o simbolismo da purificação. o “vaso de tavira”: iconografia e

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289 R E S U M O Escavações arqueológicas realizadas no centro histórico de Tavira (Algarve) permitiram descobrir importante artefacto que ficou conhecido como “Vaso de Tavira”. A forma muito particular e, acima de tudo, a riqueza iconográfica que ostenta, dotada de figuras antropo- mórficas e zoomórficas moldadas, tornaram-no famoso e incontornável para a compreensão dos níveis mais antigos do período islâmico da cidade. A importância simbólica que mani- festa suscitou diferentes interpretações relativamente à sua função e cronologia em que se integra. Neste estudo é apresentada nova proposta de interpretação através da análise de uma das mais fascinantes peças da arqueologia medieval portuguesa. A B S T R A C T During the archaeological works that took place in the historical center of Tavira (Algarve) was discovered an important artefact now known as “Tavira’s Vase”. The rarity of its shape and, above all, its remarkable iconographic value, featured by moulded, anthropomorphic and zoomorphic figures, made it very famous and essential for the under- standing of the oldest levels of the town’s Islamic period. The symbolic importance conveyed leads to different functional interpretations and chronological variances. In this paper it is presented a new proposal of interpretation through the analysis of one of the most fascinat- ing pieces of Portuguese medieval archeology. 1. Introdução O Centro Histórico da cidade de Tavira tem vindo a ser objecto de sistemáticas intervenções arqueológicas, que têm permitido aprofundar os conhecimentos da realidade quotidiana das sociedades, da dinâmica e organização da ocupação antiga do Cerro de Santa Maria. A importância e níveis de conservação dos vestígios vêm comprovar a rica herança patrimo- nial da urbe e aferir a sua projecção geoestratégica regional nos vários momentos da História do Algarve. De entre as mais relevantes descobertas foi, sem dúvida, a da peça baptizada por “Vaso de Tavira”. Artefacto profusamente decorado, com elevada complexidade conceptual e carga simbó- O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação LUÍS CAMPOS PAULO * REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316

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R E S U M O EscavaçõesarqueológicasrealizadasnocentrohistóricodeTavira(Algarve)permitiram

descobririmportanteartefactoqueficouconhecidocomo“VasodeTavira”.Aformamuito

particulare,acimadetudo,ariquezaiconográficaqueostenta,dotadadefigurasantropo-

mórficasezoomórficasmoldadas,tornaram-nofamosoeincontornávelparaacompreensão

dosníveismaisantigosdoperíodoislâmicodacidade.Aimportânciasimbólicaquemani-

festasuscitoudiferentesinterpretaçõesrelativamenteàsuafunçãoecronologiaemquese

integra.Nesteestudoéapresentadanovapropostadeinterpretaçãoatravésdaanálisedeuma

dasmaisfascinantespeçasdaarqueologiamedievalportuguesa.

A B S T R A C T Duringthearchaeologicalworksthattookplace inthehistoricalcenterof

Tavira (Algarve) was discovered an important artefact now known as “Tavira’s Vase”. The

rarityof itsshapeand,aboveall, itsremarkable iconographicvalue,featuredbymoulded,

anthropomorphicandzoomorphicfigures,madeitveryfamousandessentialfortheunder-

standingoftheoldestlevelsofthetown’sIslamicperiod.Thesymbolicimportanceconveyed

leadstodifferentfunctionalinterpretationsandchronologicalvariances.Inthispaperitis

presentedanewproposalofinterpretationthroughtheanalysisofoneofthemostfascinat-

ingpiecesofPortuguesemedievalarcheology.

1. Introdução

OCentroHistóricodacidadedeTaviratemvindoaserobjectodesistemáticasintervençõesarqueológicas, que têm permitido aprofundar os conhecimentos da realidade quotidiana dassociedades,dadinâmicaeorganizaçãodaocupaçãoantigadoCerrodeSantaMaria.

Aimportânciaeníveisdeconservaçãodosvestígiosvêmcomprovararicaherançapatrimo-nialdaurbeeaferirasuaprojecçãogeoestratégicaregionalnosváriosmomentosdaHistóriadoAlgarve.

Deentreasmaisrelevantesdescobertasfoi,semdúvida,adapeçabaptizadapor“VasodeTavira”.Artefactoprofusamentedecorado,comelevadacomplexidadeconceptualecargasimbó-

O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação

LUíSCAMPOSPAULO*

REVISTA PORTUGUESA DE Arqueologia. volume 10. número 1. 2007, p. 289-316

Luís Campos Paulo O simbolismo da purificação. O “Vaso de Tavira”: iconografia e interpretação

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lica,temsuscitadodiversasinterpretaçõesquantoaoseusignificado,funcionalidadeecrono-logia.

Combasenestesconsiderandos,apresenta-senovapropostaparareflexão,atravésdaanáliseiconográficadeumdosmaisimportantesbensdopatrimóniomóvelislâmiconacional.

2. A descoberta e contexto arqueológico

AsobrasderequalificaçãodaagênciadoentãoBancoNacionalUltramarino,em1996,leva-ramànecessidadedemedidasdeminimizaçãoqueincluíamintervençãoarqueológica,vistoqueseencontravaemZonaEspecialdeProtecçãodemonumentoclassificadoeporsetratardeáreadeelevadasensibilidadepatrimonial,juntoàactualPraçadaRepúblicaedeumadasantigasentra-das,aconhecidaPortadeD.Manuel(Fig.1).

Foiprecisamentenodecorrerdestestrabalhosarqueológicos,realizadosporManueleMariaMaia,queforamencontradososvestígiosmaisantigosdoPeríodoMuçulmanoemTavira.Ainter-vençãopermitiuaindaidentificarpartedamuralha,datadadafasefinaldeocupaçãoislâmicaque,segundoaquelesarqueólogos,sobrepunhasectordebairro,desactivando-oparcialmentee inte-grandoorestantenointeriornoperímetrofortificado,doqualseregistapartedehabitaçãoparti-cular,queapenassubsistiuasinstalaçõessanitárias(Maia,2004,p.143).

Atravésdaanálisedadinâmicaestratigráfica,realizadapelosarqueólogosresponsáveis,facil-menteseverificouqueastrêscamadassuperioresestavamassociadosaosníveisdeocupaçãorela-cionadoscomaprópriamuralha,identificandomúltiplosfragmentosdetelhaemmeia-cana,que

Fig. 1 LocalizaçãodaIntervençãoArqueológicadoBancoNacionalUltramarino.

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sedispunhamsobrepavimentoformadopor terra batida, recolhendo abundanteespólio,constituído,nasuamaioria,porpeças de cerâmica doméstica caracterís-tica da fase final de ocupação islâmica,dosséculosXII-XIII,nomeadamente,frag-mentosdetalhavidradadecorverdecomdecoraçãoestampilhada,cântarosepane-lasdecerâmicacomum,bemcomo,torresderocaecossoiroemosso,eseteplaqui-nhasquedeveriamfazerpartedecorativadeumacaixaouarquetademadeira(Maia,2004,p.143-144).

Imediatamente abaixo do referidopavimento dispunham-se outras trêscamadas (4.ª a 6.ª), sendo a primeira,aquelaondeassentavamosalicercesdasconstruções e as duas últimas, quase

estéreisemmateriaisarqueológicos,envolviamascanalizaçõeseesgotosdashabitaçõesmuçul-manas(Maia,2004,p.144).

Porém,foinacamada7destearqueossítio,correspondendoapossível“vala-lixeira, praticada em níveis proto-históricos datados dos séculos V-IV a.C.”(Maia,2004,p.144),quefoiidentificadoconjuntodepeças,quenosmereceespecialatenção,umadasquaiséobjectodeestudospontuais,apesardesedesconheceratotalidadedosmateriaisqueseencontravamnomesmocontexto.

Esteconjuntodemateriaistemvindoaserpublicadoeexpostoemdiversoslocaisesãoosúnicosqueseconhecemprovindosdomesmonívelarqueológico.

Doconjuntosalienta-segrupodepeçasemcerâmicacomum,ondesedestaca,umconten-tordepastaalaranjada,deformatoncocónicaebordoaplanadodispostoemaba,comdiversosorifícios,aparentementeparasuspensão,profusamentedecoradocompinturaaengobedecorbrancaetrêsfinoscordõesplásticoscompequenasincisões,juntoaobordoeameiodocorpo(Fig.2).

Umcantiligualmenteempastadecoralaranjada,apresentamutilaçãoaoníveldobordoegargalo,eestádecoradoemambasfacesenasasas,compinceladasdeengobedecorbranca.Numadas facesoferece traçosquecontornamaextremidadedapeça,posteriormenteseguede formaverticalpassandopelocentro,deondepartemquatrotraçosrodeandosobresi,formandogénerodecírculos(Fig.3).Nafaceoposta,dispõem-sedoiscírculosparalelos,colocandoentreelesquatrogruposdetraçosverticais,doisdelescompostosporsetelinhaseosrestantescomdezlinhas,eainda três círculos ovalados, dois deles com o interior preenchido sugerindo bolbo de lótus,estandounidosàdecoraçãoquesedispõeaocentrodapeça.Nasuapartecentralencontramosteoriadelinhasdispostasdeformasemicircular,paralelasduasaduas,deformasubquadrangular.Estãopreenchidaspormúltiplostraçosparaleloseligeiramenteinclinados,eexternamentecomlinhascolocadasnaperpendicular.Duasdaquelasvãouniraosdoiscírculoscomointeriorpreen-chido,formandoelementofitomórfico(Fig.4).

