o teste do psicopata

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The Psychopath’s Test Traduzido do inglês por Jorge Lima Viagem à Indústria da Loucura O Teste do Psicopata JON RONSON

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Artigo teste psicopatia

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  • The Psychopaths Test

    Traduzido do ingls por

    Jorge Lima

    Viagem Indstria da Loucura

    O Teste do Psicopata

    JON RONSON

  • Contedos

    CAPTULO 1 > A PEA QUE FALTAVA NO ENIGMA 9

    CAPTULO 2 > O HOMEM QUE SE FINGIA LOUCO 35

    CAPTULO 3 > OS PSICOPATAS SONHAM A PRETO E BRANCO 65

    CAPTULO 4 > O TESTE DO PSICOPATA 87

    CAPTULO 5 > TOTO 113

    CAPTULO 6 > A NOITE DOS MORTOS-VIVOS 131

    CAPTULO 7 > O TIPO CERTO DE LOUCURA 159

    CAPTULO 8 > A LOUCURA DE DAVID SHAYLER 169

    CAPTULO 9 > APONTAR ALTO 197

    CAPTULO 10 > A MORTE EVITVEL DE REBECCA RILEY 213

    CAPTULO 11 > BOA SORTE 235

    NOTAS, FONTES, BIBLIOGRAFIA E AGRADECIMENTOS 252

  • 9:: CAPTULO 1 ::

    A pea que faltava no enigma

    Esta uma histria sobre loucura. Tem incio com um encontro numa cafetaria Costa Coffee em Bloomsbury, no centro de Londres. Os neurologistas tendiam a frequentar o Costa, pelo facto de o Departamento de Neurologia do University College de Londres ser logo ao virar da esquina. E ali estava agora uma neurologista, virando para Southampton Row e acenando-me timidamente. Chamava-se Deborah Talmi. Tinha o ar de quem passa os dias enado em labo-ratrios e no est habituado a encontros peculiares com jornalis-tas em cafs, nem a ver-se envolvido em mistrios desconcertantes. Vinha acompanhada de um jovem alto, com ar de acadmico e barba por fazer. Sentaram-se.

    Deborah apresentou-se ela. Jon respondi. E eu chamo-me James disse o outro. E ento? inquiri. Trouxe-o?Deborah assentiu com a cabea. Fez deslizar silenciosamente um

    pacote sobre a mesa. Abri-o e revirei o contedo nas mos. muito bonito disse eu.

    Em julho passado, Deborah recebeu uma estranha encomenda postal. Estava na caixa do correio. O carimbo postal assinalava Gotemburgo, Sucia. Algum escrevera sobre o envelope acolchoado: Dir-lhe-ei mais quando voltar! Quem quer que fosse o remetente, porm, no se identicara.

    No interior do envelope havia um livro. Tinha apenas 42 pgi-nas, 21 das quais pgina sim, pgina no completamente em branco. Mas tudo, o papel, as ilustraes, os carateres tipogrcos,

  • 10

    O TESTE DO PSICOPATA

    denotava uma produo muito dispendiosa. A capa ostentava uma ilustrao delicada e bizarra de duas mos desencarnadas dese-nhando-se uma outra. Deborah reconheceu Mos Que Desenham, de M. C. Escher.

    O autor era um certo Joe K (talvez uma referncia a Joseph K, de Kafka, ou um anagrama de joke?) e o ttulo era O Ser Ou o Nada, aparente aluso ao ensaio de 1943 de Sartre, O Ser E o Nada. Algum recortara cuidadosamente tesoura a pgina que indicaria os pormenores de publicao e copyright, o nmero ISBN, etc., pelo que nenhuma pista se conseguia obter da. Num autocolante lia-se: Ateno! Por favor estudar a carta para o professor Hofstadter antes de ler o livro. Boa sorte!

    Deborah folheou o livro. Tratava-se, manifestamente, de algum tipo de enigma espera de ser resolvido, incluindo versos crpti-cos, pginas de onde haviam sido recortadas palavras, etc. Voltou a olhar para a frase: Dir-lhe-ei mais quando voltar! Um dos seus cole-gas estava de visita Sucia, pelo que, ainda que ele no fosse o tipo de pessoa atreita a enviar encomendas misteriosas, seria ele o reme-tente mais verosmil.

