o teeteto de platão e a apologia de sócrates

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Prefácio Este texto destinase aos meus alunos de Filosofia. Foi composto a partir de apontamentos meus, muitos deles sem qualquer referência, por se destinarem mais a apoiar as minhas leituras do que a serem alguma vez publicados, e a partir das obras de Platão: O Teeteto ea Apologia, em língua francesa. No meu tempo de estudante de Filosofia no Ensino Superior, as obras de Platão não estavam acessíveis em língua portuguesa, pelo que me habituei a lêlas em francês. Mais tarde, tendo completado a minha formação superior numa Universidade francesa, adquiri o gosto por ler Platão e outros autores clássicos em francês. Desta circunstância, resulta uma leitura do Teeteto que não coincide inteiramente com aquela que se encontra nos manuais portugueses: assumese que o tema do Teeteto é a ciência e não o conhecimento. No entanto, é mantida a terminologia, habitual nesses manuais, relativa à opinião e à opinião verdadeira, por ser irrelevante outra qualquer, se o tema considerado for o da Ciência. Os pormenores que se referem à vida de Sócrates são sobretudo influenciados pela História da Filosofia de Magalhães Vilhena. São acrescentados mapas, retirados do “google maps” para ilustrar a região geográfica por onde Sócrates viajou. Algumas dessas localidades, como Mégara e Kifissia, conhecias pessoalmente, outras são localizadas nos mapas atuais, a partir das informações contidas na “Wikipedia”. O mesmo acontece com o valor do dinheiro da época que foi apurado a partir da conversão das minas em dracmas. A escrita deste texto, começada bastante tempo, foi interrompida e interrompe, agora, a escrita de um outro texto sobre a Doutrina Social da Igreja (DSI). Na verdade, este último

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Platão, Teeteto. Sócrates

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Page 1: O Teeteto de Platão e a Apologia de Sócrates

Prefácio    

Este  texto  destina-­‐se  aos  meus  alunos  de  Filosofia.  

Foi   composto   a   partir   de   apontamentos  meus,  muitos   deles   sem  qualquer   referência,   por   se   destinarem  mais   a   apoiar   as  minhas  leituras  do  que  a  serem  alguma  vez  publicados,  e  a  partir  das  obras  de   Platão:   O   Teeteto   e   a   Apologia,   em   língua   francesa.   No   meu  tempo  de   estudante  de  Filosofia  no  Ensino  Superior,   as   obras  de  Platão  não  estavam  acessíveis  em  língua  portuguesa,  pelo  que  me  habituei  a  lê-­‐las  em  francês.  Mais  tarde,  tendo  completado  a  minha  formação   superior   numa   Universidade   francesa,   adquiri   o   gosto  por   ler   Platão   e   outros   autores   clássicos   em   francês.   Desta  circunstância,   resulta   uma   leitura   do   Teeteto   que   não   coincide  inteiramente   com   aquela   que   se   encontra   nos   manuais  portugueses:  assume-­‐se  que  o  tema  do  Teeteto  é  a  ciência  e  não  o  conhecimento.   No   entanto,   é   mantida   a   terminologia,   habitual  nesses  manuais,  relativa  à  opinião  e  à  opinião  verdadeira,  por  ser  irrelevante  outra  qualquer,  se  o  tema  considerado  for  o  da  Ciência.  

Os  pormenores  que   se   referem  à  vida  de  Sócrates   são   sobretudo  influenciados  pela  História  da  Filosofia  de  Magalhães  Vilhena.  São  acrescentados  mapas,   retirados   do   “google  maps”   para   ilustrar   a  região   geográfica   por   onde   Sócrates   viajou.   Algumas   dessas  localidades,   como   Mégara   e   Kifissia,   conheci-­‐as   pessoalmente,  outras  são  localizadas  nos  mapas  atuais,  a  partir  das  informações  contidas   na   “Wikipedia”.   O   mesmo   acontece   com   o   valor   do  dinheiro  da  época  que  foi  apurado  a  partir  da  conversão  das  minas  em  dracmas.  

A   escrita   deste   texto,   começada   há   já   bastante   tempo,   foi  interrompida   e   interrompe,   agora,   a   escrita   de   um   outro   texto  sobre   a   Doutrina   Social   da   Igreja   (DSI).   Na   verdade,   este   último  

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tem-­‐se  revelado  mais  complexo  do  que  era  minha  intenção  inicial:  A   DSI   não   se   compadece   com   uma   escrita   esquemática,   como  aquela  que  eu  pensava  fazer.  

Tanto   Platão   como   a   DSI   concordam   num   ponto   em   termos   de  política:   a   justiça   é   o   bem   maior   do   Estado,   a   justiça   ou   o   bem  comum.  A  liberdade  individual  deve  subordinar-­‐se  à  justiça.  Numa  época,   em   que   as   conceções   políticas,   por   fanatismo   liberal,   se  aproximam  perigosamente  de   conceções   e   sobretudo  de  práticas  anarquistas,   quer  Platão,   quer   a  DSI  podem,   a  par  das   teorias  de  Rawls   ou   de   Amartya   Senn,   ser   refrescantes   e   promissoras.   A  justiça  de  que  aqui   se   fala  não  é  a   justiça  dos   tribunais,  que  essa  tem   sempre   origem   na   injustiça,   mas   a   justiça   que,   se   existisse,  dispensaria  os  tribunais.  

Julho,  2012    Jorge  Nunes  Barbosa                                              

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A  Vida  de  Platão    

Platão   nasceu   em   Atenas   no   ano   428-­‐427   a.C.,   no   povoado   de  Collytos.   Segundo   Diógenes   de   Laércio,   o   seu   pai   Aríston   era  descendente  de  uma  família  real,  a  família  de  Codros,  o  último  rei  de   Atenas.   A   sua   mãe,   Perictione,   irmã   de   Carmides   e   prima   de  Crítias,  o   tirano,  descendia  de  Drópides,  que  Diógenes  de  Laércio  dizia  ser  irmão  de  Sólon,  um  dos  sete  sábios  da  Grécia.    

A   tradição   mandava   que   a   uma   criança,   como   Platão,   fosse  atribuído   o   nome   do   seu   avô.   Portanto,   Platão   deveria   ter-­‐se  chamado   Aristocles.   Segundo   Diógenes   de   Laércio,   o   nome   de  Platão   foi-­‐lhe  dado  pelo  seu  mestre  de  ginástica,  em  alusão  à  sua  corpulência.    

A  família  de  Platão  possuía  uma   propriedade   em  Kifissia,   onde   atualmente  se   situa   uma   estação  terminal   da   linha   1   do  metro   de   Atenas.   Aí,   deve  ter   aprendido   a   gostar   da  calma   da   vida   rural,   mas,  muito   provavelmente,  deve   ter   passado   a   maior  parte   da   sua   infância   na  cidade,   para   poder   ter  acesso   à   educação  própria  da   sua   condição   social   (o  metro  que  liga  o  centro  da  cidade  de  Atenas  a  Kifissia  é  muito   recente...).   O  mais  

certo,   tendo   em   conta   as   suas   origens   de   nobreza,   é   que   tenha  aprendido  a  honrar  os  deuses  e  a   respeitar  os   rituais  da  religião,  como  era  tradição  em  todas  as   famílias  de  bem.  Manterá  durante  

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toda  a  sua  vida  este  respeito  pela  religião  e   imporá  esse  respeito  nas  suas  Leis.  Para  além  da  ginástica  e  da  música,  que  eram  a  base  da  educação  ateniense,  também  terá  sido  iniciado  no  desenho  e  na  pintura.  Em  filosofia,  a  sua  formação  terá  começado  com  as  lições  de   um   discípulo   de   Heraclito,   Crátilo,   cujo   nome   foi   dado,   por  Platão,   a   um   dos   seus   diálogos.   Eram-­‐lhe   reconhecidos   talentos  para  a  poesia.  Foi  testemunha  dos  sucessos  de  Eurípides  e  Ágaton,  e  ele  próprio  compôs  tragédias,  poemas  líricos  e  ditirambos.  

Com  cerca  de  vinte  anos  de  idade,  Platão  conheceu  Sócrates.  Diz-­‐se  que  queimou  as  suas  tragédias  e  que  se  dedicou  completamente  à  filosofia.   Sócrates   tinha   dedicado   toda   a   sua   vida   a   ensinar   a  virtude   aos   seus   concidadãos:   a   reforma   (a   conversão   à   virtude)  dos   cidadãos   era   a   condição   necessária   e   indispensável   para   o  bem-­‐estar   da   cidade.   Este   será   também   o   objetivo   principal   da  vida   de   Platão   que,   tal   como   o   seu   primo   Crítias   e   o   seu   tio  Cármides,   ambicionava   dedicar-­‐se   a   uma   carreira   política;   no  entanto,  os  excessos  dos  Trinta  (um  governo  oligárquico  de  Atenas  composto   por   trinta   magistrados)   acabaram   por   o   horrorizar.  Quando   foi   restabelecida   a   constituição   democrática   em   Atenas,  Platão   já   não   estava   tão   confiante   numa   carreira   política.   A  condenação   de   Sócrates   pelo   regime   democrático   desiludiu-­‐o   de  forma  irrecuperável  e  definitiva.  Ele  tinha  mantido  a  esperança  de  que  a  democracia  haveria  de  melhorar  a  vida  política;  vendo  que  o  mal   parecia   incurável,   dedicou-­‐se   completamente   a   preparar,  através   das   suas   obras,   alterações   políticas   de   fundo,   onde   os  filósofos,  preceptores  e  governantes  da  humanidade,  haveriam  de  pôr  fim  à  maldade  que  ele  tanto  repudiava.  

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Segundo   consta,   Platão   estaria   doente   quando   Sócrates   bebeu   a  cicuta,   e,   por   isso,   não   pôde   estar   presente   nos   seus   últimos  momentos.   Após   a   morte   do   mestre,   retirou-­‐se   para   Mégara  (atualmente   um   aglomerado   agrícola   a   43Km   de   Atenas,  atravessado   pela   auto-­‐estrada   Atenas-­‐Corinto),   para   junto   de  Euclides   e   Terpsion,   tal   como   ele,   discípulos   de   Sócrates.   Mais  tarde,   teve   de   voltar   a   Atenas   para   cumprir   serviço   militar   na  cavalaria.  Participou,  segundo  parece,  nas  campanhas  de  395  e  de  394  da  guerra  de  Corinto.  Na  verdade,  Platão  nunca  se  referiu  aos  seus   serviços   militares,   mas   sempre   preconizou   os   exercícios  militares  para  desenvolver  o  vigor  físico  dos  jovens.  

O  desejo  de  instrução  levou  Platão  a  viajar.  Cerca  de  390,  dirigiu-­‐se  ao  Egito,  levando  consigo  um  carregamento  de  azeite  para  pagar  a  viagem.  Aí,  tomou  contacto  com  artes  e  costumes  com  milhares  de  anos   de   tradição.   Há   quem   pense   que   foi   graças   ao   espetáculo  desta   civilização,   fiel   a   antigas   tradições,  que  Platão   criou  a   ideia  de  que:  

•  os   homens   podem   ser   felizes,   se   respeitarem   as   formas  imutáveis  de  vida,    

•  a  música  e  a  poesia  não  necessitam  de  novas  criações,  e    

•  basta   descobrir   a   melhor   constituição   e   forçar   os   povos   a  aderir  a  ela  para  se  viver  numa  cidade  justa.  

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Do   Egito,   partiu   para   Cirene  (colónia   grega   na   região   da   Líbia  atual),  onde  frequentou  a  escola  do  matemático   Teodoro,   que   será   um  dos   interlocutores   do   Teeteto.   De  Cirene,  passou  para  Itália,  onde  fez  amizade  com  os  pitagóricos  Filolau,  Arquitas  e  Timeu.  Não  é  seguro  que  tenha   sido   com   estes   pitagóricos  que   Platão   passou   a   acreditar   na  migração   das   almas;   mas   a   eles  deve   seguramente   a   ideia   de  eternidade  da  alma,  que  haveria  de  ser  a  pedra  angular  da  sua  filosofia;  

essa   ideia   de   imortalidade   da   alma   forneceu   a   solução   para   o  problema   do   conhecimento.   Com   esses   pitagóricos,   Platão  aprofundou   também   os   seus   conhecimentos   em   aritmética,   em  astronomia  e  em  música.  

Dirigiu-­‐se,   depois,   para   a   Sicília   e,   em   Siracusa,   assistiu   às   farsas  populares  e  comprou  o  livro  de  um  autor  de  farsas  em  prosa.  Foi  recebido  na  corte  de  Dionísio  na  qualidade  de  estrangeiro  distinto  (diríamos   agora   VIP)   e   conquistou   para   a   filosofia   o   cunhado   do  tirano.   No   entanto,   não   durou   muito   tempo   a   cordialidade   de  Dionísio   que   o   despachou   num   barco   com   destino   a   Egina   (uma  ilha  a  cerca  de  27  Km  de  Atenas,  com  a  qual,  na  época,  estava  em  conflito  aberto),  como  escravo  do  Lacedemónio  Pollis.  Felizmente,  um  Cireneu,  que  reconheceu  Platão,  comprou  a  sua  liberdade  pelas  vinte  minas  que  ele  tinha  valido  no  mercado  de  Siracusa  (cerca  de  128  dracmas  -­‐  mal  comparando,  um  euro  equivale  à  conversão  de  340,750   dracmas,   nos   tempos   atuais).   Platão   voltou,   então,   a  Atenas,  muito  provavelmente  com  cerca  de  quarenta  anos.    

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Nesse   ano   (388   a.C.),   Eurípides   já   tinha   morrido   e   não   tinha  sucessor   à   sua   altura,   Aristófanes   acabava   de   representar   a   sua  última  tragédia,  e  o  teatro  cómico  estava  em  decadência.  A  poesia  enfrentava  um  declínio  evidente  em  Atenas,  mas  a  prosa  estava  em  ascensão.   Lísias   (que   aparece   em,   pelo   menos,   dois   diálogos   de  Platão)   escrevia   discursos   de   defesa   em   tribunal   (parece   que  escreveu  mesmo  um  para  Sócrates),  e  Isócrates  tinha  fundado  uma  escola   de   retórica.   Dois   discípulos   de   Sócrates,   Ésquines   e  Antístenes,   que   tinham   tomado   a   defesa   do  mestre,   tinham   uma  escola   e   publicavam   escritos   ao   gosto   do   povo   ateniense.   Platão  dedicou-­‐se   também  ao  ensino;  mas,  em  vez  de  o   fazer  através  da  conversa,   como   Sócrates,   fundou   uma   escola   à   imagem   das  sociedades   pitagóricas.   Comprou   um   terreno   próximo  do   ginásio  do  bosque  de  Academos,  e  aí  mandou  construir  a  sua  escola.  Daí,  o  nome   de   Academia,   dado   à   escola   de   Platão.   Os   seus   alunos  formavam   um   grupo   de   amigos,   cujo   presidente   era   escolhido  pelos  jovens  que,  sem  dúvida,  pagariam  uma  espécie  de  cotização.    

