o sentido do lugar - funceb · 28 ano xiii / nº 23 c ristian norberg-schulz no cl!ssico livro g...

13
................................................ O Patrimônio da Engenharia Militar portuguesa em escala planetária

Upload: doankhanh

Post on 14-Aug-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

28 ANO XIII / Nº 23

Cristian Norberg-Schulz no clássico livro Genius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o caráter de um lugar comouma “atmosfera” que exprime o genius loci, o espírito do lugar, a sua identidade. Edificações que tomam partido das propriedades do sítio, incorporando as múltiplas forças ali existentes, em geral, desfrutam dessa condição. Através da interação do edifício com a superfície, o relevo, a vegetação e a água, sítios conver-tem-se em “lugares”. O legado da engenharia militar lusa no mundo provoca esse tipo de sensação. Implantados em situações geográ-

ficas e sítios estratégicos tanto para comércio como para a guerra, com rara sensibilidade, fortalezas e fortes amalgamam-se à paisagem e dela tiram partido. Na África, Ásia, Ocea-nia e América do Sul tal herança apresenta características comuns aclimatadas às mais

O sentido do lugar

................................................

O Patrimônio da Engenharia Militarportuguesa em escala

planetária

Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno

Page 2: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

29ANO XIII / Nº 23

diferentes latitudes. A escala planetária do império não impede o reconhecimento de uma identidade lusa. Para além do pragma-tismo militar e mercantil, essas edificações notabilizam-se pelo respeito ao sítio, aco-modando-se ao relevo, gozando do regime de ventos, das boas aguadas, da fertilidade do solo, bem como incorporando os mate-riais ali disponíveis para a construção. Dessa sensibilidade resulta sua tectônica e longe-vidade. A força do edifício espraia-se num raio envoltório, configurando verdadeiros oásis de ambiências remanescentes de outros tempos. Afinal, a arquitetura militar exigia visão desimpedida, o que condicionava uma mancha livre de construções sempre que possível. Esse patrimônio carece de políticas de preservação de conjunto e boa parte dos exemplares está em ruínas ou intimidada em face às adversidades da vida contemporânea de cada país. Neste ensaio nos propomos a analisar alguns casos, aguçando o olhar e exercitando a faculdade de “pensar con los ojos”, feliz expres-são cunhada pelo saudoso historiador de arte Damián Bayón. A ideia é perceber afinidades na pluralidade de possibilidades e respostas. Tal como as plantas, a arquitetura militar aclimatou-se ao sabor dos interesses políticos e condicionantes materiais em jogo. Considero imperativo hoje descortinar a sabe-doria inerente a cada projeto, para além de suas bases teóricas. Em Desenho e Desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822), focalizei o desenho como instrumento de reflexão, pro-jeto e expressão de um conceito, com evidentes implicações políticas. Procurei destacar a inter-dependência entre teoria e prática, com maior ênfase na primeira; neste ensaio, o acento vai para a experiência e a sensibilidade que orien-tavam a segunda. Um conjunto de preceptivas balizava a prática, mas a metodologia de pro-jeto jamais prescindiu de minucioso exame do sítio, em geral, resultando em fortificações tendencialmente regulares ou absolutamente irregulares em face aos modelos geométricos

