oi piti texto paulo

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Oi Piti, agredezco mais uma vez , o texto me agrada bastante, acrecento aqui uns dados , para ver o que pensa, e completar a imagem que tem ..... Aqui é arte: Paulo Nazareth Maria Angélica Melendi UFMG, CNPq. Os artistas contemporâneos são sábios ou precursores de um género especial: recolhem pedaços dispersos do mundo como o fariam uma criança ou um trapeiro. [...] Fazem que se encontrem coisas fora das classificações habituais, extraem de essas afinidades uma modalidade nova de conhecimento, que abre ante nossos olhos aspectos inadvertidos do mundo: o inconsciente mesmo de nossa visão. Georges Didi-Huberman Caminhante não há caminhos, faz-se o caminho no andar... Antonio Machado Um cabelo Cruzeiro do Sul- Acredito que seja a cor de minha pele. Brasil, 2010

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Ensaio sobre o artista Paulo Nazareth comentado por ele

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Page 1: Oi Piti Texto Paulo

Oi Piti, agredezco mais uma vez , o texto me agrada bastante, acrecento aqui uns dados ,

para ver o que pensa, e completar a imagem que tem .....

Aqui é arte: Paulo Nazareth

Maria Angélica MelendiUFMG, CNPq.

Os artistas contemporâneos são sábios ou precursores de um género especial: recolhem pedaços dispersos do mundo como o fariam uma criança ou um trapeiro. [...] Fazem que se encontrem coisas fora das classificações habituais, extraem de essas afinidades uma modalidade nova de conhecimento, que abre ante nossos olhos aspectos inadvertidos do mundo: o inconsciente mesmo de nossa visão.

Georges Didi-Huberman

Caminhante não há caminhos,faz-se o caminho no andar...

Antonio Machado

Um cabeloCruzeiro do Sul- Acredito que seja a cor de minha pele. Brasil, 2010

No pátio de entrada da Escola de Belas Artes da UFMG, perto do DA, sentado numa

cadeira escolar, um jovem come ou simula comer de um prato cheio de cabelo crespo. Seu

próprio cabelo? Não lembro de quando aconteceu, mas com o correr dos anos tornou-se comum

ver esse mesmo jovem realizando ações fortes e silenciosas nos espaços do prédio.

Page 2: Oi Piti Texto Paulo

No Brasil, chama-se encarapinhado, pixa, pixaim ou cabelo ruim ao cabelo crespo dos

descendentes de africanos. Por ser ruim, a maioria das mulheres que tem esse cabelo o alisam; os

homens o usam muito curto. Paulo Nazareth, porém, como se fosse uma bandeira, usa seu cabelo

crespo num estilo desalinhado, que se aproxima do que, na década de 1970, chamava-se de black

power. Mas, ao contrário dos integrantes desse grupo, ativistas que procuraram construir uma

força política para fazer escutar suas exigências de igualdade, o artista trabalha caladamente.

Com uma fala mansa, quase um murmúrio, Paulo escava sua ancestralidade mestiça para exibi-

la ao lado de todas as outras ancestralidades, com o objetivo recuperar para si e para nós, os

legados perdidos.

No panfleto Cruzeiro do sul, estão impressas quatro fotos de Paulo com barba e bigode

falsos feitos com o próprio cabelo. A legenda sob as fotos traça o roteiro da viagem à Porto

Alegre:

pegar o ônibus coletivo Palmital >Aeroporto Confins >São Paulo (Congonhas) > Porto Alegre (Aeroporto Salgado Filho) > Cruzeiro do Sul periferia de Porto Alegre. 13 de maio de 1888, assinatura da Lei Aurea, data oficial da abolição da escravidão no Brasil, após centenas de revoltas e revoluções1.

[ as imagens deste pamfleto sao do projeto de deslocamento entre o que penso centro - sudeste do brasil,

centro supostamente mestizo para o sul supostamente branco, digo supostamente por que me parece mais

uma suposicion que algo mais , ha sim uma desejo uma teoria , nao sei o que... mas o sul tambem tem

seus negros e o centro- sudeste tem seus brancos e negros --- eh claro a proporcion eh outra.... Belo

Horizonte e Porto Alegre, dois nomes que para mim parecem promesas de algo bom, de felicidade , dois

nomes que apontam uma utopia == essa acion foi realizada em principios de 2010, creio que marzo.

