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 1888: Abolição do trabalho escrava 1889: Proclamação da República. As vésperas nário desses dois acontecimentos decisivos, José Murilo de Carvalho convida-nos a re visitar o Rio de Janeiro em suas primeiras encenações como Capital Federal. Cidade M aravilhosa, se acrescentarmos ao belo, o terrível; ao cômico, o trágico; à lógica, a ra.  Cidade mais que imperfeita, palco de políticas oficiais e invisíveis, de enredo s conhecidos c mistérios insolúveis.  História social e literária, antropologia urbana, crítica cultural, análise pol  o autor atravessa com brilho todos esses campos para rcconstru ir de forma orig inalíssima os impasses de uma República nascente, que teimam em pertubar ainda o son o das elites brasileiras.  Os Bestializados de ontem e de hoje são a face oculta de nosso modernismo: a cidade permaneceu alheia e atônita, buscando perdidamente seus cidadãos. hanauo Foot Hardmn  Todas as feições mais marcantes da sociedade brasileira contemporânea se definiram om nitidez cristalina nos dois primeiros decênios do período republicano. Nos desdob ramentos e complexidade crescentes dos períodos posteriores, esse núcleo original, t  transparente nos seus elementos, foi se turvando na mesma proporção em que se multi plicavam novos focos de tensão. Mas as vicissitudes do pecado original ainda latej am nesse corpo crescido, revigorado e tantas vezes conspurcado.  O percurso errante de José Murilo de Carvalho pelo Paraíso Perdido das ilusões rep licanas frustradas acontece mais pela senda das sombras. Ele esquadrinha tanto o s enredos longamente escritos que não encontraram atores para representá-los, quanto  especula sobre os papéis alternativos escolhidos pelos supostos personagens e sob re o delírio peculiar dos pretensos dramaturgos e diretores de cena.  Por que razão a República capitalizou e remodelou cidades, mas não permitiu que se ormassem cidadãos? Se o Rio de Janeiro era a sede e a cidade ideal do projeto repu blicano, por que razão ali, mais do que em qualquer outro lugar se boicotou deliber adamente todas as possibilidades de consolidação da cidadania? Se imaginar uma Repúb ca sem participação pública não é só aberrante, mas também trágico, quais as formas social e de canalização das tensões projetadas pelos arquitetos desse contra-senso? qual a resposta popular para contornar ou ignorar essa privação espúria, inventando vas possibilidades sem consultar as autoridades de plantão?  Samba, carnaval, tribofe, bilontras, malandros, capoeiras, romeiros e libertário s são alguns dos rituais e personagens abordados por Murilo nessas suas visitações d inesperado e incategorizável. A erudição OS BESTIALIZADOS JOSÉ MURILO DE CARVALHO OS BESTIALIZADOS O RIO DE JANEIRO E A REPÚBLICA QUE NÃO FOI 3" edição 13" reimpressão Sao Paulo, 2004 COMPANHIA DAS LETRAS Copyright © José Murilo de Carvalho Indicação editorial: Francisco Foot Hardman Nicolau Sevcenko Capa: Ettore Bottini a partir de O carnaval de 1892, Revista Ilustrada, março de 1892 Revisão: Márcia Copola Cyntia Panzani Genulino Santos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro. rasil)

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    1888: Abolio do trabalho escrava 1889: Proclamao da Repblica. As vsperas nrio desses dois acontecimentos decisivos, Jos Murilo de Carvalho convida-nos a revisitar o Rio de Janeiro em suas primeiras encenaes como Capital Federal. Cidade Maravilhosa, se acrescentarmos ao belo, o terrvel; ao cmico, o trgico; lgica, a ra. Cidade mais que imperfeita, palco de polticas oficiais e invisveis, de enredos conhecidos c mistrios insolveis. Histria social e literria, antropologia urbana, crtica cultural, anlise polo autor atravessa com brilho todos esses campos para rcconstru ir de forma originalssima os impasses de uma Repblica nascente, que teimam em pertubar ainda o sono das elites brasileiras.

    Os Bestializados de ontem e de hoje so a face oculta de nosso modernismo: acidade permaneceu alheia e atnita, buscando perdidamente seus cidados.hanauo Foot Hardmn

    Todas as feies mais marcantes da sociedade brasileira contempornea se definiramom nitidez cristalina nos dois primeiros decnios do perodo republicano. Nos desdobramentos e complexidade crescentes dos perodos posteriores, esse ncleo original, ttransparente nos seus elementos, foi se turvando na mesma proporo em que se multiplicavam novos focos de tenso. Mas as vicissitudes do pecado original ainda latejam nesse corpo crescido, revigorado e tantas vezes conspurcado. O percurso errante de Jos Murilo de Carvalho pelo Paraso Perdido das iluses rep

    licanas frustradas acontece mais pela senda das sombras. Ele esquadrinha tanto os enredos longamente escritos que no encontraram atores para represent-los, quantoespecula sobre os papis alternativos escolhidos pelos supostos personagens e sobre o delrio peculiar dos pretensos dramaturgos e diretores de cena. Por que razo a Repblica capitalizou e remodelou cidades, mas no permitiu que seormassem cidados? Se o Rio de Janeiro era a sede e a cidade ideal do projeto republicano, por que razo ali, mais do que em qualquer outro lugarse boicotou deliberadamente todas as possibilidades de consolidao da cidadania? Se imaginar uma Repbca sem participao pblica no s aberrante, mas tambm trgico, quais as formas social e de canalizao das tenses projetadas pelos arquitetos desse contra-senso? qual a resposta popular para contornar ou ignorar essa privao espria, inventando vas possibilidades sem consultar as autoridades de planto? Samba, carnaval, tribofe, bilontras, malandros, capoeiras, romeiros e libertrio

    s so alguns dos rituais e personagens abordados por Murilo nessas suas visitaes dinesperado e incategorizvel. A erudio

    OS BESTIALIZADOS

    JOS MURILO DE CARVALHOOS BESTIALIZADOSO RIO DE JANEIRO E A REPBLICA QUE NO FOI3" edio 13" reimpressoSao Paulo, 2004

    COMPANHIA DAS LETRAS

    Copyright Jos Murilo de CarvalhoIndicao editorial:Francisco Foot Hardman Nicolau SevcenkoCapa:Ettore Bottini a partir de O carnaval de 1892, Revista Ilustrada, maro de 1892Reviso:Mrcia Copola Cyntia Panzani Genulino SantosDados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro.rasil)

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    Carvalho. Jos Murilo de. 1939- C324b Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que nofoi / Jos Murilo de Carvalho. - So Paulo : Companhia das Letras. 1987.Bibliografia ISBN 85-85095-13-X I. Brasil Histria 1- Repblica, 1889-1930 2. Brasil Poltica e governo0 3. Rio de Janeiro (RJ) Condies sociais 1'-' Repblica. 1889-1930 4. Rio de J(RJ) Histria Ia Repblica 1889-1930 5. Rio de Janeiro (RJ) Histria Revolta i. Ttulo, li. Ttulo: O Rio de Janeiro e a Repblica que no foi.cdd-98 1.05 cdd-320.9810587-0031 -981.53105ndices para catlogo sistemtico:

    1. Primeira Repblica. 1889-1930 : Brasil : Histria 981.052. Primeira Repblica. 1889-1930 : Brasil : Poltica e governo 320.981053. Primeira Repblica. 1889-1930 : Rio de Janeiro : Cidade : Histria social 981.531054. Revolta da Vacina : Rio de Janeiro : Cidade : Histria social 981.531055. Rio de Janeiro : Cidade : Histria. 1889-1930 981.53105Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo SP Telefone: (11) 3707-35Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.brImpresso e acabamento: Prol Editora Grfica

    NDICEAbreviaes 6

    Agradecimentos 7Introduo 9I: O Rio de Janeiro e a Repblica 15II: Repblica e cidadanias 42III: Cidados inativos: a absteno eleitoral 66IV: Cidados ativos: a Revolta da Vacina 91V: Bestializados ou bilontras? 140Concluso 161Notas 165Bibliografia 187

    ABREVIAESAGCRJ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AN Arquivo Nacional

    FCRB Arquivo Histrico. Fundao Casa de Rui BarbosaMAE Ministre des Affaires Etrangres. Archives Diplomatiques, ParisPRO Public Records Office, LondresRAE Repartio do Arquivo e Biblioteca do Ministrio dos Assuntos Estrangeiros, Li

    AGRADECIMENTOS Os trabalhos includos neste volume no poderiam ter sido realizados sem o apoiofinanceiro da FINEP, atravs do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro, e da IBM do Brasil, atravs do Centro de Estudos Histricos da Fundao Casa de Barbosa. Agradeo o apoio constante de Francisco de Assis Barbosa, diretor do Centro deEstudos Histricos, e tambm de Rosa Maria Barboza de Arajo, que deu incio no Cenao projeto Consolidao da Repblica no Rio de Janeiro", e de Paulo Henrique Coelho

    u conti- nuador. Agradeo ainda a todos os colegas e estagirios do mesmo Centro, particularmente a Pedro Paulo Soares, pela cooporao na coleta de dados, pelos comentios e pelo ambiente de trabalho. Diferentes captulos beneficiaram-se das crticas de colegas do grupo de estudos sobre Estado e Sociedade da Associao Nacional de Psraduao e Pesquisa em Cincias Sociais, de Jaime Benchi- mol, Nicolau Sevcenko e Sin Schwartzman. Anita, Beth e Turbio, do Centro, datilografaram os originais. Slvia Helena, de maneira no menos real por in- transparente, contribuiu para aproduo deste livro, que para Sandra, Jonas e Diogo.7

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    INTRODUO Em frase que se tornou famosa, Aristides Lobo, o propagandista da Repblica, manifestou seu desapontamento com a maneira pela qual foi proclamado o novo regime. Segundo ele, o povo, que pelo iderio republicano deveria ter sido protagonistados acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar.1 No nos interessa aqui discutir emque medida a observao correspondia realidade, isto , em que medida o povo partiu ou no da proclamao da Repblica. H verses contraditrias espera de uma anlual no ser feita neste texto. Interessa-nos, sim, o fato de que um observador participante e interessado tenha percebido a participao do povo dessa maneira; interes

    sa-nos o fato de que trs dias aps a proclamao este observador j tenha percebido fessado o pecado original do novo regime. Aristides Lobo no estava s na percepo do povo como alheio aos fatos polticoia fcil alinhar vrias citaes de outros observadores apontando na mesma direo. s, no entanto, referir apenas outra frase famosa, agora de um sbio francs h muito esidente no Brasil, Louis Couty. Ao analisar a situao so-9

    ciopoltica da populao do pas, Couty concluiu que poderia resumi-la em uma frase: Brasil no tem povo".2 Seus olhos franceses no conseguiam ver no Brasil aquela populao ativa e organizada a que estava acostumado em seu pas de origem. Aristides Lopode ter falado por distoro elitista, assim como Couty o pode ter feito por etnocentrismo francs. Ambos eram, todavia, pessoas esclarecidas e interessadas nas mud

    anas sociais e polticas que fermentavam a seu redor. preciso que nos perguntemoselo sentido de suas palavras, pela realidade que lhes possa ter servido de referncia. Tal empreendimento tanto mais necessrio pelo fato de estarmos aqui diante doproblema da natureza mesma de nossa vida poltica. Trate-se da concepo e da prticcidadania entre ns, em especial entre o povo. Trata-se do problema do relacionamento entre o cidado e o Estado, o cidado e o sistema poltico, o cidado e a prprvidade poltica. Tem havido recentemente tendncia a ver tal relao de maneira mania, segundo a qual o Estado apresentado como vilo e a sociedade como vtima indefe. Tal viso quase uma volta dicotomia clssica estabelecida por Santo Agostinho e um Estado governado por pecadores, baseado na represso, e a Cidade de Deus, a sociedade dos santos, sustentada no amor e na cooperao.3 Nesta perspectiva, a inexistncia da cidadania simplesmente atribuda ao Estado.

