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O VALOR DO DIREITO NO SÉCULO XXI – VIDA, TRANSFORMAÇÕES E TRANSVALORAÇÕES DO DIREITO POR NIETZSCHE E FOUCAULT. EL VALOR DEL DERECHO EN EL SIGLO XXI - VIDA, TRANFORMACIONES E TRANSVALORACIONES DEL DERECHO POR NIETZSCHE E FOUCAULT. Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez Sérgio de Oliveira Santos RESUMO Não é difícil encontrar operadores e pensadores do Direito que bradem fortemente que o Direito separou-se da justiça. Miope perspectiva. Através da degradante condição da experiência humana nesse início de século e diante das leituras que aqui se traz, podemos dizer sem medo que o Direito se desvencilhou da vida. O Direito e o fenômeno jurídico na perspectiva neoliberal não só estaria atuando para o auxílio do sequestro dos corpos dos partícipes da sociedade a fim de enquadrá-los e docilizá-los, mas estaria também atento aos acontecimentos, agora não apenas para reprimi-los a priori como descumpridores da norma, mas para tomá-los nos termos de sua administração. Nesse contexto, faz-se objetivo do presente artigo demonstrar as transformações ocorridas no Direito da Idade Moderna à Contemporânea, no que tange aos seus discursos normatizadores e normalizadores que influenciam sobremaneira nossas insossas formas de ser e estar no mundo em pleno século XXI. Por derradeiro, tem-se que a possibilidade de um Direito legítimo e não apenas legal, encontra-se naquilo que amplamente denominamos personalidade ou subjetividade, mais especificamente, junto de posturas e perspectivas que vão do cuidado-de-si posto por Foucault ao favorecimento da vida posto por Nietzsche. PALAVRAS-CHAVES: DIREITO; CONTEMPORANEIDADE; PERSPECTIVA AVALIATIVA; EXPERIÊNCIA HUMANA; PODER; VIDA. RESUMEN No es difícil encontrar operadores y pensadores del Derecho que vociferen fuertemente que el Derecho se separó de la justicia. Miope perspectiva. A través de la degradante condición de la experiencia humana en este inicio de siglo y ante las lecturas que aquí se traen, podemos decir sin miedo que el Derecho se libró de la vida. El derecho y el fenómeno jurídico en la perspectiva neoliberal no sólo actuarían para el auxilio del secuestro de los cuerpos de los participantes de la sociedad con el fin de encuadrarlos y volverlos dóciles, si no que estaría también atento a los acontecimientos, ya no sólo para reprimirlos a priori como incumplidores de la norma, si no para tomarlos en los términos de su administración. En este contexto, el objetivo del presente artículo es demostrar las transformaciones ocurridas en el Derecho desde la Edad Moderna hasta la 7609

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O VALOR DO DIREITO NO SÉCULO XXI – VIDA, TRANSFORMAÇÕES E TRANSVALORAÇÕES DO DIREITO POR NIETZSCHE E FOUCAULT.

EL VALOR DEL DERECHO EN EL SIGLO XXI - VIDA, TRANFORMACIONES E TRANSVALORACIONES DEL DERECHO POR

NIETZSCHE E FOUCAULT.

Everaldo Tadeu Quilici Gonzalez Sérgio de Oliveira Santos

RESUMO

Não é difícil encontrar operadores e pensadores do Direito que bradem fortemente que o Direito separou-se da justiça. Miope perspectiva. Através da degradante condição da experiência humana nesse início de século e diante das leituras que aqui se traz, podemos dizer sem medo que o Direito se desvencilhou da vida. O Direito e o fenômeno jurídico na perspectiva neoliberal não só estaria atuando para o auxílio do sequestro dos corpos dos partícipes da sociedade a fim de enquadrá-los e docilizá-los, mas estaria também atento aos acontecimentos, agora não apenas para reprimi-los a priori como descumpridores da norma, mas para tomá-los nos termos de sua administração. Nesse contexto, faz-se objetivo do presente artigo demonstrar as transformações ocorridas no Direito da Idade Moderna à Contemporânea, no que tange aos seus discursos normatizadores e normalizadores que influenciam sobremaneira nossas insossas formas de ser e estar no mundo em pleno século XXI. Por derradeiro, tem-se que a possibilidade de um Direito legítimo e não apenas legal, encontra-se naquilo que amplamente denominamos personalidade ou subjetividade, mais especificamente, junto de posturas e perspectivas que vão do cuidado-de-si posto por Foucault ao favorecimento da vida posto por Nietzsche.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO; CONTEMPORANEIDADE; PERSPECTIVA AVALIATIVA; EXPERIÊNCIA HUMANA; PODER; VIDA.

