o sujeito carnofalogocÊntrico em a vegetariana...
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Jefferson de Moura SARAIVA
O SUJEITO CARNOFALOGOCÊNTRICO EM A VEGETARIANA DE HAN
KANG
THE CARNOPHALLOGOCENTRIC SUBJECT IN THE VEGETARIAN BY
HAN KANG
Jefferson de Moura SARAIVA1
Resumo: Neste artigo propomos uma análise das relações sociais entre as personagens da obra A
vegetariana (2007) de Han Kang. Tendo como fundamento teórico o conceito de
carnofalogocentrismo de Jacques Derrida e a teoria ecofeminista de Carol J. Adams, a análise tem
como ponto central os hábitos alimentares das personagens, com o foco nas desconjunturas que
surgem após a adoção da dieta vegetariana por uma delas. Concluímos que os hábitos alimentares
das personagens, e especialmente a decisão em consumir carne, estão diretamente relacionados à
hierarquia social daquela sociedade, na qual mulheres e animais são submetidos a exploração e
dominância patriarcal.
Palavras-chave: Literatura sul-coreana; Vegetarianismo; Ecofeminismo; Carnofalogocentrismo;
Patriarcado.
Abstract: In this article, we propose an analysis of the relationships among the characters in the
literary work The vegetarian (2007) by Han Kang. Considering the theoretical basis of the concept
of carnophallogocentrism by Jacques Derrida and the ecofeminist theory formulated by Carol J.
Adams; the analysis is centered on the characters' eating habits focusing on the disagreements
that arise after the adoption of a vegetarian diet by one of the characters. Our conclusion is that
habits related to food and flesh consumption are directly linked to the social hierarchy found in
that society, in which women and animals are subjected to violence and patriarchal dominance.
Key-words: South Korean literature; Vegetarianism; Ecofeminism; Carnophallogocentrism,
Patriarchy.
Introdução
O presente trabalho se propõe a analisar as relações sociais entre as personagens
do romance A vegetariana da autora Han Kang. A nossa hipótese é que um dos princípios
que regem as relações entre os membros de uma sociedade são os hábitos alimentares e
que uma mudança drástica pode desencadear uma crise. Na obra analisada, isso se traduz
através dos problemas familiares que uma personagem enfrenta após recusar a comer
carne.
A carne é um símbolo de status social e masculinidade. A recusa em consumi-la
leva a um cenário no qual são expostas as profundas relações entre a masculinidade e a
opressão às mulheres e animais. Em outras palavras, a recusa da carne é tida como uma
1 Mestre em Estudos Literários – Universidade Estadual de Londrina – Londrina – PR.
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afronta a um sistema ideológico que tanto oprime mulheres e animais. Partindo desse
pressuposto, analisaremos a figura do sujeito carnofalogocêntrico na obra.
Carnofalogocentrismo, um conceito criado por Derrida, se trata da postura adotada pelos
sujeitos dominantes, que devem, obrigatoriamente, ser autoritários e consumidores de
carne. Em A vegetariana, essa postura é vista de maneira contundente no pai e no marido
da protagonista. A análise de ambos os personagens é, portanto, o ponto central desse
artigo.
A vegetariana: um romance-novela
O livro A vegetariana foi escrito pela autora sul coreana Han Kang. Considerada
um dos grandes nomes da literatura contemporânea coreana, a autora trata da solidão
vivida por mulheres em cenários que transitam entre o realismo e o fantástico. Han Kang
é frequentemente associada a uma geração de escritoras que dão grande atenção para
aspectos privados da vida feminina na sociedade coreana contemporânea, e muitas vezes,
questionando os valores patriarcais ali inseridos (ELFVING-HWANG, 2010, p.01).
A versão traduzida para o inglês lhe rendeu o prêmio Man Booker International
Prize de 2016. Segundo um dos jurados, o escritor, jornalista e crítico Boyd Tonkin, a
escolha da obra foi unânime e se deve a sua unicidade. Tomando como elemento chave
da obra a decisão da protagonista em não consumir carne, afirma:
Em um estilo lírico e dilacerante, a obra revela o impacto dessa grande
recusa tanto na heroína quanto naqueles que a cercam.
Esse compacto, excelente e perturbador livro vai perdurar por muito
tempo nas mentes, e talvez nos sonhos, dos leitores (BBC, 2016,
tradução nossa).2
Sua versão em português foi lançada pela editora Devir em 2013 e conta com a
tradução de Yun Jung Im.
A vegetariana se trata de um romance-novela. Essa estrutura peculiar se
caracteriza por agrupar narrativas que são interligadas, mas que podem ser lidas e
2 In a style both lyrical and lacerating, it reveals the impact of this great refusal both on the heroine herself
and on those around her.
This compact, exquisite and disturbing book will linger long in the minds, and maybe the dreams, of its
readers (BBC, 2016).
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compreendidas separadamente. Na obra em questão são reunidas três novelas: A
vegetariana, A mancha mongólica e Árvores-flamas.