Não  se  sabe  nada  dos  vinte  anos  da  vida  de  Platão,  que  decorreram  entre  o  seu  retorno  a  Atenas  e  a  sua  nova  deslocação  à  Sicília.  Nem  nas   suas   obras   se   encontra   qualquer   alusão   aos   acontecimentos  seus  contemporâneos:    

• a  reconstituição  do  império  marítimo  da  Atenas,    

• aos  sucessos  de  Tebas  com  Epaminondas,    

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• à  decadência  de  Esparta.    

Entretanto,   Dionísio,   o   antigo,   tinha   morrido   em   368.   O   seu  cunhado,   Deão,   esperava   poder   influenciar   o   pensamento   de  Dionísio,   o   jovem,   sucessor   de   seu   pai.   Sonhava,   ao   que   parece,  transformar  a  tirania  numa  monarquia  constitucional,  onde  a  lei  e  a   liberdade   pudessem   conviver   pacificamente.   Por   isso,   pediu  ajuda  a  Platão.  Platão  ainda  alimentava  a  ambição  de  desempenhar  um   papel   político   importante,   pondo   em   prática   o   seu   sistema.  Deixou  a  direção  da  sua  escola  a  Eudoxo,  reforçando,  deste  modo,  a   sua   amizade   com   Arkitas,   matemático   filósofo   que   governava  Tarento.  Quando  chegou  a  Siracusa,  no  entanto,  a  situação  já  tinha  mudado.   Foi   muito   bem   recebido   por   Dionísio,   mas   muito   mal  pelos   partidários   da   tirania.   Por   outro   lado,   tendo-­‐se   apercebido  de   que   o   tio,   Deão,   o   queria   manter   sob   sua   tutela,   Dionísio  expulsou-­‐o   de   Siracusa.   Enquanto   Deão   foi   viver   para   Atenas,  Platão,  sob  o  pretexto  de  ser  o  mestre  de  Dionísio,  ficou  retido  em  Siracusa  durante  todo  o  Inverno.  Finalmente,  na  primavera  do  ano  de  365,  Dionísio  autorizou-­‐o  a  partir,  sob  promessa  de  voltar  com  Deão.   Platão   e   Dionísio   separaram-­‐se,   apesar   de   tudo,   como  amigos,   graças   sobretudo   às  diligências   bem   sucedidas  de  Platão  junto  de  Arquitas  de  Tarento  para  que  aceitasse  fazer  uma  aliança  com  Dionísio.    

De   volta   a   Atenas,   Platão   encontrou   Deão   que   levava   uma   vida  faustosa.  Retomou  o  ensino.  Entretanto,  Dionísio,  aparentemente,  tinha  ganho  o  gosto  pela  filosofia.  Tinha  chamado  à  sua  corte  dois  discípulos  de  Sócrates,  Ésquino  e  Aristipo  de  Cirene,  e  manifestou  o   desejo   de   voltar   a   encontrar-­‐se   com   Platão.     Na   Primavera   de  361,   enviou   um   vaso   de   guerra   ao   Pireu.   O   seu   comandante   era  portador  de  cartas  de  Árquitas  de  Tarento  e  de  Dionísio,   em  que  Árquitas   lhe   garantia   a   sua   segurança   pessoal,   e   Dionísio   lhe  relembrava  o  interesse  no  retorno  de  Deão  no  ano  seguinte.  Platão  acreditou   nestes   pedidos   e   partiu   para   Siracusa   com   um   seu  sobrinho,   Speusipo.   Novos   contratempos   o   esperavam   em  Siracusa,  na  Sicília:  não  conseguiu  convencer  Dionísio  a  mudar  de  

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vida.  Entretanto,  Dionísio  embargou  os  bens  de  Deão.  Platão  quis  partir;  o  tirano  reteve-­‐o,  e  foi  necessária  a  intervenção  de  Árquitas  para   que   ele   pudesse   deixar   Siracusa,   na   Primavera   de   360.  Encontrou,  depois,  Deão  na  cidade  de  Olímpia.  

Sabe-­‐se  que,  tendo  sabido  que  Dionísio  se  tinha  apropriado  da  sua  mulher   e   oferecido   a   outro,   Deão  marchou   contra   ele   em   357   e  apoderou-­‐se  de  Siracusa.  Acabou  por  ser  assassinado  quatro  anos  depois,  em  353.  Platão  sobreviveu-­‐lhe  cinco  anos.  

A  academia  de  Platão  sobreviveu  até  529  da  nossa  era,  ano  em  que  o  imperador  Justiniano  a  mandou  fechar.                                                              

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A  Filosofia  de  Platão        Nas  suas  primeiras  obras,  isto  é,  nos  diálogos  chamados  socráticos,  Platão,  fiel  discípulo  de  Sócrates,  dedica-­‐se,  tal  como  este,  a  definir  as   ideias  morais.  Procura  saber  o  que  é  a  coragem,  a  sabedoria,  a  amizade,   a   piedade,   a   virtude.   Sócrates   acreditava   que   basta  conhecer  o  bem  para  o  praticar,  e  que,  por  conseguinte,  a  virtude  é  ciência  e  o  vício  é  ignorância.  Platão  manter-­‐se-­‐á  fiel,  durante  toda  a  sua  vida,  a  esta  doutrina.  Tal  como  Sócrates,  honrará  os  deuses  e  defenderá   que   a   virtude   consiste   em   se   assemelhar   a   eles,   tanto  quanto   o   permita   a   fraqueza   humana.   Como   Sócrates,   acreditará  que  o  bem  é  o   fim  supremo  de   toda  a  existência  e  que  é  no  bem  que  deve  ser  procurada  a  explicação  do  universo.  

Mas,  por  muito  dócil  que  Platão  tenha  sido  às  lições  de  Sócrates,  a  sua  grande  ambição  de  saber   impediu  que  se   limitasse  ao  ensino  puramente  moral  do  seu  mestre.  Antes  de  conhecer  Sócrates,  tinha  recebido   lições   de   Crátilo   que   o   familiarizou   com   a   doutrina   de  Heraclito.   Também   estudou   as   teorias   dos   Eleatas   (Parménides),  de  Anaxágoras  e  os  escritos  de  Empédocles.  Durante  a  sua  viagem  a   Cirene,   aperfeiçoou-­‐se   na   geometria   e,   em   Itália,   dedicou-­‐se   ao  estudo  da  aritmética,  da  astronomia,  da  música  e  da  medicina  dos  pitagóricos.  Tinha  intenção  de  visitar  a  Jónia  e  as  cidades  costeiras  do  mar  Egeu,  mas   a   guerra   com  a  Pérsia  demoveu-­‐o  dessa   ideia.  Em   Abdera   (localidade   que   se   situa   atualmente   perto   das  fronteiras   da  Grécia   com   a  Turquia   e   a   Bulgária   -­‐   antiga  Trácia),  travou  conhecimento  com  Demócrito  e  com  o  atomismo,  uma  das  mais  geniais  criações  da  filosofia  grega  antes  de  Platão.    

De   qualquer  modo,   o   sistema   de   Platão   é   uma   síntese   de   tudo   o  

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que   se   sabia   no   seu   tempo,   mas   sobretudo   das   doutrinas   de  Sócrates,   de  Heraclito,   de  Parménides   e   dos  Pitagóricos.  A   teoria  platónica   das   ideias   é   a   base   e   a   originalidade   de   todo   o   seu  sistema.    

Inicialmente,  Platão  tinha  estudado  a  doutrina  de  Heraclito  que  se  baseava   no   fluir   universal   das   coisas.   “Tudo   flui,   dizia   Heraclito,  nada   permanece.   O   mesmo   homem   não   entra   duas   vezes   no  mesmo   rio”.   Desta   ideia,   Platão   retira   a   consequência   de   que   os  seres,  que  se  encontram  em  perpétuo  devir,  dificilmente  merecem  o   nome   de   seres,   e   sobre   eles   só   podemos   formar   opiniões  confusas,   incapazes   de   se   justificar   a   si  mesmas.   Não   podem   ser  objeto  de  uma  verdadeira  ciência,  pois  não  não  há  ciência  do  que  está  em  perpétua  mudança;  só  há  ciência  do  que  é  fixo  e  imutável.  Todavia,   quando   observamos   atentamente   esses   seres   em  mutação  permanente,  damo-­‐nos  conta  de  que  reproduzem,  dentro  da  mesma  espécie,  características  constantes.  Estas  características  transmitem-­‐se   de   indivíduo   para   indivíduo,   de   geração   para  geração.   São,   portanto,   cópias   de   modelos   universais,   imutáveis,  eternos  a  que  Platão  dá  o  nome  de  Formas  ou  de  Ideias.  Na  nossa  linguagem   corrente,   entendemos   por   ideia   uma  modificação,   um  ato  do  espírito.  Na  linguagem  de  Platão,  a  Ideia  exprime,  não  o  ato  do   espírito   que   conhece,   mas   o   próprio   objeto   que   é   conhecido.  Assim,  a  Ideia  de  homem  é  a  forma  ideal  de  homem,  que  todos  os  homens  reproduzem  com  maior  ou  menor  perfeição.  Esta  forma  é  puramente  inteligível,   isto  é,  não  se  apreende  pelos  sentidos,  mas  nem   por   isso   deixa   de   ser   viva.   É   mesmo   o   único   ser  verdadeiramente   vivo,   pois   as   suas   cópias,   estando   sempre   em  mudança,   são  mortais.  A   Ideia  de  homem  é  aquilo  que  realmente  existe,  que  é  eterno  e   imutável  e,  por   isso,   é  aquilo  que  pode  ser  conhecido  e  ser  objeto  da  ciência.  

Platão   ilustrou   a   sua   teoria   das   Ideias   na   célebre   alegoria   da  caverna,   onde   os   homens   são   comparados   a   prisioneiros  acorrentados   que   não   podem   virar   a   cabeça   para   trás   e   que   só  vêem  na  parede  do  fundo  da  sua  prisão  (à  sua  frente)  as  sombras  

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projetadas   dos   objetos,   que   desfilam   por   trás   deles   iluminados  pela   luz   de   uma   fogueira.   Os   objetos   que   passam   por   trás   dos  prisioneiros  são  os  objetos  do  mundo   inteligível  (as   Ideias),  a   luz  que  os  ilumina  é  a  ideia  de  Bem,  origem  de  toda  a  ciência  e  de  toda  a  existência.  Reconhece-­‐se  aqui  a  doutrina  de  Parménides  (escola  Eleata),  para  quem  o  mundo  não  passa  de  aparência,  e  para  quem  a  única  realidade  é  a  Unidade.  Mas  enquanto,  para  Parménides,  o  Ser   uno   e   imutável   é   uma   abstração,   para   Platão,   é   o   Ser   por  excelência,  fonte  de  onde  brota  toda  a  vida.  

A  Ideia  do  Bem,  diz  Platão,  está  no  limite  do  mundo  inteligível:  é  a  última  e  a  que  ocupa  o  lugar  mais  alto;  admite,  em  todo  o  caso,  que  existe   uma   hierarquia   de   Ideias.   No   livro   X   da  República,   parece  aceitar  que  todos  os  objetos  da  natureza  e  as  criações  do  homem,  como   um   banco   ou   uma  mesa,   retiram   a   sua   existência   de   uma  Ideia   e   que   as   Ideias   são   em   número   indeterminado.   Mas,  habitualmente,  só  fala  das  Ideias  do  Belo,  do  Justo  e  do  Bem.    

A   teoria   das   Ideias   está   estreitamente   associada   à   doutrina   da  reminiscência  e  da  imortalidade  da  alma.  A  nossa  alma,  que  existiu  antes   de   nós   e   passará   para   outros   corpos   depois   de   nós,   já  conheceu   essas   Ideias,   mais   ou   menos   vagamente,   num   outro  mundo.  O  mito  do  Fedro  mostra-­‐nos  a  alma  a  subir  as  escadas  para  o  céu,  atrás  do  cortejo  dos  deuses,  para  ir  contemplar  as  Ideias  do  outro   lado   da   abóbada   celeste.   Ela   traz   de   lá   uma   lembrança  obscura  que   a   filosofia   se   esforça  por   esclarecer.   Este   esforço  de  esclarecimento   implica   um   treino   inicial   destinado   a   despertar   a  reflexão.    

As  ciências  que  se  caracterizam  pelo  raciocínio  puro,  a  aritmética,  a   geometria,   a   astronomia,   são   as   mais   indicadas   para   nos  familiarizar   com  o  mundo  do   inteligível.     A   dialética   surge   então  como   o   método   mais   eficaz.   Platão   parte   da   dialética   socrática,  espécie  de  conversa,  através  da  qual  se  busca  a  definição  de  uma  virtude.  Assim,   no  diálogo  Laques,   os   três   interlocutores,   Laques,  Nicias   e   Sócrates  procuram  definir   coragem.   Laques  propõe  uma  

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primeira  definição:  “O  homem  corajoso,  diz  ele,  é  o  que  se  mantém  firme   contra   o   inimigo”.   Sócrates   considera   esta   definição  muito  pobre,   pois   a   coragem   pode   ser   aplicada   em   muitas   outras  circunstâncias.   Laques   propõe,   então,   uma   nova   definição:   “A  coragem  é  uma  espécie  de  firmeza”.  Mas  se  essa  firmeza  se  basear  na   loucura   e   na   ignorância,   responde   Sócrates,   não   poderá  corresponder  à  coragem.  Por  seu  turno,  Nicias  diz  que  a  coragem  é  a   ciência   que   nos   permite   distinguir   aquele   que   devemos   temer  daquele   de   quem   não   precisamos   de   ter  medo.   A   esta   definição,  Sócrates   apresenta   outra   objeção.   Se   a   coragem   é   uma   ciência,  então   deve   ser   a   ciência   de   todos   os   bens   e   de   todos   os   males;  nesse   caso,   essa   definição   aplicar-­‐se-­‐ia   à   virtude   em   geral   e   não  especificamente   à   coragem.   A   partir   daqui   os   três   interlocutores  separam-­‐se   sem   alcançarem   a   definição   procurada.   Mas   dá   para  perceber  o  processo  que,  de  uma  proposição,  passa  a  outra  mais  compreensiva,  até  que  se  chegue  à   ideia  geral  que  compreenderá  todos  os   casos   e   distinguir-­‐se-­‐á  das   ideias   vizinhas.   Platão   aplica  este  método   socrático   ao   domínio   das   Ideias,   para   as   alcançar   a  elas,   subindo  das   Ideias   inferiores   até   à   Ideia   do  Bem.  Temos  de  começar   por   uma   hipótese   a   respeito   do   objeto   estudado.   Essa  hipótese   é   verificada   pelas   conclusões   a   que   conduz.   Se   as  conclusões  forem  insustentáveis,  a  hipótese  é  rejeitada.  Uma  outra  hipótese  toma  o  seu  lugar,  sujeitando-­‐se  ao  mesmo  procedimento,  até   que   se   encontre   uma   que   resista   ao   exame   da   sua  sustentabilidade.   Cada   hipótese   é   um   degrau   que   nos   conduz   à  Ideia.  Quando  tivermos  examinado  deste  modo  todos  os  objetos  de  conhecimento,   alcançaremos   todos   os   princípios   (arkai)  incontestáveis,   não   somente   em   si  mesmos,  mas   também  na   sua  mútua  dependência  e  na  relação  que  têm  com  o  princípio  superior  e  absoluto  que  é  a  Ideia  de  Bem.  O  diálogo  Parménides  fornece-­‐nos  um   exemplo   deste   procedimento.   Este   procedimento   exige   uma  inteligência  superior  e  um  trabalho  incansável,  de  que  só  o  filósofo  é  capaz.  

