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Os Domínios da Experiência, da Ciência e da Lei: os Manuais da Polícia Civil do Distrito Federal, 1930-1942 OUvia Maria Gomes da Cunha "N f, , , o u uma a a e um , o ar , o uma e , a , ofae os s, s e פ uma ma a o . S , , me um i ahura e ms. " Elysio de rvalho (1910: 31) Nas primeiras décadas do novo século, a noção de h l! foi muito uúlida pelos defensor de reformas nas insruiçã de segunça pública pa se referirem à reprsão da criminalidade e à necsidade de uma ação exemplar por parte das polícias no Brasil. A cidade do Rio de Janeiro, segundo sas vozes, deveria tomar-se alvo de u m outro úpo de conole e preveno criminal, mais 235

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Os Domínios da Experiência, da Ciência e da Lei:

os Manuais da Polícia Civil do Distrito Federal, 1930-1942

OUvia Maria Gomes da Cunha

"Não nascendo feito, mas sendo, ao comrário, o produ/Q tk uma longa experiência e tk um demorado preparo tvdo especial, o itrvesligador moderno,

o criininalista, deve ler uma aprendizagem teOOca e prática, tem que amquiszar sua profissao depois tk um ensino que, apunmdo-lhe a vocação,

o familiarize com os méIodos, processos e praxes pela ciência para uma lula mais eficaz contra o crime. Sem isw, repetimos,

não há milagre capaz tk torno.r um indivíduo qualquer em agente investigador na ahura tk sua árdua e delicada missão. "

Elysio de Carvalho (1910: 31)

Nas primeiras décadas do novo século, a noção de higiene social! foi muito uúlizada pelos defensores de reformas nas instiruiçães de segurança pública para se referirem à repressão da criminalidade e à necessidade de uma ação exemplar por parte das polícias no Brasil. A cidade do Rio de Janeiro, segundo essas vozes, deveria tomar-se alvo de um outro úpo de controle e prevenção criminal, mais

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técnico e científico, desvencilhando-se das práticas de violência, corrupção e autoridade desmedidas que vinham caracterizando as açoes policiais. A recém­criada poUcia política, por exemplo, devido à sua natureza não-militarizada, viria a exemplificar de maneira inequívoca a nova orientação, 'civil' e 'cidadã', de uma nova geração de policiais profissionais. Aos olhos do detetive e professor da Escola de Polícia, Sylvio Terra, sua tarefa mais relevante era justamente a 'profilaxia social', uma missão que envolvia a 'purificação' das 'coletividades' e da nação, "livrando-as do vírus nefasto de agentes de toda a espécie, que preten­dem a subversão da ordem pública" (1939: 139). Menos empírica e mais 'cien­tífica', a polícia civil deveria mover-se da intervenção mínima do Estado em direção à tutela e à salvaguarda da nação. Para orientar essa nova concepção de polícia científica, ao lado das forças policiais e da justiça estariam médicos e especialistas em métodos de identificação de criminosos, de projeção nos meios científicos internacionais.

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Apesar das especificidades desse clamor - que envolveu concepções diferenciadas acerca do papel das instituições policiais -, sua explicitação re­monta ao aparecimento das forças de segurança pública na virada do século.

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Mais do que dirigir-se aos focos das práticas de controle, tal discurso reivindicava a revisão dos mecanismos normativos e não-nollIlativos que informavam as ações dos agentes de polícia. Parte da linguagem utilizada para conceber e delimitar o objeto das ações policiais passou a circular nos gabinetes médico-legais e nas publicações de cunho jurídico. O uso de metáforas próximas da idéia de 'doença social' transformaria as instituiçoes de segurança e seus funcionários em agentes não só da ordem mas da 'cura social'. Esse discurso também encontrou barreiras institucionais, administrativas e disciplinares, alocando-se, ao menos na primeira metade da década de 30, num setor bastante específico das polícias civis. Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, sem falar nas polícias de outras capitais latino-americanas, algumas inovações terminológicas abrigaram-se nos ambientes médico-legais e em setores 'especializados' dessas instituições. Ao mesmo tempo prescritiva e técnica, tal linguagem tornar-se-ia, cada vez mais, um conjunto de regras exemplares da boa conduta funcional, produzido, na maioria das vezes, por quem não exercia funções policiais. A idealização da prática repressiva, vista de fora, carecia de referenciais empíricos, o que parado­xalmente se chocaria com uma leitura muito estrita dos textos legais. A repro­dução de conhecimentos não-nollIlativos ficaria então limitada às rotinas cotidia­nas e específicas de cada repartição e à relação estabelecida entre a autoridade local e seus subordinados. As limitações com relação à aceitação dessas regtas, por sua vez, impuseram fOl111as singulares de conceber e interpretar o trabalho diário dos policiais e o uso que estes faziam de seus rudimentares conhecimentos técnicos e legais. A prática policial cotidiana de repressão da vadiagem, por

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exemplo, constituiu um espaço exemplar onde a experimentação de determi­nados 'conhecimentos' teve um papel fundamental na criminalização de certos sujeitos (Vianna, 1995).

Se observada através dos relatos administrativos e, em menor escala, de alguns textos de cunho memorialístico, a configuração da polícia civil carioca nos anos 30, comparada à que surge dos relatórios e registros produzidos nas primeiras décadas do século, era outra. Assim como outros eram os personagens encarregados de repensá-la e 'moralizá-Ia'. Projetos de cientificização e reforma, em grande medida produzidos por bacharéis, passam a ser reivindicados por funcionários não-especializados da própria instituição. Para responder às críticas da imprensa e às reclamações das instâncias judiciárias, a idéia de 'higiene' era agora redirecionada para focos internos: a instituição, na visão de seus novos dirigentes, deveria desavezar-se de seus 'maus elementos'.

Antes de duvidarmos da reprodução dessa visão 'saneada' e orgânica da instituição pós-3D, vale a pena perscrutarmos os modelos utilizados nessas novas narrativas e projetos administrativos, tentando entender seus propósitos e a lógica da sua construção. Neste artigo, a análise de alguns manuais destinados a agentes, investigadores, guardas e detetives, publicados por policiais civis ainda no exercício pleno de sua atividade diária, será um pretexto para entendermos não só como as idéias em torno de uma ruptura, limiar de uma 'nova polícia', foram pensadas naquele momento, mas de que maneira alguns projetos de reformulação da estrutura administrativa deveriam ser concebidos e apreendidos por seus funcionários. O que era preciso conhecer para que a função policial pudesse ser exercida ?

Da instrução à fomzação

"Escola de Po/{cia - é a forja onde se acrisolam os policiais. "

Olyntho Nogueira, 19324

A tentativa de instruir e orientar os componentes das forças policiais é tema corrente nos círculos político-administrativos da instituição desde o início do século. A idéia de 'instrução', que estrutura boa parte das poucas publicações editadas nesse período, foi orientada por uma perspectiva muito mais jurídica e relativa ao caráter legal das práticas punitivas do que afinada com atividades e experiências cotidianas da então nascente 'polícia civil'. 5 Em sua grande maioria produzidas por bacharéis, tais prescrições constituíram uma espécie de pedagogia jurídica destinada a não-iniciados, capaz de embasar decisões e situar possíveis limites interpretativos relacionados às prerrogativas legais da polícia. Se essa preocupação pode explicar seu caráter 'instrutivo' -o fato de tornarem-se manuais

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de consulta diária para despreparados delegados e comissários de polícia -, também expõe um único foco de atenção para com o conjunto de práticas e ações que se abrigavam sob as funções policiais: o exercício da autoridade restrito aos domínios das repartições policiais. As relações entre os funcionários da polícia e certa parcela da população, sua presença e comportamento nas ruas da cidade e os procedimentos necessários à sua função investigativa eram todos planos ausentes das primeiras publicações. Qualquer referência a outras situações ou práticas restaria limitada ao domínio de conhecimentos de tipo individual, subjetivo e explicado pelo emprego de outras 'habilidades' muitas vezes ilegais e, certamente, ausentes dos manuais.

Pesquisas em tomo das atividades cotidianas da polícia carioca nesse período revelam um escopo muito mais amplo de demandas e ocupações exerci­das pelos agentes e pelas delegacias (Neder, 1982; Brandão, 1982 e Bretas, 1997 e 1997a). Como demonstrou Marcos Bretas, particularmente no que diz respeito à polícia civil e ao funcionamento das delegacias, a manutenção da ordem pública em muito transbordava as fronteiras do trato com a criminalidade e as esferas jurídicas, ainda que o atendimento a esses outros 'serviços' nem sempre figurasse nos relatórios e estatísticas oficiais. Para além da descontinuidade entre as funções prescritas pelos regulamentos e pela legislação e as rotinas cotidianas, a compreensão acerca de qual deveria ser a função da instituição e do policial civil era explicitada a partir de outros referenciais, muito mais próximos do 'costume' que da 'norma'. Consistia em apropriações e interpretações do texto legal cons­truídas na experiência diária.

Vale observar que a preocupação com o ensino da prática policial e a necessidade de focalizá-la como técnica, oficio e profissão - deixando então de ser matéria exclusiva de manuais - mobilizou não só representantes da própria polícia, mas os ambientes vinculados ao direito penal já nas primeiras décadas. As primeiras malogradas tentativas de instituir uma esfera específica dentro da própria administração policial, direcionada para o que então se chamava 'ensino de polícia', ocorreram no Rio de Janeiro, no Pará e em São Paulo. A idéia era criar escolas destinadas ao aperfeiçoamento técnico e científico da corporação. A primazia de sua implantação, entretanto, foi alvo de acaloradas discussões du­rante os debates do I Convênio Policial Brasileiro em 1912, opondo, num primeiro momento, o representante do Pará, Dr. Renato Chaves, e o diretor do Gabinete de Identificação e Estatística da Polícia Civil carioca, o bacharel Elysio de Carvalho. Numa tentativa de produzir lima .'história do ensino policial no país', que culminaria na constatação da precedência e excelência das instiruições policiais paulistanas, Plínio Cavalcanti de Albuquerque, vice-diretor do Instiruto de Criminalística do Estado de São Paulo na década de 40, observava que o que se criara em Belém em 1910 se resumia a um projeto, um "instituto de divulgação

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dos métodos científicos de pesquisa policial que abrangesse todas as categorias de funcionários" (1941a: 43). A indistinção da hierarquia e das diferentes atribuições e cargos policiais, segundo Albuquerque, tomara a reprodução de ensinamentos técnicos e científicos impossível. Além disso, o projeto, aprovado e transformado em regulamento de polícia, nunca teria saído do papel.

