, a representação política do Partido dos Trabalhadores no
inicio do século XXI demonstra girar em torno de interesses que ultrapassam
os que circundavam as reuniões realizadas na sombra do regime militar, nos
sindicatos do ABC paulista em 1979, quando já se falava em fundar um partido
dos trabalhadores. Se a conjuntura dos dias de hoje demonstram mudanças
8 A análise de Singer em torno do lulismo se vale do signo da contradição, isto é, da arbitragem dos
interesses de classe, onde, de modo geral, não há perdedores. 9 Seu trabalho mais recente, Os sentidos do Lulismo, Cia. das Letras (2012), aborda com bastante
profundidade o que sustenta o fenômeno do lulismo, inclusive, sob a dimensão partidária, reiterando a
tensão entre as duas almas petistas balizados por novos e velhos interesses.
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que já não se enquadram nos compromissos de outrora, a convivência entre as
duas almas do PT assumem tons de “crise”, sendo que ambas representam um
espectro que ainda ronda o partido.
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