o trabalhador em saramago
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O trabalhador em SaramagoTRANSCRIPT
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURA
COMPARADA
ANDRESA FABIANA B. GUIMARES
O Trabalho e o Trabalhador aos Olhos de Jos Saramago
Anlise de Alguns Procedimentos Literrios nos Romances Levantado do cho e A Caverna
Verso corrigida
So Paulo
2011
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ANDRESA FABIANA B. GUIMARES
O Trabalho e o Trabalhador aos Olhos de Jos Saramago
Anlise de Alguns Procedimentos Literrios nos Romances Levantado do cho e A Caverna
Tese apresentada Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas (FFLCH) da
Universidade de So Paulo (USP) para a obteno do ttulo de Doutor em Letras (rea
de concentrao: Teoria Literria e Literatura
Comparada).
Orientadora: Prof Dr Andrea Saad Hossne
Verso corrigida
So Paulo
2011
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Maria Ivone C. Batista Guimares, minha me, e Andrea Saad Hossne,
minha orientadora,
por serem meu Pilar.
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Agradecimentos
Profa. Dra. Cleusa Rios Pinheiro Passos e ao Prof. Dr. Horcio Costa, por suas
valiosas sugestes que enriqueceram este trabalho.
Profa. Dra. Ana Paula Arnaut, do Instituto de Lngua e Literatura Portuguesas
(ILLP) da Faculdade de Letras de Coimbra, que durante minha estadia em Coimbra,
empenhou-se em auxiliar-me na busca dos materiais necessrios e, principalmente em
orientar-me acerca das questes histricas que permeiam a narrativa saramaguiana.
A Luiz de Mattos Alves, Suely Maria Regazzo, Maria ngela Aiello B. Schmidt e
Zilda Ferraz, mais que funcionrios do Departamento de Teoria Literria e Literatura
Comparada, grandes amigos que acompanharam esta (e outras) jornada(s).
minha tia Catarina Delourdes dos Santos, que se fez presente de uma forma
singular e especial em minha vida.
minha famlia (Odair, Flvia Andria, Ana Maria, v Rosa) pelo incentivo.
Regina Claudia Garcia Oliveira e Denilson Oliveira, por exercerem com devoo
a arte da amizade.
s amigas e companheiras de longa data: Celina Maki Takemura, Beatriz Stranski,
Ana Carolina Simes, Luana da Costa, pelo apoio, carinho e dedicao.
famlia M&M: Julieta C. Santana Nbrega, Marcos Borges, Mayara Nbrega,
Marina Nbrega Borges e ao pequeno Miguel, por me deixarem fazer parte desta famlia.
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s minhas amigas-irms: Mnica Polli, Erika Sayuri Yokoyama e rica Alves
Cavalcante, pela amizade, cumplicidade e, mais que isso, pelo amor fraternal.
A Alex Martins dos Santos pela amizade, dedicao e carinho.
Dbie dos Santos Bastos, companheira de muitas viagens.
Mnica R. Paoletti, por me proporcionar o grande encontro comigo mesma.
A Srgio Alves de Oliveira, amigo sempre presente.
A Ronaldo Ap. de Oliveira, amigo de longa data, quando ainda no existiam
dissertaes e teses. Amizade que transpe as fronteiras do tempo e espao.
s crianas e adolescentes do Instituto Acaia que me fizeram voltar a enxergar.
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Resumo
Este trabalho objetiva estabelecer relaes entre os romances Levantado do cho
(1980) e A caverna (2000), narrativas pertencentes a momentos distintos da escrita
saramaguiana, mas que retratam, de diferentes maneiras, o homem (o trabalhador), suas
relaes com o trabalho e, principalmente com a sociedade sua volta. O primeiro retrata a
vida dos camponeses da regio do Alentejo em Portugal desde o comeo do sculo XX at
logo aps o 25 de abril de 1974. Em A caverna vemos o empenho do oleiro que tenta fazer
sobreviver a sua tradicional profisso num universo dominado pela produo
industrializada. Nesse ambiente, Saramago retrata a transio entre o campo e o mundo
marcado pela produo em escala industrial.
A anlise dos valores ticos e da condio social das personagens decorrentes do
sistema em que vivem, das injunes da situao familiar e dos conflitos produzidos por
essa situao de interdependncia um dos objetivos deste trabalho. Para tanto, traamos
uma linha comparativa entre os dois romances em questo, cujo fio condutor a questo do
trabalho na sociedade capitalista, num eixo histrico que vai do Portugal salazarista do
sculo XX ao mundo globalizado do sculo XXI e seus desdobramentos na constituio da
narrativa saramaguiana.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalho, Trabalhador, Jos Saramago; Narrativa
contempornea, Ps-Moderno.
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Abstract
This work aims to establish relationships between the novels Picked up from the
Ground (1980) and The Cave (2000), narratives belonging to different moments of
Saramagos writing, which describe, in different ways, the men (the workers), their
relationships with work and especially with the society. The first one depicts the life of
farmers in Alentejos region in Portugal since early XX century until shortly after April 25,
1974. In The Cave we can observe the commitment of the potter who try to maintain his
traditional profession in a universe dominated by industrialized production. In this
environment Saramago shows the transition between the countryside and the world marked
by industrial-scale production.
The objectives of this thesis are the analysis of the ethical values, the social
condition and the interrelationship with the space in the constitution of the characters; their
paths established by the social system, the injunctions of family situation and the conflicts
produced by this interdependence. For this, we draw a comparison between the two-
refereed novels, whose main subject is the labor in a capitalist society, in a historical
perspective that runs from Portugal under Salazar govern in XX century to the globalized
world of the XXI century and its repercussions in the constitution of Saramagos narrative.
KEYWORDS: Labor, Worker, Jose Saramago, Contemporary Narrative, Postmodern.
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SUMRIO
Consideraes Iniciais 10
1. Levantado do cho: um olhar para os trabalhadores do Alentejo 22
1.1. Jos Saramago e a metafico historiogrfica: os imprecisos limites 22
1.2. A constituio da famlia Mau-Tempo 27
1.3. O lugar da opresso e o despertar para uma nova realidade 36
1.4. O percurso narrativo: as condies de trabalho e a opresso 41
1.5. O percurso histrico e a metafico historiogrfica 76
2. A caverna: a fase universal (a esttua e a pedra) 81
2.1.O processo de construo identitria: os nomes 85
2.2. A experincia do espao, do tempo e a condio ps-moderna 107
2.2.1. Os espaos internos 107
2.2.2. A olaria 116
2.2.3. O centro comercial e a convergncia dos espaos 123
2.3. Mundos do trabalho: a olaria, a arte popular, o artesanato e a produo
industrial 133
3. Levantado do cho e A caverna: aproximaes 149
3.1. A constituio dos ncleos familiares: Os Mau-Tempo e os Algor 149
3.2. O percurso dos personagens: consonncias e dissonncias 158
3.3. Algumas reflexes sobre o narrador 160
Consideraes finais 170
Bibliografia 174
Anexos 185
1. Museu do Pontal (imagens) 186
2. Prefcio de Jos Saramago ao livro Terra de Sebastio Salgado 189
3. Msicas de Chico Buarque (CD Terra) 195
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A tolerncia e a intolerncia so pois os dois degraus de uma escada que no tem outros.
Do primeiro degrau, que o seu, a tolerncia lana para baixo, para a plancie onde se
encontra a multido de tolerados de toda a espcie, um olhar que desejaria ser
compreensivo, mas que, muitas vezes, vai buscar a equvocas formas de compaixo e de
remorso a sua dbil razo de ser. Do alto do segundo degrau a intolerncia olha com dio a
confuso dos estrangeiros de raa ou de nao que a rodeiam, e com irnico desprezo a
tolerncia, pois claramente v como ela frgil, assustada, indecisa, to sujeita tentao
de subir ao segundo e fatal degrau quanto incapaz de levar s consequncias extremas o seu
perplexo anseio de justia, que seria renunciar a ser o que tem sido simples permisso,
aparente benevolncia para se tornar em identificao e igualdade, isto , respeito. Ou
igualncia, se uma palavra nova faz falta, ainda que tenha to brbaro som...
Tolerantes somos, tolerantes iremos continuar a ser. Mas s at ao dia em que t-lo sido nos
venha a parecer to contrrio humanidade como hoje nos parece a intolerncia. Quando
este dia chegar se chegar alguma vez , comearemos a ser, enfim, humanos entre
humanos.
(Saramago, 1999, p.306-7).
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CONSIDERAES INICIAIS
Todo homem uma ilha (...) necessrio sair da ilha para ver a ilha, que no nos vemos se no nos samos de ns. (Saramago, 1997, p.40-1)
O Neo-Realismo portugus configura-se pela dominncia de referncias ideolgicas
que se articulam com a Histria e com os cenrios sociais contemporneos. Segundo
Reis (1989), esse movimento desenvolveu-se em Portugal entre os finais dos anos 30 e
50 do sculo XX, perodo em que se vivia o tempo histrico e poltico do salazarismo,
assim como a recepo de toda bagagem ideolgica e cultural do marxismo. Para o
crtico, esse movimento designa na Literatura Portuguesa:
(...) uma projeo, no domnio da criao literria, de orientaes culturais
ideologicamente fundadas no materialismo histrico e dialtico; uma anlise,
atravs da literatura, da dialtica das transformaes sociais e em particular da luta de classes, num quadro econmico-social capitalista; uma denncia das
contradies que afetavam esse cenrio econmico-social: a explorao do homem
pelo homem, a luta pela posse da terra, a sobrevivncia de mecanismos de explorao quase feudais. (idem, p.16).
Pode-se afirmar ento, que ao movimento neo-realista ligam-se escritores, crticos e
ensastas que seguiam os ideais marxistas, que manifestavam certo distanciamento em
relao ao legado modernista, enunciando assim uma linguagem artstica comprometida e
anti-esteticista. Os textos (poemas, narrativas, textos doutrinrios etc.) desse perodo,
apresentam uma voz contra a supresso da liberdade poltica e a forte represso na qual o
pas estava mergulhado. Algumas figuras so representativas desse momento como Alves
Redol, Afonso Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira,
Verglio Ferreira dentre outros.