Cada uma das novelas retrata uma narrativa relacionada às consequências do
vegetarianismo adotado pela protagonista Kim Yeonghe. Em A vegetariana, encontramos
os primeiros momentos da mudança da personagem, isto é, quando ela abre mão do
consumo e utilização de produtos de origem animal, como carne, ovos, leite e couro. Essa
novela chega ao leitor pelos olhos do marido de Yeonghe, um jovem executivo chamado
Jeong. Autoritário e frio, Jeong é incapaz de compreender Yeonghe, e sua necessidade de
controlá-la produz uma crise que envolve não somente o casal, mas toda a família. A
segunda novela, A mancha mongólica é focada no marido da irmã de Yeonghe, cujo nome
não é revelado. Ele é um artista que desenvolve uma paixão obsessiva por Yeonghe,
levando o arruinar a própria vida. A última novela, Árvores-flamas, é uma melancólica
narrativa sobre a irmã de Yeonghe, Kim Inhye. Trata-se de uma mulher desolada por
tragédias que incluem o fim de um casamento, e uma irmã que se encontra internada em
um hospital psiquiátrico.
Para fins de análise, nos concentraremos na primeira novela, A vegetariana, por
considerarmos que a mesma apresenta os momentos mais ricos no que tange a conflituosa
resposta da sociedade frente ao vegetarianismo da protagonista.
Yeonghe e Jeong: um matrimônio utilitarista
O grande tema de A vegetariana é o embate entre o tradicional e o inovador,
vanguardista. Esse embate é expresso pela decisão de Yeonghe em abrir mão do consumo
de carne, leite e ovos e o esforço de seus familiares em reverter sua decisão. Em uma
sociedade majoritariamente patriarcal, o vegetarianismo de Yeonghe não é somente um
desafio aos hábitos alimentares, mas também à dominância masculina.
A forma como a narrativa é construída auxilia o leitor a entender a pressão que cai
sobre Yeonghe. Conforme mencionado anteriormente, A vegetariana é uma narrativa em
primeira pessoa, e a voz dessa narrativa é a de Jeong, o marido de Yeonghe. Tendo como
base o sistema de análise de foco narrativo proposto por Carvalho (2012), defendemos
que Jeong se trata de um narrador protagonista (CARVALHO, 2012, p. 52), isto é, um
narrador que participa ativamente da trama a qual narra. Além disso, o tom empregado
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por Jeong é o interpretativo, ou seja, “[...] o narrador comenta os fatos, ou os deforma,
imprimindo-lhes conscientemente um colorido subjetivo” (CARVALHO, 2012, p. 53).
Para melhor ilustrar nosso ponto de vista, tomemos como exemplo um trecho no qual o
narrador descreve sua esposa:
Nunca achei nada especial na minha esposa até que se tornasse
vegetariana. Para ser franco, nem me senti atraído quando a vi pela
primeira vez. Nem alta, nem baixa. Cabelo aparadinho nem longo nem
curto, pele amarelada devido ao acúmulo de células mortas, pálpebras
lisas que faziam afinar os olhos e as maçãs do rosto ligeiramente
saltadas. Seu traje era sem cor como se temesse passar uma imagem de
estilo e personalidade. Aproximou-se da mesa onde eu esperava
calçando um sapato preto simples, o mais básico possível. Com um
andar nem rápido, nem lento, nem vigoroso nem frágil. (KANG, 2013,
p. 13).
A impressão que Jeong busca passar ao leitor é que Yeonghe é uma mulher
austera, pouco sofisticada ou exuberante. Seu discurso tem como objetivo retratá-la como
se não possuísse nenhuma característica marcante: sua altura não é digna de
especificação, nem seu cabelo. Seu traje é descrito como “sem cor”, em outras palavras,
tamanha é a desvalorização da aparência de Yeonghe, que nem a cor de sua roupa é digna
de nota. Nota-se também que essa ausência de cor é creditada a uma suposta temeridade
em exibir estilo ou personalidade. Colocando de outra maneira, características como
deselegância, desprimor e insignificância provavelmente seriam utilizadas por Jeong para
descrever sua esposa.
O matrimônio dos dois parece extrair sua essência do mesmo sentimento de
insignificância. Jeong não utiliza nenhuma palavra que demonstre afeto, gratidão ou amor
por Yeonghe; na verdade, sua visão do matrimônio pode ser melhor descrita como
utilitarista. Estão casados há cinco anos, e “[...] não havia motivo para nos sentirmos
particularmente entediados, uma vez que nunca nos amamos com paixão” (HAN, 2013,
p. 15). Afirma seu desgosto por exageros e como esse princípio regeu sua vida pessoal e
profissional: quando criança subjugava os meninos mais novos; quando adulto,
trabalhava numa empresa que lhe garantia uma renda mediana. Como consequência, “[...]
casar com uma [mulher] que parecia ser a mais comum dentre todas as mulheres do
mundo seria talvez uma escolha natural” (HAN, 2013, p. 14); e que ela “[...] cumpriu sem
contratempos seu papel de esposa” (HAN, 2013, p. 14). Da postura de Jeong podemos
afirmar que naquele contexto o matrimônio representa muito mais um contrato social que
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beneficia o homem, que por ser considerado o provedor de recursos da casa, não pode,
nem deve tomar partido de tarefas domésticas. Fenômeno que pode ser comprovado
quando Jeong afirma que Yeonghe acorda diariamente antes dele para lhe preparar o café
da manhã. Ele também afirma que sua esposa ajuda com os gastos, por meio do que ele
chama de “bicos”, ou seja, além das tarefas domésticas, ela realiza trabalhos externos, o
que pode nos levar a considerar que Yeonghe é uma pessoa sobrecarregada. Em todo
caso, nem esse fato parece motivar uma mudança em Jeong, acentuando-se o fato de que
ele trata o trabalho da esposa com certo desprezo.