Penso que os cabelos nao simulam barba e bigodes falsos, mas bem se mesclam com os mesmos, a boca

1 NAZARETH, Paulo. Cruzeiro do Sul- Acredito que seja a cor de minha pele. 2010.

Page 3: Oi Piti Texto Paulo

estava repleta de cabelo, meu proprio cabelo, como se o fora comer , mas impedido pela falta do aceite de

dende ou aceite de Oliva. Neste dia sai do Palmital assim com minha boca impreguinada, cheia , calada

por meu proprio cabelo tomei o onibus vermelho, esse que nos leva aos lugares mais avastados de Belo

Horizonte, me transpordei para outro no meio do caminho , onde hoje eh o atual centro administrativo do

governo do estado de Minas, de ahi segui ao aeroporto de Confins , bastante longe e pelo qual criaram a

famosa linha verde, para dar-lo melhor acesso. Sempre com minha boca repleta de meus proprio cabelo

segui viagem em aviao o sul com conexion no Rio de Janeiro, nossa antiga capital, cidade que sempre

ouvi da promiscuidade , do se deitar com todos, quiza seja um boato herdado do colonialismo, da corte,

quando todos se deitariam com todos , negros, brancos, indigenas, judeus , negros musulimes, e

promoviam essa grande mestizagem .... que chamara promiscuidade.... assi escutei muitas vezes os

ibericos sao o poco mais promisco da Europa .... por isso a eles se olha torto no velho continete ... nao sei

se a coisa segue assim . Desde o Rio, ou melhor desde o Aeroporto do Rio creio que santos Dumont,

segui a Porto Alegre , uma viagem que devido a conexion durou me parece cerca de doze horas ....

Foi um dia inteiro com esse cabelo silenciando minha boca, desde as seis da manha , ou pouco antes ..

quando tomei o onibus junto aos trabalhadores no Palmital- Sat L/ MG ate cerca das 8 horas , numa igreja

periferica de Porto Alegre, na Favela chamada Cruzeiro do Sul , periferia de Porto Alegre para onde segui

desde o Aeroporto Salgado Filho, tomei um onibus ate um determinado ponto da cidade e de ahi segui

caminhando a periferia ... buscava em berdade um centro de camdomble que diuzem haver muitos na

cidade de Porto Alegre , alias dizem que ahi ha’ mais terreiros queem Salvador / Bahia .. mas estao tao

escondidos que dificilmente eh possivel encontralos se nao eh parte dessa comunidade... por esse motivo

me adentrei a uma igreja catolica, creio que de Santa Barbara .... onde permaneci por um tempo

realizando oraciones sincreticas ..... de longe miravame Ana paula Tomimori--- o impresso e a acion nao

estavam juntos, o impresso nao esteve em Porto Alegre. Essa mesma acion desejo realiza-la no translado

entre Brasil e Africa do Sul. Os pamfletos seguem como testemunhos , projetos, desejos ou presagios de

possiveis aciones, acontecimentos , planos , anuncios, anunciacion... o cabelo segue na boca se mesclado

a pequena barba e bigode, com os quais se confunde.]

Page 4: Oi Piti Texto Paulo

O ideário libertário desliza no uso do cabelo como marca de identidade e na inscrição, na

última linha do impresso, da data da assinatura da Lei Aurea. O rosto carrancudo das fotos, o

farto (e evidentemente falso) adereço capilar parecem sugerir sob um viés irônico a questão

racial que não se resolve ao longo de um percurso que o leva da periferia de Belo Horizonte à

periferia de Porto Alegre.

Uma libra de carneA carne. Brasil, 2005.

Na cantina da Escola de Belas Artes, Paulo já o conheço agora paga sua conta.

Sobre sua face, como uma máscara, leva amarrado um pedaço de carne fresca. A visão é

pungente, mas na EBA, todos ficamos em silêncio e interagimos como se um homem com o

rosto coberto de carne fosse a coisa mais natural do mundo. Sem trocar comentários continuamos

fazendo o de sempre enquanto o artista espera na fila.

