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* PALAVRAS-CHAVE: Organizações locais, organizações al- ternativas, culturas organizacionais, produto cultural. / OLODUM: A ARTE E O NEGOCIO Tânia Fischer Professora Titular da Universidade Federal da Bahia, Coordenadora do Núcleo da Pós-Graduação em Administração e Presidente da ANPAD (Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Administração). Marcelo Dantas, Maria de Fátima Lltalff e Silva, Vera Lúcia Peixoto Mendes Mestrandos em Administração na UFBA. * RESUMO: Novas organizações despontam no cenário na- cional. Não apenas movimentos associativos, não somente ONGs (Organização Não Governamentais). Evoluindo os modelos tradicionais de organizações alternativas, as novas organizações locais têm uma importante dimensão empresa- rial, que lhes confere viabilidade e autonomia. A cultura or- ganizacional destas organizações é complexa e multifaceta- da, incorporando e refletindo os elementos da cultura local. Adotou-se o Grupo Cultural Olodum como exemplo des- ta nova organização, já que o mesmo, defendendo a identi- dade e ética negras, é o interlocutor do governo local, ao mesmo tempo em que produz e defende cultura em bases empresariais que ultrapassam fronteiras nacionais. 90 Revistade Administraçãode Empresas * ABSTRACT: New organizations are coming in to sce- nery in this country. Not only associative movements, nor ONGs (Non-Governmental Organization). The new local organizations, developed from tradicional patterns of al- terna tive ones, have an important business dimension, which gives them viability and autonomy. The Organiza- tional Culture of such enterprises is complex and multifa- ceted and incorporates and reflects the elements of local culture. The Olodum Cultural Group has been adopted as an example of this new kind of organization, since it repre- sents the negro ethnical identity and it serves as an inter- locutor of the local government, at the same time, it pro- duces and defends the local culture on the bases of an or- ganizational business which goes beyond the national boundaries. * KEY WORDS: Local organizations, alternatives organiza- tions, organizational cultures, cultural product. São Paulo,33(2):90-99 Mar./Abr.1993

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Page 1: OLODUM: A ARTE E O NEGOCIO · INTRODUÇÃO OLOOUM: A ARTE E ONEGÓCIO ogrupo Cultural Olodum é uma organização não governamental que tem como produto básico a cultura enquanto

* PALAVRAS-CHAVE: Organizações locais, organizações al-ternativas, culturas organizacionais, produto cultural.

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OLODUM: A ARTE E O NEGOCIO• Tânia Fischer

Professora Titular da Universidade Federal da Bahia,Coordenadora do Núcleo da Pós-Graduação emAdministração e Presidente da ANPAD (AssociaçãoNacional de Programas de Pós-Graduação emAdministração).

• Marcelo Dantas, Maria de Fátima Lltalff e Silva,Vera Lúcia Peixoto MendesMestrandos em Administração na UFBA.

* RESUMO: Novas organizações despontam no cenário na-cional. Não apenas movimentos associativos, não somenteONGs (Organização Não Governamentais). Evoluindo osmodelos tradicionais de organizações alternativas, as novasorganizações locais têm uma importante dimensão empresa-rial, que lhes confere viabilidade e autonomia. A cultura or-ganizacional destas organizações é complexa e multifaceta-da, incorporando e refletindo os elementos da cultura local.

Adotou-se o Grupo Cultural Olodum como exemplo des-ta nova organização, já que o mesmo, defendendo a identi-dade e ética negras, é o interlocutor do governo local, aomesmo tempo em que produz e defende cultura em basesempresariais que ultrapassam fronteiras nacionais.

90 RevistadeAdministraçãode Empresas

* ABSTRACT: New organizations are coming in to sce-nery in this country. Not only associative movements, norONGs (Non-Governmental Organization). The new localorganizations, developed from tradicional patterns of al-terna tive ones, have an important business dimension,which gives them viability and autonomy. The Organiza-tional Culture of such enterprises is complex and multifa-ceted and incorporates and reflects the elements of localculture.

The Olodum Cultural Group has been adopted as anexample of this new kind of organization, since it repre-sents the negro ethnical identity and it serves as an inter-locutor of the local government, at the same time, it pro-duces and defends the local culture on the bases of an or-ganizational business which goes beyond the nationalboundaries.

* KEY WORDS: Local organizations, alternatives organiza-tions, organizational cultures, cultural product.

SãoPaulo,33(2):90-99 Mar./Abr.1993

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INTRODUÇÃO

OLOOUM: A ARTE E O NEGÓCIO

o grupo Cultural Olodum é uma organização não governamentalque tem como produto básico a cultura enquanto expressão de ori-gem, história e cotidiano da população negra do Maciel/Pelourinho,bairro situado no centro histórico da cidade de Salvador, Bahia, hojetombado pela ONU como patrimônio da humanidade 1.