A transgressão por meio do sonho
O vegetarianismo de Yeonghe é o fator que produz a desconjuntura entre ela, seu
marido e sua família. O primeiro a perceber a mudança é Jeong. Uma noite, após notar a
ausência de Yeonghe na cama, ele a encontra encarando a geladeira. Parecendo estar em
um estado catatônico, ela justifica o fato de estar naquela situação devido a um sonho.
Pela manhã, Jeong a encontra agachada perto da geladeira, cercada por sacos plásticos
onde ela colocava toda a carne a ser descartada. Quando questionada por Jeong sobre sua
atitude, afirma em tom lacônico: “Eu sonhei” (HAN, 2013, p. 19). Jeong, por outro lado,
conclui que a esposa “Enlouqueceu. Pirou completamente” (HAN, 2013, p. 19).
O leitor conhece os sonhos de Yeonghe por meio de interlúdios espalhados na
narrativa. Esses interlúdios são destacados do corpo do texto por serem escritos
completamente em itálico. Além disso, esses momentos apresentam a voz de Yeonghe,
sem a interferência ou o silenciamento causado por Jeong devido ao fato deste ser o
narrador protagonista. Tomemos como exemplo um trecho:
Era um bosque escuro. Não havia ninguém. Eu havia me ferido no rosto
e nos braços tentando abrir caminho por entre as árvores de folhagens
pontiagudas. Com certeza eu estava junto com outros, mas acho que
me perdi sozinha. Estava com medo. Estava com frio. (HAN, 2013, p.
20; itálico do original).
A forma pela qual a narrativa se desenrola apresenta o tom fantástico típico de um
sonho. Nota-se que trata de um fluxo de consciência no qual Yeonghe descreve o que se
passa, sucessivamente. Retomando o sistema proposto por Carvalho (2012), o fluxo se
apresenta como um monólogo interior livre, cuja característica primordial é ser “[...]
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apresentado com mínima interferência do autor” (CARVALHO, 2012, p. 60). Além disso,
“Os pensamentos se sucedem de maneira associativa, e não em ordem lógica”
(CARVALHO, 2012, p. 61-62). Além disso, nota-se que conforme a personagem vai
perdendo o senso da realidade, essas narrativas passam a incluir também impressões
recebidas durante o dia, bem como lembranças.
Cabe dizer que os sonhos criam uma espécie de narrativa paralela, carregada de
metáforas que remetem à mudança pessoal de Yeonghe. Dito isso, expliquemos que uma
análise aprofundada dos sonhos escaparia do propósito do presente artigo e, portanto,
serão retomados apenas quando estes forem necessários para embasar nossas hipóteses.
É importante afirmar que a justificativa de Yeonghe para se tornar vegetariana está ligada
aos seus sonhos, nos quais ela é assombrada por imagens de corpos ensanguentados, facas
e sangue, que lhe causam uma repulsa excessiva em relação ao consumo de carne.
Uma vegetariana solitária
A mudança de Yeonghe leva a uma situação que expõe as opressões que a cercam.
Em outras palavras, ao optar por não consumir carne, a personagem entra em uma
desconjuntura com sua família e seu marido. Uma vez que naquela sociedade o consumo
de carne é aceito e, portanto, naturalizado, o vegetarianismo de Yeonghe é tratado como
uma anomalia e deliberadamente combatido pelos outros personagens. Cabe dizer que
esses embates iluminam aspectos mais obscuros que permeiam as relações entre os
personagens.
A oposição ao vegetarianismo começa com Jeong. Por também ser o narrador, é
por ele que conhecemos os fatos e, portanto, esses fatos são moldados a partir de sua visão
de mundo. Conforme dito anteriormente, ele claramente não possui sentimentos afetivos
com relação à esposa e a considera, na verdade, muito mais como sua empregada
doméstica. Tomemos como exemplo a seguinte situação:
Levantei-me da cadeira e abri o freezer. Estava vazio. Havia pó de grãos
moídos, pó de pimenta vermelha, pimenta verdade congelada e um
pacotinho de alho picado, só.
-Frita um ovo pelo menos. Hoje estou cansado de verdade. Nem
almocei direito.
-Joguei fora os ovos.
-O quê?
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-Cortei o leite também.
-Que absurdo. Está dizendo para eu também deixar de comer carne? -
Não consigo deixar aquelas coisas na geladeira. Não consigo suportar.
Como que ela podia ser tão egocêntrica. Olhei bem de frente para o seu
rosto. Com o olhar dirigido para baixo, sua expressão estava tranquila
como nunca. Era inesperado. Que houvesse nela um lado tão egoísta e
arbitrário. Que fosse uma mulher tão pouco racional. (HAN, 2013, p.
21-22).
O trecho acima se refere a uma dada noite na qual Jeong retorna do trabalho e
percebe que na mesa posta para o jantar há somente pratos feitos com grãos e vegetais,
sem nenhuma presença de carnes ou derivados. Profundamente perturbado, ele se levanta,
inspeciona a geladeira e ao notar que Yeonghe descartou toda a carne, pede para que ela
lhe frite um ovo então. Esse pedido, ainda que soe inofensivo, revela muito da estrutura
familiar do casal; isto é, embora Yeonghe tenha preparado todo o jantar, que consistia em
“[...] alface, pasta de soja, sopa rala de algas feita sem carne ou marisco e gimchi3” (HAN,
2013, p. 21), ele despreza a refeição e ainda lhe pede que ao menos frite um ovo. Em
outras palavras, Jeong ignora o fato de que ela também pode estar cansada, ou ao menos,
considera que seu cansaço é maior que o dela e, portanto, ela deveria parar de jantar e lhe
fritar um ovo para complementar uma refeição, que considera inadequada. O absurdo da
situação é escancarado por meio de sua reflexão; ou seja, além de ignorar completamente
as vontades de Yeonghe, ele ainda a descreve como arbitrária, egoísta e pouco racional
(HAN, 2013, p. 22).