Mas   a   dialética   não   é   suficiente   para   compreendermos   todas   as  coisas.   Há   segredos   impenetráveis   para   a   razão,   cuja   posse   os  

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deuses  reservaram  para  si  mesmos.  Podem,  é  verdade,  deixar  que  alguns   homens   privilegiados   tenham  uma   visão   desses   segredos,  sem   lhes   dar   o   privilégio   de   os   alcançar   plenamente.   Os   deuses  permitem,   por   exemplo,   que   os   adivinhos   conheçam,   embora  imperfeitamente,  o  futuro  e  que  os  artistas  tenham  inspirações;  é  o  caso  de  Sócrates,  a  quem  os  deuses  favoreceram,  com  informações  privilegiadas.  Assim,  talvez  se  verifiquem,  nos  poetas  e  nas  crenças  populares,   traços  de  uma  revelação  divina,  que  lançariam  alguma  luz   sobre   as   nossas   origens   e   o   nosso   destino   após   a   morte.   Os  Egípcios  acreditavam  que  os  homens  são  julgados  pelos  seus  atos  após   a  morte,   e   os   Pitagóricos   acreditavam  que   a   alma   passa   do  corpo  de  um  animal  para  o  de  um  outro.  Platão  não  desprezou  a  recolha  destas  crenças,  mas  recusou-­‐se  a  dá-­‐las  como  certas.  Para  ele,   são   esperanças   ou   sonhos   que   ele   expõe   em   mitos   de   uma  poesia  sublime.  A  sua  imaginação  transmite-­‐lhes  um  brilho  mágico  e  sugere  pormenores  tão  precisos,  que  se  diria  que  Platão  assistiu  aos   mistérios   do   Além.   Encontrou   nesse   Além   limbos,   um  purgatório   e   um   inferno   eterno   reservado   à   almas   incorrigíveis.  Estas   visões   extraordinárias   impressionaram   de   tal   modo   os  espíritos   do   seu   tempo   e   dos   tempos   seguintes   que   os   cristãos,  modificando-­‐as  um  pouco,  fizeram  delas  dogmas  religiosos.  

 

 

 

 

 

 

 

 

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A Psicologia

A   psicologia   de   Platão   é   marcada   por   características  profundamente   espiritualistas.   A   alma   é   eterna.   Antes   de   se   unir  ao   corpo,   contemplou   as   Ideias   e,   graças   à   reminiscência,   pode  reconhecê-­‐las   depois   de   ter   incarnado   num   corpo.   Devido   à  coabitação  com  a  matéria,  a  alma  perde  a  sua  pureza  e  adquire  três  componentes  diferentes:    

• uma   componente   superior,   ou   a   razão,   faculdade  contemplativa,   destinada   a   governar   e   manter   a   harmonia  entre  ela  e  as  duas  componentes  inferiores,      

• a  coragem,  faculdade  nobre  e  generosa  que  inclui  ao  mesmo  tempo  desejos  elevados  da  nossa  natureza  e  a  vontade,      

• o   instinto   e   o   desejo   que   atraem   os   homens   para   objetos  sensíveis  e  para  desejos  grosseiros.    

O   ponto   mais   fraco   desta   conceção   é   a   reduzida   valorização   da  vontade   livre.   Platão   defende,   tal   como   Sócrates,   que   o  conhecimento   do   bem   implica   a   adesão   da   vontade,   o   que  dificilmente   se   compagina   com   a   experiência.   Platão   tentou  estabelecer   os   princípios   que   regem   a   sobrevivência   da   alma  através   de   demonstrações   dialéticas,   e   expôs   no   Górgias,   na  República  e  no  Fédon  as  migrações  e  as  purificações  a  que  alma  é  submetida,   antes   de   voltar   à   terra   e   entrar   num   novo   corpo.   O  

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detalhe  destas  descrições  varia,  no  entanto,  de  obra  para  obra.  

 

A Política

A  política   de   Platão   é  modelada   pela   sua   psicologia,   pois,   no   seu  entender,  os  costumes  do  Estado  são  necessariamente  modelados  pelos  dos  indivíduos.  A  base  fundamental  do  Estado  é  a   justiça:  o  Estado   não   pode   existir   sem   justiça.   Platão   entende   a   justiça   de  uma  forma  mais  ampla  do  que  aquela  que  é  habitual  para  a  maior  parte   das   pessoas.   Para   um   grande   número   de   pessoas,   a   justiça  consiste   em   dar   a   cada   um   o   que   é   seu.   Sócrates   rejeita   esta  definição   no   primeiro   livro   da   República.   Para   ele,   ao   nível  individual,   a   justiça   consiste   em   que   cada   componente   da   alma  cumpra   a   função   que   lhe   é   própria:   que   o   desejo   se   submeta   à  coragem  e  que  a  coragem  se  submeta  à  razão.  O  mesmo  se  passa  ao   nível   da   cidade.   Esta   é   constituída   por   três   tipos   de   cidadãos  que  correspondem  às  três  componentes  da  alma:    

• os  magistrados  filósofos  que  representam  a  razão;    

• os   guerreiros   que   representam   a   coragem   e   que   são  encarregados  de  proteger   o  Estado  dos   inimigos   externos   e  de  fazer  os  cidadão  obedecer  às  leis  do  Estado;    

• finalmente,   os   trabalhadores,   os   artesãos   e   os   comerciantes  que  representam  o  instinto  e  o  desejo.    

Para  estes  três  tipos  de  cidadãos,  a  justiça  consiste,  tal  como  para  os  indivíduos,  em  cumprir  a  sua  função  específica.  Os  magistrados  governam,   os   guerreiros   obedecem   aos  magistrados,   e   os   outros  obedecem   aos   dois;   deste   modo,   reinará   a   harmonia,   isto   é,   a  justiça   entre   as   três   categorias   de   cidadãos.   A   educação   deve  preparar   os   magistrados,   os   guerreiros   e   os   auxiliares   para   o  exercício  das   suas   futuras   funções,   sendo   também  um  meio  para  determinar   as   características   que   definem,   em   cada   um,   a  

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categoria   social   a   que   deve   pertencer.   Tal   como   os   homens,   as  mulheres  também  devem  beneficiar  dessa  educação,  uma  vez  que,  segundo   Platão,   elas   são   tão   aptas   como   os   homens.   Assim,   as  mulheres   devem   poder   aceder   aos   mesmos   cargos   dos   homens  incluindo   a   função   de   guerreiro.   Os   magistrados   devem   ser  escolhidos  de  entre  os  mais  dotados,  que  tenham  evidenciado  uma  maior  dedicação  ao  bem  público.  Devem  ser  formados  na  dialética,  para   que   possam   contemplar   as   Ideias   e   governar   o   Estado   de  acordo   com   a   Ideia   de   Bem.   Importa   esclarecer   que   estas   três  categorias,  ou  classes,  não  correspondem  a  castas  ou  a  privilégios  transmitidos   de   geração   em   geração;   pelo   contrário,   as   crianças  são   encaminhadas   para   uma   ou   para   outra   categoria,   de   acordo  com   as   aptidões   que   revelem   possuir   durante   o   processo   de  formação,  e  não  de  acordo  com  os   recursos  ou  estatuto  social  da  sua  família.  

Por   outro   lado,   o   Estado   deve   ser   de   dimensão   reduzida.   Na  verdade,  Platão  considerava  que  o  pior  perigo  para  o  Estado  seria  a   sua   divisão   interna.   Por   isso,   não   acredita   na   viabilidade   da  justiça  em  Estados  de  grande  dimensão,  do  tipo  do  império  Persa,  como  defendia  Xenofonte.  O  seu  modelo  de  Estado  eram  as  cidades  gregas.  Um  Estado  pequeno  não  corre  o  risco  de  se  dividir  com  a  mesma   facilidade   de   um   grande   Estado,   formado   por   povos  diferentes,   e   facilita   também   a   supervisão   dos  magistrados.   Para  evitar  a  divisão,  o  pior  dos  males  de  que  sofriam  as  cidades  gregas,  deveriam  ser  suprimidos  os  inimigos  mais  temíveis  da  unidade:    

• o  interesse  pessoal,  e    

• o  espírito  de  família.    

O  interesse  pessoal  seria  suprimido  através  do  estabelecimento  da  comunidade   de   bens,   e   o   espírito   de   família   através   da  comunidade   das   mulheres   e   das   crianças,   que   deveriam   ser  educadas   pelo   Estado.   No   entanto,   esta   comunidade   de   bens,   de  mulheres  e  de  crianças  não  deveria  abranger  todo  o  povo;  só  seria  regra   para   as   duas   ordens   superiores,   as   únicas   capazes   de  

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compreender   o   valor   dessa   comunidade   e   submeter-­‐se   a   ela   em  nome   do   bem   público.   Por   outro   lado,   os   casamentos   não  poderiam   ser   deixados   ao   critério   dos   jovens:   sendo   efémeros  como   a   experiência   dizia   que   eram,   seria   da   competência   dos  magistrados  regulá-­‐los  oficial  e  solenemente.    

Platão   não   tinha   quaisquer   dúvidas   a   respeito   da   dificuldade   em  pôr  em  prática  o  seu  sistema.  Ele  sabia  que  a  doutrina  das  Ideias,  em  que  ele  se  baseava,  era  incompreensível  para  a  multidão  e  que,  por  conseguinte,  a  sua  Constituição  teria  de  ser  imposta  à  maioria  do   povo,   mesmo   que   fosse   contra   a   sua   vontade,   e   que   essa  imposição  só  seria  eficiente  se  fosse  conduzida  por  um  rei  filósofo,  e  filósofo  à  maneira  de  Platão.  Houve  um  momento  em  que  parece  que   ele   acreditou   encontrar   esse   rei   filósofo   em   Dionísio   de  Siracusa,   o   jovem,   e   no   seu   amigo  Deão.  O   seu   fracasso   junto   do  primeiro,   e   o   assassinato   do   segundo,   depois   de   ter   usurpado   o  poder   a   Dionísio,   retiraram-­‐lhe   todas   as   ilusões.   Mas   a   política  tinha  sido  sempre  uma  das  preocupações  dominantes  de  Platão.  Já  velho,   volta  a  pegar  na  pena  para   redigir  uma  nova  Constituição,  que   expôs   em   As   Leis.   Esta   nova   Constituição   baseia-­‐se   nos  mesmos   princípios,   mas   é   mais   prática   e   abdica   da   comunidade  dos  bens,  das  mulheres  e  das  crianças.  

 

 

 

 

 

A Moral

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A  moral   de   Platão   tem   um   caráter,   ao  mesmo   tempo,   ascético   e  intelectual.  Platão  reconhece,  tal  como  Sócrates,  que  a  felicidade  é  o  fim  natural  da  vida;  mas,  ao  nível  dos  prazeres,  de  que  depende  a  felicidade,  há  a  mesma  hierarquia  que  caracteriza  as  componentes  da  alma.  Cada  componente  da  alma  dá-­‐nos  um  prazer  específico:    

• a  razão,  o  prazer  de  conhecer;    

• a  coragem,  as  satisfações  da  ambição;    

• o   desejo,   os   prazeres   grosseiros   a   que   Platão   chamou   o  prazer  do  lucro.    

Para   determinar   qual   destes   três   prazeres   é   superior,   basta  consultar   aqueles   que   têm   experiência   deles.   Ora,   o   artesão,   que  procura  o  lucro,  não  conhece  os  outros  dois  prazeres;  o  ambicioso,  por  seu  turno,  não  conhece  o  prazer  da  ciência;  só  o  filósofo  tem  a  experiência  dos  três  tipos  de  prazer  e,  por  isso,  é  o  único  capaz  de  ter   opinião   fundamentada   sobre   todos.   Nesta   linha   de  pensamento,   aos   seus   olhos,   o  maior   e   o  mais   puro   de   todos   os  prazeres  é  o  prazer  de  conhecer  próprio  do  filósofo.    

Por   outro   lado,   uma   vez   que   ele   considera   que   o   corpo   é   um  empecilho  da  alma,  que  é  como  um  objeto  de  chumbo  que  dificulta  e   impede   mesmo   que   a   alma   voe   para   as   regiões   superiores   da  Ideia,   é   necessário   mortificá-­‐lo   e   libertar   a   alma,   tanto   quanto  possível,   das   necessidades   grosseiras   que   têm   origem   no   corpo.  Assim,   a   virtude   consiste  na   submissão  dos  desejos   inferiores   ao  desejo   de   conhecer,   ao   gosto   ou   amor   pela   sabedoria   (filosofia).  Conhecendo  o  bem,  o  homem  é  naturalmente  virtuoso,  pois  não  é  possível   vê-­‐lo   sem   o   desejar;   o   vício   tem   sempre   origem   na  ignorância.   Embora   Platão   reduza   a   ignorância   a   um   erro   de  cálculo,   ou   a   um   erro   de   dialética,   nem   por   isso   deixa   de   a  considerar   suscetível  de   ser  punida.  O  mau,   segundo  ele,   deveria  submeter-­‐se,   a   si   mesmo,   a   expiar   a   sua   ignorância.   Em   todo   o  caso,   se   escapar   neste   mundo,   não   escapará   no   outro,   pensava  Platão.  