Este grupo afro que, no princípio foi visto por muitos como umaglomerado de prostitutas, drogados, gays e traficantes, é hoje umaempresa e, ao mesmo tempo, um fortemovimento cultural que luta pela res-tauração e valorização do Pelourinho.

O Olodum é mais que um movi-mento associativo e se diferencia dasONGs típicas ao apresentar uma fortecaracterística empresarial, ao mesmotempo em que propõe o resgate da au-to-estima e das tradições da populaçãonegra.

É a análise da notável trajetória doOlodum que se procura fazer neste tra- do m.e-smo'tempo/ espaços debalho. o antigo bloco de carnaval dobairro do Pelourinho hoje é centro de conflitos e possibilidades de ação.reflexões sobre a cultura negra e multi-mídia internacional.

A estratégia adotada pelo grupo es-capa aos modelos tradicionais. A cultura organizacional multifaceta-da, rica e contraditória está em busca de um paradigma.

Salvador de todas as cores e ritmos é o espaço físico e decisionalonde nasceu o Olodum. Tal como a cidade, o Olodum é som e ima-gem, reflexo e movimento.

SALVADOR - ESPAÇOS, CORES E RITMOS DA MODERNIDADE

Salvador deixou de ser a cidade tranqüila da década de 60, para se-guir um caminho desenvolvimentista desordenado na direção do PóloPetroquímico de Camaçari. A década de 70 traz a revitalização do turis-mo e na década de 80 a cidade é agitada por novas propostas culturais.

A indústria cultural passa a valorizar a negritude vinculada pelosblocos afro. As rádios baianas e a indústria fonográfica investem nosamba-reggae. O bloco afro Ilê-Aíyê, surgido nos ano 70 como alter-nativa de participação carnavalesca aos negros jovens discriminadosnos clubes e blocos existentes, afirma a identidade étnica através doresgate da herança africana, o que seria também incorporado por ou-tros blocos como o Olodum, como refere Morales.?

A juventude negra ressurge perfeitamente engajada no crescimen-to e na modernização da grande metrópole, e Gilberto Gil3 sintetizaesse movimento dizendo: "Os novos afoxés e blocos contemporâneos tra-zem uma negritude mais desenvolvida, mais elegante, mais moderna, já nãotão nostálgica da floresta africana". E é Caetano quem observa: "Os ne-gros começaram a delinear a cara de Salvador e afirmar que, com sua maio-ria populacional, sua cultura não pode ser admitida apenas ao nível do jácristalizado, como capoeira, maculelê, samba de roda etc ..."4.

Morales compara os blocos Filhos de Ghandi e Ilê-Aiyê e concluique ambos apresentam a sociedade negra como base para a constru-ção do bloco, sendo os sentimentos do "estar junto" o recurso à me-

© 1993, Revista de Administração de Empresas / EAESP I FGV, São Paulo, Brasil.

1. A pesquisa sobre as novasorganizações locais foi desen-volvida pelos autores, dentro dalinha da pesquisa Políticas PÚ-blicas, poder local e cidadania,integrante ao Núcleo de Pós-Graduação em Administraçãoda UFBA. Além das entrevistas,a equipe valeu-se da análise dedocumentos do grupo e de ob-servações participantes.

2. MORALES, A. Blocos Negrosem Salvador, Reelaboração Cul-tural e Símbolo da baianidade.Caderno CRH, Suplemento, p.12·92, 1991.

3. Gilberto Gil e Caetano Velosoderam depoimentos a RISÉRIO,A. Camavalljexá. Salvador: Cor-rupio,1981.

4. MORALES, A. Op. cit.

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mória coletiva (música, dança, ritos, heróis e lendas recontados) e aconstrução de um território físico e simbólico os reais mecanismos departicipação. Embora com mecanismos de construção e inserção so-cial diferentes, o mesmo se pode dizer do Olodum; que se localiza noMaciel/Pelourinho, onde o passivo de degradação urbana desafia acompetência de todas as instâncias de governo.

Políticas conflitantes e ações pontuais não conseguiram recuperaro centro histórico da "Salvador de todos os pobres"; cidade de fortesegregação social "e racial" que, não por acaso, tem um marcado ca-ráter associativo e formas muito diferenciadas de ONGs.

Organizações que contracenam umas com as outras, com o poderpúblico e com outras instâncias de poder, em um jogo de forças anta-gônicas que abrem ao mesmo tempo, espaços de conflitos e possibili-dades de ação. Estes espaços caracterizam-se como "zonas de incer-teza" na ambiência social de Salvador e conforme Fischer e Teixeira 5

são campo propício à emergência dos movimentos associativos decaráter reivindicativo, embrião das chamadas organizações não go-vernamentais.

Os movimentos originam-se nas "redes subterrâneas" formadaspor terreiros do candomblé, escolas de samba, grupos de dominó, ti-mes de futebol e outras formas associativas, próprias de uma culturapluralista e rica, produtora de identidades coletivas.