RESUMEN

No es difícil encontrar operadores y pensadores del Derecho que vociferen fuertemente que el Derecho se separó de la justicia. Miope perspectiva. A través de la degradante condición de la experiencia humana en este inicio de siglo y ante las lecturas que aquí se traen, podemos decir sin miedo que el Derecho se libró de la vida. El derecho y el fenómeno jurídico en la perspectiva neoliberal no sólo actuarían para el auxilio del secuestro de los cuerpos de los participantes de la sociedad con el fin de encuadrarlos y volverlos dóciles, si no que estaría también atento a los acontecimientos, ya no sólo para reprimirlos a priori como incumplidores de la norma, si no para tomarlos en los términos de su administración. En este contexto, el objetivo del presente artículo es demostrar las transformaciones ocurridas en el Derecho desde la Edad Moderna hasta la

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Contemporánea, en lo que se refiere a sus discursos reguladores y normalizadores que influyen sobremanera en nuestras insípidas formas de ser y estar en el mundo en pleno siglo XXI. Por último, existe la posibilidad de tener un Derecho legítimo y no únicamente legal, donde se encuentra en aquello que ampliamente denominamos personalidad o objetividad, más específicamente, junto a posturas y perspectivas que van desde el cuidado-de-si propuesto por Foucault al beneficio de la vida propuesto por Nietzsche.

PALAVRAS-CLAVE: DERECHO; CONTEMPORANEIDAD; PERSPECTIVA EVALUATIVA, EXPERIENCIA HUMANA; PODER; VIDA

Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado.Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado. Você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: tudo tem melhorado. Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado. Você merece, você merece. Tudo vai bem, tudo legal.

Gonzaguinha

Michel Foucault inicia sua primeira conferência na PUC-Rio[1] falando de uma falta muito grave do que chamou de marxismo acadêmico em que o sujeito humano – o sujeito do conhecimento –, tal como suas formas de conhecer, são caracterizados anterior e definidamente às condições econômicas, sociais e políticas que apenas neles se inscrevem e se acumulam.

Foucault recorre a um fragmento nietzschiano[2] para afirmar que nem o sujeito, nem as formas de conhecimento são dados prévia e definidamente. As práticas sociais produzem domínios de saber (formas poder) que além de engendrar novos objetos, conceitos e técnicas sociais inventam o próprio ser humano e seus modos de conhecer – as maneiras de ser e estar no mundo. A partir de então diz que o sujeito do conhecimento tem uma história, tal como a própria verdade[3]. Por esse mote, Foucault transmuta o conceito marxista de ideologia da perspectiva de um tapume que não nos deixa ver a realidade tal como ela é para uma forma de saber/poder através do qual nos constituímos.

Na introdução da obra A filosofia do Direito na Idade Antiga[4] Gonzalez nos traz que o surgimento do pensamento filosófico foi um acontecimento surpreendente da história da humanidade[5] e dele verte uma profícua possibilidade de compreensão dos processos civilizatórios da mesma e, em particular, da sociedade ocidental.

Foi por volta do século VI a.C., junto da cultura grega Antiga, que o pensamento filosófico se notabilizou ao apresentar uma postura diferente das especulações do senso comum e dos pensamentos mítico e teológico para compreensão do cosmos e do próprio se humano. As dimensões ontológica (estudo do ser), axiológica (estudo dos valores) e gnosiológica (estudo das formas e procedimentos do conhecimento) do pensamento filosófico grego transcenderam o seu próprio tempo ao sincretizar elementos de culturas anteriores a si (egípcia, babilônica, hebraica, assíria etc.), e influenciar culturas

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ulteriores como o império romano, a cristandade e a civilização Ocidental. Destarte, endossa Gonzalez que é na filosofia e na dimensão histórica da experiência humana que repousam desde sempre os fundamentos do Direito e do fenômeno jurídico[6]. E nesse sentido pactua com Foucault a idéia de que uma perspectiva (um estudo, uma verdade) só pode ser tomada mediante certas condições econômicas, sociais e políticas.

Boaventura de Souza Santos no prefácio do volume 1 de sua obra, A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência[7], diz que há um desassossego no ar que respiramos marcado por um presente que está terminando e um futuro ainda porvir, resultando em excessos de determinismos e indeterminismos que nos deixam desorientados em uma sociedade intervalar fazendo apelo a uma racionalidade activa, porque em transito, tolerante, porque desinstalada de certezas paradigmáticas, inquieta, porque movida pelo desassossego que deve, ela própria, potencializar[8].

No prefácio da obra Teodiceia de Leibniz, Boaventura de Souza Santos resgata a perplexidade de um sofisma que os antigos chamavam de razão indolente ou razão preguiçosa[9]. Tal razão é marcada por duas características aparentemente contraditórias: a razão inerme – desarmada, indefesa, incapaz nas condições e necessidades externas a si – e a razão displicente – que se faz imóvel por acreditar-se irrefletidamente livre. Impotência e displicência podem limitar sobremaneira as experiências e possibilidades do sujeito ser e estar no mundo. O que para o autor, diante de uma transição paradigmática, seria um desperdício de experiência (experiência de estar vivo) e um subjugar-se ao paradigma dominante.

Diante do exposto por esses três autores temos que o ser humano não é algo estanque e definitivo, podendo ser moldado e (re)inventado junto de suas formas de conhecer, experenciar e pensar(-se). Tais formas são regidas por valores que se materializam em economias, instituições e políticas sociais ao longo da história, de modo que a cultura ocidental é fortemente marcada pelas contribuições do pensamento filosófico helênico e pelo espírito de seu tempo que, em particular, para nós contemporâneos do século XXI, inebriados pelo neoliberalismo e envoltos por seus tentáculos feitos razão instrumental (tecnociências), mostra-se como momento de transição, desorientação e vulnerabilidade frente à avalanche de discursos que povoam nosso cotidiano com a intenção de nos colonizar, nos disciplinar, nos trancafiar em nós mesmos limitando nosso devir, nossas formas de ser e estar no mundo.