perfeitos. Longe de significar distanciamento do corpus teórico ou desordem, nisso reside a sabedoria da chamada Escola Portuguesa de Arquitetura Militar e Urbanismo e seus vestígios materiais hoje tiram o fôlego tanto dos turis-tas como dos pesquisadores. Outrora difícil, a análise comparativa é possível graças ao inventário publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2010, contemplando o patri-mônio de origem portuguesa como um todo (www.hpip.org). Da mesma forma, os desenhos antes encerrados em cofres e gavetas estão em boa parte informatizados, permitindo livre acesso por meio da internet (Projeto SIDCar-ta1, Projeto Tesouros da BNL2, BNRJ, Arquivo Virtual de Cartografia3).No Marrocos, sobressai-se a imponen-te Mazagão, não à toa eleita Patrimônio da Humanidade; Ormuz no Golfo Pérsico; na Índia as chaves do Golfo de Cambaia, Chaul, Damão, Diu e Baçaim; na China, a pérola do delta do rio das Pérolas, Macau; no Brasil, o sistema de defesa do Canal do Casqueiro em Santos, da Baía de Guanabara no Rio de Janeiro, do Rio Espírito Santo em Vitória, da Baía de Todos os Santos em Salvador, do delta dos rios Capibaribe e Beberibe no Re-cife, da foz do Rio Paraíba em João Pessoa e do delta do Rio Pindaré em São Luís, entre muitos outros. Todos os casos, sem exceção, destacam-se tanto por seus atributos físicos como simbólicos, e irmanam-se ao aclimatarem um certo partido luso, tirando proveito de situações geográficas escolhidas a dedo. Na selva ou no deserto, no litoral ou no sertão, as fortalezas alinham-se à paisagem, tirando dela inspiração para uma composição harmônica 1. Projeto SIDCarta(Sistema de Informação para Documentação Car-tográfica): o Espólio da Engenharia Militar Portuguesa, do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, associado à Direcção dos Serviços de Engenharia do Exército, disponível em http://www.exercito.pt/bibliopac/.2. Projeto Tesouros da Biblioteca Nacional de Lisboa, disponível em http://purl.pt/369/1/cartografia.html; Mapas da Biblioteca Nacional de Lisboa, disponível em: <htpp://purl.pt/index/cart/PT/index.html>; e, também, Projeto Nova Lusitânia, disponível em http://purl.pt/103/1/.3. Ver Manuel Teixeira (Org.), Arquivo virtual de cartografia, disponível em http://urban.iscte.pt.

Page 3: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

30 ANO XIII / Nº 23

e respeitosa. Diante de rara beleza, fruto do engenho humano, nosso espírito suspira e reverencia um legado que muito nos orgulha.Uma experiência acumuladaem diversas paragens

Pragmatismo era palavra de ordem esempre esteve associado a empirismo, envol-vendo tentativas e erros, derrotas e acertos.Pontos chave foram ocupados nas costas das Ilhas Atlânticas, da África, do Mar Vermelho, do Golfo Pérsico, da Índia, do Ceilão, da Península Malaia, da China, das Ilhas do Japão, da Oceania e do Brasil. Todos foram estratégicos para as rotas comerciais dos primeiros séculos. Se predominaram os fortes-feitoria às vilas e cidades, não foi por falta de planejamento, mas economia de meios frente a um império de proporções planetárias. Lugares diversos condicionaram políticas variadas. Os sultanatos do Oriente e o tipo de produto ali coletado induziram à feitorização, com raras cidades situadas es-pecialmente na Índia. Entre Sofala e Macau, a Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India …, do Cosmógrafo Mor António de Mariz Carneiro, de 1639, menciona 54 fortalezas, fortes e feitorias. Só na Índia eram 7 cidades e 26 feitorias-fortaleza. No Brasil, a produção de açúcar exigiu a colonização e, até 1580, foram fundadas 12 vilas e 2 cidades (Salvador e Rio de Janeiro). Jamais linear, tampouco errática, a política portuguesa aclimatou-se ao sabor das circunstâncias comerciais e políticas em jogo.Se tivesse que resumir em poucas linhas as características essenciais da ar-quitetura militar de origem portuguesa no mundo, não hesitaria em dizer que os exemplares irmanam-se pela sensibilidade à situação geográfica e ao sítio. Escalas diferen-tes, a situação geográfica refere-se a escolhas geopolíticas e comerciais, envolvendo portos seguros, de calado profundo, litorâneos ou interiorizados, pontos chave para conquista de

