original_israel_coelhod tensao entre judeus e cristaos portugal seculo xv

Upload: nely-feitoza

Post on 06-Oct-2015

21 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Texto Judeus e cristaos

TRANSCRIPT

  • Universidade Federal de Gois Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia

    Programa de Ps-graduao em Histria

    TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SCULO XV

    Israel Coelho de Sousa Orientadora: Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos

    Goinia 2007

  • 1

    Israel Coelho de Sousa

    TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SCULO XV

    Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Histria, da Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Gois, para a obteno do grau de Mestre em Histria. rea de concentrao: Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de Pesquisa: Histria, Memria e Imaginrios Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos (UFG).

    Goinia 2007

  • 2

    Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (GPT/BC/UFG)

    Sousa, Israel Coelho de . M S725t Tenses e interaes entre judeus e cristos em Portugal no final do sculo XV / Israel Coelho de Sousa. Goinia, 2007.

    137f. : il., figs.

    Orientadora: Dulce Oliveira Amarantes dos Santos.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Gois, Faculdade de Cincias Humanas e Filoso- fia, 2007.

    Bibliografia: f.132-137. Inclui lista de figuras e de abreviaturas.

    1. Judeus Historia Portugal Sc.XV 2. Ju- deus Identidade Sc.XV 3. Antisemitismo 4. Por- tugal Comunidades judaicas Sc.XV I. Santos, Dulce Oliveira Amarantes dos II. Universidade Fede- ral de Gois, Faculdade de Cincias Humanas e Fi-

    losofia III. Titulo.

    CDU: 94(469)(=411.16)14

  • 3

    Israel Coelho de Sousa

    TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS EM PORTUGAL NO FINAL DO SCULO XV

    Dissertao defendida no Curso de Mestrado em Histria da Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Gois, aprovada em ____ de ___________ de 2007, pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes professores:

    _____________________________________________

    Profa. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos (UFG) (Orientadora)

    _____________________________________________

    Profa. Dr. Sergio Alberto Feldman (UFES)

    _____________________________________________

    Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonalves (UFG)

    ______________________________________________

    Prof. Dr. No Freire Sandes (UFG) (Suplente)

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Ao meu Senhor Jesus Cristo,

    por ter me proporcionado a realizao deste sonho que em certos momentos pensava que no se realizaria, mas com sua infinita misericrdia e graa, Ele interveio, e o que antes era promessa,

    agora realidade. Toda honra e toda glria seja dada a Ele.

    Aos meus pais, Lusia Coelho dos Santos e Eurpedes Bomtempo Sousa,

    sempre me incentivaram e apoiaram na minha opo pela carreira profissional de historiador. Proporcionaram-me todos os meios para que eu pudesse estar focado somente nos estudos, e esta

    dissertao ofereo-lhes como recompensa pela dedicao, carinho, amor e empenho com que me educaram e se esforaram para que eu pudesse alcanar esse patamar. Eu concluo esta

    dissertao, mas o ttulo de mestre do senhor e da senhora.

    A minha professora e orientadora Dulce,

    que desde a graduao vem me orientando em minha pesquisa, dando todo o apoio necessrio para que ela se transformao nessa dissertao. Agradeo a insistncia e a pacincia com que

    teve comigo nas minhas teimosias e divagaes, nas quais quase me tornei um judaizante. Agradeo a honra e o prazer por ser seu orientando.

    A professora Ana Teresa Marques Gonalves,

    a qual desde a defesa da monografia vem fazendo a leitura crtica da minha pesquisa e fornecendo contribuies muito significativas para que este trabalho tivesse o formato que tem

    hoje. Muito obrigado e foi um grande prazer.

    Ao professor No Freire Sandes,

    pessoa a qual estimo muito e tenho uma particular admirao dentro do quadro profissional que a Faculdade de Histria da UFG possui. O professor no s contribuiu com minha dissertao na

    leitura crtica, mas tambm pelas discusses ao longo das aulas de Histria do Brasil na graduao. Foi um prazer e uma honra t-lo como professor.

  • 5

    Ao professor Sergio Alberto Feldman,

    por ter me dado o aporte necessrio para a minha pesquisa, prontamente me ajudou com uma receptividade cativante. uma honra e um grande prazer t-lo como argidor do meu trabalho.

    Aos professores Armnia Maria de Souza, Cristiano, Eugnio Resende de Carvalho, Nei Clara de Lima, Joana Aparecida Fernandes Silva, Isa Paniago, Dalva Dias, Fernanda Costa, Leandro

    Mendes Rocha, Luis Srgio Duarte da Silva, Heliane Prudente, Adriana Dias, Marlon Salomon, Barsanufo Gomides, Libertad Borges Bittencourt, Joo Alberto da Costa Pinto, Cristina,

    Cristiane Portela, lio Cantalcio e Oiti Berbet,

    tenho admirao por todos e reconheo aqui a contribuio que cada um tem na minha formao profissional. Meu sincero e grato agradecimento a todos estes mestres e doutores.

    minha namorada rika Maria Jaques,

    mesmo que tenha pouco tempo que nos encontramos tenho um grande carinho e sentimento por voc. Amor, voc nica e tenha certeza de que tem me proporcionado grande felicidade por t-

    la conhecido e ter o grande prazer de ser seu namorado, que Deus possa perpetuar esse amor.

    Suzie e Sonia,

    por compartilharmos bons momentos juntos, cada uma possui minha admirao por ter me proporcionado felicidade de ter sido companheiro mesmo que por um breve momento. Muito

    obrigado pelo carinho e pelo grande sentimento que vocs possuem por mim.

    minha amiga Giovanna Schitinni,

    pela amizade e pelo grande favor que me prestou na sua viajem Portugal, dedicando-se a me ajudar na busca de documentos. Muito obrigado pela sua dedicao e apoio.

    Aos meus amigos Marcello Carrijo, Rodrigo Freitas e suas famlias,

    por me ajudarem na formatao da dissertao e tambm pela amizade que tem sido mpar neste mais de dez anos que nos conhecemos.

    Aos meus amigos Werley e Vanessa, Cinara, Junior, Adilson, Weder, Ana Paula, Alan e Cristiane, Carlindo, Nilton, Fbio, Luziano, Aline, Priscila, Camilla, Mateus e Talita,

    pelo apoio moral e oraes em prol da iniciao e concluso do meu mestrado. A amizade de vocs singular e ficar registrada nestas pginas como prova da importncia que todos possuem

    na minha caminhada por este mundo.

  • 6

    Aos amigos da graduao Elby, Rodrigo, Leandro Francisco, Alfredo, Lorena Costa, Fernando, Leonardo Silva, Cibele,Vanessa Uchoa, Lorena Burjack, Luana Neres, Aline, Isis e Daiene,

    pela amizade e companheirismo que se estende alm da graduao.

    Ao CNPq,

    pelos 24 meses de bolsa que foram de suma importncia para que esta pesquisa viesse a ser concretizada.

  • 7

    Judo es dicho aquel que cree e tiene la ley de Moysn segunt que suena la letra della, e que se circuncida e faze las otras cosas que manda esa su ley. E tom este nombre Del tibu de Jud [...] e la razn por que la eglesia e los emperadores e los reyes e los outros prncipes sufrieron a los judos vivir entre los cristianos es esta: porque ellos vivisen como em cautiveiro para

    siempre e fuese remembrana a los homes que ellos vienen Del linage de aquellos que crucificarona nuestro seor Iesuscristo.

    Siete Partidas

  • 8

    RESUMO

    Esta dissertao tem por objetivo analisar os motivos que levaram o monarca portugus D. Manuel I outorgar em 1497 o dito de expulso dos judeus de Portugal. A comunidade judaica portuguesa esteve intrinsecamente ligada ao desenvolvimento e centralizao do Estado portugus. A sua prosperidade econmica e o seu destaque na rea das cincias (astronomia, nutica e fsica) tiveram uma contribuio significativa na estabilidade econmica de Portugal e em sua empreitada na descoberta de novas rotas de comrcio. Mesmo segregada em judiarias, esta minoria se relacionava com a populao crist portuguesa e mantinha a coeso das caractersticas identitrias do seu grupo. A segregao aumentou ainda mais o sentimento antisemita que a populao portuguesa possua, e a migrao dos judeus espanhis em 1492 contribuiu para o fervilhamento das tenses entre judeus e cristos. Fatores de ordem poltica, econmica e social influenciaram na deciso de D. Manuel I em expulsar os judeus, tanto interna como externamente. Nesse sentido, o dito, ao ser executado, acrescentou o carter religioso ao poltico.

    Palavras-chaves: judiarias portuguesas, antisemitismo, identidade judaica, Baixa Idade Mdia.

  • 9

    ABSTRACT

    This dissertation has for objective to analyze the reasons that took the Portuguese monarch D. Manuel I to grant in 1497 the Edict of expulsion of the Jews from Portugal. The Portuguese Jewish community was linked intimate to the development and centralization of the Portuguese State. Their economical prosperity and their prominence in the area of the sciences (astronomy, seamanship and physics) had a significant contribution to economical stability of Portugal and in his taskwork in the discovery of new routes of trade. Inspate at the segregation in the jewish quarter, this minority linked with the Portuguese Christian population and they maintained the cohesion of the characteristics of identity of your group. The segregation still increased more the antisemitic feeling that the Portuguese population possessed, and the migration of the Spanish Jews in 1492 contributed to the to boil of the tensions between Jews and Christians. Factors of order political, economical and social influenced in the decision of D. Manuel I in expelling the Jews, so much internal as external. In that sense, the Edict, when executed, increased the religious character to the politician.

    Word-keys: jewish quarter portuguese, antisemitic, identity Jewish, Late Midlle Age.

  • 10

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1: Judiaria Grande de Lisboa.............................................................................................29

    Figura 2: Comunas judaicas em Portugal.....................................................................................32

  • 11

    LISTA DE ABREVIATURAS

    A.N.T.T. - Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A.D.B. - Arquivo Distrital de Braga. C.T.I. - Consolaam s Tribulaoens de Israel de Samuel Usque. E.G.E.J.A.C. Edicto General de Expulsin de los Judos de Aragon y Castilla. E.E.J.P. dito de Expulso dos Judeus de Portugal. G.H.C.P.- Gabinete de Histria da Cidade do Porto. G.R.R. - Do Governo da repblica pelo rei de Diogo Lopes Rebelo. H.C.M.L. - Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Lisboa. Orden. Afons. - Ordenaes Afonsinas.