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A Estética

A   estética   de   Platão   depende   da   teoria   das   Ideias   e,   também,   da  moral  e  da  política,  elas   igualmente  modeladas  pela  doutrina  das  Ideias.  Com  efeito,  as  Ideias  são  imutáveis  e  eternas.  Uma  vez  que  é  nosso   dever   regularmo-­‐nos   por   elas,   as   artes   serão,   tal   como   as  Ideias,   imutáveis  e  estabelecidas  para  sempre.  Platão  não  prevê  a  necessidade  de  qualquer  tipo  de  inovação,  nem  na  poesia,  nem  nas  artes   em   geral.   Uma   vez   alcançado   o   ideal,   deveremos   fixar-­‐nos  nele   ou   recopiá-­‐lo   permanentemente.   Por   outro   lado,   a   única  função  da  arte  é   servir  a  moral  e  a  política.   “Nós  obrigaremos  os  poetas,  diz  Platão,  a  só  oferecer  nos  seus  poemas  modelos  de  bons  costumes,  e,  do  mesmo  modo,   controlaremos  os  outros  artistas  e  impedi-­‐los-­‐emos  de  imitar  o  vício,  a  intemperança,  a  baixeza,  seja  na  pintura  de  seres  vivos,  seja  em  qualquer  outro  tipo  de  imagem,  ou,  se  não  conseguirem  proceder  de  outro  modo,  proibi-­‐los-­‐emos  de   trabalhar   na   nossa   cidade.”   Em   resultado   destes   princípios,  Platão  proíbe  todos  os  tipos  musicais  que  não  respeitem  os  estilos  dório   e   frígio,   os   únicos   que   convêm   à   seriedade   dos   guerreiros.  Proíbe   a   tragédia,   cuja   tendência   para   o   queixume   poderia  amolecer  o  coração;  proíbe  a  comédia  humorística  (a  bobice)  e  até  o  riso,  que  condiz  mal  com  a  seriedade.  Critica  o  próprio  Homero,  de  quem  ele   tanto  gosta,   cujos  poemas  conhece  de  cor  e  que  cita  vezes   sem   conta,   por   não   achar   graça   à   descrição   que   faz   dos  deuses  como  se  fossem  tão  imorais  como  os  homens.  Depois  de  o  ter   “coroado   com   flores”,   Platão   acaba   por   condenar   Homero   ao  silêncio   na   sua   República.   Em   todo   o   caso,   os   mais   desprezíveis  para  ele   são  os  pintores  e  os  escultores.  Como  as   suas  obras  não  passam   de   cópias   incompletas   dos   objetos   sensíveis,   e   estes   são  cópias   imperfeitas  das   Ideias,   segundo  Platão,  elas  distanciam-­‐se,  em   três   degraus,   da   verdade;   esses   artistas   são,   portanto,  ignorantes,  inferiores  mesmo  aos  artesãos  que  fabricam  os  objetos  

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reais,   cuja   distância   à   verdade   é   de   dois   degraus.   Por   outras  palavras,   quem   pudesse   ser   Aquiles   não   quereria   ser   Homero:  mais   vale   ser   herói   do   que   ser   relator   da   heroicidade   de   quem  quer   que   seja.   Portanto,   os   poemas   de   Homero   situam-­‐se   a   um  nível  inferior  ao  da  vida  real  de  Aquiles  que  eles  relatam.  É  este  o  tipo  de  raciocínio,  coerente,  que  Platão  utiliza  para  a  sua  conceção  de  estética.  Levando  este  raciocínio  ao   limite,  seria   legítimo  dizer  que  um  sapateiro  que  criticasse  Fídias  seria  superior  a  este  grande  escultor,  ou  a  Apeles,  um  dos  mais  importantes  pintores  da  Grécia  clássica.    

Esta   conceção   de   estética   mostra   bem   até   onde   o   espírito   de  sistema,   ou   a   busca   de   coerência   a   todo   o   custo,   conduz   um  homem,  como  Platão,  que  foi,  ele  próprio,  um  dos  maiores  artistas  da  humanidade,  pela  beleza  dos  seus  escritos.  

A Física e o Demiurgo

No  Timeu,  Platão  fornece  a  sua  explicação  do  Universo  em  geral  e  do   Homem   em   particular.   Nessa   obra   condensou   os  conhecimentos  da  sua  escola  sobre  a  natureza.  

Segundo  ele,  existe  um  Deus  muito  bom  que  criou  o  mundo  à  sua  imagem.   Não   o   criou   do   nada,   como   o   Deus   dos   judeus   e   dos  cristãos,  pois  sempre  coexistiram  ao  seu  lado  duas  substâncias  (a  alma  incorpórea  e  indivisível  e  a  outra  material  e  divisível),  a  que  a  filosofia  grega  chama  O  Uno  ou  O  Mesmo,  e  O  Outro.    O  Demiurgo  (o  Deus)   criou,   em   primeiro   lugar   o   mundo   sensível.   A   partir   da  substância   indivisível   e   da   substância   divisível   compôs,  misturando-­‐as,   uma   terceira   substância   intermédia   que   inclui   a  natureza   do   Uno   e   a   natureza   do   Outro:   a   alma   do   mundo   é  formada  por  estas  três  substâncias  (as  duas  originais  e  a  terceira  criada  por  Deus).  Com  o  mundo  nasceu  também  o  tempo  que  é  a  medida   do   movimento   dos   astros.   Para   povoar   o   mundo,   o  Demiurgo   criou,   em   primeiro   lugar,   os   deuses   (astros   ou   deuses  mitológicos)  e  encarregou-­‐os  a  eles  de  criar  os  animais,  para  não  

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ser   responsável   pelas   suas   imperfeições.   Os   deuses   formaram   o  corpo   dos   seres,   tendo   em   vista   o   maior   bem;   aplicaram   na  formação   desses   corpos   leis   geométricas   muito   complexas.   No  corpo   do   homem   colocaram   também   uma   alma,   que,   tendo   em  conta   a   forma   como   conduza   a   sua   vida,   se   bem,   após   a   morte  voltará   para   o   astro   de   onde   é   originária,   se   mal,   passará   para  outros  corpos  até  que  seja  purificada.  Platão  só  se   interessa  pelo  destino   do   homem,   e   é   por   se   interessar   pelo   homem   que   ele  estuda   o   Universo.   Por   conseguinte,   a   fisiologia   e   a   higiene   do  homem  são  o  principal  objeto  do  Timeu:  a  estrutura  do  corpo,  os  órgãos,  a  origem  das  impressões  sensíveis,  as  causas  das  doenças  do   corpo   e   da   alma,   a   geração,   a  metempsicose.   Platão   tratou  de  todos  estes  assuntos,  utilizando  os  ensinamentos  de  Empédocles  e  do  médico   Alcméon,   acrescentando   as   descobertas   realizadas   na  sua  escola.  

Sendo  o  Timeu  uma  das  últimas  obras  de  Platão,  acontece  que  nem  sempre   está   de   acordo   com   obras   anteriores.   A   diferença   mais  importante  tem  a  ver  com  o  facto  de  o  Deus  do  Timeu  ser  distinto  do  mundo  das  Ideias  que  lhe  servem  de  modelos  para  a  formação  do  mundo  sensível.  Na  República,  pelo  contrário,  é  a  Ideia  de  Bem  que  é  a  fonte,  não  só  de  todo  o  conhecimento,  mas  também  de  toda  a   existência.   É   a   Ideia   de  Bem  que   corresponde   a  Deus.   Segundo  Teofrasto,   Platão   tinha   tendência  para   identificar   a   Ideia  de  Bem  com  o  Deus   supremo;  mas   parece   claro   que   Platão   não   levou   ao  limite   esta   sua   tendência,   e   o   seu   pensamento   sobre  Deus   acaba  por  ser  flutuante.  

Influência do Platonismo

A   teoria   essencial   em   que   se   baseia   toda   a   filosofia   de   Platão,   a  teoria   das   Ideias,   foi   rejeitada   pelo   seu   discípulo   Aristóteles;   o  simples   bom   senso   bastaria,   aliás,   para   a   refutar.   Discípulo   dos  Eleatas,  para  quem  só  o  Uno  existia,  e  dos  Pitagóricos,  que  viam  no  número   o   princípio   das   coisas,   Platão   concedeu   uma   existência  real   a   conceitos   abstratos   que   só   existem   no   nosso   espírito.  

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Formado  nos   raciocínios  matemáticos,   aplicou-­‐os   intrepidamente  às  noções  morais,  ao  Uno,  ao  Ser,  ao  Bem,  à  Causa.  Acreditou  estar  a   dar   sentido   à   realidade   através   dos   seus   raciocínios,   mas   na  verdade   só   dava   sentido   a   abstrações.  Mas  mesmo   que   as   ideias  não   tenham   uma   existência   independente,   basta   que   estejam   no  nosso  espírito  como  um  ideal,  para  que  nos  possamos  orientar  por  elas.  É  por  isso  que  Platão,  separando-­‐nos  do  mundo  sensível  para  nos   elevar   ao   ideal   inteligível,   ainda   nos   dias   de   hoje   exerce   um  poderoso  fascínio  sobre  os  seus  leitores.  Ninguém  falou  do  bem  e  do  belo   com  um  entusiasmo   tão   comunicativo.  A   vida  que   vale   a  pena  ser  vivida,  diz  ele  no  Banquete,  é  a  do  homem  que  se  elevou  do  amor  aos  corpos  belos,  ao  amor  às  almas  belas,  e  deste,  ao  amor  às  belas   ações,   e  depois,   ao  amor  das  belas   ciências,   até   à  beleza  absoluta   que   atravessa   os   corações   com   um   arrebatamento  inexprimível.  

Uma   multidão   de   ideias   platónicas   exerce   ainda   uma   influência  muito   considerável   no   mundo   moderno.   Platão   é   um   autor  espiritualista:   concebeu   a   alma   como   o   essencial   do   homem.  Segundo  ele,  o  homem  deve  esforçar-­‐se  por  devolver  à  sua  alma  o  estado  de  pureza  que  ela  perdeu  ao  unir-­‐se  com  o  corpo.  É  deste  esforço  que  depende  a  sua  vida  futura.  A  vida  deve,  portanto,  ser  uma   preparação   para   a   morte.   A   existência   de   uma   Providência  que   governa   o   mundo,   a   necessidade   de   expiação   de   toda   a  maldade   cometida,   a   recompensa   dos   bons,   a   punição   dos  maus  num  outro  mundo   e  muitas   outras   ideias   foram   incorporadas  na  filosofia  cristã  e  continuam  a  comandar  a  nossa  conduta.  Por  este  motivo,   podemos   dizer   que   nenhum   outro   filósofo   marcou   tão  profundamente   o   pensamento   dos   antigos   e   o   pensamento   dos  modernos.    

   

 

 

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O  Teeteto  

Argumento

 

O  debate  que  é  travado  no  Teeteto  é  precedido  de  uma  espécie  de  prólogo.   É   uma   conversa   entre   dois   megarianos   (habitantes   de  Mégara),   antigos   discípulos   de   Sócrates,   Euclides   e   Terpsion.  Euclides,  tendo  ido  ao  porto  de  Mégara,  encontrou  lá  Teeteto,  que  estava  a  ser  transportado,  doente  e  ferido,  do  campo  de  batalha  de  Corinto   para   Atenas.   Que   perda   -­‐   exclama   Terpsion   -­‐   se   este  grande   sábio   e   valente   soldado   vier   a  morrer!   Ele   justificou,   diz  Euclides,   o   augúrio   de   Sócrates,   que   lhe   tinha   predito   um   futuro  glorioso.  Com  efeito,  Sócrates,  pouco  antes  de  ter  sido  condenado,  tinha  conhecido  Teeteto  e  tinha  tido  com  ele  uma  conversa,  onde  a  precoce  inteligência  do  ainda  jovem  Teeteto  o  tinha  surpreendido.  Será   que   podes,   pergunta   Terpsion,   relatar-­‐me   essa   conversa?.   -­‐  Não,  mas  redigi  um  relato  que  Sócrates  me  fez  dela.  Só  que,  em  vez  de   conservar   a   forma   de   narrativa,   construí   um   diálogo   entre  Sócrates   e   os   seus   dois   interlocutores,   Teodoro   e   Teeteto.  Voltemos   para   casa   que   o  meu   escravo   far-­‐nos-­‐á   a   leitura   desse  diálogo.  

Sócrates   abre   a   conversa.   Diz-­‐me   Teodoro,   tu   que   ensinas   aqui  geometria,   se   distinguiste,   de   entre   os   teus   alunos   atenienses,  alguns   jovens   que  prometam   tornar-­‐se   homens  de  mérito.   -­‐   Sim,  Sócrates,  um  em  particular.  Ele  é  fisicamente  parecido  contigo  e  é  maravilhosamente  dotado  de  inteligência  e  de  qualidades  morais.  

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Ali  vem  ele,  com  aqueles  jovens  que  se  aproximam  de  nós.  Chama-­‐se   Teeteto.   -­‐   Queres   dizer-­‐lhe   que   venha   aqui?   Chamado   por  Teodoro,  Teeteto  aproxima-­‐se.  -­‐  Uma  vez  que  aprendes  as  ciências  na  escola  de  Teodoro,  diz-­‐lhe  Sócrates,  poderias  dizer-­‐me  em  que  consiste   a   ciência?   -­‐   A   ciência   é   aquilo   que   Teodoro   ensina,   a  geometria,  a  astronomia,  a  harmonia,  o  cálculo  e  as  artes  em  geral.    -­‐  Desse  modo,  não  estás  a  definir  a  ciência,  mas  os  seus  objetos.  Se  eu  te  perguntasse  o  que  é  o  barro  e  tu  me  respondesses:  há  barro  dos  oleiros,  o  barro  dos  tijolos  e  outros,  eu  não  ficaria  a  saber  nada  sobre  a  natureza  do  barro.  O  que  era  preciso  que  me  dissesses  é  que   o   barro   é   um   certo   tipo   de   terra   misturada   com   água.   -­‐  Compreendo,   diz   Teeteto:   o   que   tu   me   perguntas,   foi   o   que   nós  fizemos  há  uns  dias  atrás,  o   jovem  Sócrates  e  eu,  a  propósito  das  raízes.   Sendo   as   raízes   infinitas   em   número,   tentámos   juntá-­‐las  todas   num   termo   único,   e   reconhecemos   assim   duas   classes   de  números,   a  que   chamámos   comprimentos   e   raízes.   -­‐   Perfeito,   diz  Sócrates.   E   agora,   uma   vez   que   englobaste   todas   as   raízes   numa  forma   única,   tenta   fazer   o  mesmo   com   as   numerosas   formas   de  ciência.    -­‐  Já  tentei  várias  vezes,  mas  sem  sucesso.  No  entanto,  não  consigo   desinteressar-­‐me   da   questão.   -­‐   É   porque   tens   uma   alma  grande,   Teeteto.   Bom,   não   ouviste   dizer   que   sou   filho   de   uma  parteira,  e  que  tenho  a  arte  de  fazer  dar  à  luz  os  espíritos,  como  a  parteira   de   fazer   dar   à   luz   as  mulheres?   Sei   ainda   discernir   se   o  espírito  de  um   jovem  está  a  dar  à   luz  uma  quimera,  ou  um   fruto  real  e  verdadeiro.  Confia,  portanto,  em  mim  e  não  te  aflijas  se,  ao  examinar   aquilo   que   dizes,   o   julgar   como   um   fantasma   sem  realidade.  