Noentanto,apeçadecerâmicacomumque,semdúvida,seapresentaemmaiordestaque,pelararidadeeexcepcionalcomposição,éodenominado“VasodeTavira”sobreoqual,maistarde,nosdebruçaremoscommaispormenor.

Fig. 2 ContentordesuspensãoencontradonasescavaçõesarqueológicasdoBNU(Maia,1999,p.25).

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Aindanestamesmacamadaarqueológicaforamexumados,pelomenos,umfundodetaçaesmaltada a branco, assente em pé baixo em anel, contendo no seu interior inscrição feita amanganés que, segundo Adel Sidarus e Ahmed Tahiri, significa “Não há Deus senão Alá”, e quecertamenteporlapso,foirecentementepublicadacomosendoproduçãodoséculoXVI(Maia,1999,p.29,2003,p.299,2004,p.144)(Fig.5),bemcomo,diversosfragmentosdetaçacomdeco-raçãoemcordasecatotal,commotivosfitomórficosaverdeecastanho,formandoflordequatrograndespétalas,combolboaocentroepalmetasaantecederobordo(Maia,1999,p.29,2004,p.144)(Fig.6).

Ascaracterísticastécnicaseformaisdaprimeira,sugeremcorresponderaproduçãocalifal,cominscriçãodecarizreligioso,comclarosintuitosdeafirmaçãoreligiosaentreapopulação.

Aindanestamesmacamadaarqueológicaforamexumados,pelomenos,umfundodetaçaesmaltada a branco, assente em pé baixo em anel, contendo no seu interior inscrição feita amanganés que, segundo Adel Sidarus e Ahmed Tahiri, significa “Não há Deus senão Alá”, e quecertamenteporlapso,foirecentementepublicadacomosendoproduçãodoséculoXVI(Maia,1999,p.29,2003,p.299,2004,p.144)(Fig.5),bemcomo,diversosfragmentosdetaçacomdeco-raçãoemcordasecatotal,commotivosfitomórficosaverdeecastanho,formandoflordequatrograndespétalas,combolboaocentroepalmetasaantecederobordo(Maia,1999,p.29,2004,p.144)(Fig.6).

Ascaracterísticastécnicaseformaisdaprimeira,sugeremcorresponderaproduçãocalifal,cominscriçãodecarizreligioso,comclarosintuitosdeafirmaçãoreligiosaentreapopulação.

Figs. 3 e 4 CantilencontradonasescavaçõesarqueológicasdoBNU(Maia,1999,p.37).

Fig. 5 Fundodetaçaesmaltada(Maia,1999,p.27). Fig. 6 Taçaemcordaseca(Maia,1999,p.27).

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Relativamenteàsegundapeça,utilizadecoraçãoemcordasecatotal,queamaioriadosinvestiga-doresdefendeserumatécnicaquesurgiuapartirdoséculoXI,tendoasuamaiordifusãonacentúriaseguinte,apresentandoosmotivosdecorativosbastantediversificados,desdeosgeométricos,zoomór-ficos,epigráficosefitomórficos,sendonestesúltimosrecorrentesaspalmetaseasfloresdelótus.

Peloatéagoraexposto,vistoquesedesconhecematotalidadedosmateriaisarqueológicosprovindosdacamada7dosítiodoBancoNacionalUltramarino,eaindadainexistênciadeanáli-sesquímicasaosartefactose,sobretudo,dedataçõespormétodosabsolutos,estenívelpoderá,eventualmente,nãocorresponderaumaunidadeselada.

Talnãoseriadeestranhar,poisestamosemplenaáreaurbana,comfortedinâmicadeocupa-çãoatéaosnossosdias.Poroutrolado,nosníveissuperioresdispõe-sesistemadecanalizaçõesefossaséptica,integradasemimportanterededesaneamentobásicodacidadedosséculosXII-XIII.Finalmente,nãoserádeexcluireventuaisníveisremexidosparaacriaçãodavaladefundaçãodopanodemuralhadafasefinaldeocupaçãomuçulmana,quepudesseatingiraquelaprofundidade.Desalientarqueaprópriavala-lixeira,quecorrespondeàcamada7,destruiuosníveisproto-histó-ricosdatadosdosséculosV-IVa.C.(Maia,2004,p.144).

Porestasrazões,podemosestarperanteníveisremexidoscomvestígiosarqueológicosdata-dosdosséculosIX-X,eeventualmentedosséculosXI-XII,estaúltimapelapresençadefragmentosdetaçacomdecoraçãoemcordasecatotal.

3. Breve descrição formal do “Vaso de Tavira”

OVasodeTaviracorrespondeapeçadeperfiltroncocónicodepastafina,contendoelementosnãoplásticosdecalcárioequartzito,decoravermelhada,defundoplanoeparedesdispostasligeira-mente na oblíqua, medindo cerca de36 cm de altura e 42 cm de diâmetromáximos(Maia,2004,p.143)(Fig.7).

A espessura do bordo resulta decanal para passagem de líquidos, queseria introduzido pela torre e que,posteriormente,vertiapororifíciosdeoitodascatorzefigurasqueornamen-tamapeça.

Estas são constituídas por seisrepresentaçõesantropomórficasecincozoomórficas. Entre as primeiras desta-cam-se três indivíduos montados acavalo, dois deles armados e no meiodestes,aparentemente,arepresentaçãode uma mulher, ornada com diademaoudepenteadotodoapanhadoepresonaparteposterior(Fig.8).Àsuadireitadispõe-se um dos cavaleiros, com acabeça coberta por turbante, armadocom aparente lança e cinturão comespada, que o tempo se encarregou de Fig. 7 PerspectivageraldoVasodeTavira(Torres,2004,p.5).

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Fig. 8 Versodastrêsfigurasacavalo(Torres,2004,p.5).

Fig. 9 PerspectivasuperiordoVasodeTavira(Torres,2004,p.6).

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fazerdesaparecer.Ooutro,noladoopostodarepresentaçãofeminina,apresentacapacetedeformacónica,espadaempunhoeescudodecombatedeformacircular,comrepresentaçãoincisa,demotivofitomórfico.Aoladodeste,dispõe-sepersonagemqueseriacertamenteumpeãoarmado,aparente-mentecombesta(Fig.9).

Àdireitadocavaleirocomturbante,seguemconjuntodemúsicos,dequeapenasrestamdois,deumpossívelquarteto,umdelessugerindotocarumpequenotamboroutanur,enquantoqueooutrotocaumadufe.Ambosapresentamacabeçacobertaporcapacetedeformacónicaepontiaguda.

No ladoopostodapeçaencontramosquatro figuraszoomórficas,muito fragmentadas,oquecondicionaasuaidentificaçãoeconsequenteinterpretação,apenassereconhecendoumboví-deo,umcaprídeoeumcamelo.Próximodobesteiro,encontra-seinequivocamentearepresentaçãodeumatartaruga,comacarapaçaprofusamentedecoradaaengobedecorbrancaeincisõesdeformacircular(Fig.10).

Atorreapresentaconjuntodediversasaves,reproduzindopossivelmentepombas,quealter-namcomesquemadecorativodepinturasabrancoeincisõesqueavalorizam.

Aenriquecertodaestapeça,foicriadacomplexagramáticadecorativaconstituídaporpinturasdecorbranca,comrepresentaçõesmuitovariadas,detemáticageométrica,fitomórfica,debolbosdelótusepalmetaseaindazoomórfica,comafiguraçãoesquemáticadepeixes(Fig.11).

fazerdesaparecer.Ooutro,noladoopostodarepresentaçãofeminina,apresentacapacetedeformacónica,espadaempunhoeescudodecombatedeformacircular,comrepresentaçãoincisa,demotivofitomórfico.Aoladodeste,dispõe-sepersonagemqueseriacertamenteumpeãoarmado,aparente-mentecombesta(Fig.9).

Àdireitadocavaleirocomturbante,seguemconjuntodemúsicos,dequeapenasrestamdois,deumpossívelquarteto,umdelessugerindotocarumpequenotamboroutanur,enquantoqueooutrotocaumadufe.Ambosapresentamacabeçacobertaporcapacetedeformacónicaepontiaguda.

No ladoopostodapeçaencontramosquatro figuraszoomórficas,muito fragmentadas,oquecondicionaasuaidentificaçãoeconsequenteinterpretação,apenassereconhecendoumboví-deo,umcaprídeoeumcamelo.Próximodobesteiro,encontra-seinequivocamentearepresentaçãodeumatartaruga,comacarapaçaprofusamentedecoradaaengobedecorbrancaeincisõesdeformacircular(Fig.10).

Atorreapresentaconjuntodediversasaves,reproduzindopossivelmentepombas,quealter-namcomesquemadecorativodepinturasabrancoeincisõesqueavalorizam.

Aenriquecertodaestapeça,foicriadacomplexagramáticadecorativaconstituídaporpinturasdecorbranca,comrepresentaçõesmuitovariadas,detemáticageométrica,fitomórfica,debolbosdelótusepalmetaseaindazoomórfica,comafiguraçãoesquemáticadepeixes(Fig.11).

Fig. 10PlanoverticaldoVasodeTavira(Maia,1999,p.31).