  • 12

    SUMRIO

    Resumo ....................................................................................................................................... 8 Abstract....................................................................................................................................... 9 Lista de Figuras ...................................................................................................................... ..10 Lista de Abreviaturas.................................................................................................................11

    INTRODUO........................................................................................................................ 13

    Captulo 1 - O ESPAO SEGREGADO: AS JUDIARIAS PORTUGUESAS URBANAS NO FINAL DO SCULO XV ................................................................................................. 17 1.1 Busca de um espao ........................................................................................................ 18 1.2 O espao arquitetnico.................................................................................................... 26 1.3 Regimento interno nas judiarias...................................................................................... 36 1.4 Elementos da identidade judaica portuguesa....................................................................39

    Captulo 2 - TENSES E INTERAES ENTRE JUDEUS E CRISTOS NAS CIDADES MEDIEVAIS PORTUGUESAS NO FINAL DO SCULO XV..............................................54 2.1 Imagens sobre os judeus portugueses ............................................................................. 55 2.2 Condutas antisemitas crists ........................................................................................... 68 2.3 Relaes de gnero.......................................................................................................... 77 2.4 Os judeus na corte portuguesa ........................................................................................ 81

    Captulo 3 - AS POLTICAS JOANINAS E MANOELINAS E O IMPACTO SOCIAL EM PORTUGAL DO DITO DE EXPULSO DOS JUDEUS EM 1497............................. 87 3.1 Antecedentes polticos ao dito de Expulso ................................................................. 88 3.2 Judeus castelhanos: intensificao das tenses em Portugal........................................... 94 3.3 Vozes da expulso......................................................................................................... 108 3.3.1 De Republica Governanda per Regem por Diogo Lopes Rebelo.................................110 3.3.2 Consolaam s Tribulaoens de Israel por Samuel Usque ..........................................116

  • 13

    3.3.2.1 Quando entraram os judeus de Castela em Portugal .................................................116 3.3.2.2 Quando mandaram os meninos aos lagartos .............................................................117 3.3.2.3 Quando os fizeram cristos por fora.........................................................................118 3.4 Expulso?.........................................................................................................................120

    CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................126

    FONTES IMPRESSAS............................................................................................................129

    FONTE MANUSCRITA..........................................................................................................131

    REFERNCIAS.......................................................................................................................132

  • 14

    INTRODUO

    Este trabalho teve incio ainda na graduao, quando realizamos o projeto de pesquisa

    para a monografia de concluso do curso de Histria, intitulada A Questo Judaica em Portugal

    no Sculo XV, tendo como orientadora a Prof. Dra. Dulce Oliveira Amarante dos Santos. Desde

    o terceiro ano de graduao, em 2003, quando optamos pela problemtica que envolveu a

    expulso da comunidade judaica de Portugal em 1497, tivemos o apoio da professora Dulce, que

    nos auxiliou a burilar a pesquisa para que resultasse no trabalho monogrfico para obteno do

    ttulo de graduado em Histria. Neste perodo, fizemos um levantamento bibliogrfico que nos

    permitiu trabalhar com o tema, tendo como documento principal de nossa pesquisa o dito de

    Expulso dos Judeus de Portugal, publicado em 1496. Duas cpias manuscritas nos foram

    cedidas, uma enviada pela Prof. Dra. Manuela Mendona, da Universidade de Lisboa, e outra

    cedida, depois de certa insistncia, pelo ANTT (Arquivo Nacional da Torre de Tombo) em

    Portugal.

    Ao ingressarmos no programa de mestrado, no ano de 2005, tivemos a oportunidade

    de ser bolsista do CNPq e continuamos com o mesmo tema trabalhado na monografia, agora com

    maior abrangncia no debate, na bibliografia e nas fontes. E neste ltimo quesito, desde a

    monografia encontramos grande dificuldade para realizar a anlise histrica. Fontes que foram

    sempre obstculos para pesquisadores de Histria Medieval e Antiga no deixaram de ser um

    entrave na tessitura desta dissertao. Uma documentao mais densa, que permite uma anlise

    mais rica sobre o tema, somente se tem acesso em Portugal, fazendo com que a pesquisa tenha

  • 15

    um certo grau de dificuldade se o pesquisador no tem como se deslocar at aquele pas para

    reunir as fontes necessrias para tal trabalho.

    Compem nossas fontes, alm do dito de Expulso, as Ordenaes Afonsinas, uma

    coletnea de leis promulgadas no reinado de D. Afonso V, em 1446, sendo considerada a

    primeira compilao do sculo XV. As Ordenaes esto divididas em cinco livros, mas nos

    deteremos somente no livro II, que contm uma legislao especial para judeus e mouros. As

    Ordenaes Afonsinas constituem, assim, uma rica fonte de conhecimento para a compreenso

    do direito em relao aos judeus nos reinados anteriores a sua publicao, que s foram

    substitudas no reinado de D. Manuel I (1495-1521), com as Ordenaes Manuelinas.

    Utilizamos tambm a obra de Samuel Usque, Consolaam s Tribulaoens de Israel,

    publicada em 1553, composta de trs dilogos que tratam de momentos cruciais do sofrimento

    dos israelitas desde o tempo antigo at o final da Idade Mdia. A inteno de Usque era consolar

    a comunidade judaica que retornava ao judasmo, procurando instig-la a se fortalecer no amor a

    sua religio-me, retomando o seu passado e a crena na providncia divina. Para a presente

    pesquisa, utilizaremos apenas o terceiro dilogo, que trata do relato dos momentos de crise

    vividos pela comunidade judaica de Portugal no final do sculo XV.

    Outra fonte utilizada neste trabalho foi a obra de Diogo Lopes Rebelo, De Governo

    Republica Gubernanda per Regem, publicada em 1496, composta de catorze captulos, a qual

    configura um tratado com um discurso legitimador do modelo de um novo monarca por meio de

    um cdigo de moral poltica, ou seja, destinado unicamente a D. Manuel I, que acabara de

    assumir o trono, em 1495, aps a morte de D. Joo II. Nessa obra, nos limitaremos anlise do

    dcimo primeiro captulo, intitulado leis e suas condies, que o rei deve impor aos sbditos do

    seu reino, que alm de tratar de uma articulao entre os poderes do rei e do Papa, prope

    conselhos ao monarca com relao situao da comunidade judaica no Reino portugus.

  • 16

    Por ltimo, foram utilizadas tambm fontes publicadas em duas obras de Humberto

    Baquero Moreno: Exilados, Marginais e Contestatrios na Sociedade Portuguesa Medieval; e

    Marginalidade e Conflitos Sociais em Portugal nos Sculos XIV e XV. Nessas obras, encontram-

    se documentos das Chancelarias de D. Duarte, D. Afonso V e D. Joo II, do Arquivo Nacional da

    Torre do Tombo, do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Lisboa, do Gabinete de Histria

    da Cidade do Porto e do Arquivo Distrital de Braga.

    Os conceitos escolhidos - segregao, antisemitismo, minoria, esteretipo e identidade

    judaica - so primordiais na anlise desta comunidade judaica de Portugal. Para isso, foi

    necessrio o dilogo interdisciplinar com historiadores, antroplogos e socilogos. A partir desta

    etapa, pretendemos analisar a atitude de D. Manuel em relao ao dito de Expulso dos Judeus

    de Portugal, procurando mostrar a importncia que essa comunidade teve nos sculos de

    convivncia com os cristos portugueses, contribuindo, de forma significativa, para a construo

    do Estado moderno que Portugal se tornou no fim da Idade Mdia.

    Para este percurso, a presente pesquisa divide-se em trs captulos. No primeiro,

    intitulado O espao segregado: as comunas judaicas urbanas no final do sculo XV,

    procuramos analisar o estabelecimento da comunidade judaica em Portugal , onde enfrentou

    diversos obstculos decorrentes do estigmas que a sua identidade carregava por causa de seus

    antepassados, o que levou-os a serem segregados em judiarias urbanas, nas principais cidades

    portuguesas.

    No segundo captulo, intitulado Tenses e interaes entre judeus e cristos nas

    cidades medievais portuguesas no final do sculo XV, mostramos como eram concebidas as

    imagens dos judeus pelos cristos portugueses, e como essas imagens carregadas de negatividade

    e preconceito alimentavam o sentimento de antisemitismo da populao crist portuguesa,

    gerando tenses com a comunidade judaica. Este sentimento provocou tambm a preocupao,

  • 17

    por parte da monarquia portuguesa, de promover a separao entre judeus e cristos, com uma

    apreenso a respeito de se proibir, principalmente, o contato de homens judeus com mulheres

    crists. Mas a interao entre judeus e cristos era inevitvel, tanto que sua presena se fazia at

    nas cortes, o que incomodava a populao portuguesa e alimentava ainda mais o dio para com

    essa minoria.

    O terceiro e ltimo captulo, As polticas joaninas e manuelinas e impacto social em

    Portugal do dito de Expulso dos Judeus em 1497, trata do cenrio poltico que se formou no

    final do sculo XV e levou outorgao do referido. A entrada dos judeus espanhis no Reino

    portugus, em 1492, foi um fator preponderante para este ultimato comunidade judaica de

    Portugal. Diante deste fato, analisamos dois autores, um a favor da expulso - Diogo Lopes

    Rebelo, conselheiro de D. Manuel - e outro contra - Samuel Usque, judeu que foi expulso junto

    com seus correligionrios portugueses. Encerramos o captulo fazendo uma anlise do contexto

    poltico e dos desafios enfrentados por D. Manuel ao expulsar a comunidade judaica.

  • 18

    CAPTULO 1

    O ESPAO SEGREGADO: AS JUDIARIAS PORTUGUESAS URBANAS

    NO FINAL DO SCULO XV

    Porque, se fora o que ns esperamos,

    levar os Judeus, povo de Israel,

    terra que mana leite e mel,

    que nossa herana, que de Deus herdamos. Gil Vicente

    Neste captulo ser abordada a segregao espacial e as contingncias que a

    comunidade judaica portuguesa sofreu no territrio lusitano. A destruio de Jerusalm, em 70

    d.C. (perodo que foi denominado de Dispora Judaica), por Tito, filho do imperador romano

    Vespasiano, fez com que um grande contingente de judeus buscasse a sobrevivncia em outros

    territrios. Entretanto, diante de algumas pr-noes, como o estigma do deicdio, os judeus

    enfrentaram muitas barreiras para se fixar em regies onde o cristianismo foi adotado. Esta foi

    uma das marcas que ficaram expressas sobre a identidade judaica portuguesa, qual se agrega

    ainda a de usurrios e de agentes do diabo. No territrio que constituiria Portugal, os primeiros

    vestgios da presena de judeus datam do sculo VI d.C. Como em muitas outras regies onde

    habitaram, a caracterstica marcante no territrio luso foi a sua segregao. O seu espao foi

    circunscrito a um lcus denominado de judiaria. Esta conduta de separao que foi pela

    primeira vez adotada por D. Pedro I (1357-1367), norteou o tratamento e a convivncia que os

    judeus teriam com a populao portuguesa.