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A Revoluo de 25 de abril de 1974 e o final do sculo XX so dois marcos que
balizam a evoluo da fico portuguesa. O fim da ditadura proporcionou maior liberdade
de expresso, suscitando reflexes sobre os dramas individuais e coletivos, o redesenho das
fronteiras nacionais e a retomada da identidade do povo portugus (principalmente com
relao Europa). Segundo Reis (ibidem), no campo literrio, h uma abertura a temas,
valores e estratgias discursivas post-modernistas. Mesmo diante dessas transformaes, a
produo literria portuguesa no sofreu mutaes lineares nem fulminantes, tanto que se
fala de um prolongamento ou uma espcie de refinamento da produo ficcional de
escritores j consagrados, como o caso de Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Lus, Jos
Cardoso Pires dentre outros. Nesse mbito, Jos Saramago vem a ser com alguns outros
escritores, o protagonista de uma opo temtica que ainda carrega reminiscncias do Neo-
realismo e da ideologia do compromisso. Tais caractersticas so visveis nos romances de
sua 2 fase, nos quais a Histria que ali encontramos afasta-se do modelo cultivado pelo
romance histrico romntico.
A trajetria literria de Saramago tem incio com a experincia ficcional at h
pouco praticamente esquecida, trata-se do romance Terra do Pecado, de 1947. Aps um
largo perodo interregno surgem Os poemas possveis (1966), as crnicas em jornais e os
contos de Objecto quase (1978). Dessa maneira, possvel visualizar como sua escrita foi
se construindo e se constituindo. Desse processo, faz parte tambm o Manual de pintura e
caligrafia (1977), que tinha como subttulo Ensaio de romance, mais tarde este deu lugar
indicao que invariavelmente passou a acompanhar as obras congneres: romance. Dentro
de uma perspectiva temporal, importante (re)lembrar que algum tempo depois o autor
publica O ensaio sobre a cegueira (1995) e, em entrevista, afirma: sentei-me a trabalhar
no Ensaio sobre a Cegueira, ensaio que no ensaio, romance que talvez o no seja.
(Saramago, 1997, p.275). Esse hibridismo uma caracterstica marcante em sua obra,
mesmo com outros ttulos como memorial, manual, histria, evangelho e, por fim, ensaio.
O prprio escritor afirma: j disse que talvez eu no seja um romancista, mas sim um
ensasta, que escreve romances porque no soube escrever ensaios. (Arias, 1998, p.80).
Outro fator importante presente nos textos e intervenes de Jos Saramago a
relao entre Histria e Fico, recorrentemente apontada pela crtica. Em vrios de seus
romances, ele realiza um resgate da histria, principalmente naqueles os quais alguns
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crticos enquadram como pertencentes 2 fase, classificando-os, muitas vezes, como
romances histricos. Como afirma Moiss (1999), tratar das relaes entre Histria e
Fico em Jos Saramago algo que tende ao previsvel ou j dito. Dessa fase temos,
ento, a narrativa Levantado do cho (1980), que revela a misria dos trabalhadores rurais
da regio do Alentejo em Portugal, Memorial do convento (1982), que tece consideraes
sobre grandes e pequenas obras dos seres humanos valendo-se da construo do Convento
de Mafra no sculo XVIII, Histria do cerco de Lisboa (1989), no qual embaralha-se
histria e fico no relato da tomada de Lisboa pelos mouros no ano de 1147, O evangelho
segundo Jesus Cristo (1991), resgatando a origem do cristianismo, e, finalmente, O Ano da
morte de Ricardo Reis (1998) e A jangada de pedra (1988) em que o romancista apanhou
momentos cruciais dos nossos dias, como a incluso da Pennsula Ibrica na Unio
Europeia e seu mercado comum, e a tentativa de dominao ideolgica, poltica e militar
fascista da Europa e do mundo por volta de 1936.
importante mencionar, todavia, que se nota uma sutil transformao na escrita
saramaguiana aps a dcada de 90. Como afirma Berrini (1998), os romances parecem
evoluir para um obscurecimento do tempo e do espao, para um esquecimento da Histria e
para um distanciamento de Portugal. (p.11). Esse o momento em que o escritor se
desvencilha do percurso histrico como condutor da sua narrativa, os enredos no se
desenrolam mais em locais ou pocas determinados, os personagens dos anais da histria se
ausentam, ele penetra de maneira mais investigadora na sociedade contempornea. Dessa
maneira, possvel delinear na obra saramaguiana uma correspondncia entre a ordem de
publicao e as preocupaes predominantes em cada um dos ciclos. Martins (2006) traa o
seguinte quadro:
1 Ciclo
Perodo formativo
Terra do pecado (1947)- novela
Os poemas possveis (1966) - poesia
Provavelmente alegria (1970) - poesia
Deste mundo e do outro (1971) crnicas A bagagem do viajante (1973) crnicas As opinies que o DL teve (1974) crnicas O ano de 1993 (1975) - poesia
Os apontamentos (1976) crnicas
1 momento de transio Manual de pintura e caligrafia (1977)- romance
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2 ciclo: romances centrados
no resgate da histria
portuguesa (reconstruo da
memria)
Levantado do cho (1980) - romance
Memorial do convento (1982) romance O ano da morte de Ricardo Reis (1984) romance A jangada de pedra (1986) - romance
Histria do cerco de Lisboa (1988) - romance
2 momento de transio
O evangelho segundo Jesus Cristo (1991) - romance
3 ciclo: fase universal: pedra
Ensaio sobre a cegueira (1995) - romance
Todos os nomes (1997) - romance
O conto da ilha desconhecida (1997) - conto
A caverna (2000) romance O homem duplicado (2002) - romance
Ensaio sobre a Lucidez (2004) - romance
As intermitncias da morte (2005) - romance
Eduardo Calbucci (1999) afirma que o Evangelho segundo Jesus Cristo um
divisor de guas na literatura de Saramago e que as mudanas ocorrem no do ponto de
vista estilstico, mas em relao ao eixo temtico dos romances. Segundo o crtico, no
Evangelho e no Ensaio sobre a Cegueira percebe-se um desprendimento de temas
inerentes a fatos da nacionalidade para substitu-los por parbolas no propriamente
portuguesas, mas de carter generalizador. (p. 119). Adriano Schwartz, em artigo
publicado no caderno Mais! (Folha de So Paulo, 18 de outubro de 1998, p.4) tambm
defende essa ideia, dizendo: Com a publicao de Evangelho segundo Jesus Cristo,
encerra-se um ciclo na obra do escritor e inicia-se outro, marcado, concretamente, pela sua
mudana de Portugal para a Ilha de Lanzarote, na Espanha, e, literariamente, pela adoo
de uma postura mais abstrata e parablica em suas narrativas. Em outro artigo (CULT,
nmero 17, dezembro de 1998, p.29), ele diz que Saramago, com o Evangelho, deu uma
guinada em sua trajetria literria. Em entrevista concedida a Horcio Costa, nessa mesma
edio da revista CULT, o escritor portugus reconhece essa mudana temtica, e afirma:
Eu estou percebendo que, depois de uma expresso bem mais barroca como o
caso do Memorial do Convento (1982), talvez por interferncia do prprio sculo
XVIII em que tudo acontece, estou me aproximando de uma narrativa cada vez mais seca. Encontrei, outro dia, uma frmula que me parece boa, como se durante
todo esse tempo eu estivesse descrevendo uma esttua o rosto, o nariz e agora
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eu me interessasse muito mais pela pedra de que se faz a esttua. Quer dizer, j
descrevi a esttua, todo mundo j sabe que esttua essa que estive descrevendo
desde Levantado do cho at O Evangelho segundo Jesus Cristo. A partir de Ensaio sobre a Cegueira, em Todos os Nomes e no prximo romance, se escrever trato de
pedra. (idem, p.24).
Com a publicao do romance A viagem do elefante (2008), a crtica Ana Paula
Arnaut1 afirma que Saramago inaugura uma nova fase em sua narrativa, a dos romances-
fbula. Como se sabe, as fbulas tm algumas caractersticas peculiares como a incluso de
animais como personagens. Por meio dos dilogos entre os bichos e das situaes que os
envolvem, o narrador procurava transmitir sabedoria de carter moral ao homem, assim os
animais nas fbulas tornam-se exemplos para o ser humano. De qualquer forma,
importante ressaltarmos que, neste momento, no nos ateremos a esta nova classificao,
tendo em vista que o foco da pesquisa buscar as relaes entre duas obras, uma
pertencente ao ciclo denominado histrico Levantado do cho (2005) e a outra fase
universal do escritor A caverna (2000).
Levantado do cho, daqui em diante LC, a narrativa da vida de uma famlia de
trabalhadores rurais (os Mau-Tempo) da regio do Alentejo, no sul de Portugal, em cujos
limites se passa o romance, desde o comeo do sculo XX at logo aps o 25 de abril.
Trata-se, portanto, de uma denncia vigorosa da explorao, do desemprego e da misria, e
ao mesmo tempo, da tomada de conscincia poltica por parte do trabalhador rural, o
aprendizado da luta pelo direito ao trabalho, pelas oito horas de jornada e pela posse til da
terra. O espao o campo, h o embate entre latifundirios e camponeses, ou seja, entre
proprietrios e trabalhadores. Nessa luta camponesa, h, de um lado, toda uma gerao de
proprietrios de terras que remonta ao sculo XV em Portugal, quando Lamberto Horques
Alemo recebeu do rei portugus grande poro de terras em Monte Lavre; do outro, est
uma secular gerao de camponeses explorados pelos Bertos descendentes de Lamberto. A
luta entre essas duas classes tem como objetivo, por um lado, o fim da explorao do
trabalhador, e por outro, a manuteno dos privilgios dos latifundirios. Pontuado por
acontecimentos histricos de trs quartos de sculo, esse romance tece um painel da
1 Em julho de 2009, a Profa. Dra. Ana Paula Arnaut da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
(Portugal), recepcionou-me em Portugal e, em algumas das reunies, mencionou a questo desta nova fase da
escrita saramaguiana, afirmou que o estudo ser publicado posteriormente.
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oligarquia rural medida que vai compondo a biografia da famlia dos Mau-Tempo e da
prpria histria de Portugal no sculo XX.
Em A caverna (2000), daqui em diante AC, Cipriano Algor um oleiro e atravs do
seu empenho tenta fazer sobreviver a sua tradicional profisso num universo dominado pela
produo industrializada e em srie que gera utenslios feitos com plstico. Algor vivo e
vive com sua filha num lugar prximo a uma grande cidade. Nesse ambiente, Saramago
retrata a transio entre o campo e o mundo marcado pela produo em escala industrial (os
cintures de indstria, o chamado cinturo verde, no qual se desenvolve a agricultura).
Assim, como o foco simblico do espao da famlia o forno no qual o oleiro produz seus
objetos, o foco simblico da ordem da cidade o chamado Centro, um enorme complexo
comercial-residencial. Pode-se afirmar que cada um desses espaos apresenta a
configurao de uma caverna, ainda que com dimenses e materializaes diversas2.