[ antes do Itau, tambem realizei essa peza no Palacio das Artes, espotaneamente sem avizar a

ninguel, alem do joacelio , que fez discretamente o registro, esse registro foi exibito no Itau Cultural

enquanto eu estava na India, no Palacio creio que teve as duas reaciones, indifencia e extranhamento]

A performance foi também apresentada no projeto Rumos do Itaú Cultural. Na foto do

registro, os espectadores parecem assustados enquanto o artista deambula pela galeria. Tomo

conhecimento do estranhamento dos outros através da foto e sinto o meu: o contato da carne crua

sobre o rosto, o cheiro desagradável; o asco e a piedade por ver, sobre a face humana o pedaço

do interior de um outro corpo.

A abjeção da carne morta cobrindo a carne viva, a alteridade radical do outro animal,

morto , a evocação de rituais antigos que ao esquivar a ênfase no espetacular, nos coíbe e

provoca o estancamento do nosso fluxo reflexivo.

Page 5: Oi Piti Texto Paulo

Um denteDente de Elefante, Brasil, 2007

Na Rua Leonídia Leite, Nº 68, no Bairro Floresta em Belo Horizonte, ocupada

temporariamente pelo grupo Kaza Vazia, o artista, retira com cuidado um dente da frente

implantado e coloca um separador de lábios que deixa a mostra sua arcada incompleta. Assim,

com a boca escancarada, percorre o caminho até o centro da cidade, parte a pé, parte de ônibus.

Durante um tempo, permanece na Praça 7 de setembro, onde realiza malabares com a língua e o

fragmento de dente que tem em sua boca, essa boca aberta impossibilitada de falar. Segue até o

Palácio das Artes, onde, no banheiro, tira o separador e recoloca o pivô. As fotos publicadas no

seu blog mostram rostos ferozes, desmesurados, com os lábios afastados, língua, gengivas e

dentes a mostra.

[ aqui foram muitos registros de vivencias com esse dente , com o dente serrado, com o metal

exposto, esse trajeto pelas ruas ,e outros especificamente fazendo “malabari” ahi na praza 7]

Concomitantemente, distribui o panfleto Dente de Elefante, 2007, dedicado aos

desdentados. Nele, começa rasteando a origem da palavra banguela do banto benguela , e

continúa, numa enumeração vertiginosa de narrativas que aliam à possibilidade de rir ou sorrir,

própria de homens e macacos, a escravidão, a extração do ouro, a dificuldade de falar sem ter

dentes, a epopeia de Tiradentes, as torturas na ditadura militar, a extração dos dentes do elefante

para usa-los como material de arte, até se dirigir aos passantes:

Se é nas periferias, favelas e bairros pobres das grandes cidades que se encontra grande parte da população negra mestiça, afro descendente, porque é que ainda estranham quando me vem passar com meu cabelo /blek pauer/ (sic) afro-descendente? O que compreendem se mostro os dentes?2

Em Dente de Elefante, a boca espantosamente aberta é a parte que está no lugar do todo,

2 NAZARETH, Paulo. Dente de elefante. Belo Horizonte, 2007.

Page 6: Oi Piti Texto Paulo

um detalhe que representa desproporcionadamente o rosto. O sujeito se mostra tudo boca: animal

selvagem disposto a devorar qualquer coisa que se ponha diante dele. É impedido de fazê-lo,

porém, pelo aparelho que o obriga a manter a boca aberta. Também a palavra é negada por esse

aparelho colocado no órgão que permite sua existência; só é possível o grito e a abjeta

manipulação do dente com a língua. A exibição de uma boca banguela, impossibilitada de comer

ou falar; a de um rosto coberto de carne, impedido de ver; a deglutição do próprio cabelo,

questionam, como procedimentos autofágicos, a antropofagia modernista. O sujeito se vira para

si mesmo: a humanidade do humano ameaça a integridade do próprio corpo vivente.

Um filtro de água

Água potável para homens laicos. Índia, 2006

Pelas estreitas ruas de Khirkee, na Índia, um homem caminha. Pendurado sobre seu peito,

carrega um filtro de cerâmica, dos que se utilizam no Brasil para manter a água fresca. O homem

é mulato claro e amarra o cabelo enrolado com um lenço colorido. Na mão segura vários copos

de latão. À deriva pela cidade desconhecida, oferece agua aos transeuntes. Como não sabe a

língua do país e mal fala inglês, leva um cartaz onde alguém escreveu em hindi “água grátis”.