um território que se pretendia assegurar; o sítio envolve questões topográficas para fins mili-tares e de sobrevivência, tais como relevo, ve-getação, bons ares, bons ventos, boas aguadas e bom solo. Em geral, nos séculos XVI e XVII predominaram as implantações litorâneas, jamais a mar aberto, estrategicamente situadas em ilhas, baías ou na barra de rios que permi-tissem a penetração no continente em busca de mercadorias interessantes aos olhos euro-peus. No sertão, foram instaladas ao longo de rios, em geral na confluência de mais de um, camuflando-se na paisagem e notabilizando--se por sua eficácia militar. Observa-se que na maioria dos casos os portugueses não partiram do zero, mas sequenciaram escolhas dos povos nativos, realizadas em outros tempos, em res-posta a outros intentos. Embora os desígnios fossem outros, o reiterar de uma ocupação pregressa se por um lado envolvia a percep-ção de que se tratava de um excelente “nicho ecológico”4 para a sobrevivência dos ádvenas em solo estrangeiro, por outro impunha-se como determinante para assegurar pontos estra- tégicos em rotas comerciais ancestrais e, por isso mesmo, sedutoras ao mercantilismo então vigente. Os sítios uma vez ocupados pelos portugueses convertiam-se em “luga-res” representativos da sua presença política, metaforicamente investidos da conotação de “chaves” de um território e de um comércio que se pretendia dominar. Às vezes se tratava de meras escalas nas rotas das grandes via-gens, pontos de parada para abastecimento e aguadas, tal como a Ilha de Moçambique. No entanto, na maioria dos casos predominou o controle de entrepostos de mercadorias como ouro (Costa da Mina), escravos (Angola), artigos de luxo (Golfo de Cambaia), pimenta (Cochim), cravo (Malaca), canela (Ceilão – Sri Lanka), pérolas (Macau), sândalo (Timor), açúcar (Brasil e Ilhas Atlânticas) etc. 4. Sobre o tema, ver Rubens Gianesella, Paisagens do tempo: vilas litorâneas paulistas, 2008.

Page 4: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

31ANO XIII / Nº 23

Tal partido não me parece exclusivo dos portugueses, sequenciando uma certa tra-dição mediterrânea amadurecida sobretudo pelos romanos que, ao contrário do que pa-reciam à primeira vista, também raramente partiram do zero, em geral implantando seus núcleos em sítios previamente ocupados pelos povos nativos, acomodando o tabuleiro de xadrez - geratriz do castrum e da urbs - à paisagem, adaptando-o às circunstâncias, o que resulta em espaços menos abstratos e geometricamente regulares do que se pen-sava. O caso de Coimbra é paradigmático nesse sentido.5Pois bem, se não inventaram o par-tido, os portugueses o replicaram e amadu-receram à exaustão em outros continentes, promovendo salutar diálogo entre padrões eruditos e experiência prática resultante de pormenorizado levantamento topográfico.

A experiência magrebinaNa costa norte da África, a fortalezade Mazagão – atual El Jadida no Marrocos - é um notável testemunho do engenho português em primórdios do século XVI. Tratava-se de um porto de comércio e de embarque de cereais (especialmente o tri-go), cortejado pelos portugueses desde fins do século XIV a 1514, depois conquistado e convertido em fortaleza entre 1541 e 1769. Implantada numa ampla baía com fácil acesso ao mar, Mazagão ficava a 15km de praia da barra assoreada do Rio Umme Ar-rebia, onde estava instalada Azamor. Junto de Ceuta e Tanger, ambas compunham a rede de fortalezas lusitanas que fazia face à presença árabe ali dominante. Conquistadas em conjunto, Azamor e Mazagão mereceram a construção de fortalezas sobre núcleos

5. Ver site Revista Monumentos da DGEMN–Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais.Praça de Mazagão. Casa da Ínsua, Castendo, Portugal.