  • 19

    1.1 Busca de um espao

    O vestgio mais antigo que se tem da presena judaica na Pennsula Ibrica data do

    sculo III d. C. Neste perodo, as leis romanas sancionavam represses ao culto e aos direitos dos

    judeus, e tambm punia um tipo de atitude a qual no se repetir na vivncia desta comunidade

    na Pennsula, a violncia contra os cristos. Mesmo as invases visigticas tendo colocado estas

    referidas leis em desuso, as perseguies contra os cristos continuavam. Prova disto que em

    seu reinado o rei Alarico (395-415) absteve-se de punir os judeus praticantes de violncias contra

    os cristos. Entretanto, assim como existiam leis amparando os cristos, havia tambm

    ordenaes que protegiam os judeus, pois as perseguies aos judeus eram da mesma proporo

    das que eles realizavam contra os cristos. (PERES, 1929-1931)

    Aps a converso do rei visigodo Recaredo (586-601) ao catolicismo, a situao dos

    judeus na Pennsula Ibrica tomou novo rumo nas suas relaes tanto no plano vertical como

    horizontal. A atitude do rei ao iniciar uma perseguio a esta minoria legitima a iniciativa da

    populao crist de perseguir e cometer violncia contra eles, apesar de isso no ser uma

    prerrogativa para que os cristos perseguissem a comunidade judaica, j que ao longo do sculo

    XV perceber-se que, com amparo ou no da legislao rgia, os cristos cometeram atos de

    atrocidade, como o assalto judiaria de Lisboa, em 1449.

    Com o surgimento do Estado portugus no sculo XII, os primeiros reis manifestaram

    polticas de proteo populao judaica. Ao longo dos cincos primeiros governos, pode se

    constatar uma proteo efetiva. Os judeus, protegidos por ordenaes reais, possuram at

    considerveis privilgios. No governo de Sancho II (1223-1248) eles ocuparam cargos oficiais

    devido a suas habilidades em finanas; D. Diniz (1279-1325) cumpriu acordos com judeus de

    Bragana por causa da alta taxao de impostos cobrados; j D. Afonso IV (1325-1357)

  • 20

    corroborou, em 1335, a lei que obrigava os judeus a usarem um distintivo; D. Pedro I (1357-

    1367) imps severas penas usura, mas os judeus continuaram acumulando fortunas; com D.

    Fernando (1367-1383), ocorreu um perodo de muita conturbao para com a comunidade

    judaica, mas a situao se alterou quando D. Joo, Mestre de Avis, foi proclamado rei em 1385.

    A partir deste ano, houve um perodo de bonana para os judeus. (TAVARES, 1979)

    A comunidade judaica viveu durante sculos numa condio nmade. A fixao em

    algum espao ou em uma regio sempre foi causa de constantes turbulncias para a comunidade

    do local onde ela se estabelecia. A presena de um povo diferente e de costumes anticristos em

    suas terras no era bem vista numa sociedade medieval ocidental como a de Portugal, permeada

    de pr-noes que estabeleciam as relaes entre o natural e o estrangeiro e que, sobretudo, tinha

    como princpio bsico de orientao prtica de vida os ensinamentos de Cristo, que eram

    rigorosamente repassados para a sociedade atravs da doutrina da Igreja Catlica. Portanto, uma

    comunidade que negava e at mesmo subvertia os princpios cristos no poderia encontrar um

    local seguro o bastante para se fixar e constituir razes que permitissem sua estadia por longos

    anos. Mesmo assim, o territrio portugus representou um possvel local de seguridade.

    Poderiam at permanecer no s por anos, mas por dcadas e centenas de anos. Entretanto, a

    vivncia no foi de todo pacfica e harmoniosa. A perseguio, a intransigncia e a segregao

    foram caractersticas inerentes a sua condio de uma comunidade minoritria que, por onde

    passava, sofria por seu passado que seus perseguidores no permitiam que fosse esquecido, ou

    seja, o deicdio (acusao de terem sido os assassinos de Cristo).

    Segundo Jacques Le Goff (1988, p. 54), o estrangeiro, durante muito tempo,

    recebido, antes, com interesse, curiosidade e honra, do que como objeto de repulsa e desprezo.

    Esta assertiva poderia valer para todos os estrangeiros que transitavam na Idade Mdia por

    territrios desconhecidos. Entretanto, para dois tipos de estrangeiros em particular, o mulumano

  • 21

    e o judeu, esta afirmao no se enquadra. Os judeus, ao tentarem fixar-se na regio da Pennsula

    Ibrica, encontraram grandes dificuldades. A averso aos judeus era alimentada por velhos

    estigmas que os acompanhavam por onde quer que fossem. O tratamento dado a esta

    comunidade se diferenciava dos demais por causa da marca da infmia que a eles era imputada.

    O judeu no era s estrangeiro, era um estranho que no era bem vindo na grande maioria nos

    lugares dos quais tentava se refugiar. Mas este estrangeiro possua uma peculiaridade em relao

    a todos os outros, ele era um estrangeiro sem ptria, um povo sem territrio; vagava em busca da

    realizao do sonho de um dia ser uma nao com territrio.

    Terra e judeu, durante sculos estes dois termos foram antagnicos e a sua relao era

    baseada na instabilidade. Era desejo deste povo estabelecer-se em uma determinada regio que

    pudesse ser considerada sua posse para a criao de um Estado prprio. Por isso, a permanncia

    da comunidade judaica por quase dez sculos em um mesmo territrio, com um relativo clima de

    boa convivncia com a populao portuguesa e seus reis, pode ter causado nos judeus um certo

    conformismo com a situao de povo sem ptria. A expulso, em 1497, funcionou, ento, como

    um mecanismo de ativao da memria judaica para que o projeto de nao no fosse esquecido.

    A constante desarmonia no se d entre o judeu e a terra, que uma estrutura sem a

    voz e a fora necessria para que possa extinguir com o sonho desta comunidade de se tornar

    uma nao, mas entre aquele que habita nela, que seu dono, o natural (o portugus), o que

    nasceu ali e se fez senhor por excelncia. Este sim foi o impulsionador do motor que sustentou as

    intransigncias para com a comunidade judaica portuguesa. Mas se a disputa pela terra motor,

    o combustvel necessrio para alimentar esta disputa denomina-se preconceito. O

    desconhecimento total ou at parcial do outro, daquele com quem no se tem nenhuma forma

    de compartilhamento apriorstico ou no, em outros casos, pode advir de algum fator

  • 22

    antecedente, mas que possa agir negativamente contra este outro que passa a se instalar em um

    territrio estranho. (LE GOFF, 1988)

    Quando se fala em judeu em relao a terra ou a um espao fsico, no caso as cidades

    medievais, percebe-se como foram bastante marcadas e substancialmente circunscritas a relao

    de xenofobia e a espacializao implementadas para que se pudesse estabelecer uma convivncia

    possvel entre os judeus e os cristos. O espao da cidade medieval era diametralmente

    demarcado para esta minoria. A cidade abriga os que lhe so comuns, aqueles que,

    figurativamente, possuem um papel tangencial no que se diz respeito vivncia diria prtica de

    um determinado local onde vivem, ou seja, os naturais da regio e que possuem a mesma crena,

    que compartilham dos mesmos valores morais e cvicos (LE GOFF, 1988). A cidade funciona,

    ento, como o espao da intransigncia, no permitindo, por meio de seus habitantes (no caso os

    portugueses cristos), que aqueles que no se ajustam tanto s leis institucionais como quelas

    que tm sua vigncia dada pelo povo, ou seja, o cdigo da vivncia prtica cotidiana, constituam-

    se enquanto parte integrante do organismo urbano.

    Ao introduzirmos esta idia de organicismo percebemos o quanto de suma

    importncia atentarmos para a anlise de uma sociedade que se mostra, apesar de no assumir

    este discurso, como um organismo vivo que repele toda e qualquer manifestao estranha que

    suas funes organicistas no identifiquem como compatvel ou aceitvel dentro de si. As

    funes particulares dos rgos deste ser vivo esto aguadas para a compartimentaao da

    vigilncia interna e externa de algum corpo estranho que queira adentr-lo sem sua aceitao

    natural. Os rgos coadunam com o ser para uma verificao e expulso dos corpos estranhos;

    entretanto, muitas vezes, como ocorreu em varias localidades da Europa medieval, os corpos

    estranhos so aceitos pelo prprio ser, ou seja, aqui se encontra um paradoxo nevrlgico em

    termos de concatenao com o corpo humano: o medo do contato com os judeus est na

  • 23

    fronteira da concepo de um corpo comum (SENNETT,1999, p.183). O que dentro da

    fisiologia humana no seria concebvel, nas relaes humanas perfeitamente detectvel e tido

    como normal, no que diz respeito aos interesses colocados nos momentos em que o interesse do

    governante no tangencia com os da comunidade em geral ou de alguns setores dela. Muitos

    reinados foram complacentes com a entrada e a permanncia dos judeus em seus domnios,

    fazendo assim, com que se atiassem as terminaes nervosas de alguns rgos insatisfeitos com

    a deciso de seu dono.

    A cidade o corpo; a populao, os rgos e o rei ou governante, como o dono

    deste corpo, so as estruturas integrantes de um quadro composto por uma miscelnea muito

    mais abrangente e complexa do que a estrutura fisiolgica humana. O corpo humano no permite

    que haja algumas variaes dentro da estrutura esquemtica de seu funcionamento que

    contrariem a prpria ordem natural das coisas. Entretanto, a cidade no um corpo que se possa

    enquadrar dentro de leis organicistas que regem o funcionamento dos rgos do corpo humano.