A   partir   daqui,   entramos   no   tema   central   do   Teeteto:   o   que   é   a  ciência?   Teeteto   vai   propor   sucessivamente   três   definições   que  serão  examinadas  e  recusadas  por  Sócrates  uma  após  outra:  

• A  ciência  é  a  sensação;  

• A  ciência  é  a  opinião  verdadeira;  

A  ciência  é  a  opinião  verdadeira,  acompanhada  de  razão.  

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A Ciência é Sensação

 

A   primeira   definição,   sozinha,   ocupa  mais   tempo  de   conversa  do  que   as   outras   duas   juntas.   A   razão   é  mais   simples   do   que   possa  parecer:  é  que  esta  definição  relaciona-­‐se  com  doutrinas  célebres  que   Sócrates   expõe   com   todo   o   seu   vigor   antes   de   as   refutar.   A  doutrina,   segundo   a   qual   a   ciência   é   sensação,   é   precisamente   a  teoria  de  Protágoras,  que  diz  que  o  homem  é  a  medida  de  todas  as  coisas,   isto  é,  que  se  algo  me  aparece,  ele  é  exatamente  esse  algo  para  mim,   e   se   algo   aparece   a   outro,   ele   é   exatamente   esse   algo  para   o   outro.   Como   aparecer   é   ser   sentido   por   alguém,   então   a  sensação  é  a  ciência.  

Em  que  é  que  se  apoia  esta  teoria  de  Protágoras?  Na  doutrina  de  Heraclito  de  que  tudo  está  em  movimento,  de  que  nada  é  fixo,  de  que   tudo   flui.   As   bases   desta   teoria   remontam   a   Homero   e   é  seguida   por   todos   os   sábios,   à   exceção   de   Parménides   e   da   sua  escola   (Eleata).  É  a  partir  do  movimento  e  da  mistura   (ou   fusão)  

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recíproca  que  se  formam  todos  os  seres  que  afirmamos  existirem;  por  seu  turno,  a  ausência  de  movimento  (o  repouso)  destrói-­‐os.  Os  seres   não   existem   por   si  mesmos:   a   cor   não   é   algo   que   exista   à  parte   de   tudo   o   resto;   com   efeito,   não   é   nem   uma   característica  que  se  aplica  ao  objeto,  nem  o  objeto  ao  qual  essa  característica  é  aplicada,  mas   um   produto   intermédio   específico   a   cada   coisa   ou  indivíduo;  esse  produto  varia  não  só  de  indivíduo  para  indivíduo,  mas   também   no   mesmo   indivíduo,   porque   este   está   em  permanente  mudança.  

Como   é   costume   em   Sócrates,   ele   não   vai   limitar-­‐se   a   expor   a  teoria   que   critica;   pelo   contrário,   aprofunda   e   completa   essa  mesma   teoria,   assumindo   completamente   a   perspetiva   do  adversário.  Sócrates  empenha-­‐se,  portanto,  em  demonstrar  que  só  o   movimento   existe.   Vejamos   a   sua   explicação.   Há   dois   tipos   de  movimento,  sendo  cada  um  em  número  infinito.  Um  deles  consiste  numa   força   ativa,   o   outro   é   uma   força   passiva.   Da   sua   união   e  fricção  mútuas  nascem  proles  em  número   infinito,  mas  em  pares  gémeos  que  estão  sempre  unidos:  um  é  o  objeto  da  sensação,  e  o  outro  a  sensação.  Tudo  está  em  movimento;  mas  este  movimento  pode  ser  rápido  ou   lento.  Tudo  o  que  é   lento  move-­‐se  no  mesmo  lugar   ou   em   direção   a   objetos   vizinhos,   e   é   assim   que   esse  movimento   é   gerador   da   realidade.   Quando   os   olhos   e   algum  objeto,  suscetível  de  ser  visto,  geram  a  brancura  e  a  sensação  que  lhe   é   específica   por   natureza,   acontece   que   a   visão   que   vem  dos  olhos   e   a   brancura  que   vem  do  objeto   (que   se   concertaram  para  gerar   a   cor   branca)   se   movem   no   espaço   intermédio   (e  intermediário);   deste   modo,   o   olho   preenche-­‐se   de   visão   e  transforma-­‐se,  não  numa  visão,  mas  em  olho  vidente  (olho  que  vê).  Do   mesmo   modo,   o   objeto   que   concorreu   com   o   olho   para   a  produção   da   cor,   enche-­‐se   de   brancura   e   transforma-­‐se,   não   em  brancura,   mas   em   objeto   branco,   seja  madeira   branca,   ou   pedra  branca,   por   exemplo.  O  mesmo   se  passa   com  o   frio   e   o   quente   e  com  outras   qualidades.   Nada   é   isto   ou   aquilo   em   si   e   por   si:   é   a  partir  das  suas  aproximações  mútuas  que  todas  as  coisas  nascem  do  movimento   sob   formas   de   todo   o   género.   É   assim   impossível  

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conceber   o   elemento   ativo   e   o   elemento   passivo   como   existindo  separadamente,   pois   não   existe   elemento   ativo   antes   de   se  associar   ao   elemento   passivo,   nem  elemento   passivo   antes   de   se  unir   ao   elemento   ativo;   por   outro   lado   aquilo   que,   numa   certa  união,  é  agente,  numa  outra  poderá  ser  paciente   (passivo).  Desta  conceção   resulta   que   nada   é   em   si   e   que   devemos   extinguir   a  palavra  ser.  

As   objeções   a   este   sistema   usam,   frequentemente,   o   argumento  dos   sonhos,   das   doenças,   da   loucura   e   das   ilusões   dos   sentidos.  Mantendo   a   sua   postura   de   defender   convictamente   aquilo   que  quer   criticar,   Sócrates   continua,   contestando   inicialmente   esses  argumentos.   Com   efeito,   pode   responder-­‐se   que   a   sensação,  durante  o  sonho,  existe  tanto  para  aquele  que  sonha,  quanto  existe  a   sensação   para   aquele   que   está   acordado;   que   a   sensação   de  Sócrates  doente  continua  a  ser  tão  verdadeira  para  ele  quanto  o  é  quando  está  de  boa  saúde.  O  único  juiz  da  sensação  é  aquele  que  a  experiencia.  É  por  isso,  precisamente,  que  a  sensação  é  a  ciência.  

Após   um   curto   intervalo   na   exposição   e   defesa   da   doutrina   da  sensação,  em  que  anuncia  que  vai  examinar  com  cuidado  o  recém-­‐nascido  de  Teeteto  (a  doutrina  da  sensação),  e  em  que  Teodoro  o  exorta  a  dizer  o  que  realmente  pensa  dela,  Sócrates  desfere  duas  críticas   fulminantes   a   Protágoras:   “Porque   é   que   Protágoras  considera  o  homem  a  medida  de  todas  as  coisas,  de  preferência  ao  porco  ou  ao  macaco,  que  são,  eles  também,  seres  com  sensações?  E  se   cada   um   é   a  medida   da   sua   própria   sabedoria,   em   que   é   que  Protágoras   se   pode   considerar   mais   sábio   do   que   os   outros?”  Incomodado   por   ver   assim   maltratado   o   seu   amigo   Protágoras,  Teodoro  pede  que  seja  Teeteto  a  responder  a  Sócrates.  

-­‐  Vejamos,  Teeteto,  diz  Sócrates,  não  te  surpreende  veres-­‐te   igual  em   sabedoria   a   qualquer   homem   ou   a   qualquer   deus?   -­‐   Sim,  responde  Teeteto.  -­‐  Vejamos  então  a  que  consequência  nos  conduz  a  tese  de  que  a  ciência  é  a  sensação.  Sentir  através  da  visão  ou  da  audição  é  saber.  Ora,  aquele  que  vê  e  que  tomou  conhecimento  do  

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que  viu,  se  fechar  os  olhos,  lembra-­‐se  da  coisa,  mesmo  sem  a  ver.  Ora,  dizer  que  não  vê  é  dizer  que  não  sabe,  pois  ver  é  saber.  Segue-­‐se  que,  quando  um  homem  adquiriu  o  conhecimento  de  uma  coisa  de   que   ainda   se   lembra,   mas   não   vê,   não   a   sabe:   consequência  monstruosa!  

Mas,   se   Protágoras   estivesse   presente   para   se   defender,   poderia  alegar  que,  de  facto,  é  possível  que  o  mesmo  homem  que  sabe  uma  coisa,   não   a   saiba.   Supõe  que   alguém   te   tapa   com  a  mão  um  dos  olhos  e  que  te  pergunta  se  vês  a  sua  roupa  com  esse  olho  fechado;  serás   forçado   a  dizer   que   vês   e   que  não   vês   ao  mesmo   tempo.   E  depois,  a  memória  que  conservamos  das  coisas  que  sentimos  não  é  da  mesma  natureza  da  sensação  que   tínhamos  e   já  não   temos.   Já  não   somos   o   mesmo   homem,   porque   estamos   sempre   em  mudança.   Finalmente,   Protágoras   poderia   sustentar   que   as  sensações  diferem,  não  na  sua  qualidade  de  verdadeiras  ou  falsas,  pois  são  todas  reais,  mas  na  sua  qualidade  de  melhores  ou  piores.  Longe  de  não  reconhecer  nem  sabedoria,  nem  sábio,  ele  diria,  pelo  contrário,  que  somos  sábios,  quando,  mudando  a  face  (ou  aspeto)  dos   objetos,   conseguimos   fazer   com   que   pareçam   bons   àquele   a  quem  eles  pareciam,  e  para  quem  eram,  maus.  

O   debate   é,   de   novo,   interrompido   por   um   curto   intervalo.  Receando   que   Protágoras   o   criticasse   por   só   discutir   com   gente  nova,   Sócrates   pede   que   seja   Teodoro   a   responder-­‐lhe.   Teodoro  bem  tenta,  mas  acaba  por  resignar.  Sócrates  continua:  Protágoras  diz  que  aquilo  que  parece  a  cada  um  existe  realmente  para  aquele  a  quem   isso  parece.  Ora,   é   opinião   generalizada  de  que,   entre  os  homens,   há   uns   que   são   sábios   e   outros   que   são   ignorantes,   e  sabes   tu   de   experiência   própria   que   não   há   opinião   que   não  encontre  quem  a  contradiga.  Se  Protágoras  acredita  que  o  homem  é   a   medida   de   todas   as   coisas,   mas   que   a   multidão   se   recusa   a  acreditar   nele,   de   modo   que   o   número   daqueles   que   discordam  supera  o  daqueles  que  concordam,  então  há  razões  para  que  o  seu  princípio  seja  mais  falso  do  que  verdadeiro.  Reconhecendo  que  só  podemos   ter   opiniões   verdadeiras,   Protágoras   reconhece   que   os  

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seus  opositores  têm  uma  opinião  verdadeira,  ao  julgar  a  sua  falsa.  

A   doutrina   de   Protágoras   encontra   um   bom   ponto   de   apoio   nas  sensações  do  tipo  das  do  quente  e  do  frio,  do  doce  e  do  amargo  e  de   outras   do   mesmo   género.   Mas   essa   doutrina   encontra  dificuldades   sérias  quando  se   refere  à   saúde,   ao   justo,   à  piedade,  onde  fica  claro  que  há  homens  que  têm  mais  razão  do  que  outros.  Aqui,  Sócrates  pára  e  faz  a  reflexão  de  que  um  argumento  conduz  a  outro  e  que  o  debate  não  tem  fim.  -­‐  Bom,  diz  Teodoro,  não  temos  tempo  livre?  Esta  réplica  de  Teodoro  serve  de  pretexto  para  uma  digressão  sobre  a  vida  do  filósofo,  que  tem  sempre  tempo  livre,  ao  contrário   do   orador   ou   do   advogado   que   andam   sempre  atarefados.   O   filósofo,   afastado   dos   negócios   públicos,   só   está  presente  de   corpo  na   cidade;   a   sua  alma  plana   sobre  o  empírico.  Como  Tales   que   caiu   num  poço   enquanto   observava   os   astros,   o  filósofo   ignora  o  que  se  passa  debaixo  dos  seus  pés  e  dá  motivos  para  que  os  outros  se  riam  dele.  Ele  não  se  preocupa  com  o  poder,  com   a   riqueza   ou   com   a   nobreza.   Só   se   interessa   pela   virtude   e  dedica-­‐se   a   assemelhar-­‐se   a   Deus.   Este   retrato   do   filósofo,   onde  são   agrupados   alguns   traços   dispersos   na   República,   é   o  contraponto  da  imagem  que  Cálicles  traçou  no  Górgias  do  filósofo  que  perde  tempo  com  discussões  infantis  e  que,  afastado  da  ágora  (praça  pública),  se  torna  incapaz  de  se  defender  contra  o  primeiro  patife  que  o  acuse.  

Voltemos   ao   assunto.   Vejamos   o   exemplo   de   um   Estado   que  promulga   as   suas   leis.   Ele   concebe-­‐as   tendo   em   vista   a   sua  utilidade  futura.  Ora,  a  sensação  não  tem  nada  a  ver  com  o  futuro,  e  só  o  homem  competente  merece  ser  ouvido  a  respeito  do  futuro  das  leis  ou  de  qualquer  outro  futuro.  

Mas,   também   no   que   diz   respeito   às   sensações   imediatas   do  quente   e   do   frio   e   de   outras   semelhantes,   não   podemos   garantir  que  sejam  verdadeiras,  baseando-­‐nos  na  doutrina  do  movimento.  Existem   dois   tipos   de   movimento,   um   de   translação   e   outro   de  alteração.  Como  tudo  se  move  destas  duas  formas,  a  perceção  e  a  

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qualidade,  que  se  move  entre  o  sujeito  e  o  objeto,  têm  de  mudar  de  natureza  no  momento  exato  da  sensação  e,  por  isso,  essa  perceção  e   qualidade   não   podem   sequer   ser   nomeadas.   Nenhuma   coisa  existe,   mais   do   que   já   não   existe:   Nenhuma   coisa   deixa   de   ser  “assim”,  mais  do  que  não  é   “assim”,  pois   ambas  as  expressões   se  referem   ao   repouso.   A   sensação   sempre   em   mudança   não   é,  portanto,   a   ciência,   e   a   doutrina   de  Heraclito,   pelo   contrário,   é   a  negação  da  ciência.  

Teeteto   gostaria   também   de   ouvir   discutir   a   doutrina   dos  adversários   de   Heraclito,   que   pretendem   que   tudo   está   em  repouso.   Mas   Sócrates   recusa-­‐se   a   fazê-­‐lo   para   não   alongar   o  debate  até  ao  infinito.  