    Mas quando o colega regressou e Deborah o questionou, ele armou nada saber sobre o assunto.

    Sentia-se intrigada. Consultou a Internet. E foi ento que descobriu que no estava sozinha.

    Os que receberam eram todos neurologistas? perguntei-lhe. No respondeu ela. Muitos eram neurologistas. Mas tambm

    havia um astrofsico do Tibete. E um religioso acadmico iraniano. Eram todos acadmicos explicou James.Todos tinham recebido a encomenda exatamente da mesma forma

    que Deborah num envelope almofadado proveniente de Gotemburgo, sobre o qual estava escrito: Dir-lhe-ei mais quando voltar! Tinham-se reu-nido em blogues e fruns de discusso e tentavam decifrar o cdigo.

    Talvez, sugeria um dos destinatrios da encomenda, o livro devesse ser lido como uma alegoria crist, incluindo o enigmtico Dir-lhe-ei mais quando voltar! (claramente uma referncia Segunda Vinda de

  • 11

    CAPTULO 1 :: A PEA QUE FALTAVA NO ENIGMA

    Jesus). O autor, ou autores, parecem contradizer a formulao ateia de O Ser E o Nada1 de Sartre (no B OR N).

    Sarah Allred, investigadora de psicologia percetual, manifestou a sua concordncia: Tenho uma vaga suspeita de que vamos acabar por concluir que se trata de uma campanha de marketing viral, ou outro tipo qualquer de campanha de publicidade, concebida por uma orga-nizao religiosa qualquer, e que os acadmicos, intelectuais, cientis-tas e lsofos vo acabar por car mal na fotograa.

    A outros, pelo contrrio, tal cenrio agurava-se improvvel: O fator preo exclui a possibilidade da teoria viral, exceto se a cam-panha pressupuser desde logo que os seus alvos cuidadosamente sele-cionados reitam online acerca do misterioso livro.

    A maior parte dos destinatrios considerava que a resposta residia, de forma intrigante, neles prprios. Eles tinham sido selecionados um a um para receber a encomenda. Havia claramente um padro em jogo, mas qual? Teriam estado presentes numa mesma confern-cia, anos antes? Estariam a ser selecionados para um lugar de topo numa qualquer organizao secreta?

    Ser que o primeiro a decifrar o cdigo que ca com o lugar, por assim dizer?, escrevia um australiano destinatrio da encomenda.

    O que parecia bvio era que um indivduo ou organizao brilhante concebera um enigma to complexo que nem mesmo acadmicos dotados como eles logravam decifr-lo. Talvez essa decifrao simples-mente no fosse possvel, por o cdigo estar incompleto. Talvez lhe faltasse uma pea. Algum sugeriu observar a carta de perto, junto a uma lmpada, ou sujeit-la ao teste dos vapores de iodo. Pode haver alguma escrita secreta, com recurso a outro tipo de tinta.

    Mas no se encontrou escrita secreta nenhuma.Baixaram os braos, derrotados. Se este era um enigma imposs-

    vel de resolver por acadmicos, talvez se devesse recorrer a algum mais rude, como um detetive privado ou um jornalista. Deborah lan-ou a pergunta no grupo. Que reprter seria sucientemente tenaz e curioso para se interessar pelo mistrio?

    Analisaram alguns nomes.

    1. Em ingls Being and Nothingness, a que contraposto Being OR Nothingness (born = nascido). (N. do T.)

  • 12

    O TESTE DO PSICOPATA

    Foi ento que James, o amigo de Deborah, disse:O que acham de Jon Ronson?

    No dia em que recebi o e-mail de Deborah a convidar-me para o Costa Coffee, encontrava-me a meio de um horrvel ataque de ansiedade. Andava a entrevistar um certo Dave McKay, lder de um pequeno grupo religioso australiano denominado Jesus Christians. McKay suge-rira recentemente aos membros do culto que doassem um dos seus rins a um desconhecido. De incio, eu e Dave entendramo-nos muito bem. Parecia entusiasticamente excntrico e, em resultado disso, eu estava a conseguir recolher bom material para a minha reportagem citaes divertidas e lunticas, etc. , mas quando sugeri que a pres-so grupal, emanada de Dave, seria porventura a razo que levava alguns dos membros mais vulnerveis a optar por doar um rim, ele explodiu. Enviou-me uma mensagem em que armava que ia man-dar travar uma doao iminente, para me dar uma lio. Deixaria que a destinatria do rim morresse, fazendo pesar sobre mim o fardo da sua morte.

