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  • O exliO dO nmos: Carl SChmitt e a globale Zeit

    Giacomo marramao

  • Revista Brasileira de Estudos Polticos | Belo Horizonte | n. 105 | pp. 151-184 | jul./dez. 2012

    O exlio do nmos: Carl Schmitt e a glo-bale Zeit1

    The exile of the nomos: Carl Schmitt and the globale Zeit

    Giacomo Marramao2

    Resumo: Carl Schmitt, sem dvida, uma das figuras mais significativas e controvertidas da filosofia poltica e jurdica europeia do sculo XX. Seu nome e sua obra estiveram associados, por muito tempo, do ponto de vista ideolgico-poltico, a seu comprometimento com o regime nazista e, do ponto de vista mais estritamente doutrinrio, ao chamado decisionismo, posio te-rica para qual o fundamento da soberania do Estado moderno no repousaria na impessoalidade da lei ou

    1 Traduo do italiano por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. Texto ori-ginal: MARRAMAO, Giacomo. Lesilio del nmos: Carl Schmitt e la globale Zeit. In Passaggio a occidente. Torino: Bollati Boringhieri, pp. 123-142, 2003.

    2 Giacomo Marramao estudou Filosofia na Universidade de Florena e Cincias Sociais na Universidade de Frankfurt. Professor Ordinrio de Fi-losofia Poltica na Universidade de Roma III. Diretor da Fundao Basso e membro do Colgio Internacional de Filosofia de Paris. Professor visitante em inmeras universidades europeias e americanas. Autor de obras j tra-duzidas para o portugus, tais como O Poltico e as Transformaes (1990), Poder e Secularizao (1995) e Cu e Terra (1997), alm de Minina Temporalia (1990), Kairs (1992), Dopo il Levianato (2000), Passaggio a Occidente (2003), La Passione del Presente (2008) e Contro Il Potere (2011). Website: http://host.uniroma3.it/docenti/marramao/

    DOI: 10.9732/P.0034-7191.2012v105p151

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    sobre uma norma, mas sobre uma deciso originria. Em razo dessa posio, alguns intrpretes tratam o pensamento schmittiano a partir de uma politolo-gia realista, seja alheia cincia jurdica, seja como uma degenerao do positivismo jurdico alemo. Entretanto, esse juzo contrasta com a autodefinio que Schmitt ofereceu de sua prpria obra, pois sempre, at o fim de sua longa vida, qualificou-se como jurista. No presente artigo, apresenta-se um perfil crtico de Carl Schmitt. Nesse sentido, necessrio fazer refe-rncia aos trs ncleos fundamentais que pautam o itinerrio da reflexo schmittiana: 1) a teologia pol-tica; 2) o conceito do poltico; 3) a teoria do nmos como ordenamento concreto. Esses trs momentos so captados, ao mesmo tempo, em sua especificidade e diferenciao, assim como em sua co-presena intera-tiva, em uma viso de poca do Estado moderno e de sua parbola. Se os tomar, portanto, de maneira separada, para fazer surgir ao fim sua confluncia em um grande marco diagnstico que assume a crise do Estado dentro da mais geral vicissitude do que o prprio Schmitt define no caminho de Weber como racionalismo ocidental (okzidentaler Rationalismus).

    Palavras-chaves: Teologia poltica. Poltico. Nmos. Crise do Estado.

    Asbstract: Carl Schmitt represents one of the most significant and controversial figures in European political and legal philosophy in 20th century. His name and word have long been associated, from an ideological-political aspect, with his compromise with the Nazi regime and, from a strictly doctrinal aspect, with the decisionism, a theoretical position in which the foundation of the States sovereignty would not rest on the impersonality of the law or on a norm, but rather on a primal decision. Schmitts assumption has

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    caused some interprets to consider his thought equiva-lent to a realistic politology outside legal science or a degeneration of the German legal positivism. However, such a judgment clashes with the under-standing of his own work that Schmitt offered along of his entire life: he always up to the end identified himself as a jurist. This article aims to offer a critical profile of Carl Schmitt. In this way, its necessary to use as reference points the three fundamental nuclei that run throughout the itinerary of Schmitts thought: 1) political theology; 2) the concept of the political; 3) the theory of the nomos as a concrete order. These three items are gathered simultaneously, both in their specificity and distinctiveness, and in their interactive co-presence, into an epochal vision of the modern State as a parabolic path. They will be addressed, al-beit separately, to bring about their confluence into a large diagnostic framework which brings the crisis of the State into the more general circumstance of what Schmitt defines following Weber as Western rationalism (okzidentaler Rationalismus).

    Keywords: Political theology. The political. Nmos. Crisis of the State.

    1. Um jurista nos confins do Direito

    A obra de Carl Schmitt uma das mais extraordinrias antecipaes dos temas da era global. Sem dvida, Schmitt uma das figuras mais significativas e controvertidas da filosofia poltica e jurdica europeia do sculo XX. Durante muito tempo, seu nome e sua obra estiveram associados, do ponto de vista ideolgico-poltico, a seu comprometimento com o regime nazista e, do ponto de vista mais estritamente doutrinrio, s alternadas fortunas do decisionismo, po-

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    sio terica segundo a qual o fundamento da soberania do Estado moderno no repousaria na impessoalidade da lei ou sobre uma norma, seno sobre uma deciso originria. Em razo dessa posio, explicitada, sobretudo, na polmica com o normativismo de Hans Kelsen (mais em geral, com todas as vises procedimentalistas e pluralistas fossem de tipo liberal-conflitual ou de tipo consociativo-corporativo do Estado), alguns intrpretes tm considerado o pensa-mento schmittiano como uma politologia realista alheia cincia jurdica, ou segundo o polmico juzo de Massimo Severo Giannini3 corno uma degenerao do grande fi-lo do positivismo jurdico alemo, expresso pela linha que, partindo de von Gerber e Laband, chega a Jellinek e Kelsen.