Cipriano Algor avisado por um funcionrio do Centro que seus produtos j no sero
mais postos venda, por terem sido considerados obsoletos. A ltima oportunidade que lhe
oferecida para adequar-se aos padres dos consumidores atuais substituir a cermica
utilitria, que vem produzindo, por bonecos de barro. Em sntese, no h conciliao entre o
universo da famlia de Algor e os gostos dos frequentadores do Centro. Sendo assim, a
famlia do oleiro v-se obrigada a mudar para um apartamento do Centro, onde o genro
Maral Gacho guarda residente. Segundo Ferreira (2004), AC um romance que se atm
a problemas polticos contemporneos, a partir da perspectiva que parece guardar desprezo
pela sociedade industrial liberalizante e sua vocao para o totalitarismo, por isso pode-se
dizer que h uma projeo da sociedade como a de hoje.
Como foi mencionado anteriormente, apesar de os dois romances pertencerem a
fases diferentes, eles dialogam no s pela temtica que se estabelece, a questo do
trabalho, a explorao do trabalhador, o processo industrial presente no mundo moderno, a
crtica ao homem e sociedade contempornea, os valores ticos e a condio social das
personagens decorrentes do sistema em que vivem, mas sobretudo pelos procedimentos
formais e estticos que so utilizados nos dois para retrat-los. Embora haja no romance LC
o resgate de alguns temas e posicionamentos presentes no Neo-realismo, verificamos a
2 Essa questo da configurao da caverna nos dois espaos ser abordada posteriormente no decorrer da
anlise do romance A caverna.
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existncia de elementos caractersticos da metafico historiogrfica3, principalmente no
que tange ao posicionamento do narrador.
Para Hutcheon, a metafico historiogrfica uma nova maneira de se escrever
fico histrica reformulando o padro tradicional do romance histrico. O romance LC
problematiza de certa maneira a histria e o processo de narr-la, pode-se dizer que
Saramago mantm um dilogo transformador com os princpios modelares do gnero,
colocando no centro da narrativa a valorizao do homem e da sua obra, desvelando e
parodiando os textos sagrados, propondo assim uma recuperao da histria em um nvel
desconhecido ao romance histrico tradicional, sendo assim, importante deixar claro que
a partir desta perspectiva que o analisaremos.
O que mais evoca a tradio do gnero romance histrico na metafico
historiogrfica de Jos Saramago , para Kaufman (1991), a reconstruo de ambientes e
acontecimentos histricos4, uma reconstruo realista, de grande exatido histrica e
celebrao do detalhe. O modelo neo-realista desafiado tambm pelo sublinhar do
processo criativo/narrativo no qual os elementos da descrio chegam a ser
problematizados discutidos e muitas vezes comparados. Portanto, a imagem que emerge
deste processo tem o carter de compromisso. Para tanto, em LC examinaremos
detidamente o estatuto do narrador e as personagens, j que se nota um afastamento em
relao ao modelo tradicional da fico histrica, o que leva por um lado
metatextualidade e, por outro reinterpretao da Histria. Nos dois romances que nos
propomos a analisar neste trabalho, o narrador controla a narrativa, recorrendo a
comentrios valorativos, a juzos de valor e ao tom moralstico que frequentemente assume
a forma de aforismo ou profecia. Em outras palavras, o narrador declara-se explicitamente
contemporneo do leitor, inserindo sua perspectiva entre os detalhes e os pormenores
histricos da poca passada que descreve, de qualquer forma, mesmo apresentando alguns
traos comuns, h caractersticas especficas de cada um que sero apontadas e analisadas
no decorrer do trabalho.
3 Conceito de Hutcheon, Linda. Potica do Ps-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago,
1991. 4 importante ressaltar que ao mencionar a questo da tradio estamos pensando nos romances de Scott e Tosltoi tal qual os viu Lukcs no La novela histrica e em algumas obras de Herculano (Lendas e Narrativas)
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O romance LC nasceu de um desejo do autor de retratar a sua gente, pais e avs que
viveram no campo em condies difceis. Dessa forma, evidenciaremos como essas
memrias mudam de sentido ao longo do tempo e que no h na escrita literria sinais de
nostalgia e tampouco tom de lamentao ao referir-se ao passado. a partir dele Saramago
inicia um novo modo de elaborar seus romances, nesse momento que h um rompimento
com as regras gramaticais, portanto, vemos que ao retratar a vida dos trabalhadores do
Alentejo o autor define seu estilo e, 20 anos mais tarde, quando escreve a AC, com sua
escrita j consolidada, ele reafirma sua postura crtica frente explorao do homem pelo
homem e a luta pela sobrevivncia, retomando, de certa maneira, a mesma temtica
desenvolvida h alguns anos: a importncia do trabalho para a constituio do ser humano.
A palavra trabalho tem sua origem no vocbulo latino tripalium, denominao de
um instrumento de tortura formado por trs (tri) paus (paliu), desta maneira, originalmente,
trabalhar significa ser torturado no tripaliu. Eram torturados aqueles que no tinham posses,
que no conseguiam pagar os impostos, o trabalho ento vinculado tortura durante toda
a Antiguidade e Idade Mdia. A partir do sculo XIV comeou a se pensar o trabalho como
a aplicao das foras e faculdades (talentos, habilidades) humanas para se alcanar um
determinado fim. Para Oliveira (1995) a histria do trabalho comea quando o homem
busca os meios de satisfazer suas necessidades a produo da vida material. Essa busca se
reproduz historicamente em toda ao humana para que o homem possa continuar
sobrevivendo. Na medida em que a satisfao atingida, ampliam-se as necessidades e
criam-se as relaes sociais que determinam a condio histrica do trabalho. Como
veremos por meio das anlises, a questo do trabalho e a explorao do trabalhador
perpassa os dois romances de maneiras bastante distintas, em LC temos uma denncia
vigorosa das condies servis do campons nos campos do Alentejo, j em AC
presenciamos o descarte no s dos utenslios de barro, mas da mo-de-obra do oleiro e,
por conseguinte do direito ao trabalho.
Sendo assim, o propsito desta tese unir-se s tantas leituras da obra
saramaguiana, objetivando analisar a postura do narrador diante da questo do trabalho e do
trabalhador a partir das transformaes que marcam a sociedade desde meados do sculo
XX at os dias atuais. O contraponto da pesquisa est baseado justamente no exame
detalhado de um romance da fase histrica (nacionalista por assim dizer) com outro que
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compe a trilogia romanesca da fase universal do escritor. O nosso olhar tambm est
voltado questo da interrelao do sujeito com o espao em que vive e trabalha, para tanto
percorremos desde os campos do Alentejo pequena propriedade rural onde est a olaria de
Cipriano Algor; contrastando a transio de uma economia voltada agricultura para outra
em que a manufatura e o processo industrial e, posteriormente o mercado de massa e a
indstria cultural ganham espao. Segue-se anlise o olhar atento s transformaes que
so caractersticas do mundo globalizado, mundo este que torna obsoleto os utenslios
produzidos na olaria dos Algor.
Ainda com relao a postura do narrador, verificaremos como este interfere na
narrativa de modo que o leitor possa (re)conhecer no s a sua voz, mas o seu
posicionamento crtico perante os fatos e acontecimentos narrados. Portanto, esta tese
prope uma anlise reflexiva dos romances selecionados na tentativa de mostrar que
existem elementos, como a categoria do trabalho, que se refletem na constituio do
romance de Saramago, tanto no desenvolvimento de personagens, quanto no do narrador,
passando por recursos similares, mesmo onde a crtica v separaes (estilo, recursos
pardicos etc.). Tambm importante relembrarmos que existe um texto anterior com o
qual os dois romances dialogam: a Bblia, no LC, e o mito platnico da Caverna, em AC.
Sendo assim, no primeiro captulo trataremos especificamente das questes que
envolvem o romance LC, verificando como o narrador incorpora algumas das
caractersticas da metafico historiogrfica para lidar com o resgate da Histria, j que no
tem como pretenso reconstitu-la e sim deixar evidente sua tomada de posio diante dela,
utilizando para isso recursos de inveno misturados a dados comprovveis por
documentos, pardias, ironias, recursos retricos, metforas, intertexto bblico, metafico
historiogrfica com traos de Neo-realismo. Sendo assim, veremos como o romance de
Saramago, ao lado dos elementos tradicionais que remetem ao modelo clssico como o
realismo da descrio histrico-social, ou certa tipificao dos personagens urgem
elementos inovadores, que contestam esse modelo, como a auto-referencialidade da
narrativa, a explcita conscincia, a introduo de personagens ex-cntricos5 e o comentrio
5 O ps-modernismo no leva o marginal para o centro. Menos do que inverter a valorizao dos centros para a
das periferias e das fronteiras, ele utiliza esse posicionamento duplo paradoxal para criticar o interior a partir do
exterior e do prprio interior. (Hutcheon, 1991, p.98)
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historiogrfico que desafia a autoridade da Histria, dirigindo-se lhe como a um discurso, a
um texto, a uma narrativa.
No decorrer desse captulo resgatamos tambm a parceria entre Saramago,
Sebastio Salgado e Chico Buarque na elaborao de um trabalho conjunto intitulado Terra
(1997), para o qual Saramago redigiu o prefcio e o compositor Chico Buarque elaborou
duas canes inditas.6 Levantados do cho (em parceria com Milton Nascimento) e
Assentamento. O trio participou de vrios eventos para o lanamento do livro que traz cem
fotografias preto- e-branco, todas tiradas no Brasil entre 1980 e 1996. So imagens que
retratam pessoas de algum modo desterradas, so trabalhadores rurais, mendigos urbanos,
presos, garimpeiros, crianas de rua, gente vagando entre o sonho e o desespero como
escreve Saramago no prefcio. O livro foi lanado em vrios pases, o primeiro foi o Brasil.
Nos Cadernos de Lanzarote (1999) Saramago relata a surpresa mediante a presena de um
pblico to numeroso e atento para ouvir questes acerca de um grupo de camponeses
brasileiros que lutam por um pedao de cho onde possam viver com dignidade e sem a
companhia permanente da fome (p.351). No lanamento do livro em Madrid, em abril de
2007, o autor portugus exps:
Estamos rodeados de imagens que nos mostram que o mundo est mal, mas ns
estaremos bem pior no dia em que nos tivermos acostumado tanto violncia que a
consideremos natural ou cultural, se assim preferirem. Precisamos de uma outra maneira de olhar as imagens que nos mostram a realidade, j que com a realidade,
ela prpria, no ousamos enfrentar-nos. Estas fotografias de Salgado so a voz dos
sem terra que atravessou o oceano e chegou a esta sala, so imagens que dispensam
legendas, que podem ser identificadas por uma s palavra: Por qu? Sebastio Salgado precisou depois: No fotografo miserveis, fotografo gente pobre que
conserva uma enorme dignidade e luta por melhorar a sua vida. Este livro Terra, tal
como meus trabalhos anteriores, forma parte de um projeto nico a que chamei A recomposio da famlia humana (idem, p. 358-9).