Adams e Ingersoll" usam a expressão "pentimento"? bem apro-priada a este caso. Deste pano de fundo, emergem as organizaçõesde moradores, que se institucionalizam em função da identidadecom o bairro, a região, o "local" e as ONGs, de caráter menos paro-quial e orientadas a valores mais universais. No centro histórico deSalvador, 165 associações disputam espaço em 6 km-, Setenta asso-ciações tratam de cultura, lazer ou esporte, neste local, sendo as de-mais de caráter sindical.

Se considerarmos a lógica do discurso associacionista, dir-se-á queestas organizações marginais ao sistema de poder formal seguem omodelo coletivista de organização conforme Rottshild-White".

Pesquisas 9 recentemente desenvolvidas em Salvador por Fischer eTeixeira, Cavalcanti e Queiroz identificam estratégias de organiza-ções que vão da contestação e marginalidade (ao modo de um con-tra-poder) à aliança, cumplicidade e integração com o poder institu-cionalizado, tradicionalmente disposto a captar as resistências.

Mas se esta é a situação mais comum, não é uma fatalidade histó-rica como mostra o Olodum. Há associações capazes de gerar seuspróprios recursos e de ganharem, por isto, autonomia de ação. Quan-do esta estratégia de sobrevivência é orientada por valores tão fortescomo a consciência da negritude, pode-se chegar a uma ONG distin-ta como o Olodum.

João Jorge, 10 diretor presidente do grupo, enfatiza:"A vivência da dura realidade social e a existência da discriminação ra-

cial transformaram-se na essência e na inspiração do protesto; a busca pelaafirmação das raízes pluriculturais fez com que a cada ano o Olodum levasseosfoliões a uma viagem, contando a história do seu novo povo, a história dosamba-reggae, a história dos ritmos mágicos, a história do movimento ne-gro na Bahia e no Brasil, a história dos moradores do Maciel/Pelourinho, en-frentando de cabeça erguida a discriminação sócio-racial, levando a toda so-ciedade - seja pelo trabalho contagiante do carnaval - a consciência da ori-gem africana e a necessidade da luta pela justiça social, pela liberdade e pelademocracia. É a história de um bloco que fez do carnaval a oportunidade deunir a sociedade em torno da expressão da cultura afro-brasileira."

5. FISCHER, T.; TEIXEIRA, A.Redes Sociais. participação edescentralização: os casos deSalvador da Bahia e Buenos Ai-res. Relatório da PesquisaCNPq/NPGA/UFBA, 1991.

6. ADAMS, G.; INGERSOLL, V.The culture of organization in anage of techinical rationality. In:Organizational simbolism. BarryTurmr (ed) 1990.

7. Palavra italiana que traduz aprática dos pintores antigos quesobrepunham pinturas paraeconomizar telas. Com o tempo,as imagens (pentimento) apare-ciam ao fundo e se confundiamcom as imagens de superffcie.

8. ROTTSCHILD-WHITE, J. AOrganização coletivista: uma al-ternativa aos modelos burocrá-ticos. Tradução de WellingtonMartins (mimeo).

9. As pesquisas citadas inte-gram a linha Polfticas Públicas,poder local e cidadania gerandodissertações e publicações co-mo: FISCHER, T.; TEIXEIRA, A.Social mets citzen participationand decentralization. SecondEuropean Conference on SocialNetwork, Analysis. Paris:, Ires-co/Lasmas, Abstracts, p. 68;QUEIROZ, A. A Influencia da or-ganizaçlo popular na captaçlode recursos públicos. NPGA/UF-BA, Salvador, 1991.(Dissertaçãode Mestrado); CAVALCANTI, E.Rio Vermelho, um Bairro dePassagem. NPGA/UFBA, 1991.(Dissertação de Mestrado).

10. Segunda entrevista concedi-da a M. Dantas.

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Segundo Antonio Riserio." "as tentativas coloniais de erradicação dacultura negra fracassaram e a vida baiana está se reafricanizando. A bem daverdade, a Bahia sempre foi afro e a presença cultural e humana da Africaem Salvador é de tal magnitude que Salvador já foi chamada de Roma Negrae de Nova Guiné. O carnaval na Bahia tem sido, desde o início do século,uma vitoriosa afirmação cultural dos negros e continua sendo um espaçoprivilegiado para a sua manifestação e afirmação cultural, com todas as re-percussões sócio-políticas daí decorrentes".

Das pessoas que formam o Olodum, segundo declaração do dire-tor-presidente, 90% são da área do Maciel/Pelourinho, tendo nasci-do lá, ou que nasceram lá e semudaram, ou que nasceram em ou-tros lugares mas viveram a vida todalá. São basicamente negros, mestiçose pessoas originárias de uma área dacidade que a cidade destaca, comoafirma João Jorge: "Ninguém queriamorar no Maciel/Pelourinho, ninguémqueria ser do Maciel/Pelourinho, e a cida-de não gostava do Maciel/Pelourinho".