    Tal juzo se enfrenta, no obstante, com a autodefini-o que em vrias ocasies Schmitt ofereceu de sua obra: ele sempre at o final se qualificou como jurista. Pese a sua documentada ignorncia do Direito Privado e a sua atitude particularmente polmica frente juspublicstica pandectista e neopandectista de Laband a Kelsen,4 Schmitt se familiarizou segundo o testemunho autobiogrfico de Ex Captivitate Salus, texto redigido na priso entre 1945 e 1947 com dois mbitos da cincia jurdica, o Direito Cons-titucional e o Direito Internacional.5 As duas disciplinas, correspondentes ao Direito Pblico, se encontram expostas ao perigo do poltico:6 O jurista de tais disciplinas precisa Schmitt em evidente polmica com toda forma de purismo jurdico no pode escapar a este perigo, nem sequer desaparecendo no nirvana do puro positivismo. Pode, em suma, atenuar tal perigo instalando-se em remotos

    3 GIANINNI, 1986, pp. 447-459.

    4 GIANINNI, 1986, p. 447.5 SCHMITT, 1950b, p. 55.

    6 SCHMITT, 1950b, p. 55.

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    mbitos de confins, mimetizando-se como historiador ou filsofo, ou levando extrema perfeio a arte da reserva e da camuflagem.7

    As pegadas da reflexo terica de Schmitt tem um comeo ideal em 1919 com Politische Romantik [Romantismo Poltico], sua primeira obra de relevo, para prosseguir logo com o clebre volumem Die Diktatur [A Ditadura], que teve uma notvel incidncia em todo o debate terico-poltico dos anos 1920, no s sobre a vertente da revoluo conser-vadora, mas tambm sobre a marxista. O subttulo Desde as Origens da Ideia Moderna de Soberania Luta de Classes Proletria constitui o indicador da problemtica ampla e complexa, orientada ao cotejo despreconceituoso com dis-tintos componentes histrico-ideais ou diretamente opostos, como o reconheceram j ento intelectuais de distinta pro-cedncia, desde Walter Benjamin a Ernst Robert Curtius. Nesse texto se introduz pela primeira vez a distino entre ditadura comissionaria ou transitria, contemplada pelo ordenamento jurdico romano, e ditadura institucional ou soberana, que logo seria sucessivamente retomada no marco de um impiedoso diagnstico dos ordenamentos constitucionais da Repblica de Weimar, cujo comeo est representado pelo opsculo de 1923, Die Geistesgeschichtliche Lage des Heutigen Parlamentarismus [A Situao Histrico--Espiritual do Parlamentarismo Atual]. Os outros escritos-chave da reflexo schmittiana da dcada de 1920 so a Politische Theologie [Teologia Poltica] de 1922, o ensaio Der Begriff des Politischen [O Conceito do Poltico], publicado pela primeira vez em 1927 no Archiv fr Sozialwissenschaft und Sozialpoli-tik, e a Verfassungslehre [Teoria da Constituio] de 1928, em que se pretende dar uma sada propositiva aos temas da polmica antiformalista dos anos anteriores. Sempre nessa

    7 SCHMITT, 1950b, p. 55.

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    linha, se encontram os trabalhos iniciais dos anos 1930: Der Hter der Verfassung [O Guardio da Constituio] de 1931, Legalitt und Legitimitt [Legalidade e Legitimidade] de 1932 e Staat, Bewegung, Volk [Estado, Movimento, Povo] de 1933. Uma posterior sistematizao de seu pensamento proporcionada por ber die Drei Arten des Rechtswissenschaftlichen Denkens [Sobre os Trs Modos de Pensar a Cincia Jurdica] de 1934 e pela reunio de ensaios de 1940, Positionen und Begriffe [Posies e Conceitos]. Tampouco h que se esquecer que, sempre no transcurso da dcada de 1930, Schmitt enfrentou assidua-mente a obra de Thomas Hobbes, tanto no ensaio de 1937, Der Staat als Mechanismus bei Hobbes und Descartes [O Estado como Mecanismo em Hobbes e em Descartes], quanto no volume do ano seguinte, Der Leviathan in der Staatslehre des Thomas Hobbes [O Leviat na Teoria do Estado de Thomas Hobbes].

    A partir da Segunda Guerra Mundial, a problemtica schmittiana experimenta um giro significativo: o tema relati-vo gnese-estrutura e parbola do Estado moderno resulta cada vez mais absorvido dentro de uma situao csmico--histrica centrada no binmio terra-mar, cuja vicissitude marcaria os destinos do nmos, entendido como contrassenha de uma lei universal da apropriao e, portanto, como lugar de origem de todo direito. Essa fase de reflexo, que comea em 1942 com o volume Land und Meer [Terra e Mar], culmina em 1950 com o que representa a opus magnum de Schmitt e um dos grandes livros do sculo: Der Nomos der Erde im Vlkerrecht des Jus Publicum Europaeum [O Nmos da Terra no Direito das Gentes do Jus Publicum Europaeum].

    Durante trinta e cinco anos sucessivos de sua longa vida, Schmitt se dedicou a aprofundar e a pontuar, antes que a realizar um verdadeiro desenvolvimento das categorias sobre as que se apoiava sua concepo, no j com o prop-sito de sistematiz-las (j que seu pensamento se caracteriza

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    por uma marcada falta de sistematicidade), seno como se quisesse fixar seus pontos cardeais. Dessa ltima fase basta-ria mencionar os pontos salientes: o ensaio de 1953 Mehmen/Teilen/Weiden [Apropriao/Diviso/Produo], concebido como corolrio da teoria do nmos e logo reimpresso nos Verfas-sungsrechtliche Aufstze [Ensaios de Direito Constitucional] de 1958 , o opsculo de 1960 Die Tyrannei der Werte [A Tirania dos Valores], o volume de 1963 Theorie des Partisanen [Teoria do Partisan], apresentado como uma espcie de integrao intertextual do conceito do poltico, e finalmente a Politische Theologie II [Teologia Poltica II] de 1970, que constitui uma significativa defesa da categoria da secularizao, em po-lmica com a tese da legitimidade ou da autoafirmao do moderno proposta por Hans Blumenberg.8

    Para se lograr uma bssola metdica apta a se orien-tar na vasta e densa trama dessa produo, necessrio fazer referncia aos trs ncleos fundamentais que pautam o itinerrio da reflexo schmittiana: 1) a teologia poltica; 2) o conceito do poltico; 3) a teoria do nmos como orde-namento concreto. Esses trs momentos so captados, ao mesmo tempo, em sua especificidade e diferenciao, assim como em sua co-presena interativa, em uma viso de poca do Estado moderno e de sua parbola. Se os tomar, portanto, de maneira separada, para fazer surgir ao fim sua confluncia em um grande marco diagnstico que assume a crise do Estado dentro da mais geral vicissitude do que o prprio Schmitt define no caminho de Max Weber como racionalismo ocidental (okzidentaler Rationalismus).