    Senti-me horrorizado com a possibilidade de a destinatria do rim sair prejudicada e, em simultneo, bastante satisfeito por Dave me enviar uma mensagem to demente, tima para o meu artigo. Mencionei a um jornalista que o homem parecia bastante psicoptico (no sabia absolutamente nada acerca de psicopatas, mas presumi que era o tipo de coisas que seriam capazes de fazer). O jornalista publicou a cita-o. Alguns dias depois, recebi um e-mail de Dave em que me dizia: Considero difamatrio da sua parte ter armado que sou psicopata. Procurei aconselhamento jurdico. A malcia de que deu provas em relao a mim no lhe d o direito de me difamar.

    Era esta a causa do meu enorme pnico, no dia em que o e-mail de Deborah chegou minha caixa de correio.

    Onde que eu estava com a cabea? comentei com a minha mulher, Elaine. Estava a gostar da entrevista. Estava a gostar da conversa. E agora est tudo lixado. Dave McKay vai processar-me.

  • 13

    CAPTULO 1 :: A PEA QUE FALTAVA NO ENIGMA

    O que se passa? gritou o meu lho, Joel, entrando na sala. Porque esto aos berros?

    Fui eu que cometi um erro estpido: chamei psicopata a um homem, e ele agora est zangado expliquei.

    O que que ele vai fazer-nos? inquiriu Joel.Seguiu-se um curto silncio. Nada respondi. Mas ento, se ele no vai fazer-nos nada, porque ests preocu-

    pado? perguntou ele. S estou preocupado por t-lo feito zangar-se. No gosto de irri-

    tar nem incomodar os outros. por isso que estou triste. Ests a mentir disse Joel, semicerrando os olhos. Eu sei que

    no te importas nada de irritar ou incomodar os outros. O que que no me ests a contar?

    Contei-te tudo o que havia para contar retorqui. Ele vai atacar-nos? indagou Joel. No! respondi. No, no! Claro que no! Corremos perigo? gritou Joel. Ele no vai atacar-nos gritei tambm. Vai simplesmente pro-

    cessar-nos. S quer car-me com o dinheiro. Oh, Deus disse Joel.

    Enviei a Dave um e-mail a pedir-lhe desculpa por lhe ter chamado psicopata.

    Obrigado, Jon, respondeu ele de imediato. O meu respeito por si aumentou consideravelmente. Espero que, se voltarmos a encon-trar-nos, o possamos fazer um pouco mais na qualidade do que se poderia chamar amigos.

    E pronto, pensei para comigo, c estou eu mais uma vez a preocu-par-me sem razo.

    Percorri os meus e-mails no lidos e encontrei o de Deborah Talmi. Dizia que ela e muitos outros acadmicos de todo o mundo tinham recebido por correio uma misteriosa encomenda. Um amigo dela que lera os meus livros dissera-lhe que eu era o tipo de jornalista capaz de se interessar por enredos policiais bizarros. Terminava assim: Espero

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    O TESTE DO PSICOPATA

    ter conseguido transmitir-lhe a sensao de estranheza que tudo isto suscita em mim, e quo aliciante esta histria. como um conto de aventuras, ou um reality game alternativo, e estamos refns de todo este mistrio. Enviando a encomenda a investigadores, espicaaram a investigadora que h em mim, mas no consegui achar a resposta. Espero sinceramente que aceite o desao.

    Agora, no Costa Coffee, ela olhava para o livro, que eu examinava, revirando-o nas mos.

    No essencial disse ela , algum est a tentar captar a ateno de acadmicos especcos, fazendo-a incidir sobre algo, de modo muito misterioso, e eu estou ansiosa por perceber a razo. Parece-me uma campanha demasiado elaborada para ser da responsabilidade de um nico indivduo, agindo em privado. O livro est a tentar dizer-nos alguma coisa. S no sei o qu. Adorava descobrir quem mo enviou e porqu, mas no tenho dotes de investigador.

    Bem... comecei. Fiquei em silncio, examinando o livro com ar srio. Beberiquei

    o caf. Vou tentar.