A explorao dos trabalhadores, a falta de trabalho com condies dignas faz com
que se unam, em uma voz unssona, fotgrafo, escritor e compositor com o intuito de
denunciar por meio de imagens, palavras e melodia um pouco da realidade desses
trabalhadores que so brasileiros, mas que se assemelham a outros tantos que esto
espalhados pelo mundo. neste sentido que propomos um dilogo com o romance LC.
6 Tanto o prefcio, quanto as letras das canes que compem o CD que faz parte deste trabalho encontram-se
em anexo.
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Buscamos algumas imagens (fotografias) que colocam em evidncia o que o narrador do
romance mostra por meio das palavras: a misria, a infncia, o embate entre os
trabalhadores e as foras opressoras (a polcia). Vale ressaltar que tal aproximao tem
como base a questo temtica entre os textos, sendo assim, salientamos que no nosso
objetivo estabelecer as relaes interartes entre literatura e artes visuais.
Refletindo um pouco sobre a questo da fora das imagens e das palavras,
importante retomarmos aqui um episdio que est relacionado com o romance Ensaio sobre
a cegueira (1995); na poca do lanamento, alguns leitores falavam sobre a grande
dificuldade que tiveram para ler o Ensaio, afirmavam a mi me ha gustado la novela, pero
lo que he sufrido no puede imaginarse. (Saramago apud Halpern7) Sobre essa afirmao,
Saramago tece algumas consideraes importantes, afirma que ns, seres humanos, estamos
acostumados a conviver com a violncia todos os dias, com as guerras, os genocdios, no
entanto, quando vemos isso de uma maneira metaforizada em um romance, afirmamos que
no aguentamos, que um sofrimento ver tanta crueldade, tanta violncia. Dessa forma, o
escritor portugus alerta-nos que, infelizmente, estamos acostumados a sermos violentados
no dia-a-dia, mas que enxergar isso na literatura, na msica ou mesmo nas fotografias
provoca dor, sofrimento e indignao. Pensando ento nos dilogos que se estabelecem
entre a obra em questo e o romance de Saramago, propomos nesse captulo um olhar
diferenciado que envolve msica, literatura e fotografia. No est, porm, no horizonte
deste trabalho uma reflexo pautada nas teorias da fotografia, um campo por si s
abrangente e pelo qual no enveredamos.
O segundo captulo abordar as questes especficas do romance AC. Por meio da
anlise dos procedimentos estilsticos, verificamos a postura do narrador diante dos fatos
narrados, o uso do intertexto do mito platnico da Caverna, os referentes temporais e
espaciais que, embora no sejam determinados, sabemos que o narrador trata do mundo
contemporneo e do modo de funcionamento da sociedade regida pelo mercado no qual
vrias coisas vo se tornando obsoletas, como o trabalho artesanal, ou a prpria categoria
de trabalho.
Por fim segue-se o terceiro captulo, em que propomos uma aproximao dos dois
romances tendo em vista a constituio dos ncleos familiares da famlia Algor e da Mau-
7 Conversaciones de Saramago com Jorge Halpern. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2003.
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Tempo, os diferentes percursos da figura paterna (Cipriano Algor e Domingos Mau-
Tempo), o despertar (e porque no dizer o levantar-se?) dos personagens Joo Mau-
Tempo e do guarda Maral que tomam conscincia da situao em que vivem e passam a
ser protagonistas das mudanas. A anlise dos personagens de cada um dos romances visa
demonstrar como a histria das duas famlias une-se pela importncia do trabalho no
somente como atividade relacionada sobrevivncia, mas para a construo da identidade.
Ressalta-se neste momento os diferentes mecanismos de nomeao, pois se por um lado
temos em LC a caracterizao dos personagens por meio dos nomes, sobrenomes e o
resgate do nome de alguns trabalhadores que fizeram parte do momento poltico o qual o
romance retrata, por outro temos a caracterizao do universo relativo ao centro comercial e
cidade realizada por meio de substantivos e adjetivos. Nesse sentido, vale retomar as
palavras do autor portugus em ocasio da publicao de AC afirma: Tambm os
personagens no vo ter nomes. Os nomes deixaram de ter significado. O que tem
significado real so os nmeros. (...) E a perda do nome, que eu acho que est em processo,
essa espcie de inutilidade... nem sequer perda do nome: inutilidade do nome.8. Desta
maneira, verificamos como se d o processo de nomeao dos personagens que esto
relacionados ao universo da olaria em contrapartida com queles pertencentes ao universo
do centro comercial, ou seja, veremos como este recurso utilizado para evidenciar o que
Saramago pontuou anteriormente em sua entrevista. Por fim, segue-se a anlise dos
narradores que, de maneiras distintas -um de maneira mais alegrica enquanto o outro de
forma pardica e irnica- reafirmam a postura crtica diante da explorao do trabalhador.
Desta maneira, objetivamos evidenciar por meio das anlises o percurso temtico que
envolve a abordagem do trabalhador e do trabalho nos dois romances selecionados
independente da fase (e do perodo) em que foram produzidos.
8 Entrevista concedida Revista Bravo em junho de 1999, n 21, p. 20.
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1. Levantado do cho: um olhar para os trabalhadores do Alentejo
E ento num stio qualquer do latifndio, a histria lembrar-se- de dizer qual, os trabalhadores ocuparam uma terra. (Saramago, 2005, p. 361)
1.1. Jos Saramago e a metafico historiogrfica: os imprecisos limites
Para Hutcheon (1991), por volta da dcada de 70 registra-se uma tendncia
composio narrativa ligada Histria, que ela denomina metafico historiogrfica.
Utilizando elementos histricos, esse tipo de romance visa uma reinterpretao do passado,
bem como uma reflexo sobre a literatura. A metafico historiogrfica rejeita, portanto,
uma reconstruo mimtica dos acontecimentos e prope um texto onde a relao
produtor/receptor ser fundamental. Dessa maneira, temos uma escrita ficcional que, de
forma consciente e sistemtica, chama a ateno para o seu prprio estatuto, suscitando
questes sobre a relao entre a fico e a realidade.
Ao pensar sobre o romance ps-moderno Hutcheon afirma que o conceito de ps-
modernismo fundamentalmente contraditrio, deliberadamente histrico e
inevitavelmente poltico (idem, p.19). A contradio manifesta-se principalmente na
questo da presena do passado, j que no h um retorno nostlgico, e sim uma
reavaliao crtica, um dilogo irnico com o passado da arte e da sociedade. Em outras
palavras, ao invs de fugir da Histria, de neg-la ou destru-la, como fazia o modernismo,
o ps-modernismo revisita-a de maneira consciente e, muitas vezes, irnica. A fico ps-
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moderna problematiza o modelo com o objetivo de questionar tanto a relao entre a
histria e a realidade, quanto a relao entre a realidade e a linguagem. Vale ressaltar que o
ps-modernismo no relega a histria, pelo contrrio, ela repensada como uma criao
humana, seu acesso est condicionado pela textualidade.
No caso da obra de Saramago, Arnaut (2008) aponta uma certa ambivalncia
relativa ao cdigo ps-moderno, ambivalncia que se sente desde o romance Levantado do
cho (1980)9 que est atrelado s caractersticas estticas do neo-realismo, do romance de
tese, at o Ensaio sobre a Cegueira (1995). Dessa forma, pode-se afirmar que na obra
saramaguiana como um todo (na 1, 2 e 3 fases, tal como propostas pela fortuna crtica do
autor), h traos, seno constantes, frequentes do romance ps-moderno.
Nos romances centrados no resgate da histria portuguesa (na reconstruo da
memria), o narrador encarrega-se de problematizar o nosso conhecimento da Histria e o
processo de narr-la, justapondo-lhe o processo de escrever fico. Dessa maneira, pode-se
afirmar que a reconstruo de ambientes e acontecimentos histricos um dos elementos
que mais evoca a tradio do gnero romance histrico na metafico historiogrfica de
Saramago. De certa forma, temos uma reconstruo realista, com referncias histricas
expostas de maneira detalhada que vai ganhando contornos e imagens medida que o
narrador vai delineando o percurso dos personagens, nesse sentido o escritor afirma:
Duas sero as atitudes possveis do romancista que escolheu, para a sua fico, os
caminhos da Histria: uma, discreta e respeitosa, consistir em reproduzir ponto por ponto os factos conhecidos, sendo a fico mera servidora duma fidelidade que se
quer inatacvel; a outra, ousada, lev-lo- a entretecer dados histricos no mais
que suficientes num tecido ficcional que se manter predominante. Porm, estes dois vastos mundos, o mundo das verdades histricas e o mundo das verdades
ficcionais, primeira vista inconciliveis, podem vir a ser harmonizados na
instncia narradora. (Jornal Artes & Ideias, 6 de maro, 1990, p.19)
O posicionamento do narrador uma das marcas que aproxima a narrativa
saramaguiana de algumas das caractersticas da metafico historiogrfica. Um dos
principais desafios do discurso ps-moderno refere-se justamente noo tradicional de
perspectiva. O questionamento a respeito da natureza da subjetividade tem como
consequncia o fato de o narrador no ser mais uma entidade coerente e geradora de
9 Utilizaremos para a anlise a edio do romance de 2005.
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significados, ao contrrio, na fico ps-moderna os narradores passam a ser mltiplos e
difceis de localizar ou deliberadamente provisrios e limitados e muitas vezes
enfraquecidos no que se refere prpria oniscincia (Hutcheon, 1991, p.29).
Tambm importante ressaltar que essas obras consideradas histricas, no se
aproximam do modelo clssico do romance histrico, pelo menos no do romance histrico
que foi difundido e realizado durante o Romantismo e, falar em romance histrico no caso
de algumas obras de Saramago demanda, de certa maneira, algumas explicaes pontuais,
j que o prprio autor tem uma maneira peculiar de referir-se a elas. No caso do Memorial
do convento (1982), declara: uma reconstruo histrica a partir da fico literria,
porque toda a narrao est fundamentada no passado para compreender o presente.10.