O bairro Maciel/Pelourinho temem média 45.000 moradores, onde0,2% são prostitutas, 5 a 6% eternosdesempregados, 1% que sobrevive deatividades ilícitas, e o restante é for-mado de crianças (60%)e velhos (28%).Nas décadas de 20e 30, os an-tigos moradores do Maciel/Pelourinho começaram a se mudar paraoutros bairros como Barra, Graça, não queriam mais morar ali.Vieramos primeiros árabes, turcos, espanhóis e se sublocaram no Pelourinhopara ganhar dinheiro, os negros também foram chegando e ficando,eles já vieram adultos, de outros bairros e de cidade do interior da Ba-hia. Foram estes osmoradores antigos do Maciel/Pelourinho.

João Jorge atribui a ampliação do Olodum à própria história ante-rior do Maciel/Pelourinho, e diz: "Aqui foi uma área de muita resistên-cia contra a escravatura e agora, mesmo que se tenha acabado a história dis-so, nós no fundo somos descendentes dessas pessoas que lutaram. Nosso po-vo aqui foi encontrando os pedaços de nossa história, a consciência negra ex-tremamente bem definida, e isso foi aos poucos se consolidando".

A história do Olodum é única enquanto ONG que faz cultura, po-lítica e presta serviços sociais de caráter não assistencialista. Em pou-cos anos de história, construiu uma forte identificação com a cidadede Salvador; cenário urbano onde as raízes e tradições são reinventa-das pela modernidade e onde tentamos contextualizar esta organiza-ção que se confunde com seu próprio produto.

Reflexo de uma cultura marcadamente étnica, cria cultura e gestauma cultura organizacional peculiar, como se analisa adiante.

A estratégia de sobrevivência e expansão que utiliza é um dosseus traços mais distintivos.

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negra e apoiada nos mitos doimaginário da negritude

reinterpretados e atualizados.

IMAGEM E REFLEXO DE UMA CULTURA - A ESTRATÉGIA DO OLODUM

Ao analisar o Olodum enquanto fenômeno organizacional vistoatravés de elementos de sua cultura, tenta-se evitar a crítica (proce-dente) de Adams e Ingersoll." que dizem ser os estudos de culturasorganizacionais feitos de modo a se pensar que as organizações são"misteriosamente independentes da macrocultura".

11. RISERIO, A. Op. cit.

12. ADAMS. G.; INGERSOLL. V.Op. cit.

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Esta dissociação não é, obviamente, possível neste caso. O Olodumalimenta o seu projeto organizacional com as crenças de história he-róicas dos negros, vigentes nas sociedades das quais foram extraídaspela escravidão, e depois modificadas pela convivência forçada comos brancos. Como refere Agier." "aforça e a originalidade do movimentonegro na Bahia consiste, precisamente, o dispor de um amplo referencial cul-tural afro-baiano, que permite as atuais reelaborações, tanto políticas quantoontológicas, envolta de um ser negro individual e coletivo".

A construção da cultura organizacional do Olodum é fortementeorientada à construção da identidade negra e apoiada nos mitos doimaginário da negritude reinterpretados e atualizados.

Nos limites deste trabalho não se tem a pretensão de evitar a inade-quação (misplacement) de conceitos e recursos de análise criticados porAdams e Ingersoll." quando se trata de cultura organizacional.

Guerreiro Ramos 15 já acusava a promiscuidade existente no campoda administração, com a transferência inadequada de conceitos. Ana-lisar uma organização na perspectiva da cultura organizacional" des-colando-a" do contexto, falar de cultura organizacional e não de cul-tura(s) de organizações, confundir cultura com subculturas, são al-guns dos abusos conceptuais também denunciados por Aktouf." quese refere às simplificações feitas por Oeal e Kennedy,", Allaire e Firsi-rotu," e Schein;'? quando tratam de criação, mudanças ou extinção deculturas organizacionais.

No caso de uma organização tão complexa quanto o Olodum, queincorpora a contradição no projeto organizacional de forma tão explí-cita (lucrativa/não lucrativa; passado/futuro; líder carismático/deci-sões colegiadas; formalidade/informalidade; identidade como o lo-cal/abertura para o mundo; referenciada à comunidade/referenciadaao mercado) só é possível tentar-se a abordagem "culturalmente sen-sível" de que falam Adams e Ingersoll ".

Beltran e Ruffaut-' adotam o conceito de cultura de organizaçõescomo uma metáfora útil para vincular o discurso contemporâneo so-bre a organização. As convergências e contradições, oposições, e cli-vagens identificadas na análise de constantes relações dialéticas entreo concreto, o social e o simbólico podem ser percebidas na abordagemholística da organização segundo categorização de Sackmann, 1991.

No entanto, a organização enquanto objeto de análise não é umatribo, nem uma sociedade à parte, como lembra Chanlat.", transpas-sada por componentes societais, constitui um elemento da estruturasocial e da cultura a que pertence.