    Disse a Deborah e a James que gostaria de iniciar a minha investi-gao examinando os seus locais de trabalho. Expliquei que queria ver a caixa de correio onde Deborah descobrira pela primeira vez o pacote. Trocaram um olhar furtivo, como se dissessem: Que stio esquisito para comear, mas quem se atreve a pr em questo os mtodos de trabalho dos grandes detetives?

    O olhar deles poder, na verdade, no ter signicado isso, mas antes: A investigao de Jon no pode, seriamente, beneciar de uma ronda pelos nossos gabinetes, e ligeiramente estranho ele querer faz-la. Esperemos no ter escolhido o jornalista errado. Esperemos que ele no seja um tarado qualquer e que no tenha uma agenda escondida que o leve a querer ver os nossos edifcios por dentro.

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    CAPTULO 1 :: A PEA QUE FALTAVA NO ENIGMA

    Se foi esse o signicado do olhar que trocaram, acertaram: eu tinha de facto uma agenda escondida que me levava a querer ver os edif-cios por dentro.

    O departamento de James era um bloco de cimento totalmente desin-teressante, logo sada de Russel Square a Faculdade de Psicologia do University College de Londres. Fotograas desbotadas das dca-das de 1960 e 1970, espalhadas pelas paredes, mostravam crianas presas a mquinas de aparncia assustadora, com os eltricos pen-dentes das cabeas. Sorriam para a fotograa com excitao inadver-tida, como se estivessem na praia.

    Em tempos, fora manifestamente feita uma tentativa para melho-rar a aparncia destes espaos pblicos, pintando o corredor com um amarelo vistoso. A razo, ao que parecia, era o facto de irem ali mui-tos bebs sujeitar-se a testes ao crebro, e algum se ter lembrado de que a cor amarela poderia acalm-los. Mas eu no percebia como. Era tal a fealdade opressiva do edifcio, que isso seria o mesmo que enar um nariz vermelho num cadver e dizer que era o palhao do McDonalds.

    Dei uma vista de olhos pelos gabinetes. Em cada um deles, um neu-rologista ou um psiclogo debruava-se sobre a secretria, concen-trando-se denodadamente sobre um qualquer tema relacionado com o crebro. Num deles, explicaram-me, o objeto da observao era um homem do Pas de Gales que reconhecia todas as suas ovelhas como indivduos, mas era incapaz de reconhecer rostos humanos, incluindo o da mulher, e at o seu, ao espelho. Esta doena designada por pro-sopagnosia, ou cegueira a rostos. Os seus pacientes, aparentemente, insultam constantemente, de forma inadvertida, os seus colegas de trabalho, vizinhos e cnjuges, ao no lhes retriburem os sorrisos quando se cruzam com eles na rua, ou em situaes semelhantes. As pessoas no conseguem deixar de se sentir ofendidas, mesmo que saibam que a indelicadeza resulta da doena e no de arrogncia. Os sentimentos negativos so, s vezes, contagiosos.

    Noutro gabinete, um neurologista estudava o caso, datado de julho de 1996, de um mdico, ex-piloto da Royal Air Force, que voara sobre

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    O TESTE DO PSICOPATA

    um campo de cultivo em plena luz do dia, dera meia volta, voara de novo sobre o mesmo campo quinze minutos depois, para ento avis-tar, subitamente, um grande crculo inscrito no campo. Era como se ele se tivesse simplesmente materializado. Estendia-se por uma rea de 4 hectares e consistia em 151 crculos distintos. O crculo, deno-minado Julia Set, tornou-se o mais clebre da histria dos crculos inscritos em campos de cultivo. Foram comercializadas T-shirts e posters. Organizaram-se congressos. O movimento de investigao das inscries em campos de cultivo estava em declnio, pelo facto de se tornar cada vez mais bvio que os crculos eram feitos, no por extraterrestres, mas sim por artistas conceptuais, na calada da noite, utilizando pranchas de madeira e corda. Este, porm, aparecera do nada no decorrer de um intervalo de quinze minutos entre as duas viagens do piloto sobre o campo.

    O neurologista deste ga-binete tentava descobrir por que razo o crebro do pilo-to no conseguira detetar o crculo na sua primeira pas-sagem. que ele j l esta-va, pois fora feito na noite anterior por um grupo de artistas concetuais conhe-cidos por Team Satan, com recurso a pranchas de ma-deira e corda.

