os cidadÃos participam quando sÃo envolvidos' da 24mai2013

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10 | 24 MAI 2013 | SEXTA-FEIRA Entrevista Rui Cunha Diário de Aveiro: Em algu- mas cidades, como Braga ou Coimbra, movimentos de ci- dadãos irão apresentar can- didaturas nas próximas elei- ções autárquicas. Em Aveiro, o grupo Amigos d’Avenida alguma vez pensou nessa possibilidade? José Carlos Mota: O colec- tivo Amigos d’Avenida surgiu e cresceu com a motivação de mobilizar os cidadãos a parti- cipar nas decisões que impor- tam ao futuro da cidade e para chamar a atenção para o facto de o sistema político, tal como funciona actualmente, nem sempre defender o interesse colectivo. Em condições nor- mais, os movimentos cívicos não devem substituir-se aos partidos e assumir candidatu- ras, mas devem contribuir para que os partidos escolham bons candidatos, produzam ideias úteis e relevantes para o futuro do concelho e não ouçam os cidadãos só de quatro em qua- tro anos. Contudo, o movi- mento continuará atento à forma como o sistema polí- tico-partidário responde às suas responsabilidades. O vosso movimento tencio- na tomar partido nas elei- ções deste ano? Não faz sentido que colectivos plurais e construídos em torno de causas tomem partido em eleições. Isso não invalida que, individualmente, cada mem- bro do colectivo exerça os seus direitos de cidadania. Como avalia a evolução do movimento ao longo dos anos? Nos últimos cinco anos, os Amigos d’Avenida e outros co- lectivos informais dinamiza- ram iniciativas de reflexão so- bre a Praça Melo Freitas, Par- que da Sustentabilidade, Ave- nida, Alboi, ponte pedonal e a concessão do estacionamento. Mobilizaram milhares de cida- dãos, organizaram dezenas de eventos e produziram múlti- plas tomadas de posição pú- blica. Isto sem qualquer for- malização legal e com base em trabalho voluntário. O que mostra que, ao contrário do que se diz, os cidadãos partici- pam quando são devidamente envolvidos. A forma como os cidadãos aderiram crescente- mente às iniciativas mostra que as pessoas se identificam com as causas e com os méto- dos. E isso deve ser um motivo de orgulho para todos os que participam nestas dinâmicas cívicas. O movimento parece ter per- dido alguma da sua capaci- dade de intervenção pública. Concorda com esta avalia- ção? Em parte. Mas isso decorreu do facto de terem surgido ou- tras dinâmicas cívicas nas quais os membros do movi- mento se envolveram. Isso permitiu que cada iniciativa gerasse um colectivo informal específico sem estar compro- metido com causas anteriores. Admito que a dispersão tenha retirado alguma eficácia na imagem pública, mas julgo que se ganhou em mobilização dos cidadãos. Numa anterior entre- vista ao Diário de Aveiro disse o se- guinte: “Vivemos numa cidade que não tem uma tradi- ção muito forte de discussão sobre a transformação da ci- dade”. Acha que a si- tuação mudou e que os Amigos d’Avenida contribuíram para esse debate sobre a ci- dade? A forte mobilização em torno da discussão da cidade, dos seus problemas e das de- cisões autárquicas é um sinal de mudança que devemos ce- lebrar e cuidar. A postura não se traduz numa mera crítica, mas na produção de opinião técnica fundamentada, dispo- nibilizada publicamente, cons- truída de forma colectiva, em grupos de dezenas de cida- dãos. O ambiente que se sente nos encontros públicos é de “Os cidadãos participam Civismo José Carlos Mota tem sido o principal rosto do movimento cívico Amigos d’Avenida, que promete manter-se “atento à forma como o sistema político-partidário responde às suas responsabilidades” genuína defesa do interesse co- lectivo. Acontece que estas mu- danças de comportamentos são lentas e reversíveis. Exigem persistência e transparência de processos. É um trabalho de permanente construção da nossa comunidade, que tem de convocar todos os inte- ressados. Nessa entrevista disse ainda que “os partidos políticos não desenvolvem o seu pa- pel, que é discutir e reflectir sobre as políticas mais ade- quadas para a cidade”. Con- tinua a manter essa opinião? Julgo que sim. Os partidos têm de procurar recuperar a sua re- lação com os eleitores, que não podem ser cha- mados ape- nas em

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OS CIDADÃOS PARTICIPAM QUANDO SÃO ENVOLVIDOS, JCM, Diário de Aveiro, 24MAI2013

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10 | 24 MAI 2013 | SEXTA-FEIRA