A autoridade, ou ao menos parte dela, de Jeong sobre Yeonghe é expressa através
do seu apego à carne (e derivados) e à forma como trata a esposa. O ego autoritário de
Jeong remete ao conceito de carnofalogocentrismo criado pelo filósofo franco-argelino
Jacques Derrida. O sujeito carnofalogocêntrico expõe o poder de uma razão fálica
expressa no consumo, real ou simbólica, do outro:
[…] é suficiente encarar seriamente a internalização idealizante do falo
e a necessidade de sua passagem pela boca, seja por uma questão de
palavras ou coisas, de sentenças e vinho diários, da língua, dos lábios,
ou do seio do outro (DERRIDA, 1991, p.113, tradução nossa).4
3 A edição utilizada como referência nesse artigo contém notas de rodapé que explicam ao leitor do que
consistem os pratos típicos coreanos encontrados na narrativa. Gimchi é um acompanhamento feito de
acelga fermentada com temperos e pimenta. 4 […] it suffices to take seriously the idealizing interiorization of the phallus and the necessity of its
passage through the mouth, whether it's a matter of words or of things, of sentences, of daily read or wine,
of the tongue, the lips, or the breast of the other (DERRIDA, 1991, p.113).
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O sujeito carnofalogocêntrico é dominante, autoritário e objetiva ocupar uma
posição de comando e de posse do conhecimento. O homem adulto, como Jeong, está no
topo desse esquema ideológico, seguido pela mulher, que está acima das crianças e dos
animais: “Autoridade e autonomia [...] são, por meio desse esquema, atribuídas ao homem
[...] em vez da mulher, e à mulher em vez do animal. E claro para o adulto em vez da
criança” (DERRIDA, 1991, p. 114)5. Outra característica notável do sujeito
carnofalogocêntrico é a tendência dominadora com relação à natureza: “O sujeito não
quer apenas possuir ativamente a natureza. Em nossas culturas, ele aceita o sacríficio e
come carne” (DERRIDA, 1991, p. 120)6. O carnofalogocentrismo é oriundo de dois
conceitos, o logocentrismo e o falocentrismo, que apontam respectivamente para o
domínio da “[...] palavra-razão e à figura do pai” (LLORED, 2016a, p. 64). O prefixo
“carno” adiciona mais uma camada e serve como meio de denúncia do poder político
exercido
[...] pelo ser humano do sexo masculino, que se considera racional e que
expressa tal racionalidade por meio da palavra considerada como
própria do homem por consequência. Porém, esse poder somente pode
ser exercido por meio do sacrifício carnívoro que enxerga o animal
como vivente a ser sacrificado. (LLORED, 2016b, p. 58).
Cabe dizer que a supremacia do ser humano do sexo masculino é então percebida
pela postura patriarcal, pela detenção da razão (a palavra) e também pelo sacrifício do
outro, o animal. De acordo com Matthew Calarco:
O termo ‘carnofalogocentrismo’, de Derrida, é uma tentativa de
nominar as práticas sociais, linguísticas e materiais primárias que estão
se tornando e devem permanecer um tema genuíno no ocidente. Derrida
mostra que, para ser reconhecido como sujeito pleno, a pessoa precisa
ser carnívora, do sexo masculino e ter um ego autoritário, que fala.
Obviamente há outras exigências para ela ser reconhecida como sujeito
pleno, mas ele fala nessas três exigências em sucessão e em forte
5 “Authority and autonomy […] are, through this schema, attributed to the man […] rather than to the
woman, and to the woman rather than to the animal. And of course to the adult rather than to the child”
(DERRIDA, 1991, p. 114). 6 “The subject does not want just to master and possess nature actively. In our cultures, he accepts sacrifice
and eats flesh. ” (DERRIDA, 1991, p. 120)
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relação uma com a outra, pelo fato delas serem as três condições
primárias do reconhecimento (CALARCO apud ADAMS, 2012, p.16).
O leitor notará que Calarco afirma que se trata de “um tema genuíno no ocidente”,
e ainda que a narrativa se passe na Coréia do Sul e, portanto, no oriente, acreditamos que
o conceito de carnofalogocentrismo é extremamente útil para a análise da obra. Em
poucas palavras, o sujeito carnofalogocêntrico é definido como pleno ao ser do sexo
masculino, autoritário e consumir carne. E é essa precisamente a postura de Jeong, em
nenhum momento ele se dispõe a entender Yeonghe e seu vegetarianismo, desde o
primeiro momento ele claramente se opõe à vontade dela, coagindo-a sempre que
possível. Tomemos como exemplo um trecho no qual ele expressa o quanto acha ridícula
a decisão da esposa:
[...] o que era aquilo, se ela nem era mais uma adolescente? Se nem era
regime, nem tratamento, e nem estava possuída por um espirito, como
assim, mudar de hábito alimentar por causa de um pesadelo? Que
teimosia era aquela, desconsiderando completamente a dissuasão do
marido? (HAN, 2013, p. 22-23).