    8 MARRAMAO, 1995b.

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    2. A teologia poltica

    Soberano quem decide sobre o estado de exceo.9 Com esse peremptrio enunciado comea a Politische Theolo-gie de 1922. O texto tem, pois, como tema central, o conceito de soberania, razo pela qual muitos juristas se pergunta-ram acerca do porqu de seu ttulo. O motivo da surpresa consiste, com toda evidncia, em atribuir inobservncia da categoria destinada em Schmitt a interconectar o problema da soberania enquanto deciso (Entscheidung) sobre o estado de exceo (Ausnahmezustand) com o mbito da teologia poltica: a categoria de secularizao. De fato, essa funo de conexo s se encontra explicitada no incipit do terceiro captulo do volume, quando se afirma que os conceitos mais fecundos da doutrina moderna do Estado so conceitos teolgicos secularizados.10 A categoria da secularizao proporcionaria assim a chave de acesso no s ao desenvolvimento histrico daqueles conceitos, passados desde a teologia ao Direito Pblico como, por exemplo, o Deus onipotente que se converteu no legislador onipotente11 , seno tambm sua estrutura sistemtica. A analogia construtiva intercorrente entre teologia e cincia jurdica permite a Schmitt ler todo o desenvolvimento da doutrina do Estado nos ltimos quatro sculos a partir do ponto de vista da anttese entre desmo e tesmo: aqui se perfila nitidamente a oposio que da para frente permanecer constante no pensamento schmittiano ao pressuposto teo-lgico-metafsico desta do moderno Estado de Direito, que elimina a violao das leis naturais contidas no conceito de milagre, produtiva atravs de uma interveno direta,

    9 SCHMITT, 1922, p. 11.

    10 SCHMITT, 1922, p. 49.

    11 SCHMITT, 1922, p. 49.

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    de uma exceo, do mesmo modo que exclui a interveno direta do soberano no ordenamento jurdico vigente.12 O caso de exceo, repudiado pelo racionalismo iluminista em todas suas formas, tem para a cincia jurdica um sig-nificado anlogo ao do milagre para a teologia.13

    Dessa maneira, fica lanada a ponte entre teologia po-ltica e teoria da soberania. De fato, Schmitt no se limita a declarar que a soberania um conceito-limite para aplicar em um caso-limite. Tende, sobretudo, a destacar a razo sistemtica, de lgica jurdica, que torna o estado de exce-o eminentemente apropriado para a definio jurdica da soberania.14 A atitude no retrica e no ocasional dessa insistncia no carter propriamente jurdico da definio de soberania tem sua pontual confirmao na recusa schmittiana em adotar os equivalentes sociolgicos do conceito (como, por exemplo, o weberiano Herrschaft, domnio, no sentido de poder legtimo, contraposto a Macht, poder de fato): Seria uma grosseira transposio da disjuno esquemti-ca entre sociologia e cincia do direito querer afirmar que a exceo no tem nenhum significado jurdico e que, em consequncia, sociolgica.15 Em verdade, a soberania , para Schmitt, o terminus de todo sistema normativo, no duplo sentido de confim e de limite que o define. Mas, pre-cisamente enquanto limite que o define, o de-limita, ela no pode se expressar na linguagem normativa, seno que, ao invs disso, correlativa instncia da deciso: soberania, ento, como potestade de deciso sobre o estado de exceo.

    No obstante, necessrio prestar ateno a um ele-mento essencial dessa frmula definitria, se no se quiser

    12 SCHMITT, 1922, p. 49.13 SCHMITT, 1922, p. 49.

    14 SCHMITT, 1922, p. 11.

    15 SCHMITT, 1922, p. 19.

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    correr o risco de interpretar mal o sentido de todo o discurso: a dimenso da Entscheidung , sem dvida extranormativa, mas no extrajurdica. A funo do caso de exceo antes a de tornar bem claro, em absoluta pureza, um elemento formal especificamente jurdico: a deciso.16 Para Schmitt, prprio do racionalismo iluminista no levar em conta o que h de crucial na distino entre o jurdico e o normativo; tal racionalismo se mobiliza a partir do pressuposto de que uma deciso, no sentido jurdico, deve ser pacificamente derivada do contedo de uma norma.17 Em outros termos: se, por um lado, somente o caso-limite torna atual a questo relativa ao sujeito da soberania, que , pois, a prpria questo da soberania,18 por outro, tal sujeito se qualifica pela sua posio-limite, que o coloca paradoxalmente fora e dentro do ordenamento vigente. Fora, visto que de outra maneira no poderia fazer dele um objeto de deciso. Dentro, pois a ele corresponde a competncia de decidir a suspenso in toto da Constituio.

    O acesso paradoxal ambivalncia da soberania se ve-ria inexoravelmente obstaculizado pelo mecanismo desta que se encontra como pressuposto da doutrina do Estado de Direito, desde Locke, passando por Kant e chegando sua completa dissoluo normativista nas teorias de Kra-bbe e de Kelsen. A esse processo degenerativo, Schmitt contrape sua prpria definio decisionista da soberania, fazendo-a remontar a uma linha alternativa que, partindo de Jean Bodin cujo mrito consistiria precisamente em haver introduzindo a deciso no conceito de soberania19), chegaria convico testa da filosofia catlica da contrar-

    16 SCHMITT, 1922, p. 19.17 SCHMITT, 1922, p. 11.18 SCHMITT, 1922, p. 12.

    19 SCHMITT, 1922, p. 14.

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    revoluo, representada pelos clssicos nomes de De Maistre, Bonald e Donoso Corts.

    Cabe apenas assinalar o vistoso forar interpretativo operado por Schmitt no intento de fabricar uma rvore ge-nealgica do decisionismo. Com respeito a Bodin, antes de tudo: se, de fato, verdade que devemos aos Six Livres de la Rpublique de 1576 a primeira definio juridicamente realizada da summa legisbusque soluta potestas como unidade irredutvel das prerrogativas de absolutismo, perpetuidade, indivisibilidade e como puissance de donner et casser la loi poder de fazer e de ab-rogar a lei , tambm o , pelo menos do mesmo modo, que tal puissance absolue no seja ilimita-da, como pretende Schmitt, j que deve ser exercida tanto em conformidade com as leis naturais impostas ao mundo pela suprema autoridade de Deus, como em obedincia s leis fundamentais hoje diramos constitucionais do Estado por exemplo, a lei da Coroa , colocadas como salvaguarda da continuidade do complexo burocrtico-administrativo sobre o qual a soberania se rege. Em segundo lugar, com respeito ao pensamento da contrarrevoluo: se, de fato, certo que ele sustenta teologicamente a soberania pessoal do monarca,20 tambm o , pelo menos de igual maneira, que de um apoio tal no se possa expurgar com arbitrariedade, fora do controvertido reclamo legitimista da tradio, o apelo tico-religioso providncia e autoridade eclesistica, que para esses tericos representa sempre como o prprio Sch-mitt est obrigado a admitir a ltima deciso inapelvel;21 mas, por esses aspectos e mais em geral, pelas posies do Schmitt catlico devem se ver as reflexes sobre a repre-sentao e a complexio oppositorum contidas em um trabalho aparentemente marginal e independente de sua produo

    20 SCHMITT, 1922, p. 43.

    21 SCHMITT, 1922, p. 71.

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    desses anos: o ensaio de 1923 Rmischer Katholizismus und Politische Form [Catolicismo Romano e Forma Poltica].