É justo destacar, que tal limitação não se dá de maneira explicitamente autoritária. Os ardis liberais e suas transmutações na história criaram uma atmosfera de vida (estilos de vida) em que o sujeito não é apático frente ao poder que o subjuga, mas ao contrário, extremamente ativo. Porém, sua vida está muito longe de ser uma experiência de vida autêntica, tomando por esta, no viés nietzschiano, duas características: conservação e superação. Ou seja, o fantoche humano contemporâneo deixa-se manipular enquanto canta o prazer de ser livre.

Nesse contexto, faz-se objetivo do presente artigo demonstrar as transformações ocorridas no Direito da Idade Moderna à Contemporânea, no que tange aos seus discursos normatizadores e normalizadores, e como estes influenciam sobremaneira nossas formas de ser e estar no mundo em pleno século XXI.

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Como referência para tal empreitada, tomamos inicialmente que o Direito não é algo estanque e que vem se (re)fazendo no decorrer dos tempos pelo e para o ser humano. De acordo com Gonzalez é na filosofia e na dimensão histórica da experiência humana que repousam desde sempre os fundamentos do Direito e do fenômeno jurídico[10]. Assim, nosso exercício dar-se-á primeiramente através da disjunção e apreensão de dois elementos principais de tal afirmação – filosofia e história. Em seguida, junto de Nietzsche e Foucault, procuraremos pensar a experiência humana na contemporaneidade a fim de assimilarmos o Direito e o fenômeno jurídico nesta dobra temporal entre Modernidade e Pós-Modernidade[11] e, por derradeiro, inferir acerca das múltiplas influências e transformações que há nas relações entre o Direito e suas manifestações no século XXI e nós seres humanos.

O QUE É FILOSOFIA?

Em 1991 Gilles Deleuze escreve junto com Felix Guattari uma importante e madura obra que procuraria responder a questão que aqui trazemos. E de pronto os autores responderam: a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos[12]. Para os autores todo conceito é definido por seus componentes. Assim, não existe um conceito simples. Todo conceito é uma multiplicidade, um todo fragmentário. Inclusive aqueles que são tomados como o início de uma dada filosofia.

A origem grega da filosofia é marcada por uma ruptura com a forma de apreensão e relação com a sabedoria. Esta não mais aconteceria sob a forma de Figura, com certo distanciamento e apropriação do que se pensa. Os gregos substituiriam o Sábio pelo Amigo da sabedoria – aquele que se lança em uma relação íntima e viva com o que se pensa, com o conceito que se cria até tornar-se parte deste.

O amigo ou amante da sabedoria não teme momentos preocupantes ou ameaçadores. Está sempre em combate e mutação avaliando conceitos. E dessa forma torna-se amigo de Platão, mas mais ainda da sabedoria, do verdadeiro ou do conceito[13]. Nesse sentido diz Nietzsche:

Os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. (...) é necessário substituir a confiança pela desconfiança[14].

Resta claro junto desse excerto nietzschiano e das contribuições de Deleuze e Guattari que filosofia é um ato de transfiguração, uma atitude ética e responsável frente aos códigos morais, a tradição, os dilemas e impasses da vida. A filosofia não permite que o filósofo se distancie do que pensa, do que analisa. Ela o abriga a entrar em contato íntimo com o ser ou coisa com que se relaciona. Nesse sentido continua Nietzsche:

(Nós filósofos) não somos rãs pensantes, nem aparelhos de objetivação e máquinas registradoras com vísceras congeladas – temos constantemente de parir nossos pensamentos de nossa dor e maternalmente transmitir-lhes tudo o que temos em nós de

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sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade. Viver – assim se chama para nós, transmudar constantemente tudo o que nós somos em luz e chama; e também tudo o que nos atinge. Não podemos fazer de outro modo[15].

Em uma de suas palestras Giacóia Júnior[16] chama atenção para a honestidade intelectual que há na última frase dessa citação (não podemos fazer de outro modo). Para ele é Nietzsche, ferrenho crítico do cristianismo, utilizando-se do que fora dito por Martin Lutero ao emissário do papa no momento que lhe fora pedido para abjurar as teses da Reforma: aqui estou eu e não posso fazer de outro modo.

A relação filosofia e vida não pode se limitar a uma relação apenas contemplativa, especulativa, a um relacionamento neutro, distante, objetivo, pois brota das próprias entranhas do filósofo. É uma relação visceral e de confrontos. Mas é justo destacar, para entre outros afastar certos equívocos principalmente em relação ao pensamento nietzschiano que, confronto não tem nenhuma relação com extermínio. E isso fica claro em Deleuze e Guattari ao tomarem a questão sobre o que é filosofia e tê-la como a arte de criar conceitos:

Seria preciso formulá-la ‘entre amigos’, como uma confidência ou uma confiança, ou então face ao inimigo como um desafio, e ao mesmo tempo atingir esta hora, entre o cão e o lobo, em que se desconfia mesmo do amigo. É a hora em que se diz: ‘era isso, mas eu não sei se eu disse bem, nem sei se fui assaz convincente’. E se percebe que importa pouco ter dito bem ou ter sido convincente, já que de qualquer maneira é nossa questão agora[17].