Ao tecer tais comentrios, Saramago prope uma reflexo sobre a Histria como
Fico, que para ele supe uma reconstruo de fatos no com o intuito de suprir erros ou
preencher lacunas, como alguns crticos apontam, mas com a perspectiva de introduzir por
meio desta teia de eventos outro olhar que, a priori, no seja o de se demonstrar o fato
oficial. Para Rosemary (2006), o projeto literrio de Saramago parece consistir em fornecer
uma viso do passado sob uma nova perspectiva, iluminada por um realismo crtico e social
que se fundamenta na ideologia marxista. Esse processo de dessacralizao do passado
torna-se literrio pela utilizao de recursos expressivos como a ironia e a pardia, que,
associados a elementos mticos e onricos, conferem obra uma dimenso artstica que
ultrapassa os limites da Histria e da ideologia. Fundamentalmente, a ironia d ao romance
a possibilidade de questionar o passado, enfim, a Histria.
importante ressaltarmos que os traos caractersticos da escrita saramaguiana
nascem justamente na produo do romance LC. Em 1976, aps ficar sem trabalho ele
decide ir para o Alentejo: fiquei l dois meses, falando com pessoas, indo ao campo onde
trabalhavam, comendo com eles, dormindo com eles. E voltei, depois, por mais algumas
semanas. (CULT, no. 17, dez/1998, p.22). Conta que aps a viagem ele tinha uma histria
para contar, a histria dos camponeses do Alentejo, com tudo: a fome, o desemprego, o
latifndio, a polcia, a igreja, tudo, mas segundo ele: me faltava alguma coisa, me faltava o
como contar isso. (idem, p.22), prossegue expondo: O tema que eu tinha estava
clarssimo, era um romance neo-realista (...) e modelos do romance neo-realista portugus,
10 Jornal de Letras, ano V, no. 190 de 25/02 a 3/3/86.
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ns os temos, e grandes romances. Portanto, o molde eu j tinha. (idem, p.23). Dessa
maneira, a primeira escrita do romance LC segue os padres dos romances neo-realistas:
comecei a escrev-lo como um romance normalzinho (...), mas eu no estava gostando do
que estava fazendo, em seguida declara:
Na altura da pgina 24, 25, estava indo bem e por isso eu no estava gostando. E
sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus
leitores hoje sabem que escrevo: sem pontuao. Sem nenhuma, sem essa
parafernlia de todos os sinais que vamos pondo a (...) eu havia estado com essa gente, ouvindo, escutando-os, estavam contando-me as suas vidas, o que tinha
acontecido com eles. Ento, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu
percebesse, como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, s que narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo
pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido
deles. A minha maneira to peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que est a (ibidem, p.23, grifos meus).
Com esse novo estilo, Saramago relata que houve a necessidade de se voltar s
pginas iniciais do romance: Claro que quando cheguei ao fim do livro tive que voltar
atrs para pr aquelas 22 ou 23 pginas de acordo com o que vinha depois. (Silva, 2009,
p.73). Ressaltando esse retorno s pginas iniciais do romance, importante retomarmos
um ponto que ser de fundamental importncia para anlise da instncia narrativa em LC, e,
por conseguinte, ao chamado estilo de Jos Saramago:
Escrevi exatamente aquilo que ficou escrito, excepto o primeiro captulo a que volto
um pouco mais adiante. Aquele que comea dizendo O que h mais na terra, paisagem, porque nesse momento eu recomecei o livro, mas por aquele que agora o segundo captulo. (idem, p.72, grifos meus).
O aviso de que a mudana na escrita ocorrer vem anunciado no final do primeiro
captulo, quando o narrador lana o seguinte comentrio: Mas tudo isso pode ser contado
de outra maneira (LC, 2005, p.14). E realmente ser contado de outra maneira, j que a
partir desse momento o leitor ter contato com o novo estilo saramaguiano, sem o que ele
chama de a parafernlia dos sinais de pontuao. O nascimento desse novo estilo,
segundo o prprio autor, deve-se busca de uma aproximao com a voz do povo, entenda-
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se com a linguagem mais coloquial: Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela
oralidade o que, pela oralidade, eu havia recebido deles.
De acordo com a gramtica normativa da Lngua Portuguesa, a lngua escrita no
dispe dos inumerveis recursos rtmicos e meldicos da lngua falada para reconstituir o
movimento vivo da elocuo oral. O uso da pontuao tem como funo marcar na escrita
as diferenas de entonao, contribuindo para tornar mais preciso o sentido que se quer dar
ao texto. (Cunha, 1985, p.624-5). O texto escrito adquire sentidos diferentes quando
pontuado de formas diferentes, j que o uso da pontuao depende da inteno do locutor
no discurso, assim os sinais de pontuao esto diretamente relacionados ao contexto, ao
interlocutor e s intenes. Ao transgredir as regras gramaticais e justificar o no uso da
pontuao como sendo um recurso que aproxima sua voz da oralidade, o escritor declara
que est devolvendo pelo mesmo processo o que recebeu dos trabalhadores. importante
resgatarmos que o registro da oralidade aparece nas vanguardas e no modernismo
brasileiro, no entanto, neste caso, temos uma oralidade tanto semntica quanto sinttica, o
que no parece ser igual em Saramago, pois o leitor nunca se esquece de que est lendo e
no ouvindo, e que o texto de certa maneira bastante sofisticado. Talvez o no uso dos
sinais grficos demonstre uma respirao mais oral do que propriamente uma oralidade.
Retomando a frase transcrita anteriormente: Mas tudo isso pode ser contado de
outra maneira, percebemos que h uma espcie de anncio irnico de que a situao
descrita poder ser modificada, ou seja, de que a histria (ou a Histria) poder ser
modificada. Sendo assim, veremos como essa releitura dos acontecimentos histricos
aproxima o romance de algumas caractersticas da metafico historiogrfica. No entanto,
antes de partirmos para anlise dos elementos da metafico historiogrfica vamos adentrar
um pouco no universo da famlia Mau-Tempo, conhecer os caminhos percorridos por eles,
suas histrias e suas trajetrias, seus embates e seus conflitos.
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1.2. A constituio da famlia Mau-Tempo
A novidade Que tem no Brejo da Cruz
a crianada
Se alimentar de luz Alucinados
Meninos ficando azuis
E desencarnando
L no Brejo da Cruz (...)
Mas h milhes desses seres
Que se disfaram to bem Que ningum pergunta
De onde essa gente vem
(Chico Buarque, Brejo da Cruz, 1984)
Levantado do cho (2005) a narrativa que retrata a saga de trs geraes de uma
famlia de trabalhadores rurais (os Mau-Tempo) que vivem na regio do Alentejo, no sul de
Portugal. As vidas de Antnio, Joo, Domingos, Anselmo, Maria da Conceio e Gracinda
Mau-Tempo entrecruzam-se com a de outros trabalhadores. A primeira gerao da famlia
est representada pelo casal Domingos Mau-Tempo, sapateiro de profisso, e Sara da
Conceio.
No incio do romance, marido e mulher caminham em direo cidade de So
Cristvo. No caminho atravessam penosamente uma chuva que comparada a um
dilvio de mau prenncio (LC, 2005, p.25). Sara leva nos braos o primeiro filho Joo,
um menino sossegado, de bom feitio, amigo da sua me (idem, p.18). Um dos eixos
centrais da narrativa a viagem, j que Domingos acaba submetendo a famlia a uma vida
nmade, pois um homem frentico que (...) ainda bem no chegou a uma terra, j pensa
noutra, um filho do vento (idem, p.27). Muitos percursos se seguiro na vida dessa
famlia, tanto que Sara reage vida instvel que o marido lhe oferece: Homem, que no
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temos sossego nem assento, de um lado para o outro como o judeu errante, com estas
crianas pequenas, uma aflio (idem, p.29).
A primeira viagem, evocadora do priplo da Sagrada Famlia11
, marcada pela
chuva, pelo vento e pela escurido da noite, o itinerrio uma descida rumo ao sul, cidade
de So Cristvo. Quando a famlia chega ao destino, a noite ficou mais clara, as nuvens
se afastaram e as rvores ramalhavam bruscas (idem, p.20). Domingos Mau-Tempo entra
na taberna e apresenta-se chamo-me Domingos Mau-Tempo e sou sapateiro (ibidem),
oferece bebida a todos como sinal de convivialidade e socializao. O sobrenome
normalmente produz uma certa ironia por parte das pessoas, na taverna um dos homens
responde-lhe: Mau tempo trouxe vocemec e o outro completou No traga ele ms
solas (idem, p.21), neste entretm acaba por esquecer que l fora est a mulher com a
criana no colo, quando Sara chega porta da taverna no entra, a taberna stio para
homens (ibidem), diz que a criana est inquieta, que tudo est molhado. A pequena casa
onde se instalaro tem condies precrias: Com a grande chave Domingos Mau-Tempo
abriu a porta. Para entrar, tiveram que curvar-se, isto no nenhum palcio de altos
portes. A casa no tinha janela. (idem, p.22), acenderam o fogo e finalmente a casa foi
habitada. Pelo romance vamos perceber que o tipo de habitao destinada aos trabalhadores
normalmente apresenta condies precrias, a casa de Gracinda Mau-Tempo e Manuel
Espada assemelha-se muito com a dos avs: Moro por a (...) nesta casa que s parede e
porta (idem, p.216). Outro fato importante que as casas so sempre alugadas, os
camponeses dificilmente conseguem ganhar o suficiente para adquirir uma propriedade.
Voltemos ao percurso de Domingos Mau-Tempo e Sara da Conceio. A segunda
viagem definida como uma peregrinao, partem em sentido contrrio, outra vez para o
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Muitos crticos da obra saramaguiana fazem a aproximao do romance Levantado do cho (1980) e o universo cristo, dentre eles temos: Besse, Maria Graciete. Jos Saramago e o Alentejo: entre o real e a
fico. Lisboa: Casa do Sul, s/d.; Arnaut, Ana Paula. Post-modernismo no romance portugus
contemporneo: fios de Ariadne. Mscaras de Proteu. Almedina: Coimbra, 2002; Grossegesse, Orlando.
Messianismo telrico em Levantado do cho de Jos Saramago. In: Sentido que a vida faz: estudos para
Oscar Lopes. Campo das Letras: Porto, 1997. Lepecki, Maria Luisa. Jos Saramago: Levantado do cho. In: Sobreimpresses. Estudos de Literatura Portuguesa e Africana. Lisboa: Caminho, 1988; Loureno, Eduardo.
Da contra epopia no-epopia. In: Revista crtica de Cincias Sociais. Coimbra: Centro de Estudos
Sociais, n 18,19,20, Fev. 1986.; Marinho, Ftima. O romance histrico em Portugal. Porto: Campo da Letras, 1999; Rebelo, Luis de Sousa. A conscincia da histria na fico de Jos Saramago. In: Vrtice, no.