Percorrerá, com passo lento, as ruas ignoradas e oferecerá a água com um sorriso. Os habitantes

também aceitarão a dádiva da água fresca que vem das mãos do estrangeiro. Quando a água do

filtro se esgote, o homem o deixará numa esquina, onde a população deixa a água em potes de

barro para os passantes. A deriva é gravada em vídeo em tempo real.

[ soh um dado : os copos sao de barro, uma ceramica barata queimada a baixa temperatura,deixo

o fritro ahi, enchendo-o com agua do ponte de barro que ahi esta, antes de seguir meu caminho]

Um passaporteUma rúpia por meu país, Nova Delhi, 2006.

Page 7: Oi Piti Texto Paulo

Sentado no chão de uma praça populosa, Paulo Nazareth oferece uma rúpia a quem

adivinhe seu país de origem. O passaporte brasileiro está pendurado do seu pescoço, de cabeça

para baixo. Um enxame de pessoas se agita ao seu redor, gesticulam e gritam num inglês

corrompido, ansiosos por espiar o passaporte e por levar a rúpia. O grupo de pessoas cresce,

chega a polícia. Alguém grita: Brasil!, Paulo entrega a rúpia, levanta suas coisas e sai

caminhando pela cidade desconhecida.

O passaporte é a parte mais nobre do homem. E não é tão fácil de fabricar como um homem. Um ser humano pode se fabricar em qualquer parte da maneira mais irresponsável e sem nenhuma razão sensata; um passaporte jamais3.

Em Diálogos de refugiados, Bertold Brecht escreve fragmentos sobre sua vida de

exilado, e cita a importância do documento. O humor cruel do escritor aponta, além da sua

própria angustia, para as angustias dos viajantes indocumentados: obter um passaporte, conservá-

lo, conseguir os vistos necessários, ser aceito ao chegar no destino.

Durante sua viagem por América, na fronteira entre Tijuana e San Diego, ladrões roubam

o passaporte de Paulo. O artista negocia com o ladrão e o recupera, no dia seguinte.

Como nos filmes a policia chega sempre depois do ladrão ... e me tomam como suspeito ... “la migra” já estava molesta: “por que cruzas tantas vezes a fronteira? que andas fazendo sempre pertinho do muro?4

A posse do documento com seu visto oficial lhe permite a passagem em segurança. No

passaporte, o carimbo e o holograma do consulado dos Estados Unidos informam a “ la migra”

que tem que aceitar a pele mestiça, o cabelo pixaim, os pés quase descalços.

[ me parece que aqui nao estavam muito interessados na rupia , mas em saber de onde eu viera,

com execion de alguns pouco, nao me pareciam prestar atencion ao que levava em meu peito, um

descobri Brasil ... assim , e para a policia sim eu parecia gerar desordem]

3 BRECHT, Bertold. Diálogos de refugiados, (1940-1941). Madrid: Alianza Editorial, 1994. p.54.4 NAZARETH, Paulo. Postado no Facebook, 21/02/2012.

Page 8: Oi Piti Texto Paulo

Um acéfalo

Em Biri-Biri, perto de Diamantina, o jovem se preparou, amarrou o cabelo, cobriu com

um lenço a boca e o nariz, fez um buraco na areia do riacho e plantou bananeira colocando sua

cabeça na concavidade. Antes, tinha solicitado a Ariel Ferreira, um artista do grupo, com o que

estávamos fazendo a viagem de trabalho à diminuta cidade, para registrar o fato.

Nos últimos meses, no blog que acompanha o trabalho Noticias de América, de Paulo

Nazareth começaram a proliferar, sem título, sem indicação de série, fotografias em que o artista

aparece como um acéfalo, com a cabeça está enterrada ou oculta por algum detalhe da paisagem.

Seria aquela ação distante em Biri-Biri o nascimento destas imagens?