    Mais alm desse forar histrico-filolgico que, dito incidentalmente, implica tambm um primeiro intento schmittiano de interpretao decisionista de Hobbes , o que nesse campo conta, no obstante, o isolamento do ncleo terico fundamental da teologia poltica: tal se encontra na definio jurdica da soberania no como monoplio da sano ou do mero poder, mas como monoplio da deciso ltima.22 Dessa maneira, a deciso permanece livre de todo vnculo normativo e se torna absoluta em sentido prprio.23 O desafio schmittiano se orienta, pois, aposta de que tambm o caso de exceo se mantenha acessvel ao conhecimento jurdico, dado que ambos os elementos, tanto a norma como a deciso, permanecem no mbito do dado jurdico.24

    J se falou do carter paradoxal da deciso: simultanea-mente transcende a norma e o pressuposto de toda norma. Atravs da deciso, a autoridade demonstra que no neces-sita do direito para criar direito.25 O paradoxo parece agora refletir-se na prpria categoria da exceo, conferindo-lhe um estatuto ambivalente. A exceo est frente normalidade exatamente da mesma maneira que a deciso est frente norma. Por isso, seu estatuto pareceria eminentemente metodolgico; s levando os problemas ao extremo, a um conceito-limite, possvel manifestar a verdade ou essncia da situao normal,26 transformada em rotina nas normas de procedimento e neutralizada na ordem automtica das

    22 SCHMITT, 1922, p. 20.23 SCHMITT, 1922, p. 19.

    24 SCHMITT, 1922, p. 19.

    25 SCHMITT, 1922, p. 20.26 SCHMITT, 1922, p. 19.

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    normas. Nessa chave dever-se-ia entender, ao que parece, a proposta schmittiana segundo a qual a exceo seria mais interessante que o caso normal: enquanto este no prova nada, aquela prova tudo,27 razo pela qual a exceo que convalida a regra e no o contrrio. E, todavia, Schmitt no se limita a isso, mas tende, ao invs, a conectar a primazia do Ausnahmezustand [estado de exceo] ou Ernstfall, emer-gncia e Grenzfall, caso-limite a um assunto metafsico lebensphilosophisch, quer dizer, prprio de uma filosofia da vida: S uma filosofia da vida concreta capaz de no retroceder ante a exceo ou o caso extremo; mais ainda, deve se interessar por eles na maior medida possvel.28 E tambm: Na exceo, a fora da vida real rompe a crosta de uma mecnica enrijecida na repetio.29

    A ambivalncia de estatuto antes reclamada parece agora se traduzir em uma inexpugnvel ambiguidade de toda a construo terica schmittiana: a dimenso existen-cial e antinormativa que se atribui deciso tende, de fato, a assumir na linha de Nietzsche e, acaso tambm, de Stir-ner tanto um carter de negatividade e no fundado que a coloca em drstica ruptura com todas as tradicionais vises substancialistas da ordem, como um carter de po-sitivo radicalismo orientado para reafirmar a supremacia da existncia estatal e de seu direito autoconservao.

    Levando em conta o primeiro aspecto contra as inter-pretaes orientadas a homolog-lo mediante os esteretipos de um estatismo reacionrio que dramatiza o problema da ordem e da estabilidade institucional , Schmitt pareceria enfatizar o momento inovador, de ruptura beneficamente catastrfica da deciso em relao aos equilbrios consti-

    27 SCHMITT, 1922, p. 45.28 SCHMITT, 1922, p. 45.

    29 SCHMITT, 1922, p. 45.

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    tucionais vigentes e, sob o perfil terico geral, compartilhar com Max Weber autor, nisso, mais prximo de Nietzsche do que comumente se cr um elemento de substancial descontinuidade com a tradio poltica europeia: a crise dos fundamentos sobre os quais se regia o sujeito clssico da soberania. Ademais, o termo alemo Ent-scheidung indica o prprio ato de cortar, de truncar, expresso pelo latim de-caedere, e de distinguir ao final de uma escolha expressa pelo termo grego krsis, de krnein, separar, discernir, significado que se encontra na base dos derivados crtica e critrio. Aqui reside a raiz da cesura que separa Schmitt do estatismo alemo reacionrio dos sculos XIX e XX, no qual ele vislumbra uma volta quela utopia regressiva da harmonizao dos conflitos que descansava na pretenso de se fundar em chave organicista-corporativa a identidade estatal. E aqui se encontra tambm o motivo de sua constante polmica com as diversas variantes do corporativismo, desde a verso romntico-reacionria de um Othmar Spann at igualmente bem articulada de um Otto Von Gierke, passando pelo pluralismo de G. D. H. Col e H. J. Laski. Mas, ao mes-mo tempo, esse carter de ruptura da deciso fundada sobre o nada (auf Nichts gestellt) tende claramente a distinguir-se de qualquer ocasionalismo estetizante e romntico, com o qual, ademais, Schmitt havia se enfrentado, de maneira quase preliminar ao tratamento teolgico-poltico da soberania, em Politische Romantik. A deciso no um coup de thtre, um mero gesto arbitrrio orientado a si mesmo, uma espcie de art pour lart, mas o corte, a ciso inovadora que se encontra na origem de qualquer ordenamento concreto e realmente existente. A Entscheidung no , por certo, dedutvel da forma do ordenamento, pois nunca efeito ou resultante de um processo de formao-constituio, antes dela constituti-va. Ao contrrio, o fato de que a deciso sempre d lugar

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    a uma nova Constituio (Verfassung) no quer dizer, em absoluto, que dependa dela: de fato, justamente o prprio ter-lugar da Constituio. Sobre esse esquema descansa a enunciao impressa por Schmitt a um clssico problema de Direito Constitucional, o das relaes entre legalidade e legitimidade, tratado em um importante escrito de 1932. Sob esse perfil, no existe diferena radical entre a posio de Schmitt e a de Weber. A crtica schmittiana a Weber de reduzir, junto ao normativismo, a legitimidade legalida-de imputvel em grande medida forada assimilao das teses weberianas operada por Kelsen em 1922 no texto Der Soziologische und der Juristische Staatsbegriff [O Conceito Sociolgico e Jurdico de Estado]. Se verdade que para Weber a legitimao do poder no pode descender mecanicamente, como ocorre, em ltima anlise, na kelseniana teoria pura do direito exposta nesse sentido falcia naturalista da reduo do direito ao fato da simples confirmao emprica da efetividade, da continuidade de um ordenamento coativo que obtm obedincia, igualmente certo que para Weber, assim como para Schmitt, a legalidade e o ordenamento jurdico no so a causa da legitimidade, mas apenas sua forma necessria.