Novamente percebemos a presença da suposta “pouca racionalidade” que Jeong
enxerga em sua esposa. Ele considera que sua decisão é inaceitável para uma adulta e
que, talvez, seria justificável para uma adolescente, atitude que é lida como sendo
fundamentalmente infantil. Ora, essa atitude vai de encontro com o posicionamento
carnofalogocêntrico que afirma que crianças não são sujeitos plenos e, portanto, uma
decisão tomada por uma criança não deveria ser considerada. O fato da decisão ter vindo
de Yeonghe, uma mulher, agrava ainda mais a situação.
A atitude carnofalogocêntrica não se concentra apenas no consumo de animais,
também se expressa na detenção do conhecimento e no silenciamento de sujeitos não
plenos. Em dado momento, Jeong é o convidado a participar de um jantar de casais com
a participação do diretor presidente. Exasperado pela necessidade de causar uma boa
impressão, ele se acalma ao pensar que Yeonghe é naturalmente quieta e que isso seria
bom, uma vez que “[...] os mais velhos costumam gostar de mulheres assim [...]” (HAN,
2013, p. 28-29). No entanto, sua calma vai embora quando os outros membros da mesa
percebem que Yeonghe se recusa a comer carne e isso se torna o assunto entre eles.
Enquanto discutem a validade, os benefícios e a razão para se adotar tal posição, a esposa
do diretor-sênior questiona Yeonghe sobre seus motivos pessoais:
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-E qual o seu motivo para o vegetarianismo? É pela saúde... ou é alguma
coisa religiosa?
-Não.
A esposa, que parecia absolutamente não se dar conta de quão difícil
ocasião era aquela, abriu a boca calma e plácida. Senti um calafrio
repentino. Pois intuí que o que ela estava prestes a dizer.
-... Eu tive um sonho.
Rapidamente, abafei as suas palavras com as minhas.
-A minha esposa sofreu do estômago por muito tempo. Por isso, não
conseguia dormir profundamente. E depois que cortou a carne da dieta
seguindo o conselho de um médico oriental, melhorou bastante.
Somente então, as pessoas acenaram com a cabeça. (HAN, 2013, p. 31).
O silenciamento dela acontece quando ele “abafa” suas palavras e se apropria do
discurso de Yeonghe. No momento em que ela tem a chance de expressar suas razões,
reflexões e pensamentos em relação ao vegetarianismo, Jeong a silencia, pois teme que
seus colegas e suas esposas a vejam como alguém infantil ou pouco racional,
características que poderiam ser associadas a ele também. A detenção do conhecimento é
nítida quando, mesmo com a presença dela ali, ele usa suas palavras para explicar uma
experiência dela, atitude essa que não é questionada pelos outros membros da mesa, pelo
contrário, é prontamente tida como verdadeira, fato demonstrado pelo aceno das cabeças.
A recusa de Yeonghe em comer carne durante o jantar causa desconforto ao seu
marido. Além disso, cabe dizer que embora se recuse a preparar pratos com alimentos de
origem animal, ela não o proíbe de comê-los, como por exemplo, quando afirma que ele
pode satisfazer sua vontade nas refeições que realiza fora de casa, especialmente o almoço
(HAN, 2013, p. 22).
Então, qual seria o grande motivo para o desconforto e a ira de Jeong?
Para responder essa questão, nos utilizaremos das reflexões de Adams no que
tange as relações de masculinidade, poder e consumo de carne. A carne é um símbolo de
força e virilidade, seu consumo aponta o grau de virilidade de uma sociedade (ADAMS,
2012, p. 59). A carne é, portanto, vista como superior em relação aos vegetais:
As pessoas que têm poder sempre comem carne. A aristocracia europeia
devorava pratos enormes com grandes quantidades de todos os tipos de
carne, enquanto o trabalhador comia carboidratos. Os hábitos dietéticos
proclamam as diferenças de classe, mas proclamam também as
distinções patriarcais. As mulheres, cidadãs de segunda classe, mais
provavelmente comem o que numa cultura patriarcal se considera
alimento de segunda classe: legumes, verduras, frutas e grãos, em vez
de carne. O sexismo no consumo da carne recapitula as distinções de
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classe com o acréscimo de uma peculiaridade: permeia todas as classes
a mitologia de que a carne é um alimento masculino e o seu consumo
uma atividade masculina. (ADAMS, 2012, p. 58).