Deleuze e Guattari começam a delinear em nosso trabalho marcas indeléveis do pensamento nietzschiano. A saber, a valoração para além do bem e do mal e a questão das forças. Já dizia Nietzsche que se quiser ter um amigo, é preciso também guerrear por ele; e para guerrear é mister poder ser inimigo. É preciso honrar no amigo o inimigo[18]. E por fim questiona: podes aproximar-te do teu amigo sem passar para o seu bando? [19]

Tem-se aqui mais uma vez a constatação de que não há como estar vivo e ser indiferente à vida, pois a todo o momento o ente tem de avaliar. Mas não pode, como já observara Zaratustra, avaliar como seu vizinho se quiser se conservar. Nunca um vizinho compreendeu o outro; sempre sua alma se assombrou da loucura e da maldade do vizinho[20]. Para Zaratustra, que muitos povos viu, não há maior poder na Terra que bem e mal. E é sobre bem e mal que se forma a tábua de valores que rege cada povo. Tal tábua é a tábua dos triunfos dos seus esforços; é a voz de sua vontade de poder[21].

Se a função da filosofia é criar conceitos, vemos em Nietzsche que toda criação parte de uma avaliação. É o homem quem pôs valor nas coisas com a intenção de se conservar; foi ele quem deu sentido às coisas, um sentido humano. (...) A mudança dos valores é a mudança de quem cria. Sempre aquele que cria destrói[22]. E complementa Benjamin: nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie não o é

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tampouco, o processo de transmissão da cultura[23]. Urge assim nossa segunda questão: o que é história?

O QUE É HISTÓRIA?

No capítulo II da obra Microfísica do poder[24] intitulado Nietzsche, a genealogia e a história, Foucault contrapõe um conceito de história tido por história efetiva à um ponto de vista supra-histórico em que um ser humano soberano dirige-se ao passado a fim de restringir a multiplicidade do tempo e dos fatos a ponto de tomá-los sobre si mesmo e para si mesmo como um encadeamento lógico de reconhecimento e reconciliação, permitindo-lhe elencar valores e verdades que objetivam julgar a realidade – e criar outras realidades metafísicas – que sempre lhe dê a possibilidade de manter seus domínios.

A história efetiva, por sua vez, vai de encontro à estabilidade, às crenças nas constâncias e processualidades contínuas, imutáveis e sagradas. Nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles[25]. Tudo está em movimento para despedaçar as possibilidades de reconhecimento que consolam e tutelam a condição humana. Grosso modo, a história efetiva imprime no ser humano a descontinuidade.

Ela (história efetiva) dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo. Ela não deixará nada abaixo de si que teria a tranqüilidade asseguradora da vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo o que se gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretença continuidade. É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar[26].

Foucault aponta que entre as estratégias ou formas de conservação da história tradicional (supra-histórica) está o apagamento dos acontecimentos ou uma tendência a recuperá-los no decorrer dos tempos como uma seqüência lógica que traz para ela um sentido fechado e acabado. Mas para o francês:

É preciso entender por acontecimento não uma decisão, um tratado, um reino ou uma batalha, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, distende, se envenena e uma outra que faz sua entrada, mascarada[27].

Acontecimento nesses termos é ruptura, é o que escapa, que inverte o habitual estabelecido e a necessidade da continuidade. Gonzales[28], em diversos trechos de sua obra, tal quando fala do surgimento do pensamento filosófico e quanto ao reordenamento das concepções sobre o cosmos e o próprio ser humano diante das considerações dos filósofos Antigos, toma este conceito nesses termos. Outro exemplo nesse mesmo texto, agora junto ao que Foucault tomou supra como inversão de forças, de confisco de poder, de uma dominação que se enfraquece, está na relação entre os gregos e os romanos. Afinal, mesmo tendo estes últimos conquistado belicamente os

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primeiros, foram de certa forma conquistados pela cultura grega muito mais desenvolvida que sua própria[29].

Em Walter Benjamin encontramos a seguinte alegoria sobre a história:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso[30].

A alegoria benjaminiana nos provoca com profundidade e genialidade, pois vai à base do que temos como história. Compreendendo esta em suas dimensões tradicional e efetiva, nos força a rever nossas implicações na processualidade constitutiva do que entendemos como história. Afinal, a história será constituída a partir de nossas interpretações acerca do que ocorrera. E não há interpretação sublime! Há violência e até sub-repção de uma tendência ou um sistema de significação que mata ou deixa viver.

Quantos semelhantes matamos? Quanto não captamos a finesse da vida? Somente uma genealogia da história (das marcas, das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, científicos, libertários e artísticos) poderá nos mostrar as perspectivas de olhares e valorações que se perderam ou nos influenciaram e nos influenciam ao longo dos tempos. Olhar para a história tal como o anjo trazido por Benjamin torna-se nosso grande desafio.