A produção de símbolos e significados é imanente à vida organiza-cional e resulta da inter-relação dialética entre contexto e atores quetranscende os limites da organização, por si só uma "floresta de sím-bolos" (campos, atos e jogos simbólicos) como lembra Tumer>. Asculturas organizacionais plasmam-se em práticas sociais vividas emespaços e tempos territorialmente localizados. Concorda-se comChanlat quando diz que o cultural (e o simbólico) nas organizações ésócio-historicamente localizado e, acrescentaríamos, datado.

O simbolismo, acrescentaríamos, é marcado pela tensão existentena sociedade que vive, de um lado, segundo Adams e Ingersoll," a"idade da racionalidade técnica" e, acrescentaríamos, de outro, a revi-talização dos mistérios, mitos e utopias.

Adotando as categorias de Chanlat" os subsistemas simbólicos eestrutural-material, mediados por relações de poder, constituem a or-dem organizacional, marcada por ambigüidade, tensão, incerteza,contradições. Especialmente, pelo movimento.

13. AGIER, M. Cantos e toques:etnografias do espaço negro naBahia. Introdução. CadernoCRH, Suplemento, p. 6-13,1991.

14. ADAMS, G.; INGERSOLL, V.Op. cit.

15. RAMOS, A. G. A Teoria ad-ministrativa e o uso inadequadodos conceitos. Revista de Admi-nistração Pública. Rio de Janei-ro, v.17. nº1 jan./mar.1983.

16. AKTOUF, D. Le Simbolismeet la culture d'enterprise. Desabus conceptuelles aux leçonsdu terrain. In: L 'individu dansI'organisation. Ed. Jean FrançoisChanlat. Quebec: Editions ESKA,1991.

17. DEAL, T.; KENNEDY,A. Cor-porate culture. The rites and ri-tuales of corporate fite. NovaYork: Addison-Wstey, 1990.

18. ALLAIRE & FIRSIROTU. UnMódele multifactoriel poure'êtude des organisations. In:Cultures Organisationelles. Que-bec: Jeetan-Morin, 1988.

19. SCHEIN, E. La Culture em-presarial y elliderezgo. Madri:Plaza y Jenes, 1988.

20. ADAMS, G.; INGERSOLL, V.Op. cit.

21. BELTRAN, A.; RUFFAUT, M.Culture d'enterprise it historieParis: Les Editions d' organiza-tion, 1991.

22. CHANLAT, J. F. L 'inaividodans f'organization. Quebec:Editions ESKA, 1991.

23. TURNER, B. OrganizationalSimbolism. Berlim: De jwjter,1990.

24. ADAMS, G.; INGERSOLL,Op. cit.

25. CHANLAT, J. F. Op. cit.

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OLODUM' A ARTE E O NEGÓCIO

Nesta "ordem", a estratégia de sobrevivência da organização temum outro caráter. Não a estratégia comoprocesso predeterminado e ra-cional, mecanismo manipulável e controlado "de dentro". Mas umcomportamento organizacional compreensivo, incrementai e contínuo,apoiado em valores, tradições e normas de comportamento que emer-ge, cwnulativamente, de vida de organiza-ção, no dizer de Cahmberg ".

A estratégia de sobrevivência, tão conheci-da da população negra baiana, é traço caracte-rístico da cultura organizacional do Olodwn.Ao se apresentar aos olhos do público consu-midor como organização solidária,pluralista edemocrática, fundada em um "modelo depossibilidades", tem em seu líder o "ator es-tratégico" de que fala Grainer, citado porCahmberg " que identifica a estratégia organi-zacional como um fenômeno cultural.

A cultura será o resultado sempre provisó-rio de uma longa estratificação de decisões,sucessos e fracassos, de sucessivos esforços de adaptação da organiza-ção aos modos e técnicas específicas do tipo de produto/produção,adotados por meio de um cantinho estratégico que se vai construindoao caminhar. Nada mais exemplificativo desta afirmação do que a his-tória da organização Olodum como a seguir se verá; integrando nomesmo movimento, o simbólico e o instrumental, a arte e o negócio.

DE BLOCO CARNAVALESCO A HOLOING

Fundado enl1979 C01110 um blpl'o de carnaval em meio atantos outros blocos afros de destague~ como o Ilê-Aiyê, Filhosde Ghandi, Badauê ou Araketu, o Olodum, criado por morado-res do Maciel/Pelourinho, tinha a finalidade de ser mais umbloco carnavalesco.

Sabe-se que o sucesso dos blocos de carnaval geralmenteé efêmero e limitado; no entanto, com o passar do tempo, oOlodurn se diferenciou, evoluindo para um conglomerado deatividades culturais de cunho sócio-comunitário, com projeçãointernacional 28 . .

Ninguém melhor do que seu diretor-presidente, paracontar a história do Olodum, A seguir, serão transcritos algunstrechos da sua entrevista.