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4. Um objecto, várias interpretações

Adescobertadestaimpressionantepeçaquefazpartedopatrimónioislâmiconacional,susci-touarealizaçãodediversasnotícias(Bernus-Taylor,2000,p.156;Catarino,2002,p.32;Gomes,1998,p.19-20;Maia,1999,p.17-19,2003a,p.300;MaiaeMaia,2002,p.70;Maia,MaiaeTorres,1998,p.99;TorreseMacias,1998,p.216)e,maisrecentemente,foiobjectodeestudosespecíficosdedicadosàsuainterpretação(Maia,2004,p.143-166;Torres,2004).

Existemdiferençasdeopiniãorelativamenteàfuncionalidadeedataçãodo“VasodeTavira”.Osarqueólogosqueadescobriram,ManueleMariaMaia,eaindaCláudioTorres,consideramquesetratadarepresentaçãosimbólicadeumraptonupcial,servindoapeçadedoteparacasamento,aqualcorresponde,semdúvida,aumaproduçãodosfinaisdoséculoXI,ouiníciosdoXII(Maia2004,p.150-151;Maia,MaiaeTorres,1998,p.99;Torres,2004,p.18-22).

Quanto à sua funcionalidade, Cláudio Torres sugere a possibilidade de ser um vaso paracolocardeterminadaplanta,sugerindomesmoaalfádega(espéciedemanjerico),pelassemelhan-çasdapeçaalgarviacomoutraencontradanaalcariaislâmicadeBofilla,noconcelhodeBétera(Valência)(LópezElum,1994,p.324-328;Torres,2004,p.23),enquantoqueMariaMaiapropõeuma“miniatura popular de um tanque palaciano”(Maia,2004,p.151).

Fig. 11PerspectivageralVasodeTavira(Torres,2004,p.9).

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Pelocontrário,MárioVarelaGomes,consideraqueo“VasodeTavira”correspondeareci-pientedeabluções,comoformadepurificaçãoatravésdaáguaqueasfigurasvertiamparaoseuinterior,dosguerreirosrepresentados(murabitun)epreparadosparaaguerrasanta(djihad),esti-muladospelosmúsicosqueosacompanham,aseremresistenteseobstinadoscomoatartaruga.Quantoàcronologia,esteinvestigador,recuaaquelapeçaparacontextosdoséculoIX,pelassuascaracterísticas técnicas e decorativas, mas igualmente, por se enquadrar em período de grandeinstabilidadepolítico-militarqueassolouoGharb al-Andalus(Gomes,1998,p.19-20).

5. Iconografia e simbolismo

O“VasodeTavira”,possivelmentedeproduçãolocal,feitoemtornorápidoefigurasmolda-dasàmão,apresentadensaiconografiacoroplásticaepintada,comelevadacargasimbólica.

Tivemosanteriormenteoportunidadedesalientaraexistênciadeváriasfigurasantropomórfi-cas, representando uma mulher, diversos guerreiros a cavalo ou a pé e conjunto de músicos.Asreduzidasdimensõesdasfigurasaltera,decertaforma,asproporçõesdosobjectosqueostentam.Noentanto,existiuaintençãodooleirodeosrepresentarcomgranderealismo(Fig.12).

Oconjuntodeguerreiroséconstituídopordoiscavaleiroseumbesteiro.Umdoscavaleirosapresenta capacete de forma cónica e encontra-se armado com escudo circular, o qual ostentadecoraçãofitomórficaeespadaempunho(Fig.13).

Aformacirculardoescudoeasériedeimpressõesfeitasporincisãonoseubordo,remetemeventualmente a modelo elaborado em couro ou de madeira revestido por aquele material.Omodelocircularouovaladofoiutilizadopelastropasmuçulmanas,equesugereumacontinui-dadetipológicadosescudosTardo-RomanoseAntiguidadeTardia,sendoprogressivamentesubs-tituídospelaadarga,escudodeabasduplas,introduzidaspelaprimeiraveznaPenínsulaIbéricanabatalhadeZalaca(1086)pelaguardanegradeYosuf ben Tasfin(SolerdelCampo,2000,p.21;Torres,2004,p.7)(Fig.14).

Fig. 12Conjuntodefigurasantropomórficas(TorreseMacias,1998,p.216).

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EmLiètor(Albacete)foidescobertomodelodestatipologiaemmadeira,datadodosséculosX-XI,com58cmdealturaeseriaoriginalmenterevestidoemcouro,possivelmenteparareforçodasua estrutura ou suporte para eventual decoração (Navarro Palazón e Robles Fernández, 1996,p.93-94).Éigualmenteconhecidaasrepresentaçõesdecavaleirosedeguerreirosemlutacontradoisleões,empunhandolanças,espadaseescudoscirculares,dosrelevosdaarquetadeLeyre,peçadatadade1004-1005(AAVV,1992,p.198-201).

OescudodocavaleirodeTaviraoferecedecoraçãofitomórfica,certamenterepresentandoa“árvoredavida”,“árvoredoParaíso”ou“árvorecósmica”,símbolodeorigensqueremontamnoOriente à Pré-História, sobretudo na região do Egeu, desenvolvendo-se com as comunidadesmuçulmanasorientais,queadivulgaramnaPenínsulaIbérica(Gomes,1988,p.172).Temaquesecentranocaráctercíclicodaevoluçãocósmica—morteeregeneração,nosconceitosdefertilidade,deasceseeunidadeentreohomemeDeus(Fig.15).

Oguerreiroprotegiaasuacabeçacomelmodeformacónica,semelhanteaoutrorepresen-tadoemcantilprovenientedaáreaurbanadeSilves,queseintegranosfinaisdoséculoIX,princí-piosdoséculoX(Fig.16).

Comosalientámosemrelaçãoaoescudo,oarmamentodefensivoemiralecalifal,nãosofre-ramgrandesalteraçõesdosutilizadosnostempostardo-romanoevisigótico.Defacto,oselmospré-islâmicospeninsulareseramdeformacónicatipoSpagenhelmdeépocavisigóticaequecerta-menteperduraramduranteosprimeirostemposdaocupaçãomuçulmana(SolerdelCampo,2001,p.346).

Ambos cavaleiros estão com armamento ofensivo, interpretado por alguns investigadoresporespadaelança(Maia,2004,p.148;Torres,2004,p.11),masqueasuaesquematizaçãoenívelde fragmentação não permitem, infelizmente, definir características tipológicas destes equipa-mentosbélicos,queforamvariandoaolongodaIdadeMédia.Salienta-seaindaofactodeambaspersonagens,quandovistasposteriormente,estaremdotadosdecinturãoondesuspendiamespadaouadagadedefesapessoal(Fig.8).

Fig. 15Pormenordoescudodocavaleiro (Torres,2004,p.19).

Fig. 13Vistafrontaldocavaleiro (Torres,2004,p.7).

Fig. 14Vistalateraldocavaleiro (Torres,2004,p.7).

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Osoldadooupeãoestá,aparentemente,armadocombesta,apoiadaembaseemformadeforquilha.Estaarmaofensivadesempenhavaimportantesfunçõesnoscontingentesmilitares,apardosarqueiros,permitindooataqueaoinimigoamédia/longadistância(Fig.17).

São escassas as informações de quese dispõe deste tipo de armamento emcontextosmuçulmanos.Sabemos,porém,aexistênciadebestasportáteisnoOcidentedesde o Baixo-Império e que as fonteseuropeiasdocumentamasuaamplautili-zaçãonoséculoX(SolerdelCampo,2001,p.345).NaPenínsulaIbérica,asprimeirasdescrições encontram-se nas pinturasmoçárabesdeSanBaudeliodeBerlangaeno Beato del Burgo de Osma, ambos doséculoXI(SolerdelCampo,2001,p.345).

Caso a cronologia defendida porMárioVarelaGomesestejacorrecta,ecoma qual concordamos, a iconografia doVasodeTavira levantaahipótesedequeestetipodearmamentoterásidoutilizadoainda nos séculos IX-X, tornando estarepresentaçãonamaisantigadoAl-Anda-lusatéagoraconhecida.

Fig. 16CantilcomrepresentaçõesantropomórficasencontradoemSilves(TorreseMacias,1998,p.204).

Fig. 17RepresentaçãodesoldadonoVasodeTavira(Torres,2004,p.19).

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Naindumentáriasalienta-seoturbantequeumdoscavaleirosostenta(Fig.18).Estapeçadevestuário, de origem antiga, possivelmente, assíria, persa ou egípcia, é geralmente associada àsvestes masculinas. Com elevada carga simbólica e religiosa, o uso do turbante enquadra-se nanecessidadedosmuçulmanosdecobriremacabeçasemprequeestivessemdianteDeus,sobretudo,duranteoritualdaoração.

Eleé igualmentesímbolodistintivodomuçulmanoemrelaçãoao infiel.Maomépossuíaumturbante.“No dia do Juízo, o Homem receberá luz para cada volta do turbante em torno da cabeça”.Destaforma,usá-loestáconotadocomaaceitaçãodopróprioislamismo(ChevaliereGheerbrant,1994,p.667).

Além do carácter religioso desta peça de vestuário, o turbante é símbolo de investidura,sabendo-sequeoscalifasmuçulmanoscolocavam-noaosviziresduranteosactospúblicos.

De um conjunto, possivelmente, de quatro músicos, foram apenas conservados dois, umtocandoadufeeooutroumtanur (Figs.19e20).

Amúsicadesempenhouimportantepapeldesociabilidadenomundomuçulmano,buscandoassuasorigensàstradiçõesmusicaisgregas,persas,indianasebizantinas.