    Tal viso insatisfatria, como todas as dicotomias aplicadas ao fenmeno sociaeoricamente, ela separa o que so lados da mesma moeda, partes do mesmo todo. O maniquesmo inviabiliza mesmo qualquer noo de cidadania, pois ou se aceita o Estado mo um mal10

    necessrio, maneira agostiniana, ou se o nega totalmente, moda anarquista. Na pra, ele acaba por revelar uma atitude paternalista em relao ao povo, ao consider-lvtima impotente diante das maquinaes do poder do Estado ou de grupos dominantes. aba por bestializar o povo. Parece-nos ao contrrio que, exceto em casos muito excepcionais e passageiros de sistemas baseados totalmente na represso, mais fecundover as relaes entre o cidado e o Estado como uma via de mo dupla, embora no neiamente equilibrada. Todo sistema de dominao, para sobreviver, ter de desenvolver

    ma base qualquer de legitimidade, ainda que seja a apatia dos cidados. O momento de _transio do Imprio para a Repblica particularmente adequado pestudo desta questo. Tratava-se da primeira grande mudana de regime poltico aps dependncia. Mais ainda: tratava-se da implantao de um sistema de governo que se ppunha, exatamente, trazer o povo para o proscnio da atividade poltica. A Repblicana voz de seus propagandistas mais radicais, como Silva Jardim e Lopes Trovo, eraapresentada com a irrupo do povo na poltica, na melhor tradio da Revoluo Fra789, a revoluo adorada, como a chamava Silva Jardim. O regime monrquico, vivendra do Poder Moderador, era condenado pelo manifesto republicano de 1870 como incompatvel com a soberania nacional, que s poderia ser baseada na vontade popular. O

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    jornal Revoluo, publicado no Rio em 1881 por um funcionrio demitido da Alfndegala Nunes, conclamava o povo, segundo ele roubado em seus direitos pelo governo monrquico, a empunhar o estandarte da liberdade a bandeira da Repblica no meioaa pblica, ao som da Marselhesa, proclamando a soberania popular". 411

    Embora proclamado sem a iniciativa popular, o novo regime despertaria entreos excludos do sistema anterior certo entusiasmo quanto s novas possibilidades departicipao. O jornal Voz do Povo, tambm do Rio de Janeiro, cuja publicao foi inmenos de dois meses aps a proclamao da Repblica, referiu-se a uma nova era para perrio brasileiro trazida pelo novo regime, comparvel que foi aberta pela Revolu

    1789. No regime antigo, segundo o articulista do jornal, os operrios eram os servos da gleba, a canalha, com todos os deveres e nenhum direito. Agora eram livres, iguais e soberanos, viam-se colocados na vanguarda do progresso da ptria. E terminava: "Saibamos ser operrios e cidados de uma ptria livre".5 Logo no comeo de0 houve vrias tentativas de organizar um partido operrio, e um dos militantes maisenvolvidos, Luiz da Frana e Silva, dizia em seu jornal Echo Popular: "A palavra Repblica foi por muito tempo o smbolo exclusivo das aspiraes democrticas, e oiva a Repblica tem um longo passado de sedio e irrompe naturalmente do povo quaele se rene para deliberar".6 Alm de o momento ser propcio, era-o tambm o local, o ambiente, em que pretendos realizar o estudo a cidade do Rio de Janeiro. As cidades foram tradicionalmente o lugar clssico do desenvolvimento da cidadania. O cidado era, at etimologicamte, o habitante da cidade. Nelas se tornou possvel a libertao do poder privado do

    senhores feudais. Nelas foi que aos poucos se desenvolveram a noo e a prtica de umsistema de governo montado sobre o pertencimento individual a uma coletividade.O burgus foi o primeiro cidado moderno.712

    O Rio de Janeiro dos primeiros anos da Repblica era a maior cidade do pas, commais de 500 mil habitantes. Capital poltica e administrativa, estava em condies ser tambm, pelo menos em tese, o melhor terreno para o desenvolvimento da cidadania. Desde a independncia e, particularmente, desde o incio do Segundo Reinado, quando se deu a consolidao do governo central e da economia cafeeira na provncia adcente, a cidade passou a ser o centro da vida poltica nacional. O comportamento poltico de sua populao tinha reflexos imediatos no resto do pas. A proclamao da a melhor demonstrao desta afirmao. Campos Sales j percebia, como propagandis

    a falta de coeso do Partido Republicano na corte era o principal obstculo ao desenvolvimento da idia republicana. 8 E a proclamao, afinal, resultou de um motim de ldados com o apoio de grupos polticos da capital. Com esta sumria justificativa do tempo e lugar do estudo a ser desenvolvida no correr do trabalho j fica evidente que havia algo mais na poltica do que simplmente um povo bestializado. Tentar entender que povo era este, qual seu imaginriopoltico e qual sua prtica poltica ser a tarefa que enfrentaremos ao longo dos cos deste livro. O estudo comear por uma descrio da cidade do Rio de Janeiro no inda Repblica, com nfase especial nas transformaes sociais, polticas e culturais as pelo fim de sculo. O captulo seguinte examinar as vrias concepes de cidadantes poca da mudana do regime. Depois, tentar-se- examinar o mundo dos cidados como ele se verificava na capital da Repblica atravs da participao eleitoral. O qto captulo ser dedicado ao estudo de uma ao poltica exemplar no sentido polt

    l da populao: a Revolta da Vacina. Por13

    fim, o captulo quinto procurar reconstituir o mundo da cidadania no Rio de Janeiroe buscar razes para explic-lo. Embora se trate de uma investigao de natureza histrica, no resta dvida de qroblema da cidadania continua no centro da preocupao de todos nos dias de hoje, quando mais uma mudana de regime se efetua e mais uma tentativa feita no sentido deconstruir a comunidade poltica brasileira. A historiografia aqui, uma vez mais,projeo do presente e instrumento de tentativa de construo da histria. Diziam os

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    ivistas que os mortos governavam os vivos, o passado o presente. Ao reler a histria com os olhos de hoje talvez pudssemos dizer que os vivos, ao tentar reconstruir o passado, tentam governar os mortos na iluso de poderem governar a si prprios.Ou, em verso pessimista, na frustrao de o no poderem fazer.14

    CAPTULO IO RIO DE JANEIRO EA REPBLICA* No seria exagero dizer que a cidade do Rio de Janeiro passou, durante a primeira dcada republicana, pela fase mais turbulenta de sua existncia. Grandes transformaes de natureza econmica, social, poltica e cultural, que se gestavam h algum

    , precipitaram-se com a mudana do regime poltico e lanaram a capital em febril agao, que s comearia a ceder ao final da dcada. O que se ler a seguir ser a tendescrever sumariamente a natureza destas mudanas e examinar as conseqncias delas vindas para a vida dos fluminenses. Ateno especial ser dada ao impacto do novo reme, que se pretendia ancorado na opinio pblica, na formao de uma comunidade pola antiga capital do Imprio. A anlise concentrar-se- na fase inicial de consolidao do novo regime, estend-se at o final do governo Rodrigues Alves, quando j estavam nitidamente definidosos vitoriosos e os vencidos e estabelecidos os rumos e a natureza da poltica republicana tanto para o pas como para a capital. No que se refere a esta, estavam definidos no s o papel que lhe caberia como tambm as regras para represent-lo. * Verso modificada deste captulo foi publicada em Revista Brasileira de Histia, 5 (8-9): 117-38, set. 1984/abr. 1985.

    15 Como a maior cidade e a capital econmica, poltica e cultural do pas, o Rio deaneiro no poderia deixar de sentir, em grau mais intenso do que qualquer outra cidade, as mudanas que vinham fermentando durante os ltimos anos do Imprio e que cuinaram n abolio da escravido e na proclamao da Repblica. A mudana de regime,s expectativas que trazia e tambm com todas as dificuldades que implicava, como que projetou luz intensa sobre as novas fealidades, tornando a vivncia delas tambmmais intensa e mais difundida. De uma maneira ou de outra, para melhor ou para pior, grande parte dos fluminenses foi pela primeira vez envolvida nos problemasda cidade e do pas. Esta conscincia nova e ampliada e as conseqncias que gerava,es mesmo que mudanas quantitativas, caracterizaram o Rio da primeira dcada republicana.

    Mas as alteraes quantitativas so inescapveis. A primeira delas foi de natureemogrfica. Alterou-se a populao da capital em termos de nmero de habitantes, de osio tnica, de estrutura ocupacional. A abolio lanou o restante da mo-de-obra o mercado de trabalho livre e engrossou o contingente de subempregados e desempregados. Alm disso, provocou um xodo para a cidade proveniente da regio cafeeira destado do Rio e um aumento na imigrao estrangeira, especialmente de portugueses. Os ndices de crescimento da populao podem ser vistos na tabela I. V-se que a dcada que precedeu a Repblica apresenta o maior crescimento populaonal relativo. Em termos absolutos, tem-se que a populao quase dobrou entre 1872 e1890, passando de 266 mil a 522 mil. A cidade teve ainda de absorver uns 200 mil novos habitantes na ltima dcada do sculo. S no ano de 1891, entraram 166 321 imantes, tendo sado para os estados16

    Tabela ICrescimento anual da populao do Rio de Janeiro, 1872-1906AnosCrescimento anual (%)1872-18803,841880-18904.541890-19003,231900-19062,91Fonte: ANURIO ESTATSTICO DO BRAZIL (1908-1912). v. I. p. XVIII.71 264. Este enorme influxo populacional fazia com que, em 1890, 28,7% da populaofosse nascida no exterior e 26% dela proviesse de outras regies do Brasil. Assim,apenas 45% da populao era nascida na cidade. Outro resultado importante da intensa imigrao era o desequilbrio entre os sex. Em 1890, entre os estrangeiros, os homens eram mais que o dobro das mulheres.Na populao total, a predominncia do sexo masculino girava em torno de 56%. O dese