Entrevista

Rui Cunha

Diário de Aveiro: Em algu-mas cidades, como Braga ouCoimbra, movimentos de ci-dadãos irão apresentar can-didaturas nas próximas elei-ções autárquicas. Em Aveiro,o grupo Amigos d’Avenidaalguma vez pensou nessapossibilidade?José Carlos Mota: O colec-tivo Amigos d’Avenida surgiue cresceu com a motivação demobilizar os cidadãos a parti-cipar nas decisões que impor-tam ao futuro da cidade e parachamar a atenção para o factode o sistema político, tal comofunciona actualmente, nemsempre defender o interessecolectivo. Em condições nor-mais, os movimentos cívicosnão devem substituir-se aospartidos e assumir candidatu-ras, mas devem contribuir paraque os partidos escolham bonscandidatos, produzam ideiasúteis e relevantes para o futurodo concelho e não ouçam oscidadãos só de quatro em qua-tro anos. Contudo, o movi-mento continuará atento àforma como o sistema polí-tico-partidário responde àssuas responsabilidades.

O vosso movimento tencio -na tomar partido nas elei-ções deste ano?Não faz sentido que colectivosplurais e construídos em tornode causas tomem partido emeleições. Isso não invalida que,individualmente, cada mem-bro do colectivo exerça os seusdireitos de cidadania.

Como avalia a evolução domo vimento ao longo dosanos?Nos últimos cinco anos, osAmigos d’Avenida e outros co-lectivos informais dinamiza-ram iniciativas de reflexão so-bre a Praça Melo Freitas, Par-que da Sustentabilidade, Ave-nida, Alboi, ponte pedonal e aconcessão do estacionamento.Mobilizaram milhares de cida-dãos, organizaram dezenas deeventos e produziram múlti-plas tomadas de posição pú-blica. Isto sem qualquer for-

malização legal e com base emtrabalho voluntário. O quemostra que, ao contrário doque se diz, os cidadãos partici-pam quando são devidamenteenvolvidos. A forma como oscidadãos aderiram crescente-mente às iniciativas mostraque as pessoas se identificamcom as causas e com os méto-dos. E isso deve ser um motivode orgulho para todos os queparticipam nestas dinâmicascívicas.

O movimento parece ter per -dido alguma da sua capaci-dade de intervenção pública.Concorda com esta avalia-ção?Em parte. Mas isso decorreudo facto de terem surgido ou-tras dinâmicas cívicas nasquais os membros do movi-mento se envolveram. Issopermitiu que cada iniciativagerasse um colectivo informalespecífico sem estar compro-metido com causas anteriores.Admito que a dispersão tenharetirado alguma eficácia naimagem pública, mas julgo quese ganhou em mobilização doscidadãos.

Numa anterior entre-vista ao Diário deAveiro disse o se-guinte: “Vivemosnuma cidade quenão tem uma tradi-ção muito forte dediscussão sobre atransformação da ci-dade”. Acha que a si-tuação mudou e queos Amigos d’Avenidacontribuíram paraesse debate sobre a ci-dade?A forte mobilização emtorno da discussão da cidade,dos seus problemas e das de-cisões autárquicas é um sinalde mudança que devemos ce-lebrar e cuidar. A postura nãose traduz numa mera crítica,mas na produção de opiniãotécnica fundamentada, dispo-nibilizada publicamente, cons-truída de forma colectiva, emgrupos de dezenas de cida-dãos. O ambiente que se sentenos encontros públicos é de

“Os cidadãos participam Civismo José Carlos Mota tem sido o principal rosto do movimentocívico Amigos d’Avenida, que promete manter-se “atento à forma comoo sistema político-partidário responde às suas responsabilidades”

genuína defesa do interesse co-lectivo. Acontece que estas mu-danças de comportamentossão lentas e reversíveis. Exigempersistência e transparência deprocessos. É um trabalho depermanente construção danossa comunidade, que temde convocar todos os inte-ressados.

Nessa entrevista disse aindaque “os partidos políticosnão desenvolvem o seu pa-pel, que é discutir e reflectirsobre as políticas mais ade-quadas para a cidade”. Con-tinua a manter essa opinião?Julgo que sim. Os partidos têmde procurar recuperar a sua re-lação com os eleitores, quenão podem ser cha-mados ape-nas em

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Entrevista

debater publicamente uma de-cisão que compromete o futuroda cidade por mais de 50 anos,a concessão do estaciona-mento. Esperamos que no fu-turo sejam criadas con diçõespara retomarmos o projecto.