Esta manifestação estava profundamente marcada na sociedade hispano-muçulmana, nacorteenosmeiosprivadosquotidianosdapopulaçãocivillogonosséculosVIII-X,conformeteste-munhamalgunsartefactosencontradosemintervençõesarqueológicasdosuldePortugal,salien-tando-seostamboresdaAlcáçovadeSilves(séculoVIII)enoCasteloVelhodeAlcoutim(séculosX-XI),bemcomodoisinstrumentosdesoproprovindosdoCastelodeMértola(finaisdoséculoXI,primeirametadedoséculoXII)(AAVV,2001a,p.172;Catarino,1997-1998,p.381-382,848;Gomes,1995,p.27-30;Macias,1996,p.91;Rafael,1998,p.173).

Certosinstrumentosserviamnãoapenasparaamúsicamas,igualmente,paracomunicaragrandesdistâncias,conformepareceindicarosbúziosperfuradosexumadosemPalmela(Fernan-des,2004,p.125),hábitoaparentementevulgarizadonaPenínsula Ibéricae testemunhadoporPlínio(Guerra,1995,p.39).

AmúsicaárabeencontrouoseumaiordesenvolvimentoatravésdomecenatocalifaldadinastiaOmíadadeDamasco,posteriormenteseguidaporBagdadabássidae,maistarde,noAl-Andalus.

Estaprocessava-senumabaseessencialmenteinspiradanosgrandesteóricosdaGréciaantiga,sendoosinstrumentosdepercussão(tambores,adufes)eosdesopro(alaúde)fundamentaisparaaconstruçãomelódica(Thoraval,1995,p.222).

Ascaracterísticasinerentesdaconstruçãomusicalforamdeterminantesparaqueestafosseconsideradapordiversascivilizações,comoumramodamatemática,aharmoniaentreosnúme-roseocosmos.Ossonseritmos,astonalidadeseostimbresproduzidos,associam-seàharmoniadocosmos.

Semdúvida,queemimportantesmanifestaçõessociaisoupessoais,amúsicaestásemprepresente,desempenhandoumafunçãoascética,espiritualedecomunicaçãocomodivinoeasuaessênciasuperior.Estecaráctermísticoatingeoseuapogeunomundomuçulmano,nosufismo,doutrinaquesurgeno Iraquenos finaisdoséculoVII,princípiosdoséculoVIIIenoCaironoséculoIX,eapartirdaqui,expandindo-seportodoomundoislâmico.

Osseusseguidorespretendiamatingiroestadomístico,deuniãocomAllah,baseadoemtrêsvias:adocrente(makhafah)oudapurificação,adoamor(mahabbah)oudosacrifícioe,porúltimo,adoconhecimento(maarifah)(Thoraval,1995,p.287).

Importaaindareferirqueamúsicaestavaigualmentepresentenaguerraemanifestaçõesdeexortaçãoouincitamentoàdjihad.

Comefeito,elateriaumpapelmuitosubtil,masdeterminante,nessesrituaisdeincitamento,comoelementocoadjuvantenaelevadacargapsicológicaqueseimpunhaaosguerreiros.Saliente-

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mosquenosconflitosbélicos,alémdasopçõesestratégicasecapacidadesmilitares,oefeitodamagnificênciaou“aparato”dastropaseadeterminaçãodoscombatentessãofactoresfundamen-taise,nalgunscasos,determinanteparaodesfechofinaldasbatalhas.

Sabemoshojequeashostesmuçulmanasempunhavambandeiraseestandartes,tocavamostamboresetrompetas,comoformadeatemorizaroinimigo,assimcomoeraumelementoindis-pensáveldemanifestaçãodoseupoder.EmiconografiadasCantigas de Afonso X, O Sábio(CantigaCLXV),estãorepresentadastropasmuçulmanasacompanhadascomtamboreseanafis,prepara-dosparaaguerra.

Obarulhoproduzidopelotamborencontra-seassociadoaosomprimordial,sendoqueasuautilização em conflitos bélicos está, certamente, relacionado com o trovão e o raio, enquantoelementosdestruidores.

Asfontesliteráriascristãstestemunhamoterroreoefeitoassustadorquetodoaquelebaru-lhodesempenhavanasbatalhas.ACrónica Geral de Espanhareferequeosruídosdosseusinstru-mentos,conjuntamentecomasvozesealaridosdosmuçulmanos,eramtãograndesqueparecia,queocéueterrasefundiam(PérezHiguera,1994,p.68).Poroutrolado,comoexplicaIbn Haldu-n,tratava-sedeummeiodeexcitarovalordosguerreirosperanteamorte,salientandoqueaexalta-çãoprovocadapelamúsica,tinhaomesmoefeitoqueabebida(PérezHiguera,1994,p.65).

Nesta dialéctica de incitamento à guerra, certamente estariam relacionadas as figuraszoomórficasqueseencontramnoladoopostoaosguerreiros,nãonossendo,noentanto,possí-veldeinterpretá-lasnasuatotalidade,devidoaoelevadoníveldefragmentaçãoqueapresentam(Fig.21).

Autilizaçãoderepresentaçõesdecertosanimaisnadecoraçãodosobjectos,pelassuascaracte-rísticasmorfológicasesimbólicas,evidencia-selogodesdemuitocedonaculturaoriental,consoli-dando-seduranteaépocasassânida,comomanifestaçãodopoder(PérezHiguera,1994,p.80-81).

Umadestasfigurasdo“VasodeTavira”parecerepresentarcaprídeo,levantando-semesmoahipótesedecorresponderaveado,corçoougamo,tudoespéciesqueeramcaçadaspelascomuni-dadesmuçulmanaspeninsularesequeabundamaindahojenatoponímialocal.Recordemosque

Fig. 18Vistafrontaldocavaleiro (Torres,2004,p.18).

Fig. 19Representaçãodemúsicocomtanur (?)(Torres,2004,p.13).

Fig. 20Representaçãodemúsicocomadufe(Torres,2004,p.13).

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Fig. 21Vistageraldoconjuntoderepresentaçõeszoomórficas (Torres,2004,p.14).

Fig. 22Pormenordoconjuntoderepresentaçõeszoomórficas (Torres,2004,p.20).

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aactividadecinegéticaconferiaprestígioàselitesdascomunidadesnómadas,estando,naépocamedieval,intimamenterelacionadacomaactividadeguerreira.

ApossívelpresençadafiguraçãodeumcamelonovasodeTavirainscreve-seperfeitamentenumcontextodeincentivoàguerra(Fig.22).

Natradiçãoárabe,ocamelorepresentatodasasqualidadesdesobriedade,resistênciaerapi-dez,necessáriasàsdurascondiçõesdevidanodeserto.Eleéamontadaqueajudaaatravessarodesertoegraçasaoqualsepodeatingirocentrooculto,aessênciadivina(ChevaliereGheerbrant,1994,p.149).«OCamelo»é,igualmente,adesignaçãoqueperpetuoudacélebrebatalhatravadaemal-Basra(Novembro-Dezembrode656),entreocalifa‘Al- Ta-libeaviúvadoProfeta‘A-’ ishaacom-panhada por Talha b. ‘Ubayd Alla-h al-Taym- e al-Zubayr b. al-‘Awwa-m. Aquela figura feminina foielemento central no período conturbado resultante do assassinato do califa ‘Uthma-n b. ‘Affa-n,participandoactivamentenarevoltacontraaeleiçãode‘Al-,desenvolvendoiniciativasparaainsur-reiçãodapopulaçãodediversaspovoaçõescontraocalifa(AAVV,1975,p.424-425).

Oboi(al-baqara)eraconsideradopelosEgípcioscomoumanimallunare,paramuitascultu-ras, símbolo de resistência, força e sacrifício. No livro sagrado do Islão, al-baqara é o título da2.ªSura.Nosimbolismoberbereé consideradoumametáforade trabalho, energiae empenho(Chebel,1995,p.73-74).

Masafiguraquemelhorseidentificaé,semdúvida,atartaruga(soulahfa).Símbolodaperseve-rançaefirmeza,resistênciaeforçaobstinada.Asualongevidadeéassociadaàideiadeimortalidade(Fig.23).

Poroutrolado,acarapaçadatartaruga,deformaredonda,comoaabóbadaceleste,eacha-tadanaparteinferiorcomoaterra,centraemsi,todaarepresentaçãodouniverso,ouseja,nadamaisqueumacosmografia.OpróprioprofetadescreveoCéucomoumacúpuladenácarsobrequatropilares(ChevaliereGheerbrant,1994,p.271),semdúvidaaquirelacionadocomasquatropatasdaqueleanimal.

Fig. 23RepresentaçãodetartaruganoVasodeTavira(Torres,2004,p.15).

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Arepresentaçãodatartarugaencontra-se,igualmente,associadaàáguacomoelementorege-nerador,integrando-se,destaforma,nosdiferenteselementosqueinteragemnasimbologiaquesedesenvolvenestapeça.

Todosestesaspectoslevam-nosaumaquestãofulcralno“VasodeTavira”.Aáguadesempe-nhaumafunçãodeterminante,nãoapenasaoquerespeitaàssoluçõestécnicasquepermitemasuacirculaçãonobordoeposteriordeposiçãonointeriordoartefacto,mas,essencialmente,naesferaconceptualesimbólicadoVasodeTavira.