52, Jan/Fev, n 52, 1993, p. 29-3; Os rumos da fico de Jos Saramago. In: Jos Saramago. Manual de
Pintura e Caligrafia. Lisboa: Caminho, 1983; Silva. Teresa Cristina. Jos Saramago entre a histria e a
fico: uma saga de portugueses. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1989.
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norte peregrinaram (idem, p. 28), foram para Torre de Gadanha, local onde nasce o outro
filho, Anselmo. Na terceira viagem, rumam em direo ao poente em busca do paraso,
Domingos Mau-Tempo caminhava para Landeira como para o paraso (idem, p.29), foi l
que conheceu o padre Agamedes que vivia com uma mulher que dizia ser sua sobrinha.
Nesse paraso, Domingos conquista a amizade do padre e passa a ser sacristo, mas, todos
os cus tm os seus lucferes e todos os parasos as suas tentaes (idem, p.30), ele comea
a cobiar a sobrinha-amante do padre. Domingos para vingar-se do padre arma uma grande
confuso durante a celebrao de uma missa, os dois acabam por brigar ali dentro da igreja:
No dia seguinte, Domingos Mau-Tempo saa da terra com um cortejo ruidoso de
garotos que o acompanharam, mais famlia, at ermos. Sara da Conceio baixava
a cabea, de vergonha. Joo deitava para fora o seu severo olho azul. O outro
menino dormia. (idem, p.32)
Expulsos da cidade, restava famlia Mau-Tempo seguir viagem em busca de outro
lugar para se estabelecerem. O gesto de Sara evidencia o sofrimento dessa mulher que ao
lado do marido acaba por viver situaes de humilhao, alm daquelas de misria e fome
que j vinha passando. Seguiram viagem:
J por Landeira andaram, Santana do Mato, fora e dentro do concelho, Tarrafeiro e
Afeiteria, e em meio destas viagens nasceu o terceiro filho que filha era, Maria da
Conceio e outro, filho mesmo, que teve nome Domingos, como seu pai. (idem, p.39).
Os vrios itinerrios percorridos pela famlia vo culminar na perda, j que
Domingos: desprezou a famlia e desnorteou para longe (idem, p.40), ento Sara e os
filhos foram morar na casa paterna. Alguns dias depois, contrito e arrependido,
Domingos volta prometendo mudanas, recomea ento a saga: a famlia abalou para uma
povoao perto, Cortiadas de Monte Lavre (idem, p.41), no entanto, em pouco tempo
comeou Domingos Mau-Tempo a cair em tristeza, como monstro desterrado (ibidem) e,
novamente parte a famlia tomando nova direo, agora Ciborro, onde o filho mais velho,
Joo Mau-Tempo, vai aprender a ler, escrever e contar (idem, p.42). A situao familiar
agrava-se, pois o pai recomea a beber, volta a maltratar os filhos e a esposa, abandona
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novamente a famlia e durante dois anos ser malts (idem, p.44). Quando retorna, a
famlia est na casa do moleiro Jos Picano em um lugar chamado Ponte Cava. Como de
costume, o sapateiro volta a reclamar pela famlia, todavia, desta vez, o desfecho que segue
diferente. As trevas e a escurido que caracterizaram o espao da sua primeira viagem
encontram-se agora dentro de seus olhos, anunciando o desfecho trgico: passou a corda
pelo ramo, atou solidamente, e sentado nele fez o lao e atirou-se para baixo. De
enforcamento nunca ningum morreu to depressa (idem, p.50).
De certa maneira, podemos dizer que a figura de Domingos Mau-Tempo ilustra o
tempo da opresso que se abate sobre os camponeses alentejanos, a fuga no alcoolismo
uma das alternativas que lhe permite esquecer a misria. A sua trajetria errante revela a
condenao coletiva, por meio de sua figura inquieta o tempo humano espacializado e
dramatizado. Na longa descrio do itinerrio da famlia at So Cristvo, alm da chuva e
da escurido, surge um elemento simblico, a imagem reiterada das azinheiras. Com as
razes mergulhadas na terra, os ramos virados para o cu, a rvore representa
tradicionalmente a ligao entre os dois espaos, o alto e o baixo. No romance, ela est
relacionada tanto vida quanto morte; vida quando retoma o mito progressista cujo
smbolo a rvore de Jess Jess deitado com uma rvore a sair-lhe do ventre e no cimo
floresce o Messias (apud Besse, s/d, p.45), nesse caso temos o nascimento de Maria
Adelaide identificado como a vinda do Messias.
E um malts meio tonto (...) garantiu que aqueles celestes sinais anunciavam que
numa malhada em runas, a trs lguas dali, tinha nascido, mas doutra me, e provavelmente no virgem, uma criana que s no seria Jesus Cristo se a no
baptizassem com esse nome. (Saramago, 2005, p.81)
Por outro lado, a rvore tambm est relacionada morte j que Domingos Mau-
Tempo aps a tentativa frustrada de voltar a ficar com a famlia adentra um olival andou,
mirou (...) calculou alturas e resistncias e, enfim determinou o lugar onde iria morrer
(idem, p.50). Para Besse (s/d) a errncia problemtica de Domingos Mau-Tempo anuncia a
chegada de uma nova era, assumindo assim um valor duplo: o carter histrico e a
dimenso da revelao significada pelo sonho que antecede o suicdio e anuncia o
nascimento de um novo salvador: Maria Adelaide. Pode-se dizer ento que com Domingos
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morre um passado de alienao e cegueira e, mesmo tendo uma trajetria de errncia sua
morte assimilada paz e salvao tanto que o narrador o perdoa:
(...) mesmo tendo suicidado de to bruta maneira, e no obstante os seus muitos
pecados, no h misericrdia se o sapateiro no estiver a esta hora sentado mo direita de Pai Deus. Domingos Mau-Tempo foi um triste homem desgraado, no o
condenem as boas almas (Saramago, 2005, p.52, grifos meus).
Neste trecho o narrador retoma uma das oraes mais antigas e conhecidas dos
catlicos, o Credo Apostlico. Este uma frmula doutrinria, uma declarao de f crist.
No catolicismo tambm conhecido como smbolo dos apstolos, a palavra significa
creio.12
Alm da no condenao Domingos Mau-Tempo, assim como Jesus Cristo senta-se
ao lado do Pai no dia do juzo final, desta maneira, vemos que, novamente o intertexto
bblico retomado para reforar a postura da instncia narradora.
Madruga (1998) afirma que devido s vrias referncias s re-interpretaes do
texto bblico, LC pode ser considerado a bblia do Alentejo. Percebemos que a
proximidade com a vida de Jesus retratada desde o incio da narrativa por meio do
percurso da 1 gerao da famlia Mau-Tempo (Domingos, Sara da Conceio e o filho
Joo). Os nomes tambm possuem uma conotao religiosa, j que no calendrio cristo
domingos indica o dia do Senhor. No romance, esse sentido alterado na medida em que
o patronmico Mau-Tempo prefigura uma srie de dificuldades e amarguras. Utilizado
ironicamente, o nome de famlia Mau-Tempo vem corroborar as circunstncias do dilvio
que acompanha a famlia a So Cristvo. O nome Sara da Conceio est em
correspondncia com a Bblia. Como est descrito no antigo Testamento e no Alcoro, ela
foi a esposa de Abrao e me de Isaque. Seu nome original era Sarai, de acordo com
12 Transcrevo aqui a orao extrada de Paulo Anglada, Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras
So Paulo: 1998, p. 178-79:
Creio em um s Deus, Pai todo-poderoso, criador do cu e da terra, de todas as coisas visveis e invisveis.
Creio em um s Senhor, Jesus Cristo, Filho Unignito de Deus, gerado do Pai desde toda a eternidade, Deus
de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, no criado, consubstancial ao Pai; por Ele todas as coisas foram feitas. Por ns e para nossa salvao, desceu dos cus; encarnou por obra do Esprito
Santo, no seio da Virgem Maria, e fez-se verdadeiro homem. Por ns foi crucificado sob Pncio Pilatos;
sofreu a morte e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras; subiu aos cus, e est
sentado direita do Pai. De novo h-de vir em glria, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino no ter
fim.Creio no Esprito Santo, o Senhor, a fonte da vida que procede do Pai; com o Pai e o Filho adorado e
glorificado. Ele falou pelos profetas.Creio na Igreja una, santa, catlica e apostlica. Professamos um s
batismo para remisso dos pecados. Esperamos a ressurreio dos mortos, e a vida do mundo que h-de vir.
Amm.
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Gnesis (17:15), Deus mudou seu nome para Sara como parte de uma aliana com Yahweh
aps Hagar dar a Abrao seu filho Ismael. O nome hebraico Sara indica uma mulher de alta
hierarquia e algumas vezes traduzido como princesa, podendo tambm significar
senhora. No romance, Sara da Conceio, ao lado do marido, encontra um destino
marcado pelo sofrimento, pelas privaes, pela deambulao e pelas cinco maternidades em
condies extremamente difceis. A instabilidade e as mltiplas viagens fazem dela,
simbolicamente, uma espcie de lder das ciganas, como o era Santa Sara no contexto
Cristo. Podemos estabelecer uma proximidade entre o personagem Joo e o apstolo Joo
Batista, j que este foi o anunciante da vinda de Jesus, ele andava pelo deserto para pregar a
palavra divina, foi a ele que Cristo manifestou-se aps a ressurreio. Assim como o
apstolo, o personagem Joo, aps o suicdio do pai, ganha um novo papel, o de patriarca
da famlia, Agora Joo Mau-Tempo o homem da casa, o mais velho (idem, p.51),
portanto dever buscar o sustento para a me e os irmos:
Joo Mau-Tempo no tem corpo de heri, um pelm de dez anos retacos, um cavaco de gente que ainda olha as rvores mais como alpenduradas de ninhos do
que como produtoras de cortia, bolota ou azeitona. uma injustia que se lhe faz
obrig-lo a levantar-se ainda noite fechada, andar meio a dormir e com estmago frouxo o pouco ou muito caminho que o separa do lugar de trabalho, e depois dia
fora, at ao sol posto, para tornar a casa outra vez de noite. (idem, p.55-6)
O pequeno Joo, ao invs de desfrutar das coisas prprias para uma criana da sua
idade, as brincadeiras, ir para a escola, aprender a ler e escrever precisa abrir mo de tudo
isso para auxiliar a famlia. Assume o papel de homem, de adulto e responsvel sem mesmo
ter tido a oportunidade de ser criana, tambm isso o latifndio tirou dele, dos irmos,
enfim de toda a famlia Mau-Tempo. Na verdade, o romance mostra-nos que essa uma
realidade comum a todas as crianas que vivem no latifndio, que so filhos dos
camponeses:
mas esta criana, palavra s por comodidade usada, pois no latifndio no se ordenaram assim as populaes (...) esta criana apenas uma entre milheiros,
todas iguais, todas sofredoras, todas ignorantes do mal que fizeram para merecerem
tal castigo. (idem, p.56).