A Ciência é Opinião Verdadeira

Sócrates  pergunta  a  Teeteto:  dado  que  o  que  se  sente  por  um  dos  sentidos,   não   pode   ser   sentido   por   outro,   através   de   quê  poderemos  conceber  uma  ideia  que  diz  respeito  aos  dois  sentidos  ao  mesmo  tempo,  e  a  que  órgãos  podemos  atribuir  a  perceção  do  que   é   comum   a   todas   as   coisas,   como   o   ser   e   o   não   ser?   -­‐   Só  podemos,   responde  Teeteto,   atribuí-­‐la   à   alma.   É   através   da   alma  que  apreendemos  não  somente  o  ser,  mas  também  o  semelhante  e  o   diferente,   o   belo   e   o   feio,   e   outras   ideias   do  mesmo   género.   A  sensação  não  pode  alcançar  o  ser,  nem  por  conseguinte  a  ciência.  Temos  de   a   procurar   naquilo,   qualquer   que   seja   o   nome  que   lhe  damos,   a   que   chamamos   alma,   quando   ela   própria,   por   si   só,   se  dedica  ao  estudo  dos  seres.  A  essa  procura  chama-­‐se   julgar  e  é  o  juízo   ou   opinião   verdadeira   que   constitui   a   ciência.   Seja.   Diz  Sócrates;  mas  se  há  uma  opinião  verdadeira,  também  tem  de  haver  uma  opinião   falsa.   Como   é   que   esta   se   forma?  Parece   impossível  não   se   saber   o   que   se   sabe   e   saber   o   que   não   se   sabe.   Quando  fazemos  um  juízo  falso,  será  que  tomamos  as  coisas  que  sabemos  por   outras   que   também   sabemos,   ou   desconhecemos   ambas?   -­‐   É  

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impossível.   -­‐   Então,   tomamos   as   coisas   que   não   sabemos   por  outras   que   também   não   sabemos?   -­‐   Também   impossível.   -­‐  Também  não  tomamos  as  coisas  que  sabemos  por  aquelas  que  não  sabemos,  nem  aquelas  que  não  sabemos  por  outras  que  sabemos?  -­‐   Não.   -­‐   Então,   como   explicar   a   origem   da   opinião   falsa?  Consideremos  o  ser  e  o  não  ser  no  lugar  do  saber  e  da  ignorância.  Aquele,  que  pensa  o  que  não  é,  só  pode  ter  uma  opinião  falsa.  Mas  julgar  o  que  não  é,   é  não   julgar  nada.   Fazer  um   juízo   falso  não  é  mais  do  que  julgar  o  que  não  é.  

Não   seria  desprezível   que   confundíssemos  no  nosso  pensamento  duas   coisas   igualmente   reais,   afirmando  que  uma  é  a  outra?  Mas  quando  o  pensamento  faz  esta  confusão,  não  seria  necessário  que  represente   os   dois   objetos   ao  mesmo   tempo,   ou   um   dos   dois?   -­‐  Sim.   -­‐   Ora,   sendo   o   juízo   um   discurso   que   a   alma   tem   consigo  mesma,   quando   tomamos   uma   coisa   por   outra,   dizemos   a   nós  próprios   que   uma   é   outra:   será   isso   possível?   Não,   pois   é  impossível  que,  ao  pensarmos  nos  dois  objetos  ao  mesmo  tempo,  julguemos   que   um   é   o   outro   e,   se   só   pensarmos   num   dos   dois,  nunca  poderemos  julgar  que  um  é  o  outro  (em  que  não  estamos  a  pensar).  Em  todo  o  caso,  é   indispensável  que  exista  uma  via,  pela  qual  seja  possível  tomar  o  que  se  sabe  por  aquilo  que  não  se  sabe.  Imaginemos  na  nossa  alma  um  bloco  de  cera,  onde  se  gravam  as  nossas   sensações,   e   que   aquilo   que   assim   foi   impresso   será  recordado  e  conhecido  por  nós,  enquanto  que  o  que  se  apagou  ou  não   pôde   ser   gravado   será   esquecido   ou   desconhecido.   Ora,   um  homem   não   pode   ter   uma   opinião   falsa,   pensando   que   as   coisas  que  conhece  são,  ora  aquelas  que  ele  sabe,  ora  aquelas  que  ele  não  sabe?  Após  passar  em  revista  todos  os  casos  a  que  esta  hipótese  dá  lugar,  Sócrates  retém  três,  em  que  a  confusão  lhe  parece  possível:  um,  em  que  se  confunde  uma  coisa  que  se  sabe  com  uma  outra  que  também   se   sabe   e   que   se   perceciona,   outra,   em  que   se   confunde  uma   coisa   que   se   sabe   com  uma  outra   que  não   se   sabe   e   que   se  perceciona,  e  uma  terceira,  em  que  se  confunde  o  que  se  sabe  e  se  perceciona  com  uma  outra  que  se  sabe  e  se  perceciona  igualmente.  Por   exemplo,   diz   Sócrates,   eu   conheço-­‐te,   Teeteto,   e   conheço  

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também  Teodoro,  e  tenho  no  meu  bloco  de  cera  as  impressões  de  ambos.  Vendo-­‐vos,  esforço-­‐me  por  aplicar  a  marca  própria  de  cada  um  de  vós  à  visão  que   lhe  é  própria,   e  por   fazer  entrar  e   ajustar  esta  visão  à  sua  própria  impressão.  Mas  posso  trocar  as  coisas,  e  a  minha  opinião  será  falsa.  A  opinião  falsa  só  pode  existir  a  respeito  de   coisas  que   sabemos:   quando   ajustamos  direta   e   exatamente   a  cada   objeto   as   impressões   e   as   marcas   que   lhe   são   próprias,   a  nossa   opinião   é   verdadeira;   se   as   ajustarmos   obliquamente   e  erradamente,  a  nossa  opinião  será  falsa.  

Neste   ponto,   apresenta-­‐se   uma   objeção   grave:   se   a   opinião   falsa  não  está  nem  nas  sensações,  nem  nas  suas  relações  mútuas,  nem  nos   pensamentos,   mas   no   ajustamento   da   sensação   ao  pensamento,   não   deveríamos   confundir   dois   objetos   conhecidos  somente  pelo  pensamento.  É,   todavia,  o  que   fazemos  quando  nos  enganamos   nos   números,   por   exemplo,   quando   acreditamos   que  5+7=11  e  não  12.  Para  explicar  a  possibilidade  de  erro  neste  caso,  Sócrates  compara  o  nosso  espírito  a  um  pombal,  onde  vivem  aves,  umas   em   bando,   outras   em   famílias   e   outras   solitárias,   mas  esvoaçando  misturadas  todas  umas  com  as  outras.  Temos  todas  as  aves  no  nosso  espírito,  mas  quando  queremos  agarrar  uma,  pode  acontecer  que  agarremos  uma  outra  que  não  queríamos,  trocamos  uma   rola   por   um   pombo,   por   exemplo;   isto   é   uma   opinião   falsa.  Mas  refletindo  melhor,  Sócrates  não   fica  nada  satisfeito  com  esta  explicação.  É  absurdo,  diz  ele,  pretender  que,   tendo  nós  a  ciência  de   um   objeto,   ignoremos   esse   objeto,   não   por   ignorância,   mas  devido  à  própria   ciência,   e  que   tomemos  esse  objeto  por  outro.   -­‐  Talvez,  diz  Teeteto,   tenhamos   incluído   ignorâncias  nas  ciências.   -­‐  Mas,   nesse   caso,   teríamos   ecolhido   um   caminho   sem   fim:   essas  ciências  e  essas  ignorâncias  terão  de  ser  objeto  de  novas  ciências  que   seria   necessário   apanhar   em  novos   pombais.   Teeteto   insiste  mesmo  assim  em  definir  a  ciência  como  opinião  verdadeira.  Mas  a  experiência  do  dia  a  dia  mostra  que  a  opinião  verdadeira  pode  ser  encontrada  nos  juízes  sem  a  ciência.  

 

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A Ciência é Opinião Verdadeira Apoiada na Razão

Teeteto  propõe,  então,  uma  terceira  definição,  que  ouviu  ser  dada  por   alguém:   a   ciência   é   a   opinião   verdadeira   acompanhada   de  razão,   isto   é,   de   uma   explicação   analítica   ou   definição.   As   coisas  que  podemos  sujeitar  ao  crivo  da  razão  são  conhecíveis;  aquelas,  que  não  podem,  são  inconhecíveis.  -­‐  O  que  eu  ouvi  dizer  a  alguém,  replica   Sócrates,   foi   que   os   elementos   primeiros   de   que   somos  compostos   são   inconhecíveis   e   só   podem   ser   nomeados   (não  analisados  ou  definidos),  e  que,  pelo  contrário,  os  objetos  que  são  compostos   por   eles   são   conhecíveis,   pois   a   combinação   com  que  são  formados  é  a  essência  da  sua  definição.  Mas  será  possível  que,  havendo   elementos   inconhecíveis,   o   composto   formado   por   eles  seja   conhecível?   Se,   por   exemplo,   as   letras   não   são   conhecíveis,  como  podem  sê-­‐lo   as   sílabas?   Se   a   sílaba   consiste  nos   elementos  combinados,   como  poderemos   ignorar   os   elementos   separados   e  conhecê-­‐los   juntos?   Se,   pelo   contrário,   a   sílaba   é   uma   entidade  única,   sem   partes,   então   é   indivisível   e,   por   conseguinte,   não   é  mais  conhecível  do  que  os  elementos.  Por  outro  lado,  a  experiência  prova  que  os  elementos  se  prestam  a  um  conhecimento  mais  claro  do   que   as   sílabas.   Quando   aprendemos   a   ler,   o   que   fazemos   é  aprender   a  distinguir   os   elementos;   quando  aprendemos  música,  começamos   pelas   notas;   é   que   o   elemento   é  mais   conhecível   do  que  o  composto.  

Mas   voltemos   à   tua   definição,   e   diz-­‐me,   Teeteto,   o   que   é   que  devemos   entender   por   essa   razão   que   acompanha   a   opinião  verdadeira.  Na  minha  opinião,  creio  que  a  podemos  definir  de  três  maneiras:  

• a  primeira  é  tornar  o  pensamento  sensível  à  voz,  através  dos  nomes  e  dos  verbos,  como  se  penteássemos  o  pensamento  na  fala,   como   se   esta   fosse   um   espelho   ou   uma   superfície   de  

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água.   Neste   sentido,   o   juízo   verdadeiro   será   sempre  acompanhado   de   definição,   em   todos   aqueles   que   pensam  corretamente   sobre   algum   objeto;   nestas   condições,   o   juízo  verdadeiro  nunca  será  encontrado  sem  a  ciência.  

• a  segunda  consiste  na  enumeração  das  partes  ou  elementos;  mas  podemos  enumerar  todas  as  partes  de  um  objeto,  tendo  delas  só  uma  opinião  verdadeira,  mas  não  a  ciência.  

• a   terceira   consiste   na   definição   através   da   diferença  característica.   Mas   o   conhecimento   desta   diferença  característica  é  justamente  o  que  faz  da  opinião  uma  opinião  verdadeira;  não  precisamos  portanto  de  acrescentar  a  razão  à  opinião  verdadeira,  pois  ela  já  lá  está.  

É,   pois,   uma   resposta   tonta   dizer   que   a   ciência   é   uma   opinião  correta   (ortodoxa)   acompanhada   de   ciência,   seja   da   ciência   da  diferença,  seja  da  ciência  de  qualquer  outra  coisa.  

Assim,  a  ciência  não  é,  nem  a  sensação,  nem  a  opinião  verdadeira,  nem  a  opinião  verdadeira  acompanhada  de  razão.  Mas  mesmo  não  sendo   o   debate   conclusivo,   no   mínimo   ensinou   Teeteto   a   não  acreditar  que  sabe  o  que  não  sabe.    

Sócrates  marca,  então,  encontro  para  o  dia  seguinte  com  Teeteto  e  Teodoro,  e  deixa-­‐os  para   ir  responder  à  acusação  de  Meleto,  pela  qual  haveria  de  ser  condenado  à  morte.  

Objeto e Composição do Teeteto

O   Teeteto   tem   por   objeto   a   natureza   da   ciência.   Platão   já   tinha  tratado   desta   questão   no  Ménon,   onde   defende   que   aprender   é  lembrar-­‐se,   que   a   alma   viu   toda   a   verdade   nas   suas   existências  anteriores   e   que   ela   pode   reencontrar   os   seus   conhecimentos  

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esquecidos,   desde   que   não   desista   de   os   procurar.   Apesar   da  dúvida   que   ele   (no   Ménon)   confessa   ter   a   respeito   da   verdade  desta  teoria,  Platão  reafirma-­‐a  peremtóriamente  no  Fédon  e  baseia  nela  uma  das  suas  provas  da  imortalidade  da  alma.  Mas  era  difícil  fazê-­‐la   aceitar   pelo  público   em  geral   e   até   pelo  público   filosófico  muito   influenciado   por   outras   doutrinas,   nomeadamente   as   de  Protágoras,  de  Heraclito  e  de  Parménides.  Podemos  pensar  que  ele  acreditou  ser  necessário  combatê-­‐las  e  limpar  o  terreno  para  mais  facilmente   fazer   vingar   a   sua   teoria.   É   verdade   que   Platão   deixa  Parménides   de   fora,   com   o   fundamento   de   que   a   sua   doutrina  abstrusa   exigiria   desenvolvimentos   que   abafariam   a   questão  central.   Na   verdade,   a   razão   parece   ser   a   de   ter   reservado   uma  obra   completa   para   discutir   a   doutrina   eleata,   O   Sofista.   No  Teeteto,  Platão   limita-­‐se   aos   sensualistas,   cujas   ideias,   por   serem  mais  acessíveis,  eram,  sem  dúvida,  as  mais  divulgadas.  Já  tinha,  na  primeira   parte   do   Crátilo,   exposto   o   sistema   do   movimento  universal  dos  sensualistas,  associando-­‐o,  para  explicar  a  doutrina  da   linguagem,   às   cosmogonias   primitivas   e   aos   poetas  Homero   e  Hesíodo.   Faz   o  mesmo   no  Teeteto,   onde   atribui   a   teoria   do   fluir  universal  a  Homero.  Expõe,  depois,  num  tríptico  magistral:  

• a  doutrina  do  homem  medida  de  Protágoras  

• a  doutrina  de  Heraclito,  onde  tem  origem  a  de  Protágoras  

• a   doutrina   dos   seguidores   fanáticos   de   Heraclito,   que  reduzem   tudo   ao   movimento   perpétuo,   chegando   mesmo   a  negar  a  possibilidade  de  ciência.  