A partir da análise de diferentes sociedades, Adams conclui que o consumo de
carne é majoritariamente masculino. Jeong se incomoda profundamente com a ausência
de carne, pois retirá-la implica em “ameaçar a estrutura da cultura patriarcal” (ADAMS,
2012, p. 71); em outras palavras, Jeong não deseja abrir mão das vantagens que lhe são
conferidas enquanto homem dentro daquele contexto. Essas vantagens incluem a
autonomia sobre a vontade de animais (que são por ele consumidos) e mulheres (que são
submetidas a sua vontade). Essa conexão não se dá por similaridade, ou seja, não se pode
dizer que mulheres e animais sejam “iguais”; trata-se, na verdade, do fato de que ambos
os grupos ocupam o mesmo lugar dentro de um sistema hierárquico sustentado pelo
patriarcado (GRUEN, 1993, p. 61). Dito isso, entendemos que o comportamento de Jeong
é explicado por essa ameaça ao seu status enquanto sujeito pleno (como defendido pelo
carnofalogocentrismo), pois seu pensamento, fruto da cultura patriarcal, o faz enxergar a
carne como a fonte do poder e força masculinos (ADAMS, 2012, p. 67-68). Além disso,
na cultura patriarcal, enquanto os homens consomem a maior parte da carne, são as
mulheres que as preparam (ADAMS, 2012, p. 71; GRUEN, 1993, p. 72). Esse fato pode
ser ilustrado pelo já mencionado episódio no qual Jeong insiste para que Yeonghe lhe
frite um ovo, embora ele estivesse em pé e próximo à geladeira. Outro exemplo que
podemos apontar é a maneira a qual ele enxerga sua cunhada, Kim Inhye. Em um primeiro
momento, ele confessa sentir um “leve nervosismo sexual” ao ouvir a voz dela ao
telefone, pois se trata de uma mulher “parecida com a esposa, mas mais bonita por causa
dos olhos maiores e, acima de tudo, mais feminina do que ela” (HAN, 2013, p. 34); uma
leitura cuidadosa do trecho citado exibe como Jeong enxerga as mulheres de maneira
superficial, se atendo apenas as aspectos físicos e estéticos. Além disso, o trecho dá
indícios de uma possível contradição: se por um lado ele havia se casado com sua mulher
pois esta lhe parecia “a mais comum dentre todas” (HAN, 2013, p. 14), por outro, a
cunhada lhe chamava a atenção por ser mais “feminina”. E o que pode significar essa
característica vaga a qual Jeong chama de “feminina”? A resposta está no momento em
que ele chega para uma reunião de família no apartamento de Kim Inhye e observa que a
cunhada
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[…] cozinhava bem como a minha esposa de antigamente. Ao ver a
mesa do almoço irrepreensivelmente posta senti uma fome repentina.
Olhando o corpo da cunhada adequadamente carnuda, a sua fala afável,
os olhos grandes tipo ocidental, eu fiquei a lamentar as muitas coisas
sabe-se lá quais que eu estaria vivendo sem poder ter. (HAN, 2013, p.
41).
Em outras palavras, o que Jeong enxerga na cunhada e que nomeia como
“feminilidade” se trata, na verdade, da sua idealização do quer seria uma “boa esposa”,
que cozinha bem e além disso, possui boa aparência. Convém dizer que o trecho contém
elementos interessantes para uma análise da postura carnofalogocêntrica de Jeong. A
visão da mesa forrada de pratos com carnes o torna faminto e essa fome se extende à
cunhada, a qual ele descreve usando o termo “carnuda” remetendo assim aos pratos cheios
de carne a sua frente. Isto é, Jeong vê a cunhada como um ser que também pode ser
consumido, mesmo que de maneira metafórica, por meio de seu desejo sexual.
A dominância promovida pelo sujeito carnofalogocêntrico não é apenas de cunho
alimentar e discursivo. A violência da constante retirada da agência de outros seres
também se exprime pela sexualidade. Jeong afirma que a esposa sempre respondera aos
seus desejos, mas que agora se recusava a chegar perto dele, pois ele cheirava a carne
(HAN, 2013, p. 25). Conforme os dias passam, os dois se distanciam, fato que não o
incomoda, pois ela era como “uma irmã, ou uma empregada, que punha a mesa e limpava
a casa” (HAN, 2013, p. 37). Embora a ausência de afetividade ou comunicação fosse
facilmente tolerada por Jeong, o mesmo não acontecia com a recusa de Yeonghe em fazer
sexo. Exibindo claramente seu desejo por submeter a esposa aos seus desejos, ele confessa
tê-la estuprado:
[...] uma abstinência prolongada era difícil de suportar para um homem
que estava no auge do vigor e vinha mantendo uma vida de casado,
apesar de um tanto insípida. Às vezes, quando chegava tarde da noite
depois de um jantar de negócios, tomava a esposa de assalto, fiando-me
no calor do álcool. Sentia uma excitação inesperada quando imobilizava
seus braços e tirava sua calça. Soltava palavrões em voz baixa para a
esposa que se debatia violentamente e conseguia penetrála uma a cada
três vezes. Então, ela ficava deitada no escuro, olhando para o teto com
aquela expressão vã como se tivesse trazida de mulher de conforto7.
Assim que eu terminava, ela se virava para o outro lado e escondia o
7 De acordo com uma nota de rodapé presente na obra, a expressão “mulher de conforto” se refere às
mulheres que na 2° Grande Guerra foram obrigadas a trabalhar como prostitutas em bordéis militares
japoneses.
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rosto na coberta. E devia se arrumar enquanto eu tomava uma ducha,
pois, quando voltava para a cama, estava sempre deitada reta de olhos
fechados, como se nada tivesse acontecido. (HAN, 2013, p. 37-38).
Jeong desconsidera completamente a vontade de Yeonghe. Ele se utiliza da força
física para submetê-la e se excita com a resistência dela. A violência empregada por ele
tem como finalidade objetificar Yeonghe, em um processo que remete a teoria formulada
por Adams (2012, p. 86) no qual o sujeito dominante objetifica o outro para que este lhe
satisfaça. A partir do momento que Yeonghe é transformada em um objeto, Jeong a
submete a todas as suas vontades sem nenhuma reserva. Essas vontades podem ser
exemplificadas como a sua necessidade de impor suas ideias em detrimento das ideias
dela, pela sua constante apropriação do discurso e também pelos ataques sexuais.
Jeong, de maneira metafórica, “consome” Yeonghe, e o “o consumo é a efetivação
da opressão, a aniquilação da vontade, da identidade separada” (ADAMS, 2012, p. 86).