Surpreende-me nelas que, na sua maioria, o corpo aparece de perfil, na horizontal, com

braços e pés estendidos, só a cabeça está oculta. A memória do Cristo morto de Holbein surge,

subitamente, ante a repetição da pose. Assim, a imagem o pathosformel de um homem

deitado de perfil multiplica-se numa miríade de fotografias. Numa praia, em muitas outras praias

desertas, ventosas, cheias de vegetação, pedregosas, com um farol acesso ao longe, com botes;

numa paisagem com uma pedra enorme; numa cidade em escombros; nas ruínas de um barco

adernado; num canteiro de pedras; num lote vago; numa campina ameaçada por uma tempestade;

perto de uma pilha de lenha, num prédio rodeado por entulho.

À fórmula patética do acéfalo de Bataille se sobrepõe a do Cristo jacente, mas, nem uma

nem outra se completam. O Cristo morto é um homem morto mas inteiro, o acéfalo não tem

cabeça mas está em pé. A imagem que Paulo nos oferece estende uma cadeia de associações que

a liga ao mundo dos sonhos ou da morte.

Esse homem deitado tem cabeça? perguntamos.

Está vivo ou morto? perguntamos.

Page 9: Oi Piti Texto Paulo

Onde está sua cabeça? perguntamos.

As imagens evitam o primeiro plano. Procuram uma distancia, a distância correta, nem

demasiado perto nem longe demais. Porque se, às vezes, é difícil descobrir o corpo entre as

pedras ou na areia, outras ele se estende claro, nítido, diferente do entorno. A trágica historia de

decapitações no México contemporâneo nos assombra: essa praia varrida pelo vento parece a de

Veracruz em fevereiro.

Seria possível pensar que, a sua maneira, discretamente, sem ênfase, o artista está

encenando, um a um, os corpos anónimos, desaparecidos pelos desertos, sertões, montanhas,

rios e praias de nossa Américas?

Usando um recurso popular apropriado por Cildo Meireles e infinitamente apropriado

dele por outros artistas do continente, Paulo carimba as cédulas de dinheiro que utiliza na sua

viagem:

[PARA DEMOSTRAR GENOCIDIOS PASADOS EN LAS AMERICAS antes del pago APUNTE EL NOMBRE DEL (A) DESAPARECIDO(A) , PAIS DE ORIGEM y/o ETNIA y periodo histórico (colonia, imperio, dictadura, democracia)]5

Uma viagemNoticias de América, (Viagem a pé de América do Sul a América do Norte) 2011-2012.

Não é uma viagem, foram muitas viagens: idas e voltas que o levaram pelo mundo: de

Governador Valadares a Belo Horizonte, de Belo Horizonte a Índia, Mumbai, Nova Delhi,

Khirkee, do Palmital ao Palácio das Artes, passando pelo Museu da Pampulha e por um

5 NAZARETH, Paulo. Postado no Facebook, 09/04/2012.

Page 10: Oi Piti Texto Paulo

fracassado intento de chegar a pé a Venezuela — intento que se interrompeu em Brasília. De

Governador Valadares a New York, passando antes por Porto Alegre, Montevidéu, Buenos

Aires, Azul, Santiago de Chile...

[ o projeto de fazer todo o percurso caminhado se fez irrealizado, caminhei bastante, caminhei muitas

vezes, mas usei algumas “muletas” que sao onibus, kobis, vas e outras caronas, motocicletas... mas

sempre por terra ate encontrar o inevitavel barco entre Colombia e Panama, a mata umida e densa encoliu

o que dizem um dia foi uma tentiva de uma estrada, ha muitas historias sobre a impossibilidade de cruzar

essa fronteira por terra. Mas seguindo ao norte com os pes secos e empoeirados, uma peleja para cruzar o

mar sem molhar os pes e perder a poeira da America do sul .... por casualidade o Uruguay que havia

planejado nao foi alcanzado... pela historia das Missiones Espanholas e os guaranis em nomades em

busca da terra sem males me desviei do caminho... Argentina,Paraguay, Chile, Peru, Equador, Colombia,

Panama, Costa rica, Nicaragua, honduras, El Salvador , Guatemala, Mexico. Por desejo de poeira de

Cubo, por um mes percorri a costa do golfo do Mexico desde Vera Cruz a Quintana Roo em busaca de

barco que me levara a Cuba, ate chegar a ilha de Conzumel, centro mistico de peregrinacion Maya, para

andar ate as velhas ruinas de antigos templos mayas, ahi descobrir , escutar que barco algum segue a

Cuba, “ nadie te va rentar un barco paraCuba” ... “ todos los barcos siguen a Estados Unidos” ... “los

grandes cruzeros vienen de Miami, no pueden se adentrar a aguas cubanas por eso se vienen a Mexico”.