PERSPECTIVISMO, VALORAÇÃO E VIDA

Como se costuma dizer: todo ponto de vista é a vista de um ponto. Isso restou claro das contrbuições de Foucault e Nietzsche sobre a história – tradicional e efetiva. Gostaríamos de trazer mais um fragmento destes autores no que tange aos ângulos de visão adotados pelos historiadores junto de tais perspectivas.

(A história tradicional) se compraz em lançar um olhar para o longínquo, para as alturas: as épocas mais nobres, as formas mais elevadas, as idéias mais abstratas, as individualidades mais puras. E para fazer isso ela procura se aproximar destas coisas ao máximo, colocar-se aos pés destes cumes em condições de ter com elas a famosa perspectiva das rãs. (...) operam sub-repticiamente: eles fingem olhar para o mais longe de si mesmos, mas de maneira baixa, rastejando, eles se aproximam deste longínquo prometedor [no que eles são como os metafísicos que vêem, bem acima do mundo, um além apenas para prometê-lo a si mesmos como recompensa]. A história

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‘efetiva’, em contrapartida, lança seus olhares ao que está mais próximo: o corpo, o sistema nervoso, os alimentos e a digestão, as energias; ela perscruta as decadências; e se afronta outras épocas é com a suspeita – não rancorosa, mas alegre – de uma agitação bárbara e inconfessável. Ela não teme olhar embaixo. Mas olha do alto, mergulhando para apreender as perspectivas, desdobrar as disposições e as diferenças, deixar a cada coisa sua medida e sua intensidade. (...) a história efetiva olha para o mais próximo, mas para dele se separar bruscamente e se apoderar a distância[31].

Essas duas perspectivas são as perspectivas avaliadoras da ovelha e da ave de rapina que Nietzsche traz no §13 da Genealogia da moral para traçar historicamente os dois tipos de moral que há no mundo – a do nobre e a do ressentido; a do senhor e a do escravo; a dos fortes e a dos fracos. Neste aforismo as ovelhas dizem umas às outras: essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha - este não deveria ser bom? E nesse mesmo momento, as aves de rapina que sobrevoam o rebanho, com zombaria comentam entre si: nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha[32].

É justo destacar que o termo moral, grosso modo, não é tido aqui como um conjunto de normas e regras, mas sim como perspectiva avaliativa. Assim temos que a moral da ave de rapina (dos nobres, dos senhores, dos fortes) é constituída a partir do critério de bom, que atribui a ela mesma. Somente muito depois, com desdém, cria o seu contraste – o ruim – e o atribui àqueles que não conferem condições de combate, àqueles que são incapazes de lutar, que não têm condições de ser um honrado inimigo.

Retomando as questões sobre filosofia e história, a perspectiva nobre é a perspectiva do historiador efetivo e também esclarece o que Nietzsche disse a respeito de honrar no amigo o inimigo. O inimigo/amigo é o obstáculo que se transfigura em estímulo, pois se presta ao confronto e por isso é digno de estar na mesma casta, ou melhor, fazer parte da mesma tipologia nobre de ser humano. É justo destacar, à luz de Scarlet Marton[33], que quando Nietzsche enaltece os nobres tem em mente a aristocracia guerreira dos tempos homéricos, junto a personagens como Heitor, Aquiles, Agamemnon e Patroclos. Não é a nobreza como classe social que ele se refere.

Por outro lado, a moral das ovelhas ou do rebanho (dos ressentidos, dos escravos, dos fracos) constitui-se a partir da criação do critério de mau, que atribui aos fortes. E, em contrapartida, adotam para si o critério de bom. Essa é a perspectiva avaliativa do historiador tradicional.

Temos em mãos um primeiro momento do que Nietzsche chamou de procedimento genealógico, que consiste justamente em questionar o valor dos valores: a perspectiva valorativa e a realidade política, econômica e social sob a qual o valor foi criado. Afinal, resta claro, que o bom da moral do nobre não é o mesmo bom da moral do ressentido, pois o bom da moral deste último surgiu de um movimento de reação, negação e oposição. O bom do historiador tradicional visa a continuidade e o bom do historiador efetivo visa o acontecimento. O bom da perspectiva nobre do filosofo é criar conceitos, enquanto que o bom da moral dos filósofos ressentidos é resgatar e refletir sobre velhos conceitos.

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Como somos todos gente de bem é justo que não nos precipitemos em tender para uma ou outra perspectiva avaliativa. Assim nos perguntamos: a moral do nobre é melhor que a do ressentido? A moral do senhor é melhor que a do escravo? A perspectiva da história efetiva é melhor que a perspectiva tradicional?

Tais perguntas são extremamente capciosas e ardilosas, visto que já têm origem na alegação de que somos gente de bem. Opa! Nós quem cara pálida? Esse bem é o bem da perspectiva do senhor ou do escravo? Quando optamos por dizer que uma moral é melhor que a outra, esse melhor é o da perspectiva avaliativa nobre ou ressentida? Se houver reposta iremos novamente perguntar: quem avaliou se é o bem da perspectiva do senhor ou do escravo, um nobre ou um ressentido? E assim continuaremos avaliando e questionando infinitamente de acordo com os nossos valores ou os valores do nosso tempo, do espírito do nosso tempo. Como sair desse ciclo vicioso e tendencioso?