A  estes  universais  destruidores,  Platão  opõe  o  verdadeiro  filósofo  que,   elevando-­‐se   acima   do   mundo   das   aparências,   se   dedica   a  descobrir  a  essência  das  verdadeiras  realidades.  

Depois  de  ter  refutado  aqueles  que  reduzem  a  ciência  à  sensação,  Platão  ataca  aqueles  que  vêem  na  ciência  uma  opinião  verdadeira  e,  como  a  opinião  verdadeira  supõe  que  haja  uma  opinião  falsa,  é  sobre   a   possibilidade  de   uma  opinião   falsa   que   ele   conduz   a   sua  

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pesquisa.   Ele   já   tinha   abordado   este   assunto   no   Eutidemo,   onde  Dionisiodoro   pretende   demonstrar   que   é   impossível   mentir   e  contradizer,  ao  que  Sócrates  responde:  “Essa  tese,  tenho-­‐a  ouvido  da   boca   de  muitas   pessoas,   e   fico   sempre   surpreendido   com   ela.  Ela   estava  muito   em  voga  no   tempo  de  Protágoras   (...).  Quanto  a  mim,   acho-­‐a   sempre   surpreendente:   parece-­‐me   que   destrói   as  outras  (doutrinas)  e  destrói-­‐se  a  si  mesma.”  

No  Teeteto,  Sócrates  tenta  mostrar  a  possibilidade  de  erro,  através  de  duas  imagens:  

• a  do  bloco  de  cera,  onde  as  nossas  sensações  se  imprimem,  e,  neste   caso,   o   erro   nasce   do   mau   ajustamento   da   sensação  com  o  pensamento;  

• a   do   pombal,   onde   esvoaçam   aves   diversas   que   podemos  tomar  umas  pelas  outras.  

Não   é   fácil   determinar   o   que   nestas   duas   imagens   é   original   de  Platão.   Aquilo   que   se   sabe   é   que   a   imagem   do   bloco   de   cera  também   se   encontra   em   Demócrito   e   que   a   explicação   das  diferentes  qualidades  da  memória  devido  à  natureza  da  cera  onde  se   gravam   as   nossas   sensações   se   encontra   no   tratado   de  Hipócrates   sobre  o  Regime  nas   doenças   agudas.  Também  se   sabe  que   Platão   foi   iniciado   em   Itália   nas   doutrinas   médicas   dos  pitagóricos.  

Encontra-­‐se   também   na   terceira   definição,   que   a   ciência   é   a  opinião   verdadeira   acompanhada   da   razão,   um   eco   dos   debates  seus   contemporâneos.   Sócrates   diz   que   ouviu   dizer   que   os  elementos   ou   sílabas   são   inconhecíveis,   enquanto   os   compostos  que   são   formados   por   eles   são   conhecíveis.   Baseando-­‐nos   no  testemunho  de  Aristóteles,  é  muito  provável  que  esta  tese  de  que  Sócrates  ouviu  falar  seja  de  Antístenes.  

 

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Apologia  de  Sócrates    

Enquadramento

Sócrates  tinha  setenta  anos  quando  foi  acusado  por  Meleto,  Anito  e  Lícon  de  não  reconhecer  os  deuses  do  Estado,  de  introduzir  novas  divindades   e   de   corromper   a   juventude.   A   pena   que   lhe   foi  aplicada  foi  a  pena  de  morte.  

O  principal  acusador,  Meleto,  era  um  mau  poeta  que,  influenciado  por  Anitos,  se  encarregou  de  apresentar  a  queixa  junto  do  arconte-­‐rei.   Anitos   e   Lícon   subscreveram-­‐na.   Anitos,   um   rico   curtidor   de  peles,  que   tinha   sido  estratega  em  409  e  que   tinha  combatido  os  Trinta   (a   tirania   oligárquica),   era   um   orador   influente   e   um   dos  líderes   do   partido   popular.   A   acreditar   em   Xenofonte   (que  escreveu  a  sua  própria  Apologia  de  Sócrates),  ele  estava  zangado  com   Sócrates   porque   este   tinha-­‐o   criticado   severamente   por  pretender   formar   o   seu   filho   na   profissão  de   curtidor.  Mas   tinha  seguramente   outros   motivos   bem   mais   sérios,   motivos   de  natureza  política:  Anitos  deve  ter-­‐se  sentido  ferido  com  as  críticas  de  Sócrates  contra  os  líderes  do  partido  democrático  (ou  popular).  De  Lícon,  não  se  sabe  grande  coisa.  Um  poeta  satírico  reprova-­‐lhe  o   facto   de   ser   de   origem   estrangeira   e   há   quem   faça   alusão   aos  seus   costumes   efeminados.   Em   todo   o   caso,   parece   ter   sido   uma  

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personagem  de  pouca  importância.  Neste  concerto  de  acusadores,  Meleto   representava   os   poetas,   Anitos   os   artesãos   e   os   homens  políticos,   Lícon  os   oradores,   todos   tipos  de  pessoas  que   Sócrates  tinha  criticado,  pondo  em  causa  o  seu  amor  próprio.  

Sócrates,   exposto   a   todos   estes   ódios,   não   alimentou   ilusões   a  respeito   do   que   seria   o   seu   destino.   Mas,   embora   esperasse   ser  condenado,   continuou   as   suas   conversas   com   os   seus   discípulos,  como  testemunha  Platão  no  Teeteto,  a  respeito  de  assuntos  muito  distantes   do   tema  do   seu   processo.  Havendo   quem   se   admirasse  com   o   desinteresse   de   Sócrates   pelo   seu   processo,   chegando   ao  ponto  de  nem  sequer  preparar  a   sua  defesa   (segundo  a  Apologia  de  Xenofonte),  terá  respondido:  “Não  te  parece  que  me  ocupei  dele  durante   toda  a  vida?   -­‐   e   como?   -­‐  Vivendo  sem  cometer  nenhuma  injustiça.”   E   como   o   avisassem   de   que   os   tribunais   de   Atenas   já  tinham   condenado   pessoas   inocentes,   respondeu   que,   por   duas  vezes,   tinha   tentado   compor   uma   apologia   (um   discurso   de  defesa),   mas   o   seu   signo   divino   tinha-­‐o   afastado   dessa   tarefa.  Segundo   Diógenes   de   Laércio,   Lísias   ter-­‐lhe-­‐ia   proposto   um  discurso  de  defesa  que,  seguramente,  teria  o  efeito  de  o  tribunal  o  considerar   inocente.  Sócrates  recusou,  dizendo:  “O  teu  discurso  é  muito  belo,  mas  não  me  convém.”  Esse  discurso  era,   sem  dúvida,  composto   seguindo   as   regras   da   retórica   e   visava   alimentar   a  piedade  dos  juízes.  Era  isso  precisamente  que  Sócrates  não  queria.  Defendeu-­‐se,   portanto,   a   si   mesmo   com   um   discurso   que   não  escreveu,  mas  sobre  o  qual  deve  ter  meditado  antes,  com  certeza.  Nesse  discurso,  Sócrates  evidenciou  um  orgulho  de  linguagem  que  surpreendeu  tanto  os  seus  amigos  quanto  os  seus  juízes.  “Outros,  diz   Xenofonte,   escreveram   sobre   o   seu   processo,   e   todos  transmitiram   corretamente   o   orgulho   da   sua   linguagem,   o   que  prova   que   foi   mesmo   assim   que   ele   falou.”   Condenado   por   uma  maioria  de  60  votos  num  júri  de  500  ou  501  votantes,  e  convidado  a   escolher   a   sua   pena,   recusou   fazê-­‐lo   para   não   se   reconhecer  como   culpado,   diz   Xenofonte.   Segundo   Platão   ele   propôs  mesmo  que   a   sua   pena   fosse   a   de   ser   gratuitamente   alimentado   pelo  Estado.  Esta  proposta  pareceu  uma  provocação,  e  o  júri  condenou-­‐

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o  à  morte  com  uma  maioria  ainda  mais  significativa.  Levado  para  a  prisão,  teve  ainda  de  esperar  que  a  comitiva,  enviada  a  Delos  para  oferecer   o   sacrifício   anual   a   Apolo,   voltasse   a   Atenas;   não   era  permitido  executar  um  prisioneiro  entre  a  partida  e  a  chegada  dos  enviados  à  ilha  sagrada.  Sócrates  teve,  por  isso,  oportunidade  para  se  evadir  da  prisão.  Mas  recusou  fazê-­‐lo.  Durante  cerca  de  um  mês,  enquanto  aguardava  a  sua  execução,  continuou  a  receber  os  seus  discípulos   e   a   convesar   com   eles,   a   respeito   dos   seus   temas  habituais.   Após   a   chegada   dos   enviados   a   Delos,   bebeu,   então,   a  cicuta   e,   segundo   se   diz   (embora   seja   pouco   provável,   dadas   as  características   do   veneno),   morreu   com   uma   serenidade   que  coroava  dignamente  uma  longa  carreira  à  ciência  e  à  virtude.  

A   condenação   de   Sócrates   não   podia   deixar   de   ser   assunto   de  debate  público.  Embora  tivesse  contra  si  juízes  avisados  contra  os  sofistas,   com  os   quais   era   confundido,   e   democratas   que   não   lhe  perdoavam  as  críticas  contra  o  regime,  tinha  por  si  todos  os  que  o  conheciam   bem   e,   em   particular,   discípulos   fervorosos   como  Antístenes,  Ésquino,  Xenofonte  e  Platão.  Estes  dois  não  tardaram  a  tomar   a  defesa  do  mestre   e,   para  o  dar   a   conhecer   tal   como  era,  Platão   escreveu   a   Apologia.   É   claro   -­‐   as   divergências   entre   a  apologia   de   Platão   e   a   apologia   de   Xenofonte   assim  o  mostram   -­‐  que  Platão,   tal   como  Xenófonte,   não   reproduz   as   palavras   exatas  que  Sócrates  proferiu  diante  dos   juízes.  O  mais  certo  é  que  tenha  reproduzido  fielmente  o  essencial  da  refutação  que  fez  das  queixas  dos  acusadores;  se  não  fosse  assim,  o  numeroso  público  que  ouviu  Sócrates  teria  podido  acusá-­‐lo  de  mentir  e  arruinar  assim  o  efeito  da   sua  obra.   Por  outro   lado,  Platão  não  podia   fazer  melhor,   para  defender  o  seu  mestre,  do  que  apresentar,  aos  seus   leitores,  uma  imagem   dele   o   mais   fiel   que   fosse   possível.   Sabemos,   pelas  descrições  que   fez  de  Lísias,  de  Protágoras  e  de  outros,  o  quanto  Platão   era   capaz   de   contrafazer   os   talentos   mais   distintos.  Podemos,  então,  acreditar  que,  empenhando-­‐se  em  fazer  reviver  a  figura   do   seu   mestre   venerado,   tenha   reproduzido   as   suas  características  mais  importantes.  

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A  Apologia  divide-­‐se  em  três  partes  bem  distintas.  Na  primeira,  de  longe  a  mais  importante,  Sócrates  discute  os  argumentos  dos  seus  acusadores;   na   segunda,   faz   a   escolha   da   sua   pena;   na   terceira,  anuncia  aos  juízes,  que  o  condenaram  erradamente,  que,  para  eles,  o   futuro  não   lhes   reserva  boas  notícias   e  dirige-­‐se  àqueles  que  o  condenaram  à  morte,  afirmado  que,  desse  modo,   lhe  concederam  as  graças  do  além  e  o  reconhecimento  dos  vindouros.    

 

Primeira Parte

 

Logo   desde   o   exórdio   (parte   inicial   do   discurso   de   retórica)   da  primeira   parte,   podemos   reconhecer   em   Sócrates   a   sua   falsa  modéstia.  Diz  que  não  domina  a  linguagem  dos  tribunais,  pelo  que  se   limitará   a   dizer   simplesmente   a   verdade   (insinuando   que   a  linguagem  da  verdade  não  era  a  linguagem  dos  tribunais).  Refere,  em  seguida,  as  duas  grandes  divisões  do  seu  discurso  de  defesa:  

• responderá,  em  primeiro  lugar,  às  calúnias,  divulgadas  a  seu  respeito  desde  há  muito  tempo;  

• discutirá,   em   seguida,   os   argumentos   dos   seus   acusadores  recentes.  

Ele   é   acusado,   desde   há  muito   tempo,   de   procurar   desvendar   os  segredos   da   natureza,   de   transformar   as   boas   causas   em   más  causas,   e   de   ensinar   os   outros   a   fazer   o  mesmo.   Foi   deste  modo  que  um  poeta  satírico   (Aristófanes,  As  Nuvens)  o  representou  em  cena:  “passeando-­‐se  no  ar,  e  debitando  todo  o  tipo  de  disparates.”  Sócrates   garante   que   nada   sabe   das   ciências   da   natureza,   que  nunca  teve  discípulos  à  maneira  dos  sofistas,  que  recebiam  muito  dinheiro   pelas   suas   lições,   porque   ele   nunca   pediu   dinheiro   a  ninguém  para  assistir  ou  participar  nas  suas  conversas.  

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De   onde   vêm,   então,   esses   boatos   que   correm   a   seu   respeito?   É  que,   tendo   um   dia   sido   proclamado   o   mais   sábio   de   todos   os  homens   pelo   oráculo   de   Delfos,   ele   quis   assegurar-­‐se   de   que   o  oráculo   não   se   tinha   enganado.   Interrogou,   por   isso,   os   homens  mais   sábios,  os  homens  de  Estado,  depois  os  poetas  e   finalmente  os   artesãos.   Ele,   Sócrates,   descobriu   e   demonstrou-­‐lhes   que,  achando-­‐se   eles   sábios,   de   facto   não   o   eram.   Reconheceu,   assim,  que   tinha   sobre   os   seus   interlocutores   a   superioridade   de,   não  sendo   sábio,   também   não   acreditar   que   o   era.   Os   jovens   que   o  ouviram  fizeram  o  mesmo  que  ele,  e   todas  as  pessoas   inquiridas,  tendo   de   enfrentar   a   sua   própria   ignorância,   em   vez   de   olharem  para  si  mesmos,  acusaram-­‐no  de  corromper  a  juventude.  

Foram  estas  calúnias  inveteradas  que  encorajaram  Meleto,  Anitos  e   Lícon   a   apresentar   queixa   contra   ele.   Vai   tentar   refutá-­‐las   na  primeira  parte  do  seu  discurso.  