Esss impossibilidade de emcontrar barco, junto ao desejo da poeira de Cuba em meus pes, a recusa de

chegar aos EUA sem antes passar por Cuba, me faz abri mao de nunca tomar aviao em America . voo a

Havana , ahi por 5 dias recolho em meus pes o que posso recolher de poeira em dias chuvosos de verao,

protegendo os pes com umas botas de borracha panamenhas.volto ao Mexico , a Cancum para de ahi

seguir viagem por terra a NY, a passar 24 horas perdido na imaginaria cidade dos filmes de Holywood, e

depois de um encontro inesperado com os ocupa de Wall Street , com os quais passo uma noite umum dia

inteiro lavo os pes no Rio Hudson, onde tambem deixo jogo a imagem de San Juditas aue ja se encintrava

martirizada e se desfazendo pelo golpes da viagem, dahi volto ao Mexico e Guatemala, para depois seguir

Page 11: Oi Piti Texto Paulo

a Miami, as havaianos ainda as conservo em meus pes , embora estajam se desvazendo como a imagem

de san Juditas]

Idas e voltas feitas com os pés descalços ou quase. Unas havaianas cada vez mas gastas e

sujas, conservariam, como seus pés, toda a poeira acumulada na América Latina. A proposta era

essa: caminhar pelos desertos, as florestas e as praias de América Latina, sem nunca lavar os pés,

para depois fazê-lo no nas aguas do Rio Hudson.

Sacrifício lustral em que Paulo Nazareth oferece às aguas a terra natal amealhada e

conservada nos pés do andarilho e a imagem de São Judas Tadeu San Judita, o santo das

causas impossíveis , que o acompanhara desde México e que vê se desfazer lentamente na

correnteza.

Como tantos latino-americanos, embalados pelo sonho de uma vida menos ordinária, o

artista viaja para o norte, mas parte para o sul. Anos atrás, Paulo tinha um projeto no qual se

propunha a comprar um carro usado, percorrer a América Latina e bate-lo contra a muralha entre

Tijuana e San Diego. O tempo passa e o projeto adquire outra forma, mas o objetivo continua o

mesmo. Perambulando por “Nuestra América6” confere em essas viagens diferenças e

semelhanças, irmanado aos povos nativos e aos afro-americanos, mas também a todo nascido ao

sul do Rio Grande, desgrana em seus textos a impossibilidade de uma identidade fixa e a imensa

confusão das cores e das etnias no olhar dos outros:

Com essa historia de ser mestiço e viajar por América, mudo de cor todos os dias ... em casa as gavetas não estão tão definidas, mas seguindo mais ao norte tudo é bem arrumado, há o bairro dos negros, dos árabes, chicanos e outros tantos. tem dia que sou niger/preto/negro, mas não posso abrir a boca porque assim posso mudar de cor, tem dia que sou árabe, paquistanês, índio e outros tantos adjetivos que podem mudar de acordo com os olhos do outro e as palavras de minha boca. Seja como for, as vezes nos Estados Unidos da América, quando eu entro em lojas de "brancos" todos ficam com medo, incluindo eu7.

6 MARTÍ, José. Nuestra América. Publicado en: La Revista Ilustrada de Nueva York, 10 de enero de 1891.7 NAZARETH, Paulo. Postado no Facebook, 02/04/2012.

Page 12: Oi Piti Texto Paulo

A identidade constantemente renegociada em Cuba a polícia o tomou por cubano só

se desmascara através da palavra. É através da língua que Paulo Nazareth remontará sua origem

estilhaçada, seu português natal cada vez mais contaminado de espanhol, cada vez mais castiço,

cada vez mais contemporâneo porque cada vez mais anacrônico. Mas eu pensava na escrita

errada, uma escrita que fosse uma outra coisa, que provocasse no outro não reconhecer a

palavra que parecesse com a sua palavra diz em entrevista a Ana Paula Tomimori8.