Nietzsche encontrou a saída junto de um valor que não poder ser avaliado por nenhum ser vivo, pois é parte interessada; e nem por um morto, por outros motivos. O valor a que Nietzsche se refere é a vida. E para ele vida é vontade de poder, vontade de potência que se desdobra e atua no intuito de se conservar e se superar. É um eterno expandir que não se faz privilégio e exclusividade do ser humano em cada uma de suas microcélulas, mas de todos os seres e coisas do universo.

Por esse prisma, podemos agora recuperar aquelas capciosas e ardilosas questões que fizemos da seguinte forma: a maneira nobre de avaliar contribui para a conservação e a superação (expansão) da vida ou a degradação da mesma? A perceptiva avaliativa do escravo contribui para a conservação e a superação (expansão) da vida ou o definhamento desta?

Juízos, juízos de valor sobre a vida, pró ou contra, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintomas, só como sintomas entram em consideração – em si tais juízos são estupidezes. É preciso estender os dedos, completamente, nessa direção e fazer o ensaio de captar essa assombrosa finesse – de que o valor da vida não pode ser avaliado. Por um vivente não, porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão[34].

FACES DO PODER

A vontade de poder está em tudo. A vida é sua maior manifestação que transpassa todos os seres e coisas em um plano transcendental permitindo para estes a singela captura de um lampejo de seu fluxo em suas produções e modos de ser e estar no mundo.

A plenitude da vida não pode ser captada, não delegando assim, um sentido pronto e acabado de si que poderia dirigir toda existência no planeta Terra. É a partir dos fragmentos da vida que o ser humano se constitui. Atribuir valor, sentido, significado, direcionamento à vida foi a estratégia de dominação mais utilizada pelos

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seres humanos ao longo dos tempos. Vejamos um pouco desse processo na obra de Foucault.

No volume 1 da História da sexualidade[35], Foucault nos traz que durante todo o absolutismo monárquico a vida do súdito era um direito do soberano, que através do confisco e do suplício exercia o seu poder através de um mecanismo de fazer morrer e deixar viver[36] em que os corpos e as posses dos súditos eram supliciados ou confiscados a partir do momento que afiguravam-se como ameaça ao território ou às leis do monarca.

No início da Modernidade, junto das políticas de Estado, Foucault indica uma forma diferente à do soberano de exercer o poder, marcada agora pela estratégia de fazer viver e deixar morrer[37], tendo a vida como um elemento que pode ser administrado, atuando em prol de extrair cada vez mais a força dos corpos aumentando sua funcionalidade nas tarefas que lhes foram designadas. A esta estratégia Foucault chamou de Biopoder. A vida agora é o objeto do poder. Produzi-la e administrá-la é o seu intento.

Para Foucault o poder não é nada mais que uma forma de relação entre as pessoas e as pessoas e as coisas. O que põe o poder em evidência é o fato de que através destas relações alguns homens podem mais ou menos determinar inteiramente a conduta de outros homens[38]. O biopoder apresenta duas maneiras distintas, mas complementares de atuação: uma ocorreria por meio do sequestro da corporeidade do sujeito, ou seja, uma disciplinarização visando sua utilidade e docilidade; e outra que visaria a administração da população, ou seja, as biopolíticas de saúde, educação, alimentação, natalidade, longevidade etc.

A disciplina e a biopolítica figuram junto do cenário jurídico de soberania do século XV ao final do século XVII, momento em que alguns fatores de instabilidade tais como a expansão demográfica, a abundância monetária resultada da incursão dos metais preciosos das colônias e o aumento da produção agrária[39] começaram a aparacer.

Em meados do início do século XVIII uma nova forma de administração e produção da vida começa a vigorar a fim de aprender a rede de relações contínuas e múltiplas entre a população, o território, a riqueza etc[40]. Uma ciência política que incita uma nova técnica de governo que iria intervir, através de instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas[41], no campo da economia e da população. Essa ciência é a economia política, o modo de governo é do Estado Moderno – liberal.

No estudo do Liberalismo, Foucault encontra um Estado que não poderia existir para servir a si mesmo, ser seu próprio fim. A partir deste entendimento foi criado a sociedade civil, como justificativa e objeto qual o Estado deveria servir.

A sociedade civil nasce diante do pressuposto que o Estado governa em demasia. Essa desconfiança fez com que surgisse a idéia de que os participes da sociedade fossem naturalmente materialistas e individualistas, e, por si sós, encontrariam formas de satisfazer suas necessidades, aumentar suas riquezas e trazer harmonia para a sociedade civil, expondo assim, que o Estado é algo dispensável.

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A crise de 1929 deflagrou esse engano do Liberalismo Clássico – o ser humano não é materialista e individualista por natureza. Eis que então surge a política neoliberal com a perspectiva de criar tais características nos indivíduos, através de seus dispositivos de segurança, disseminando seu ideário para além da esfera econômica nos mais remotos lugares da sociedade e recônditos da psique e do corpo humano.

A vida na contemporaneidade é produzida e administrada pelos governos através das biopolíticas que criam realidades e liberdades (de consumo) por meio das vendas de estilos de vida, que carregam consigo necessidades fisiológicas e uma gama de produtos friamente elaborados por meio de uma razão instrumental.