':Até 1983, o Olodum viveu sua fase enquanto bloco de carnaval, semregistro, sem vida jurídica, sem definição estatutária, viveu, uma etapa moiioa-da pelo desejo de brincar o camaoal e de sair às ruas ... prâfuzer um bloco decarnaval as pessoas tiveram que se organizar, se O1ganizar em áreas (canto, ar-tes, presidên.cía etc.). Assim, antes dos primórdios de 1983, o Olodum foi basi-camente um bloco de carnaval e rum as grandes dificuldades de controle opera-cional, de controle financeiro, de controle administrativo, qu.e os mitras blocoscostumam ter. Isto agravou-se tanto que em 1983 o bloco não foi às ruas".

Apartir de 1983começa uma nova etapa: já com visão es-tratégica, o Olodum foi transformado no Grupo Cultural 010-dum, com estatuto registrado e logo sendo reconhecido comode utilidade pública nos níveis municipal e estadual.

26. GAHMBERG, H. Metaphormanagement on the semiotec ofStrategic leadership. In: Organi-zational Simbolism. Berlim: DeJnyter, 1991.

27. GAHAMBERG, H. Idem, ibi·demo

28. O sucesso do Olodum ficaevidenciado pelo próprio cresci-mento da organização que mul-tiplicou em poucos anos assuas atividades e produtos, am-pliando seu mercado consumi-dor da cidade de Salvador, ini-cialmente, para o Brasil e paísesde pelo menos três continentes.O Olodum gravou cinco discos,que venderam centenas de mi-lhares de cópias, e um sexto LP"The Best of Olodum" que temvendido milhares de cópias noBrasil, Estados Unidos e algunspaíses da Europa e América La-tina. Suas músicas tocam nasrádios de todo o Brasil e nomercado do World music emoutros países. A Banda Olodumteve que se dividir em duas paraviabilizar excursões no Brasil eno exterior ao mesmo tempo, játendo se apresentado em váriosEstados brasileiros e em deze-nas de países; a música "Ob-vious Child", de Paul Simon,que tem a participação da bate-ria do Olodum tornou-se a prin-cipal do LP 'Rhytm of theSaints" e fez sucesso no mundointeiro. Além de tudo isso, o su-cesso do Olodum fica clarotambém no respeito Que o qru-po adquiriu no espaço pclltico-cultural da Bahia, sendo hojeum dos expoentes da "baianida·de contemporânea".

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o sucesso comercial do Olodum começa em 1987, quandoé lançada a música "Faraó, Divindade do Egito", tema do desfilede carnaval, que levou à gravação do primeiro disco de uma sé-rie de seis. O primeiro não foi produzido pelo Olodum, mas, apartir do segundo, o Grupo assumiu a produção e total controleartístico. Da mesma forma, o Olodum passou a produzir seuspróprios shows, duas turnês, suas atividades internacionais.

Foi montada toda uma estrutura física, administrativa efinanceira, necessária ao funcionamento da empresa, que de-pois de funcionar por algum tempo numa sede provisória,atualmente ocupa um prédio no Maciel/Pelourinho, recupera-do com recursos do próprio Grupo Cultural Olodum, confor-me projeto da arquiteta Lina Bo Bardi.

Como uma ONG de características muito singulares, oGrupo Cultural Olodum, com certa propriedade, tem sido cha-mado de holding Olodum. Numa mistura estratégica de empre-sas e entidades sem fins lucrativos, conforme seus organogra-mas apontam, essa holding tem como empresa-mãe o GrupoCultural Olodum - entidade sem fins lucrativos - que possui ocomando, através de sua estrutura de decisão - a Diretoria Exe-cutiva. Dessa entidade central, surgem duas vertentes do 010-dum: a Fundação Olodum (sem fins lucrativos) e o Bloco 010-dum (empresa).

A Fundação Olodum tem como base de ação a área deprojetos, com duas vertentes: o Rufar dos Tambores e a EscolaCriativa Olodum, que envolvem desde o intercâmbio interna-cional (Estados Unidos, África, Europa, Ásia e América Lati-na) até o grupo de dança e o Bando de Teatro Olodum, sendoque a Escola Criativa oferece uma formação complementar àEscola convencional, às crianças da comunidade do Ma-ciel/Pelourinho.

A outra vertente do Grupo Cultural Olodum, que mesclainteresses econômicos e sócio-culturais é formada a partir do Blo-co Olodum, pela Fábrica de Carnaval e Boutique Olodum. Final-mente, a estrutura chamada Carnaval Olodum, comanda as ativi-dades culturais de mais significativos resultados econômicos,com os setores Banda Olodum, Discos Olodum e Shows Olodum.

A holding, assim, assume como objetivos da organização,uma sintonia entre seu papel político-sócio-cultural e sua fun-ção econômica. Sua atuação é voltada para o crescimento daprodução, o aumento da produtividade, a realização de inves-timentos em novos produtos e tecnologias, a diversificação dasempresas, e distribuição dos lucros para seus membros, direta-mente, e para a comunidade, indiretamente.