Aágua(al-ma)é,antesdemais,umdoselementosprimordiais,apardaterra,céu,fogoear,desenvolvendo significações simbólicas ao longo dos milénios, que se centram em três temasfundamentais — Fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração (Chevalier e Gheerbrant,1994,p.41).

Simbolizaamanifestaçãodivina,dasuagenerosidadeeavida.OpróprioHomem,segundooAlcorão,foicriadodeumaáguaderramada.Achuvaé,inclusivamente,designadaporRahmat Allah (Chebel,1995,p.149).OsJardinsdoParaísotêmregatosdeáguasvivasefontes,eopróprioTronoDivinoencontra-sesobreaságuas(ChevaliereGheerbrant,1994,p.44).

Aáguasimbolizaapureza,sendoutilizadaparaseprocederàpurificação.Apenasoorantequeseencontraemestadodepurezaritualatravésdasabluções,poderácumprircomaoraçãoritualmuçulmana(çalat).

Apurificação(tahara)estásempreligadaàágua,aofogoeaosangue,aocontráriodoimpuroqueseencontranaterra.Apurificaçãosimbolizaaaspiraçãodocrentenumaformasuperiordevida.Oprópriosomdaáguaacairéextremamenterelaxante,facilitandooprocessodeasceseecomunicaçãocomodivino.

Referimosanteriormente,queesteelementoprimordialcentraemsidiversassimbologias,salientando-seaprópriaregeneração.

NoAlcorãoéreferidoopeixequeélançadonaconfluênciadedoismares,naSuradaCaverna,equeressuscitaquandoémergulhadonaágua.Trata-se,semdúvida,deumtemainiciático—obanhonaFontedaImortalidade(ChevaliereGheerbrant,1994,p.44).

Naverdade,nasuperfícieexternajuntoàbase,estãodispostasrepresentaçõesdepeixes,quiçáumaalegoriaaofundodosmares,nesta“FontedeImortalidade”queéo“VasodeTavira”(Fig.24).

Emcertoscasos,osimbolismodopeixechegaaassociar-seà«mãodeFatma»ou«mãodeFátima», filhadoprofetaemãedoscrentes,querepresentaaprotecção, figuradacomapalmaaberta.Osdedos,recordavamaosfiéis,oscincofundamentosdoIslão,enquantoostrêsdedosmaioresrepresentamapalavraescritadeAllah(Gomes,1988,p.170).

Acimadasrepresentaçõesdospeixes,dispõem-sefiguraçõesdebolbosdelótuspintadosdecorbranca.Temadeorigemoriental,simbolizaaeternidadedavidaeharmoniadocosmos,equefoiamplamentedivulgadonaculturamuçulmana(Paulo,2000,p.230).

Finalmente,oelementoemtornodoqualoritualrepresentadonovasosedesenvolve—atorre.Correspondeaelementodeformasubcilíndrica,porondeeraintroduzidaaáguaque,porsuavez,vertiapelasdiversasfigurasdispostanobordoparaointeriordapeça(Fig.25).

Apresentaprofusadecoraçãonasuperfícieexterna,constituídaporpinturaabranco,interca-landocompequenasincisõeserepresentaçõeszoomórficas,possivelmentealudindoapombas.

Na nossa opinião, esta integra a unidade descrita como representação de um minarete(manara)deumamesquita.Esteimportanteelementodaarquitecturareligiosamuçulmanatinhacomofunçãoochamaroscrentesàsváriasoraçõesdiáriasouaopróprioreagrupamentodemuçul-manos.NestarepresentaçãoéevidenteaalusãoàconvocaçãodosguerreirosàpráticadaGuerraSantapelosimãs.

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Fig. 24PormenordabasedoVasodeTaviracomdecoraçãopintada(Torres,2004,p.17).

Fig. 25VistageraldatorredoVasodeTavira (Torres,2004,p.16).

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Esta interpretação reforça-se pelofacto de ser frequente, nas torres ouedifícioemaltura,sealojaremavescomoaspombas,ondefazemosseusninhos,coabitamereproduzem-se(Fig.26).

Senaculturajudaico-cristãapombaestárelacionadacomapureza,asimplici-dade,amensagemdodivinoeoEspíritoSanto,nomundo islâmico,pelocontrá-rio, associa-se essencialmente à imagemdamulher,amorebeleza,sobretudo,napoesia de amor árabe e persa. Porém, opombo relaciona-se com a mensagemdivina,poisforamdoisdaquelesanimaisque Allah enviou ao profeta Muhammadqueestavaescondidonacaverna(Chebel,1995,p.106).

Ascaracterísticastécnicasdefabricoedecorativasqueo“VasodeTavira”ostentatambémsugeremintegraresteartefactonosfinaisdoséculoIXeprincípiosdoséculoX.

Estapeçaapresentaprofusadecoração,atravésdepinturasaengobebrancointercalado,emdeterminadospontos,porpequenasincisõesepunçõesque,namaioriadoscasos,pretendemdarvolumetria, plumagem ou, simplesmente, preenchimento de espaço vazio, às figuras que sedispõemsobreobordo.Osprópriosmotivosdecorativosapresentamcaracterísticasqueseenqua-dramnoâmbitocronológicoproposto.

Adecoraçãopintada,decorbranca,empeçasdepastasvermelhas,alaranjadas,castanhasouacinzentadas,sobreosbordos,colos,corposeasasdasmaisvariadasformaséumatécnicafrequentena cerâmica comum, desde as produções dos séculos VIII-IX, prolongando-se pelos períodosseguintesdapresençaislâmicanaPenínsulaIbérica(Paulo,2000,p.233).

Talrealidadeétestemunhadapelosdiversosmateriaisencontradosnosprincipaisarqueossí-tiosdoSuldePortugal,nomeadamentenasintervençõesrealizadasemSilves,Palmela,AlcácerdoSal, Mesas do Castelinho, Castelo Velho de Alcoutim e Serro das Relíquias (Carvalho, Faria eFerreira, 2004, p. 41-51, 76-78; Catarino, 1997-1998, p. 851-855; Gomes, 1988, 1995, p. 24-31;GuerraeFabião,1993,p.94-100,2002,p.173-174).

Estatécnica,jáconhecidanaPenínsulaIbéricadesdeaIdadedoFerro,comacerâmicapintadaorientalizante,tevegrandedifusãoeacentuadadiversificaçãoeexpressãogramáticanaépocaislâmica.

AstemáticasdecorativasdasproduçõesdosséculosVIII-IX,devemseguiroscontributosétni-coseculturalnorteafricanos,sobretudo,berberes,emboraalgunsdenoteminfluênciasorientais,criandonovasformas,associadosaelementoscoroplásticos,desconhecidospelapopulaçãoautóc-tone.ApartirdoséculoX,verifica-seadiminuiçãodadiversidadedasformasdacerâmicacomumedatemáticadecorativa,paravoltaraacentuar-seduranteodomíniodaspopulaçõesmagrebinas(Gomes,1999,p.1659).

Apinturaégeralmenteaplicadacriandotraçosoblíquosdispostosemsérie,porvezesinterca-lando com outros colocados horizontalmente, formando género de faixas. Séries de dedadas oupinceladasformandomotivosfitomórficos,traçosondulantes,losangos,teoriasdecírculos,elemen-tosovais,finasbandashorizontaiscomreticuladonoseuinterior,sériesdetraçosdispostoshorizon-

Fig. 26PormenordatorredoVasodeTavira(Torres,2004,p.15).

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talouverticalmente,ponteados,motivosespiraliformes,enfim,umaricavariedadetemáticaqueestatécnicadecorativapermite,foisemdúvidaexploradapelosoleiroshispano-muçulmanos(Fig.27).

Apeçaalgarviaagoraemestudooferecediversificadosmotivosdecorativos,comoconjuntodeparesdepequenostraçosfeitosapincelmuitofinos,queseunemapenasnumadasextremida-desequeassentamsobretraçomaisgrossoqueseparaasdiversasbandas(Fig.25).Intercalandocom os conjuntos de traços finos, observam-se grupos de losangos preenchidos por tracejado,figuraspseudo-epigrafadas,diversoselementosfitomórficos,distinguindo-sepequenosbolbosdelótus,tambémpreenchidoscomtracejado(Fig.24).Eaantecederobordo,conjuntosdereticula-dosexecutadosporbateriasdepincéisdeespessuramuitofina,inseridosembandadelimitadaportraçosmaisgrossos(Fig.24).

Agramáticadecorativa,que sumariamenteevidenciámos, surgeemproduçõescongéneresexumadasnocasteloeáreaurbanadeSilves,CerrodaVila(Vilamoura),MértolaeAlcácerdoSal.

Éexemplodessasemelhançaosparesdetraçosverticaisqueseunemapenasnumadasextre-midades e que assentam sobre traço mais grosso, que encontramos semelhante decoração emtaças,púcaros,jarroecantildeSilveseemaguamanilexumadonoCriptopórticodeMértola.Alémdagramáticadecorativadestaúltima,afiguraçãozoomórficadobico,obordoegargaloapresen-tam semelhanças formais com a torre do “Vaso de Tavira” (AAVV, 2001a, p. 110; Bento, 1998,p.104;Gomes,1995,p.27-28,2002,p.492;GómezMartínez,1998,p.105).