A obsolescência programada de tais produtos, estilos de vida e realidades imprime no sujeito simultâneamente um imenso vazio e uma incapacidade de afetar-se, de sentir e (re)agir criativamente que, nos termos de Boaventura de Souza Santos, seria a razão inerme, por um lado; e, uma sensação feliz de liberdade que lhe traria a vivência de uma plenitude opaca que, para o mesmo autor, seria uma razão displicente. Tais razões objetivariam a produção de um sujeito que consuma e se aliene de suas materializações e da própria vida cada vez mais.

O DIREITO E FENÔMENO JURÍDICO NA EXPERIÊNCIA HUMANA DA CONTEMPORANEIDADE

Se a patologia característica dos tempos da escrita de Mal estar na civilização por Freud era a neurose, a dos tempos atuais é a paranóia. Excessos de determinismos e indeterminismos constituem o solo por onde o ser humano caminha. Medos e incertezas constituem o ar que ele respira. Tal como disse Hebert Vianna[42]: Eu vivo sem saber até quando ainda estou vivo. Sem saber o limite do perigo. Eu não sei de onde vem o tiro.

O Direito e o fenômeno jurídico na perspectiva neoliberal manteria sua atuação disciplinar no auxílio do sequestro dos corpos a fim de enquadrá-los em uma norma, mas estaria também atento aos acontecimentos (manifestações de ruptura e criatividade) imanentes à população – agora não apenas para reprimi-los a priori como descumpridores da norma, mas para tomá-los nos termos de sua administração. Destarte, auxiliaria as biopolíticas na constituição da normalidade – do que é tido como normal aos olhos da economia política. O Direito estaria à serviço da limitação da experiência humana, da instituição das malhas da normalidade e da cooptação dos acontecimentos que, por muito, podem ser tomados como o maior poder de um sujeito – o poder de criação.

Não é difícil encontrar operadores e pensadores do Direito que bradem fortemente que o Direito separou-se da justiça. Míope perspectiva. Através de nosso ofício junto desse humilde instrumento, da degradante condição da experiência humana nesse início de século e diante das leituras que aqui trouxemos, podemos dizer sem medo que o Direito se desvencilhou da vida! – como conservação e superação. Que Direito, que fenômeno jurídico é esse que diz nós, que diz todos os seres humanos[43] mas não representa os pobres, os índios, as crianças, os homossexuais etc.?

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A RETOMADA DA VIDA

Diante de nosso percurso e considerações aqui trazidas percebe-se que não caberia atribuir um juízo de valor a essa perspectiva neoliberal do Direito e do fenômeno jurídico. Pois, na finesse da vida eles não são mais que sintomas dela própria. A tática de passar um pente fino em todas suas materializações para apreendê-lo levaria muito tempo para ser concluída e seria deveras incompleta devido à rapidez com que os tentáculos neoliberais se alastram pela sociedade ocidental e suas práticas. Certamente nosso diagnóstico estaria obsoleto e inverossímil aos modos de atravessamentos que tais materializações sofrem como recursos dos biopoderes.

Mas nem por isso ficaremos parados com a cabeça nas nuvens e os pés no chão[44]. Não podemos sucumbir à razão indolente achando que não temos recursos para o embate ou nos embriagarmos de uma liberdade pegue-pague e agir de outra maneira a não ser por meio de uma honestidade filosófica que vise retomar e criar acontecimentos. E o maior acontecimento para o Direito na contemporaneidade seria a retomada da vida. Um Direito que não seja suporte para a norma e o normal, mas para a conservação e expansão da vida.

E aqui se retoma a pergunta feita por Nietzsche ao nos falar sobre o amigo: podes aproximar-te do teu amigo sem passar para o seu bando? Podemos viver o desassossego da contemporaneidade, junto de tudo aquilo que não favorece e obstrui a vida, e não sermos tragados, consumidos ou cooptados por tais mecanismos e formas de (in)segurança?

Talvez seja possível encontrar respostas mais coerentes com nossas amplas necessidades nesse início de século junto da adoção das perspectivas da ave de rapina, do historiador efetivo, do filósofo criador de novos conceitos, habitando as alturas, o ápice gélido de um penhasco de onde se é possível olhar ao longe, mas sem medo de mergulhar no chão que nos rodeia, naquilo que a maioria das pessoas experiênciam e partilham (sentimentos, afetos, valores, condições e modos de pensamento e expressão). Ver, sentir, provar, cheirar, ouvir, se encharcar do que se queira diagnosticar e novamente voltar ao cume. Contudo, cônscios de que não se porta a Verdade, e sim, mais uma fagulha daquilo que nos constitui e que nos permite configurar a realidade.

Como dito não é possível um diagnóstico de todas as manifestações do Direito e do fenômeno jurídico na contemporaneidade. Tanto melhor. Afinal poderíamos nos fixar na perspectiva do historiador tradicional – olhar tudo que é tido como grande (notável) à distância, pelo ângulo de visão das rãs. Assim sendo, nos resta olhar o que está próximo de nós. E o mais próximo de nós mesmos, agora falando em singularidade, somos nós – nosso corpo, nossa digestão, nossos valores, nossas estratégias de exercer e se esquivar do poder. Nesse sentido, a propostas foucaultiana é nos tornarmos seres éticos através do cuidado-de-si.