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    ilbrio refletia-se no ndice de nupcialidade, que era apenas de 26% entre os homensbrancos e caa para 12,5% entre os negros em 1890.1 Em verdade, quanto a este ponto tinha havido alguma melhoria em relao a 1872, mas permanecia muito alto o nmerde solteiros e, portanto, muito baixo o nmero de famlias regularizadas. Uma terceira conseqncia do rpido crescimento populacional foi o acmulo de pes em ocupaes mal remuneradas ou sem ocupao fixa. Domsticos, jornaleiros, trabals em ocupaes mal definidas chegavam a mais de 100 mil pessoas em 1890 e a mais de200 mil em 1906 e viviam nas tnues fronteiras entre a lega lidade e a ilegalidade, s vezes participando simultaneamente de ambas. Pouco antes da Repblica, o embaixador portugus anotava: Est a cidade do Rio de Janeiro17

    cheia de gatunos e malfeitores de todas as espcies". Em proposta para regulamentado servio domstico, feita Intendncia Municipal em 1892, Evaristo de Moraes obsea que havia na capital gente desocupada em grande quantidade, sendo notvel o nmerde menores abandonados".2 Esta populao poderia ser comparada s classes perigosas ou potencialmente perisas de que se falava na primeira metade do sculo XIX. Eram ladres, prostitutas, malandros, desertores do Exrcito, da Marinha e dos navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de reparties pblicas, ratoeiros, recebedos de bondes, engraxates, carroceiros, floristas, bicheiros, jogadores, receptadores, pivetes (a palavra j existia). E, claro, a figura tipicamente carioca do capoeira, cuja fama j se espalhara por todo o pas e cujo nmero foi calculado em tornde 20 mil s vsperas da Repblica.3 Morando, agindo e trabalhando, na maior parte,

    s ruas centrais da Cidade Velha, tais pessoas eram as que mais compareciam nas estatsticas criminais da poca, especialmente as referentes s contravenes do tipodem, vadiagem, embriaguez, jogo. Em 1890, estas contravenes eram responsveis por % das prises de pessoas recolhidas Casa de Deteno. Anote-se ainda o impacto do crescimento populacional acelerado sobre as condies de vida, com as conseqentes presses sobre a administrao municipal. Agravarito os problemas de habitao, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade. Absoluta falta" de casas, especialmente para os pobres, foi salientada em 1892 pela Sociedade Unio dos Proprietrios e Arrendatrios de Prdios, que a atribua imociedade solicitava Inspetoria de Higiene que fosse mais cautelosa ao mandar fechar habita-k

    es, pelas conseqncias que a medida poderia acarretar.4 Os velhos problemas de abcimento de gua, de saneamento e de higiene viram-se agravados de maneira dramticano incio da Repblica com o mais violento surto de epidemias da histria da cidade. ano de 1891 foi particularmente trgico, pois nele coincidiram epidemias de varolae febre amarela, que vieram juntar-se s tradicionais matadoras, a malria e a tuberculose. Nesse ano, a taxa de mortalidade atingiu seu mais alto nvel, matando 52pessoas em cada mil habitantes. At 1896, a mortalidade permaneceu acima de 35 pormil, com a a nica exceo de 1893. A cidade tornara-se, sobretudo no vero, um lugerigoso para viver, tanto para nacionais quanto para estrangeiros. Nos meses demaior calor, o corpo diplomtico fugia em bloco para Petr- polis a fim de escapar epidemias, nem sempre com xito. O governo ingls concedia a seus diplomatas um adicional de insalubridade pelo risco que corriam representando Sua Majestade. No terminavam a as atribulaes por que passava a capital. Pelo lado econmico

    anceiro, os tempos tambm foram de grandes agitaes. Novamente a origem de tudo remtava abolio da escravido. No necessrio repetir em pormenores uma histria jBasta lembrar que, devido necessidade de aplacar os cafeicultores, especialmentedo estado do Rio, e de atender a uma demanda real de moeda para o pagamento desalrios, o governo imperial comeou a emitir dinheiro, no que foi seguido com entusiasmo pelo governo provisrio, este preocupado tambm em conquistar simpatias para onovo regime. Concedido o direito de emitir a vrios bancos, a praa do Rio de Janeiro foi inundada de dinheiro sem nenhum lastro, seguindo-se a conhecida febre especulativa, bem descrita no romancei\

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    de Taunay, O Encilhamento. Segundo um jornal da poca, "todos jogaram, o negociante, o mdico, o jurisconsulto, o funcionrio pblico, o corretor, o zango; com poucoio prprio, com muito peclio alheio, com as diferenas do gio, e quase todos com a dos prprios instrumentos do jogo".5 Falta acrescentar lista de especuladores os fazendeiros do estado do Rio de Janeiro, que afluram capital para jogar na especulao o dinheiro dos emprstimos. Os anos de 1890 e 1891 foram de loucura, segundo a epresso de um observador estrangeiro, o qual acrescenta ter havido corretores queobtinham lucros dirios de 50 a 100 contos e que uma oscilao do cmbio fazia e desa milionrios.6 Por dois anos, o novo regime pareceu uma autntica repblica de banqiros, onde a lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulao.

    As conseqncias no se fizeram esperar. Desde logo, houve enorme encarecimento s produtos importados devido ao aumento da demanda e ao consumo conspcuo dos novos ricos. A seguir, a inflao generalizada e a duplicao dos preos j em 1892. Ao mmpo, comeou a queda do cmbio, encarecendo mais ainda os produtos de importao, qupoca abrangiam quase tudo. Em 1892, j era necessrio o dobro de mil ris para comuma libra esterlina; em 1897, o triplo. Por cima, o governo aumentou os impostos de importao e passou a cobr-los em ouro, o que contribuiu ainda mais para o agramento do custo de vida. At o embaixador ingls sofreu as conseqncias quando um fonrio da embaixada pediu aumento de salrio, demonstrando com listas de preos que us 70$000 mensais no eram mais suficientes para sobreviver. O embaixador encaminhou favoravelmente o pedido ao Foreign Office, dizendo que os salrios no tinham acompanhado o aumento dos20

    preos, e terminou seu ofcio com uma tirada de orador popular: "[...] at quando pomos esperar que o povo brasileiro aceite carregar tal peso?". Com efeito, segundo alguns clculos, no primeiro qinqnio republicano houve aumento de 100% nos salara um aumento de mais de 300% nos preos.7 Artur Azevedo reflete a situao em O Tribofe, escrito em 1892:Das algibeiras some-se o cobre,Como levado por um tufo:Carne de vaca no come o pobre,Qualquer dia no come po.Fsforos, velas, couve, quiabos,Vinho, aguardente, milho, feijo,Frutas, conservas, cenouras, nabos...

    Tudo se vende pr'um dinheiro!8 O aumento no custo de vida era agravado pela imigrao, que ampliava a oferta demo-de-obra e acirrava a luta pelos escassos empregos disponveis. Tal situao conuiu o combustvel para o movimento jacobino, que principiou no governo Floriano eperdurou at o fim da presidncia de Prudente de Morais (1898). O jacobinismo elegeucomo principal alvo de suas iras os portugueses, considerados usurpadores de empregos e exploradores dos brasileiros atravs -do controle que exerciam sobre grande parte do comrcio e das casas de aluguel. 9 Pelo meio da dcada, a queda dos predo caf contribuiu para agravar a crise e o pas entrou em fase de deflao e recesonmica, de que s comeou a sair ao final do governo Campos Sales, no incio do novlo. J foram mencionados alguns fatos polticos. Foi a poltica outro aspecto, e talz o mais saliente, das transformaes e abalos sofridos pela capital federal. A pro-

    21

    clamao da Repblica trouxe grandes expectativas de renovao poltica, de maior pao poder por parte no s de contra-elites mas tambm de camadas antes excludas do jpoltico. O fato de ter sido o novo regime proclamado por movimento que se desenrolara totalmente na capital, para surpresa de quase todas as provncias, veio contribuir ainda mais para as expectativas da populao. Por quase uma dcada, o Rio seria arena em que os destinos nacionais se decidiriam. Depois da independncia, era omomento de maior glria, de maior visibilidade para a capital, transformada em loco das atenes de todo o pas. Acontecimentos, por banais que fossem, assumiam impo

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    cia desmedida em funo da ressonncia produzida pela situao privilegiada em que sva a cidade. Uma tentativa de assassinato, um empastelamento de jornal, uma greve, uma revolta de quartel ou de navio, que abalassem a capital, reverberavam pelo pas inteiro. Pela expectativa despertada, pelas lutas a que deram incio e mesmo por razes diretamente vinculadas poltica, os primeiros anos da Repblica foram de repetidas itaes e de quase permanente excitao para os fluminenses. Os militares tinham provo poder que desde o incio da Regncia lhes fugira das mos. Da em diante julgaramdonos e salvadores da Repblica, com o direito de intervir assim que lhes parecesse conveniente. Rebelavam-se quartis, regimentos, fortalezas, navios, a Escola Militar, a esquadra nacional em peso. Generais brigavam entre si, ou com almirantes

    , o Exrcito brigava com a Armada, a polcia brigava com o Exrcito. Por seis meses, esquadra rebelada bloqueou o porto e bombardeou partes da cidade, causando pnico, deslocamentos macios de populao para os subrbios, ameaas de saques. Os operrparte deles, acreditaram22

    nas promessas do novo regime, tentaram organizar-se em partidos, promoveram greves, seja por motivos polticos, seja em defesa de seu poder aquisitivo erodido pela inflao.10 Ferrovirios, martimos, estivadores, cocheiros e condutores de bondeseram sua entrada no cenrio poltico, promovendo as primeiras paralisaes da capitaue dependia do funcionamento da rede ferroviria e do porto, pois da provinha todoo seu abastecimento. Pequenos proprietrios, empregados, funcionrios pblicos tambmmobilizaram pela primeira vez no bojo da xenofobia florianista, organizando clu

    bes jacobinos e batalhes patriticos. Os jacobinos mantiveram um clima generalizadode tenso poltica, especialmente durante a campanha de Canudos no governo de Prudente de Morais. Quebravam jornais, promoviam arruaas, vaiavam congressistas, espancavam e matavam portugueses, perseguiam monarquistas, assassinavam inimigos. Em1897 tentaram matar o presidente da Repblica, depois de terem feito o mesmo com oltimo presidente do conselho de ministros da Monarquia. Polticos republicanos e monarquistas assinavam manifestos, envolviam-se em conspiraes, planejavam golpes. Talvez o nico setor da populao a ter sua atuao comprimida pela Repblica teo dos capoeiras. Logo no incio do governo provisrio foram perseguidos pelo chefede polcia, presos e deportados em grande nmero para Fernando de Noronha. Sampaio Ferraz vingava-se deste modo das hostilidades sofridas pelos propagandistas da Repblica, entre os quais figurara, por parte dos capoeiras incorporados Guarda Negra. No conseguiu destru-los, mas domesticou-os criando condies para sua reincorpo

    novo sistema em termos mais discretos. Tambm no houve tolerncia alguma para com anarquistas estrangeiros que pela pri23

    meira vez aportaram s praias fluminenses. Para eles, a Repblica mostrou logo sua face violenta, expulsando-os sem maiores delongas. Durante o governo de FlorianoPeixoto foram expulsos 76 estrangeiros. Desses, 36 por crimes polticos, 19 expressamente sob acusao de anarquismo. As deportaes faziam-se por simples decreto prencial, precedendo solicitao do chefe de polcia. O primeiro decreto data de 14 de osto de 1893.11 Por ltimo, preciso mencionar tambm a movimentao que se deu no mundo das idas menta- lidades. A Repblica no produziu correntes ideolgicas prprias ou novas vestticas. Mas, por um momento, houve um abrir de janelas, por onde circularam ma

    is livremente idias que antes se continham no recatado mundo imperial. Criou-se um ambiente que Evaristo de Moraes chamou com felicidade de porre ideolgico, e quepoderamos tambm chamar, sob a inspirao de Srgio Porto, de! maxixe do republicado. Nesse porre, ou nesse maxixe, misturavam-se, sem muita preocupao lgica ou subantiva, vrias vertentes do pensamento europeu. Algumas delas j tinham sido incorporadas durante o Imprio, como o liberalismo e o positivismo; outras foram impulsionadas, como o socialismo; outras ainda foram somente ento importadas, como o anarquismo. Entre os republicanos histricos, havia os que se ligavam corrente liberalspenceriana e federalista, moda de Alberto Sales e dos paulistas em geral, e osque se inspiravam antes na tradio da Revoluo Francesa, que favorecia uma viso m