Page 5: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

32 ANO XIII / Nº 23

preexistentes, permitindo usufruir do porto com segurança. No caso de Mazagão, o feito envolveu a consultoria de um engenheiro militar italiano, Benedetto da Ravenna, cujos planos continham intenções referentes ao perímetro abaluartado. No entanto, suas traças funcionaram como indicações e o trabalho pesado coube aos mestres pedreiros Miguel de Arruda, João de Castilho, João Ribeiro e ampla equipe, que acomodaram o projeto sobre ampla plataforma rochosa. A empreita custou muito caro aos cofres da Coroa, implicando o corte de pedra calcária de boa qualidade em pedreira vizinha e no deslocamento de centenas de soldados e pedreiros do reino. O resultado é uma forta-leza tendencialmente regular, com baluartes modernos para acomodar canhões, rodeada por um fosso de água salgada e dotada de autossuficiência de água potável fruto de uma cisterna instalada embaixo do primitivo castelo construído pelos portugueses anos antes, eleita centro do polígono. O castelo transformado em cisterna estruturou o te-Gaspar Correia, Ormuz, in Lendas da Índia, século XVI. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo.

cido urbano, que avançou a linha da costa em aterros sobre o mar - grande parte do perímetro amuralhado foi construído so-bre o mar. Fossos foram abertos na rocha sobre a qual foi assentada parte do núcleo. As grossas muralhas e os cinco baluartes foram construídos para fazer face às ar-mas de fogo, grande novidade no período. Com cerca de cinco hectares, o perímetro abaluartado implantou-se sobre o núcleo preexistente não planejado, recortando--o, numa estratégia de “atalho” que será recorrente na prática portuguesa. As ruas da Carreira, Direita, dos Celeiros, entre outras, cruzam-se em ângulo reto em redor da Praça de Armas onde se concentravam os edifícios públicos representativos do poder luso – Palácio do Governador, Igreja Matriz e Hospital da Misericórdia. Nota--se flexibilidade no assentamento do novo sobre o antigo núcleo urbano, adaptações e acomodações. A “primeira cidade ideal do Renascimento fora da Europa”, como define Rafael Moreira, era menos regular

Page 6: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

33ANO XIII / Nº 23

e abstrata do que parecia à primeira vista. Embora muito alterada pela sobreposição desigual de camadas de tempos, suas “ru-gosidades” (expressão de Milton Santos em A natureza do Espaço) exprimem vestí-gios das opções que orientaram a ocupação daquele sítio. A pedra calcárea aparelhada, robusta, de grandes dimensões, dá a medida dos desafios impostos pelo meio e do enge-nho lusitano em implantar uma fortaleza de cantaria em solos onde predominava a taipa de pilão.A chave do Golfo PérsicoOutro exemplo espetacular é a fortaleza portuária de Ormuz, capital do Reino de mesmo nome, implantada numa ilha na boca de acesso ao Golfo Pérsico. Embora com clima tórrido, solo pobre de vegetação e escassas nascentes, a ilha era fundamental para as rotas mercantis ancestrais que con-fluíam entre às duas margens continentais, tornando-a o principal entreposto do Oriente, articulando mercadores da Insulíndia, China, Índia, Pérsia, Arábia e Europa em busca dos

mais variados produtos. A fortaleza foi es-trategicamente implantada na ponta da ilha, no esporão que separa as duas grandes baías portuárias: a do lado oriental, onde ancora-vam navios de maior calado; e a ocidental, mais frequentada por pequenas embarcações. Víveres e água vinham do continente, fruto dos elos estabelecidos entre os portugueses e a heterogênea e multicultural população nativa. Entre 1507 e 1622, Ormuz foi a base da presença portuguesa no Golfo Pérsico. A fortaleza abaluartada de planta trapezoidal, adaptada à ponta arenosa, tinha cerca de 20.000 metros quadrados e quatro baluartes angulares. O mar a envolvia em três lados e um fosso delimitava a frente sul, isolando-a quando necessário do resto da ilha. Abando-nada nos últimos três séculos, encontra-se hoje bastante arruinada.As cidades-fortaleza noGolfo de Cambaia

O partido atinge seu ápice na Índia. Chaul foi implantada num porto aberto do Índico Norte na confluência dos sultanatos

Gaspar Correia, Ormuz, in Lendas da Índia, século XVI. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre

do Tombo.