    Ela um corpo que est submetido a intempries s quais um ser comum no saberia responder

    com tamanha eficcia, como o caso do preconceito e da segregao (SENNETT,1999). A

    cidade que inicialmente fora criada para abrigar os pares, ao longo dos sculos, e isto no

    acontece somente com relao aos judeus, mas o seu caso o mais emblemtico, foi se tornando

    o abrigo dos refugiados e dos excludos. Aqueles que no eram aceitos em determinada cidade

    ou regio migravam em direo a outra regio em busca de seu porto seguro. Nessas novas

    funcionalidades que as cidades foram adquirindo, principalmente na Idade Mdia, seus dirigentes

    foram obrigados a assimilar a nova formatao que o meio urbano ganhou ao longo do medievo.

    Com o renascimento urbano e comercial, no final da Idade Mdia, algumas cidades se

    tornaram verdadeiros mosaicos populacionais, devido s novas conotaes que lhes vinham

    sendo atribudas com o advento do capitalismo. Npoles, Veneza, Gnova, Marselha, Londres,

  • 24

    Tiro, Trpoli, Bagd, Lisboa, Barcelona, Anvers, Bruges, Lbeck, Frankfkurt, Riga, Kiev,

    Estocolmo, Bergen, Hamburgo, entre outras, passaram a assumir o papel de entroncamento das

    rotas comerciais. Algumas regies medievais portuguesas (Entre Douro, Minho, Beja e Alentejo)

    renasceram devido ao surgimento das feiras medievais. Constata-se, no final do sculo XIV e ao

    longo do sculo XV, a formao de vrias feiras em algumas cidades portuguesas. No reinado de

    D. Joo I, elas surgiram em: Castelo Branco, Sert, Amarante, Viseu, Fonte Arcada, Feira,

    Barcelos, Salzedas, Batalha, Lanhoso, Pena, Tomar, Montemor-O-Velho, Prado, Caria e Ladario;

    no reinado de D. Duarte: Penela, Salvaterra de Magos e Tarouca; e no reinado de D. Afonso V:

    Alccer, Almendra, Pombal, Sintra, Estremoz, Pedra Danta e Valdevez. As feiras tiveram papel

    primordial no desenvolvimento do comrcio interno e no renascimento urbano dando uma nova

    projeo para as cidades. Quando no era o mouro era o judeu que funcionava como

    intermedirio no comrcio entre ocidente e oriente. (RAU, 1983)

    Como os judeus tiveram uma aproximao muito grande com a atividade comercial

    nas cidades citadas anteriormente, onde esta atividade tinha um fluxo bastante volumoso,

    tornava-se um atrativo bem significativo a fixao em algumas delas, o que decorre tambm de

    uma certa liberdade religiosa e uma determinada segurana que eles encontravam nestas regies.

    Portugal, neste sentido, agregou todas essas condies acrescentadas ainda por uma proteo

    rgia. Um outro exemplo na Europa medieval de cidade que propiciou boas condies de

    permanncia para a comunidade judaica foi Veneza, a cidade-m, um grande reduto de judeus

    vindos da Alemanha, a partir de 1300. Eram descendentes dos sobreviventes dos pogroms que

    ocorreram em vrias regies da Europa. Veneza, como outros locais da Europa, dimensionou a

    comunidade judaica em um local para evitar novas caadas contra esta minoria

    (SENNETT,1999). Os guetos, ou as judiarias portuguesas, foram uma das formas encontradas,

  • 25

    fsica e economicamente falando, para abrigar uma minoria que poderia ser facilmente

    aniquilada se vivesse de forma esparsa pela cidade.

    A poltica com relao a leprosos, prostitutas e minorias religiosas como os judeus, era

    ambgua, ora de isol-los, ora era de os despejar das cidades. Nesse sentido, o verbo despejar

    resume a atitude em relao a esta minoria. Ele nos passa a mesma idia de duplicidade que a

    palavra italiana ghetto contm. Sua origem advm do verbo gettare, que significa lanar ou

    despejar. Sendo assim, despejar, por para fora, e o despejo significa tanto o objeto como o

    resultado desta ao. Quando nos deparamos sobre a utilizao de uma determinada coisa

    depositamos ela no quarto de despejos, ou seja, o ghetto. (PEREIRA e CRUZ, 2004)

    As judiarias portuguesas e os guetos, desta maneira, identificam-se como espao do

    judeu, o lugar que foi projetado para a sua sobrevivncia no interior do lcus maior, a cidade. Foi

    um espao micro, mas que possuiu implicaes muito grandes no que diz respeito s turbulncias

    que podiam ser ocasionadas devido presena desta minoria. Mas este espao de certa maneira

    um local imaginrio; imaginrio no sentido em que a comunidade imaginava que a rea onde se

    estabeleciam no era aquela que eles perpetuariam e se fixariam, encontrando assim o seu porto

    seguro. Esta terra dos sonhos j existia e se chamava Palestina, de onde haviam sido expulsos. O

    seu espao era, em todas as cidades portuguesas em que se estabeleciam, delimitado. Fronteiras

    eram criadas dentro da prpria cidade para restringir a circulao e o contato entre os habitantes

    citadinos e os novos moradores diferentes. Esta era a delimitao que o preconceito institua

    como marco inicial para a substancial segregao de uma minoria que incomodava com sua

    presena fsica.

    Este espao (gueto ou judiaria), tanto em Portugal como em outras regies em que a

    comunidade judaica se fixasse, no era compreendido como um destino final, um lugar

    circunscrito permanentemente. Era um local transitrio, para os abrigar das perseguies e das

  • 26

    chacinas; o reduto no qual buscavam uma fixao, onde poderiam resistir contra a intransigncia

    e a intolerncia da qual foram vtimas freqentes, que terminavam em carnificinas humanas

    denominadas de progrons.

    Dentro desta perspectiva de preconceito e restrio do espao que o judeu deveria

    ocupar dentro da cidade, o conceito de marginal colocado por Bronislaw Geremek (1989) se

    enquadra na discusso aqui desenvolvida a respeito da percepo do judeu no espao urbano. Os

    judeus eram aqueles que traziam atrelada a sua imagem esteretipos depreciativos, mas que

    tambm possuam junto a sua figura o carter da distino, tanto no vesturio (a partir do IV

    Conclio de Latro, em 1215, os judeus so obrigados a usar um crculo costurado nas suas

    roupas para os diferenciar do restante da populao, norma adotada tambm em Portugal, com o

    rei D. Dinis, e reinstituda em 1390 por D. Joo I), como tambm no seu modo de vida cotidiana

    peculiar, atribuda ao judasmo (RUCQUOI, 1995). Eles viviam na estranheza, na averso que

    sua presena causava naqueles ditos naturais, ou seja, os cristos, que classificavam a

    comunidade judaica com as mais variadas depreciaes e injrias, por no compreenderem o que

    era incompreensvel na poca.

    Os cristos no conseguiam conviver com o diferente, pois o dio contra esta minoria

    impedia qualquer forma de coexistncia pacfica, mesmo que a minoria estivesse isolada em um

    determinado ponto da cidade e tivesse o seu trnsito subtrado. Associado a esta extrao do

    espao e do tempo da comunidade judaica est o medo, que significativamente o impulsionador

    de todas as posturas com conotaes extremamente xenfobas. O medo do contato traz consigo a

    idia da impureza. Do outro lado do muro do gueto ou da judiaria esto queles que no podem

    ser tocados e no podem transitar em meio aos puros. A separao por si s j remete ao discurso

    de que, estes impuros, estranhos e diferentes, ofereciam riscos desde a sade fsica, ao meio

    social e, principalmente, as convices religiosas da populao. Diante disto, a marginalizao

  • 27

    judaica, tanto social como fisicamente, remetia a um imaginrio cristo que perfazia as atitudes

    concernentes ao trato que os cristos davam a esta minoria, imaginrio este que era permeado de

    esteretipos, preconceitos, dio e medo, todos misturados, mas claramente identificados quando

    analisamos alguns casos de perseguies e expulses, que sero discutidos mais adiante.

    1.2 O espao arquitetnico

    Durante os trs ltimos sculos que os judeus viveram em Portugal antes da sua

    expulso, em 1497, houve um aumento significativo da comunidade no final sculo XIV e

    tambm nos ltimos anos do sculo XV. Este salto coincide com os momentos de crise e

    perseguio que os judeus sofreram na Pennsula Ibrica. (TAVARES,1982)

    Imersos no espao dos cristos, os judeus, quando atingiam o nmero superior a 10

    fogos (famlias), fundavam a sua prpria comunidade, a qual era chamada de judiaria e

    comuna. Entretanto, estes termos no compartilham do mesmo significado. O termo judiaria era

    usado para designar vrias formas de ajuntamento judaico, desde uma comuna, um bairro, at um

    arruamento delimitado profissionalmente, algo micro. Entretanto, o termo comuna traz,

    necessariamente, a idia de algo macro, que aglutinava uma ou vrias judiarias. Mas era tambm

    uma juno de todos os rgos religiosos, administrativos e legais que diante da graa rgia,

    permitiam que a comunidade judaica tivesse uma identidade prpria dentro da sociedade crist,

    mas que logicamente estava submetida lei do Reino.

    A comuna tambm se definia atravs da sinagoga, templo religioso da comunidade,

    que possua um carter multifuncional, pois era ao mesmo tempo cmara de vereao, tribunal e

    escola, ou seja, era o centro da vida social, poltica e religiosa da comunidade. Ela tambm se

  • 28

    constitua de carniaria (local onde se preparava carnes para a venda) , hospital, gafaria (hospital

    de leprosos) , cadeia, banhos, estalagem e cemitrio. Entretanto, todos estes estabelecimentos,

    com exceo da sinagoga, s se encontravam nas comunas mais abastadas, como as de Lisboa,

    vora e Santarm que, em decorrncia dos nveis populacional e de vida mais elevados possuam

    uma mancebia (casa de prostituio). O cemitrio encontrava-se fora das muralhas da judiaria

    (TAVARES, 1982). As judiarias mais importantes tambm possuam um midrash (do hebraico

    ), que se referia a um comentrio sobre uma passagem da Tora, tentando explic-la ou

    elabor-la de uma alguma forma, para ser repassada de pai para filho, denominada tambm de

    Tor Oral. (BANK e GUTIN, 2004)

    A Lisboa do sculo XV possua trs judiarias de destaque: a velha ou grande, a

    nova/taracena/moeda e a de Alfama. A judiaria grande ou velha (ver Figura 1) abarcava trs

    freguesias: a da Madalena, a de S. Gio ou Julio e a de S. Nicolau. Seus limites ao norte,

    estendia-se at a igreja de S. Nicolau; a oriente, da rua da Correaria, igreja da Madalena e rua

    da Ourivesaria; ao sul do Poo da Fotea rua de Lava Cabeas e, a ocidente, da rua de S. Julio

    at a de S. Nicolau. O bairro de S. Nicolau era o mais povoado de Lisboa e nele se concentrava a

    maioria dos profissionais da comunidade. A sinagoga grande era o local da cmara de vereao

    dos judeus de Lisboa. Prximo sinagoga grande, localizavam-se vrios estabelecimentos

    pblicos: o hospital para homens e seu balnerio, o hospital da comuna, o hospital para pobres,

    as confrarias, o Estudo de Palaano1, o Beth midrash, a escola , a livraria, o balnerio pblico, a

    carniaria, a estalagem e a cadeia. Os arrruamentos eram delimitados profissionalmente, ou seja,

    mercadores, ferreiros, tintureiros, sirgueiros (fabricadores de sedas) e gibiteiros (fabricantes de

    roupas) encontravam-se nas ruas que levavam seus nomes, como se v no mapa: rua da Gibitaria,

    rua da Sirgaria, rua da Tinturaria (TAVARES, 1982). Portanto, sendo esta a principal judiaria da

    1 O Estudo Palaano era um centro de estudos de vrias cincias, onde se estudava astronomia, cartografia,

    geografia, medicina, matemtica etc.