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    ousseau- niana do pacto social, mais popular e centralista, ao estilo de Silva Jardim, Lopes Trovo, Joaquim Serra. E havia ainda os positivistas, que exultaram com o advento do novo regime, julgando ter chegado a hora, a que se consideravamdestinados, de exercerem a tutela intelec24

    tual sobre a nao. Mas mesmo entre eles houve divises entre a ortodoxia da Igrejsitivista e as variantes civil e militar, que da doutrina retiravam apenas os aspectos que mais interessavam ao poltica. Descendo um pouco na escala social, intelectuais de classe mdia e artesos qualificados, como os grficos, viram sua possibilidade de intervir na poltica atravs

    propostas de natureza socialista. Lanaram jornais de propaganda e tentaram formar organizaes que pudessem traduzir em ao concreta seus princpios. Acreditavam nibilidade de democratizar a Repblica indo alm das propostas liberal e positivistaque predominavam entre os histricos. Finalmente, um pouco mais tarde, j no bojo dodesencanto com a pouca ou nenhuma sensibilidade do novo regime para reformas de- mocratizantes, surgiram as propostas anarquistas, trazendo alternativas radicais para a organizao poltica do pas. frente dos novos propagandistas estariam ituais de classe mdia e lderes operrios, estrangeiros e brasileiros. O captulo sete desenvolver melhor este tpico. Mais importante que a circulao de idias talvez tenha sido a nova atitude dos telectuais em relao poltica. Da invaso da Cmara Municipal a 15 de novembro dentes mesmo de proclamada a Repblica, participaram vrios intelectuais. Alguns, porcerto, antigos militantes do movimento abolicionista, como Jos do Patrocnio, mas o

    utros pela primeira vez movidos ao poltica concreta, como Olavo Bilac, Lus Murrdal Mallet. Um ms depois, intelectuais do Rio enviaram um manifesto de entusistico apoio ao governo provisrio, em que se referiam aliana entre os homens de letra o povo. A ptria, dizia o manifesto, abrira as asas rumo ao progresso, "a literatura vai desprender tam*25

    bm o vo para acompanh-la de perto.12 O entusiasmo durou at o governo Floriano, se deu um cisma entre os intelectuais, e alguns dos antigos entusiastas da Repblica tiveram de fugir da capital para evitar a priso. Como exemplo de perseverana ede f, j agora obcecada, nos ideais de um republicanismo jacobino, restaria apenasRaul Pompia. Seu suicdio em dezembro de 1895, alguns meses aps a morte de Floria, foi o trgico smbolo do fracasso de uma alternativa poltica, assim como a fuga d

    Bilac, Guimares Passos e outros indicava que no seria to fcil estabelecer os pars de uma convivncia pacfica entre a Repblica da poltica e a Repblica das letrasnvivncia se daria mais tarde em termos algo distintos dos imaginados inicialmente. Mais difcil de avaliar o impacto da proclamao do novo regime a nvel das meades. Entre as elites, houve sem dvida a sensao geral de libertao, que atingiu undo das idias mas tambm dos sentimentos e das atitudes. No h estudos sobre este to, mas no seria exagerado dizer que a sada da figura austera e patriarcal do velho imperador, que imprimia forte marca em toda a elite poltica e mesmo em setoresmais amplos da populao, significou a emancipao dos que seriam simbolicamente seulhos. A mudana parece ter sido importante sobretudo no que se refere a padres de moral e de honestidade. A comear por esta ltima, vimos que o encilhamento trouxe uma febre de enriquecimento a todo custo, escandalizando velhos monarquistas, como

    o visconde de Taunay, que via no fenmeno uma degradao da alma nacional. Como dirm os jornais da poca, "a Repblica a riqueza!.13 Poderamos dizer que se deu uma do esprito do capitalismo desacompanhado da tica protestante. Desabro-26

    chou o esprito aquisitivo solto de qualquer peia de valores ticos, ou mesmo de cllo racional que garantisse a sustentao do lucro a mdio prazo. Era um capitalismo edatrio, fruto tpico do esprito bandeirante na concepo que lhe deu Viana Moog. Oantes era feito com discrio, ou mesmo s escondidas, para fugir vigilncia dos omperiais, agora podia ser gritado das janelas ou dos coches, era quase motivo de

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    orgulho pessoal e de prestgio pblico. Os heris do dia eram os grandes especulados da bolsa. A quebra de valores antigos foi tambm acelerada no campo da moral e dos costumes. Certamente, o Rio h muito deixara de ser exemplo de vida morigerada, se quealguma vez o foi. Os altos ndices de populao marginal e de imigrao, o desequilre os sexos, a baixa nupcialidade, a alta taxa de nascimentos ilegtimos so testemunhos seguros de costumes mais soltos. Aponta na mesma direo o romance de Manuel Antnio de Almeida, Memrias de um Sargento de Milcias, escrito em 1853. Mas, novamen, parece-me que o que antes era semiclandestino, sussurrado, adquiriu com a Repblica, se excetuarmos o governo de Floriano, foros de legitimao pblica. O pecado polarizou-se, personificou-se. Na revista do ano de Artur Azevedo, O Rio em 1877,

    domina a temtica poltica e os personagens so todos simblicos, como o Boato, a Po, o Z Povinho etc. J em O Tribofe, revista apresentada no incio de 1892, o enganoa seduo, a explorao, a mutreta, o tribofe, enfim, aparecem encarnados em pessoas to reais e possuem at mesmo certo charme. Entre jogadores, cocotes, bons vivants,fraudadores de corridas, proprietrios exploradores, perde-se a virtude da famliain- teriorana. Primeiro, some a empregada, seduzida por um personagem que se dizlanador de mulheres, ou seja,27

    formador de prostitutas; a seguir, vai o prprio azen- deiro nos braos de uma coco; finalmente, desaparece o filho em agitaes estudantis. Todos pegam o "micrbio da dega". Se do ar da cidade medieval se dizia que tornava livre social e politicamente, do ar do Rio pode-se dizer que libertava moralmente. Ou, como diz em O Tri

    bofe Quinota, a filha do fazendeiro, referindo-se ao pai: "Respirou o ar desta terra, e perdeu a cabea"; e completa: "Aqui h muita liberdade e pouco escrpulo. . faz-se ostentao do vcio e das grandezas [. . . ] No se respeita ningum".14 No po, A Cidade do Rio, jornal de Patrocnio, representava-se como uma mulher nua, e assim aparecia em desenhos dialogando com Deodoro, para a suprema irritao do austero soldado (ver caderno de fotos). Tal liberao se deu a despeito da ao moralista de certas autoridades republic. O chefe de polcia de Deodoro perseguiu os capoeiras, e todo o governo Flo- riano teve uma cara repressora. O jogo, as apostas foram reprimidos, e tentou-se acabar com o entrudo. Porm a jogatina da bolsa, favorecida pelo governo provisrio, tinha dado o tom. Apesar da ao das autoridades, quando havia tal ao, abriram-se caos, casas de corrida, frontes, beldromos, que vieram juntar-se ao tradicional jogodo bicho, ou dos bichos, como se dizia na poca, e s casas clandestinas de jogo. A

    confiana na sorte, no enriquecimento sem esforo em contraposio ao ganho da vidao trabalho honesto parece ter sido incentivada pelo surgimento do novo regime. oque revela o testemunho insuspeito de Raul Pompia: "Desaprendeu-se a arte honesta de fazer a vida com o natural e firme concurso do tempo, do trabalho. Era preciso melhorar, mas de pronto: ao' jogo pois!", publicado no Jornal do Commercio,a 4 de janeiro de 1892. E pedia, para a28

    salvao da Repblica, o fim da "epidemia de jogatina. Mas h um ponto que preciso salientar. O fato de a Repblica ter favorecido o ande jogo da bolsa e perseguido capoeiras e o pequeno jogo dos bicheiros sugereuma recepo diferente do novo regime por parte do que poderia ser chamado de proletariado da capital. A euforia inicial, a sensao de que se abriam caminhos novos de

    participao parecem no ter atingido este setor da populao. Eu diria mesmo que a Muia caiu quando atingia seu ponto mais alto de popularidade entre esta gente, emparte como conseqncia da abolio da escravido. A abolio deu ensejo a imensos opulares que duraram uma semana e se repetiram no ano seguinte, cinco meses, antes da proclamao da Repblica. A simpatia popular se dirigia no s princesa Isabtambm a Pedro II, como ficou evidenciado por ocasio da comemorao do aniversrio ho imperador, a 2 de dezembro de 1888. Segundo o testemunho do republicano RaulPompia, o Pao Imperial foi invadido por "turba imensa de populares, homens de cora maior parte". A polcia teve de intervir para convencer alguns dos manifestantesde que pelo menos vestissem camisa para se apresentarem ao imperador. No meio d

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    a multido, salientava-se a imponente figura do prncipe Ob, um negro que se dizia i africano. Prncipe Ob adornara de penas sua farda de alferes honorrio. 15 A cena oi sem dvida motivo de riso e chacota, e prncipe Ob acabou sendo preso pela polcMas revelava profundo simbolismo: um rei negro, um rei das ruas e becos da cidade, vai paramentado, combinando a farda do mundo oficial com as penas de suas origens africanas, e acolitado pela multido dos miserveis saudar o imperador de olhosazuis.A reao negativa da populao negra Repblica29

    manifestou-se antes mesmo da proclamao, atravs da Guarda Negra organizada por Jos

    Patrocnio. Vrios incidentes verificaram-se entre os propagandistas e a Guarda. Omais srio de todos se deu com a interrupo, que resultou em mortos e feridos, de umconferncia de Silva Jardim, em dezembro de 1888, na Sociedade Francesa de Ginstica. Dizer que se tratava apenas de capoeiras baderneiros manipulados pela polcia,como o fizeram os republicanos e at mesmo Rui Barbosa, no basta. Permanece o fatode que os republicanos no conseguiram a adeso do setor pobre da populao, sobretuos negros. O prprio Silva Jardim, ao acompanhar o conde d'Eu em sua viagem ao norte do pas em 1889, experimentaria mais uma vez, em Salvador, a ira da populao neg. Por ele e pela Repblica manifestaram-se apenas os estudantes da Faculdade de Medicina local. A simpatia dos negros pela Monarquia reflete-se na conhecida ojeriza que Lima Barreto, o mais popular romancista do Rio, alimentava pela Repblica.Neto de escravos, filho de um protegido do visconde de Ouro Preto, o romancistaassistira, emocionado, aos sete anos, s comemoraes da abolio e s festas promov

    ocasio do regresso do imperador de sua viagem Europa, tambm em 1888. Em contras, vira no ano seguinte seu pai, operrio da Tipografia Nacional, ser demitido pelapoltica republicana. Irritava-o, particularmente, a postura do baro do Rio Branco, a quem acusava de renegar a parcela negra da populao brasileira.16 Em termos concretos, a preveno republicana contra pobres e negros manifestou-se na perseguio movida por Sampaio Ferraz contra os capoeiras, na luta contra os bicheiros, na destruio, pelo prefeito florianista Barata Ribeiro, do mais famoso cortio do Rio, a Cabea de30

    Porco, em 1892. No por acaso, Barata Ribeiro tambm comparecera conferncia dissoa de Silva Jardim. No seria, a meu ver, exagerado supor que a reao popular a certmedidas da administrao republicana, mesmo que teoricamente benficas, como a vaci

    obrigatria, tenha sido em parte alicerada na antipatia pelo novo regime. Mais oumenos poca da Revolta da Vacina, por exemplo, Joo do Rio verificou, ao visitar a asa de Deteno, que "Com rarssimas excees, que talvez no existam, todos os presicalmente monarquistas. Passadores de moedas falsas, incendirios, assassinos, gatunos, capoeiras, mulheres abjetas, so ferventes apstolos da restaurao".17 Eram mquistas e liam romances de cavalaria. Esta extraordinria revelao confirma o abismexistente entre os pobres e a Repblica e abre fecundas pistas de investigao sobrem mundo de valores e idias radicalmente distinto do mundo das elites e do mundo dos setores intermedirios. Apontadas rapidamente as transformaes sofridas pela capital, cabe agora perguntar pelas conseqncias da advindas para a populao da cidade e seu governo e paraao entre ambos. O problema central a ser resolvido pelo novo regime era a organizade outro pacto de poder, que pudesse substituir o arranjo imperial com grau sufi

    ciente de estabilidade. Durante quase dez anos de Repblica, as agitaes se sucediamna capital, havia guerra civil nos estados do Sul, percebiam-se riscos de fragmentao do pas, a economia estava ameaada pela crise do mercado do caf e pelas difdes de administrar a dvida externa. Para os que controlavam o setor mais poderosoda economia (exportao) e para os que se preocupavam em manter o pas unido, tornav-se urgente acabar com a instabilidade poltica. A natureza da tarefa que se impunha pode ser des-31

    crita como a necessidade de eliminar, ou pelo menos neutralizar, a influncia da c

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    apital na poltica nacional. Isto significava pelo menos duas coisas: tirar os militares do governo e reduzir o nvel de participao popular. Os dois fenmenos eram cionados, pois o grosso do Exrcito e da Marinha estava localizado no Rio de Janeiro, e muitos militares de ambas as corporaes envolviam-se freqentemente nas agitaolticas, at mesmo em greves operrias. Nas greves, tumultos, revoltas, tentativas golpes, havia sempre militares ao lado de elementos civis. A aliana foi mais ntida durante o perodo jacobino, mas at mesmo em 1904 houve ainda o desenvolvimento paralelo, com intersees, de uma revolta popular e uma revolta militar. Militares e setores populares no representavam interesses compatveis com os do grande comrcio da grande agricultura. Porm, por outro lado, no tinham condies de impor um goverue extrapolasse os limites do Distrito Federal.