Logo  no  início,  empenha-­‐se  em  ridicularizar  Meleto  e  em  fazer  ver  aos   juízes   que   esse   grande   justiceiro   nunca   se   preocupou   com   a  educação   da   juventude.   Procede   como   era   habitual   nas   suas  conversas  diárias  e,  através  de  uma  série  de  questões  habilmente  conduzidas,  leva  o  seu  adversário  a  dizer  que  toda  a  gente  é  capaz  de  educar  bem  a  juventude  e  que  Sócrates  é  o  único,  de  entre  todos  os  homens,   que   a   corrompe  ou   educa  mal.  Mas   como  poderia   eu  fazer   isso?   -­‐   pergunta   Sócrates.   Por   acaso   não   saberei   que,  semeando   o   mal,   só   recolho   o   mal?   Como   todos   os   homens  sensatos,  se  a  corrompo,  só  a  posso  corromper  involuntariamente;  por   isso,   poderei,   quando   muito,   ser   admoestado,   mas   não  castigado.  

Meleto   já   não   consegue   ser   coerente   consigo   mesmo,   quando  acusa   Sócrates   de   negar   a   existência   dos   deuses.   Por   um   lado,  pretende   que   Sócrates   não   acredita   nos   deuses,   e,   por   outro,  afirma   que   ele   acredita   em   coisas   demoníacas   e,   portanto,   em  demónios  que  são  filhos  dos  deuses  (como  era  crença  em  Atenas).  Era  como  se  dissesse:  Sócrates  acredita  nos  deuses  e  Sócrates  não  

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acredita  nos  deuses.  

Mas  porque  é  que  Sócrates  se  dedica  a  ocupações  que  põem  a  sua  vida   em  perigo?  Quando   nós   escolhemos   um   cargo,   ou   um   chefe  nos  colocou  nele,  não  devemos  desertar;  pelo  contrário,  devemos  dar  a  vida  por  ele.  -­‐  afirma  Sócrates.  Ora,   foi-­‐lhe  dada,  por  ordem  do  deus  de  Delfos,   a  missão  de  melhorar   os   seus   concidadãos,   e,  enquanto   tiver   um   sopro   de   vida,   ele   dedicar-­‐se-­‐á,   como   um  moscardo,  aos  atenienses  para  os  picar  e  conduzir  no  caminho  da  virtude.   Seja,   pode   dizer-­‐se.   Mas,   dado   que   quer   servir   os  verdadeiros   interesses   dos   seus   concidadãos,   por   que   razão   não  sobe   à   tribuna   para   dar   conselhos   à   república?   Porque   uma   voz  divina,  que  lhe  é  familiar,  sempre  o  desviou  desse  caminho,  e  com  razão;  pois  com  a  sua  franqueza  e  a  sua  lealdade  às  leis,  não  teria  sobrevivido   muito   tempo.   Ele   deu-­‐se   bem   conta   disso,   quando  ousou   enfrentar,   sozinho,   a   assembleia   em   delírio   no   processo  contra   os   generais   de   Arginusas   (uma   batalha   da   guerra   do  Peloponeso,   que   opôs   Atenas   a   Esparta   durante   cerca   de   trinta  anos),   e   quando   recusou   obedecer   aos   Trinta   Tiranos   (regime  oligárquico   anterior   ao   regime   democrático   ateniense)   que   o  tinham   mandado   prender   Leão   de   Salamina,   um   inocente   que  queriam  condenar  à  morte.  Quer  na  sua  vida  privada,  quer  na  sua  vida  pública,  Sócrates  garante  que  nunca  fez  uma  única  concessão  contrária   à   justiça,   muito   menos   àqueles   a   que   os   acusadores  chamam   seus   discípulos.   Se   ele   os   tivesse   corrompido,   eles  próprios   ou   os   seus   pais   levantar-­‐se-­‐iam   para   o   acusar;   mas  nenhum  o  acusa.  

Sócrates  disse  o  que  tinha  a  dizer  em  sua  defesa.  E  não  sairá  daí:  não  recorrerá,  como  outros  acusados,  a  pedidos  de  clemência,  que  seriam   indignos   dele   e   indignos   dos   juízes,   os   quais   não   devem  ceder   à   piedade,   mas   aplicar   a   justiça.   Entrega-­‐se,   portanto,   aos  juízes   e   a  Deus,   para  que  decidam  o  que   seja  melhor  para   eles   e  para  si.  

 

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Segunda Parte

Após  esta  defesa,  os  juízes  foram  a  votos,  e  Sócrates  foi  declarado  culpado  por   uma  maioria   de   sessenta   votos.   Em  processos   como  este,   em   que   a   lei   não   estabelecia   previamente   uma   pena,   o  acusador  propunha  uma,  e  o  acusado,  se  fosse  declarado  culpado,  propunha  outra.  Au  júri  competia  decidir-­‐se  por  uma  ou  por  outra  das   penas,   sem   possibilidade   de   recurso.   Os   adversários   de  Sócrates  pediram  a  pena  de  morte.  Convidado  a  propor  a  sua  pena,  Sócrates  considerou  que,  em  lugar  de  uma  pena,  os  seus  serviços  mereciam   uma   recompensa;   pediu,   por   isso,   que   o   Estado   o  alimentasse  gratuitamente  no  Pritaneu  (onde  os  eleitos  das  tribos  de   Atenas,   que   presidiam   à   Assembleia,   reuniam   e   tomavam   as  refeições  às  custas  do  Estado,  juntamente  com  outros  cidadãos  de  mérito   reconhecido).  E  não   foi  para  provocar  o   júri  que  Sócrates  disse  isto,  como  foi  interpretado  por  um  grande  número  de  juízes,  mas,   porque,   “não   tendo  nunca   feito  mal   a  quem  quer  que   fosse,  também   não   queria   fazer   mal   a   si   próprio”,   disse   Sócrates.   Não  queria  o  exílio,  nem  uma  multa  que,  de  resto  não  teria  condições  para  pagar.  Mesmo  assim  acabou  por  se  dispor  a  pagar  uma  multa  de   uma   mina   e,   depois,   pressionado   pelos   seus   amigos,   aceitou  pagar  trinta  minas  (um  montante  que,  a  valor  constante,  contado  a  partir   do   último   valor   do   dracma   para   trás,   corresponderia   a  menos  de  300  dracmas  -­‐  menos  de  1  euro  atual,  ou  menos  de  200  escudos,  em  dinheiro  português  anterior  ao  euro).  Não  admira  que  muitos  juízes  tenham  visto  nesta  proposta  uma  provocação.  

Terceira Parte

A  proposta  de  pena,  apresentada  por  Sócrates,  irritou  o  júri  que  o  condenou   à  morte   com   uma  maioria  mais   significativa   do   que   a  que   o   tinha   considerado   culpado.   Depois,   enquanto   eram  executadas  as   formalidades  necessárias  para  o  conduzir  à  prisão,  

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Sócrates  repreendeu,  quase  com  ternura,  os   juízes  por  não  terem  tido  a  paciência  necessária  para  esperarem  pela  morte  natural  de  um   homem   com   setenta   anos,   como   ele.   Dirigiu-­‐se,   primeiro,  àqueles   que   o   condenaram   e,   desse  modo,   tomaram   a   seu   cargo  cometer   um   crime   inútil,   pois   não   escapariam   à   reprovação   de  jovens  menos  contidos  do  que  ele.  Dirigiu-­‐se  depois  àqueles  que  o  absolveram  e  falou-­‐lhes  do  seu  futuro.  A  morte,  disse  Sócrates,  não  poderia  ser  um  mal  para  ele.  A  voz  profética  não  lhe  deu  nenhuma  indicação   que   contrariasse   a   sua   disposição   durante   todo   o  processo.  Portanto,  o  mais  certo  é  que  estivesse  de  acordo  com  o  resultado.  E,  de  facto,  porque  haveria  Sócrates  de  recear  a  morte?  Se  é  um  sono,  é  uma  felicidade.  Se  é  uma  passagem  para  um  outro  lugar,  onde  encontrará  os  heróis  do  passado,  que  prazer  vai  ter  em  falar   com   eles!   Não   guarda,   por   isso,   qualquer   ressentimento  contra  aqueles  que  o  condenaram.    

Antes  de  se  separar  deles,  pediu  aos  atenienses  que  cuidassem  dos  seus  filhos  como  ele,  Sócrates,  tinha  cuidado  dos  seus  concidadãos,  e   que   os   chamassem   à   atenção,   se   eles   preferissem   a   riqueza   à  virtude.   “E   agora,   chegou   a   hora   de   nos   irmos   embora,   eu   para  morrer,   vós   para   viver.   Qual   de   nós   fica   com   a  melhor   parte,   só  Deus  o  sabe.”  

Como   é   que,   depois   de   se   ter   explicado   com   tanta   sinceridade,  tanta   nobreza   e   grandeza   de   alma,   Sócrates   pôde   ser   assim  desprezado   e   condenado?   Não   foi   seguramente   por   não   ter  refutado  completamente  as  acusações  que  lhe  foram  feitas,  ou  por  ter   escamoteado   as   acusações   de   Meleto,   ridicularizando-­‐o   para  evitar   explicar-­‐se   sobre   os   deuses   e   a   sua  maneira   de   educar   os  jovens.  A  sua  ideia  a  respeito  dos  deuses  era  bem  mais  exigente  do  que   a  mais   vulgar   entre   os   seus   concidadãos;   rejeitava,   tal   como  mais   tarde   Platão   na   República,   os   combates,   os   adultérios,   os  crimes  e  os  vícios  que  as  lendas  sagradas  lhes  atribuíam.  Mas  isso  não  o  impedia  de  os  honrar  e  de  lhes  fazer  sacrifícios  públicos;  na  verdade,  ele  tinha  uma  alma  religiosa,  mística  até,  e  seria  um  erro  grave   ver   nele   um   livre   pensador,   como   agora   se   diria.   Pensava  

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livremente,   mas   sujeitava-­‐se   às   leis   e   respeitava   os   deuses;  praticava   a   religião   corrente,   tal   como   os   seus   discípulos  Xenofonte   e   Platão.   Por   este  motivo,   não   faria   sentido   que   fosse  condenado.   Também   não   merecia   ser   condenado   por   falar   de  novas  divindades.  Na  verdade,  na  sua  acusação,  Meleto  referia-­‐se  seguramente   à   voz   divina   que   avisava   Sócrates   quando   este   se  encontrava  em  risco  de  fazer  algo  de  mal.  Mas  este  sinal  divino  não  era  nada  de  extraordinário  na  religião  grega,  pois  era  aceite  que  os  deuses   advertiam   quem   eles   queriam   através   dos   oráculos,   de  aparições,   de   augúrios   ou   de   qualquer   outro   modo,   conforme  muito   bem   lhes   apetecesse.   Quando   muito,   os   juízes   poderiam  ficar   chocados   por   Sócrates   ter   a   ousadia   de   se   considerar   um  favorito  dos  deuses.  Quanto  à  corrupção  da  juventude,  a  defesa  de  Sócrates  não  podia   ser  mais   clara.  Nada   impedia  que  os  pais  dos  jovens  o  acusassem  de  se  interpor  entre  eles  e  os  seus  filhos.  Mas  nenhum  se  queixou.  Bem  vistas  as  coisas,  não  é  isso  mesmo  o  que  acontece   com   a   intervenção   de   todos   os   professores,   a   quem   os  pais  confiam  os  seus  filhos?  Não  lhes  é  pedido  precisamente  que  se  interponham   entre   pais   e   filhos,   no   processo   educativo?  Aqueles  que   conviveram   com   Sócrates,   poderiam   ter-­‐se   queixado   desta  alegada  corrupção.  Ora,  nenhum  se  levantou  para  o  acusar.  

No   entanto,   Sócrates   foi   condenado.   Quais   foram,   então,   as  verdadeiras   causas   da   sua   condenação?   Sócrates,   que   já   contava  com  ela,  responde  a  esta  pergunta.  Foram  os  ódios  que  atraiu,  ao  desmascarar   a   ignorância   de   personagens   importantes   na  presença   de   gente   jovem,   que,   ainda   por   cima,   obtinha   grande  prazer   em  ver   essas  pessoas   importantes   sem  saber  o  que  dizer.  Mas   houve   outras   razões.   Desde   logo,   os   ataques   de   Aristófanes  que   o   representavam   a   discutir   ao   jeito   dos   sofistas.   O   povo  ignorante  acabou  por  pensar  que  Sócrates  era  também  um  sofista.  Ora,  os  sofistas,  destruidores  das  antigas  tradições,  passavam  por  ímpios,   ateus   e   professores   de   imoralidade.   Era   também   esta   a  ideia  que  muitos  faziam  de  Sócrates,  e,  como  ele  próprio  disse,  não  seria  no  pouco  tempo  que  lhe  era  atribuído  pelo  esvaziamento  da  clepsidra,  que  ele  conseguiria  retificar  o  erro  em  que  incorriam  os  

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que  assim  pensavam.  A  estas  razões,   juntavam-­‐se  também  razões  de  natureza  política.  As  suas  relações  com  jovens  de  famílias  ricas,  os   únicos   que   tinham   tempo   livre   para   o   ouvir,   tornavam-­‐no  suspeito   aos   olhos   dos   líderes   do   partido   popular.   Sócrates   não  escondia,   aliás,   o   desprezo   que   lhe   inspirava   o   regime   de  gabarolice   e   incompetência   em   que   se   tinha   transformado   a  democracia   ateniense.   Por   outro   lado,   embora   a   Apologia   não  mencione  de   forma  clara  este  aspeto,  é  certo  que  as  relações  que  teve  com  Crítias  e  Alcibíades,  homens  considerados  de  má  índole,  reforçaram  no  espírito  dos  juízes  a  convicção  de  que  corrompia  a  juventude.  É  o  que  se  pode  entender  na  passagem  do  seu  discurso,  onde   afirma   que   nunca   fez   concessão   alguma   contrária   à   justiça,  nem   sequer   àqueles   que   os   seus   caluniadores   diziam   ser   seus  discípulos,  acrescentando  em  seguida  que,  se  algum  daqueles  que  o   ouviu   acabou   por   fazer   o   mal,   não   foi   seguramente   por  responsabilidade  sua.  

Apesar  destes  ódios,  era  quase  certo  que,  face  à  reduzida  maioria  que   o   declarou   culpado,   se   ele   quisesse   pedir   misericórdia,   se  tivesse   levado   consigo   os   seus   filhos   para   comover   os   jurados,  teria  sido  considerado  inocente.  Podemos,  então,  dizer  que,  não  o  tendo   feito,   Sócrates   deixou-­‐se   condenar   voluntariamente.   Foi   a  isto  que  os  seus  discípulos  chamaram  “orgulho  da  sua  linguagem”  (megalêgoria),   e   terá   sido  por   isso  que  não  obteve   as   graças  dos  juízes.   A   sua   proposta   para   ser   alimentado   no   pritaneu,  independentemente   de   tudo   o   mais   que   pudesse   explicar,   foi  tomada  como  uma  provocação  que  fez  com  que  alguns  juízes  que,  antes,   o   tinham   absolvido,   agora   votassem   a   favor   da   sua  condenação  à  morte.