  • 29

    cidade de Lisboa, l se encontravam as instalaes de maior utilizao da comunidade judaica,

    constatava-se tambm a instalao de oficinas e tendas utilizadas pelos mesteres. (VENTURA,

    2002-2003)

    A judiaria nova, fundada no reinado de D. Dinis (1279-1325), v-se sob ameaa de

    no mais existir, pois o soberano D. Fernando (1367-1383), que viveu um perodo conturbado

    com a comunidade judaica, decidiu aumentar a taracenas reais e com isso mandou derrubar as

    casas dos judeus que residiam neste local, medida que no se efetivou. A judiaria de Alfama se

    estabeleceu a partir do reinado de D. Pedro I (1357-1367), mas sua maior concentrao

    populacional ocorreu no reinado de D. Fernando. (TAVARES, 1982)

  • 30

    Figura 1: Judiaria Grande de Lisboa

    (Fonte: Maria Ferro Tavares.Os judeus em Portugal no sculo XV. Lisboa: Nova Lisboa,1982, p. 48-49)

  • 31

    Assim como outros bairros judaicos, a judiaria grande tambm deveria fechar sua

    porta ao toque das Ave-Marias (18:00 horas). Nesta judiaria, as portas se localizavam da seguinte

    maneira: a porta de S. Nicolau ficava prxima ao adro da igreja que levava o mesmo nome; a

    porta da judiaria dos tintureiros-sirgueiros encontrava-se na rua dos Tintureiros que dava acesso

    Correaria; a porta da Ferraria ficava atrs da Sinagoga Grande e tambm dava acesso a este

    arruamento; as portas do Chancudo encontravam-se uma junto s casas de D. Rolim e a outra de

    frente para a Correaria, que provavelmente pode ser uma outra nomeao para a porta da

    Tinturaria; a porta do Picoto ficava na rua dos Mercadores, sentido S. Julio; havia tambm a

    porta do Poo da Fotea e a da rua da Gibitaria. O arruamento mais importante da judiaria grande

    era a rua do Picoto ou dos Mercadores. Nesta rua se encontrava uma das portas do bairro judaico

    que limitava at onde os judeus poderiam circular sem se misturarem aos cristos. Outro

    importante arruamento desta judiaria era o da Gibitaria ou Jubetaria, que se localizava na

    freguesia da Madalena, ao sul da rua dos Poos da Fotea. Ela se estendia at a rua dos Ourives da

    Prata, onde se localizavam um dos balnerios e o hospital da confraria.

    As trs judiarias de Lisboa possuam, provavelmente, uma superfcie total de 1,5

    hectares, cerca de 1,4 % da rea total da cidade (OLIVEIRA MARQUES, 1975). No h um

    consenso entre os historiadores na aferio exata da extenso total da rea ocupada por essas trs

    judiarias, mas o certo que, a ocupao, por essas judiarias, do espao total da cidade de Lisboa

    no passava de 2%. (VENTURA, 2002-2003)

    A respeito da densidade populacional da comuna de Lisboa, a maior e mais

    importante, no se tm notcia. Provavelmente, a populao judaica expandiu-se a partir da

    chegada dos seus correligionrios advindos dos reinos peninsulares, principalmente de Castela,

    onde as perseguies se intensificaram no final do sculo XIV e incio do XV. Santarm assistiu

    tambm ao acrscimo da comunidade judaica no final dos quatrocentos. Prximo expulso dos

  • 32

    judeus, havia em Santarm cerca de 400 casas de judeus, o que nos daria um clculo aproximado

    de 1600 indivduos. Em Guarda variava de 200 a 240 indivduos, num total de 4000 habitantes.

    Em Estremoz, o bairro judaico tambm no comportava a sua populao, fazendo com que os

    judeus alugassem casas na cristandade com a permisso de D. Afonso V. Em 1442, as comunas

    de Aveiro e Palmela atingem um patamar de membros que os obriga segregao. Vrios outros

    bairros judaicos cresceram em nmero de membros: Guimares, Barcelos, Braga, Tomar, Torres

    Vedras, Olivena, Serpa, Mouro, Moura (TAVARES,1982). Sobre a densidade populacional

    total de judeus no Reino portugus, os dados so variados. Ento, adotamos as informaes da

    professora Tavares (1982), devido ao estudo pormenorizado que ela fez para chegar a esses

    dados, os quais verificam uma soma de aproximadamente 30 000 judeus, antes da chegada dos

    judeus espanhis em 1492. Isso nos remete a 3% da populao de Portugal que era estimada em

    cerca de um milho de habitantes.

    No sculo XIV, Lisboa assistiu a um crescimento do nmero de judiarias (ver Figura

    2), o que ocorreu, principalmente, por ser o lugar do reino onde se encontravam a corte e o porto

    principal. Nada mais propcio para os judeus, que estavam estreitamente ligados ao comrcio,

    atravs do porto de Lisboa, um dos principais pontos da rota do comrcio na Idade Mdia e

    tambm por estar perto do centro das finanas do Reino, ou seja, a corte. Ao longo do sculo

    XIV e XV, a comunidade j se encontrava em todo o Reino, instalando-se em cidades que

    estavam no auge. At o ano da expulso, 1497, Portugal presenciou em seu territrio a incidncia

    de mais de 100 comunas (TAVARES,1983). Na verdade, o nmero era de aproximadamente

    139, que estavam distribudas pelo Reino nessa disposio: 11 na regio de Entre-Douro-e-

    Minho; 14 na regio de Trs-os-Montes; 26 em Beira; 25 na Estremadura; 56 no Alentejo; e 7 no

    Algarve. (SERRO e OLIVEIRA MARQUES, 1987)

  • 33

    Figura 2: Comunas judaicas em Portugal

    (Fonte: Maria Ferro Tavares. Os judeus em Portugal no sculo XV. Lisboa: Nova Lisboa, 1982, p. 75)

  • 34

    A permanncia desta comunidade em Portugal iniciou do litoral para o interior. No

    litoral destacavam-se as cidades de Lisboa, Santarm, vora, e Guarda. O adentrar para o interior

    foi feito por via terrestre, no sentido oriente-ocidente, povoando as regies que faziam fronteira

    com o reino de Castela.

    No princpio de sua instalao em Portugal (por volta do sculo VI), a comunidade

    judaica habitava as ruas onde havia grande concorrncia comercial. As primeiras leis que se tem

    notcia sobre a obrigatoriedade de viver apartada nas judiarias advm do governo de D. Pedro I

    (1357-1367) que, alm de impedir o contato fsico, visava tambm no-agregao cultural.

    O bairro judaico era circundado por muros do Concelho. Entretanto, a grande maioria

    das judiarias crescia paralelamente s vilas, integrando-se dentro das muralhas medievais. Na

    maior parte destas vilas o bairro judaico delimitava-se por um simples arruamento. Mas a

    expanso das judiarias no ocorria pela incorporao de reas rurais ou que se localizassem no

    subrbio da cidade, ou at que tivessem pouca incidncia populacional. A agregao de novos

    espaos, por parte da judiaria, se referia ao ncleo central e nobre das cidades, reas que,

    necessariamente, estavam ocupadas por comerciantes e artesos cristos. Com isso, esse era mais

    fator que acrescentava as discrdias e o arrefecimento da relao entre judeus e cristos.

    (PEREIRA e CRUZ, 2004)

    Todos estes ajuntamentos, ou seja, as judiarias, obedeciam ao toque de recolher e, ao

    som da badaladas das Ave-Marias (18:00 horas), todas as portas das judiarias e dos bairros

    judaicos eram fechadas, impedindo, desta forma, o convvio entre judeus e cristos. Esta

    imposio foi outorgada primeiramente ao longo do reinado de D. Duarte (1433-1438), que

    colocava como punio para o descumprimento da mesma a priso e a perda dos bens. No

    reinado de D. Joo I, as comunas do reino foram at o rei pedir que fossem amenizadas as penas

    para esta infrao, pedido que foi aceito o pedido sendo criada uma nova lei.