Do lucro de cada empresa ou entidade do Grupo Cultu-ral Olodum, um percentual é destinado à empresa-mãe, quenão tem fins lucrativos e que investe em formação e treina-mento de mão-de-obra, educação comunitária, pesquisa, edu-cação e outras ações sócio-culturais. Com isso, tem-se viabili-zado, por um lado, o crescimento e consolidação econômica dogrupo, e por outro diminuído os índices negativos nos indicado-res de qualidade de vida da população do Maciel/Pelourinho.

Funcionando como uma verdadeira usina de idéias, pro-dutos e ações, ao tempo em que investe na pesquisa da história

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OLODUM: A ARTE E O NEGÓCIO

e cultura negra e traz esses conhecimentos aos seus produtos, oOlodum marca presença em campanhas de vacinação infantil,limpeza, segurança e integração social da comunidade,

Finalmente, um exemplo de vitalidade surpreendente, oOlodurn abre escritório de representação em Londres, faz shows evende discos em vários países, mar-capresença na World Music, enquan-to, paralelamente, consolida suasraízes, investindo diretamente nacomunidade local, através de suaação corno empresa que contratamão-de-obra e produz riqueza, e in-diretamente, quando utilizando-sedo poder conquistado pela suaatuação e sucesso, garante a execu-ção de programas de efetiva melho-ria de qualidade de vida da comu-nidade através do governo local.

Nessa trajetória, duas con-quistas de ampla repercussão marcam o sucesso do Olodum ede sua estratégia, implantada em 1983:o espaço artístico-culturalresulta em lucro; e a integração social da comunidade - que aospoucos vai-se integrando ao mercado - resulta em legitimidade.

Para o público externo, o Olodum exibe uma política vol-tada para a justiça social e a cidadania, atuando contra o racis-mo, a violência e a ignorância, pressionando politicamente asesferas de governo local pelo fornecimento dos serviços públi-cos básicos para a comunidade do Maciel/Pelourinho. Em to-das as áreas de atuação, paralelamente, o Olodurn propaga osvalores positivos da raça negra e da riqueza cultural da comu-nidade do Maciel/Pelourinho, tendo conseguido, nesses trezeanos de atuação reduzir o isolamento crônico da área.

Apesar da estruturação formal representada pelos váriosorganogramas da holding, o Olodum representa uma misturade organização formal e informal. Essa constituição híbrida éutilizada de maneira a refletir as características e objetivos doGrupo Cultural Olodum e viabilizar a sua estratégia enquantoorganização.

A trajetória de crescimento do Grupo Cultural Olodumtem por trás de si uma estrutura de poder e autoridade tacita-mente aceita pelos seus membros e que se concentram num co-legiado chamado Diretoria Executiva formada pelo Presidente(que, numa prova da importância da cultura na vida da organi-zação, é também Diretor de Cultura), Primeiro e Segundo Vice-Presidentes, Diretoria Financeira, Diretoria de Artes, SecretariaGeral e Diretoria de Patrimônio. Apesar das funções aparente-mente tão específicas, na verdade, as decisões são tomadas poresse colegiado, independentemente do número de presentes. Oconsenso desse colegiado é fundamental para a administração,pois garante a coesão das ações empreendidas e a continuidadeadministrativa.

A questão da continuidade administrativa é central parao Grupo Cultural Olodum, já que é ela que garantiu a execuçãode uma estratégia prevista para dez anos, traçada em 1983 e

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organizacional tão caleidoscópica.

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Page 9: OLODUM: A ARTE E O NEGOCIO · INTRODUÇÃO OLOOUM: A ARTE E ONEGÓCIO ogrupo Cultural Olodum é uma organização não governamental que tem como produto básico a cultura enquanto

que foi cumprida até agora, quando está sendo traçada pela or-ganização a estratégia para os próximos dez anos.

Esse Colegiado garante também, além da coesão dasações, mecanismos de controle sobre os membros da organiza-ção, basicamente através de regras de comportamento, sendoque as insatisfações geradas até hoje têm resultado na saída ouexecução dos membros insatisfeitos, não tendo sido registra-das, até agora, tentativas organizadas de derrubar a diretoriaou de disputar o poder concentrado na Diretoria Executiva.

Atraindo novos membros de modo relativamente fácil, jáque a organização se encontra no seu ápice, conquistando su-cesso, lucro e poder, o Olodum oferece ainda algumas vanta-gens de valor aparentemente subjetivo, mas de forte atração co-mo possibilidade de mudanças reais para seus membros, comopor exemplo: respeitabilidade, valorização, integração social,espaço de criação artística. Mas uma vez aqui, o poder de umproduto que se sustenta num imaginário da comunidade, e emsua história, seus costumes, seu cotidiano.