Além disso, a objetificação permite descartar o outro, aquele que fora objetificado e
consumido, quando este não lhe atende mais, tal comportamento pode ser visto no
momento em que Yeonghe está internada em um hospital após uma tentativa de suicídio:
Depois que a cunhada foi embora, restamos eu e a esposa no quarto
duplo de internação, além de uma colegial com ruptura intestinal
acompanhada de seus pais. Fiquei a guardar a cabeceira da esposa,
enquanto eles me olhavam de soslaio e cochichavam em voz baixa.
Logo este domingo terminará e será segunda feira. Então, não precisarei
mais ver essa mulher. Amanhã, a cunhada ficará no meu lugar e, depois
de amanhã, a esposa terá alta. Isso significava ter de viver com essa
mulher estranha e medonha, sozinho com ela na mesma casa. Era-me
difícil aceitar isso. (HAN, 2013, p. 50).
O padrão de consumo e descarte é gritante no trecho citado. No quarto,
desacordada na cama após cortar os pulsos, está Yeonghe, e ao seu lado, Jeong, seu
marido que não está preocupado com a situação da mulher, pelo contrário, confessa estar
perturbado pela possibilidade de ser o assunto de uma conversa cochichada pela família
que também está no quarto. Mas acima de tudo, sua principal preocupação é seu próprio
futuro com uma esposa “estranha e medonha” e que deseja não mais ver. Quer dizer, no
momento em que sua esposa se encontra debilitada e necessitando toda sorte de cuidados,
é também o momento no qual Jeong decide abandoná-la, pois lhe parece certo o fato que
Yeonghe não está mais apta a lhe servir, isto é, ele já não pode mais metaforicamente
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consumi-la. Cabe dizer, que durante a leitura de A mancha mongólica e Árvores-flamas
o leitor é informado que de fato, Jeong se separou de Yeonghe.
O peso da mão patriarcal
A situação se agrava com a aproximação dos familiares de Yeonghe. Após
perceber que suas sucessivas repreensões não surtiam efeito, Jeong decide ligar para os
pais e a para a irmã de Yeonghe e lhes conta, de maneira tendenciosa, como a esposa se
recusa a comer carne e parece “fraquinha”; a reação da mãe e da irmã é idêntica: um
pedido de desculpas e a promessa de que irão entrar em contato com Yeonghe.
As ligações do pai, da mãe e da irmã de Yeonghe não produzem mudanças. Dentre
essas figuras familiares, a mais severa é o pai. Até mesmo Jeong parece se intimidar pela
figura do sogro:
Palavras de consideração e cuidado não combinavam com ele. O seu
maior motivo de orgulho era a condecoração pelos destacados serviços
miliares prestados durante a guerra do Vietnã. Sua voz era muito
potente, e seu brio, tão intenso quanto sua voz. Eu no Vietnã, peguei
uns sete vietcongs... Assim começava o seu repertório favorito que eu,
genro, já ouvira umas vezes. Segundo a esposa, ela era castigada pelo
pai com golpes de varinha na batata da perna até os dezoito anos. (HAN,
2013, p. 36).
Jeong descreve um homem bruto. Podemos supor que o sogro fosse pouco afetivo
e que considerava a violência como um meio justificado. Essa atitude é comprovada pelo
fato de que ele se vangloria de seus feitos na guerra. Além disso, ele castigava a filha até
os dezoito anos.
Outro episódio de violência promovido pelo pai de Yeonghe retorna na forma de
uma de suas lembranças. Conforme dito anteriormente, a narrativa é fragmentada pela
presença de monólogos de Yeonghe, que misturam lembranças e sonhos. Em um desses
monólogos ela relembra um fato da infância: aos nove anos fora mordida por um cachorro
da família, e como punição, seu pai o matara:
...O cachorro que arrancara um pedaço da minha perna está sendo
amarrado na moto do meu pai.
[...]
Meu pai pendurou o cachorro na árvore, e, enquanto queimava o seu
rabo, disse que não iria bater nele. Ouvira dizer, não sei onde, que a
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carne fica mais macia quando o cachorro morre correndo. Deu-se a
partida na moto, e o papai começou a correr. O cachorro correu junto.
Deu duas, três voltas na vila percorrendo o mesmo caminho.
[...]
Depois da quinta volta, o cachorro está espumando na boca. Corre
sangue do pescoço amarrado pela corda. Ganindo de dor, o cachorro
corre arrastado. Sexta volta. O cachorro vomita um sangue vermelho
escuro pela boca. O sangue corre do pescoço, e também da boca. [...]
Quando esperava o bicho pela sétima vez, vejo meu pai trazendo o
animal todo mole na garupa da moto. Fico olhando as quatro pernas
que balançam, as pálpebras abertas e os olhos injetados de sangue.
(HAN, 2013, p. 47-48; itálico do original).
Naquela mesma noite o cão foi consumido pela então jovem Yeonghe e por outros
homens da vila. Tradicionalmente, a carne de cachorro é considerada benéfica para a
energia masculina8. Pelo trecho destacado notamos que o pai de Yeonghe é tão autoritário
quanto Jeong e, provavelmente, num grau maior.
O encontro entre Yeonghe e sua família acontece no apartamento de Inhye, irmã
de Yeonghe. A reunião começa tranquila, embora sinais de uma crise surjam quase que
de imediato; de um lado, uma silenciosa e apática Yeonghe, do outro, a família, disposta
a questionar seu vegetarianismo. O conflito ganha forma quando Inhye afirma que havia
comprado ostras, pois Yeonghe as apreciava (HAN, 2013, p. 42). Esse comentário inicia
uma série de repreensões, momento que Jeong esperava ansiosamente:
Prendi a respiração. Finalmente estava começando.