    Num terceiro gabinete, vi uma mulher com um exemplar do livro Little Miss Brainy na prateleira. Pareceu-me bem-disposta, jovial e atraente.

    Quem ? perguntei a James. Essi Viding respondeu ele. O que que ela estuda? Psicopatas.Espreitei para dentro, olhando para Essi. Ela avistou-nos, sorriu e

    acenou com a mo.

    O Julia Set.

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    CAPTULO 1 :: A PEA QUE FALTAVA NO ENIGMA

    Deve ser perigoso observei. Uma vez ouvi uma histria sobre ela disse James. Na altura,

    entrevistava um psicopata. Mostrou-lhe uma fotograa de um rosto de expresso assustada, pedindo-lhe que identicasse a emoo em causa. Ele respondeu que no sabia dizer de que emoo se tratava, mas que era a mesma que as pessoas exibiam antes de ele as matar.

    Prossegui pelo corredor fora, antes de me deter e observar de novo Essi Viding. Nunca pensara demasiado sobre psicopatas antes daquele momento, e perguntei-me se no deveria tentar conhecer alguns. Parecia-me extraordinrio haver pessoas cujo estado neurolgico, de acordo com o relato de James, as tornava to aterradoras como uma criatura espacial totalmente malvola, sada de um lme de co cientca. Recordei-me vagamente de ouvir psiclogos armarem que existe uma preponderncia de psicopatas no topo da escala, no mundo empresarial e na poltica, pelo facto de a ausncia clnica de empa-tia constituir um trunfo nesses ambientes. Ser que isso de facto verdade? Essi acenou-me de novo. E decidi que no; seria um erro vasculhar no mundo dos psicopatas, um erro especialmente grande para algum que, como eu, sofre de excesso de ansiedade. Retribu o aceno e prossegui pelo corredor fora.

    O edifcio de Deborah, o Wellcome Trust Center for Neuroimaging do University College de Londres, cava ao virar da esquina de Queen Square. Era mais moderno, e estava equipado com gaiolas de Faraday e scanners fMRI, operados por tcnicos com ar de cromos, envergando T-shirts com personagens de banda desenhada. O ar deles tornava as mquinas menos intimidantes.

    O nosso objetivo, armava o website do Centro, compreender de que forma o pensamento e a perceo emergem da atividade cere-bral, e como esses processos se degradam nas doenas neurolgicas e psiquitricas.

    Chegmos caixa de correio de Deborah. Examinei-a. OK disse eu. Certo.

  • 18

    O TESTE DO PSICOPATA

    Fiquei ali por momentos, acenando com a cabea. Deborah retri-buiu o aceno. Olhmo-nos.

    Era agora a ocasio perfeita para lhe revelar a minha agenda escon-dida para querer examinar os edifcios. A razo era que os meus nveis de ansiedade, nos ltimos meses, tinham rebentado com a escala. No era normal. As pessoas normais no sentem, segura-mente, este tipo de pnico. As pessoas normais no sentem, segu-ramente, que esto a ser eletrocutadas de dentro para fora por uma criana por nascer, munida de um taser em miniatura; no sentem que esto a ser espetadas com um o eltrico que emite o tipo de carga que impede o gado de invadir os campos adjacentes. E assim, o meu plano ao longo de todo o dia, desde o Costa Coffee, fora o de conduzir a conversa para o tema do meu crebro excessivamente ansioso. Talvez Deborah se oferecesse para me fazer um scanner, ou coisa parecida. Mas ela parecia to satisfeita com o facto de eu ter concordado em solucionar o mistrio de O Ser Ou o Nada que ainda no tivera coragem para mencionar a minha falha, no fosse com isso estragar a mstica.

    Agora era a minha ltima oportunidade. Deborah viu-me a olhar para ela, como se me preparasse para dizer algo de importante.

    Sim? disse ela.Seguiu-se um curto silncio. Olhei-a. Eu vou-a mantendo a par respondi.

    O voo low cost da Ryanair das 6 da manh para Gotemburgo estava cheio que nem um ovo, provocando-me uma sensao de claustrofo-bia. Tentei chegar ao bolso das calas para pegar no bloco de notas e escrever uma lista de coisas a fazer, mas a minha perna estava enta-lada numa posio impossvel debaixo da mesa-tabuleiro, que estava atafulhada com os restos do meu pacote de pequeno almoo. Preci- sava de planear a estada em Gotemburgo. O jeito que me daria o bloco de notas! A minha memria j no o que era. Na verdade, hoje em dia, frequente sair de casa com uma expresso de excitao e pro-psito no rosto para me deter ao m de algum tempo e car para- do com ar confuso. Nesses momentos, tudo se torna irreal e vago.