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Como vemos, o latifndio no o lugar para se ter uma infncia prazerosa, pelo
menos no aos filhos dos camponeses, cujos pais sofrem com o desemprego, com a misria
e a fome. Nesse espao no h lugar para as brincadeiras infantis, os pais no conseguem
oferecer aos filhos uma condio digna de vida, por isso eles so obrigados a trabalhar
desde cedo. As palavras criana e infncia nos sugerem brincadeiras, cuidados e carinhos,
o perodo que marca os primeiros anos de vida do ser humano, o momento de descobrir o
mundo e as coisas atravs de jogos, de brincadeiras. No entanto, no romance o narrador
expe a situao trgica daqueles que so forados pela situao econmica a crescer antes
do tempo, a trocar as brincadeiras pelos instrumentos de trabalho, a trocar a escola pelo
campo, pelo trabalho. No latifndio no so poucos os que sofrem na pele esse sofrimento,
milhares de crianas semelhana de Joo Mau-Tempo precisam levantar cedo demais,
precisam esquecer a fome e buscar fora para o trabalho, ignoram o porqu de tanta
misria, de tanta privao, porque precisam crescer antes do tempo.
No livro Terra (1997), Sebastio Salgado, na nsia de uma melhor compreenso do
homem e do mundo, retrata os trabalhadores rurais, os mendigos urbanos, presos,
garimpeiros, crianas de rua, gente que vaga entre o sonho e o desespero. Nas fotos, a
luminosidade bicromtica reflete paisagens humanas onde pode faltar tudo, a comear pelo
espao mnimo para assentar a vida. Nesse sentido, podemos estabelecer um dilogo entre a
cena descrita anteriormente no romance LC e a foto de Sebastio Salgado:
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Embora a foto retrate a situao de uma criana de uma famlia de retirantes de
Serra Grande, na fronteira entre o Cear e Piau, vemos que ela expe de forma dramtica
as dificuldades da vida no campo, do sofrimento de ser privado da infncia. O menino
sentado em uma cama de hospital tem os ps machucados, duros como cascos; as mos
pequenas, mas largas e fortes de algum que logo cedo teve que deixar a infncia de lado,
trocar os brinquedos pelos instrumentos de trabalho, a vida feliz e contente sem
responsabilidades e obrigaes pelo trabalho, submeter-se s condies do clima: calor ou
frio. Se observarmos com um olhar mais atento veremos que esses ps e mos se
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assemelham mais aos de um adulto assim como o rosto, as feies, a boca, a expresso do
olhar no denotam uma infncia feliz, pelo contrrio, podemos enxergar a tristeza, a dor e
sofrimento da criana que no tem infncia, que no tem perspectiva de futuro. Seu olhar
no transmite a vivacidade, a alegria e as cores da infncia, pelo contrrio produz-nos a
sensao de desespero, a falta de esperana. A nica imagem que nos remete infncia a
da chupeta pendurada no pescoo como que para lembrar que em meio a tudo, ainda resta
ali, naquele corpo, uma criana. Nesse sentido, vemos que a imagem de criana retratada
por Sebastio Salgado dialoga com aquela descrita no romance, com aquelas crianas do
latifndio, aquelas que assim como esta tambm no tiveram infncia, que tiveram que
crescer e tornarem-se adultos antes da hora.
nesse sentido que Silva (1989) afirma que os Mau-Tempo fazem parte tanto da
fico quanto da histria; so fico, enquanto personagens de uma trama que se ordena de
acordo com a vontade do escritor, so histria quando compostos com dados que
coerentemente do conta da vida de outros personagens a quem se assemelham e que,
portanto so capazes de representar. (idem, p.197). A crtica tambm pontua que as
experincias individuais e coletivas vividas por eles como fome, misria, opresso so
circunscritas por fatos histricos que compem o quadro portugus do nosso sculo. Nesse
sentido, fala-se ento na universalidade do romance, j que as situaes vivenciadas pelos
personagens podem ser homlogas s de outros trabalhadores de outras regies, de outros
pases.
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1.3. O lugar da opresso e o despertar para uma nova realidade
difcil defender s com palavras a vida
(ainda mais quando ela
esta que v, severina).
(Joo Cabral de Melo Neto)
A vida de Sara da Conceio e dos filhos teve uma significativa melhora quando o
irmo Joaquim Carranca ficou vivo, foi ento que juntou-se a fome com a vontade de
comer, que uniram os dois irmos as vidas e as proles. (idem, p.58), assim o irmo ganhou
quem lhe cuidasse das roupas, da casa, da comida melhor tempo comeou para Sara da
Conceio. No faltar quem considere isto pouco. Diremos que so pessoas que nada
sabem da vida (ibidem, grifos meus). Novamente o narrador interrompe a narrativa para
chamar a ateno do leitor, embora parea pouco o que a famlia conquista com a ida para a
casa do irmo de Sara, para eles, pobres trabalhadores sofridos, ter comida, casa significa
muito. Ignoram o valor dessas conquistas aqueles que no tm experincia, ou seja, no
vivenciaram esse tipo de situao.
Apesar da vida na casa do tio, Joo continua a ter que trabalhar, e a partir desse
momento passa a ter sua educao profissional, afinal um homem do campo deve saber
dominar as tcnicas de semear, ceifar, tirar cortia para lutar pela prpria sobrevivncia e,
no caso dele, a da famlia.
Voltando trajetria de nosso pequeno trabalhador, vemos o tempo passar, o
pequeno tornar-se grande, tornar-se homem e alm do aprendizado profissional, comea a
ter educao sentimental, os olhos azuis herdados do seu quadricentenrio av (idem,
p.61) chamavam a ateno das moas. nesse perodo que Joo Mau-Tempo tem a
oportunidade de conhecer outros lugares, outras cidades: Sonha acordado, j se v longe
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de Monte Lavre, quem sabe se em Lisboa (idem, p.62). Sonha com o servio militar, com
um emprego de guarda, no entanto:
Foram uns quantos apurados, e dos quatro que ficaram livres, s um vinha triste.
Era Joo Mau-Tempo, para quem se desvanecia no impossvel o seu sonho de farda, dependurado nos balastres dos elctricos (...) ou se polcia policiando as
ruas da capital, ou se guarda, guardando, para quem, os campos onde agora penava,
e esta hiptese, de tanto que o perturbava, ajudou-o a curar-se da decepo. No se pode esperar que se pense em tudo e ao mesmo tempo. (idem, p.63, grifos meus)
No conseguir entrar para o servio militar o deixa triste e decepcionado, porque
conscientemente sabe que essa seria sua chance de mudar de vida, de auxiliar a famlia,
enfim de sarem da explorao que vinham vivendo no campo desde ento. interessante
notar que apesar da frustrao Joo toma conscincia de que, tendo as razes no campo,
sofrendo com a presena da guarda, com a coero, v que na verdade jamais poderia
tornar-se um deles, no poderia fazer com companheiros seus o que considerava injusto. Na
ltima frase, o narrador o exime de culpa, mostrando que no fundo o jovem no tinha
conscincia de alguns papis que teria que cumprir tornando-se guarda. Longe de Lisboa,
dos sonhos, obrigado a voltar realidade, ao campo, dureza do trabalho: Quando Joo
Mau-Tempo finca a enxada na terra, lembra-se do capote, dos bailes, das namoradas (...) e
esquece a mgoa de ali viver, preso quele cho, to longe de Lisboa (ibidem, grifos
meus).
Para compreendermos melhor a luta que se trava no latifndio seguiremos os passos
desse menino que agora j vai se tornando homem e como tal descobre o amor quando se
apaixona por Faustina, no entanto, como herdara o nome do pai, a famlia da moa tenta
convenc-la de que o rapaz no um bom sujeito e, tendo o pai que teve, com certeza boa
pessoa no seria. Inconformado com o julgamento que fazem:
Joo Mau-Tempo colocou por assim dizer a mo no mundo para lhe tomar o peso,
porque a partir de agora, mais do que at aqui, iria ser um caso de mundo e homem,
casa, filhos, vida dobrada. Ps a mo no ombro de Faustina, esse seria afinal o
mundo, e disse, tremendo do que ousava, Temos de acabar com esse viver, ou finda nosso namoro, para no sofreres mais, ou vens comigo para a casa de minha me,
at eu poder formar casa nossa, e de hoje em diante farei tudo o que eu puder por ti
(idem, p.68, grifos meus)
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Abre-se um novo mundo ao menino-homem, um mundo em que ele tambm resolve
encarar com a mesma fora e garra que tem desde que criana, quando mal aguentava o
peso da enxada em suas mos. Faustina por sua vez, no menos corajosa que ele, declara:
Joo, para onde fores, irei eu tambm, se prometeres dar-me carinho e fazeres por mim
para sempre (ibidem). O nome Faustina o feminino de Fausto, que vem do latim e
significa auspicioso. Dessa maneira, vemos que o nome sintetiza as qualidades dessa
mulher que vem trazer a felicidade a Joo. Podemos dizer que a vida de Joo torna-se
fausta pela presena dela. Nasce ento uma nova famlia, e a esperana de novos dias, de
bons tempos. A cena amorosa dos enamorados se finda com a ida dos dois ao Monte Berra,
onde vivia a me de Joo:
Joo Mau-Tempo levava Faustina pela mo, tremiam-lhes os castigados dedos,
guiava-a sob as rvores e ao rente dos matos e das ervas molhadas, e de repente,
sem saberem como aquilo aconteceu, talvez canseira de tantas semanas de trabalho, talvez tremor insuportvel, acharam-se deitados. Em pouco tempo perdeu Faustina
a sua donzelia, e, quando terminaram, lembrou-se Joo do po e chourio, e como
marido e mulher o repartiram (ibidem)
Nesse momento no h mais guerras entre a guarda e os camponeses, como se o
universo parasse ali para testemunhar o enlace desse casal que vai se descobrindo como
marido e mulher e que no final repartem o po, o mesmo que repartiro durante tantos
percalos que juntos passaro.
Dessa unio nascem trs filhos, o mais velho Antnio Mau-Tempo vai, de certa
maneira, repetir o percurso do pai: j vai trabalhando, anda de ajuda a guardar porcos, por
enquanto no tem idade e braos para volteios de maior substncia (idem, p.87), os outros
dois, so meninas, chamam-se Gracinda e Amlia e delas, principalmente de Gracinda,
falaremos adiante na anlise.