Page 7: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

34 ANO XIII / Nº 23

Chaul, in Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India …, do Cosmógrafo Mor António de Mariz Carneiro, 1639. Biblioteca Nacional de Lisboa.

islâmicos envoltórios, bem como dos sulta-natos mamelucos do Cairo e Alexandria, e na rota de mercenários turcos, do samorim de Calecute, de Veneza e outras potencias da época. De feitoria a urbe, Chaul desempe-nhou papel ativo como entreposto comercial em zona de maioria islâmica, o que implicou alianças e acordos com os povos nativos para a sobrevivência portuguesa. O perímetro abaluartado erguido nas últimas décadas dos Quinhentos cercou a cidade com muro de dois metros e meio de espessura junto da praia. Toda a frente da praia situada na foz de um rio estava encerrada por uma muralha ritmada com pequenos torreões e baluartes. Como em Baçaim, sobre o mar (literalmente) a muralha era mais fraca, menos espessa, menos alta (seis a sete me-tros) e com baluartes de menor expressão; os do lado da terra atingem onze metros de altura. Fundada ex-nihilo, subsistem o forte inicial, o perímetro abaluartado e a magní-fica estrutura erguida sobre o morro próxi-mo – o Forte do Morro. O sistema de defesa envolvia portanto mais de um elemento.

Damão - cerca de 150km da atual Bombaim – está situada na foz do Rio San-dalcalo, sendo por ele dividida em Damão Grande e Damão Pequena. Seu porto era prejudicado pela barra estreita e baixa, mas mesmo assim configurou-se como o ponto de encontro da vida econômica e social – co-mércio, pesca, estaleiros. Rodeada por densa floresta de teca, o madeiramento local era matéria prima para a produção de barcos na Ribeira das Naus. A comunidade cristã mantinha-se na praça abaluartada (desenha-da com ruas de traçado regular) e era inferior em número à população hindu e muçulmana que habitava os bairros e aldeias extramuros, prática recorrente, observada em muitos ou-tros casos. Com dois quilômetros de períme-tro e onze baluartes, as muralhas de cantaria foram desenhadas pelo engenheiro-mor do Estado da Índia João Baptista Cairato. A concorrência comercial obrigou a coroa portuguesa a fundar outras cidades no Golfo de Cambaia. A mais esplêndida delas é sem dúvida Diu. Ponto chave na barra do rio de mesmo nome, Diu situa-se na Penín-

Page 8: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

35ANO XIII / Nº 23

sula de Katiavar e àquele porto confluíam rotas comerciais do Golfo Pérsico, Mar Vermelho e Hindustão, dominadas pelos mu-çulmanos e cobiçadas pelas mais diversas potências do período, inclusive Veneza e Ragusa. Exce-lente condição natural orientou a implantação da fortaleza numa ilha separada do continente por um canal navegável. Implantada no extremo da ilha e construída segundo o típico processo de “atalho”, a muralha e o fosso ali-mentado por água do mar seccio-nam a ponta da ilha, mantendo a fortaleza como reduto de defesa máxima. Vista do mar, sua escala é gigantesca e, não por acaso, Diu significa “luz”. Da banda do mar, a costa é abrupta, merecendo apenas poucos reforços for-tificados. O núcleo urbano desenvolve-se na envoltória. No conjunto, Diu é uma ilha fusiforme, com cerca de quinze quilômetros no seu eixo maior (leste-oeste) e um máximo de cinco no sentido oposto. A zona já era ocupada a séculos e uma aldeia fronteira insta-lada no continente precedeu a presença dos portugueses e era interligada à ilha por duas pontes que foram destruídas pelo Vice-Rei para isolá-la.Baçaim completa o qua-dro dos núcleos planejados pelos portugueses no Golfo de Cambaia. Assim como Diu, pressionado pela presença inimiga na área, o sultão local ofereceu o sítio em troca de aliança militar. A feitoria foi erguida a três quilômetros a sul da cidade de Vasai, sobre a margem norte do Rio Ulhas. Vasai era também uma ilha separada do continente