Na mesma descrição, a experiência da polícia carioca, anterior e diversa, é detalhada tomando como base o regulamento que reformou a polícia civil em 1907. A lei estabelecia que a 'instrução', a cargo dos 'inspetores', consistia no conhecimento dos artigos do Código Penal, em "exercícios práticos que [fizessem) compreender ao agente o modo de proceder nas diferentes ocasiões em que fosse necessária a sua intervenção" e, por fim, no acesso e uso de métodos de identificação. Os agentes deveriam comparecer ao Gabinete de Identificação e Estatística para receber "o ensino de filiação morfológica e de exame descri­tivo".6 Tal treinamento em técnicas dactiloscópicas nunca foi realizado. A escola carioca só saiu do papel em 1912 quando, além de um programa baseado nos ensinamentos de 'polícia científica' de Rudo1f Archibald Reiss, Edmond Locard e Ottolenghi, também um laboratório, uma biblioteca e uma publicação desti­nada à infOi mação do 'meio policial' foram criados? No programa produzido por Elysio de Carvalho, os policiais deveriam ser levados a conhecer noções de criminalística, direito e processo penal, 'identificação judiciária', 'fotografia judiciária' e 'elementos de medicina legal e assistência de urgência', sendo os cursos ministrados por juristas e bacharéis recém-transfOimados em especialistas em temas policiais e práticas identificatórias. As únicas inovações somadas às 'instruções' de caráter jurídico foram as 'técnicas científicas' vinculadas aos "modernos conhecimentos da criminologia no campo da identificação criminal". A 'ciência', sob essa perspectiva, poderia auxiliar um novo corpo de foliciais a desempenhar melhor suas funções investigativas e administrativas. Todavia, COUlO iá indiquei, além das dificuldudes administrativas, houve resistências pnr parte dos policiais em reconhecer a real eficácia do aprendizado de técnicas • 1 • .. � • • " "" ...... I·....-al . ...... . · ... J. ...... U.U& .. '" .. v .... ,,�.

Rememorando as dificuldades da implantação da Escola de Polícia, o policial W. Fellão transforma em ironia um comentário a respeito da criação de uma 'polícia científica':

Alguns investigadores antigos que já tiveram a sua época de glória não querem ouvir falar em técnicas. 'Uma baboseira', dizem eles. E com que mais implicam é com a dactiloscopia. Não admitem de modo algum que pela impressão se possa identificar o indivíduo. T êm uma ojeriza, que não podem suportar, quando alguém lhes fala sobre o assunto.9

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A experiência pedag6gica, contudo, funcionou de modo precário até 1918, quando a Escola foi fechada. 10 O policial Sylvio Terra escrevia em 1939 que, graças à intervenção direta de Aurelino Leal, "os portadores de diploma conseguiram, posteriolmente, ingressar no aparelho de investigação ( ... ) vários deles se destacaram e conseguiram prestar, e ainda prestam, à repartição alguns serviços aproveitáveis. Os demais sa(ram, uns espontaneamen te, outros em busca de profissão mais rendosa, muitos desgostosos com o ofício, ou então exonerados pela administração, que por qualquer motivo os alijou" (1939: 25-6). Dois anos depois, ao ser criada a Inspetoria de Investigações e Segurança Pública, previa-se o funcionamento de um 'curso de investigação' no qual, além de noções de criminologia e direito, deveriam ser inseridos itens relativos ao que se supunha envolver a prática cotidiana dos investigadores, como a 'arte do disfarce', a 'defesa corporal' e a 'investigação criminal'. Mais uma vez, a falta de verbas, dificuldades de caráter administrativo e político impediram que o projeto ganhasse forma.!!

Entretanto, dentro da inspetoria desenhava-se um outro 'projeto' que, antes de tornar-se realidade através da legislação, o foi a partir da 'diferenciação' das atribuições, da autoridade e das práticas de repressão e controle desempe­nhadas pelos agentes nela alocados: a formação �e um corpo especializado de investigadores, detetives e comissários. Mais tarde, com a transformação da inspetoria em 4' Delegacia Auxiliar, em 1922, inicia-se, como mostrarei mais adian te, um processo de 'especialização' dentro da polícia civil que permite que policiais se organizem corporativamente fora da estrutura administrativa do Estado mas auxiliados pelas prerrogativas legais que este lhes conferia. Tal 'organização', que distingue um corpo de funcionários dos demais - insti­tuindo mecanismos hierárquicos e distintivos justificados pela importância das atribuições que lhes eram outorgadas - tornou mais salientes não só as prioridades da prática repressiva aos olhos do Estado, como os agentes que delas eram incumbidos.!

Outras iniciativas foram criadas tendo como espelho as experimentações ocorridas no Distrito Federal. A polícia paulista, por exemplo, foi beneficiária dos contatos internacionais envolvendo instituições e especialistas do Cone Sul e da Europa.

Em 1913 a Secretaria de Justiça e Segurança Pública da capital paulista promovia um 'curso de aperfeiçoamento' que teria sido destinado a 'um grupo escolhido de altos funcionários'. Mas foi só em 1927 que se inaugurou a primeira Escola de Polícia Paulista destinada à preparação de inspetores e investigadores (Albuquerque, 1941a: 44).

A especialização do corpo policial era anunciada em discursos que clamavam por mecanismos que possibilitassem o controle da instituição através de reformas - não s6 técnicas, sobretudo morais - garantidas a partir da profis-

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sionalização dos policiais (Souza, 1997: 2). Nos anos 30 os novos regulamentos das polícias civis do Rio e de São Paulo já previam um novo formato para o 'ensino policial'. Não mais destinado a autoridades e auxiliares diretos, e com menor ênfase nos aspectos jurídicos, o ensino policial passaria a ser atribuição das repartições 'técnico-científicas' das instituições de segurança.

Em 1933 a polícia paulistana inaugurou um Curso de Técnica Policial destinado ao aperfeiçoamento técnico dos delegados e, mais tarde, cursos específicos para peritos e investigadores. A Escola de Polícia de São Paulo, criada por Moisés Marx e Paula Lima, recebeu a supervisão técnica de Alexis Bischoff, diretor do Instituto de Polícia Científica da Universidade de Lausanne, substi­tuto do lendário R. A. ReissY

A especialização das funções policiais seria definitivamente pensada e vinculada ao acesso a recursos e habilidades técnicas. Entretanto, se em termos administrativos as carreiras policiais passaram a ser pensadas de maneira articu­lada à formação técnico-científica, alguns aspectos relativos às especificidades de tal pedagogia do controle social e o pleno exercício da autoridade por parte dos agentes não estavam bem definidos. Em comunicação apresentada no I Con­gresso Paulista de Criminologia, Plínio Albuquerque argumentava que, embora os conhecimentos básicos exigidos para a formação policial constituíssem uma variedade de 'métodos' e 'teorias' oriundos da biologia, da física, da antropologia, da química, do direito, da medicina e da matemática, sua importância residia no fato de poderem ser reunidos, concentrados e dirigidos às necessidades dos policiais (Albuquerque, 1941a: 48).

No Rio de Janeiro, o decreto de 1933 e o novo regulamento da polícia civil de 1934 reatualizaram antigos anseios relacionados à formação dos agentes. O primeiro criou a Escola de Polícia e o segundo estabeleceu as bases da fundação, dentro da Inspetoria Geral de Polícia, de uma Escola Prática de Polícia que teria como atribuição a "instrução policial e educativa, a fim de torná-los aptos ao desempenho dos diversos misteres que lhes são afetos". 14

Como mostrarei mais adiante, para além das tentativas pedagógicas de caráter oficial e da legislação vigente, nesse momento voltada para o aspecto fOI/nativo, a preocupação com a profissionalização motivou outros investimentos, movidos por policiais que adicionaram às preocupações técnico-científicas co­nhecimentos de outra natureza.

Antes de mencioná-los, porém, é preciso entender que deslocamentos institucionais, políticos e administrativos tornaram a figura do 'policial experi­ente' proeminente após a reforma de 1934. O que de fato estimulara a produção de novas concepções em torno do 'fazer polícia', se transformações institucionais ampliaram de forma muito tímida o quadro funcional e a organização dos órgãos de polícia?

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RevolUfão, rejo/ma e regulamentafão

"Polícia e política são entidades que não poderão andar junUlS sem o risco de ambas se infeccionarem. "

Olyntho Nogueira, 1932

"( ... ) agura dá-se o inverso. Parte-se nobremente da polícia - notai bem: parte da polícia a iniciativa de etlClJ/her as garras, para se conrer

dentro da esfera que lhe é própria. "

Cândido de Oliveira Filho, 193115

Outros parâmetros e modelos de funcionamento da instituição passaram a fazer parte do discurso de uma elite de policiais que ocupou postos importantes nos primeiros anos da década de 30. Embora grande parte dos seus quadros pemlanecesse inalterada, as funções da polícia, bem como seu foco de atenção sobre a cidade, haviam mudado. As ruas da cidade-capital passaram a merecer um outro tipo de controle e vigilância, visando a conter - através do 'acampana­mento', da 'observação pessoal', do 'sombreamento' e da 'infiltração' - as ameaças de golpes, o avanço do movimento sindical e o crescimento da criminalidade urbana. Todos esses procedimentos, certamente já utilizados mas destituídos de uma nomenclatura técnica, deveriam ser empregados sempre que a vigilância continua não pudesse exceder os limites caracterizados pelos desígnios dos 'direitos' e das 'liberdades civis'. Assim, aparecem registrados nos ensinamentos concernentes às atividades 'subversivas' ou 'ameaçadoras da ordem política' as primeiras referências a dispositivos repressivos que deveriam ser utilizados na defesa da nação (Pedreira, 1939: 134; Terra, 1939: 140).