    Todavia, mais alm do limiar dessa declarao de no autossuficincia do critrio de legalidade, a reflexo schmit-tiana parece enfrentar uma aporia ainda mais chamativa que a weberiana. Sobre a outra vertente que antes se assinalou a propositiva , a deciso parece, de fato, constituir-se em sua absoluta e, portanto, incoerente autonomia, como oco simtrico da generalidade e da indeterminao do esquema liberal:

    A deciso se liberta de todo vnculo normativo e se torna absoluta em sentido prprio. No caso de exceo, o Estado suspende o di-reito, em virtude, como se diz, de um direito de autoconservao. Os dois elementos do conceito ordenamento-jurdico entram

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    aqui em contraposio e encontram sua respectiva autonomia conceitual. Assim como no caso de normalidade o momento autnomo da deciso pode reduzir-se a um mnimo, do mesmo modo no caso de exceo se anula a norma. Todavia, tambm o caso de exceo permanece acessvel ao conhecimento jurdico, posto que ambos os elementos, a norma e a deciso, permanecem dentro do mbito do dado jurdico.30

    Onde reside, ento, o motivo da preferncia teri-ca pela deciso em face da norma? Schmitt responde que se deve buscar na prioridade existencial do Estado: a existncia do Estado demonstra aqui uma indubitvel supe-rioridade sobre a validade da norma jurdica.31 O ingresso da dimenso existencial , ento, o que interrompe aquele crculo vicioso de deciso e norma em que uma das figuras mais representativas da filosofia pblica weimariana havia considerado reconhecer, no formalismo, um jogo estril de espelhos enganosos: A vontade sem norma [normloser Wille] de Schmitt havia escrito Hermann Heller em seu livro Die Souvernitt resolve o problema to pouco quanto a norma sem vontade [willenlose Norm] de Kelsen.32

    Todavia, atravs das dobras da dimenso existencial vemos agora aflorar a outra polaridade no plano das catego-rias, caracterstica do pensamento schmittiano: o poltico.

    3. O conceito do poltico

    O conceito do poltico constitui para Schmitt o pres-suposto do conceito de Estado, entendido segundo a tradio do civil law, arraigada ao Direito Romano, como status de um povo organizado sobre um territrio determinado.33

    30 SCHMITT, 1922, p. 19.

    31 SCHMITT, 1922, p. 19.

    32 HELLER, 1927, p. 62.

    33 HELLER, 1927, p. 62.

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    Todas as caracterizaes possveis da definio de Estado mquina ou organismo, pessoa ou instituio, sociedade ou comunidade s adquirem significado luz do poltico e resultam incompreensveis caso se interprete mal a essn-cia desse conceito. Trata-se de uma essncia que, segundo Schmitt, deve se captar em sua irredutvel autonomia, que rompe o circulus viciosus entre o poltico e o estatal: o fato de que o poltico seja o pressuposto imprescindvel do estatal no quer dizer, de modo algum, que se identifique com ele, como, ao invs, pretendem as modernas mitologias e jurisprudncias do Estado. O poltico no pode estar circunscrito, confinado, topologicamente delimitado, ainda que a dimenso espacial constitua, como veremos, um de seus principais correlatos. S pode ser localizado de ma-neira temporal nas dimenses ou formas determinadas nas quais, a cada vez, se manifesta historicamente. De fato, , stricto sensu, um critrio, uma atitude que se explica as-sim como a deciso, que mostra sua contrassenha enquanto confim extremo do jurdico no no tornar a fundar e nem no recompor, mas no dirimir, no dividir. Dito critrio se toma em sua peculiar especificidade e distino trata--se de um ponto de extrema importncia, no qual algum acreditou reconhecer, no sem a cumplicidade do prprio Schmitt, analogias com a filosofia dei distinti, de Benedetto Croce34 em face dos demais setores concretos relativa-mente independentes do pensamento e da ao humana, em particular o setor moral, esttico e econmico.35 Pois bem, uma vez que se assuma que o critrio distintivo da moral est dado pelo par de opostos bem/mal, o da esttica pelo par belo/feio e o da economia pelo par til/prejudicial ou

    34 SCHMITT, 1963, pp. 78-79. Benedetto Croce citado por Schmitt na sua preleo de 1929.

    35 SCHMITT, 1963, p. 26.

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    rentvel/no rentvel, o problema da definio essencial do poltico coincidir com a individualizao de um par determinado, irredutvel aos anteriores.

    A especfica distino poltica consiste para Schmitt na distino entre amigo (Freund) e inimigo (Feind).36 Essa distino representa autnomo e irredutvel critrio com base no qual possvel remeter as aes e os motivos polticos.37 Os dois correlatos indispensveis dessa distino especfica so a existencialidade e a publicidade. Isso impli-ca duas consequncias iniludveis. Em primeiro lugar, os conceitos de amigo ou inimigo devem assumir-se no como metforas ou smbolos, mas em seu significado concreto, existencial. Em segundo lugar, eles no s no se confun-dem com outros critrios para os quais, por exemplo, o inimigo seria mau na moral, feio na esttica ou desvantajoso no econmico , mas tampouco so entendidos no sentido individualista-privado como expresso psicolgica de sen-timentos e tendncias privadas.38 Amizade e inimizade so concebidas, portanto, exclusivamente no sentido pblico: Inimigo somente o inimigo pblico, [...] o hostis, no o inimicus no sentido amplo.39

    Tambm para o aspecto do poltico, como j havia ocorrido com o da deciso, Schmitt ativa o critrio metdico do extremo como verdade dos casos normais: um reagru-pamento ser tanto mais poltico quanto mais prximo esteja do extremo e da pureza da anttese amigo/inimigo. Produz--se assim o definitivo desengate da ao poltica em relao a qualquer referencial topolgico, o que induziu alguns a reconhecer em Schmitt uma definio da poltica especular e

    36 SCHMITT, 1963, p. 26.

    37 SCHMITT, 1963, p. 26.

    38 SCHMITT, 1963, p. 28.

    39 SCHMITT, 1963, p. 29.

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    oposta aos modelos relacionais, funcionalistas ou sistmicos do poder-influncia: O poltico [...] no indica um setor concreto, particular, mas apenas o grau de intensidade de uma associao ou de uma dissociao de homens.40 Des-de o momento em que pureza e autonomia implicam exclusivamente o critrio e no o mbito no qual aquele se explica, se deduz disso que qualquer agregao de intensi-dade prxima anttese amigo/inimigo adquire por si um carter tipicamente poltico, prescindindo do fato de que se manifeste no campo religioso (guerras civis confessionais), nacional (conflitos inter-tnicos) ou econmico (luta de classes).