por um canal norte-sul que unia aquele rio ao Vaitarna, a norte. Cidade-porto, Ba-çaim foi obra de Martim Afonso de Sousa, o donatário da Capitania de São Vicente, instalada no lugar mais conveniente, numa ilha próxima ao mar como a vila congênere no Brasil. Funcionava como uma quase ilha

Damão, in Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India …, do Cosmógrafo Mor António de Mariz Carneiro, 1639. Biblioteca Nacional de Lisboa.

Dio, in Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India …, do Cosmógrafo Mor António de Mariz Carneiro, 1639. Biblioteca Nacional de Lisboa.

Page 9: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

36 ANO XIII / Nº 23

na Ilha de Vasai: no sudoeste era limitada por mar, de sudeste pelo Rio Ulhas e de nor-deste por um estreito que chegava a infletir e a proteger parte da frente noroeste. De traça erudita à italiana, a cidade-fortaleza tem forma geométrica regular e as muralhas e baluartes foram construídos em cantaria. Hoje em ruínas, rodeada por muitos coquei-ros, Baçaim chegou a ter 50 mil habitantes, rivalizando apenas com Goa – a Capital do Vice-Reinado do Oriente – com 250 mil almas em pleno século XVI.

A pérola do delta doRio das PérolasNa China, Macau foi uma importante “república” de merca-dores ou cidade livre, cuja gerência dos assuntos políticos ficava a cargo de três representantes da população escolhidos por votação, com título de “homens bons”. A península situada no estuário do Rio das Pérolas deu ensejo a um assentamento português, na década de 1550, entre as elevações da Barra e da Penha, estendendo-se depois até o Morro conhecido mais tarde como São Paulo. O local já era ocupado por bazares chineses, que ali permaneceram, conflitan-do com os ádvenas. A cidade abria-se para o mar na zona da Praia Grande de um lado e do Porto Interior do outro, continuando cingida pelas escarpas rochosas da costa e pela muralha que dividia a península ao meio desde São Francisco até São Paulo do Monte, e daí até o canal. A sábia escolha certamente condicionou a sua longevidade e Macau per-maneceu nas mãos dos portugueses até 1999.

O padrão na América Portuguesa

De Norte a Sul, o padrão foi replicado iterativamente no Bra-sil. No Sul, destaca-se a ilha onde foram implantadas as vilas de São Vicente e Santos, esta última situada no ponto de confluência do Canal do Casqueiro com o Rio Bertioga, protegida pelos fortes da Barra e da Bertioga. Na Baía de Guanabara, um complexo sistema de fortes e fortale-zas foi minuciosamente arquitetado para impedir o assédio inimigo à Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro instalada no seu interior.

Damão, in Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India …, do Cosmógrafo Mor António de Mariz Carneiro, 1639. Biblioteca Nacional de Lisboa.

Jorge Pinto de Azevedo, vista de Macau (e delta do rio das Pérolas), in Advertências /.../, c. 1646. Biblioteca da Ajuda, Lisboa.