O actual mandato autárqui -co está no fim. Que balançofaz da governação de ÉlioMaia?Sinto que Aveiro perdeu orumo nestes últimos anos. Es-tou em Aveiro há 30 anos. Osmandatos dos drs. Girão Pe-reira e Alberto Souto abriramnovos horizontes para a ci-dade, ligaram Aveiro com a Eu-ropa e o mundo, tornaram acidade numa referência, bene-ficiando do desenvolvimentoda Universidade. Estranha-mente, nestes últimos anos orumo de Aveiro tornou-se con-fuso. Repare: a regeneração daAvenida foi lançada em 2008como uma prioridade e logoabandonada com o surgi-mento do Parque da Sustenta -bilidade. Depois de retomado,e com um projecto aparente-mente pronto para ser imple-mentado, surge uma nova de-cisão – a concessão do esta-cionamento – que o contraria,

o que levou o autor do es-tudo da Avenida a tomar

uma posição pública. Outro exemplo: aconstrução da pon -te pedonal do CanalCentral foi inter-rompida com o ar-gumento de queera importanteprocurar um con-senso mais alar-

gado. A concessão do es-

tacionamento foi re-jeitada por todos ospartidos na Assem-

bleia Municipal e mes -mo assim o Executivo

insiste na proposta. Nes -te ca so o consen so já não é

necessário? Aveiro precisa de um rumoclaro e mobilizador da comu-nidade. A insistência em opçõesde utilidade duvidosa e de re-levância discutível gerou umacontrovérsia que consumiu de-masiada energia. É preciso um novo ciclo no re-lacionamento entre cidadãos eeleitos.|

quando são envolvidos”“Liderar sem impor”Quais os principais pro-blemas que identifica emAveiro e que deverão me -recer especial atençãonos próximos anos?Primeiro um desafio depostura. Vamos ter quegerir melhor os recur-sos, além dos financei-ros. Temos de aprendera valorizar em particu-lar os recursos que nosajudem a responder anecessidades colectivase o conhecimento é umdeles. Isso exige lideran-ças diferentes, porquevão ter de mobilizar, deconstruir colectiva-mente, de liderar semimpor. Infelizmente nãotemos muita tradiçãodestas práticas em Por-tugal. Segundo, um de-safio de agenda, na qualdestaco a regeneraçãodo centro da cidade ecentros das freguesias.Aqui o esforço tem de irpara além da interven-ção tradicional de re-qualificação do espaçopúblico, procurandoatrair novas funções evivências, em particularpara os edifícios devolu-tos, através de diálogocom proprietários, deprocura de regimes queestimulem a sua ocupa-ção (a Associação Co-mercial está a fazer umtrabalho interessante).Algumas dessas funçõespodem ser encontradasno apoio ao empreende-dorismo urbano, que es-timule a atracção e fixa-ção de actividades e in-vestigação aplicada nodesign, artes, tecnolo-gias, materiais e gestãodo território, que res-ponda a necessidadesdas comunidades e visi-tantes. Aveiro pode serum laboratório de expe-rimentação de novosprodutos e serviços quevisem a exportação,contribuindo, ao mesmotempo, para a sua rege-neração.|

período pré-eleitoral. E com al-gumas excepções, são poucasas iniciativas de reflexão, deaprofundamento da discussãocom envolvimento dos cida-dãos. Por outro lado, julgo

que o regimento da As-sembleia Municipal de-

veria ser revisto, parafacilitar o aprofunda-mento dessa relação.

A vossa relaçãocom a Câmarasem pre pareceu

mui to tensa. Nãoconseguiram encon-trar pontes de diá-

logo com os deciso-res políticos?

Foram feitos vários es-forços sem sucesso.

Houve vários en -

contros, alargados e mais res-tritos, onde foram lançadaspontes, deixados desafios... To-dos os documentos produzidos,algumas dezenas, foram todosremetidos ao Exe cutivo. Nuncaobtivemos qualquer resposta.Mesmo assim, o movimentoentendeu apresentar uma pro-posta ao Orçamento Participa-tivo, que foi construído em co-laboração com os serviços téc-nicos da autarquia, num traba-lho de grande comunhão. Oprojecto visava criar um grupotécnico-cívico que iria trabalharcom uma comunidade paraproduzir um conjunto de pro-postas de baixo custo e alto im-pacto. Identificámos a Rua Di-reita como espaço de possívelintervenção. Lamentavelmenteo projecto teve de ser interrom-pido. Não podíamos oferecer o

nosso esforço num pro-jecto com um exe-

cutivo que nãoacredita naparticipação e

que recusa

“Sinto que Aveiroperdeu o rumo nestesúltimos anos”