    Mas, sendo assim, como se relacionam o conceito do poltico e a dimenso teolgico-poltica da soberania estatal? Trata-se de um questionamento de crucial impor-tncia pela dupla ordem de consequncias que comporta nos desenvolvimentos da reflexo schmittiana. A questo implica, de fato: a ) diretamente, a polmica de Schmitt frente aos ordenamentos constitucionais da Repblica de Weimar;41 e b ) indiretamente, o modo pelo qual seu diagns-tico da parbola do Estado moderno se insere no marco de uma viso geral daquela vicissitude alternativa de direito e poder, ordem e conflito, terra e mar, que pauta os desenvol-vimentos do racionalismo ocidental desde os comeos da Grcia clssica at sua atual expanso em escala planetria. Passemos a examinar, pois, esses aspectos na ordem em que acabamos de enunci-los.

    40 SCHMITT, 1963, p. 38.41 Para uma avaliao histrico-conceitual do debate poltico e constitucional

    de Weimar, cf. MARRAMAO, 1990.

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    4. Contra Weimar: despolitizao e domnio da tcnica

    Caso se observe bem, a definio schmittiana do critrio do poltico se caracteriza por um trao terico inconfund-vel: institui uma drstica ciso entre a essncia do poltico e a forma do contrato de intercmbio. Mas na poca em que foi formulada, entre 1927 e 1932, tal ciso inclua uma violenta implicao polmica frente Constituio weimariana uma Constituio sem deciso, Verfassung ohne Entscheidung,42 como a definiu Otto Kirchheimer, discpulo de Schmitt mili-tante nas fileiras da social-democracia na medida em que aceitava passivamente a eutansia do poltico na concep-o e traduo do inimigo como competidor. Com seu inexorvel automatismo, os efeitos de tal passividade eram funestos para Schmitt: a dinmica pluralista dos conflitos e das transaes entre os distintos grupos de presso e dos corpos institucionais lhe parecia o ressurgimento de um amplo estado de latncia daquelas potestades indiretas que haviam sido neutralizadas com a afirmao do Estado moderno e que agora ameaavam vingar-se, minando em sua base a unidade soberana. Em geral, a literatura jurdica e constitucionalista se tem detido nos perfis teraputicos das contribuies schmittianas, rapidamente entre as dcadas de 1920 e 1930, a partir dessa exegese tendenciosa do artigo 48 da Constituio de Weimar,43 em que Schmitt em aberta polmica com a proposta de Hans Kelsen estabelece como guardio da verdadeira Constituio o Presidente do Reich, legislador no caso de extrema necessidade,44 e no um r-

    42 KIRCHHEIMER, 1964, pp. 9-56.43 KIRCHHEIMER, 1976, pp. 113-151 e SCHMITT, 1931. 44 SCHMITT, 1929.

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    go colegiado jurisdicional como a Corte Constitucional, que era, a seu juzo, uma expresso eminente do fracionamento pluralista. Mais alm dos aspectos tcnico-jurdicos, no fundo da polmica Schmitt-Kelsen subjazia uma verdadeira anttese axiolgica e poltico-ideal como, ademais, surge plasticamente do cotejo que dessas duas grandes figuras intelectuais realizou Hans Mayer em suas memrias45 entre uma posio que considerava os partidos polticos como um elemento de dissoluo do sistema poltico e outra que, ao contrrio, se orientava a legitim-los plenamente enquanto fatores constitutivos da democracia moderna. O indicador terico da aposta estava representado, em ltima anlise, pela valorizao diametralmente oposta que os dois atores tinham do conceito de povo: para Kelsen no era nada mais do que uma mscara totmica, uma iluso metapoltica projetada para esconder ou disfarar uma pluriverso de interesses, etnias e culturas; para Schmitt a auto-identificao do Volk foi, em vez disso, o pressuposto existencial de toda unidade poltica;46 aqui o singular pastiche representado pela Verfassungslehre schmittiana, com sua tentativa para dizer o mnimo paradoxal de composio entre a rousseauniana democracia da identidade e a doutrina do pouvoir neutre de Benjamin Constant, o histrico adversrio de Rousseau.

    Mas alm dos aspectos tcnico-jurdicos e constitucio-nalistas, o que importa enfatizar nesse campo so os perfis filosficos da reflexo schmittiana. O mesmo concerne, nesse ponto, relao que se institui entre o conceito do poltico e a teologia poltica centrada no conceito de soberania. O texto em que se explicita de modo mais coerente e sugestivo a interconexo entre essas duas coordenadas fundamentais a conferncia de 1929, Das Zeitalter der Neutralisierungen und

    45 MAYER, 1982, pp. 140-151.46 Sobre esse ponto, cf. MARRAMAO, 1995a.

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    Entpolitisierungen [A Era das Neutralizaes e das Despolitiza-es]. A vicissitude histrico-ideal da moderna civilizao ocidental descrita nesse texto como uma sequncia de etapas em que a essncia poltica da vontade de poder se seculariza: as estaes desse itinerrio, que Schmitt convi-da a no confundir com os esquemas tradicionais de uma ascendente histria da filosofia, vo do teolgico ao metafsico, do moral ao econmico, at a presente era da tcnica. O processo de secularizao se desnuda, pois, por meio de um deslocamento gradual do centro Schmitt chama-o de Zentralgebiet, mbito central ou centro de referncia em que cada vez mais o poltico se ajusta e se normaliza. A secularizao moderna se caracteriza assim por una alternncia de contrastes que se determina atravs da atualizao da anttese amigo/inimigo e de suas sucessivas organizaes neutralizadoras. A irrupo inovadora do poltico e da neutralizao representam, portanto, uma polaridade insanvel do processo de secularizao: A hu-manidade europeia migra continuamente de um campo de luta a um terreno neutro, e de maneira contnua o terreno neutro apenas conquistado novamente se transforma, de imediato, em um campo de batalha, tornando-se necessrio buscar novas esferas neutras.47

    A poca contempornea, marcada pelo predomnio da tcnica, no mais do que o ponto de chegada de uma srie de progressivas neutralizaes48 dos mbitos dos quais, no curso da histria da Europa moderna, foi sucessivamente deslocado o centro, desde o teolgico (teatro das guerras religiosas entre os sculos XVI e XVII) ao metafsico (espao dos conflitos cientfico-polticos no sculo XVII), ao moral (terreno de cultivo do racionalismo do sculo das luzes e