    A maneira indireta de neutralizar a capital e as foras que nela se agitavam era fortalecer os estados, pacificando e cooptando suas oligarquias. Era reunir as oligarquias em torno de um arranjo que garantisse seu domnio local e sua participao no poder nacional de acordo com o cacife poltico de cada uma. Como s- bida foi a obra de Campos Sales, que, alm do mais, precisava desesperadamente de pazinterna para negociar a dvida externa com os banqueiros ingleses. O acordo foi consagrado em 1900, durante o reconhecimento de poderes da nova legislatura. Porele, presumia-se a legitimidade dos diplomas dos deputados eleitos pelas polticasdominantes nos estados, conseguindo-se assim o apoio dessas polticas para a ao dgoverno federal. Se os partidos no funcionavam como instrumentos de governo, se se dividiam em faces, se ficavam presos a32

    caudilhos, a soluo, para Campos Sales, era formar ento um grande partido de govercom sustentao nas oligarquias estaduais. O prprio presidente resumiu claramente u objetivo: de l [dos estados] que se governa a Repblica, por cima das multidetumultuam, agitadas, nas ruas da capital da Unio". E prosseguindo: A poltica dos tados [... ] a poltica nacional(grifo de Campos Sales).18 O resumo perfeito: governar o pas por cima do tumulto das multides agitadas capital. O Rio podia ser caixa de ressonncia, mas no tinha fora poltica prpria e uma populao urbana mobilizada politicamente, socialmente heterognea, indisciplida, dividida por conflitos internos no podia dar sustentao a um governo que tivesde representar as foras dominantes do Brasil agrrio. A percepo do perigo represdo por uma cidade deliberante, com um mnimo que fosse de vontade prpria, fez-se sentir logo no incio da Repblica. O decreto do governo provisrio que dissolveu a anga Cmara dos Vereadores e criou um Conselho de Intendncia dava a este, em coernci

    com a filosofia descentralizante do novo regime, certa autonomia de ao. Os intendentes acreditaram em seu novo papel e logo decretaram um Cdigo de Posturas, que desagradou profundamente aos proprietrios e arrendatrios de prdios de aluguel. A Soedade que representava estes proprietrios recorreu de imediato no ao Conselho, masao governo federal, e este, voltando atrs em seus propsitos iniciais, suspendeu aexecuo do Cdigo e baixou outro decreto, reduzindo a autonomia do Conselho e submendo suas deliberaes apreciao do ministro do Interior. Demonstrando alguma dig, os intendentes demitiram-se em protesto. A teoria rapidamente se revelara outra na prtica. A experincia de autonomia33

    durou apenas dois meses e meio. Apesar da curta durao e do carter limitado que tivra, fora suficiente para que o tradicional rgo republicano O Paiz, dirigido por Qu

    intino Bocaiva, a ela se referisse como sinal do perigo de surgir no Rio uma pequena comuna, uma conveno municipal, desptica e tirnica como a conveno francesa eu). 19 A desproporo gritante entre a dimenso real do fato e a que lhe pretendeu r o jornal, conjurando fantasmas da Paris revolucionria de 1789 e 1871, um indicador precioso da preocupao dos republicanos com o perigo da mobilizao popular na tal. A situao do governo municipal no mudou muito com a decretao da lei orgnicarito Federal, em 1892, j em regime constitucional. A lei previa a eleio dos intenntes pelo voto popular, mas o prefeito, cargo ento criado, seria nomeado pelo presidente da Repblica com aprovao do Senado Federal. As coisas assim permaneceram a

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    final da Primeira Repblica. Na verdade, o Rio republicano foi governado o tempotodo por interventores, que mais no eram os prefeitos nomeados. O governo municipal ficou limitado ao administrativa e, mesmo assim, dependeo do apoio poltico e financeiro do governo federal para iniciativas de maior vulto. O Conselho de Intendentes, mesmo eleito, tinha poucas condies de se opor ao prefeito nomeado. No governo de Rodrigues Alves, Pereira Passos governou a cidade por seis meses com a Cmara suspensa, ditatorialmente, como o fizera na poca florianista Barata Ribeiro, com o Conselho funcionando. O complemento inevitvel da despolitizao do governo municipal foi o falseamento do processo eleitoral e da representatividade poltica. O nmero de eleitores foi mantido sempre em34

    nveis baixssimos, e o processo eleitoral foi totalmente falseado pela intimidao,a violncia e pela fraude, como ser demonstrado no captulo 3. Dissociava-se o governo municipal da representao dos cidados. O fato era agrado pela freqente nomeao de prefeitos e chefes de polcia totalmente alheios vididade, muitas vezes trazidos dos estados pelos presidentes da Repblica. Abria-seento, do lado do governo, o caminho para o autoritarismo, que na melhor das hipteses poderia ser um autoritarismo ilustrado, baseado na competncia, real ou presumida, de tcnicos. No por acaso, muitos dos chefes do governo municipal no perodo emoco foram mdicos ou engenheiros. Dos seis primeiros, quatro foram mdicos, um engenheiro militar e apenas um tinha a formao tradicional da elite poltica brasileira,jurdica. O exemplo mais bvio naturalmente o do engenheiro Pereira Passos. Muitodestes tcnicos eram republicanos de primeira gua, como Barata Ribeiro. Mas, chegad

    os ao poder, do esprito de repblica guardavam no mximo alguma preocupao com o bco, desde que o pblico, o povo, no participasse do processo de deciso. O positivio, ou certa leitura positivista da Repblica, que enfatizava, de um lado, a idia doprogresso pela cincia e, de outro, o conceito de ditadura republicana, contribuapoderosamente para o reforo da postura tecnocrtica e autoritria. O primeiro exemplo de tal mentalidade foi o Cdigo de Posturas Municipais de 1890. Dois meses aps a posse, os sete intendentes j tinham revisto um esboo de Cdlegado pela Monarquia e o colocado em vigor. O novo cdigo regulava em pormenoresvrias atividades, especialmente as referentes a casas de aluguel e de pasto.35

    No h dvida de que grande parte das medidas era bem-intencionada e buscava beneficr a populao em termos de maior conforto e maior higiene, ao mesmo tempo que criava

    dificuldades aos proprietrios. Mas as medidas eram inteiramente irrealistas paraa poca. Muitas delas, como a exigncia de caiar as paredes duas vezes por ano, azulejar cozinhas e banheiros, arejar quartos com aparelhos de ventilao, limitar o nmro de hspedes, envolviam melhoramentos at hoje inexistentes em muitas residncias.lm disso, o Cdigo deixava transparecer a preocupao republicana com o controle da ulao marginal da cidade. Se executado, poderia ter provocado uma primeira verso dRevolta da Vacina. Para justificar a afirmativa, basta dizer que inclua a proibio e que hotis, hospedarias e estalagens recebessem pessoas suspeitas, brios, vagabundos, capoeiras, desordeiros em geral. Exigia-se ainda o registro de todos os hspedes, com anotao de nomes, empregos e outras caractersticas. As listas deviam ser etregues polcia no dia seguinte at as nove horas da manh. As penalidades pelo deprimento dos dispositivos iam desde multas at priso por 30 dias. 20 Pode- se imaginar o impacto dessas medidas, especialmente no velho centro. O Rio possua, em 188

    8, 1 331 estalagens e 18 866 quartos de aluguel, em que moravam 46 680 pessoas,incluindo todo o vasto contingente do mundo da desordem. De uma hora para outra,todos teriam registro na polcia, ou ficariam sem onde morar, caso os pro prietrios cumprissem rigorosamente a lei. Como se v, era uma lei que ou no se aplicava, ouse aplicava pela violncia. No caso, ela foi suspensa. Em 1904, a lei da vacinao rigatria teve exatamente o mesmo esprito de despotismo ilustrado, apesar de votadapelo Congresso. Desta vez, a interferncia do poder pblico foi levada36

    para dentro da casa dos cidados, seu ltimo e sagrado reduto de privacidade. Na per

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    cepo da populao pobre, a lei ameaava a prpria honra do lar ao permitir que estissem e tocassem os braos e as coxas de suas mulheres e filhas. A populao reagiu pla violncia e forou a interrupo da ao dos agentes do governo, como se ver no

    A expectativa inicial, despertada pela Repblica, de maior participao, foi senassim sistematicamente frustrada. Desapontaram-se os intelectuais com as perseguies do governo Floriano; desapontaram-se os operrios, sobretudo sua liderana soista, com as dificuldades de se organizarem em partidos e de participarem do processo eleitoral; os jacobinos foram eliminados. Todos esses grupos tiveram de aprender novas formas de insero no sistema, mais fceis para alguns, mais difceis poutros. Os intelectuais desistiram da poltica militante e se concentraram na literatura, aceitando postos decorativos na burocracia, especialmente no Ita- maraty

    de Rio Branco. Os operrios cindiram-se em duas vertentes principais, a dos anarquistas, que rejeitava radicalmente o sistema que os rejeitava, e a dos que procuravam integrar-se atravs dos mecanismos de coopta- o do Estado. Os jacobinos desapreceram de cena. Quanto ao grosso da populao, quase nenhum meio lhe restava de fazer ouvir sua voz, exceto o veculo limitado da imprensa. 21 No que se refere representao municipal, ela ficava solta, sem ter de prestarontas a um eleitorado autntico. A conseqncia foi que se abriu por este modo o camppara os arranjos particularistas, para as barganhas pessoais, para o tribofe, para a corrupo. E37

    ento fechou-se o crculo: a preocupao em limitar a participao, em controlar o mudesordem acabou por levar absoro perversa desse mundo na poltica. Ao lado de fu

    nrios pblicos, passaram a envolver-se nas eleies e na poltica municipais, por iiva dos polticos, os bandos de criminosos e contraventores do estilo de Totonho eLucrcio Barba de Bode, descritos por Lima Barreto, os donos das casas de prostituio e de jogo. Eram estes malandros, no sentido que tinha a palavra na poca, os emresrios da poltica, os fazedo res de eleies, os promotores de manifestaes, at el da poltica federal. A ordem aliava-se desordem, com a excluso da massa dos cidos que ficava sem espao poltico. O marginal virava cidado e o cidado era margido.22 No entanto, havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participao popular. S qeste mundo passava ao largo do mundo oficial da poltica. A cidade no era uma comunidade no sentido poltico, no havia o sentimento de pertencer a uma entidade coletiva. A participao que existia era de natureza antes religiosa e social e era fragmentada. Podia ser encontrada nas grandes festas populares, como as da Penha e da