Page 10: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

37ANO XIII / Nº 23

Naturalmente defensável, a entrada es-treita da baía exigiu reforço ao longo dos séculos: junto do Pão de Açúcar, a Bateria do Leme, o Forte da Vigia e o da Praia Vermelha; junto do Morro Cara de Cão, o Forte de São João; no meio, o Forte da Lage; do lado de Niterói, a Fortaleza de Santa Cruz da Barra, o Forte de Gragoatá de formato irregular encravado na rocha, a Fortaleza de São Luis no alto do Morro do Pico igualmente encravada na rocha e o Reduto do Pico. O conjunto dá a medida do fogo cruzado que triangu-lava a baía. A Vila de Vitória foi insta-lada na barra do Rio Espírito Santo e igualmente guarnecida. A Baía de Todos os Santos abrigou a primeira capital do Brasil - a Cidade de Salvador – e foi sem dúvida a que mais mereceu atenção e defesa. Os fortes do Picão (no recife) e de São Jorge (no istmo) protegiam o acesso estreito ao porto de Olinda – o Recife - , para onde confluía o grosso da produção de açúcar da região. O Forte do Cabedelo foi implantado na ponta da restinga na foz do Rio Paraíba para proteger Filipéia de N. S. das Neves, atual João Pessoa, implantada algumas léguas barra

adentro. São Luis se situa numa quase ilha na foz do Rio Pindaré e, tal como Goa e Santos, encontra-se protegida de todos os lados por fossos naturais. Desenhos antigos do Razão do Estado do Brasil (c. 1616) e outros publicados no compêndio Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial, de Nestor Goulart Reis, dão a medida da recorrência desse partido urbanís-tico e arquitetônico em solos americanos.

Macao, in Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India …, do Cosmógrafo Mor António de Mariz Carneiro, 1639. Biblioteca Nacional de Lisboa.

Planta da Villa de Santos, séc. XVIII. Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.

Page 11: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

38 ANO XIII / Nº 23

Razão e sensibilidade irmanam-se nas edi-ficações supracitadas, sem se contradizerem. A chamadaEscola Portuguesa de Arquitetura Militar e Urbanismo notabiliza-se por um conjunto de preceptivas veiculadas em tratados que versa-vam tanto sobre a construção (a “fábrica”) como sobre os levantamentos topográficos que deveriam precedê-la (p. ex. Manoel de Azevedo Fortes, O Engenheiro Portuguez, 1728/1729). A historiografia recente sobre o Urbanismo luso reconhece a importância desse partido e hoje o considera muito sábio comparativamente à quadrícula hispânica. O abstrato tabuleiro de damas, também ele, vem sendo desmitificado e o caso de Lima6 sobre assentamento nativo merece atenção para se revisar um estereótipo que adquiriu estatuto historiográfico. Tratados como o de Luís Serrão Pimentel (Methodo Lusitanico de desenhar as fortificaçoens das praças regulares e irregulares..., 1680) e Manoel de Azevedo Fortes, entre outros, são louvados pela parcimônia com que orientam sobre a im-

Demostrasaõ do Rio de Janeiro, in: Atlas de João Teixeira Albernaz, 1645. Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.

“Espiritu Santo” in: Reys-boeck ..., 1624. Koninklijke Bibliotheek, Haia.

6. Patrícia Morgado, Un palimpsesto urbano. Del asiento indígena de Lima a la ciudad espanhola de Los Reys, s/d.

Page 12: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

39ANO XIII / Nº 23

Paraíva, ov Rio de S. Dos., in: Razão do Estado do Brasil, c. 1616. Biblioteca Pública Municipal do Porto.

Prespectiva o Ressife e Villa de Olinda, in: Rezão do Estado do Brasil, c. 1616. Biblioteca Pública Municipal do Porto.

A Bahia de Todos os Santos, in: Rezão do Estado do Brasil, c. 1616. Biblioteca Pública Municipal do Porto.

plantação de fortalezas e cidades. A parcimônia deriva do respeito ao sítio e da acomodação às linhas sugeridas pela paisagem, resultando em fortificações na sua maioria irregulares. A teoria submete-se à prática, a experiência alicerça as soluções, e embora modelos ideais mantenham-se como horizonte, jamais foram impostos em abstrato.Os projetos elaborados pelos enge- nheiros militares raramente foram feitos em gabinete, exigindo pormenorizado exame e diálogo com a paisagem circundante. Homens de múltiplas habilidades, os enge-nheiros militares foram os agentes de muitas dessas façanhas e seus desenhos abundam

Page 13: O sentido do lugar - FUNCEB · 28 ANO XIII / Nº 23 C ristian Norberg-Schulz no cl!ssico livro G enius Loci: towards a phenomenology of Ar-chitecture define o car!ter de um lugar

40 ANO XIII / Nº 23

BEATRIZ PICCOLOTTO SIQUEIRA BUENO – Professora Doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - USP.