    47 SCHMITT, 1963, p. 89.

    48 SCHMITT, 1963, p. 88.

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    de sua sada revolucionria), ao econmico (pedestal da doutrina do Estado neutro e agnstico do sculo XIX e de sua derrubada na teoria marxista das classes). Mas, enquanto extrema derivao do processo de neutralizao, a tcnica no permite posteriores deslocamentos despolitizantes. De fato, culturalmente cega, no tendo em si o critrio de seus possveis empregos: pode ser revolucionria e reacio-nria, pode servir liberdade e opresso, centralizao e descentralizao.49

    A tcnica espera, pois, o sujeito legitimado para us--la. Mas esse no pode ser um sujeito impessoal e abstrato, como o Estado de Direito que, por reduzir a poltica a uma mquina burocrtico-administrativa, em si mesmo tcni-ca, forma neutralizadora e despolitizadora; deve ser, ento, um sujeito capaz de encontrar o critrio de identificao especificamente poltico. Por essa via, Schmitt correlaciona o conceito do poltico com o tema da deciso, que, se bem por um lado desemboca como se viu na atribuio de toda dinmica inovadora esfera extranormativa da exis-tncia e da vida concreta, por outro lado no pretende em absoluto confundir-se com um romntico rechao tcnica. A tcnica aceita no somente porque agora representa um destino irrevogvel, mas porque justamente ao processo de secularizao dissolvente da metafsica que culmina no completo domnio de uma ordem tcnico-convencional que a deciso deve seu prprio carter infundado, sua condio de abismo sem fundo de uma liberdade capaz de produzir o estado de exceo que suspende a norma, de determinar, em total autonomia, um novo reagrupamento amigo/inimigo.

    Mesmo prescindindo dos acessos polmicos suscita-dos pela categoria schmittiana da deciso relacionada

    49 SCHMITT, 1963, p. 91.

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    oportunamente no marco de uma anlise conceitual compa-rativa com as de Jnger e de Heidegger50 , tambm deve se destacar aqui que a tese das sucessivas neutralizaes secu-larizadoras se destaca do marco das tradicionais filosofias da histria por dois aspectos decisivos. Em primeiro lugar, ela reduz assim como a tese weberiana do continuum do racionalismo ocidental o progresso a uma progressiva racionalidade dos meios51 que d acesso a um formalismo sem fundamentos, a uma ordem puramente convencional. Em segundo lugar, a sucesso das Zentralgebiete [reas cen-trais] no se enquadra por completo em uma nova doutrina dos estgios mais adiante Schmitt parecer pender, em suma, para a teoria rtmica das culturas de Arnold Toyn-bee, baseada no esquema challenge-answer , dado que, longe de denotar um movimento ascendente, se limita a evidenciar os pontos de cristalizao daquela dinmica pluralista da Kultur ocidental, cujos pressupostos so existenciais e no normativos.52 Em outras palavras, os centros de referncia nunca resolvem em si a multiplicidade de fenmenos de cada poca, mas somente polarizam os contextos dinmicos em cujo interior se determina a neutralizao e o controle das tenses conflitivas. As passagens no se verificam, pois, na forma dialtica da Aufhebung cujo grau final elimina e compreende em si todos que o precederam , mas nos ter-mos de um deslocamento lateral, de um mbito ao outro. Portanto, no deve assombrar se esse estatuto paradoxal do poltico como critrio atpico mas ao mesmo tempo misteriosamente capaz de dar lugar a concretssimas to-pografias da ordem tem podido aparecer a alguns como

    50 KROCKOW, 1958. 51 Sobre a teoria weberiana do racionalismo ocidental, cf. MARRAMAO,

    1996, pp. 57-64.

    52 SCHMITT, 1963, p. 84.

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    uma verdadeira aporia filosfica: Schmitt escrevia Karl Lwith em um clebre ensaio de 1935 em realidade no pode dizer [...] onde est colocado o poltico, seno em uma totalidade que supere qualquer setor determinado da realidade, neutralizando todos do mesmo modo, se bem que em uma direo inversa da despolitizao.53

    O ncleo filosfico encerrado no drstico juzo de Lwith para quem o conceito do poltico no faria mais que restituir de modo especular o vazio formalismo da neutralizao, dando lugar assim a uma indeterminao ocasionalmente fungvel em relao a todo contedo e fim acertaria o alvo somente sob uma condio: a de ignorar o desenho histrico global em que Schmitt inscreve todos esses momentos, includos os conceitos de poltica e de Estado.

    O esquema terico que se encontra como pressuposto desse desenho est representado pela concepo do nmos como ordenamento concreto.

    5. A teoria do nmos como ordenamento con-cretoPara Schmitt, a parbola do Estado moderno, nasci-

    do das guerras civis religiosas dos sculos XVI e XVII, se desenvolve em perfeito paralelismo com a de seu aparato doutrinrio, o jus publicum europaeum. Enquanto especfico fenmeno europeu, a cincia jurdica se encontra profun-damente implicada na aventura do racionalismo ocidental:54 a autoridade que ela mesma atribua s funes soberanas do novo Estado laico em suas origens calcava com fidelidade decididamente obsessiva toda a gama dos atributos teocr-ticos. O carter absoluto da apropriao daqueles atributos

    53 FIALA, 1935.

    54 Para essas questes, cf. SCHMITT, 1950a e 1950b, p. 75.

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    por parte do soberano secular ficava assim garantido preci-samente por essa perfeita correspondncia formal com a sua matriz. Enquanto traduo hobbesianamente rigorosa das prerrogativas teolgicas em prerrogativas mortais e mundanas, a secularizao operada nas origens pelo Direito Pblico ainda no constitua uma profanao, mas sim uma neutralizao do conflito religioso atravs da instaurao de uma nova ordem, j no confessional, mas integralmente civil e poltica. Aqui se acha depositada a cha-ve da admoestao de Alberico Gentili, assumida segundo Schmitt como frmula inaugural do Estado moderno: Si-lete, theologi, in munere alieno! [Calai-vos, telogos, quanto aos assuntos alheios!].55 Mas com o avano da secularizao, a estrutura estatal foi se transformando cada vez mais em uma mquina inanimada e em um aparato neutro, do qual a pessoa representativo-soberana primeiro foi relegada ao segundo plano e logo definitivamente excluda. Com a era da tcnica, essa profanao chega a seu cumprimento natural. E, presena da nova objetividade do tecnicismo puro, cabe agora aos juristas receber a ordem de calarem-se. Assim, o Silete theologi! substitudo pelo Silete iurisconsulti!: Eis duas singulares ordens de calar, ao comeo e ao final de uma poca. Ao comeo, h uma ordem de calar que provm de juristas e est destinada aos telogos da guerra justa. Ao final, encontramos a ordem, dirigida aos juristas, de aterem--se a um tecnicismo puro, quer dizer, totalmente profano.56

    Esse tom pessimista que se encontra em Ex Captivitate Salus ressoa em muitos dos motivos da reflexo schmittiana do segundo ps-guerra: A poca dos grandes sistemas foi superada, se l na pgina 17 do prefcio reedio de 1963 de O Conceito do Poltico. Hoje s so possveis dois estilos

    55 SCHMITT,1950a, pp. 92 e 131 e 1950b, p. 70. 56 SCHMITT, 1950b, p. 75.

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    de pensamento: um olhar histrico retrospectivo que reflete a grande poca do Direito Pblico continental ou o estilo aforstico. Mas, por ser impossvel a um jurista o salto no aforismo, se impe como obrigatria a primeira via de sada. o que Schmitt tenta fazer naquela que, com toda legitimidade, pode se considerar sua obra maior, Der Nmos der Erde.