  • 35

    A nova lei, outorgada na cidade de Lisboa em 12 de fevereiro de 1450, determinava

    que todo judeu maior de quinze anos encontrado fora da comuna aps o toque do sino de orao,

    numa primeira incidncia teria de pagar cinco mil libras e, se por acaso no tivesse a quantia,

    ficaria preso at que fosse paga a quantia determinada. Se houvesse uma segunda vez, ele teria

    de pagar dez mil libras e, se no pudesse, ficaria preso at que quitasse a dvida. Caso ocorresse

    uma terceira vez, ele seria aoitado publicamente e depois solto. A legislao era muito rgida

    quanto ao deslocamento dos judeus fora das comunas no perodo noturno. Se ocorresse de

    anoitecer e as portas das comunas estivessem fechadas e o judeu no conseguisse adentrar a

    tempo, ele deveria dormir em uma pousada com outros homens, o que nos permite compreender

    que pouco ou quase no era permitida a ausncia da comuna de uma judia. E, outrossim, se

    algum judeu tivesse de sair noite por um motivo de grande necessidade, ele teria de ir

    acompanhado de um cristo. Caso fosse um arrecadador de sisas2 do rei, deveria arrecadar o

    imposto noite e tambm acompanhado de um cristo. Ao final da ordenao, D. Joo I justifica

    a reformulao da lei:

    Nos foi mostrada hu Carta dElRey Dom Eduarte meu Senhor, e Padre de louvada memoria, per que hordenou, e mandou que em todolos casos suso ditos, e cada huu delles, em que o Judeo devesse seendo achado despois do sino dOoraam fora da sua Judaria, vindo de fora da Villa, de seer relevado da pena contheuda em a dita Ley, em todos deve seer relevado saindo-se de sua Judaria antemenha de madrugada pera algu parte fora da Villa, ou do Lugar, honde for morador; porque parece seer razom igual daquelle, que de madrugada sair da Judaria pera fora da Villa por alguma necessidade evidente, aa daquelle, que vindo de fora da Villa per semelhante necessidade chega de noite despois do sino dOoraom aa Villa, e Judaria, honde he morador. (Orden. Afons., Liv. II, Tit. 80, 13)

    Mas os judeus, diante deste decreto, transgrediam-no mesmo sabendo das penalidades

    imputadas sobre aqueles que descumprissem. A comunidade crist denunciou s cortes de

    Santarm de 1468 que os judeus continuavam habitando bairros cristos. Assim, o rei D.Afonso

    2 Imposto indireto que era cobrado das mercadorias que se encontravam em contrato de compra, venda e troca.

    (SERRO, 1976)

  • 36

    V determinou que, se num prazo de seis meses os judeus no residissem nas judiarias, eles

    sofreriam uma sano pecuniria de cinco mil ris.

    Houve um problema que causou certo transtorno e inquietao no poder rgio a

    respeito de alguns judeus que viviam fora das judiarias, junto com os cristos, demonstrando que

    havia interaes entre cristos e judeus , o que coloca em baixa a idia de que a segregao nas

    judiarias levaria a uma separao total do convvio entre cristos e judeus. Na lei de 30 de

    setembro de 1438, sancionada na cidade de Braga por D. Joo I (1385-1433), fica claro este

    descumprimento, pois os judeus estavam transgredindo leis antigas e com alguns agravantes.

    Sabede, que ns avemos per informaom, que em alguus Lugares dos nossos Regnos os Judeos, que hi h, nom vivem todos apartadamente em sua Judarias, segundo he ordenado per ns, e pelos Reyx, que ante ns forom; e que algus delles vivem misticamente antre os Crisptas, e andam de noite aas deforas fora das ditas Judarias: do que a ns nom praz, nem ho avemos por bem feito, se assy he (Orden. Affons., liv. II, tit. 76, 1).

    A resposta de D. Joo I a estes atos foi incisiva quanto queles que descumpriam a

    ordenao rgia. Todos os judeus deveriam residir nas judiarias e no poderiam sair noite e, se

    houvesse descumprimento dessa ordem, o infrator seria punido com priso e recolhimento de

    seus bens. Mas h tambm nessa lei uma clusula que diz que se os judeus se encontrassem em

    uma cidade do reino sem judiaria ou que no suportasse o nmero de indivduos que ali tivesse

    de se estabelecer, ento eles deviam se recolocados em um local mais conveniente. Esta clusula

    sustenta o crescimento das judiarias e da comunidade judaica portuguesa, ou seja, houve um

    inchao das mesmas, de modo que houve a necessidade de novas acomodaes que respeitassem

    sempre a idia de apartamento e segregao.

    Diante disso, a criao da judiaria ou do gueto somente uma forma de proteo de

    uma minoria que sofre perseguio e necessita de um refgio. Como afirmou Geremek (1989, p.

    234) a marginalizao social tambm acompanha a marginalizao espacial, afasta aquilo que

  • 37

    no se quer prximo, mas tambm, como no caso portugus, no se expulsa, pois so necessrios

    e importantes para o bom andamento do reino. Deste modo, mantinha-se ao alcance dos olhos

    para que se pudesse vigiar; entretanto, longe do convvio constante para se evitar o toque. Neste

    caso, judeus, leprosos e bruxas foram classificados da mesma forma, como impuros, sendo eram

    separados para no contaminarem aqueles que assim os qualificavam. Mas mesmo com essas

    medidas os contatos ainda se processavam.

    1.3 Regimento interno nas judiarias

    As comunidades judaicas, tanto em Portugal como em muitas outras naes por onde

    se estabeleceram, tinham sempre um crivo da tributao incidindo sobre seus ganhos. O fato de

    viverem separados do restante da populao, como forma de distino fsica, tambm possua a

    sua diferenciao nos deveres para com o governo. Entretanto, a comunidade possua direitos

    que a colocava no mesmo patamar de algumas altas classes privilegiadas do pas. A justia, a

    administrao e as questes de segurana dentro das comunas e judiarias portuguesas eram de

    cunho exclusivo da autoridade judaica local, ou seja, havia uma certa independncia na forma de

    administrar esses locais onde os judeus viviam. (KAYSERLING, 1971)

    A comunidade judaica tambm possua liberdade tanto civil como criminal para julgar

    os casos que ocorressem dentro do seu espao. As comunas possuam uma administrao que

    no seguia um padro, ou seja, seus juzes e procuradores eram da sua prpria comunidade. Suas

    leis e direitos distinguiam-se dos cdigos judicirios de Portugal, no entanto, esses micro-

    cdigos eram subordinados ao poder rgio, pois tambm necessitavam do aval do monarca para

    serem sancionados.

  • 38

    ElRey Dom Joh meu Avoo de gloriosa memoria em seu tempo deu Cartas seelladas do seu seello pendente aos Judeos destes Regnos, em que mandou, que por quanto elles avia , e ham dantigamente jurdiom, e seus direitos apartados, que perteencem aos Julgados dos Arrabys3, e bem assy a jurdiom, e direitos, que perteencem aas Almotaarias, e Almotacees Judeos, os quaes direitos, e usos das Almotaarias, e seus Arrabys desvairom em muitas cousas dos nossos direitos, e usos; e porque sempre foi sua vontade, e dos Reyx, que antelle forom, os ditos Judeos averem jurdiom antre sy, assy crime como civil, e que em cada huma Comuna aja Arraby, e Almotac, per que sejam julgados segundo seus direitos, e usos em todolos feitos, casos, e contendas, que antre sy aja. (Orden. Affons., liv. II, tit. 71, 1)

    D. Joo I sancionou esta lei, que foi seguida por todos os outros monarcas posteriores,

    dando uma liberdade jurdica s comunas portuguesas que nenhum outro rei havia dada em

    Portugal. Mas o documento deixa claro que esta era uma inteno dos reis que antecederam D.

    Joo I, evidenciando a proteo que alguns monarcas portugueses, ao longo da permanncia da

    comunidade no territrio portugus, ofereciam aos judeus. A liberdade de jurisprudncia das

    Almotaarias4 judaicas significava a materializao de uma poltica de proteo e direitos dados

    comunidade judaica portuguesa ao longo do seu estabelecimento na Pennsula Ibrica. Um

    sinal de reconhecimento, por parte da monarquia, da significncia desses judeus para a poltica

    rgia, pois para a populao portuguesa uma medida dessa magnitude era uma afronta.

    Entretanto, a liberdade de jurisdio civil e criminal dada s comunas tinha seus

    limites demarcados, pois logo adiante, na mesma lei, D. Joo I estabelece que:

    Pero queremos, e mandamos que em todo caso dos sobreditos, e quaeesquer outros que acontecer possa per qualquer guisa, e maneira que seja, fique sempre a appellaom reservada pera ns, e pera os nossos Officiaes, que per nos som deputados pera conhecerem das appellaooes, e bem assy conheam dos agravos; aos quaes mandamos que tomem delles conhecimento, assy como das appellaoes, e aggravos, que saae dante os Juizes Chrisptas,e os dezembarguem pelos direitos do Judeos, segundo

    3 O termo Rabi (do hebraico meu mestre) era usado no sculo I d.C. para indicar as autoridades membros do

    Sanhedrin (Assemblia dos 71, que funcionava como Suprema Corte e como Legislatura). At o fim do Patriarcado (sc. V) o ttulo foi empregado somente na Palestina, sendo os doutos de Babilnia chamados Rav (Mestre). (KAYSERLING, 1971) 4 Correspondente ao oficio do almotac, do rabe almuhtasib, mestre de aferio, oficial da Cmara Municipal que

    fiscalizava os pesos e medidas, taxava os preos dos gneros, tratava da distribuio dos mantimentos em ocasio de escassez.

  • 39

    acharem que dantigamente similhantes feitos se acustuamrom de desembargar. (Orden. Afons., Liv. II, Tit. 71, 2)

    Portanto, o estabelecimento da apelao para a corte portuguesa era uma forma de

    impor limites, demarcar at onde a jurisdio judaica podia se impor, no permitindo que essa

    concesso se tornasse uma medida possibilitasse que os judeus se impusessem diante o Estado

    portugus. Essa lei por outro lado, de uma certa maneira resgatava as normas antigas

    estabelecidas pelo legislador Moises, as quais permeavam a vida de um judeu em todos os

    aspectos, tanto morais, como religiosos ou seculares. Os judeus viviam sob um cdigo prprio do

    seu grupo, mas quando dizia respeito relao com o mundo exterior eram obrigados a se

    submeterem a outras leis, pois estavam em um territrio que no lhes pertencia. Viver em uma

    regio que os judeus j consideravam sua ptria, devido a residirem ali h doze sculos, e onde

    podiam legislar o seu prprio cdigo de conduta, representava o lugar ideal para viverem numa

    relativa sensao de paz.

    Portugal, no que se refere s condies internas dos judeus, foi um pas de exceo.

    Em nenhum outro Estado europeu se ordenou essa comunidade to prematuramente. J com D.

    Afonso III se encontrava o sistema do rabinato regulamentado. (KAYSERLING, 1971)

    Devido queixa feita a D. Joo I pelas comunidades judaicas de Lisboa e de outras

    localidades contra o Arraby-moor D. Jud Cohen por excesso de autoridade, o rei, no ano de

    1402, submeteu este cargo a uma reviso da constituio dos seus poderes, com base no que j

    havia sido estabelecido pelos monarcas anteriores e, assim, delimitou sob a forma de lei, as

    atividades oficiais do Arraby moor, dos Rabinos regionais e de outros funcionrios religiosos.