O cuidado-de-si é a busca da serenidade e da felicidade obtidas por um ser ético e não por um ser moral. É luta, embate, relações de forças com as instituições e valores que querem nos governar. É um constituir-se, é um criar-se, é a perspectiva do escultor de si. E para tanto é preciso que nos conheçamos. Não na perspectiva socrática do

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conhece-te a ti mesmo, pois a douta ignorância – só sei que nada sei – de nada nos vale se nos separar da experiência, da busca de estar e sentir-se vivo(a). Além do mais, sabe-se bem que a maior arma do poder é a construção da verdade.

A perspectiva daqueles que querem hoje auxiliar o Direito na retomada da vida é a do TORNA-TE QUEM TU ÉS! É não desperdiçar a experiência de estar vivo(a). É ter para si a vida como principal valor e referencial de conduta sob o qual se torna ponte, meio ou elo para um novo Direito – muito mais legítimo do que legal –; e para um novo ser humano – muito mais livre, muito mais pleno de vida – que não esteja fechado em si mesmo, mas aberto ao indizível, na eterna busca da vida por conservação e superação.

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[1] De 21 a 25 de maio de 1973 dando origem a obra A verdade e as formas jurídicas.

[2] Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal.

[3] FOULCULT, M. A Verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau. 1996. p. 8.

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[4] GONZALES, E.T.Q. A Filosofia do Direito na Idade Antiga. 1ª Ed. Rio Claro: Obra Prima Editora ltda. 2005.

[5] Idem. p. 11.

[6] Idem. p. 16.

[7] SANTOS, B.S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência – Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. Vol. 1. São Paulo: Cortez, 2000.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem. (...) se o futuro é necessário e o que tiver de acontecer acontece independentemente do que fizermos, é preferível não fazer nada, não cuidar de nada e gozar apenas o prazer do momento. Esta razão é indolente porque desiste de pensar perante a necessidade e o fatalismo.

[10] GONZALES, E.T.Q. A Filosofia do Direito na Idade Antiga. 1ª Ed. Rio Claro: Obra Prima Editora ltda. 2005. p. 16.

[11] É justo destacar que, por não se tratar do objetivo do presente trabalho e ser assunto de muitas controvérsias, não nos ocuparemos em delimitar e situar este artigo em termos de Modernidade e Pós-Modernidade, deixando assim, por certo, a utilização da palavra contemporaneidade para nos referirmos ao século XXI e as últimas duas décadas do século XX, momento em que alguns historiadores situam, com a queda do muro de Berlin, a passagem de uma época à outra.

[12] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 10.

[13] Idem p. 11.

[14] Nietzsche apud Deleuze e Guattari, 1992. pp. 13-14.

[15] NIETZSCHE, F. A gaia ciência. § 3. Em: Nietzsche – Vida e obra. Obras Incompletas. São Paulo: Editora Nova Cultura Ltda, 1999. p. 175.

[16] GIACÓIA JÚNIOR, O. Filosofia, vivência e experimento: a vida como experiência do pensar em Friedrich Nietzsche. Palestra ministrada no espaço cultural CPFL e comercializada pela Cultura Marcas.

[17] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 10.

[18] NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Do amigo. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 56.

[19] Ibidem.

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[20] Idem. p. 58.

[21] Ibidem.

[22] Idem. pp. 58-59.

[23] BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.225.

[24] FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 24ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007.

[25] Idem. p. 27.

[26] Idem. pp. 27-28. (grifos nossos).

[27] Idem. p. 28.

[28] GONZALES, 2005. pp. 11-12.

[29] Idem. p. 13. Portanto, o Direito Ocidental e a idéia de justiça formaram-se a partir dos fundamentos onto-axiológicos e gnosiológicos cunhados pela civilização Antiga, acontecimento que influenciou de forma determinante o mundo Romano e que se prolongou por toda a Idade Média.

[30] BENJAMIN, 1994. p. 226.

[31] FOUCAULT, 2007. p. 29.

[32] NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. §13.

[33] MARTON, S. Nietzsche, filósofo da suspeita. Palestra proferida no primeiro curso livre de humanidades. São Paulo: Cultura Marcas, 2004.

[34] NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos ou Como filosofar com o martelo. São Paulo: Nova Cultural, 1999. O problema Sócrates, § 2. p. 373. (grifos nossos)

[35] FOUCAULT, M. História da sexualidade 1 – a vontade de saber. 14ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

[36] AMBRÓZIO, A. e VASCONCELOS, P. A. C. Biopoder e cuidado de si no pensamento de Michel Foucault. 2009. pp. 2-3. (ainda sem publicação).

[37] Ibdem.

[38] FOUCAULT, M. 1981. p.384.

[39] AMBRÓZIO e VASCONCELOS, 2009. p. 8.

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[40] FOUCAULT, M. apud AMBRÓZIO e VASCONCELOS, 2009. p. 8.

[41] Ibdem.

[42] VIANNA, H. O calibre. Os paralamas do sucesso. Álbum: Novo Caminho, faixa 1. EMI, 2005.

[43] Artigos I e II da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

[44] GESSINGER, H. Infinita Highway. Engenheiros do Hawaii. Acústico MTV, 2004.

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