Por meio do trabalho, que rduo e pesado, Joo vai tomando conscincia da
situao miservel com que tanto a sua, quanto a famlia dos demais trabalhadores convive,
comea ento a enxergar de maneira mais clara que os latifundirios exploram a mo-de-
obra dos trabalhadores e esto preocupados somente com seus lucros. Essa conscincia o
far resistir presso para que a colheita seja feita mediante um pagamento miservel;
quando o feitor afirma que no sero pagos mais de vinte e trs escudos pelo dia de
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trabalho Joo Mau-Tempo abre a boca e as palavras saem, to naturais como se fossem
gua a correr de boa fonte, Ficar a seara ao p, que ns no vamos por menos. (idem,
p.141, grifos meus). Juntos trigo e gua formam o po, aquele mesmo que Joo Mau-
Tempo compartilhou com Faustina na noite que ficaram juntos pela primeira vez, aquele
mesmo que Deus disse que o homem teria que ganhar com o suor do seu rosto quando o
expulsou do paraso. Assim se d o despertar do pequeno menino de olhos azuis, to
maltratado pela vida. O narrador solidariza-se com a causa dos trabalhadores rurais, tal
postura fica evidente pela comparao entre as palavras de Joo e a gua de boa fonte, ou
seja, assim como a gua jorra da boa fonte naturalmente, tambm as palavras de Joo so
pronunciadas com tamanha conscincia e naturalidade que fazem crer que aquele que fala
um sujeito com engajamento poltico, tal postura coloca em evidncia o que j se havia
afirmado em trecho anterior: Posto em seu devido tempo na terra, o trigo nasceu, cresceu e
agora est maduro (idem, p.138). O trigo representa a conscincia da explorao de que
so vtimas os trabalhadores, essa semente plantada e, finalmente comea a frutificar.
Essa tomada de conscincia de Joo Mau-Tempo nos remete letra da cano Levanta,
Joo composta por Chico Csar e Barbatuques13
:
Do poder que tem a massa
Levanta, Joo
Do barro que Deus criou
Levanta, Joo
Leva seu olhar pro cu
Joo rei, nunca foi ru
Diante do Criador
Levanta, Joo
Vatente, valente
Quebre a corrente, Joo
Que prende a gente no cho
Onde h tristeza e dor
Todo homem nasce livre
Levanta, Joo
Pra pensar e pra agir
Levanta, Joo
Levanta com o seu povo
Levanta que um tempo novo
13 A msica faz parte do CD Marias do Brasil, gravado em 2004.
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T chegando por aqui
Vatente, valente
Quebre a corrente, Joo
Que prende a gente no cho
Onde h tristeza e dor
Verificamos que o personagem Joo da cano dialoga com o Joo saramaguiano.
Inicialmente, ambos so incitados pelos acontecimentos a uma tomada de conscincia do
poder que tem a massa, levanta Joo, ou seja, diante das privaes, das humilhaes de
todo sofrimento pelo qual a gente trabalhadora passa, preciso ter conscincia da fora que
os trabalhadores juntos tm para buscar as mudanas. A frase Levanta Joo funciona
como uma espcie de refro na cano, servindo para reforar a ideia de que se deve
levantar para lutar contra as desigualdades. Nos versos Levanta Joo/Levanta com seu
povo/ Levanta que um tempo novo, esse o tempo das lutas, da perseverana e, por fim
das conquistas dos direitos. importante apontarmos que a letra da cano se constri
tendo como base vrios verbos no imperativo (levanta, leva, quebre), esse modo verbal
exprime um desejo, uma ordem ou um apelo, neste caso, presenciamos o apelo do eu-lrico
que incita o personagem a ir luta, a levantar-se do cho, a conscientizar os demais e
buscar um novo tempo em que no haja mais exploraes, misrias, fome e sofrimento, no
entanto, esse tempo parece distante da realidade como veremos no prximo tpico.
importante ressaltar que h no romance um jogo constante envolvendo a
polissemia do verbo levantar. O final do captulo de vora descreve o sonho simblico de
Joo os homens do latifndio sempre no alto, iluminados, ele na frente a abrir caminho
com a enxada (idem, p.97), em seguida, temos o trecho: outros j se levantaram (idem,
p.99). Manuel Espada tambm se levanta juntamente com os trs companheiros que se
recusaram a continuar trabalhando e serem devorados pela debulhadora. Maria Adelaide
tambm se levantar (idem, p.363) e ser a fora representativa de um novo tempo. No
episdio da tortura e morte de Germano Santos Vidigal, tambm as formigas aparecem de
cabea levantada.
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1.4. O percurso narrativo: as condies de trabalho, a opresso
Esta cova em que ests com palmos medida a conta menor que tiraste em vida
(...)
de bom tamanho nem largo nem fundo
a parte que te cabe deste latifndio uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada, no se abre a boca
a conta menor que tiraste em vida a parte que te cabe deste latifndio
a terra que querias ver dividida
(Funeral de um lavrador, Joo Cabral de Melo Neto e Chico Buarque)14
Msica tema 1965 e 1966
Num jogo de culpados e inocentes em que, num primeiro momento, no possvel
visualizar o opressor, a luta de classes vai tornando-se ainda mais mascarada. Como no
episdio em que o trabalhador, devendo uma quantia considervel vai mercearia do Sr.
Jos tentar negociar sua dvida e, assim, conseguir levar um pouco de comida a seus filhos:
"Morte e Vida Severina" escrito em 1954
No senhor, no lhe fio mais nada, mas antes que tal resposta fosse dada, a mo do
merceeiro recolheu, foi uma rapa, o dinheiro todo que para abrandar eu pusera em cima do balco, e depois que respondeu. E eu disse, com toda a calma que podia e
Deus sabe qual, que pouca era, Senhor Jos, no me faas uma coisa dessas, ento o
que darei aos meus filhos, tenha d de mim. E ele disse, No quero saber, no lhe fio mais nada, e ainda me fica a dever muito (...) Deu um soco no balco, desafia-
me, e vou bater-lhe, dar-lhe com a rasoira do alqueire, ou espetar-lhe a faca, sim, a
navalha, esta lmina curva, esta adaga de mouro, Ai homem que te desgraas, olha
os nossos filhos, no faa caso, senhor, Jos, no leve a mal, isto desespero do pobre. Sou puxado at a porta, Mulher, larga-me, que eu mato este malandro, mas
vai me o pensamento pensando, no mato, no sei matar, e ele diz-me l de dentro,
Se eu fiar a toda a gente e no me pagarem, como que eu vivo. Todos temos razo, quem o meu inimigo. (p.83, grifos meus)
14 Composio de Joo Cabral de Melo Neto musicado por Chico Buarque de Hollanda em 1965 e 1966.
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A cena descrita minuciosamente, de modo a transmitir o desespero do trabalhador
em busca de alimento para sua famlia. No entanto, ao no ter dinheiro para compr-lo, ele
culpa o merceeiro, que no lhe vende mais fiado. O merceeiro por sua vez, defende-se
afirmando que no pode dar alimentos a todos que lhe pedem, afinal tambm precisa
sobreviver. Presenciamos o entrecruzar de vozes, o campons que vai venda praticamente
suplicar que o dono continue vendendo-lhe fiado, pois no tem como pagar; o merceeiro
que aos olhos do campons detentor do capital, j que dono do estabelecimento,
portanto teria totais condies de continuar vendendo fiado; a voz da mulher que ao ver o
marido ameaando de morte o merceeiro intercede pedindo a ele que compreenda o
desespero do marido; por fim surge a voz do narrador na expresso todos temos razo,
quem o meu inimigo induzindo o leitor reflexo sobre quem (so) o(s) verdadeiro(s)
culpado(s) pela situao.
importante pensarmos que a mercearia do Sr. Jos, assim como outros
estabelecimentos esto presos a um mesmo sistema de circulao de mercadorias no qual a
oferta e a demanda esto precariamente compostas porque h uma classe, o proletariado, ou
neste caso, os trabalhadores rurais, que no tm sua autonomia no mercado de trabalho e no
mercado consumidor. O trabalhador vende sua fora de trabalho para o patro; os
latifundirios, que so os donos do capital, estes por sua vez acabam explorando a fora de
trabalho, j que no pagam um preo justo pela jorna, o que gera uma situao de misria e
humilhao; os trabalhadores, no tendo condies de prover as necessidades bsicas de
sua famlia e as suas, apelam para o mercado, ou seja, comeam a comprar a prazo, com a
promessa de pagamento quando receberem o salrio dos patres. No entanto, ao receberem
pouco , e portanto no conseguirem saldar suas dvidas, comea-lhes a ser negado o direito
da compra a prazo. importante observarmos que diferentemente do que ocorre no
romance AC, aqui a mercearia do Sr. Jos no uma mquina de vender, as pessoas vo ali
para comprar algo de que realmente precisam; j no Centro Comercial, elas vo em busca
de um determinado produto ou porque todos j o possuem ou porque moda, ou seja, vo
em busca do status que aquele determinado objeto pode oferecer-lhes e, como mostraremos
mais adiante na anlise daquele romance, o Centro Comercial nesse sentido funciona como
uma mquina de vender.
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O desespero do trabalhador que diante do merceeiro, da mulher e do filho v que
no tem condies de prover as necessidades bsicas da sua famlia dialoga com a temtica
desenvolvida por Sebastio Salgado no livro Terra (1997) na medida em que o fotgrafo
mostra o quanto os trabalhadores das terras ridas dos sertes nordestinos so, na verdade,
servos dos proprietrios rurais, que eles nem sempre possuem um contrato de trabalho e,
quando este existe tambm no os poupa da explorao e da remunerao miservel, ou
seja, os lavradores so vitimados por uma contabilidade sempre favorvel aos donos das
terras. Desta maneira, possvel estabelecer uma relao entre a temtica descrita
anteriormente no romance e a seguinte foto de Salgado:
Por meio da imagem presenciamos a angstia, a dor do trabalhador diante de tantas
injustias, diante do trabalho no valorizado, dos filhos que sentem fome, da mulher que se
envergonha de no ter como pagar as contas. A mo esquerda pousa sobre a cabea, sobre
os fios de cabelos j brancos; a direita pousa sobre a testa, este gesto demonstra a aflio do
lavrador. Seu olhar direcionado ao longe, contagia o leitor na atmosfera da insegurana,
como se indagasse: o que ser do futuro, o que ser dos meus filhos, da minha famlia? E
tudo o que h ao redor a injustia, a dor, o sofrimento, a misria, a falta de valorizao do
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seu trabalho, o no reconhecimento de si como ser humano. Desta maneira, vemos que as
aflies do traba