    Os conceitos bsicos da cincia jurdica ocidental o de poltico e o de Estado so enquadrados aqui e relativi-zados dentro da vicissitude geral do nmos. Com a teoria do nmos, Schmitt se prope delinear os requisitos originrios daquele mecanismo de apropriao que se encontra no fun-damento de todo direito; todavia, j no se trata do direito positivo da cincia jurdica moderna, mas de uma espcie de direito primognito acessvel a uma viso metajurdica e de tendncia antropolgica. As coordenadas essenciais desse direito primordial esto representadas pelo par Ordnung--Ortung, ordenamento-localizao: em outras palavras, no existe direito sem terra a iustissima tellus , pois todo direito se apoia sobre pressupostos cardeais de aquisio territorial e de ordenao espacial.57 Sobre a base de uma radical hiptese etimolgica enunciada no ensaio de 1959, Nmos/Nahme/Name, Schmitt faz derivar o substantivo grego nmos do verbo nmein, em triplo significado de tomar/conquistar, repartir/dividir e cultivar/produzir. Os trs significados corresponderiam a outros tantos modos originrios da ao e da existncia social presentes em todas as fases e em todos os ordenamentos da histria. Reaparece assim o motivo existencial do ordenamento concreto, que no desenvolvimento da reflexo schmittiana parece configurar--se como uma problemtica ainda mais originria e profunda do que a polemolgica (centrada no conceito do poltico)

    57 SCHMITT, 1950a, p. 1.

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    e a niilista (centrada na categoria da deciso). Por outro lado, j no ensaio de 1934 sobre os trs tipos de pensamento jurdico, Schmitt havia relativizado fortemente o tipo de-cisionista, terminando por consider-lo como a interface do tipo normativista, remetendo-o ao seio de uma viso institucionalista e ordenamental. E interessante notar que, antecipando um Leitmotiv da crtica antidecisionista, afirmava com lucidez naquele texto: O decisionismo puro pressupe uma desordem que se transmuta em ordem ape-nas pelo fato de que se tomou uma deciso (no revela como se forma tal deciso).58

    Mas o tema que aqui importa assinalar, caso se observe os resultados de todo um todo nem sempre coerente iti-nerrio schmittiano, o que implica de modo especfico o par que sustenta o diagnstico da globale Zeit [era planetria] contida no Der Nomos der Erde: o dualismo terra-mar. luz da eterna vicissitude da terra e do mar, de fato, encontra explicao no s o ponto de chegada do jus publicum que encalha na comprovao da eutansia tcnico-neutra do Deus mortal, o Estado-Leviat, e no destaque do seu pon-tual contrapasso, constitudo pela disseminao da pola-ridade amigo/inimigo e pela apario de novas figuras do poltico, como, por exemplo, o partisan , mas tambm o prprio decurso do moderno e de sua mais notria mani-festao, a revoluo industrial. O marco global induzido por essa revoluo a uniformizao do mundo sob o domnio da tcnica planetria resulta compreensvel para Schmitt somente se se o considera sob o aspecto da contraposio entre mar e terra;59 a verdadeira transformao csmico--histrica da modernidade advm no momento no qual, em fins do sculo XVI, a ilha britnica se desprega idealmente

    58 SCHMITT, 1934.

    59 SCHMITT, 1942, p. 19 e 1950a, p. 3.

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    dos destinos do continente para empreender a aventura nos mares. E o efeito desse despregar que o antigo nmos pu-ramente terrestre60 substitudo por um novo nmos que engloba em sua prpria ordem os oceanos.61 Desde ento, todos os posteriores impulsos ao cosmos de uma tcnica que no pode ser parada escrever Schmitt na ocasio de uma importante polmica com Ernst Jnger em 1955 tem tido somente o significado de fazer do astro que habitamos, a Terra, uma nave espacial.62

    certo que esse diagnstico apesar de seu ostensivo e, s vezes, satisfeito radicalismo de nenhuma maneira apresentado em relao com as possibilidades de uma rea-tivao, no corao da era global, dos temas clssicos do poltico e da ordem, talvez na forma de uma nova sntese histrico-dialtica entre terra e mar, possibilidade que se tornou atual pela circunstncia de que a tcnica havia satu-rado agora definitivamente o espao e que, portanto, o atual chamado da histria j no seria idntico ao da poca em que os oceanos se abriam.63

    E, todavia, a tonalidade de fundo do pensamento schmittiano continua sendo, em ltima anlise, pessimista. Fundamentalmente, no distinta da atitude psicolgica que se vinha delineando graas sapincia celular dos anos de priso. Uma atitude entre orgulhosa e nostlgica, ditada pela aguda conscincia de ser o ultimo de uma grande tra-dio, a testemunha extrema e o porta-voz de uma grandeza inexoravelmente confinada no passado:

    Toda situao tem seu segredo e toda cincia leva em si seu arcanum. Sou o ltimo representante consciente do jus publicum

    60 SCHMITT, 1955, pp. 135-167.

    61 SCHMITT, 1955, pp. 165-167. 62 SCHMITT, 1950b, p. 75.63 SCHMITT, 1955, pp. 165-167.

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    europaeum, o ltimo a t-lo ensinado e investigado em um sentido existencial, e vivo seu final como Benito Cereno viveu a viagem do navio pirata. Assim est bem e tempo de calar. No temos que nos assustar. Ao calar, nos lembramos de ns mesmos e de nossa origem divina.64

    Referncias

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    64 SCHMITT, 1950b, p. 75.

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  • O EXLIO DO NMOS: CARL SCHMITT E A GLOBALE ZEIT

    Revista Brasileira de Estudos Polticos | Belo Horizonte | n. 105 | pp. 151-184 | jul./dez. 2012

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    Recebido em 31/07/2012.Aprovado em 02/09/2012

    Giacomo Marramao

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