Aspectointeressantenasemelhançaeuniformidadedecorativadestaspeçassão,porexemplo,ospseudo-asteriscosrealizadosnabasedatorreeporbaixodeste,nabandadecoradanoVasodeTavira, conjuntode reticulados, idênticosaosverificadosnosbordosdeduas taçasprovindasdopátioanexoaoPoço-CisternadeSilves(Silv.3Q17/C3eSilv.3Q30/C3)edepúcaroprovindodoCriptopórtico-cisternadeMértola(Gomes,1995,p.24,27;Torres,1987,n.º15)(Fig.25).

Os reticulados, inseridos em bandas,executadoscombateriadepincéis,étemadeco-rativorecorrentenasproduçõesemirais,tendosidoidentificadodeentreosmuitosexemplospeninsulares,emtaçadepastasbeges,exumadaem intervenção arqueológica decorrente daconstruçãodaBibliotecaMunicipaldeSilves,oferecendobordoplano,debasealgoconvexa,apresentandonoseuinteriormotivofitomór-ficopintado,semelhanteaoutroidentificadodo castelo daquela cidade (Gomes e Gomes,2001,p.51;GonçalveseSantos,2005,p.190).

A carapaça superior da tartaruga do“VasodeTavira”oferecebandareticuladanoseuinterior,constituídapordoistraçosmaisgrossos, onde se dispõem traços verticaisparalelos(Figs.10e23).Estatemática,queseencontraemperfeitaharmoniacomtodaagramáticadecorativadapeçaalgarvia,temparalelos em motivos inseridos em fundosdetaçasencontradasnosníveisdosséculosVIII-IXeXdeSilves(Gomes,1995,p.24,27--28,30).Fig. 27Versodarepresentaçãodesoldado(Torres,2004,p.8).

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Estas produções apresentam fortes influências norte-africanas e orientais, sobretudo nadecoração pintada, como exemplo do cantil, de círculos concêntricos descoberto na escavaçãoarqueológicadoBancoNacionalUltramarino(Tavira),comsemelhançasamotivosencontradosempúcarosejarrasdopalácioomíadadeAmman(Jordânia),queintercalamcomlinhaparalelastransversas,porvezesonduladas,bandascomsériesdepontosemotivosfitomórficosesquemáti-cos(Almagro,JiménezeNavarro,2000,p.176-182).

Arepresentaçãocoroplásticadeelementoszoomórficossurgedesdecedonaarte islâmica.NoMédioOrientesãováriasaspeçasqueaproveitamasformasdedeterminadosanimais,paraintegraremafuncionalidadedoartefacto,possivelmente,cominfluênciasegípciasehelenísticasemvasosglobularesdeformaszoomórficas,designadosporaryballoi.

Destacam-senaarteorientaloconhecidojarrocombicovertedordeformazoomórficadeUmm al-Walid,naJordânia,ouaspeçasegípciascomoosfamososaguamanisdeMarwan,embronze,comvertedoremformadegaloedatadodoséculoVIII(AAVV,2001b,p.44,53).

TambémnopalácioomíadadeAmmanfoiexumadofragmentodebicodeaguamanilcomrepresentaçãodepossívelbovídeo(Almagro,JiménezeNavarro,2000,p.209).

NaPenínsula Ibérica,este tipodeproduções teveoseumaiordesenvolvimentoduranteoperíodocalifal,declarainfluênciaoriental,sobretudo,empeçasdebronzeecerâmica.Salientam-seosaguamanisembronzecomformadepavão,ambos,eventualmente,provenientesdeCórdova,profusamentedecorados,umdatandode972eooutrodefinaisdoséculoXprincípiosdacentúriaseguinte,assimcomooutro,emformadepássaro,comamesmadataçãoeencontradonaregiãodaCerdeña(Espanha)(AAVV,2001b,p.45-50).

Nostanquespalacianoscalifaiseramcolocadasfigurasdeanimais,porvezesembronze,deondevertiaaáguaparaointerior,comoosdoiscervídeosdeMedinatal-Zahra,datadosdoséculoX(AAVV,2001b,p.190-193).

Sãotambémconhecidososcandisdebronzecomfigurasdeanimaisformandoaasa,dispos-tosnapartesuperiordoreservatórioounaseparaçãodocorpocomobico,provenientesdeCacelaeumcandilcomelementoszoomórficos,datadodoséculoX,masqueactualmentesedesconheceoparadeiro(TorreseMacias,1998,p.217-218;Vasconcellos,1899-1900,p.247).Éprecisamentenesteperíodoqueseverificamaiorrecorrêncianasrepresentaçõeszoomórficas,nãoapenascoroplásticasmas,essencialmente,figurativas,salientando-seentreoutros,osdiversificadosmotivosqueorna-mentamacerâmicaesmaltadapolicroma,comdecoraçãoaverdeemanganés,especialmenteemfundosdetaçaseexteriordegarrafasejarros,enasproduçõesemreflexometálicoorientais.

EmvalaclandestinaabertanosítiodaCasadeD.Sancho (Silves), foi recuperadobicodeaguamanil,representandocabeçadefelino,combocaabertaeasorelhaserguidas,emposiçãodeataque.Aiconografiaetemáticasugeremtratar-sedeexemplardoséculoVIII-IX,de influêncianorte-africana(Gomes,1998,p.106).

NaTravessaMartimFarto,emLoulé,foiigualmenteidentificadopequenofragmentodebicovertedorzoomórfico,comsemelhançastécnico-formaisàsrepresentaçõesdeTavira(Luzia,2003b,p.232).AliásestapeçaeajarradecoloaltoidentificadanaCercadoConvento(Loulé),comdeco-raçãopintadaabranco,commotivosconstituídosporbandasgeométricascombinandotraçoshorizontais,ponteadosesegmentosdecírculos,bemcomonobojointercalandocomgruposdetraçosoblíquosemformadeV(Luzia,2003a,p.59)feitosapincelfino,parecemenglobar-senamesmaesferaculturalemiral-califal,comgramáticadecorativasemelhante.

AindanoconcelhodeLoulé,noCerrodaVila(Vilamoura),foiidentificadobicovertedorcomrepresentaçãozoomórfica,possivelmentedegalo.Aliforamigualmentereconhecidaspeças,comoaguamanis,púcaros,jarrinhasecantarinhascomcaracteresmorfotipológicosedecorativosquese

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integramnosséculosIX-X,destacando-se,naquelaúltimaforma,decoraçãoconstituídaportrêstraçosverticaismuitofinos,unidosnumúnicoponto,queassentanaintercepçãodesemicírculos,geminadosdispostosembanda(Matos,1991,p.444-449).

NorestanteAl-Andalusforamidentificadosfragmentosdeelementosdecorativoszoomórfi-coscentrando-se,sobretudo,nosbicosvertedores.Adificuldadenoestudodestesmateriaisresultano facto de, na maioria dos casos, aparecerem descontextualizados e/ou muito fragmentados,desconhecendo-seasuafuncionalidadeecontextualizaçãohistórica.

NaMesetaespanholaforamidentificadostrêsbicosvertedoresdeaguamanil,cujosatributostécnicoseformaisforamclassificadosdoperíodoOmíada(RetuerceVelasco,1998,p.203).

EstesachadostêmaparecidoumpoucoportodaaPenínsulaIbérica,estendendo-sepelaMarcaSuperior, Costa Levantina e Gharb al-Andalus, vulgarizando-se este tipo de produções a partir doséculoIX,conformeindicamosníveisidentificadosemPechina(RetuerceVelasco,1998,p.205).

Nestesentido,asimbologiaquenorteiao“VasodeTavira”evidenciatodasasqualidadesqueos murabitun desejavam alcançar, com resistência e rapidez como o camelo, e a perseverança,firmeza,resistênciaeforçaobstinadaquerepresentaatartaruga,fiéisaoIslão,purificadoseagindoemnomedeAllah.

6. Evocando Yam-la – da lenda ao objecto

Aolongodetodasestasconsideraçõesquetemosvindoaexpor,leva-nosaevidenciarqueoVasodeTavira,deverá,defacto,corresponderapequenapiadeabluções,transmitindoumamensa-gem de apelo à Guerra Santa (Djihad), através de conjunto de elementos com elevada carga designificadosesimbolismos,talcomoédefendidoporMárioVarelaGomes(1998,p.19-20).

Contudo,sobressainesteconjunto,afiguramontadaacavalo,querepresentaumamulher,aparentementedesenquadradadestapropostadeinterpretação(Fig.28).

Ela é a figura central na dialéctica desenvolvida no vaso,tendosidoabaseparaalgunsinvestigadoresconsideraremquenestapeçaseencontravaarepresentaçãodeumraptonupcial,possivelmente,deorigemberbere.

No Alcorão a mulher é apresentada como virtuosa, boaesposa,comrespeitopeloseumaridoesubmissaaoscostumesestabelecidos. Com efeito, ela desempenhava importantesfunções no seio da família, tendo, em contrapartida, umavertenteaonívelsocial,menosvisível.Aliásnemopodia,poisesseestavareservadoaohomem.

Aonívelprivado,elaexerceumaacçãoestruturante,regidapelosentimentodeamor,fidelidadeehonradafamília,defesadoprestígiosocialdomaridoeaconselhamentoadeterminadosproblemas que o afectam, mas sendo apenas ele quem tem adecisãofinal.Assim,oelementofemininoexercefunções-chavena vida social, nomeadamente, na educação das crianças e deautoridademoraldogrupofamiliar.

Sãomuitosospoetasmuçulmanosqueexaltamoamor,abeleza física, os atributos de fidelidade e dedicação das suasesposas, demonstrando respeito e amizade por elas, como

Fig. 28RepresentaçãofemininanoVasodeTavira(Torres,2004,p.18).