A instituição policial passara a ter um papel fundamental num período de transformações políticas, ainda que se mantivesse alvo de críticas relacionadas à corrupção, ao comprometimento político dos chefes e autoridades policiais, sem falar no uso ilimitado da violência. 16 Porém, se é verdade que atividades de repressão política tornaram-se o foco de setores mais 'especializados' da insti­tuição, como foi sem dúvida o caso da 4" Delegacia Auxiliar, o controle das ruas e as atividades persecutórias envolvendo contravenções de jogo, vadiagem e prostituição ainda mobilizavam grande contingente policial. A evidente preocu­pação com a ordem política e com a 'infiltração' de ideologias extremistas, justificativas que grassavam nos relatórios e apelos dos chefes de polícia e dos delegados, nos faz supor que as chamadas causas de cunho 'patriótico' e 'nacional' - orientadas para a proteção das fronteiras e para a estabilidade política -deveriam subsumir as críticas da imprensa da capital e da população em relação ao trato com o 'povo' e com os 'criminosos comuns'. Todavia, para além do

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Os Domíllios da ExperiblCia, da Ciêllcia e da Lei

fonalecimento da Delegacia Especial de Ordem Política e Social, outros setores eram cobiçados pela sua relativa autonontia e proeminência dentro da adminis­tração policial. As delegacias especiais e os setores técnicos, cada vez mais, passaram a subsumir o poder das delegacias distritais. Ou seja, pelmaneceu no interior da instituição um quadro não-follnal de hierarquiZl!ção interna.

Nesse mesmo contexto, verifica-se que projetos de refollna institucional pretendiam realizar expurgos e retaliações sob o signo da moralização em tempos de novo regime político. A polícia civil do Distrito Federal haveria de transfor­mar-se em instituição-modelo para o pais através de estratégicas doses de reengenharia moral visando a remodelar seu caráter e as práticas de parcela de seus agentes. 17 Eram projetos que pretendiam ao mesmo tempo limitar o uso de certos poderes e legitimar a prática de outros 'expedientes' e 'costumes'. Como argumentava já em 1927 o chefe de polícia do Estado do Rio, Oscar FontenelJe, a polícia não contestava a oconêocia de 'abusos e violências das autoridades policiais'. Ao contrário, além de reconhecer a existência de injustiças, constatava que havia limites no exercício de 'direitos' legalmente conferidos à instituição, "a quem, contudo, não [serial razoável negar um certo poder discricionário, sem o qual ficaria anulada, por completo, a eficácia da sua ação" (J 927: 112). A idéia de 'eficácia' muitas vezes se chocava com a observância de detellllinados procedi­mentos jurídicos. Ao expor os motivos de seu pedido de dentissâo em 1933, o então chefe de polícia, o ex-tenente João Alberto Lins de Barros, relatava de fonna breve a situação na qual encontrara a instituição em 1932, as tentativas sem sucesso de remodelar seu quadro funcional e o excessivo poder de parte de seus órgãos. A carta de João Alberto reitera uma referência encontrada em vários relatórios de chefes de polícia entre 1923 e 1930, relacionada à excessiva proeminência da 4' Delegacia Auxiliar e dos investigadores a ela vinculados.

A Chefutura de Polícia era, e ainda é em boa parte, lima velha organização burocrática sujeita, no momento em que assumi, ao regulamento de 1907, acrescido e modificado a cada ano, desconexo, centralizando todos os serviços na pessoa do chefe ( ... ) em conseqüência deu-se o congestionamento do órgão central, representado exclusi­vamente pela 4" Auxiliar, sobrecarregada de atribuições, e a abofia das delegacias distritais, que devem ser os verdadeiros órgãos da Polícia Civil ( ... ) agravava este mal de organização o desconhecimento da realidade, que, aliás, ainda perdura, com relação ao cOTio de investigadores e ao emprego da verba de deligências policiais ( ... ) 8

Ao constatar o mau uso das verbas especiais e a contratação de investi­gadores adidos - práticas costumeiramente orientadas por injunções de caráter político -,João Alberto colocava-se ao lado dos 'policiais de calleira', vistos como

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desprestigiados e mal pagos. Através dessa comparação, reconhecia a despro­porção salarial entre 'adidos' e 'concursados' com uma afirmação lacônica: "os investigadores passam miséria quando são honestos".

19 Uma das providências

de Joao Alberto foi nomear um militar para titular da 4" Auxiliar - o capitão Dulcídio Cardoso -e, em 1932, extingui-la criando em seu lugar a Diretoria Geral de Investigações, centralizando os 'serviços especializados' e redistribuindo as atribuições por entre as delegacias distritais. Contudo, ainda que mudanças de ordem política tenham marcado um novo contexto de atuação e configuração da instituição policial pós-30, encontramos certas continuidades no discurso deuma nova elite policial, que chegou aos principais cargos de poder após a refollna, acerca das 'necessidades prementes' de sua nova organização.

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A refottua imaginada pelo novo chefe de polícia que chegou ao poder em novembro de 1930, Batista Luzardo, tomou a forma de um projeto divulgado em 1932 mas nunca foi implementada. Contando com o apoio de juristas eminentes e que se haviam destacado frente a implacáveis críticas à organização e às ações policiais - como foi o caso de Evaristo de Moraes -, além de médicos e de policiais renomados, o projeto assinado por Luzardo e pela comissão encarregada do assunto fracassou. Regulamentos subseqüentes, de 1933 e 1934, tomaram a forma de uma 'regulamentação' das funções e do funcionamento da administração policial, incorporando parcialmente suas propostas iniciais. Em linhas gerais, tal projeto visava a transfolmar a ação da polícia, enfatizando procedimentos de ordem 'preventiva' e de 'polícia técnica', e desvinculando-os das instâncias de caráter 'repressivo' e 'judiciârio'. Além disso, previa a unificação das polícias civil e militar e a extinção da guarda noturna e do porto. Com relação à primeira dimensão, seus organismos ficariam subdivididos entre 'basilares' - permitindo o funcionamento de seções mais 'especializadas' - e 'anexos' - serviços que funcionariam sob a supervisão dos primeiros21

Nas palavras de Artur Hehl Neiva, diretor da recém-implantada Diretoria Geral de Expediente e Contabili­dade, a administração policial passara a organizar-se segundo as mais modernas e 'básicas' regras de administração pública, inspiradas no lema "centralizar serviços, descentralizando a autoridade".

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Entre 1931 e 1934, quando finalmente foi sancionado o novo regula­mento, cartas, oficios, projetos e críticas chegaram ao Ministério da Justiça e à Secretaria da Presidência da República. Tanto o governo quanto entidades de classe mobilizaram-se na tentativa de direcionar as linhas-mestras do novo formato institucional da polícia. Em 1933 o médico Rodrigues Caó foi oficial­mente enviado à Alemanha para investigar e conhecer a organização da polícia alemã, visando a colher subsídios para implantar uma 'nova política criminal' no país (Guerra, 1949).

23 Do outro lado do from se colocava Olyntho Nogueira,

ex-delegado, bacharel e integrante da Comissão Central de Reforma da Polícia,

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que, embora ciente da necessidade de mudanças, mostrava-se inconformado e mobilizado pelo que chamou de 'incongruências e falhas da reforma'. Nas críticas enviadas aos membros da comissão acusava Luzardo de falta de coragem política para alterar a anarquia funcional das instituições de segurança. Ao modificar o projeto original, Luzardo fora colocado ao lado daqueles que, nas palavras de Nogueira, "entraram na polícia conduzindo vassoura e lata de creolina". Como homem de polícia, Nogueira tocava num ponto crucial e que, no seu entender, havia sido contemplado de forma distorcida no projeto. O ex-delegado achava que, ao contrário da importação de 'mestres forasteiros', tanto a técnica quanto a ciência necessárias para o aperfeiçoamento da prática policial poderiam ser buscadas entre 'antigos policiais' - "os elementos necessários para a Escola de Detetives,,

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As acusações de Nogueira não podem ser reduzidas a desavenças pessoais de um antigo delegado de polícia. Ao assumir seu cargo, Luzardo solicitara ao ministro das Relações Exteriores infoI mações "para que fossem contratados na Inglaterra e Estados Unidos homens capazes de organizar a [nossa] pOlícia".25

Além disso, desde que assumira a Chefatura, dera declarações contraditórias à imprensa, dando a impressão de que o Governo Provisório iria alterar radical­mente a configuração e unificar as instituições de segurança. Em entrevista à Gazeta Policial em 1931, Luzardo referira-se a alguns pontos aventados no projeto de reforma, advertindo que todos os cidadãos e instituições do Estado deveriam comungar do mesmo 'espírito revolucionário' que movia as ações do Governo Provisório. Justificando sua atitude em aceitar a chefia de uma instituição que caíra no total descrédito popular, Luzardo explicitava seus propósitos 'saneadores'. O foco das críticas do novo chefe de polícia concentrava-se no excessivo poder de alguns delegados auxiliares e de determinadas repartições de polícia, que tinham alcançado fama graças a seus métodos repressivos nao-orto­doxos. Entre estas últimas, Luzardo citava nominalmente a 4" Delegacia Auxiliar, por onde teriam passado "os mais terríveis scarpias, os de mais pelos no coração, os de consciência mais adaptável às tropelias ordenadas pelos ocasionais deten­tores do poder. Era urgente, era preciso, pois, que a nova ordem das coisas implantada no Brasil, por efeito da Revolução, destruísse esse passado tenebroso de injustiças e de atrocidades, convencendo-se a população carioca de que a polícia deve ser uma instiruiçao legal para o amparo e a defesa da sociedade e não um aparelho destinado a apavorar ou a perseguir ( ... ) desafetos".

26 Luzardo se

comprometia com parte substancial das propostas reformistas e resistia a manter uma 'polícia de cargos'.

O mais curioso na entrevista e nas acusações de Luzardo, porém, é o fato de que, além de outros jornais, elas foram veiculadas numa publicação dirigida e mantida por investigadores e comissários que se celebrizaram quando atuavam

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na 4" Delegacia Auxiliar - a Goze/a PrJlicial. Esse era o caso de Pedro Ribeiro, Rolando Pedreira e Sylvio Ten8. Responsáveis por uma publicação fonemente anticomunista, os editores e redatores da Gazeta pareciam perfilhar os projetos do novo governo, ao mesmo tempo em que reconheciam a imponância e a excelência das práticas exercidas nas dependências da 4' e não concordavam que estas se antagonizassem com os novos tempos politicos. O ex-comissário da 4', Rolando Pedreira, observava que o Estado tinha sua parcela de culpa quanto à situação de desordem em que se encontrava aquela repartição. Apesar da capaci­dade de seus quadros, reconhecia a necessidade de um processo de 'saneamento' da instituição, alh mando que "tudo na polícia civil merecia ser saneado. Veja-se por exemplo o espetáculo sórdido que as instalações atuais oferecem ao exame do visitante. Por fora o edificio é vistoso. Por denuo nem é bom falar ( ... ) os funcionários da 4' Delegacia Auxiliar não têm confono. Vivem atropelando-se. Respiram uma atmosfera pesada. Tudo aquilo é sujo, encardido, desordenado. Resulta daí que os investigadores vivem em contato inconveniente com o pÚblico".

27

Malgrndo as divergências que opunham cenos setores da polícia e o governo, as pretendidas alterações na 4" resultaram no fonalecimento de seu corpo de investigadores, em grande pane "reaproveitados" em outros setores da administração policial. Essa resistência de um núcleo de investigadores e comissários pode ser, ao menos em pane, interpretada como resultado de uma estratégia de organização externa à estrutura da polícia, o que possibilitou que os laços entre funcionários e o Estado se estabelecessem através de uma parcela distinta da 'corporação'.

A primeira organização de policiais paralela à administração do Estado foi fundada em 1921 congregando agentes de investigação e segurança pública. A figura do investigador, cuja autoridade e campo de ação não eram restritos a uma seção policial, mas a todo o Distrito Federal, pairava sobre as demais funções policiais. Esse destaque requereu dispositivos que 'protegessem' os agentes e investigadores na sua prática cotidiana. Mas a associação não representava a todos os investigadores indiscriminadamente. A admissão de novos sócios se orientava parcialmente pelas hierarquias funcionais pré-existentes. Cada sócio admitido poderia propor OIlUOS nomes, válida somente para os investigadores de carreira. Os investigadores em comissão - funcionários alocados em alguma repartição em caráter temporário e sem exame de admissáo - estariam sujeitos à aprovação de uma comissão que se encarregaria um3 'sindicância' com o objetivo de coibir a entrada de 'maus elementos'.

Os critérios de admissão pretendiam, sobretudo, tomar seletivos os dispositivos de proteção e auxilio fornecidos aos associados mediante con­tribuições regulares. Se, por um lado, essa 'proteção' inexistia por pane do Estado,

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tal ausência se estendia a possíveis despesas relativas a acidentes de trabalho a que os policiais estavam expostos. A recém-criada Caixa Beneficente dos Fun­cionários de Investigação e Segurança Pública tinha assim uma função mutua­li�ta e corporativa. Incluíam-se entre seus objetivos a assistência a sócios e herdeiros, inclusive em casos judiciários tais como o de "constituir advogado para, no foro criminal, defender os seus associados que se virem envolvidos em processos, resultantes do exercício legal da sua profissão". A entidade só ganhou um estatuto em 1923, quando passou a chamar-se Caixa Beneficente dos Fun­cionários da Quarta Auxiliar. Já contava então com doações regulares, livro de despesas, um fundo de poupança para atender a pedidos de doação de pecúlios, de auxílio-funeral, de auxílio de invalidez e de assistência aos herdeiros dos policiais vitimados no exercício de suas atividades.29 Já no final dos anos 20 a instituição definia-se claramente como órgão dos comissários e investigadores da 4" Auxiliar. Em sua prestação de contas de 1934, membros da entidade consta­tavam os percalços enfrentados para manterem ao menos sua estrutura adminis­trativa: "não tendo nossa Caixa recursos pecuniários ou legais para manter um empregado na feitura de sua escrita, os diretores são responsáveis por suas partes e sabemos que o tempo gasto neste mister é roubado à nossa vida particular, sendo tais serviços executados de mistura com as nossas preocupações e por isto são vítimas de algumas imperfeições".30 Por fim, se considerallllos as referências à atividade regular da instituição reproduzidas na Gazeta Policial e à intervenção de alguns de seus integrantes no processo de discussão sobre a reforma, podemos entender que outras noções de 'autoridade' vão direcionar alguns de seus mais importantes associados a reproduzir suas experiências sob a fOlma de uma 'pedagogia policial'.

Na qualidade de diretor do Cenuo dos Comissários de Polfcia, o afamado ex-investigador da 4" Auxiliar Pelayo Vidal Martins reclamava que parcela relevante da instituição e seu respectivo órgão de classe não tinham sido chamados a participar da Comissão da Refolllla. Em carta a Filinto Müller em 1934, alegava que "sob o ponto de vista moral e jurídico talvez [tivessem) sido os comissários de polícia, os únicos prejudicados com a aludida reforma, isto porque, apesar de terem um órgão de defesa de seus interesses, legalmente organizado e perfeitamente aparelhado, que é o Centro dos Comissários de Polícia, não foi essa entidade chamada a colaborar e a oferecer sugestões como era de se esperar".31

Para os nossos propósitos, essa referência à fama de algumas unidades da instiruição, e sobretudo à 4" Delegacia Auxiliar, nos pellllÜe entender as fontes das referências à eficácia, à eficiência, e as visões acerca da noção de 'experiência' utilizadas por alguns policiais que produziam textos visando à f Dl mação de uma nova geração de policiais.

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Pedagogia da linguagem: sob o emblema da experiência

"Foi-se a época em que se escolhia para as delicadas funções de polícia os indivíduos truculentos, capazes de bem manejarem um cacete ou agirem

violentamente em todas as intervenções que tivessem que fazer. " Laicus, 1930

32

o policial Sylvio Terra chegou à policia em 1915 como 'agente' do Corpo de Segurança Pública, atuou como comissário na 4' Delegacia Auxiliar e, quando esta foi substituída pela Diretoria Geral de Investigações, ocupou a direção da Seção de Segurança Pessoal, subordinado à chefia de César Garcez33 Em 1927,

. ,

quando investigador da 4', teve seu nome associado à: prisão de Febrônio Indio do Brasil, o que lhe valeria celebrizar-se como um policial de 'talento' que sabia manejar conhecimentos e métodos investigativos. Como indiquei, a passagem para um outro organismo administrativo parece não ter alterado a visibilidade de certos investigadores. A Delegacia Geral de Investigações dava continuidade ao projeto de especialização de algumas repartições, estando dotada de atribuições amplas e ligadas à função 'técnico-policial', à investigação e à vigilân­cia pública, mas mantendo ilimitadas prerrogativas de atuação em qualquer parte do Distrito Federal. Seus policiais deveriam tanto assistir a demandas de outras delegacias - distritais e auxiliares - como realizar deligências, lavrar autos de flagrante de contravenção e investigar 'crimes de difícil elucidação'. Quanto à seção dirigida por Terra, deveria dedicar-se à sindicância de crimes e a levan­tamentos de 'antecedentes' de criminosos procurados por todo o território nacional. Essa trajetória do policial Terra, nas palavras do jurista Roberto Lyra, o teria transformado num "autoditata de há muito levado pela consciência do dever funcional e pelo devotamento cívico à sua missão a aprofundar-se nos segredos da especialidade". 34

O exercício dessas funções e sua imagem pública acabaram por legitimar outras experiência desenvolvidas por Terra no final da década de 30.

Entre 1939 e 1940, Sylvio Terra publicou três importantes volumes dedicados ao ensino da prática e da organização policial: Polícia, lei e cultura ( em co-autoria com Pedro MacCord, 1939), A polícia e a defesa social - curso para detetives, comissários de policia e escrivães (1939) e Regulamento e organização policial do Rio (1940). No final dos anos 40 a 'experiência' de Terra seria utilizada na coluna do periódico policial Polícia em Foco, onde histórias da instituição eram contadas através de biografias de 'policiais ilustres' narradas a partir da voz e da versão autorizada de um dos seus mais antigos policiais.35 Essa tarefa mobilizou outros 'policiais de carreira' que ocuparam postos importantes na estrutura da instituição no mesmo período. Rolando Pedreira, ex-secretário do titular da 4'

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Auxiliar nos anos 20, o coronel Bandeira de Melo, publicou em 1939 seu Lições de polícia dando continuidade à coluna que editava no jornal Gazeta Policial. O policial militar André Romero publicara em 1935 suas Instruções policiais (para guardas municipais), e o delegado Olyntho Nogueira, em 1934, Polícia técnica -base para a criaçtÜJ da Escola Brasileira de Detetives. Anibal Martins Alonso, outro delegado que ocupou vários postos de relevo além da 4' Auxiliar no final dos anos 20 e foi professor da Escola de Polícia no início da década de 40, mais tarde publicaria um misto de manual e compilação da legislação referente à organização da polícia - Organização policial (1959).

Entre os periódicos produzidos nesse período, uma publicação precur­sora na divulgação de uma nova 'pedagogia' do ensino policial foi o jornal Gazeta Policial - independente, doutrinário, político, noticioso e literário, criado no final dos anos 20 (provavelmente entre 1928 e 1929) pelo policial Rolando Pedreira.36 Os conhecimentos e as experiênciais que distanciavam aqueles que haviam passado pela 4' dos demais policiais da instituição pareciam autorizar os editores da Gazeta tanto a divulgar matérias de conteúdo mais político quanto a manter uma coluna denominada "Lições de polícia". Nesse espaço da publicação, especifi­camente voltado para a 'formação', eram reproduzidas informações que iam da criminologia à legislação constitucional. Ao mesmo tempo, a cada nova edição, uma série de prescrições quanto à 'boa conduta' e aos procedimentos técnico­científicos era fornecida aos leitores.

Observando os temas freqüentemente abordados ao longo de 1931, verifica-se que o elenco de assuntos tratados destinava-se a enfretar duas 'carên­cias' na formação do policial. De um lado, a necessidade de empreender ações enérgicas e, se necessário, envolvendo o uso da força, no intuito de 'manter a ordem'. De outro, a necessidade de, ao proceder dessa forma, basear-se em preceitos juridicos para que as garantias constitucionais e individuais fossem mantidas. Para que a mediação entre lei e ordem fosse observada, não era preciso transformar todo policial num bacharel, e sim mudar o conceito da instituição e dos seus agentes. Sylvio Terra, em coluna na Gazeta, reclamava do desdém com que experientes policiais eram tratados quando o assunto era a exigência de bacharéis para ocupar postos de titulares nas delegacias. Propunha, em contra­partida, que fosse avaliado o grau de 'merecimento' dos policiais mais antigos, de forma a aferir outras habilidades aprimoradas com a experiência.3 7 Nas palavras de Sylvio Terra, além de uma boa compleição física e preparo técnico, um policial deveria possuir 'cultura generalizada': "Ela é a sua grande compa­nheira. A inteligência é como o físico; precisa de treinamento. A boa disposição orgânica é a inteligência, robustecida pela cultura; aduza-se-Ihes uma boa dose de força de vontade. Os deveres são árduos, mas a vontade torna-os amenos ( . . . ) o policial deve ser, sobretudo disciplinado. Disciplinado nas idéias, isolando-as

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de impressionismos vãos e de sugestões mórbidas, sabendo ordenar seus pen­samentos com lisura e justeza, disciplinado nas ações, disciplinado no cumpri­mento de seus deveres funcionais" (l939a: 105).

Um outro assunto mereceu a atenção dos autores de manuais - o perigo e o poder de 'contaminação' do policial. De um lado, o contato do 'bom policial' com o meio criminal parece imprescindível para que os 'modos', 'costumes' e 'cultura' possam ser aprendidos. Segundo Morton, há que se usar disfarces, roupas, gírias, e conquistar afinidades com os delinqüemes. Essa relação compõe o que chama de 'psicologia criminal': "o perfeito agente de polícia deve estar sempre em contato com os agentes que ele é chamado a reprimir. Deve procurar­lhes a sociedade, conhecê-los pessoalmente, familiarizar-se com as suas idéias e as suas doutrinas, sobre as quais formará deduções psicológicas em matéria de pesquisa e de captura. Aquele que penetrar a alma dos criminosos, apreendendo as concepções desse mundo singular, conhece o inimigo e sabe dar-lhe combate:

-

E a psicologia criminal, ciência fundamental para o agente de polícia" (Morton, 1909: 94-5). De outro lado, porém, o policial deve furtar-se a outras formas de convívio. Sua aproximação deve ter um único objetivo: a 'observação' do 'meio criminal'.

A imagem do 'bom policial' passa a estar diretamente ligada à sua capacidade de observação e de 'intuição' vinculada à tarefa de 'profilaxia social'. Nota-se entretanto que, para 'intuir' e 'observar' o conhecimento antes reivindi­cado como eminentemente técnico-científico, deve-se abrir espaço para a ex­periência e o 'conhecimento das ruas'. Em seu segundo número a Gazeta Policial veiculava a coluna de Pedreira ensinando como os policiais deveriam tratar os indivíduos egressos das penitenciárias - os 'liberados'. Vigilância e permanente observação são os tennos correntes. Essa visão reaparece menos como uma técnica, e mais como uma habilidade nas memórias do então delegado Anésio Frota Aguiar :

Quando fui delegado de polícia no antigo Distrito Fede­ral, enfrentei em determinada época um recrudescimento da violência ( ... ) não dispúnhamos dos recursos materiais de hoje ( ... ) como última instância e recurso extremo, vali-me, então, da chamada medida de ordem como único meio de limpar a cidade ( ... ) consistia em deter, para averiguações, elementos reconhecidamente perigosos nas diversas áreas jurisdicionais. Fazia-se o boletim individual e depois uma análise dos antecedentes criminais e da vida pregressa de cada um e, comprovada a periculosidade, os detidos passavam à disposição do Chefe de Polícia, sendo em seguida encaminhados à Colônia que existia na Ilha Grande onde permaneciam por um determinado período de tempo ( ... ) as de­tenções eram feitas em rondas sistematizadas, por tulUlas de vigilância

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especialmente treinadas, contando com policiais experientes e conhece­dores dos redutos criminais e que, possuindo relacionamento popular amplo, conseguiam obter informações ( ... )

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Nota-se que a construção do 'indivíduo' passível de continuada vigilân­cia está diretamente ligada a uma tensão e a um impasse entre a legalidade da forma e a energia da ação. De um lado, a legitimação de uma implacável vigilância e, de outro, o exercício da função 'preventiva' através de práticas que visavam a advertir. Há concordância, seja no campo estritamente jurídico, seja no jurídico­policial, de que a vigilância é a única forma pela qual se pode exercer controle sobre um certo tipo de delinqüência. Desse modo, é curioso observar que todo clamor em torno do fortalecimento de uma 'polícia preventiva' culmina em fortalecer novos focos de atenção nos quais o emprego das técnicas de 'observação' e 'sombreamento' tem sua legitimidade assegurada tanto por dispositivos jurídi­cos quanto pelo uso da 'autoridade'.

Como argumenta Rolando Pedreira, "é preciso, entretanto, que o policial disponha de alguma penetração psicológica, de aptidão pessoal, de certa capaci­dade de observação e dedução, para que se revele superior ao delinqüente, e tenha sobre ele, de fato, real superioridade. O fator moral é, também, de grande eficácia

,

na pesquisa criminal. E preciso que o delinqüente se convença de que está em face de alguma cousa que ele deve e tem obrigação de respeitar" (Pedreira 1939: 40-1).

A vigilância deve ser exercida onde se supõe haver 'elementos' que suscitem suspeição. Todavia, nem todos os agentes e policiais podem exercê-Ia, porque não dominam certas técnicas. Ao mesmo tempo, não é sobre todos que pode ser exercida, uma vez que há limites instiruídos constirucionalmente sobre os domínios de observação possíveis. A figura do 'policial preparado' reúne desse modo habilidades antes debitadas exclusivamente aos domínios técnico-científi-

,

coso E esse o representante do Estado capaz de discernir quanto à aplicação de preceitos legais sem ferir os de caráter constitucional. A idéia de que há uma dimensão 'privativa' na vida dos indivíduos cujo acesso é legalmente impedido, por exemplo, não se aplica a todos:

( ... ) os particulares, ao procurarem conhecer e devassar a vida alheia e bisbilhotar o que se passa na casa de outrem, cometem um ato pouco recomendável; o mesmo não se dá com quem faz polícia, que, por ordem de ofício, é obrigado a sondar e a devassar o que se passa até de portas adentro. Assim, pois, aquilo que para o particular constirui uma fa!ta

3J'ara o policial tem que ser uma das virtudes da própria

profissao.

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Nas falas dos policiais-professores as idéias de ofício e virtude se alternam como faces de uma mesma prática. E é interessante notar como se esboça uma imagem na qual o policial é alguém com qualidades e virtudes distintas das que possuem os demais cidadãos ou dos 'homens comuns'. Essa distinção lhes será conferida através de suas próprias ações.

Para um bom policial não há barreiras separando a vida pública ou a vida do indivíduo na rua e de portas fechadas afora, da vida no interior da habitação ( ... ) tudo depende do tato, da habilidade, da finura com que procura agir, sem despertar desconfianças, vigiar sem põr em guarda os vigiados, fazer polícia preventiva, que começa pela fase da informação.

40

A respeito das atitudes retratadas como condizentes com a 'boa conduta', Rolando Pedreira salientava que muitas vezes certos comportamentos impul­sivos resultavam do despreparo e do 'deixar-se seduzir' pelo mundo das aparên­cias. Os policiais mal formados não sabiam distinguir de forma correta o grau de 'perigos idade' de um 'indivíduo suspeito'. Havia, por certo, evidentes limites entre as 'pessoas de bem' e os 'criminosos'. Advertindo para o perigo das falsas impressões, argumentava que era "certo que tratar com criminosos, na sua maioria profissionais de larga folha de antecedentes, perigosos alguns, san­guinários muitos, calculados outros, não [era) o mesmo que parlamentar com pessoas de alta roda, probas, finas, educadas, cultas e com a noção das cousas e do direito, que têm cada uma de zelar por si, pelos seus, pela comunidade, sem que desse direito advenham choques e prejuízos a direitos de outrem, ou de outros, tão sagrados quanto os seus. Diante de uns, toda a austeridade se torna indefectível, enquanto que, diante de outros, toda a bonomia é justificável" (Pedreira, 1939: 37-8). Fica evidente que o 'fazer polícia', nas imagens aludidas por Pedreira, constituia uma relação na qual a técnica ou a força informavam linguagens válidas mas nem sempre inc1udentes.

As técnicas de observação eram temas caros nos exemplos que visavam a demonstrar a eficácia de determinadas práticas policiais. Contudo, ao abordá­las, muitos policiais necessitavam justificar, baseando-se na sua própria 'ex­periência', que havia gradações no 'tratamento' de criminosos diretamente li­gadas às 'diferenças individuais'. Rolando Pedreira dedicou todo um capítulo de seu manual ao que chamou de 'direitos individuais'. Essa percepção diferenciada da expressão dos 'direitos' dos indivíduos vincula-se ao princípio de 'defesa social' (Alvarez, 1996). Ou seja, como cabe à polícia defender os direitos da sociedade, regulados através da ação do Estado, a 'vida particular' de certos indivíduos é passível de suspensão e vigilância em nome desses princípios. Pedreira refere-se às 'aparências' como uma camada apenas superficial de similitudes que tem entre

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outras propriedades a de esconder um substrato irredutivelmente distinto - que torna 'indivíduos' e 'criminosos' não só diferentes, mas passíveis de sanções legais de narureza diferenciada. Como exemplo Pedreira evoca insuspeitáveis figuras públicas tais como comerciantes, homens de negócios e membros das 'altas rodas sociais' que freqüentam clubes privados onde se pratica o jogo e a prostituição. A lição a ser reproduzida em seu livro é a idéia de que a criminalidade pode disseminar-se tanto entre ricos quanto entre pobres. Entretanto, o critério que justifica a incursão policial para além das 'aparências' não lhe parece nem aleatório nem igualitário. Há que se suspeitar diligentemente de sinais de 'desregramento' e 'abalos sociais'. O 'bom policial' deve ser capaz de identificar o que está oculto através da detecção de certos sinais. Evocando a metáfora da 'sociedade doente' como resultado de uma "soma de vidas particulares dos indivíduos condicionados ao vício e ao crime", ele redireciona o foco das suas preocupações para os sinais mais visíveis de seu mau funcionamento: as 'per­versões', os 'maus hábitos' e a falta de 'cultura cívica'.

A reiterada referência aos textos legais em grande parte dos manuais revela um forte propósito dos policiais-escritores: através da citação e da repro­dução de documentos jurídicos, pretendem eles libertar os policiais civis da pecha de reagirem ilegalmente. Os policiais não só conhecem as leis, como seu con­hecimento é imprescindível para a formação do 'bom policial'. Rolando Pedreira, o editor da Gazela Policial, publicou em 1939 o seu Lições de poUcia prática, cujo propósito era o mesmo da coluna do jornal: fornecer "mais experiência que erudição, mais conselho prático do que doutrina, mais conversa do que estudo" (Pedreira, 1939: 8-9). O respeito às leis e aos códigos de fato eram regra básica dessa prática, mas não o que a distinguia. Pelo contrário, os conhecimentos 'científicos' deveriam aliar-se a habilidades conquistadas através da 'experiência'. Pedreira, por exemplo, relacionava tanto atributos pessoais quanto técnicos. Contudo, ambos seriam passíveis de serem aprendidos em 'escolas' especiali­zadas. Era necessário que se reproduzisse justamente aquilo de que os manuais técnicos eram incapazes: o 'traquejo' e a prática. O 'bom policial' seria justamente aquele que aliaria atributos pessoais ao domínio da técnica

Porém, entre o desejo prescrito e as interpretações sobre os usos dos dispositivos legais, havia distâncias. A propósito da então recentemente promul­gada Constituição de 1934, que reiterava os princípios que garantiam os direitos individuais sob a vigilância e os interesses do Estado, o então diretor da Diretoria Geral de Investigações, César Garcez, confirmava que, para a ação cotidiana da polícia, nada havia mudado. Ao contrário, o novo texto só corroborara a legislação de 1891.41 Em outros manuais reencontramos a mesma tensão entre a legitimi­dade dos direitos de 'defesa social' e os limites dos 'direitos individuais'. Não havia incongruência. Sua utilização, porém, estava irremediavelmente vinculada

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ao status social dos envolvidos. As teorias da 'defesa social', que marcam IOdo o processo de refOllIlulação do Código Penal, consistiam em princípios e mecanis­mos de intervenção de caráter mais amplo e que visavam a reprimir os abusos à

ordem pública. E a 'sociedade' que outorga ao Estado o direito de defendê-Ia contra individualidades perniciosas. O 'direito constitucional' - sobretudo o de 1934 - pretende estabelecer vínculos entre o 'cidadão' e a 'nação'. A polícia seria a instituição que protegeria a sociedade do desregramento provocado pela perda do estatulO de cidadania. Nesse ponto 'estrangeiros' e 'analfabelOs' tinham algo em comum. Ao serem colocados fora tanto da condição de 'nacionais' quanto da de 'cidadãos', estariam sujeitos às esferas de aplicação das leis penais.

O policial Sylvio Terra, também em 1939, e à guisa de servir de 'curso preparatório' para detetives, comissários e escrivães, publicou um segundo ma­nual no qual explora em profundidade a importância e o papel da polícia na defesa da 'sociedade'. A idéia de 'defesa social' deveria informar novas concepcões acerca da formação policial. Argumenta Terra: "a defesa, por ser uma das condições, por assim dizer estatais, implica a noção de eficiência, de segurança, de efetividade, de vigilância atenta e de coordenação de IOdos os órgãos vivos do aparelho policial. Entretanto, para que esses órgãos preencham as condições tutelares do Estado, é preciso que eles revistam propriedades da mais inequívoca vitalidade, que sejam, verdadeiramente, dotados do mais alto potencial de previsão e que possuam capacidade do mais alto discernimento ( ... ) daí, a natural conclusão, de que polícia, sem a necessária especialização nas suas diversas categorias de trabalho; sem a cultura correspondente e sem a sua integração total nos postu­lados de moralidade e de eficiência técnica, resulta inoperante e deixa, con­seqüentemente, de ser a garantidora da defesa social" (1939: 70-1).

No ano seguinte, Sylvio Terra reunia, também sob a fonna de um manual, material relativo à 'educação moral e cívica', o complemento que faltava às propostas exclusivamente técnico-científicas de uma primeira geração de policiais civis. Primeiramente dirigida aos detetives, a publicação O detetive e sua fo/mação colocava à disposição dos 'policiais-cidadãos' noções de 'direi 10' e 'conhecimentos gerais'. Vale notar que Terra produz um programa visando a cobrir questões mais relevantes e deixando de fora parte substancial dos 'ensi­namentos' que até então vinham sendo citados como os mais importantes: os conhecimentos cientificos. Entre os temas arrolados sob a rubrica 'conhecimen­tos gerais' encontramos noções de geografia urbana, 'corografia do Brasil', aritmética e educação moral e cívica. Ou seja, segundo Terra, "bandeira na­cional, defesa da pátria, disciplina, hierarquia, serviço público, qualidades do cidadão, pátria, cidadão e leis" (p. 7). Sylvio Terra argumentava que uma nova concepção acerca da função de polícia deveria nortear a formação dos detetives - "um cidadão a quem o Estado investe de importante atribuição policial" (p.12).

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Os Domíllios da Experiêllcia, da Ciência e da Lei

A técnica viria de forma a complementar habilidades pessoais. Diante dos desafios impingidos pelas circunstâcias que envolviam a tarefa policial, a utili­zação de outras tecnologias deveria ser vista como um recurso que não alteraria por demais a dinâmica de seus procedimentos. Ao contrário, atuaria como uma espécie de freio, de mecanismo disciplinador da conduta. Ajudaria, enfim, a conformar, utilizando a expressão de Nobert Elias, um 'cidadão civilizado', que age sob regras sociais e legais conhecidas e aceitas. Tratando-se de ações que visavam a manter a ordem e a segurança pública da cidade, tais qualidades são contempladas por Sylvio Terra quando este se refere ao que chama 'urbanidade': a 'boa educação', 'os bons modos no traIO social', 'as palavras, os gestos, as ações, as atitudes', sem falar no saber, na IOlerância e na 'cortesia'. "O homem civilizado e cortês", argumenta o policial-professor, "tem o dom de atrair simpatias, dedi­cações e afelOs. O homem grosseiro repulsa os sentimentos elevados que distin­guem o homem bem nascido, de caráter bem formado, de coração magnânimo" (p. 62).

A idéia de que uma cultura de caráter geral, não exatamente técnica, viria a transformar a formação do policial-cidadão e, ao mesmo tempo, coibir os desatinos dos 'homens' é explicitada no final da longa introdução do manual de Terra. O policial-professor manifesta a crença de que a mediação entre técnica e 'civismo' só é possível se resultado de uma experiência concreta, algo que só a própria 'prática' policial pode propiciar.

A prática ensinará, de resto, com o tempo, ao detetive, outras maneiras de captar a estima pública, a confiança e a admiração de seus concidadãos. Como lhe dará, também, o treino e a capacidade funcional, se ele é portador de atributos individuais, que o quali­fiquem para o desempenho da mais espinhosa, da mais árdua e da mais difícil de todas as funções públicas. Seu caráter evidencia-se na prática e no exercício de suas atribuições. Por isso que, sendo amplo o campo do arbítrio - impossível erigir-se normas solidamente preestabeleci­das - preciso é que tenha conta sobre si, domínio sobre seus atos, poder e energia para refrear e conter as próprias paixões e manifestações dos sentimentos e dos instintos inferiores. (p. 24)

Em todos os manuais publicados nesse período percebe-se que a alusão à noção de cidadão é explicitada sempre que seja necessário caracterizar o policial como um 'servidor público' ou, mesmo, como um 'funcionário do Estado' a serviço da população. A imagem do cidadão, nesse sentido, aparece como antítese do perfil do policial.

Vale notar que particularmente neste manual Sylvio Terra refaz o de­senho dessa oposição incluindo novos referentes que não só a desfazem, como

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reconfiguram seus pólos no plano da 'nação'. O par cidadão/nação é o que possibilita que o policial seja caracterizado como um cidadão a serviço do Estado. A idéia de 'cidadão-partícula', 'elemento' que compõe a nacionali­dade, permite que todos os que exercem tal poder e os que dele devem fazer uso sempre que se sentirem lesados façam parte de um mesmo conjunto de valores e 'sentimentos' - o 'espírito patriótico'. Os conhecimentos de 'moral e civismo', nessa perspectiva, visam a transformar o homem em cidadão, condição necessária para que ascenda não só a função policial mas a de 'operário', de 'patrão', de 'soldado':

( ... ) a sua bravura, o seu heroísmo, e o seu martírio, na defesa da Pátria, da Família e da Religião. O cidadão é, portanto, uma partícula preciosa dentro da grande família humana, que forma um Estado soberano. Daí, educar o cidadão, plasmando o seu caráter em princípios imutáveis de honra, de pundonor, de patriotismo, de ab­negação, de energia e de heroísmo. Fazê-lo um ser consciente, esclare­cido, generoso, inclinado à benignidade e à prática dos sentimentos que fortalecem o coração, sem endurecê-lo ( ... ) nas suas altas e imprescritíveis determinações. Fazer, pois, o homem de bem, o cidadão prestante, é uma tarefa que reverte em benefício da Nacionalidade. (p. 48)

Mas Terra não esteve sozinho na manifestação desse desejo de transfor­mar os policiais em 'cidadãos'. O ex-delegado Olyntho Nogueira, em seu manual Polícia téC/zica; base para a criação da Escola Brasileira de Detetives (1 934), des­trinchou sua mal-sucedida proposta de reforma da polícia, que previa a formação do que chamou de 'detetives-nacionais', chamando a atenção para a necessidade de os problemas da organização policial serem vistos sob a perspectiva dos policiais e do Judiciário. A preparação do policial seria obrigatória para todos os que fossem aprovados através de concurso público e consistiria numa série de cursos sobre 'educação moral e física', geografia, história, geometria, física, química, historia natural, direito e 'legislação processual' (p. 19). O conhe­cimento dos elementos que compunham a 'nacionalidade' passaria a ser requisi to básico para a formação do 'soldado-cidadão'. Não só nas iniciativas particulares, mas sobretudo no 'material pedagógico' oficial, a veiculação de símbolos nacio­nais explicitava um forte desejo de tornar a polícia do Distrito Federal uma instituição 'civil'. Em novembro de 1938, o Boletim de Serviço da Polícia Civil do Distrito Federal publicava na íntegra o discurso do positivista Teixeira Mendes por ocasião dos festejos da proclamação da República.4Z A bandeira, um dos panteões nacionais, deveria ser esquadrinhada para que todos os funcionários do Estado pudessem compreender os projetos de nação que se escondiam por trás de certos elementos iconográficos.

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Os Domíllios da Experiêllcia, da Ciência e da Lei

Minha intenção neste texto foi simplesmente tomar os projetos de 'boa conduta' policial tal como foram explicitados por alguns dos mais famosos policiais nos anos 30. Portanto, ficaram de fora deste desenho a imagem que a população formou e os projetos que o próprio Estado produziu dos policiais e das instiruições de segurança. Tentei mostrar que uma nova linguagem em tomo das práticas repressivas e preventivas emergiu num amplo processo de transfor­mações políticas e administrativas, ainda que tenha sido esboçada ao longo das primeiras tentativas de discutir e caracterizar os limites e as atribuições da polícia. As reformas e o espírito de mudança administrativa e política proporcionam à própria instiruição policial, e em particular à Polícia Civil da capital, um contexto propício para a viabilização de um desejo de transformação que já estava em curso (Conniff, 1981; Bretas, 1997a; Pinheiro, 1991; Cancelli, 1993). Nesse momento já se impõe de forma visível uma imagem da corporação organizada e regulada pelo Estado. Esse comprometimento é relevante principalmente se olharmos para as publicações não-oficiais voltadas para um público composto por policiais. Tanto o 'policial-cidadão' de Sylvio Terra quanto o 'detetive-nacional' de Olyntho Nogueira interpoem, num repertório bastante repetitivo de requisitos ne­cessários ao desempenho da função policial, temáticas condizentes com as preocupações do Estado: transfOIIllar cada indivíduo num cidadão a serviço das

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causas naCIOnaiS. Para policiais que vivenciaram e talvez, quem sabe, protagonizaram

muitas das práticas concebidas como infamantes da instiruição ao longo dos anos 20, no interior .:la famigerada 4' Delegacia Auxiliar, esse processo consistiu em larga medida numa paulatina reconfiguração do estaruto do policial frente a projetos de cunho eminentemente funcional. Se não havia como transformar radicalmente as práticas e a ausência de habilidades técnicas, foi preciso conceber a noção de 'experiência' não como um acúmulo de 'vícios' do passado, mas como um acervo precioso que precisava somar-se a um novo modelo de formação. Era preciso que o 'conhecimento' induzisse ações e habilidades tanto técnicas quanto pessoais. Embora essa visão acerca dos quadros e do papel da polícia nos anos 30 tenha sido ofuscada pelas análises que focalizaram aspectos repressivos vincu­lados à violência e ao autoritarismo, principalmente mas não exclusivamente no pós-37 (Cancelli, 1993), foi ela que permitiu que a continuidade das práticas passasse a ser não só incorporada mas reproduzida através de uma nova lin­guagem. Ao mesmo tempo, foi ela que permitiu que em tomo da revalidação da noção de 'experiência' se forjassem as bases de um ethos corporativo arredio aos apelos cientificizantes. Essa valorização do 'policial-experiente' permanece nas publicações policiais, evidentemente matizada por outras preocupações, nas décadas subseqüentes. No final dos anos 40 verifica-se um processo de separação mais radical entre as atribuições da 'polícia técnica' e da 'política preventiva'.

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Para isso empenham-se o corpo de funcionários do Instituto Médico Legal, do Gabinete de Pesquisas Científicas e do Instituto de Identificação, investindo no aprimoramento técnico e na reconfiguração de seu status funcional dentro da estrutura da polícia. A 'polícia técnica' tem suas fronteiras de atuação bem definidas. Quanto ao policiamento e à ação repressiva nas ruas, subsiste como uma espécie de 'memória corporativa' reproduzida através das associações de classe. Não mais o 'policial-cidadão' ou mesmo o 'detetive-nacional', mas o tira que saneia a cidade movido pelo 'faro' e outras habilidades inomináveis.

Notas

I. Embora a expressão 'higiene social' nesse período já tivesse seu uso disseminado nos meios jurídicos, foi largamente utilizada por Afrânio Peixoto nos seus manuais dedicados à defesa de políticas higienistas, que deveriam envolver não só práticas ligadas à saúde pública mas, sobretudo, ações no campo das polícias preventivas e da segurança pública no intuito de reprimir 'hábitos e comportamentos anti-sociais', Ver Mrânio Peixoto, "Higiene social", Arquivos de Medicina Legal e Identificação, VII (14): 212·3, jan. de 1937. O mesmo ocorre com o termo 'profLIaxia social', usado por Peixoto para referendar o alcance social do novo projero de reforma do Código Penal de 1890, na época alvo de intensa discussão. Ver A. Peixoto, "A reforma do Codigo Penal", Correio da Manhã, 3/10/1930, p. 8.

2. Sobre a noção de Ipolícia científica' ver Ottolenghi (1910), Carvalho (1910, 1912 e 1914), Ribeiro (1934) e Cunha (1998).

3. Joaquim Francisco de Barros Barreto, Projeto de urganização da policia do Distrito Federal, Rio de Janeiro, Leuzinger, 1895; Polícia Civil do Distrito Federal, Projeto de refomla da polícia e justiça local do Distrito Federal, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1927; Luiz de Andrade,

Polfâa prática, bases para a organização da reforma da polícia, Rio de Janeiro, P. de Mello & c., 1913.

4. "A reforma da polícia está errada", Arquivo Nacional, Secretaria da Presidência da República, lata 527, p. 18.

S. Sobre as experiências e formatos pioneiros consultamos, entre outros, Luís da S. A. de Azambuja Suzana, Guia do Processo Policial e Cn"minal, Rio de Janeiro, E. & H. Laemmert, 1859; José M. Pereira de Vasconcellos, Roteiro dos delegados e subdelegados de poUcia; ou, colefão de aIOS, atribuições e deveres destas autoridades, Rio de Janeiro, Laemmert, 1887; Cassiano Tavares Bastos, Guia dos delegados e subdelegados de polícia, contendo tudo qua1Ho diz respeito a estas aworidades, os formulários de todos os processos policiais, Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1888. Sobre a polícia no Rio de Janeiro no século XIX, ver o excelente trabalho de Thomas Holloway (1993). No novo século encontramos as primeiras instruções acerca de 'rondas' e 'patrulhas': Hermes R. da Fonseca, Instruções das rondas e patnllhas, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1902; Polícia da Capital Federal, Corpo de Segurança, Insmlções sobre o serviço do Corpo de Segurança, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1906; Vicente Reis, Consultor policial, Rio de

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Janeiro, Laemmen & C. Editores, 1904; e A. R. Reiss, "Os métodos científicos nos inquéritos judiciários e policiais", Bolctim PrJlicial, n0 2: 14-17, 1907.

6. A cargo do chefe de polícia, a Escola de Polícia fora destinada à 'educação técnica' dos agentes do corpo de segurança e funcionários das repartições de polícia. Segundo o art. 3, a escola funcionaria ((como um laboratório de experiências e um museu criminal, onde se encontrem modelos, mapas, demonstrativos, trabalhos gráficos, fotografias judiciárias e instrumentos de crime", Regulamento da Escola de Polícia, in República dos Estados Unidos do Brasil, Coleções dc /eis, Decreto nO 6.440, de 30 de março de 1907, p. 312.

7. Principalmente na leitura dos textos editados nas duas primeiras décadas e na publicação oficial da polícia civil e do Gabinete de Identificação da Capital, podemos perceber a importância desses três personagens entre a elite policiaI carioca. R. A. Reiss foi diretor da Faculdade de Lausanne; Locard, chefe do gabinete da Polícia Cientifica de Lyon, e Orrolenghi, diretor da Polícia Científica de Roma. A propósito, ver a biografia de Reiss escrita pelo policial Sylvio Terra, "Rudolph Archibald Reiss ­um grande vulto da Polícia Científica", Polícia em Foco, II (1 1), nov., dez., e jan. de 1950, p. 7-8.

8. Entre os professores, Elysio de Carvalho destacava-se por suas aulas de criminologia cujos temas eram 'criminologia' ('definição jurídica e científica do crime, origem e natureza da criminalidade e derenninações dos fatores da criminal idade'), 'psicologia criminal' e 'hislória natural dos malfeitores'; Celso Vieira se encarregaria do 'curso prático de código penal, processo penal e polícia administraliva'; os métodos de identificação criminal ficariam a cargo do ex-diretor do Gabinete de Identificação Criminal,

Edgar Simões Correia; e alguns elementos de medicina legal seriam ministrados pelo dr. Jacinto de Barros (Terra, 1939: 41-43).

9. Escola de Polícia", VuJa Policial, I! (43): 21-22, 2/1/1926.

lO. Em 1916 foi a Bahia, por iniciativa do médico Oscar Freire - à época diretor do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues -que fundou a sua Escola de Técnica Policial (Albuquerque, 1941: 46).

lI. O art. 54 do mesmo decreto de criação da inspetoria advenia que o ensino na Escola de Investigação Criminal seria "essencialmente prático e experimental", todavia franqueado a pessoas Uestranhas ao serviço de polícia". Repúblíca Federativa dos Estados Unidos do Brasil, Coleçãc de leis, Decreto 14.079, de 25 de fevereiro de 1920. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1920, v. 2, p. 629, arts. 53 a 57.

12. O ambiente político que justificou o aparecimento da 4' Delegacia Auxiliar em 1922 é descrito nos estudos de Paulo Sérgio Pinheiro (1991) e Marcos Bretas (1997 e 1997a).

13. Moysés Horta, "Nos domínios da polícia paulista", Vida Policial, 1II (87), 26/2/1927. A Escola de Polícia foi o embrião do Instiruto de Criminologia de São Paulo, criado em 1938 pelo Decrelo nO 9.743, de 10 de novembro de 1938.

14. Respectivamente, Decreto 22.332, de 10 de janeiro de 1933, art. 8 (Terra & Mac Cord, 1939: 72) ; e Decreto 24.531, de 2 de julho de 1934, art. 648 (Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1934, p. 140).

15. Respectivamente, "A reforma da polícia está errada", p. 3 ; e "A reforma da polícia - conferência", Gazela Policial, IV (92), 1/6/1931, p. 4.

16. Comentando o Relatório do Chefe de Polícia de 1926, Evaristo de Moraes mosrrava-se preocupado com o despreparo no exercício das 'funções

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policiais' e a conivência e o mau exemplo da 'classe política': "Não convém ­falemos franco - aos nossos politicóides a mudança radical dos processos de admissão e elevação nos cargos policiais. Desde que a entrada para a polícia e a melhoria nos seus empregos fiquem dependendo da habilitação inicial e da dedicação aos estudos e ao trabalho profissional, não será tão fácil, como é até hoje, acomodar parentes e amigos, fazer progredir quem não o mereça, pagar com colocações na polícia, serviços políticos ou de outra espécie, menos confessável." Evarisro de Moraes, "Homens e cousas da polícia", Vida Polic ial, III (85), 5/2/1927.

1 7. Um dos maiores críticos das reformas pretendidas pelas autoridades do Governo Provisório, O ex-delegado e juiz federal Olyntho Nogueira advertia que apesar de anunciados os expurgos não eram do interesse de 'políticos' locais. Sobre o projeto de reforma, ver Polícia Civil do Distrito Federal, Projeto de Lei Orgân ica da Polícia, Rio de J aneuo, Imprensa Nacional, 1932.

18. João Alberto Lins de Barros, carta a Getúlio Vargas, 20/4/1933. Arquivo Nacional, Secretaria da Presidência da República, lata 527.

19. Idem, ib.

20. Por 'elite policial' me refiro a um corpo distinto de funcionários que detinham cargos de poder e formação superior, em medicina ou direito, e que assumiram pOStoS que os habilitavam a falar em nome da instituição.

21. Vale notar que o projeto Luzardo previa a criação de uma instância fiscalizadora das ações da polícia civil, o Conselho de Polícia. Tendo como integrantes representantes da Corte de Apelação, do Supremo Tribunal Federal, do Supremo Tribunal Militar, da Ordem dos Advogados do Brasil, um promotor público e um 'intendente geral de polícia',

sua insriruição teria como objetivo "estudar os projetos de reforma ou modificação dos regulamentos, programas da Escola de Polícia, organizar as listlS de promoção dos membros da corporação policial, esclarecer os sentidos das leis e regulamentos internos, organizar regimentos internos e julgar processos administrativos" (Ribeiro, 1934: 331).

22. A. Neiva, Relatório da DGEC, 1933. Coleção Artur Hehl Neiva, 34.01.00, pasta I, CPDOC/FGV

23. "A organização policial em Berlim", Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5/8/1933, p. 6; "Conferências sobre política criminal", Correio da Manhã, 1 8/8/1933, p. 3; e "Estudos sobre a moderna polícia alemã", Corre io da Manhã, 26/8/1933, p. 4.

24. Olyntho Nogueira, ''0 projeto de reforma da polícia do Distrito Federal ­considerações", 9f2J1932. Em carta anterior Nogueira explicitava sua discordância afinnando tê-Ia levado à Osvaldo Aranha e a Getúlio Vargas, uma vez que "não precisamos de ádvenas para nos ensinar a fazer regulamentos e policiamemo (u .) estávamos aparelhados para instalar no Brasil uma Escola de Detetives moldada na melhor congênere do mundo e sem o concurso de professores forasteiros (u.) nem que seja com minhas economias próprias, oferecerei ao meu País um pugilo de detetives que hão de provar só faltar ao povo brasileiro um pouco de boa vontade e mais confiança no que é genuinamente brasileiro". Olyntho Nogueira, carta a Batista Luzardo, Distrito Federal, 29/1 1/1931. Arquivo Nacional, SPR, Polícia Civil do Distrito Federal, pasta 401.

25. Idem, ib.

26. "Uma judiciosa entrevista do Dr. B. Luzardo", Gazeta Policial, li (83), 16/1/1931, p. 5.

27. "Problemas policíais de emergência", Gazeta Policial, IV (82): 2/1/1931, p. 3.

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28. Caixa Beneficente dos Funcionários da Quarta Auxiliar, Estatutos, Rio de Janeiro, Typ. Natal, 1923, p. 4.

29. Ibidem, p. 3; ver também Caixa Beneficente dos Empregados da Polícia Civil, Relatório da Comissão de Contas da Caixa Beneficente das Funcionários de Investigação e Segurança Pública, 1934.

30. Ibidem.

31. P. Vidal Martins, carta a Filinto Müller, outubro de 1934, Coleção Filinto Müller, CPDOC/FGV [FM 33.05.09 -Pasta I]. A 'sagacidade' e o 'empenho' do investigador da Seção de Roubos e Furtos da 4' Auxiliar no final dos anos 20 o tomaram figura conhecida na cidade, mencionada em um samba do compositor Wilson Batista. Ver Bruno Ferreira Gomes, Wilson Batista e sua época, Rio de Janeiro, Funarte, 1985, p. 35-37.

32. Lakus, "Ensino Policial", Policia & Justiça, II (8): 121, junho de 1930, p. 3.

33. O bacharel César Garcez, antes de dirigir a DGI, foi delegado titular da I' Delegacia Auxiliar. Com a transformação da Polícia Civil em Departamento Federal de Segurança Pública em 1942, tomou�se diretor da divisão de adminsrração. Ver "César Garcez", Gazeta Policial, (91): 3, 2/6/1931.

34. Preracio de Roberto Lyra à publicação de Terra em co�autoria com Pedro MacCord (1939), identificado apenas como detetive e 'ex-discípulo' de Terra. Ver rambém uSílvio Terra passou 44 solucionando crimes dificeis", O Globo, 10/12/1972, p. 3. A 4' Delegacia Auxiliar foi extinta em 1933, quando a parte mais relevante de suas atribuições - a vigilãncia e a repressão política ­passou a ser formalmente atribuição da nova Delegacia Especial de Segurança Política e Social, ficando a parte

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mvesugauva e a repressao nas ruas a cargo da DGI.

35. Terra foi um dos editores de outra importante publicação policial no fmal dos anos 40, ao lado de Pedro MacCord e Alberto Poitier J r., o jornal Brasil Policial. O mesmo tom ensaístico que envolvia autobiografia, história da instituição policial e uma espécie de "história social do crime na cidade" resultaria em memórias de famosos delegados e policiais nos anos 30, publicadas nos anos 70. Ver, por exemplo, os livros de Aníbal Martins Alonso,Ao longo do caminho, Rio de Janeiro, José 0lympio, 1976; J. Frota Aguiar, Os bravos a'lônimos, Rio de Janeiro, Cátedra, 1991; e Criminalidade e segurança, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1978.

36. A ela se seguiram com o mesmo propósito os periódicos Revista Criminal (1927-1935), GazetaJudici6rio (1945), Polícia em Foco (1948-1950), Brasil Policial (1948-1955),A Nação Armada (1939-1947) e Polícia Política (1937), entre outros. Uma interessante análise do enfoque de temas como 'gênero' e 'raça' no periódico Vida Policial (1925-1927) foi produzida por Sueann Caulfield (1993). Em outro trabalho analisei a produção de periódicos policiais no período. Ver Olivia M. G. Cunha, "Para quem precisa de poHcia", trabalho apresentado à XIX Reunião da ANPUH, BH, julho de 1997.

37. S. Terra, "Falso preconceito policial", Gazeta Policial, 4/3/1931, p. 4.

38. Anésio Frota Aguiar, "Profilaxia social", in Criminalidade e segurança, Rio de Janeiro, Assembléia Legislativa do Estado, 1978, p. 26.

39. "Lições de polícia", Gazeta Policial II (86), 4/3/1931, p. 2.

40_ Ibidem.

41. "O na 2 1 do art. 1 1 3 da Constituição ­como o interpreta o Dr. César Garcez", Revista Criminal, 3 (32): 567, set.lout. 1934.

42. "A bandeira brasileira", Boletim de Serviço, VI (263), 19/11/1938.

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Palavras-chave: polícia, nação, nacionalismo, formação policial, polícia civil, criminologia.

(Recebido poro publicação em ,elembro de 1 998)

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