    Glria, e no entrudo; concretizava-se em pequenas comunidades tnicas, locais ou mesmo habitacionais; um pouco mais tarde apareceria nas associaes operrias anarquiss. Era a colnia portuguesa, a inglesa; eram as colnias compostas por imigrantes dos vrios estados; era a Pequena frica da Sade, formada por negros da Bahia, onde, b a matriarcal proteo de Tia Ciata, se gestava o samba carioca e o moderno carnaval. Eram as estalagens cuja populao podia chegar a mais de mil pessoas. O cortio dBotafogo, descrito por Alu- sio Azevedo, possua no final mais de 400 casas e consti-38

    tuia uma pequena repblica com vida prpria, leis prprias, detentora da inabalvel dade de seus cidados, apesar do autoritarismo do proprietrio. Alusio, alis, fala ressamente na repblica do cortio. Ali se trabalhava, se divertia, se festejava,

    ornicava e, principalmente, se falava da vida alheia e se brigava. Porm, menor ameaa vinda de fora, todos esqueciam as brigas internas e cerravam fileiras contrao inimigo externo. Este inimigo era outro cortio e, principalmente, a polcia. Frente polcia, dono e moradores se uniam, pois estava em jogo a soberania e a honra da pequena repblica. Cortio em que entrava polcia era cortio desmoralizado.23 pamente irnico e significativo que a repblica popular do cortio se julgava violadaderrotada, quando l entrava o representante da repblica oficial..No romance, o cortio consegue evitar a entrada da polcia, mas na vida real, dois anos aps a publico livro, o cortio Cabea de Porco seria destrudo em autntica operao militar poro republicano histrico Barata Ribeiro. O governo da Repblica destrua as repblica

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    m integr-las numa repblica maior que abrangesse todos os cidados da cidade. Domesticada politicamente, reduzido seu peso poltico pela consolidao do sisteoligrquico de dominao, cidade pde ser dado o papel de carto-postal da Repblu-se de cheio no esprito francs da belle poque, que teve seu auge na primeira dcdo sculo. O entusiasmo pelas coisas americanas limitara-se s frmulas polticas. O lho republicano expressou-se em frmulas europias, especialmente parisienses. Maisque nunca, o mundo literrio voltou-se para Paris, os poetas sonhavam viver em Paris e, sobretudo, morrer em Paris. Com poucas excees, como o mulato Lima Barreto eo caboclo Euclides da Cunha, os literatos se dedicaram a39

    produzir para o sorriso da elite carioca, com as antenas estticas voltadas para aEuropa.24 Quando as finanas da Repblica foram recuperadas pela poltica deflacionista deampos Sales, sobraram recursos para as obras h muito planejadas de saneamento e embelezamento da cidade. Tudo foi feito com a eficincia e rapidez permitidas peloestilo autoritrio e tecnocr- tico inaugurado pela Repblica. O engenheiro-prefeitoediu a suspenso do funcionamento da Cmara dos Vereadores por seis meses para poderagir livremente e decretar a legislao necessria para o rpido encaminhamento das ormas. Um mdico sanitarista foi encarregado das medidas de higiene pblica. Tendo Paris como modelo, o centro da cidade foi depressa modificado, a avenida Beira-Mar foi aberta, jardins foram criados e reformados, os bondes ganharam trao eltrica, sem esquer a construo do novo porto. Ao visitar a cidade pouco depois, uma poetisa frances

    a, entusiasmada, escreveria um livro de poemas com o ttulo La Ville Merveilleuse.Vindo de uma francesa, era a glria, e compensava o epteto depreciativo de rastaqas que em Paris era dado aos brasileiros. As reformas tiveram como um dos efeitos a reduo da promiscuidade social em quevivia a populao da cidade, especialmente no centro. A populao que se comprimia eas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subrbios da Central. Abriu-se espao para o mundo elegante que anteriormente se limitava aos bairros chiques, como Botafogo, e se espremia na rua do Ouvidor. O footing passou a ser feito nos 33 metros de largura da avenida Central, quando no se preferia um passeio de carro pela avenida Beira-Mar. No Rio40

    reformado circulava o mundo belle-poque fascinado com a Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil negro. Era o mundo do baro do Rio Branco, ministro das Relaes Exteriores do presidente que promoveu as reformas. Omesmo baro que na juventude tinha sido capoeira e que agora se esforava em oferecer viso do estrangeiro um Brasil branco, europeizado, civilizado. Mas, se o novo Rio criado pela Repblica aumentava a segmentao social e o distciamento espacial entre setores da populao, as repblicas do Rio, vindas do Impriontinuaram a viver, a renovar-se, a forjar novas realidades sociais e culturaismais ricas e mais brasileiras que os versos parnasianos e simbolistas. Em certosmomentos, elas podiam manifestar-se politicamente e de modo violento, como nasbarricadas de Porto Artur. Todavia, na maioria das vezes elas cresciam em movimentos lentos e subterrneos. Assim, a festa portuguesa da Penha foi aos poucos sendo tomada por negros e por toda a populao dos subrbios, fazendo-se ouvir o samba a

    lado dos fados e das modinhas. Na Pequena frica da Sade, a cultura dos negros muuanos vindos da Bahia, sua msica e sua religio fertilizaram-se no novo ambiente, criando os ranchos carnavalescos e inventando o samba moderno.25 Um pouco depois,o futebol, esporte de elite, foi tambm apropriado pelos marginalizados e se transformou em esporte de massa. Assim, o mundo subterrneo da cultura popular engoliu aos poucos o mundo sobreterrneo da cultura das elites. Das repblicas renegadas pela Repblica foram surginos elementos que constituiriam uma primeira identidade coletiva da cidade, materializada nas grandes celebraes do carnaval e do futebol.41

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    CAPITULOUREPBLICA E CIDADANIAS* J ficou registrado que o fim do Imprio e o inicio da Repblica foi uma poca cterizada por grande movimentao de idias, em geral importadas da Europa. Na maioridas vezes, eram idias mal absorvidas ou absorvidas de modo parcial e seletivo, resultando em grande confuso ideolgica. Liberalismo, positivismo, socialismo, anarquismo misturavam-se e combinavam-se das maneiras mais esdrxulas na boca e na penadas pessoas mais inesperadas. Contudo, seria enganoso descartar as idias da poca como simples desorientao. Tudo era, sem dvida, um pouco louco. Mas havia lgica nacura, como poderemos verificar no exame do problema da cidadania.

    Vimos tambm que o perodo foi marcado, especialmente no Rio de Janeiro, pelo rdo avano de valores burgueses. Velhos monarquistas, como Taunay, expressaram seuescndalo frente febre de enriquecimento, ao domnio absoluto de valores materiaissia de acumular riquezas a qualquer preo, que tinham dominado a capital da Repblica. Mesmo republicanos ardorosos, como Raul Pompia, no deixaram de estranhar o novo * Verso ligeiramente modificada deste captulo foi publicada em Dados Revisde Cincias Sociais, 28 (2): 143-61, 1985.42

    esprito que dominava as pessoas. Segundo Pompia, longe iam os dias do romantismo abolicionista e do danto- nismo da propaganda. "O que h agora po, po, queijo, qu. Dinheiro dinheiro." Todos se ocupam de negcios e at a poltica dominada pelanas: "A Repblica discute-se consubstanciada no Banco da Repblica".1

    Mas foi mudana no campo da mentalidade coletiva. No que se refere aos princpios ordenadores da ordem social e poltica, o liberalismo j havia sido implantado pelo regime imperial em quase toda a sua extenso. A Lei de Terras de 1850 liberara apropriedade rural na medida em que regulara seu registro e promovera sua vendacomo mecanismo de levantamento de recursos para a importao de mo-de-obra. A Lei deSociedades Annimas de 1882 liberara o capital, eliminando restries incorporaoesas. A abolio da escravido liberara o trabalho. A liberdade de manifestao de pento, de reunio, de profisso, a garantia da propriedade, tudo isso era parte da Constituio de 1824. No que se refere aos direitos civis, pouco foi acrescentado pelaConstituio de 1891. O mesmo se pode dizer dos direitos polticos. As inovaes repnas referentes franquia eleitoral resumiram-se em eliminar a exigncia de renda, mantendo a de alfabetizao. O esprito das mudanas eleitorais republicanas era o mesmo de 1881, quando foi

    introduzida a eleio direta. At esta ltima data, o processo indireto permitia raznvel de participao no processo eleitoral, em torno de 10% da populao total. A eeta reduziu este nmero para menos de 1%. Com a Repblica houve aumento pouco significativo para 2% da populao (eleio presidencial de 1894) 2 Percebera-se que, no cbra-43

    sileiro, a exigncia de alfabetizao, introduzida em 1881, era barreira suficiente ra impedir a expanso do eleitorado. O Congresso Liberal de maio de 1889 j o dissera abertamente ao aceitar como indicador de renda legal o saber ler e escrever. Oliberal Rui Barbosa, um dos redatores do projeto da Constituio de 1891, fora um dos principais propugnadores da reforma de 1881. Por trs desta concepo restritiva da participao estava o postulado de uma di

    da entre sociedade civil e sociedade poltica. O ponto j fora exposto com clareza por Pimenta Bueno em sua anlise da Constituio de 1824. Pimenta Bueno buscou na Conituio francesa de 1791 a distino, alis includa na prpria Constituio brasileados ativos e cidados inativos ou cidados simples. Os primeiros possuem, alm dos eitos civis, os direitos polticos. Os ltimos s possuem os direitos civis da cidadia. S os primeiros so cidados plenos, possuidores do jus civitatis do direito romo. O direito poltico, nesta concepo, no um direito natural: concedido pela squeles que ela julga merecedores dele. O voto, antes de ser direito, uma funo al, um dever. Era esta, alis, a posio de John Stuart Mill, talvez o autor que minfluncia teve sobre os proponentes da reforma de 1881. Como se sabe, Mill era t

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    ambm contra o voto do analfabeto. Exigia como condio para o exerccio do voto at a capacidade de fazer as operaes bsicas da aritmtica.3 Sendo funo social antes que direito, o voto era concedido queles a quem a socdade julgava poder confiar sua preservao. No Imprio como na Repblica, foram exclos pobres (seja pela renda, seja pela exigncia da alfabetizao), os mendigos, as muheres, os menores de idade, as praas de pr, os membros de or44

    dens religiosas. Ficava fora da sociedade poltica a grande maioria da populao. A ecluso dos analfabetos pela Constituio republicana era particularmente discriminat, pois ao mesmo tempo se retirava a obrigao do governo de fornecer instruo prim

    ue constava do texto imperial. Exigia-se para a cidadania poltica uma qualidade que s o direito social da educao poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-este direito. Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrtica e resistente a esforos de democratizao. A Constituio de 1891 tambm retirou um dispositivo da anterior que se referia rigao do Estado de promover os socorros pblicos, em outra indicao de enrijecimeortodoxia liberal em detrimento dos direitos sociais. O Cdigo Criminal de 1890 teve a mesma inspirao. Tentou proibir as greves e coligaes operrias, em descompam as correes que j se faziam na Europa interpretao rgida do princpio da libntrato de trabalho. Foi a ameaa de greve por parte de alguns setores do operariado do Rio que forou o governo a reformar logo os artigos que continham a disposio tioperria (205 e 206). A Repblica, ou os vitoriosos da Repblica, fizeram muito pouco em termos de exp

    anso de direitos civis e polticos. O que foi feito j era demanda do liberalismo imerial. Pode-se dizer que houve at retrocesso no que se refere a direitos sociais.Algumas mudanas, como a eliminao do Poder Moderador, do Senado vitalcio e do Coho de Estado e a introduo do federalismo, tinham sem dvida inspirao democratizamedida em que buscavam desconcentrar o exerccio do poder. Mas, no vindo acompanhadas por expanso significativa da cidadania poltica, resultaram em entregar o governo mais diretamente nas mos dos setores dominantes, tanto45

    rurais quanto urbanos. O Imprio tornara-se um empecilho ao dinamismo desses setores, sobretudo os de So Paulo. O Estado republicano passou a no impedir a atuao doras sociais, ou, antes, a favorecer as mais fortes, no melhor estilo spenceriano. Fora, alis, Spencer um dos inspiradores de Alberto Sales, o mais respeitado idel

    ogo da Repblica.4 Mas a propaganda republicana prometera mais do que isso. O entusiasmo e as expectativas despertadas em certas camadas da populao pelo advento do novo regime provinham de promessas democratizantes feitas nos comcios, nas conferncias pblicasna imprensa radical. Quem melhor caracterizou este lado da campanha foi Silva Jardim, ao lado de seu antigo mestre Lus Gama e de Lopes Trovo. Silva Jardim e LopesTrovo, particularmente, eram grandes agitadores populares. Trovo fora um dos principais instigadores da Revolta do Vintm de 1880, que trouxe de volta o povo do Rio ao primeiro plano da poltica aps ausncia de muitos anos. Silva Jardim foi protanista de vrias demonstraes republicanas, algumas terminadas em tiroteio, como a ddezembro de 1888. Qual a inspirao de Silva Jardim? Era basicamente a retrica da Roluo Francesa.5 Contra os chefes evo- lucionistas do Partido Republicano, queria atransformao feita revolucionariamente nas ruas com apoio e participao do povo.