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descreveIbn ‘Arabi,dasua«santaesposa».OuIbn Darrag al Qastalli,habitantedeCacela,nosfinaisdoséculoX,queexprimenumpoemaoseugrandeamor(Boissellier,1999,p.202).

Mas, no mundo muçulmano, vamos descobrir que existem algumas diferenças ou certasvariaçõesquantoaopapelsocialdamulher,nomeadamenteentreaocidentaleaoriental.

Comefeito,amulherárabeocupasempreumaposiçãosecundáriaemrelaçãoaohomem,devendohonrá-lo,preservarasuanobrezaeimagemsocial,sempredeumaformapassiva.Todaasuaactuaçãodevesercomrespeitoedeumaformahonrosaparacomoseumarido.Eladevecobrirasuaface,terumaposturasubmissaperanteavidaeosoutros.

Contudo,nacomunidadeberbere,apesarde tambémseencontrar socialmentesecundari-zadaqueemrelaçãoaohomem,amulherdetémmaiormargemdeactuação,existindomaisconsi-deraçãoegozandodeumamaior“liberdade”,contrastandocomoestadodesubserviênciaqueencontramosnamulherárabe(Guichard,1998,p.108).

Aestefactonãoestaráalheioofundoculturalquesemprepersistiutardo-romano,visigóticoecristãonaPenínsulaIbéricaeMagreb,bemcomo,daprópriatradiçãobeduína(Guichard,1998,p.109,121-140).

ÉreconhecidoqueoprocessodeislamizaçãodoAl-Andaluscriounovastradições,costumesereligiãonaesferaculturaledasmentalidades,masfundouigualmenteumadialécticaentreestaseofundoculturalautóctone.EstefactofoidamesmaformadeterminanteparadiminuiraforçadosrígidospreceitosdoIslãosobreamulherhispano-muçulmana(Guichard,1998,p.147).

AolongodaHistóriaexistemdiversosexemplosdemulheresqueemmomentosespecíficossurgemcomumpapelmaisactivonavidapolítica,socialemilitar,desempenhandofunçõesquediríamosmaisreservadasaohomem,situaçãoverificada,geralmente,emcomunidadesougruposquetêmconceitosmaisflexíveiseondeamulherseencontranumasituaçãomais“privilegiada”.

SãoexemplososcasosdairmãdeFirmus,quesesobrelevoucontraosromanosnoséculoVI,adeKa-hina,nomequedesigna«aprofetisa»ou«aadivinhadora», figuraquealcançoudiversasvitóriasàfrentedassuastropasberberescontraosárabes(séculoVII-VIII),aviúvadoProfeta‘A-’ isha(656)queseopôsaocalifa‘Al- īTa-īlibeaindaasprincesasdaépocaalmorávida(Guichard,1998,p.106).

Estas«mulheresdeacção»foramdeterminantescomosímbolosderesistência,combateedeapeloaoespíritoguerreiro,marcandoaslendasetradiçõesmuçulmanaspeninsulares.

No Al-Andalus do século IX, reconhece-se a presença de uma figura feminina de origemberbere,denomeīYam-la,irmãdorebeldeMahmud ibn ‘Abd al-Jabbar,deMérida.Ibn Hazm,exaltaī Yam-la,quenãovacilavaemparticiparnoscombates,damesmaformaqueoshomens,tornando-sefamosapelasuabravura(Guichard,1998,p.106).

Defacto,oséculoIXéumperíodoemqueoAl-Andalusassistiuaumjogodetensõespolíticasesociais,nomeadamenteétnicas,entreberbereseacortedeCórdova,acentuando-se,sobretudo,na segunda metade da centúria. A revolta estendeu-se nas áreas de predomínio berbere, essen-cialmentenoCentroeNortedaPenínsula,cominsurreiçõesemdiversascidades,salientando-seaquelasocorridasemMéridaeToledo(Guichard,1998,p.276-278).

Lisboa,porexemplo,revolta-senosanosde808-809,lideradaporHazim Ibn Wahb,repercu-tindo-seemtodaaregiãoocidental,especialmenteemCoimbraeBeja.Em809tropasdoemirdeCórdova, Al-Hakam I, comandadaspor seu filho,opríncipe Hisham,puseramfimà insurreição(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.104).

Entre811-812e,maistarde,entre818-819,oemircordovêsviu-senanecessidadedeenviartropasparaaMarcaMédiaedesitiaracidadedeToledo.Simultaneamentetevedelutarcontramuladieseberberesinsurrectos,tendoMéridacomocentroderesistência.

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Apósseteanosdeoperaçõesmilitares,Al-Hakam Irestabeleceuaordem,apesardenãoserpormuitotempo.AprópriacidadedeCórdovafoipalcoderevoltasentre805e818.Apardasinsur-reiçõesmuçulmanasnaszonasfronteiriças,houvediversasincursõescristãs,sobreváriascidadeseterritóriosislâmicos.

ComasubidaaopoderdocalifaomíadaAbd al-Rahman II,eapesardasofensivascomotenta-tivadeestabilizaçãodosterritóriosfronteiriços,promovendováriasincursõesaosreinoscristãos,continuavamahaverinsurreiçõescontraogovernodoemir.

Mérida, talcomoToledoeZaragoza,capitaisdeMarca,cidadesde fundaçãoantigaequeresistirammuitoantesdeintegraremaesferapolíticadoIslão,eraconstituídaporumapopulaçãomaioritariamentedemuladiseberberes.Arelativaproximidadecomosterritórioscristãos,possi-velmente com algumas relações económicas, na verdade em muitas circunstâncias se revoltoucontraogovernocentraldeCórdova(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.138).

Foinestecontextoqueduranteoanode828,oshabitantesdeMéridasejuntaramaoslíderesrevoltosos,oberbereMahmud Ibn ‘Abd al-JabbareomuladiSulayman Ibn Martín,destruindotudooquepudesseligaraopodercentralomíada,assassinandoogovernadornomeadodacidade,Marwan al-Chiliqí(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.139).

Apósváriastentativas,osexércitosdeAbd al-Rahman IIconseguiram,em830,fazercomqueoshabitantesdeMéridaserendessem,restabelecendoaordemeaautoridade.Noentanto,nosanosseguintesoemirtevedeprocederadiversasincursõesparamanutençãodapraçarebeldeedosterritóriosdaMarcaInferior.Foiprecisamentenoanode835que,aacreditarnalápidedefundaçãoqueaindaaliseencontradisposta,foierguidaafortificaçãodeMérida,comoformadecontrolarnovarebeliãoedeservirdeguarniçãoàstropasomíadas.

Segundo o documento de Ibn Hayyan, Mahmud Ibn ‘Abd a-Jabbar e o Sulayman Ibn Martínconseguiramescaparantesdatomadadacidadepeloemir,pedindoasiloinicialmenteaBadajoze,posteriormente,aoutroscastelosdoValedoGuadiana(IbnHayyan,2001,p.299).

A dedicação e convicção nos seus ideais levaram a que se separassem, tendo Sulayman Ibn MartínseinstaladononortedoAl-Andalus,estabelecendoasuaguarniçãonocastelodeSantaCruzdelaSierra,pertodeTrujillo,ondefoiderrotadoporAbd al-Rahman II em834.Posteriormente,ofilhodeSulayman,Muha-gireosrestantespartidáriosjuntaram-seaMahmud.

Pelocontrário,Mahmud Ibn ‘Abd al-Jabbarestabeleceu-senovaledoGuadiana,possivelmenteemBarrancos(IbnHayyan,2001,p.299-300).ComosreforçosdeMuha-gir,decidiudeslocar-secomosseuspartidáriosberberesesuasmulheres,paraaprovínciadeOssonoba,pelafertilidade,inaces-sibilidadedassuasmontanhaseporficarafastadodosseusinimigos(IbnHayyan,2001,p.300;Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.140).

OshabitantesdeBejaaotomaremconhecimentoqueastropasdeMahmudiampassarnoseuterritório,organizaramumnumerosoexércitoparalhesfazerfrente.

OconfrontocomastropasdeBejaeavitóriaqueMahmudimpôscomumexércitodemenornúmerodeefectivosérelatadoporIbn Hayyan(2001,p.300-302).

PosteriormenteseguiuparaoAlgarve, instalou-sepróximodacosta,nocastelodoMonteSacro(?)(Monchique),ondepermaneceulargosanos,fomentandoarevoltanaregiãoematandoosleaisaocalifa(IbnHayyan,2001,p.303).

Desconhece-sea fortificaçãoreferidaporIbn Hayyan.Noentanto,desdeoséculoXIXqueEstáciodaVeigaidentificounaSerradeMonchiqueoCastelodoAlferce,dadoaconhecerporsuasobrinha-netaMariaLuísaEstáciodaVeigaSantos(1972,p.69).Fortificaçãodeplantadeformarectangular,dotadadecisternanoseuinterior,oferecesegundalinhademuralhaquecontornaatopografiadoterreno,estacertamenteconstruídaposteriormente,nafasefinaldoperíodoislâ-

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mico,paraadefesadeumadasprincipaisviasdeligaçãoentreoBaixoAlentejoeoAlgarve(Gomes,2002,p.123-126).Recenteprojectodeinvestigaçãoversandoaquelemonumentomilitar,desen-volveuintervençãoarqueológicaidentificandoespóliointegrávelnoperíodoemiral-califal,asso-ciando-seaesteatipologiadaestruturadefensivacentral(Grangé,2005,p.162-171).