  • 19

    CAPTULO 1 :: A PEA QUE FALTAVA NO ENIGMA

    O mais provvel que um dia a minha memria desaparea de todo, como aconteceu com a do meu pai, e nessa altura no haver livros para escrever. Preciso mesmo de juntar um p de meia.

    Tentei baixar-me para coar o p. No fui capaz. Estava preso. Que coisa! Estava mesmo preso!

    ICCC!, gritei involuntariamente. A minha perna disparou para cima, batendo na mesa. O passageiro do lado olhou para mim com ar espantado. Eu tinha soltado um guincho no intencional. Olhei para a frente, com ar chocado, mas tambm ligeiramente assustado. No tinha a noo de que existissem dentro de mim sons to misterio-sos e invulgares.

    Tinha uma pista em Gotemburgo: o nome e morada prossional de um homem que poderia conhecer a identidade ou identidades de Joe K. O seu nome era Petter Nordlund. Muito embora nenhuma das encomendas enviadas aos acadmicos contivesse quaisquer pis-tas em especial, nomes de possveis autores ou distribuidores , algures, enterrado bem fundo no arquivo de uma biblioteca sueca, eu descobrira Petter Nordlund, referido como tradutor ingls de O Ser Ou o Nada.

    Uma pesquisa no Google nada mais revelou sobre ele, com exceo da morada de uma empresa de Gotemburgo, de nome BIR, qual ele estava de alguma forma ligado.

    Se, como suspeitavam as pessoas que tinham recebido o livro, uma equipa de inteligentes criadores de enigmas estivesse por detrs desta dispendiosa e enigmtica campanha, por razes ainda no determi-nadas (propaganda religiosa? marketing viral? recrutamento?), Petter Nordlund era a minha nica porta de entrada. Mas ele no sabia que eu chegara. Eu receava que, se o soubesse, desaparecesse da circula-o. Ou talvez avisasse a organizao obscura por detrs de O Ser Ou o Nada, qualquer que ela fosse. Talvez ento tentassem deter-me de uma qualquer forma inimaginvel. Em todo o caso, cheguei con-cluso de que ir bater porta de Petter Nordlund constitua a estra-tgia mais astuta. Era uma questo de sorte. Toda a viagem era uma simples questo de sorte. Os tradutores trabalham frequentemente a

  • 20

    O TESTE DO PSICOPATA

    grande distncia dos seus clientes, e era perfeitamente possvel que Petter Nordlund no estivesse a par de nada.

    Alguns dos que tinham recebido a encomenda haviam sugerido que O Ser Ou o Nada era um enigma impossvel de descodicar pelo facto de estar incompleto e eu, ao m de uma semana de estudo do livro, acabara por concordar. Cada pgina parecia constituir um enigma de soluo inalcanvel.

    Uma nota logo no incio armava que o manuscrito fora encon-trado num canto de uma estao de caminhos de ferro abandonada: Estava no cho, vista de todos, mas eu fui o nico sucientemente curioso para apanhar o pacote.

    Seguiam-se citaes elpticas:

    O meu pensamento muscular.ALBERT EINSTEIN

    Sou um estranho loop.DOUGLAS HOFSTADTER

    A vida deve ser uma aventura feliz.JOE K

    Apenas 21 pginas do livro no estavam em branco e, dessas, algu-mas incluam s uma frase. A pgina 18, por exemplo, dizia simples-mente: No sexto dia depois de ter parado de escrever o livro, sen-tei-me em casa de B e escrevi-o.

    E tudo isto numa produo muito dispendiosa, com papel e tin-tas da mais alta qualidade numa pgina, por exemplo, encontra-va-se uma delicada reproduo colorida de uma borboleta pelo que o empreendimento deve ter sado muito caro a uma ou mais pessoas.

    Anal a pea que faltava no enigma no era uma qualquer escrita secreta a tinta invisvel, mas havia outra possibilidade. Na pgina 13 de todos os exemplares fora sistematicamente recortado um buraco.