    nunca exps sistematicamente suas idias sobre como seria a participao popular no regime. Falava apenas na necessidade inicial de uma ditadura republicana, que lhe poderia ter sido inspirada tanto por Robespierre quanto pelo positivismo, a ser depois legitimada por sufrgio universal.* O radicalismo de Silva Jardim incomodava o grosso do partido e levou-o ao rompimento com a direo partidria. Foi-lhe at ocultada a data da revolta e ele dela46

    participou por acaso. Mas o fez dentro de sua especialidade: Benjamin Constant,temeroso de que falhasse o golpe, pedira a Annbal Falco, amigo de Silva Jardim, qu

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    e agitasse o povo. Nisso apareceu Silva Jardim, que de bom grado cumpriu a tarefa, liderando o coro da Marselhesa pelas ruas. Todavia, logo aps a proclamao, foi stematicamente boicotado. Nas eleies de 1890 para a Constituinte, no conseguiu eler-se no Rio de Janeiro, principal palco de sua atuao. Desiludido, como outros radicais, com a Repblica, que no era a de seus sonhos, foi para a Europa, onde morreuem 1891, caindo no Vesvio. Mais pela simbologia da ao do que pelas idias, Silva Jardim introduzira uma ccepo de cidadania que se aproximava do modelo rousseauniano: a viso do povo como tidade abstrata e homognea, falando com uma s voz, defendendo os mesmos interessescomuns. Apesar de ser tambm contratual, esta concepo difere do con- tratualismo ckeano, pois sua inspirao platnica salienta antes os aspectos comunitrios de int

    de todos na vontade geral da soberania. O todo mais do que a soma dos indivduos que o formam, podendo por isso ditar o que seja a verdadeira vontade destes. A idia de ditadura republicana adequava-se bem a esta concepo. Segundo ela, o ditador era a encarnao da vontade coletiva e o instrumento de sua ao, sem que fosse neceseleio formal, bastando a sano implcita, como expressamente admitia o manifesto tido Republicano de Pernambuco de 1888, com a concordncia de Silva Jardim.7 Outros temas dos republicanos radicais que reforavam a idia comunitria eram os da ptrfraternidade, ambos tambm inspirados na Revoluo Francesa. O tema de ptria, em eial, freqente em Silva Jardim, destoando do discurso dos republicanos conservadores que insistiam antes na federao. Estes47

    ltimos, ao falarem de ptria, referiam-se a suas provncias, como foi o caso de Alb

    to Sales, que pregou abertamente o separatismo paulista em livro a que deu o sugestivo ttulo A Ptria Paulista, escrito em 1887. Silva Jardim achava um erro a separao, apesar de compartilhar com os positivistas a idia de que a tendncia de todasociedades era formar pequenas ptrias.8 As razes da adoo desta viso integradora, comunitria, orgnica das relaes om a sociedade poltica poderiam ter sido de natureza apenas ttica. O movimento republicano era constitudo de uma frente ampla de interesses, que abrangia escravocratas e abolicionistas, militares e civis, fazendeiros, estudantes, profissionaisliberais, pequenos comerciantes. A idia de povo, de ptria tinha o mrito de unir todos, evitando embaraos. Mas o importante aqui apontar sua existncia e o fato dter sido til na instrumentalizao da atuao poltica de certos setores que lutavama ampliao da cidadania. Veremos como tal viso se relacionava com outras, particulmente com o positivismo.

    Alm dos propagandistas civis, conservadores e radicais, outro grupo que se salientou na propaganda do novo regime foi o dos militares. Desde a metade do sculo, segundo o estudo de Schultz, havia entre os oficiais do Exrcito insatisfao quanao que consideravam limitaes de seus direitos de cidadania. Mas foi certamente naltima dcada da Monarquia que a insatisfao se tornou mais ruidosa e se expressou avs da idia do soldado-cidado. Havia neste movimento vrias inspiraes, algumas eza ideolgica, outras organizacionais, outras polticas, que no necessrio exploui.9 Basta dizer que a inspirao ideolgica mais forte foi o positivismo transmitidaos jovens oficiais por Benjamin Constant. A viso profundamente antimilitarista de Com-48

    te levava os militares a se sentirem pouco vontade dentro dos uniformes e a proc

    urar eliminar ao mximo a distncia que os separava do mundo civil atravs da reivincao da condio de plenos cidados, cidados ativos na terminologia de Pimenta Buertica, as reivindicaes centravam-se no direito de reunio e de livre manifestao io poltica. Houve mesmo um esforo eleitoral no sentido de levar ao Congresso candatos militares. No fundo, o que se queria era maior peso nas decises polticas paraa corporao militar. A relao entre cidado e soldado foi e continua sendo complicada. Na luta contro absolutismo, um ponto importante era tirar da nobreza o monoplio das armas, eradar ao cidado o direito de armar-se para a defesa de seus interesses. A Constituio americana incorporou em seu texto este direito como garantia do cidado contra

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    Estado. A Frana revolucionria, alm de abrir o Exrcito, isto , o corpo de oficiarguesia, criou tambm a Guarda Nacional, o que equivalia a entregar as armas aos cidados, a criar o cidado-soldado. A Guarda Nacional brasileira de 1831 inspirou-seno modelo francs e em parte cumpriu a misso de colocar nas mos dos cidados de ps a tarefa de manter a ordem. A milcia cidad, como era chamada, constitua sem dvum instrumento liberal e, pelo menos em sua concepo original, democratizante.10 Oproblema do Exrcito no final do Imprio era o oposto: tratava-se de criar no o cid-soldado mas o soldado-cidado. Eram os beneficirios do monoplio de portar armas, mponentes da burocracia estatal, que desejavam para si a plenitude dos direitosde cidadania. Para isso no s no renunciavam condio de integrantes do Estado, utilizavam da fora que esta condio lhes dava. Lutavam de dentro para fora, no er

    arte de um movimento da socieda49

    de. Poder-se-ia dizer que buscavam maior participao atravs do pertencimento ao Esdo, isto , no se tratava tanto de cidadania mas do que poderamos chamar de estadaa.11 - A contradio implcita nesta posio levou ao desenvolvimento de um ideologia a qual o Exrcito se identificava com o povo. Foi talvez o republicano Raul Pompiao primeiro a propor esta formulao por ocasio de um dentre os muitos atritos entre governo e o Exrcito nos ltimos anos da Monarquia. Raul Pompia descartava a possilidade de militarismo no Brasil, porque, dizia, "O Exrcito brasileiro muito povopara querer ser contra o povo e sobre o povo". E continuava: "O Exrcito plebeu e pobre, o Exrcito a democracia armada".12 Dentro do Exrcito, um dos melhores repr

    entantes dessa posio foi Lauro Sodr, republicano fantico, florianista e permanenonspirador. Para ele, os militares sempre se haviam colocado ao lado das causaspopulares e democrticas, pois eram cidados fardados: "No h no nosso passado nem nossa histria uma pgina em que se registrem vitrias da liberdade contra a prepotnna qual no figure ao lado do povo, levantado para a defesa de seus direitos, o Exrcito que o prprio povo, que a agremiao de cidados unidos pelos laos da d3 A proclamao da Repblica por militares e a instalao dos governos militares noam as convices de Raul Pompia. Pelo contrrio, passou a ver no Exrcito a nica cganizada do pas. O fato de ter sido o Exrcito que fizera a Repblica no era uma dra para o povo mas uma honra para o Exrcito, que era o povo com armas. Sua ao sermesmo prefervel diante da apatia do povo paisano.14 Tratava-se naturalmente de uma ideologia do oficia- lato republicano e dos civis que o apoiavam. Verso mais

    50

    radical desta ideologia existia entre as praas de pr. O jornal O Soldado, por exemplo, publicado no Rio em 1881, defendia o direito da classe militar de se representar perante a nao e de "tomar parte na administrao do Estado. Mas o apelo eraido aos soldados e vinculava-se reforma eleitoral de 1881, que teria privado aspraas do direito do voto. O jornal protestou dizendo que os soldados e o povo foram as "duas vtimas da usurpao e da prepotncia, e nicos espoliados de todos os ds, e que s tm deveres. Reclamando da m aceitao do jornal pelo comandante do Baal, o redator respondeu que "O soldado no um servo da gleba, um cidado, tem des a cumprir e direitos a gozar. Em carta ao imperador publicada pelo jornal, um ex-vo- luntrio da Guerra do Paraguai queixava-se com amargura e violncia: em trocados sacrifcios como voluntrio, perdera at a cidadania com a nova lei eleitoral.15

    aliana, ou mesmo identidade, entre soldado e povo, mais particularmente entre soldado e operrio, era defendida em termos mais radicais pelo jornal Revoluo. Seguneste jornal, o soldado era o obreiro da guerra, o obreiro o soldado da paz. E conclamava: "Ns, soldados e obreiros, artistas e operrios, devemos nos confundir napraa pblica bradando a uma voz: Revoluo!.16 Esta verso radical, quase sans-cullotte, propondo uma aliana real e no simblentre o soldado concreto, e no a corporao, e o povo operrio, e no o povo em absera minoritria. Mesmo assim, retrica revolucionria parte, os porta-vozes desta io eram pessoas de algum modo vinculadas ao Estado. O jornal O Soldado, embora dirigido s praas, era redigido por um alferes honorrio do Exrcito, e os operrios a