-Peraí. Você, Yeonghe! O papai aqui, já falei o suficiente para você
entender...
Seguindo o pito do sogro, a cunhada deu uma bronca arguta:
-Mas o que você pretende fazer? Existem nutrientes que o organismo
precisa... Se quiser ser vegetariana, devia planejar bem o seu cardápio.
Veja só o seu rosto.
A concunhada também ajudou:
-Até pensei que fosse outra pessoa. Eu tinha ouvido falar, mas não sabia
que estava praticando vegetarianismo e se acabando desse jeito. -A
partir de agora, está terminado o tal do vegetarianismo. Isto, isto, isto.
Coma tudo, logo. O que é isso? O tempo das vacas magras já passou! –
disse a sogra, aproximando os pratos de carne refogada, tangusyuk9,
ensopado de frango e mini-polvo com macarrão na frente da esposa.
-O que está fazendo? Coma logo – apressou o sogro, com uma voz
troncuda, que lembrava a chaminé de um trem. (HAN, 2012, p. 42-43;
itálico do original).
8 Essa informação foi retirada de uma anedota da versão analisada da obra. 9 Segundo anedota no livro, tangusyuk é um prato que consiste em pedaços de carne empanada com molho
agridoce.
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Nota-se que as mulheres também tomam parte no cerco a Yeonghe. Embora nossa
proposta seja que o consumo de carne como afirmação da masculinidade e da virilidade
dos indivíduos, cabe dizer, conforme afirma Adams (2012, p. 62-63), que em tempos de
escassez e pobreza, a carne, por ser considerada superior, é destinada à alimentação dos
homens, mas em tempos “de abundância, as presunções sobre os papéis sexuais com
relação à carne não são tão claras.” (ADAMS, 2012, p. 63).
Dito isso, voltemos a analisar a postura carnofalogocêntrica do pai. As primeiras
tentativas de fazer Yeonghe consumir carne partem da mãe, que diante da recusa, desaba
em uma crise de choro. Nesse momento, o pai surge com mais força. De início, ele adota
uma tática mais cuidadosa e tenta convencê-la verbalmente. Yeonghe não recua e afirma:
-Pai, eu não como carne.
Nesse instante, a palma dura da mão do sogro partiu o ar. A esposa
protegeu a face com a mão.
[...]
O treme-treme de seus lábios continuava, como se nervosismo não
tivesse passado ainda. Era sabido que o sogro fora possuidor de um
gênio daqueles no passado, mas era a primeira vez que eu o via descer
a mão em alguém de verdade.
-Seu Jeong! Você, Yeongho! Venham os dois para cá!
Aproximei-me da esposa, hesitante. O golpe havia sido forte e sua face
deixava transparecer as veiazinhas estouradas por debaixo da pele.
Estava ofegante, como se então tivesse perdido a serenidade.
[...]
-Basta uma vez, que ela vai voltar a comer. Pelo amor de Deus, quem é
que vive hoje em dia sem comer carne! (HAN, 2012, p. 45).
A violência existente na hierarquia social transparece quando Yeonghe contraria
seu pai. O pai representa a autoridade: ele é o homem, é um herói de guerra e é o patriarca.
O tapa que desfere no rosto de Yeonghe mostra como seu ego autoritário é incapaz de
lidar com quaisquer ações que considera transgressoras. Assim como Jeong, ele se recusa
a aceitar ou sequer ouvir as razões de sua filha. Furioso, ele pede que a segurem enquanto
tenta alimentá-la á força.
O sogro esmagou o tangusyuk nos lábios da esposa que se contorcia
dolorosamente. Com os dedos endurecidos, conseguira abrir os lábios,
mas não fora capaz de violar os dentes fortemente cerrados.
Finalmente o sogro, explodindo de raiva, deu mais um tapa na esposa.
-Pai!
A cunhada se atirou e se agarrou à cintura do sogro, mas os dentes da
esposa se abriram por um instante e ele enfiou o tangusyuk em sua boca.
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Quando o cunhado afroxou o braço diante daquela fúria, a esposa
cuspiu o tangusyuk rugindo. Ouviu-se um grito de animal de sua boca.
-... Sai!
(HAN, 2013, p. 46).
Os tapas seguidos da introdução forçada da carne demonstram toda a brutalidade
que o pai dedica para resolver a questão. Após os comentários depreciativos do marido e
dos parentes e das agressões do pai, Yeonghe está acuada e rugindo como um animal.
Desesperada, ela pega uma faca e corta os pulsos, desfalecendo em frente à família.
Considerações finais
A decisão trágica tomada por Yeonghe demonstra o quão poderosas podem ser as
opressões que existem em meio a uma sociedade hierárquica. Cabe dizer que dentro do
contexto analisado, a figura do homem autoritário e patriarcal, nomeado como sujeito
carnofalogocêntrico, é o único a tomar decisões no âmbito familiar. Esse comportamento
que reprime e subjuga a vontade alheia é levado ao extremo em A vegetariana, que
denuncia de maneira contundente a dominância masculina naquela sociedade.
Referências
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predominância masculina. Tradução de Cristina Cupertino. São Paulo: Alaúde, 2012.
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CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência. São
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LLORED, Patrick. O outro feminismo (a inventar) de Derrida: As implicações éticas e
políticas do carnofalogocentrismo. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência,
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LLORED, Patrick. Carnofalogocentrismo. Revista Diversitas, São Paulo, ano 4, nº 5, p.
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