BibliografiaBAYÓN, D. Pensar con los ojos. Ensayos de arte latino-americano. México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1993.BUENO, B. P. S. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares. São Paulo: EDUSP/ FAPESP, 2011.______. BUENO, Beatriz P. S. Com as mãos sujas de cal e de tinta, homens de múltiplas habilidades: os engenheiros militares e a cartografia na América portuguesa (sécs. XVIII-XIX). Revista Navigator, 2012. www.revistanavigator.com.br.______. Dossiê Caminhos da história da urbanização no Brasil-colônia. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 20, n. 1, p.11-40, jan.-jun. 2012. Portal SCIELO.CASTRO, A. H. F. de. Muralhas de pedra, canhões de bronze, homens de ferro. Rio de Janeiro: Fundação Cultural do Exército Brasileiro, 2009 (v. 1 - Rio de Janeiro).______. Muralhas de pedra, canhões de bronze, homens de ferro. Rio de Janeiro: Fundação Cultural do Exército Brasileiro, 2009 (v. 2 - Regiões Norte e Nordeste).CUNHA, M. S. Da (coord.). Os espaços de um Império. Estudos. Lisboa: CNCDP, 1999.FLORES, J. M. (cur.). Os construtores do Oriente português. Lisboa: CNCDP, 1998.GIANESELLA, R. Paisagens no tempo: vilas litorâneas paulistas. Dissertação de Mestrado (Arquitetura e Urbanismo), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, 2008.MATTOSO, J. (dir.). Património de origem portuguesa no mundo: arquitetura e urbanismo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. (v. 1 - América do Sul; v. 2 - África, Mar Vermelho e Golfo Pérsico; v. 3 - Ásia e Oceania). www.hpip.org.MOREIRA, R. A construção de Mazagão. Cartas inéditas 1541-1542. Lisboa: Instituto Português do Patrimônio Arquitectónico, 2001.MORGADO, P. Un palimpsesto urbano. Del asiento indígena de Lima a la ciudad espanhola de Los Reys. Tesis doctoral. Escuela Tecnica Superior de Arquitecura. Universidad de Sevilla, s/d.NORBERG-SCHULZ, C. Genius Loci: towards a phenomenology of Architecture. New York: Rizzoli, 1980.PAULINO, F. F. (coord.). Portugal e os descobrimentos. Lisboa: CNCDP, 1992.REIS, N. G. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 2000.SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. 4a. ed. São Paulo: EDUSP, 2008.

em acervos oficiais, refletindo os processos mentais que antecediam as implantações. Do campo ao gabinete, com as mãos sujas

tanto de tinta como de cal, os engenhei-ros militares foram homens de ação que jamais se intimidaram frente à geografia física e humana encontrada, sujando as botas de lama, embrenhando-se nos matos e desertos para se assegurar das melhores escolhas. Os resultados materiais são magistrais, assim como os desenhos que orientaram ou documentaram as obras.Implantadas em sítios espetacula-res, convertidos em “lugares” pela marca identitária lusitana, tais Paisagens Cultu-rais enquadram toda uma “ambiência” e esses conjuntos hoje clamam por po-líticas de preservação de macro escala. Basta consultar o portal interativo www.hpip.org ou o google maps para averiguar a beleza desse patrimônio. Oxalá este artigo seja um convite e um alerta nesse sentido.

[São Luis do Maranhão]. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa.