os desafios da relaÇÃo regional-global no ensino de geografia : uma reflexÃo a partir do oriente...
DESCRIPTION
Por muito tempo, as imagens do Oriente Médio estiveram vinculadas ao atraso, ao imobilismo e ao exótico. Tais concepções foram constituídas historicamente pelo colonizador europeu que procurou consolidar um conhecimento sistemático regional, referenciado como Orientalismo. Essa prática inventada objetivou silenciar a Geografia das diversas sociedades submetidas por séculos ao expansionismo Ocidental, afastando-as de qualquer referência à modernidade.TRANSCRIPT
OS DESAFIOS DA RELAÇÃO REGIONAL-GLOBAL NO ENSINO DE GEOGRAFIA : UMA REFLEXÃO A PARTIR DO ORIENTE MÉDIO
Jorge Luiz Raposo Braga – UERJ-FFP – [email protected]
Eduardo Karol – UERJ-FFP – [email protected]
Marcio Ornelas Vieira- FFP- [email protected]
Por muito tempo, as imagens do Oriente Médio estiveram vinculadas ao atraso, ao
imobilismo e ao exótico. Tais concepções foram constituídas historicamente pelo
colonizador europeu que procurou consolidar um conhecimento sistemático regional,
referenciado como Orientalismo. Essa prática inventada objetivou silenciar a Geografia das
diversas sociedades submetidas por séculos ao expansionismo Ocidental, afastando-as de
qualquer referência à modernidade.
Se a modernização esteve sempre associada ao eurocentrismo/Ocidente, percebemos
que a lógica capitalista global em suas estratégias de acumulação, evidencia cada vez mais
um desenvolvimento geográfico desigual. Dessa forma, percebe-se que muitos governos do
Oriente Médio vêm implementando os seus “ajustes espaciais” através de um conjunto de
empreendimentos imobiliários. Esses investimentos estão sustentados em um discurso de
singularidade, pautado no turismo contemporâneo que procura exaltar determinadas
práticas ambientais específicas, como se as pessoas de alto padrão financeiro pudessem
vivenciar um retorno ao “Oriente Médio das mil e uma noites”.
O processo de modernização e de cidades “futuristas” ganha cada vez mais
aceitação no Oriente Médio. Um efeito em cadeia de urbanização peculiar, que esbanja
luxo, onde bairros são construídos sobre o deserto, onde a paisagem natural se confunde
constantemente com as magníficas construções. O ápice da Modernidade está no Oriente
Médio que se apresenta como algo em constante movimento, e por isso se contrapõe ao
espaço-tempo “estático”, legitimado pelos discursos orientalistas.
Esse Oriente Médio dinâmico e complexo reforça a concepção de que a Geografia
Regional longe de ser uma realidade contemplativa e relativamente uniforme, vem impondo
desafios aos profissionais de ensino da disciplina, pois em um mundo cada vez mais
conduzido pela des-ordem espacial é problemático reduzir a análise regional as esferas da
estabilidade, continuidade e homogeneidade, o que seria um contrassenso diante das
práticas sociais diferenciadoras.
Quanto à diferenciação espacial ou à “produção da diferença”, por mais que a globalização tenha unificado mercados e imposto um capitalismo mundializado, não se trata, em hipótese alguma, de uma simples homogeneização, seja ela econômica, política ou cultural. Embora economicamente seja mais visível a amplitude (“global”) da economia de mercado, com o valor contábil-mercantil atingindo as mais recônditas esferas da vida humana, mesmo aí convivem a desigualdade, inerente aos processos de reprodução capitalista, e a diferenciação em seu sentido mais estrito (Haesbaert, 2010b, p.42-43).
Este é um desafio que é posto à Geografia escolar, ou seja, ensinar implica propor
alternativas possíveis para a construção do conhecimento geográfico, procurando despertar
na relação professor-aluno uma abordagem mais dinâmica, entender que as transformações
espaciais são históricas, fundamentadas em processos de ocupação de várias gerações e,
portanto, de relações conflituosas. Tais complexidades foram silenciadas pela imposição de
uma geografia escolar que consolidou determinadas imagens/concepções como
preponderantes na representação do Oriente Médio, enquanto “região geográfica”. Assim,
ao reduzir as regionalizações apenas à construção intelectual, a análise regional corre o
perigo de limitar as suas interpretações aos critérios utilizados pelos autores que elaboram
os materiais didáticos.
Desta forma, pode-se produzir uma representação regional parcelada e direcionada,
caso não sejam considerados tantos os sujeitos sociais quanto os interesses que estão em
jogo na produção desse espaço. Tal problema acaba materializado em muitos livros
didáticos que apresentam o Oriente Médio finalizado, ou seja, como uma delimitação
regional estável e coerente, embora haja imprecisões, dúvidas e incertezas sobre a sua
extensão territorial. Mesmo assim acostumou-se a representá-lo na confluência entre a
África, a Europa e a Ásia.
Haesbaert (2010a, p.123), se contrapôs a essas simplificações ao conceber que o
regional possui múltiplas manifestações dentro da globalização capitalista, por isso não
pode ser compreendido apenas na lógica zonal.
O caráter regional integrador – que preferimos denominar “articulador”, que percebe a região, muito mais do que a partir de critérios de homogeneidade e continuidade, por critérios de coesão ou, “articulação” e des-continuidade promovida por dinâmicas/sujeitos sociais na imbricação diferenciada de múltiplas dimensões do espaço geográfico.
Neste contexto, cabe a Geografia propor uma nova abordagem dos processos de
regionalização e de análise regional, para que algumas considerações já formuladas e
consagradas do Oriente Médio sejam revistas, não só nos seus métodos, mas também no
conteúdo que é ensinado, propondo outras leituras que referenciem as relações combinadas
entre a globalização e a fragmentação. Portanto, torna-se relevante trabalhar as diferentes
dimensões de atuação das redes de coesão, ou seja, a articulação regional, como Haesbaert
(2010a, p.110) prefere chamar, “o que implica identificar também, por outro lado o nível de
desarticulação e/ou fragmentação de espaços dentro do espaço regional em sentido mais
amplo”. É o que abordaremos mais adiante no caso dos países que compõe o Conselho de
Cooperação do Golfo (CCG).
O objetivo do nosso trabalho, então é refletir sobre essas imagens que mostram o
Oriente Médio como o centro da modernidade, do luxo e da riqueza, bem distante do
imaginário orientalista que apenas concebia o Oriente Médio como o lugar do caos e do
atraso. Um Oriente Médio produzido por uma elite regional ambiciosa que possui um
projeto para tornar a região como o maior polo de turismo do mundo, que se ajusta aos
padrões globais para se inserir ao jogo do poder do capital simbólico coletivo e, assim, se
tornar um ponto de referência para os interesses internacionais. Mas, essas ações
desenvolvidas pelos Estados e/ou pelo grande capital deixam de fora determinadas áreas e
sociedades, evidenciando que as políticas ali introduzidas são desvinculadas das
necessidades regionais.
O ensino de Geografia pode reforçar a concepção orientalista?
A expressão Oriente que se internalizou nos povos locais e no meio midiático em geral,
traz uma construção eurocêntrica, fruto do momento em que a Europa se “descobre” como
Ocidente e passa a determinar os lugares das demais sociedades no cenário internacional.
Segundo Souza Santos(1994), a partir do Renascimento, a Europa se coloca como centro da
história universal, relegando as outras sociedades ao passado, no caso da Ásia, ou
submetendo-as a natureza, no caso da África e América Latina, como se as mesmas não
tivessem histórias ou fossem incapazes de acompanharem as mudanças do seu tempo,
perdendo portanto, as oportunidades da modernização. Neste contexto, ao se reconhecer
como Ocidente, a Europa designa o não-ocidente, isto é, o Oriente, cuja representação
espacial se estenderia pelos territórios das diversas civilizações milenares. Assim, o
Ocidente se vê como exultante, dinâmico, moderno e classifica o Oriente de estático,
aberrante, exótico, incapaz de se auto-representar.
Said(1990,p.56), ressalta que esses valores ocidentais utilizam meios para distinguir
suas sociedades das que eles denominam orientais:
“Quando se usam categorias como oriental e ocidental como pontos de partida e finais da análise, das pesquisas ou políticas públicas, o resultado costuma ser a polarização da distinção – o oriental fica mais oriental e o ocidental, mais ocidental – e a limitação do encontro humano entre culturas, tradições e sociedades diferentes”.
Os Estados imperialistas europeus teriam como “missão civilizadora” reabilitar
essas sociedades do atraso e do próprio declínio, sendo posteriormente transformadas em
colônias produtivas. “Há ocidentais e há orientais. Os primeiros dominam; os segundos
devem ser dominados, o que costuma querer dizer que suas terras devem ser ocupadas, seus
assuntos internos rigidamente controlados” (Said, 1990p.46).
De acordo com Souza Santos(1994), a relação da “descoberta” estabelece o
“descobridor” como aquele que tem mais poder e saber do que o “descoberto”, portanto,
quando a Europa definiu o seu papel ao se identificar com o primeiro, legitimou o seu lugar
como “centro” e dos demais como “periferia”, instituindo binômios como superioridade-
inferioridade, moderno-tradicional, civilizado-primitivo, entre outros.
Said (1990,) ressaltou que o orientalismo é esse conhecimento sistemático das
representações que os intelectuais europeus faziam das sociedades referenciadas como
orientais. Concretizado a ideia, o conceito ou a imagem sobre essas sociedades,
estabeleceu-se um campo de estudo que internalizou-se através do tempo e acabou
produzindo uma espécie de consenso entre os autores de diferentes áreas de estudos. Tais
fatos ganharam outras conotações a partir da metade do último século, seja no âmbito
econômico, cuja imagem regional baseou-se na produção de petróleo, seja no cultural, que
identificou os árabes como terroristas fundamentalistas, seja no político, que levaram os
Estados Unidos a práticas intervencionistas.
Tais representações acabaram tendo na Geografia uma de suas formas de difusão,
como afirma Said (2007,p.292):
“A geografia era essencialmente o material que sustentava o conhecimento sobre o Oriente. Todas as características latentes e imutáveis do Oriente repousavam sobre a sua geografia, estavam nela enraizadas. Assim, por um lado, o Oriente geográfico nutria seus habitantes, garantia suas características e definia a especificidade desses traços: por outro lado, o Oriente geográfico solicitava a atenção do Ocidente, mesmo quando – por um desses paradoxos revelados tão freqüentemente pelo conhecimento organizado – o Leste era Leste e o Oeste era Oeste. O cosmopolitismo da geografia constituía, na mente de Curzon, a sua importância universal para todo o Ocidente, cuja relação com o resto do mundo era de franca cobiça. Mas o apetite geográfico podia também assumir a neutralidade moral de um impulso epistemológico para descobrir, assentar, revelar (...)”.
Quando usamos, portanto, os recortes espaciais para exemplificar questões, objetos,
qualidades e regiões consideradas orientais, corremos o risco de reafirmar o senso comum,
tornando uma percepção regional como a realidade.
Said (1990,p.118), afirma que devemos ter esse cuidado quando inadvertidamente
trabalhamos com a categoria Oriente, pois, se não percebermos as “armadilhas” que ela nos
põe, caímos na tentação de concebê-la numa representação elástica e imutável.
“As limitações do orientalismo são aquelas decorrentes de se desconsiderar, essencializar e desnudar a humanidade de outra cultura, outro povo ou região geográfica. Mas o orientalismo foi além disso: considera o Oriente como algo cuja existência não apenas está à vista, mas permaneceu fixa no tempo e no espaço para o Ocidente. O sucesso descritivo e textual do orientalismo foi tão impressionante que períodos inteiros da história cultural, política e social do Oriente são considerados como meras respostas ao Ocidente. Este é o agente e o Oriente é o reagente passivo. O Ocidente é espectador, juiz e júri de cada faceta do comportamento oriental”.
Assim, em uma primeira aproximação com o material didático, constatamos que o
item Oriente Médio é abordado a partir da lógica do conflito, seja ele bélico ou étnico-
religioso. É exatamente essa abordagem que queremos analisar e problematizar. Ao
apresentar o Oriente Médio como a região que possui o maior número de ingredientes para
gerar um grande foco de tensões geopolíticas no mundo contemporâneo, não há uma
preocupação com outras articulações regionais, pois a atenção está voltada para os conflitos
que têm na relação entre “Árabes e Israelenses” a principal fundamentação da realidade
regional. Desta forma, consideramos que esta análise é insuficiente para fundamentar a
ideia de totalidade das relações estabelecidas nessa parte do mundo.
A região, então, adquire uma conotação mais ampla e complexa, como afirma
Haesbaert(1999,p.31):
“se antes a região podia ser vista de forma contínua, como unidade espacial não fragmentada, hoje o caráter altamente seletivo e muitas vezes ‘pontual’ da globalização faz com que tenhamos um mosaico tão fragmentado de unidades espaciais que ou a região muda de escala(focalizada muito mais sobre o nível local, onde ainda parece dotada de continuidade) ou se dissolve entre áreas descontínuas e redes globalmente articuladas”.
Neste contexto, Haesbaert enfatiza a importância dos processos sociais como
norteadores da fragmentação dos espaços, onde as escalas local, regional e global são
redefinidas frente à reestruturação do capitalismo. Portanto, as diferenças emergem e se
contrapõem aos processos que procuraram homogeneizá-las. “Daí a análise regional que,
voltada para as particularidades, pode revelar aspectos da realidade que seriam mais difíceis
de serem percebidos e analisados se considerados apenas do ponto de vista global”
(Lencioni,1999,p.192).
Os níveis de análise no ensino de Geografia
No ensino de geografia é muito comum encontrarmos materiais didáticos que
reforçam e cristalizam a região como um conjunto político, econômico, cultural homogêneo
não articulado em níveis. Para a superação do olhar sobre a região (clássica) homogênea, a
utilização do método dos níveis de análise proposto por Lacoste (1988) pode se constituir
em uma ferramenta fundamental. Cabe lembrar que Lacoste criticava uma geografia dos
professores que não revelava a região como um lugar de relações de agentes e
consequentemente de conflitos. Para seguir o caminho traçado deve-se considerar o Oriente
Médio como um conjunto particular a ser analisado. Nesse conjunto, definiu-se um
subconjunto já denominado como Conselho Consultivo do Golfo (CCG) formado por
Bahrain, Koweit, Qatar, Emirado Árabe Unidos, Omã e Arábia Saudita.
Para Lacoste (1988, p.81) não há no plano do conhecimento nível de análise
privilegiado. No trabalho com o conjunto Oriente Médio é importante considerar essa
região em suas múltiplas complexidades, ou o que foi considerado como espaço de
conceituação diferente. Assim, “o fato de se considerar o espaço como campo de
observação irá permitir apreender certos fenômenos e certas estruturas, mas vai acarretar a
deformação ou a ocultação de outros fenômenos e de outras estruturas”.
Esse olhar que permite apreender, deformar e ocultar pode reforçar as concepções
orientalistas (SAID, 1990) no ensino de Geografia. A região homogênea não articulada está
enquadrada nesse tipo de pensamento. Desse modo é
“indispensável que nos coloquemos em outros níveis de análise, levando em consideração outros espaços. Em seguida é necessário, realizar a articulação dessas representações tão diferentes, pois elas são função daquilo que se poderia chamar espaço de conceituação diferente” (Lacoste, 1988, p.81).
O conteúdo aqui privilegiado — Oriente Médio — e o seu subconjunto, os países
participantes do CCG, ainda não figuram em muitos materiais didáticos de Geografia e é
elemento que, para nós, caracteriza uma nova articulação regional, que pode ser
considerada como um possível “retorno as mil e uma noites”. A realidade atual do Oriente
Médio nos traz desafios, pois o subconjunto escolhido vem se articulando tanto em relação
ao contexto regional quanto a dinâmica global. Tais relações transformam e complexificam
as imagens que se consolidaram no senso comum como a representação do Oriente Médio.
Definido o subconjunto CCG, formado por seis “países” localizados na planície
costeira do Golfo Pérsico, o que já revela uma geologia muito particular, deve-se analisar
cada “país” do subconjunto procurando revelar as diferenciações econômicas, políticas e
culturais. Há que se tratar ainda os conflitos ali existentes além de suas relações que
escapam do escopo regional. Desse modo configuram-se processos de conexão e
desconexão entre o local e o global. Conexão como a que se dá com o capital que é fixado
nesse espaço através dos empreendimentos imobiliários de dimensões futuristas, e a
desconexão com o modo de vida que vai se configurando nos enclaves da modernidade no
Oriente Médio. Esses processos de conexão e desconexão vão engendrando não só uma
lógica zonal, mas também acentuam a constituição de redes reticulares que dinamizam as
relações tanto local quanto global.
“Nesse caso cabe sempre discutir a força espacial/regional , ao mesmo tempo articuladora e desarticuladora, a partir dos sujeitos e interesses políticos envolvidos. Uma das novas questões mais relevantes , hoje pela força de sua evidência , é que “articulações” regionais do espaço podem manifestar-se não apenas na tradicional forma zonal, geralmente contínua , mas também em redes, inseridas numa lógica descontínua de articulação reticular”. (Haesbaert, 2010a, 121)
Nesse momento cabe apresentar o subconjunto e a produção do espaço que vem se configurando o imaginário do “Oriente Médio das mil e uma noites”.
Oriente Médio: um campo complexo no ensino de Geografia Regional
Se vivemos em um mundo cada vez mais marcado pelos processos de fluidez e de
conectividade, de cooperação e de crises, de ordem e desordem, de guerra e paz, então
como pensar o espaço regional na ótica da estabilidade e da contiguidade? Esse é um
desafio colocado aos professores de Geografia quando muitas das regionalizações propostas
pelos materiais didáticos reforçam a uniformidade. Esse contexto ainda persiste na
abordagem dada ao Oriente Médio, cujas temáticas restringem-se ao petróleo, ao
Islamismo, aos conflitos árabe-israelenses e recentemente ao terrorismo.
Essa coerência dos espaços regionais está sendo solapada pela dinâmica do
capitalismo que impõe grande mobilidade tanto ao capital quanto a força de trabalho,
levando os territórios a se reconfigurarem nas esferas do econômico, do político, do social e
do militar. Tal realidade pode ser observada no Oriente Médio a partir da criação do
Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) que tem como membros: a Arábia Saudita,
Oman, Kwait, Bahrein, Os Emirados Árabes Unidos e o Qatar, cujo objetivo é se
diferenciar dos demais países do entorno onde a instabilidade política e as crises
econômicas tornam a região ameaçadora para os investimentos. Para isso, determinadas
alianças de classes são formadas e revistas como as que ocorrem entre as elites regionais e
alguns grupos socais daqueles países, com a finalidade de preservar seus privilégios diante
do elevado número de imigrantes pobres originados principalmente do Subcontinente
Indiano. (Piolet, 2009).
Dessa forma é necessário compreender qual a dinâmica que está inserida no jogo do
poder regional, isto é, como os atores envolvidos direcionam suas atividades na
consolidação dos seus interesses e levam outros segmentos sociais a participarem desses
empreendimentos. Essas concepções podem ser observadas nas considerações de Haesbaert
(2010a, p.119-120):
Não há hoje, como analisar a região sem considerar sua dupla filiação, no campo material das coesões – e redes funcionais, produzida fundamentalmente por sujeitos hegemônicos, com ação de longo alcance, como o Estado e as grandes corporações, e no campo ideal do que aqui propomos denominar coesões simbólicas, produzidas num jogo de tendências mais complexas, com participação também, em maior ou menor grau, dos grupos subalternos, em suas diversas formas de articulação, entre si e com os chamados poderes instituídos.
Segundo Harvey (2005), essa aliança regional de classes que se dá sobre o aparelho
do poder estatal, além de criar mecanismos locais para promover e defender às
possibilidades no território também procura reter benefícios diante da competição espacial,
vigente na escala global. Assim certas cidades procuram se tornar mais atraentes como
centros culturais e de consumo, desenvolvendo um conjunto de inovações e de
investimentos em infraestruturas básicas e em serviços de apoio. É o que percebemos
atualmente dentro do Oriente Médio.
Os países do CCG vivenciam um crescimento econômico expressivo, representando
um ponto de concentração de fluxos financeiros e de numerosos investimentos ocidentais,
fruto das atividades militares aplicadas no seu entorno, como na invasão no Iraque e na
intervenção no Afeganistão pelos Estados Unidos, a crise no Líbano, os bombardeios norte-
americanos e israelenses na Síria e o fim da União Soviética. Por ter a economia local
baseada na produção de hidrocarbonetos, esses países desenvolvem as infraestruturas para
os transportes e para a logística, intensificam suas atividades de negócios e de indústrias
fortes, expandem o setor de construção civil e do turismo.
De acordo com Piolet (2009), a atividade portuária possibilita que uma grande parte
das mercadorias provenientes do Subcontinente Indiano seja reexportadas pelo CCG, pois
países como a Índia, o Paquistão, o Sri Lanka ou o Bangladesh não possuem as
infraestruturas e organização para exportar maciçamente seus produtos para o mundo.
Portanto, o Golfo árabe-pérsico se tornou uma porta de entrada ideal para as empresas
ocidentais na região, o que leva os governos locais a aplicarem medidas contraditórias, ou
seja, a liberalização para a circulação de capital e a restrição dos direitos para os
trabalhadores.
Essa interação das relações combinadas entre a globalização e a fragmentação é
visível no subconjunto dos países do CCG, pois no mesmo instante que instituem uma
coesão interna ao funcionar como porta de reexportação das atividades regionais, também
manifesta a sua descontinuidade com os espaços regionais através de seus interesses
voltados às relações globais. Dessa forma, as grandes empresas mundiais de projetos de
infraestruturas, de exploração de petróleo e também de negócios, consideram esses países
como um eldorado, verdadeiras aberturas para os mercados do Oriente, aproveitando a
ausência de limitações sociais. Então, não é difícil perceber que na relação entre as lógicas
zonal e reticular , “(...) muito mais do que a superação de uma lógica pela outra, trata-se do
convívio entre distintas formas de manifestação do fenômeno regional e,
consequentemente, de sua própria conceituação” (Haesbaert, 2010a, p.126).
Os países do Golfo árabe-pérsico, portanto, experimentam esse movimento de
urbanização acelerada e de inserção definitiva na dinâmica do capitalismo global. Dessa
forma são idealizados megaprojetos como centros de convenções, estádios de futebol,
autódromos, museus, shopping centers espetaculares, parques de entretenimentos como o
da Ferrari, zonas portuárias renovadas, aeroportos sofisticados, entre outros. Para exercer
um grande fascínio sobre os consumidores de alto padrão financeiro e transformar o
desenvolvimento espetaculoso do CCG em outras formas de investimentos, os
empreendedores, aí incluindo os governos e a mídia, implementam todo um mecanismo de
divulgação das cidades como locais diferenciados. Mas ao criar a imagem física e social
das cidades com a finalidade de torná-las mais competitivas, esses promotores acabam
produzindo graves problemas políticos e sociais internos.
O primeiro elemento fundamental dessa urbanização é a mudança do padrão
administrativismo para o empreendedorismo. As cidades saem da passividade e ganham
atitude empreendedora, isso significa mais autonomia para a formação de uma coalizão
local (ou governança) e a realização de projetos que se adaptam a cada localidade. Essa
coalizão é formada por líderes locais que representam diversos grupos de atores, com
interesses diversos que vão ser disputados no decorrer do processo de urbanização. A opção
pelo empreendedorismo faz com que a cidade deixe de ser receptáculo de investimentos e
passe a ser ativa para a própria produção do espaço, criando meios para a captação de
recursos a partir da consolidação de espetáculos temporários e permanentes (Harvey, 2005).
Portanto, é um tipo de urbanização baseado amplamente na especulação. O sucesso
dos empreendimentos e da parceria gera uma onda de investimentos circulares que atrai
novos investimentos num efeito em cadeia. Isso é evidenciado na peculiaridade e no
gigantismo dos empreendimentos que exploram ininterruptamente a visão do exótico e do
único, onde a urbanização procura misturar a paisagem natural à paisagem artificial (vide as
construções que surgem na Planície costeira do Golfo Pérsico). A parceria público-privada
passa pelo crivo dessas condições, e faz parte de um projeto em desenvolvimento para
tornar os países do CCG como polo de eventos internacionais, como podemos observar nos
grandes prêmios de Fórmula 1 no Bahrein e em Abu Dabhi, na escolha do Qatar como sede
da copa do mundo de 2022, no mundial interclubes em Abu Dabhi, nas discussões sobre a
realidade do comércio internacional em Doha e Dubai, entre outros.
A obtenção do lucro através da exploração da singularidade da região ou dos
empreendimentos é chamada de renda monopolista. Essa estratégia também não é uma
novidade no Oriente Médio, uma vez que tal prática procurou sempre conciliar as imagens
regionais às necessidades do capital. Assim, esse padrão de urbanização foi iniciado em
Dubai e logo ganhou grande aceitação (impacto visual causado) e se difundiu para outros
países. Com uma maior inserção da região nesse processo de urbanização, a própria lógica
capitalista se reproduz, pois as diferentes localidades vão disputar os investimentos
externos consequentemente acabam estimulando a competição. Esses Estados apesar de
formarem um conjunto relativamente homogêneo, são rivais na atração de capitais e
atividades econômicas.
Associado aos empreendimentos magníficos existe um conjunto de ações que
objetiva construir um imaginário coletivo a partir de práticas culturais historicamente
constituídas, e um discurso regionalista que referenda o Oriente Médio como um lugar de
experiências únicas, como se fosse possível retornar ao “Oriente Médio das mil e uma
noites”. Esse discurso que retoma a cultura local, antes subalternizada, possui uma
intencionalidade, ou seja, relaciona a concepção do exótico à magnitude dos megaprojetos,
mesclando elementos que referenciam a identidade regional às obras futuristas.
O uso da renda monopolista como forma de impulsionar a produção do espaço,
privilegia a construção de um ambiente para receber as elites que estão para além do
Oriente Médio. Com isso acontece uma padronização perigosa dessas sociedades. A ação
sempre focada no desenvolvimento econômico e não no desenvolvimento social, aponta
para essa busca por uma sociedade elitizada que seja sempre itinerante.
Os operários oriundos de vários países da região e atraídos pela promessa de uma
vida melhor estão à margem das magníficas edificações que marcam o espaço costeiro do
Golfo Pérsico. No topo da pirâmide social estão os governantes e seus familiares que
confundem suas propriedades com a do Estado, e organizam o território como bem
entendem. Tais grupos sociais desenvolvem projetos megalomaníacos como as ilhas
artificiais, Palm Islands e The World em Dubai ou The Pearl em Doha, ou o Burj Dubai ( o
maior prédio do mundo), enquanto os bairros dos trabalhadores (como Sonapur em Dubai)
não foram objeto de nenhuma planificação. Aquele tipo de urbanização mostra um impacto
visual muito grande, denotando riqueza, mas as condições de trabalho para os imigrantes da
construção civil são deploráveis, vivem em situação de insalubridade, e em 2006, na obra
do Burj Dubai, conforme afirma Piolet (2009), o pagamento oscilava entre 2,85 a 5,50
euros por dia, e viviam amontoados e trabalhavam cotidianamente em risco, sem a presença
de sindicatos.
De acordo com Piolet (2009), apesar dos imigrantes comporem de 70% a 80% a
estrutura populacional de países como os Emirados Árabes Unidos e o Qatar, os
governantes impedem que esses trabalhadores estrangeiros adquiram a nacionalidade do
país onde estão localizados ou mesmo compartilham de trocas culturais, já que ali a
sociedade é hierarquizada. Assim, os trabalhadores se reagrupam por nacionalidade e
reorganizam os bairros como nos seus países de origem, mas qualquer alteração depende da
autorização do Emir. Esses trabalhadores de baixa qualificação (operários da construção
civil, domésticas, trabalhadores de transportes e de manutenção, entre outros) são
provenientes principalmente do Subcontinente Indiano, e continuam reproduzindo as vidas
miseráveis que levavam em seus países de origem. No CCG, não podem se organizar
politicamente em sindicatos, constituem para os países do Golfo arábico-pérsico um
paradoxo: eles são indispensáveis à economia, e sua proporção dentro da população ativa é
considerável, mas não são reconhecidos como cidadãos.
Essas práticas desenvolvidas pelos governos do Golfo árabe-pérsico de uma
inserção mais promissora na lógica global, produziram contrastes sociais alarmantes em
países que apresentam elevado Produto Interno Bruto. Tal abismo socioeconômico
intensificou os conflitos no CCG e ameaça ganhar proporções alarmantes. Os motins têm se
tornado mais frequentes e as autoridades locais procuram contê-los para não afugentar os
investimentos ocidentais. Diversas estratégias como invasões de Embaixadas, greves e
bloqueio de estradas são realizadas. Para o ministro do Trabalho de Bahrein, os riscos de
desestabilização são reais, pois existem cerca de 17 milhões de trabalhadores estrangeiros dentro do
Golfo, principalmente do Subcontiente Indiano, e em 10 anos esse número poderá chegar a 30
milhões. Isso se constitui um “perigo mais grave que uma bomba atômica ou um ataque israelense”,
disse o ministro (Piolet, 2009).
Ao tomarmos o Oriente Médio como exemplo da complexidade dos fenômenos
regionais, observamos que atualmente não há como analisar a região sem considerar suas
relações em diferentes níveis escalares. Se durante as leituras clássicas, a região foi
concebida como um espaço contínuo, estável e singular, tais concepções são reconfiguradas
a partir dos fluxos globais. Então, percebemos que existe um descompasso entre as
abordagens consagradas nos materiais didáticos e a dinâmica regional. Portanto, torna-se
um desafio aos professores de Geografia ir além da ideia de coesão e coerência que
estrutura as análises sobre o Oriente Médio e entender que as mesmas podem estar
articuladas a outros níveis de compreensão. É o que ressalta Haesbaert (2010a, p.154-155):
Dependendo das frações do espaço a serem abordadas, este se apresenta com um nível de articulação e complexidade de interações muito maior em determinados contextos do que em outros, o que faz com que determinados recortes regionais sejam propostos a partir de critérios semelhantes, mas em escalas diferentes, ou seja, simplificadamente, não é a escala que faz a região, mas a regionalização (enquanto ação ao mesmo tempo concreta e abstrata de criação de regiões) que define a escala a ser priorizada. Definir a priori uma escala cartográfica como escala “regional” seria uma temeridade.
REFERÊNCIAS
HAESBAERT, Rogério. Regional-Global – dilemas da Região e da Regionalização na Geografia Contemporânea, Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2010 a.
__________, Rogério. Entre o território e a região: trajetórias. In: GALVÃO, Carlos F. & MILÉO, José Carlos (Orgs.). A prática de ensino real e o ensino da prática ideal, Curitiba : CRV, 2010b, p.37-56.
__________, Rogério. Região, Diversidade Territorial e Globalização. In: Geographia, Revista da Pós-Graduação em Geografia da UFF. Niterói. Ano 1 – N. 1 , 1999.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Anna Blume, 2005.
LACOSTE, Yves. Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. São Paulo: Papirus, 1988.
LENCIONI, Sandra. Região e Geografia, São Paulo : EDUSP, 1999.
PIOLET, Vicent. Les émirats et royaumes arabes: les travailleurs migrants au pays des free zones. In: Revista Hérodote, n.133, La Découverte, 2 trimestre 2009, 136-151.
SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como Invenção do Ocidente, São Paulo : Companhia das Letras, 1990.
SOUZA SANTOS, Boaventura de. O fim das descobertas imperiais, São Paulo – Jornal da AGB, 1994.
BIBLIOGRAFIA
BRAGA, Jorge Luiz Raposo ; KAROL, Eduardo ; SILVA, Rejane Babo da . As Transformações do Mapa do Oriente Médio. Revista Tamoios - Revista do Departamento de Geografia da FFP - UERJ, v. IV, p. 1-14, 2010.
BRAGA, Jorge Luiz Raposo ; KAROL, Eduardo ; VIEIRA, L. M. ; VIANA, L. D. R. . VISÕES E CONCEPÇÕES DO ORIENTE MÉDIO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA DO ENSINO MÉDIO. 2008. XV Encontro Nacional de Geógrafos, Universidade de São Paulo, Julho de 2008.
LACOSTE, Yves. A Geopolítica do Mediterrâneo. Lisboa, Edições 70, 2008.
LACOSTE, Yves. Géopolitique; la longue historie d’aujourd’hui. Paris, Larousse, 2006.
SANTOS, Milton. A Natureza do espaço: Técnica e tempo – Razão e emoção, São Paulo : Hucitec,1996.