    O Arraby Moor trazer huu nosso sello feito das nossas armas, assy como o som os outros nossos seellos das Correiooes, e as leteras delle digam: Seello do* Arraby (a) * Moor de Portugal, e esse seello seja dado a huu Chrisptaa, ou Judeo, que com o Arraby Moor ande, de ao fama, e condiom, e o traga, e seja Chanceller; e com esse seello sejam asseelladas todalas Cartas, sentenas, e desembargos, que pelo dito Arraby

  • 40

    Moor, ou per Ouvidor, que com elle andar, forem assinadas; e levem de Chancellaria pela tausaom da nossa Chancellaria. (Orden. Affons., liv. II, Tit. 81, 5)

    Estas foram algumas das atribuies dadas pelo rei ao Arraby moor. Ele constitua o

    funcionrio da Coroa de mais prestgio entre os judeus no pas. O cargo trazia consigo um grau

    de influncia muito significativo, pois era concedido queles que tivessem prestado um bom

    servio, que ocupavam posies de relevncia na corte e aos que se destacassem em habilidades

    pessoais como erudio e lisura de carter. O Arraby-mor levava consigo, sempre que viajava

    pelo pas, um ouvidor para tratar das questes judiciais, julgando em seu lugar todas as causas

    que no lhe cabiam. Acompanhavam-nos um Chanceler, que podia ser tanto judeu como cristo,

    e tinha como funo a superviso da chancelaria. Um escrivo tambm compunha a comitiva do

    Arraby-moor, sendo responsvel por protocolar e despachar todos os casos jurdicos, podendo

    tambm ser judeu ou cristo. Completando o quadro de assessores, havia um porteiro, que

    exercia as penhoras, executava sentenas penais etc. Para cada povoao havia tambm um

    Arraby local que, como todos os demais funcionrios da comuna, era eleito pela comunidade. Os

    bens e negcios das comunas eram administrados por procuradores e tesoureiros. O

    policiamento era feito por vereadores e almotacs. (KAIYSERLING, 1971)

    1.4 Elementos da identidade judaica portuguesa

    Ao falar de judeus percebemos que tanto no indivduo como na comunidade a

    identidade judaica muito marcada. Esta diferenciao est presente no s no modo como se

    vestem, mas tambm em suas convices religiosas, que refletem em todos os mbitos da vida de

    um judeu. Geralmente, as comunidades religiosas possuem uma identidade de fcil

  • 41

    reconhecimento. Deste modo, se na sociedade atual, que se encontra num alto grau de

    miscigenao cultural e globalizao, onde as identidades se multiplicam e se confundem,

    conseguimos diferenciar um judeu de um no-judeu, na sociedade portuguesa do sculo XV esta

    diferenciao era ainda mais ntida. Isto se deve ao fato de os judeus no residirem misturados

    com a grande maioria da populao, segregados nas famosas comunas e judiarias.

    Ao haver esta separao a identificao/diferenciao se torna mais fcil, pois esta

    comunidade na sua vivncia dentro de outra comunidade, adquire caractersticas prprias que a

    diferem da maioria crist. Numa nfase maior, seria a chamada dialtica da mudana-

    permanncia, na qual a identidade possui elementos tanto de mutao como de inrcia (HALL,

    1997). Essas caractersticas podem ser naturais, como usar um barrete (chapu) pontiagudo e

    barba grande, ou impostas, como no caso da rouelle, um crculo costurado sobre as vestimentas.

    Estas marcas diferenciatrias eram utilizadas como forma de discriminao e intensificavam o

    preconceito contra os judeus. Entretanto, no s isto a identidade marcada por meio de

    smbolos (WOODWARD, 2000, p.9). A Rouelle, assim como o barrete e a barba grande, so os

    smbolos que representam a identidade judaica, mesmo que de forma vexatria. Eles evidenciam

    para o outro quem so e neste apontamento se faz a diferenciao entre o judeu e o no-judeu. O

    que ele utiliza, de forma voluntria ou forosa, associado a sua identidade, simbolizando sua

    imagem identitria para aqueles que o observam.

    Como a identidade para Woodward (2000) e tambm para Cristian Meier (1989) no

    s uma construo simblica, mas social, a comunidade judaica portuguesa do sculo XV lutava

    por um espao ou por reconhecimento enquanto parte integrante da sociedade portuguesa. Como

    um grupo em busca de legitimao identitria, os judeus no recorreram ao uso da fora ou a

    qualquer outro meio que imputasse um sentimento de dio ou raiva por parte da populao de

    Portugal. Mas o desprezo cristo pelo judeu estava alm de questes locais: estava na prtica

  • 42

    usuraria, na prosperidade nos negcios ou na presena em cargos de confiana junto Coroa.

    Este desprezo antecede o judeu, ou seja, sua fama chega antes mesmo de sua presena fsica. A

    acusao de deicdio acompanhavam-lhe ao longo dos sculos. mais uma marca simblica,

    porm negativa, pois esta representao no ser nada favorvel para uma comunidade nmade

    que procura estabelecer-se em uma regio predominantemente crist. Usque faz meno dessa

    acusao: O Seor vee nossa ynocencia taes levantamentos e quanto ynjustamente somos

    perseguidos pois suas culpas sam a nos outros reputadas, sobre participarmos da fortuna que

    elles padecem. (C.T.I., Dialogo Terceiro, p. 4, 2)

    Isso mostra que os judeus se mostravam incomodados com esta acusao e, como se

    consideravam inocentes diante de tal acusao e injustiados por um passado do qual no so os

    agentes mas pagam como se fossem. Entretanto, diante de tantas injustias, havia um consolo

    maior que. Usque relembrava que o profeta Yesayahu (Isaas) disse que:

    Nossas fadigas elle [Ysrael] as sofre, e nossas dores [tam bem] elle as soporta e nos o reputamos que por sua maldade foi chagado do seor, e quebrtado [de seus propios amigos] e a verdade he que elle foi chagado por encobrir nossos erros e atrebulado por nossos dilitos, castigamolo por nossa paz e com sua chaga nos curamos nossa ynfamia. (C.T. I., Dialogo Terceiro, p. 40, 2)

    O texto bblico referncia tirada do livro do profeta Isaas, captulo 53, versculos 4 e

    5, com uma pequena variao entre os dois textos devido traduo e tambm porque nos

    originais hebraicos no esto divididos em captulos e versculos. A colocao deste texto

    bblico, assim como muitos outros, tem a funo de estabelecer a justia e prometer recompensas

    no plano divino.

    A transportao dos erros e dos pecados para a figura divina remete a uma no

    culpabilidade por parte dos judeus, ou seja, isenta-os da responsabilidade pela morte do Cristo;

    eles so absolvidos por Deus e isto ameniza o papel ruim a eles atribudo ao longo do medievo,

  • 43

    logrando, assim, do papel de injustiados. Entretanto, o texto em que Usque se baseia no

    mnimo conflituoso, pois, segundo a exegese bblica crist esta passagem simboliza uma das

    vrias profecias relativas vida e ao sofrimento de Cristo na terra. Os cristos vem esta

    passagem como uma transposio dos pecados da humanidade para a figura de Cristo. Portanto,

    h uma contradio na interpretao teolgica do texto bblico por parte de Usque, que se

    apropriou do texto bblico na tentativa de desvincular um discurso negativista de uma acusao

    de um crime dos seus antepassados, que figurou por sculos como identificao primria de um

    judeu Portanto, a colocao deste texto teve a funo de consolar os judeus portugueses assim

    como todo o povo judeu -, mas utilizando-se de uma profecia sobre quem eles eram acusados de

    matar, ou seja, o que torna a apropriao indevida.

    A identidade judaica durante vrios sculos foi identificada por uma de suas variantes,

    ou seja, pela falta de um territrio fixo, o nomadismo mesmo. O imaginrio medieval, neste

    sentido, deu uma grande contribuio para que esta imagem circulasse por todas as regies onde

    quer que o judeu estivesse e, como a imagem possui uma fora prpria e dotada de signos e

    smbolos que a auxiliam, no era preciso de muito esforo para que fecundasse e permanecesse

    no imaginrio medieval uma imagem negativa da comunidade judaica (BALANDIER, 1999).

    Umas das imagens pejorativas que se tinham dos judeus era a de que praticavam heresias atravs

    do judasmo. Com isso, o fato de no possurem territrio fixo agravava mais ainda o repertrio

    de acusaes, pois sua fama chegava s regies antes de sua presena fsica, por haver um

    imaginrio social permeado de estigmas, os quais impediam as suas entrada ou at sua fixao

    pacfica. Numa poca em que esse imaginrio social estava abundantemente disponvel em

    forma de medo e preconceito, o judeu no tinha alternativa a no ser enfrentar uma nova regio

    com total instabilidade, do que permanecer em locais em que as perseguies geralmente

    terminavam em massacres.

  • 44

    Afirmar que o medo era parte integrante do imaginrio social medieval, e

    especificamente do imaginrio portugus, no seria um exagero. O medo e a raiva, transmutada

    em preconceito, caminham juntas. A linha que separa estes dois sentimentos to contraditrios

    tnues, e a presena de um elemento desestabilizador, que no caso o judeu, provoca uma

    mistura ou o afloramento de um dos dois. O medo o causador do afastamento desta minoria.

    Afasta-se aquilo que no se quer por perto, o que para alguns a expulso definitiva, e mesmo

    esta atitude extrema no acarretada somente pelo preconceito ou pela raiva. Insere-se numa

    atitude assim, um certo pavor pelo que essa comunidade poderia causar s integridades fsica,

    mental e social da populao.

    Se a histria pesou para uma das partes, sem dvida foi para a comunidade judaica,

    que carregava consigo esteretipos e estigmas advindos de um passado que lhe pertencia, mas do

    qual no foi responsvel pelas aes constituidoras. E nisto as minorias tm sido notoriamente

    suscetveis estereotipagem. Os esteretipos so um meio de dar sentido a um universo

    desordenado, impondo ordem, definindo o eu, personalizando os temores (RICHARDS, 1993,

    p.29). Junto imagem deturpada dos judeus estava todo tipo de acusaes. Com isto, o passado,

    para o judeu portugus, tem dois lados: um positivo, que o de fator legitimador da identidade

    judaica, sendo ela historicamente constituda, e outro negativo, no qual esse passado tambm o

    responsvel por imputar sobre esta identidade a morte do Cristo. O cristo no deixa que este

    estigma seja esquecido e o judeu no faz por onde para que se amenize, pois no aceita o

    salvador dos cristos e o considera como um simples profeta.