Deleuze e Guattari chamavam essa escritura de literatura menor, uma literatura na qual

tudo é político e tudo é coletivo: escrever como um cão que faz seu buraco, como um rato que

faz sua toca9. Uma escrita, uma arte, que a partir da sua própria situação periférica, do seu

próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo, seu

próprio deserto10, reterritorializa escrituras e imagens e lhes restaura as legibilidades e as

visualidades extraviadas.

Uma escritura

Uma história das Américas [Eu vou fazer de mim um artista pop] [conceitual, (contemporâneo)]2005

As primeiras narrativas escritas Gilgamesh, a Ilíada, a Odisseia, o Beowulf foram

relatos de viagens. No romance de viagem o protagonista, carente de traços específicos, é apenas

um ser que se desloca e se aventura num território marcado tanto por semelhanças e quanto por

alteridades. O que se busca na viagem é a redenção de uma identidade na qual o viajante

8 NAZARETH, Paulo. Apud TOMIMORI, Ana Paula. www.panoramacritico.com/008/ensaios_02.php9 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago Editora,1977. p.28.10 DELEUZE e GUATTARI, 1977. p.29.

Page 13: Oi Piti Texto Paulo

reconheça, por fim, seu rosto e sua paisagem, no cerne de um tempo que não é histórico, mas

mítico.

Nas narrativas de viagem o tempo condensa-se e comprime-se, é literalmente visível. O

espaço se intensifica, adere ao movimento do tempo, do enredo e da história. O tempo é a

dimensão do movimento, da transformação, da metamorfose, dos quais o protagonista aceita o

trânsito interminável.

Caminhante obsessivo, Paulo Nazareth narra, desde sempre, sua viagem e dela dá

testemunhos: objetos que coleta ao longo dos caminhos, imagens perdidas, relíquias

insignificantes, com as que ressignifica tradições vernáculas e escreve em folhas impressas em

papel de jornal, as entradas precisas de una enciclopédia para errantes.

Num texto, um aparente relato autobiográfico, vai traçando sua historia e a da sua família

a partir da sua avó, mestiça de índia krenak e norte-americano, criada na tribo.

Os Krenaks foram presos durante a ditadura por reclamarem a terra. Andaram cerca de 90 km até Governador Valadares e lá pegaram o trem pra suas terras. Começou ai o processo de reconquista de suas terras. O trem de ferro é tecnologia. A Companhia Vale do Rio Doce, quando construiu a estrada de ferro em terras Krenaks, lhes prometeu tecnologia (transporte gratuito). […]Em Governador Valadares os Krenaks tiveram que pagar passagem. Os Krenaks são obrigados a pagar passagem no trem que corta suas terras, então colocam troncos de madeira nos trilhos. Não param o trem, mas diminuem a velocidade.11

[ Nazareth Cassiano de Jesus assim era seu nome de batismo, nome critao ,sai de sua tribo, aldeia num

tempo em que os indios deixavam as aldeias para viver na cidade, assim me parece que deixavam de uma

certa maneira o ser indio, minhas cunhadas com esteriotipo, biofisico completamente indigenas nao se diz

indias, por que o ser indigena eh associado com pobreza, preguiza, embreagues, e muitos outros adjetivos

prejorativos , minha avo parece ter cresceu nas fazendas,povoados perto de Governador Valadares, como

11 NAZARETH, Paulo. Uma história das Américas [Eu vou fazer de mim um artista pop] [Conceitual- (contemporâneo)] Panfleto- 2005

Page 14: Oi Piti Texto Paulo

se passou com muitos povos ... praticante de camdomble,dizem que se tornou louca depois de prometer

meia saca de cafe ao Capeta, passou cerca de 20 anos internada num maniconio em Barbacena e de ahi ja

nao se tem noricias dela. Dizem que a loucura e o negocio com o Capeta era por ciues de meu avo , o

mestizo Pedro Goncalves da Silva ... a Mestiza que encontrei e que se envergonhava de ser indigena

exaltando a nacionalidade Estadunidense paterna, contava histora de seu pai mas se envergonhava da

mae, era uma amiga dos fazendeiros onde viveu minha avo e meu avo. Isso foi por volta de 2001,...