O Grupo Olodum prioriza a questão da educação nosentido mais amplo para o seu público interno e o externo:educar é preparar seus componentes para produzirem arte,cultura e renda; é preparar a comunidade do Maciel/Pelouri-nho para explorar as possibilidades comerciais geradas no lo-cal pela ação do Olodum, em shows, ensaios do bloco e outrasatividades atrativas de público; é também preparar o próprioOlodum e a comunidade para o confronto cotidiano com aideologia dominante na sociedade, impregnada de racismo emarcada pela exploração econômica das classes mais pobres.

Na área de recursos humanos, a política de treinamentoconstante e diversificado tem provocado o surgimento de no-vos talentos (como acontece, por exemplo, com a Banda Mirim)e consolidação dos já consagrados, sendo considerado normalpelo grupo o aproveitamento paulatino desses últimos na ad-ministração, onde costumam assumir papéis de direção.

Nesta trajetória de treze anos, a organização vai adquirin-do maior idade e fazendo planos para o futuro. Entre as estra-tégias de competitividade, muitas das quais não reveladas pordecisão da organização, está a idéia de diminuir o fosso entrecrianças que sabem usar o computador e aquelas que não sa-bem usá-lo, de modo a tomar competitivas as crianças da co-munidade do Maciel/Pelourinho.

A idéia é começar a preparar a "guerra" do ano 2000, on-de seus filhos e netos se confrontarão com uma sociedade tec-nificada que não perdoará falhas; reconhecendo o seu papelhistórico de ousar é que o Olodum, através de sua Escola Cria-tiva - uma dentre tantas unidades da organização - se voltarápara libertar, para construir outro ser humano, conhecedor desuas raízes e que acredita no futuro.

João Jorge é enfático: "Numa sociedade onde os níveis de de-sigualdade são tão acentuados, é impossível para alguém que mora emuma favela, que não tem acesso à formação, que não teve acesso à edu-cação, que carece de conhecimentos, competir em condições de igual-dades com aqueles que recebem dinheiro, que se educam para ser lide-ranças empresariais. A disthncia é muito grande" .

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o Grupo Cultural Olodum é, assim, uma ONG que sefragmentou em subestruturas empresariais, mas de um modomuito particular. Nessa empresa, há um só tempo, o capital é acultura e é esta cultura que gera acumulação de capital. O capi-tal acumulado é em parte poupado para futura distribuição eem parte é investido na reprodução cultural, reafirmando acultura da comunidade. Outra parte, em forma de lucro, é dis-tribuída, aumentando a renda local, gerando maior capacidadede produção e autonomia cultural.

Ao fim de cada ciclo produtivo, o Olodum consegue umproduto paralelo: a integração social da comunidade negra doMaciel/Pelourinho com a cidade de Salvador.

A dupla fase do Olodum, como ONG e como empresacapitalista, viabilizada através de um projeto e ação de ideo-logia socialista, é explicitada, de forma sintética, pelo Presi-dente da organização, João Jorge: "Em nosso caso, acumular ca-pital é o meio de distribuir renda. Se nós fôssemos uma empresa defato capitalista, o mais provável é que nesse momento histórico derecessão no país, estivéssemos falidos. Mas, ao contrário, o Olodumestá fazendo cada vez mais novos investimentos. Na recessão, dife-rentemente das empresas capitalistas, nós estamos em plena fase decrescimento" .

A cultura é resgatada no tempo, de modo a viabilizar,com a sua força, uma transformação no real, para, com isso, re-verter a situação secular de opressão, miséria, ignorância e ex-clusão, a qual a comunidade do Maciel/Pelourinho parece irre-mediavelmente destinada.

À GUISA DE CONCLUsAo

"Seu olho me olha, mas não me pode alcançar...Não tenho escolha, careta, vou descartarQuem não seguiu o Olodum balançando o Pelô.Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo..."

Caetano Veloso

Optou-se por apresentar o Olodum como uma trajetória, um movi-mento, uma estratégia; ponto de confluência entre o mundo simbóli-co e o mundo real.

As metáforas do consenso, da identidade e da sedução referidaspor Beltran e Ruffaut " auxiliam a compreensão do Olodum enquantoentidade autônoma, não sendo a organização" o teatro abstrato e inter-cambiável de um drama sempre renovado da luta de classe, mas um lugar devida que elabora, pouco a pouco seus usos e suas regras e segrega um dina-mismo que lhe é próprio".

Ao tempo em que nos instiga e desafia, o Olodum mostra o quantoé difícil entender-se a alquimia sutil de uma cultura organizacionaltão caleidoscópica.

De outra parte, sugere o quanto é estimulante o vasto campo de es-tudos sobre modelos organizacionais que nos oferece as ONGs: plu-rais em suas origens, heterogêneas em suas manifestações e peculia-res em sua cultura. O

Artigo recebido pela Redação da RAE em agosto/92, aprovado para publicação em novembro/92.

29. BELTRAN, A.; RUFFAUT, M.Op. cit.

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