    So muitos os esplios depreciativos impregnados na identidade judaica portuguesa.

    Agrega-se a isto o fato de judeus castelhanos terem migrado para Portugal, a partir de 1450,

    levando consigo, coincidentemente, a Peste Negra. Com isso, estigmas como os de bode

    expiatrio da humanidade e portadores do mal acompanham o processo de construo desta

  • 45

    identidade e, ao mesmo tempo, vista negativamente pelos outros, ou seja, o contraponto aqui

    , primeiramente, religioso. Trata-se de uma sociedade medieval orientada por valores religiosos,

    sobretudo cristos. Portanto, a ambigidade se estabelece entre cristos - a maioria - e judeus - a

    minoria. O imaginrio social cristo medieval foi o responsvel pela padronizao, em certa

    medida, desse processo de construo. As diferenas eram externalizadas e colocadas como

    depreciativas, maculadas e contaminadoras.

    O que era atribudo negativamente identidade judaica portuguesa, era, em grande

    parte, fruto de um preconceito e intolerncia quanto no aceitao de ritos religiosos diferentes

    dos cristos portugueses. aqui que se coloca um ponto de toque importante na anlise

    identitria, o preconceito. Apesar de ser um termo moderno, sua prtica antiga. O fato de no

    poder compreender o outro por ele ser diferente no s preconceito, tambm incapacidade de

    conviver em uma sociedade plural. Uma sociedade como a de Portugal no sculo XV,

    homognea, conhecia bem em seu convvio a identidade portuguesa e crist. Logicamente,

    dentro desta categorizao existiam outras facetas identitrias menores, o que no vem ao caso,

    pois estamos analisando aqui as identidades macro, sem nos atermos s especificidades dos

    indivduos.

    Apesar de os judeus serem conhecidos na Pennsula Ibrica h sculos, sua

    sustentabilidade se dava no reino portugus por meio de um amparo por parte da legislao de

    alguns reinados (TAVARES, 1982). A intolerncia era alimentada por variadas acusaes, as

    quais j citamos, mas tinham quase sempre o vis religioso para orient-las. Neste ambiente de

    intransigncias, tentou-se por sculos uma convivncia pacfica entre judeus e cristos.

    Entretanto, o preconceito, concentrado por uma forte dose de violncia, no permitia a

    convivncia em um mesmo lugar daquele grupo, e a maneira que se encontrou para mostrar isso

    foi o meio mais irracional que o ser humano tem para expressar o seu dio: matar. Os famosos

  • 46

    pogrons eram verdadeiras chacinas que evidenciavam com quem os portugueses no queriam

    conviver. Para os judeus esses atos de violncia e de perseguies tinham razes em foras do

    mal extraterrenas.

    Os cristos portugueses, ao demonstrarem atitudes de violncia, mostravam que seu

    territrio era demarcado e no permitiam a mistura dentro da sua comunidade e do seu territrio.

    No entanto, os judeus, ao aceitarem a segregao espacial, as judiarias, estavam procurando

    preservar a si mesmos e suas tradies, tanto nos ritos religiosos, na maneira como se vestir,

    como tambm no estatuto prprio de conduta dentro das judiarias. Uma identidade que se

    preservava dentro de seus sistemas simblicos prprios, enquanto componente de um mosaico

    universal de identidades.

    Foi a manuteno de seus sistemas simblicos e as condies sociais de segregao

    que fizeram com que a comunidade judaica de Portugal conseguisse manter viva a identidade de

    seu povo. Adaptando-se as condies especficas do solo portugus, os judeus no deixaram que

    a fragmentao de seu povo fosse uma escusa para que ele abrisse mo, integral ou parcialmente,

    de sua identidade e se inserisse no modo de vida cristo portugus. A comunidade judaica

    necessitava de um territrio e no de um novo modo de vida, que de uma outra norma de

    orientao moral. Eles j possuam o judasmo, que era o eixo orientador de suas vidas e

    disseminador de suas crenas, que diziam que um dia os judeus formariam uma nao

    governada por um grande lder. A crena nas profecias do Talmude era a esperana que os

    sustentava diante de todas as adversidades da vida prtica. Os judeus portugueses assumiam a

    sua identidade de diferentes dos demais ao residirem nas judiarias, e as acusaes vexatrias

    fertilizaram quando havia essa recluso, como, por exemplo, a acusao de tramarem o

    assassinato de cristos.

  • 47

    Os judeus identificavam-se uns com os outros, tanto por terem conscincia de que

    eram diferentes daqueles que estavam fora de seu grupo, no caso os cristos portugueses, como

    pela similaridade entre si, que dava a coeso necessria para que a comunidade se identificasse

    dentro e fora de si. A identidade judaica era reconhecida tanto que a diferenciao, por parte dos

    cristos portugueses, ficou s no plano terico, mas existiu tambm na prtica. O que se passava

    em Portugal quando ocorria alguma onda de massacre a judeus baseava-se no conflito de

    identidades.

    Um outro fator preponderante na identidade judaica, era a crena nas profecias

    bblicas do Velho Testamento condizentes ao seu povo. O consolo para o judeu estava no porvir.

    A esperana era uma das marcas da sua identidade.

    Assi que trebulao sobre trebulao vera. Espada temestes vos outros espada trarei sobre vos diz o Seor, e nhu escapara com fugida, ynda que trabalhe por escapar. Crueis foram estas sentenas O Seor, e sobre ysso. Com razoes treedoras me acarearom (ao degoleo). E nam contecerom (meus filhos) os pensamentos (do ymigo) nem entenderom seu concelho pera se confirmar esta tua profecia ysayahu. Perecera a sabiduria de seus sabios e o entendimento de seus prudentes se escondera entam. (C.T.I., Dialogo Terceiro, p. 25, 3)

    A vingana remete tambm a sua esperana; vingana sobre todos aqueles que

    cometeram injustias contra o povo judeu, mesmo que a injustia tenha sido cometida h

    milnios, e a crena de que a profecia de glria e vingana se cumprir muito convicta na

    vivncia do judeu praticante do judasmo.

    Numa situao como esta, o indivduo poderia assumir uma outra posio por estar,

    logicamente, passando por uma situao de risco. Ao se ver defronte morte, ele poderia assumir

    uma nova posio que colidiria com sua identidade. Em determinados momentos, seja de perigo,

    seja de favorecimento prprio, um indivduo pode assumir diferentes identidades, entrando em

    conflito, mas isso mais evidente na sociedade moderna. Entretanto, no eximimos da

  • 48

    comunidade judaica portuguesa que acontea tal fato. Destaca-se, neste sentido, as pregaes

    veementes de mestre Paulo de Braga, em 1481. Este frade pregador era um judeu convertido ao

    cristianismo, portanto, um cristo-novo. Nenhuma surpresa quanto a isto se no fosse o fato de

    ele fazer discursos inflamados contra os judeus. Seus pronunciamentos em perseguio aos

    antigos comungadores de f eram to violentos que receberam duras crticas por parte de D.

    Afonso V. Mesmo que tivessem sido verificado vrios casos de converses de judeus ao

    cristianismo em Portugal, o que parece indito neste fato o comportamento deste ex-judeu. Na

    carta rgia de 26 de Janeiro de 1481, enviada ao deo e cabido da S de Braga, verifica-se a

    queixa feita pela comuna judaica desta cidade contra o eclesistico:

    Nos Elrey vos enviamos muito saudar. Fazemosuos saber que a comuna dos judeus dessa cidade de Braga nos enviaram dizer como a requerimento de mestre Paulo, pregador, eram constrangidos que fossem a suas pregaes. E os faziam lla hir per fora. E que o vigairio mandara so pena descumunham aos chisptos que nom conversasem com os judeos que as dictas pregaes nom fossem nem lhes desem foguo nem logar a outras muytas opresoees que lhes per esta causa eram feictas. (A.D.B., Cartas Rgias, tomo I, n 22. Apud: BAQUERO MORENO, 1990, p. 147)

    .

    Este fato deu-se justamente num perodo de bastante conturbao no reino portugus,

    quando a entrada de judeus expulsos de Castela, cuja entrada foi autorizada pela Coroa

    portuguesa mediante um pagamento per capita. Com a atitude de mestre Paulo e a rejeio com

    que o povo portugus recebeu os judeus castelhanos, estabeleceu-se um forte sentimento de

    estranhamento na mentalidade dos originais do reino, que se amparava em vrias acusaes,

    chegando ao ponto de os judeus serem acusados de desestabilizar a poltica econmica de

    Portugal (BAQUERO MORENO, 1990). A populao pressionava a corte para tomar atitudes

    firmes quanto a esta situao, denotando um certo receio em relao capacidade do poder

    central de resolver tais situaes. Havia tambm a acusao de que os judeus castelhanos traziam

    para o reino portugus maas eresias, o que era um acrscimo s cobranas da populao crist

    de uma postura mais rgida e intransigente.

  • 49

    Outro aspecto importante e bastante significativo do carter identitrio judaico a sua

    no aceitao do Cristo, smbolo do Cristianismo. Pelo fato de os judeus at os dias atuais

    esperarem seu salvador, que lhes libertar de todas as injustias e ser o seu governante por

    excelncia, denota-se aqui vestgios de uma imutabilidade que se apia no fator religioso, ou

    seja, uma crena que influencia diretamente o aspecto poltico desta nao. Mencionar este

    aspecto imutvel da identidade judaica, talvez possa parecer que estamos empunhando a

    bandeira do essencialismo. A identidade tem como premissa sua constante construo, ou seja,

    ela sofre no decorrer do seu processo de arquitetao uma mutabilidade que denota a sua no

    estatizao no tempo e no espao. No processo identitrio, h tambm fixaes, e no somente

    fluidez e volubilidade. O grupo ou o indivduo necessita de marcas identitrias que permaneam

    em toda a sucesso de mudanas, do contrrio no se poder determinar quem quem,

    formando-se uma verdadeira metamorfose transeunte, na qual no h um porto seguro. (MEIER,

    1989)

    Apesar de as identidades serem bastante definidas e delineadas no perodo medieval,

    mais do que nos tempos atuais, isso no nos autoriza a limit-las, como muitos pensam, a este

    espao-tempo. Talvez por no estarem em contato com vrios grupos e culturas, numa dimenso

    mundial, como o proporcionou a globalizao atual, mui