quando eu cavava memorias de minha familia recolhendo fragmentos de memoria.... Angelica Cipriano,

uma senhora de cerca de 80 anos que sofria de Alzheinmen , conheceu minha avo e dizia que podia ver

trazos de seu rosto em minha cara. Dez anos depois estive na reserva krenak , Jose um dos indigenas mais

velhos de ahi tem em torno de 65 ou 70 anos, nao se lembra de minha avo nem do Cassiano de Jesus ..

nomes critaos dado aos indigenas, minha mae tem 68 anos ... ele nao era nascido quando minha avo saiu

de ahi ... ele se lembra dos Goncalves da Silva e me diz que seguramente eu deveriam ser parentes de

meu avo, mas diz que eu deveria ter um documento da Funai , atestando minha codicion indigena. Eh

extranho issoporque no Brasil, me parece haver um certo paternalismo como se os indigenas

naopudessem cuidar de si mesmos, quase como uma propriedade do estado, como se fossem ingenuos,

bobos, tolos, eh muito extranho... talvez seja por isso que muitos nao querem ser indigenas.... Ahi neste

mesmo dia jose me disse que eu nao poderia ficar ahi sem a autorizacion da Funai, eh muito extranho ver

ahi os letreiris da Funai marcando territorio, como se os indios fossem inofensiveis ... e disse que com

autorizacion da Funai poderia passar ate um ano con eles ..... eu nao sabia o que fazer em minha

condicion de mestizo, me lembrei do “mendindio’ um termo que havia escutado sobre indios sem tribos ,

indios urbanos, desgarrados de seu povo, e dos novos indios , indios que havia perdido a identidade e

agora buscam recuperala... buscam os valores do ser indigena.... muitos sao mestizos com fortes marcas

africanos no rosto, podem ser encontrados em minas gerais e outras partes do Brasil ... o computador da

policia federal, quando fui tirar o passaporte classificou meu cabelo como um cocar indigena, sendo eu

um indio para o programa do computador. Quando fui tomar a vacina de frebre amarela em Porto Alegre

me permitiram classificar minha decendencia a qual nesse momento a classifiquei indigen entre muitas

Page 15: Oi Piti Texto Paulo

opciones,como africana, etc... En Buenos aires encontrei muitos e ahi me receberam como um indigena,

mesmo com minha cara mestiza , haviammuitos mestizos entre os qom]

Nas suas andanças, Paulo deriva, também deriva a escritura, entre relatos pessoais e

dados historicamente comprováveis, entre a vida dos elefantes e a dos escravos africanos, entre

os usos da palavra “americanos” norte-americanos no português do Brasil e a acusação de

indolência que pesa sobre os índios sul-americanos, e, em consequência, sobre os latino-

americanos em geral:

“Para os brasileiros, o espanhol é quase um sotaque”12.

Na primeira década do século XXI parece subsistir uma modernidade em ruínas, um

modernidade diacrônica na qual o artista se transforma num nómade cultural que atravessa

tempos, espaços e signos não excludentes: estratos de história onde se sedimentam múltiplas

temporalidades. Se essa for uma das faces da cultura periférica sul-americana: sempre em

deslocamento, sobre o oceano, sobre os rios — um trânsito sobre o plano móvel da água — e,

fundamentalmente, sobre as estradas secundárias de uma paisagem em destruição, teremos que

nos apropriar de processos de escritura e de rasura, através dos quais a especificidade do ocidente

possa ser extraviada. Paulo Nazareth caminha por essas estradas, rasura as pegadas de seus pés

descalços, e escreve pelo direito e pelo avesso as palavras e as histórias que nunca cessaram

passar de boca em boca, nestas terras tão distantes de Deus. Desde as fronteiras, Paulo Nazareth

alinhava os lugares do estranhamento e da exclusão: os lugares dos pés descalços, das ruas

12 Idem

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empoeiradas, do comercio informal, os lugares onde a gente consegue comprar, além de

raspados, chamoyados, diablitos e monjitas algumas glórias. Aqui é arte.