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    e refere Revoluo eram sem dvida os operrios do Estado. Vimos que o redator fora tido do servio pblico51

    e parte de sua exaltao revolucionria devia-se certamente a este fato. Os operrios do Estado merecem referncia especial. Constituam parte importanteo operariado do Rio no final do Imprio e incio da Repblica, e foram outro setor dpopulao que viu a Repblica como uma oportunidade de redefinir seu papel poltico. tava-se principalmente dos operrios dos arsenais do Exrcito e da Marinha, dos ferrovirios da Estrada de Ferro D PedroII, depois Central do Brasil, dos grficos da Imprensa Nacional, dos operrios da Ca

    sa da Moeda e de alguns setores dos porturios. Vrios dos jornais radicais no fim do Imprio tinham ligao com estes grupos. Alm de Revoluo, havia a Gazeta dos Ope75), que defendia os operrios dos arsenais; a Unio do Povo (1877), que se dizia rdo funcionrio pblico, do artista e do operrio; O Nihilista (1883), jornal dos opeos, do Exrcito e da Armada; O Artista (1883), defensor dos operrios da TipografiaNacional, da Cas$ da Moeda e dos arsenais. Logo aps a proclamao, houve tentativas de organiz-los politicamente, seja atde elementos de fora, seja de dentro da classe. A primeira tentativa deveu-se aos positivistas. Ainda em 1889, Teixeira Mendes reuniu- se com 400 operrios da Unioe discutiu um documento que entregou a seguir a Benjamin Constant, ento ministroda Guerra. As bases ideolgicas do documento, como era de esperar, sustentavam-sena noo positivista da necessidade de incorporar o proletariado sociedade. As medas prticas propostas caracterizavam uma legislao trabalhista muito avanada para

    ca. Inclua jornada de sete horas, descanso semanal, frias de 15 dias, licena remurada para tratamento de sade, aposenta52

    doria, penso para a viva, estabilidade aos sete anos de servio etc.17 Pouco depois, no incio de 1890, houve vrias tentativas de criar um Partido Operrio, j a abrangendo tambm operrios do setor privado. Estabeleceu-se uma dispute lderes operrios, como Frana e Silva, que lutava por um partido controlado pelosrprios operrios, e o tenente Jos Augusto Vinhaes, da Marinha, que organizou um paido sob sua liderana. Vinhaes tinha suas bases principais entre os ferrovirios, com incurses tambm nos arsenais e entre os porturios, onde outro oficial da MarinhaJos Carlos de Carvalho, tambm era influente. Na irnica expresso de Frana e Silvhaes colocava-se como o So Gabriel do governo, intermedirio entre Deodoro e os ope

    rrios.18 Vinhaes teve mais xito que Frana e Silva em conseguir o apoio operrio, endo-se para a Constituinte, depois transformada em primeira legislatura republicana. Na Cmara, justia se lhe faa, falou vrias vezes em defesa do operariado e dobres em geral, protestando contra a carestia, propondo aumentos salariais, criticando a ao da polcia nas gr- ves, defendendo a ampliao do voto.JDizia-se mesmista e mereceu dos adversrios a acusao de petroleiro e niilista, o equivalente aoerrorista de hoje. Por sugesto sua, o governo introduziu a primeira legislao de pteo ao trabalho do menor (1891). Organizou tambm um Banco de Operrios, moda do -Bank de Londres. Segundo ele, o banco possua 6 722 acionistas em fevereiro de 1891.19 Vinhaes esteve ainda envolvido em diversas greves de natureza poltica, comeando pela dos ferrovirios, em 1891, que ajudou a derrubar Deodoro, e terminando nados estivadores, ferrovirios e carroceiros, em 1900, planejada como parte do golpe destinado a derrubar Campos Sales. A maior conquista do Partido dos

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    Operrios que criara foi sem dvida a de ter forado o governo, atravs de ameaa de geral, a mudar o Cdigo Penal nos artigos que proibiam a greve e a coligao operrem dezembro de 1890. Vinhaes serviu de intermedirio entre os operrios e o governo. Seja qual for a avaliao de seu papel do ponto de vista dos interesses operrios,importante salientar que, como no caso dos militares, embora em escala menor, tambm aqui a tentativa de acesso a uma cidadania mais ampla se deu pelas portas oupelos porteiros do Estado. No caso da ao positivista (e quase todas as lideranas republicanas que se pre

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    upavam com o proletariado o faziam em funo da influncia comteana), as conseqncia a construo da nova cidadania foram ainda mais srias. A noo positivista de cidno inclua os direitos polticos, assim como no aceitava os partidos e a prpria acia representativa. Admitia apenas os direitos civis e sociais. Entre os ltimos,solicitava a educao primria e a proteo famlia e ao trabalhador, ambas obrig. Como vetava a ao poltica, tanto revolucionria quanto parlamentar, resultava em os direitos sociais no poderiam ser conquistados pela presso dos interessados, mas deveriam ser concedidos paternalisticamente pelos governantes. Na realidade, nesta concepo no existiam sequer os cidados ativos. Todos eram inativos, espera luminada do Estado, guiado pelas luzes do grande mestre de Montpellier e de seusporta-vozes.

    A posio de Vinhaes tinha um sentido menos castrador, j que buscava organizar ao operria atravs de partidos, de movimentos grevistas e da ao parlamentar. Mase negar que sua ao foi preventiva no sentido de retirar o movimento operrio das s de suas prprias lideranas, o que pode ser confirmado pela54

    maneira como agiu em 1890. Nesse sentido, representou o incio de uma ao cooptativdo Estado em relao classe operria, que teria amplo curso no Rio de Janeiro duraa Primeira Repblica, sobretudo no que se refere aos operrios ligados direta ou indiretamente ao setor pblico. De novo, a estadania se misturava cidadania, se no a obrepujava. Proposta diferente era a de Frana e Silva, Vicente de Souza, Evaristo de Moraes, Gustavo de Lacerda e ou* tros, que se diziam socialistas. As idias de Frana e

    Silva, expostas no Echo Popular, so as que mais se aproximam do modelo clssico deexpanso da cidadania. A Repblica, achava, viera possibilitar a extenso do direito e intervir nos negcios pblicos a todos os cidados. Os operrios, at ento vivendorasteiros no solo da ptria, vinham agora reivindicar este direito atravs de uma organizao partidria que se propunha defender seus interesses dentro das regras do stema representativo. A reivindicao era reforada pela afirmao de nova identidado operrio, segundo a qual, embora marginalizado na sociedade poltica, ele constitua o principal fator de progresso do Brasil e de todas as naes.20 Vrias tentativoram feitas nas duas primeiras dcadas republicanas de formar partidos socialistasoperrios, tanto no Rio quanto em So Paulo e outros Estados, nenhuma delas com xi. No Rio, houve em 1892 um Congresso Socialista organizado por iniciativa de Frana e Silva, com a participao de 400 operrios, do qual resultou o Partido Operrirasil. Em 1895, com a participao de Evaristo de Moraes, foi fundado um Partido Soc

    ialista Operrio. Em 1899 surgiu um Centro Socialista, e em 1902 foi criado por Gustavo de Lacerda e Vicente de Souza o Partido Socialista Coletivista. Finalmente, em 1908, estivadores e cocheiros fundaram o Partido Operrio Socia55

    lista, em que de novo se verificou a presena de Evaristo de Moraes. As propostasde todas estas organizaes eram as do socialismo democrtico, isto , lutar por maiarticipao e conseguir reformas, especialmente sociais, atravs do mecanismo represtativo. Nenhuma delas teve longa vida, muitas no chegaram a completar um ano.21 A rigidez do sistema republicano, sua resistncia em permitir a ampliao da cidania, mesmo dentro da lgica liberal, fez com que o encanto inicial com a Repblicarapidamente se esvasse e desse origem decepo e ao desnimo. O desencanto fica trente no Manifesto do Centro Socialista aos Operrios e Proletrios, lanado em 9 de

    aneiro de 1899 no Rio de Janeiro. A se afirma que, se o Imprio vivera sob o monopo dos donos de escravos, a Repblica "vai vivendo custa dos mais repugnantes sindicatos polticos e industriais, geradores de uma perigosa oligarquia plutocrtica toerniciosa como a oligarquia aristocrtica". Em conseqncia, prossegue o Manifesto, Brasil se acha na mesma condio da Europa, onde os vcios do capitalismo s deixam perrio a opo entre o socialismo reformador e o anarquismo revolucionrio. Na verdos socialistas brasileiros viram-se logo entre estes dois fogos: de um lado, osque defendiam a cooperao direta com o governo, a estadania; de outro, e cada vezmais, os anarquistas, que rejeitavam totalmente o sistema poltico. A partir do incio do sculo, a corrente anarquista ganhou crescente influncia. Ela trazia um conce

  • 5/28/2018 Os Bestializados

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    ito radicalmente diferente de cidadania. Por ter influenciado um setor da populaoque exatamente buscava insero no novo sistema, merece exame mais detido. O primeiro jornal anarquista do Rio parece ter sido O Despertar, de Jos Sarmento, publicado em 1898. Em linguagem cheia de espanholismos, denunciadora da56

    origem do articulista, o jornal revela individualismo espontanesmo extremados, rejeitando at mesmo a organizao da propaganda. Defende como nica arma operria a gvisando a greve geral que abolir o Estado. A seguir, vieram O Protesto (1899), OGolpe (1900), a revista Asgarda (1902), O Trabalhador, A Greve (1903), a revistaKultur (1904), O Libertrio (1904), de Neno Vasco, portugus e talvez o mais culto

    dos anarquistas na poca. exceo do ltimo, todos estes jornais e revistas foram os por Elysio de Carvalho e Mota Assuno, incansveis doutrinadores anarquistas.22 Apartir de 1903, com a criao da Federao de Associaes de Classe e, especialmenteongresso Operrio de 1906 e a subseqente criao da Federao Operria do Rio de Jaentou a penetrao do anarquismo entre os operrios. Surgiram vrias publicaes anavinculadas a organizaes de classe. Alguns exemplos so Accordem (1905), da Sociede de Carpinteiros e Artes Correlatas; Novo Rumo (1906), de Alfredo Vasques; O Baluarte (1907), da Associao dos Chapeleiros, cujo secretrio era Jos Sarmento; O Mrista (1907), e principalmente A Voz do Trabalhador (1908), rgo da Confederao OpBrasileira, para ficar s no Rio de Janeiro. Embora todos se dissessem anarquistas ou libertrios, havia algumas nuanas importantes entre eles. Elysio de Carvalho distinguia j em 1904 duas correntes principais: os anarquistas comunistas e os anarquistas individualistas. O primeiro gru

    po, de longe o mais numeroso, segundo Elysio, seguia Kropotkine, Rclus, Malatesta, Hamon, e contava entre seus membros Neno Vasco, Ben- jamin Mota, Fbio Luz e, estranhamente, Evaristo de Moraes. Eram pela revoluo social, pela abolio da proprie privada e do Estado, mas admitiam o sindicalismo como arma de luta. O segundogrupo seguia a linha57

    de Max Stirner, de um exacerbado individualismo. Tambm pregava a abolio do Estadoporm era contra toda forma de organizao que no fosse espontnea e queria a manutropriedade privada aps a revoluo.23 A primeira corrente continuou a predominar nos anos seguintes. Apesar das diferenas, no que se refere posio em relao autoridade e ao Estado, no havia ggncia entre os libertrios. Todos repudiavam qualquer tipo de autoridade, especialm

    ente a estatal. Da tambm uma averso profunda luta poltica atravs de partidos Neste ponto eram inimigos irreconciliveis dos socialistas. Os velhos lderes socialistas do incio da Repblica, como Frana e Silva, Vicente de Souza e mesmo o jovem Earisto de Moraes, tornaram-se objeto de ferrenhas crticas. J em 1898, por exemplo,Benjamin Mota polemizava com Frana e Silva, denunciando o carter utpico e autorio da luta partidria, e afirmava: "[...] no terreno da luta eleitoral socialistasautoritrios e socialistas libertrios so inimigos irreconciliveis"24 Em 1906, por ocasio do Congresso Operrio Regional Brasileiro, deu-se o enfrentamento entre anarquistas e socialistas. A tendncia da maioria ficou clara quandoPinto Machado, comentando moo de apoio aos operrios russos, reafirmou sua posio cialista poltico porque, segundo ele, no Brasil no havia a misria que caracterizaa Rssia. Houve enorme reao