Apósoenviodediversasmilícias,olíderrebeldefoidaliexpulsopeloexércitoomíadaem838.Dirigiu-seàGalizaerecebeudeAfonsoIIumfeudonazonafronteiriçaentreoPortoeLamego,reali-zandofrequentesraziaseincursõesemterritóriomuçulmano(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.141).Posteriormente,Yam-lapromoveavindadeMahmudparaoAl-Andalus,salientandoafidelidadeaosoberanodeCórdova,chegandoaqueleaescreveraAbd al-Rahman II,ondelhepediaperdãopelasuaconduta(Levi-ProvençaleGarcíaGómez,1967,p.141;Guichard,1998,p.106).AoterconhecimentodestasituaçãoAfonsoIIdecideatacarofeudodeMahmud,quefoipresoemortoem840.

OperíodoconturbadodaprimeirametadedoséculoIX,prolongou-sepelasdécadasseguin-tesnaMarcaInferior,sobretudopelomovimentopromovidoporIbn Marwaneosrestanteslideresdos pequenos reinos independentes. A partir dos finais da centúria, o movimento de rebeliãodesencadeouumaverdadeiraguerracivil,chegandomesmoahavernaactualregiãodoAlgarve,insurreiçõeslocaisdemuladieseberberes.ÉprecisamentenesteperíodoqueseformamdiversosreinosondeseencontraodeIbn BackremOssónoba.

Emnossoentender,afigurafemininarepresentadano“VasodeTavira”poderáevocarprecisa-menteadeYam-la,enquantosímboloderesistência,deapeloaocombateedeincentivoàGuerraSanta.SalientaIbn Hayyan,queosfeitosheróicosqueYam-ladesenvolveunabatalhacontraastropasdeBeja“foicomentadaportodaagentenadiversascomarcasdoAndalus,sendoafaçanhacantadanasfestasdasregiõesdoOcidentedurantemuitotempo”(IbnHayyan,2001,p.302).AqueleautorreferemesmoqueolíderrevoltosoteveajudadeDeusparatãograndevitória(IbnHayyan,2001,p.303).

AdivulgaçãodaimagemecargasimbólicadeverátertidomaiordifusãoquandoseuirmãoMuhamudestevenoAlgarve,conspirandocomoutrosrevoltososdaprovíncia.

Comefeito,arepresentaçãofemininadapeçadeTavira,nãoapresentaumaposturasubmissa,dequemestavanocentrodeumraptonupcial.Pelocontrário,elamostraumaposiçãoagressiva,diriamesmodecombate,demonstrandoasuabravuraecoragem.Aposturadebraçosabertosevidenciaaafirmaçãodoindivíduo,ésemdúvida,umaposiçãodeconfrontação,deataque.

Lamentavelmentenãodispomosdosmembrossuperioresdafigurafeminina,queatépodiamempunhar o estandarte de Mahmud que a crónica refere, quando Yam-la liderou a cavalaria demulheres(IbnHayyan,2001,p.302).

Poroutrolado,salientemosqueoraptonasociedademuçulmanaeraconsideradodesonrosoparaafamíliaougrupovítimadorapto,daíqueesteeraconsequentementepraticadoquandosetratavamdegruposinimigosouestrangeiros(Guichard,1998,p.79-80).

OsfeitosdeYam-lanocampodebatalha,certamentevalorizadopelasuacondiçãodemulher,tornou-senummitooulenda,representadonumapiadeabluções,constituindoumexemploaseguir, um ideal, integrado num ritual de purificação de preparação para guerra santa. Nestesentido,podemosmesmolevantarahipótesedequeasrepresentaçõesdosdoiscavaleirossãoosdeMuhamud Ibn ‘Abd al-Jabbar eSulayman Ibn Martín,ouentãodeseufilhoMuha-gir.

Comestaimportantepeça,concluímosqueTaviraesteveenvolvidaequeasuapopulaçãoparticipouactivamentenesteperíodotãoconturbadodaHistóriadoGharb Al-Andalus.Desconhe-cemososgruposétnicosqueconstituíamapopulaçãohispano-muçulmanadeTavira.Porémsabe-mosquearegiãodoAlgarvetevefortecolonizaçãoberbere,encontrando-semesmonotermodeTaviradiversostopónimoscomoBemParece,Benamor,BenalforouBengado,possivelmenteradi-candoasuaorigemnonomeBanu ‘Amir(Marques,1993,p.141).

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7. Considerações finais

Arealidadeartefactualqueo“VasodeTavira”easrestantespeçasqueseencontravamasso-ciadas, como o contentor de forma toncocónica com orifícios aparentemente para suspensão,panelasepúcaro,ajarraoferecendocorpoglobularachatadoeassenteemfundoalgoconvexo,gargalotroncocónicoeduasasasopostas,decoradaporlinhashorizontaisepequenostraçossub-verticais, comclarosprotótiposemAlcácerdoSaleSilves, classificadosdos finaisdoEmirado(Fig.29),ocantileumaasadetalhadeformazoomórfica,exumadanasescavaçõesarqueológicasdaPensãoCastelo,naáreaurbanadeTavira,emuitopróximodoarqueossítiodoBancoNacionalUltramarino,oferecendodecoraçãodelevestraçosdeengobebranco(Fig.30),apresentamumauniformidadetecnológicaedecorativaqueseenquadramnosfinaisdoséculoIXeprincípiosdoséculoX.

Ascaracterísticasformaisdo“VasodeTavira”resultamdospreceitosnecessáriosdoritualdaablução.

Na Península Ibérica conhecem-se actualmente apenas mais duas peças com semelhançasformais.NaalcariaislâmicadeBofilla,naregiãodeBétera(Valência),foramencontradosdoisreci-pientesdecerâmicacomtipologiasemelhanteaodeTavira,masdivergindoemdiversosaspectos(LópezElum,1994,p.324-328)(Figs.31e32).

Ambaspeçasespanholassugeremfuncionalidadedistinta,servindocomovasoparafloresououtrotipodeplanta,existindoparaesseefeitopequenoorifícionabaseparaoexcessodeágua(Fig.33).SegundoLópezElum,aindahojeétradicionalnasfestasdeAgostodaregiãodeBétera,autilizaçãodevasosparaplantaralfádega(espéciedemanjericão),equesãocolocadasnasportasejanelasdashabitaçõesparticulares(LópezElum,1994,p.324-325).

Fig. 29JarradescobertanasescavaçõesarqueológicasdoBNU(Maia,2003b,p.301).

Fig. 30AsadetalhadescobertanasescavaçõesarqueológicasdaPensãoCastelo(Maia,2003c,p.301).

Fig. 31VistageraldapeçaencontradanasescavaçõesarqueológicasemalcariaBofilla(Valência)(LópezElum,1994,p.325).

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Por outro lado, estas peças não usufruem da riqueza decorativa que a congénere algarviaapresenta,desprovidasdepinturasouqualquertipodeacabamento.Adecoraçãoplásticadispostaigualmentenobordolimita-seaconjuntosdeelementogeométricossugerindopequenastorresecúpulas.

Apenasumadestaspeçasdetémsistemainternoporondepassariaoslíquidosnelaintrodu-zidos.Aáguaseriaigualmenteconduzidaporumatorre-funilevertiaapenasportrêsdasquinzefigurasqueacompõem,produzindoumaregacontroladaparaointeriordorecipiente.

AcresceaindaaausênciadeníveisestratigráficosemBofilla,pelofactodosubstratorochosoestarmuitoàsuperfície,pelosdanosprovocadospelostrabalhosagrícolas,peladinâmicaconstru-tivamedievalterdestruídoosvestígiosmaisantigos,eaindapelopovoadotermantidoumaocupa-çãobastantevastadesdeoséculoXIaoXIV(LópezElum,1994,p.136).

ApesardassemelhançasformaisentreaspeçasdeBofillaedeTavira,verificamosqueambastêmfuncionalidadesecronologiasmuitodistintas.

O“VasodeTavira”encerraemsimúltiplosaspectossobrearealidadevividapelascomunida-deshispano-muçulmanasdoGharb al-Andalus.

OselementossimbólicoseconceptuaisdecadafiguramoldadaerepresentaçãopintadaempeçadestinadaapiadeabluçõesparaintegrarritualdeincitamentooudepreparaçãoparaaGuerraSanta(djihad),emquecadaumdesseselementostransmitiamaosmurabitumosvaloresnecessáriosparadefenderoIslão.

Adescobertadestaimportantepeçanaáreaurbana,remetendoaeventual“mito”ou“lenda”deMahmud Ibn ‘Abd al-JabbaresuairmãYam-la,ecomcaracterísticastécnico-formais,integráveisnosfinaisdoséculoIXeprincípiosdacentúriaseguinte,recolocaaquestãodasorigensmuçulma-nasdacidadedeTaviraeasuaimportânciaestratégicanocontextogeo-políticoeeconómicoislâ-micodoSotaventoAlgarvio.

Fig. 32VistageraldeoutrapeçasemelhantedescobertaemBofilla(Valência)(LópezElum,1994,p.328).

Fig. 33PerspectivasuperiordapeçadaalcariaBofilla(Valência)(LópezElum,1994,p.326).

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NOTAS

* Arqueólogo. BolseirodaFundaçãoparaaCiênciaeTecnologia– IIIQuadroComunitáriodeApoio. [email protected]

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