o sagrado

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O sagrado “Tudo que move é sagrado”... “Sim, todo amor é sagrado.” (Beto Guedes, Amor de índio). Prof. MS. Stephen Silva Simim 1 Introdução A humanidade tem como característica inegável o desejo de conhecer. Este desejo e necessidade de conhecer é expressão do amor à sabedoria como dizia o filósofo Sócrates ao discutir o conceito de filosofia. Buscar o conhecimento é uma maneira dos sujeitos se perceberem no mundo em que vivem. As questões são as mais variadas possíveis, tudo aquilo que causa estranhamento, admiração e desconforto. A história da filosofia nos mostra uma mudança na forma de interpretação do mundo. Em um momento os mitos representavam o método para explicação do mundo, em outro momento a observação da natureza tornou-se o método para interpretação. Ao longo das idades da história, enquanto divisões convencionadas por um olhar científico presente já na antiguidade clássica, este movimento foi se transformando surgindo às rupturas para o conhecimento, alguns retornos a caminhos trilhados no passado etc. Este é o movimento continuo que a humanidade produz na história buscando sua realização e consciência de presença no mundo. Neste cenário de “philia” - amizade – pela sabedoria e busca pelo conhecimento situaremos nossa discussão sobre o Sagrado. Ele é um elemento de constante recorrência na história da humanidade, é percebido na diversidade das culturas como elemento constituinte de sentido para a vida, de elaboração do ethos/costume, caráter, na tentativa de compreensão do mistério da natureza e da passagem das experiências do cotidiano. Se nos propusermos a pensar o Sagrado e sua presença ao logo da história, significa que devemos pensar o Sagrado a partir das experiências que as 1 Professor de Cultura Religiosa do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas. 1

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Texto sobre as visões do sagrado

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Page 1: O Sagrado

O sagrado“Tudo que move é sagrado”... “Sim, todo amor é sagrado.” (Beto Guedes, Amor de índio).

Prof. MS. Stephen Silva Simim 1

Introdução

A humanidade tem como característica inegável o desejo de conhecer. Este desejo e necessidade de conhecer é expressão do amor à sabedoria como dizia o filósofo Sócrates ao discutir o conceito de filosofia. Buscar o conhecimento é uma maneira dos sujeitos se perceberem no mundo em que vivem. As questões são as mais variadas possíveis, tudo aquilo que causa estranhamento, admiração e desconforto. A história da filosofia nos mostra uma mudança na forma de interpretação do mundo. Em um momento os mitos representavam o método para explicação do mundo, em outro momento a observação da natureza tornou-se o método para interpretação. Ao longo das idades da história, enquanto divisões convencionadas por um olhar científico presente já na antiguidade clássica, este movimento foi se transformando surgindo às rupturas para o conhecimento, alguns retornos a caminhos trilhados no passado etc. Este é o movimento continuo que a humanidade produz na história buscando sua realização e consciência de presença no mundo.

Neste cenário de “philia” - amizade – pela sabedoria e busca pelo conhecimento situaremos nossa discussão sobre o Sagrado. Ele é um elemento de constante recorrência na história da humanidade, é percebido na diversidade das culturas como elemento constituinte de sentido para a vida, de elaboração do ethos/costume, caráter, na tentativa de compreensão do mistério da natureza e da passagem das experiências do cotidiano. Se nos propusermos a pensar o Sagrado e sua presença ao logo da história, significa que devemos pensar o Sagrado a partir das experiências que as culturas fizeram e fazem, pois este é um lugar que descreve o mistério, a beleza de um encontro e relação, a tentativa de superação das questões limites da vida e também do respeito àquilo que não é totalmente compreendido. Portanto, as experiências coletivas e pessoais do Sagrado constituem-se enquanto lugares onde encontraremos certa objetividade daquilo que é subjetividade e assim poderemos discutir a manifestação e presença do Sagrado na história da humanidade.

No desafio do que é pensar a experiência do Sagrado, proponho um caminho onde autores clássicos da fenomenologia religiosa nos ajudarão a pensá-lo enquanto fenômeno. A fenomenologia religiosa representa um método de estudo do fato religioso. Assim, é um caminho que as ciências desenvolveram

1 Professor de Cultura Religiosa do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas.

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para compreender as religiões e o nosso objeto de discussão neste texto, o Sagrado. Discutiremos a experiência do Sagrado a partir das experiências vivenciadas nas culturas e perceberemos que a diversidade religiosa é um sinal das múltiplas formas de manifestação do Sagrado ao longo da história. Outro aspecto relevante é de como a experiência do Sagrado motiva provocações e construções de sentido naqueles que a experimentam. Devemos considerar que a negação do Sagrado torna-se também uma importante fonte de compreensão, pois o ceticismo apresenta toda uma justificativa de sua negação. Por isso, pensar o Sagrado e sua influência na experiência humana e na vida social é relevante não apenas para aqueles que creem na sua presença, mas também para aqueles que não creem. A negação do Sagrado também é uma maneira de interpretá-lo. Quem elabora uma negativa justifica sua negação, ao fazê-la oferece-nos elementos para no diálogo do campo das ciências construir uma compreensão sobre o fenômeno.

Por conseguinte, uma descrição fenomenológica do Sagrado não é necessariamente uma defesa de sua realidade e presença no mundo. É também uma forma de ouvir a negação de sua realidade, o que poderá enriquecer nossa abordagem e percepção das diversas manifestações do Sagrado ao longo da história e das culturas.

A experiência humana do Sagrado abre um universo de possibilidades de interpretação de como a compreensão pessoal ou impessoal da manifestação do mesmo se dá ao longo da história da humanidade. Por manifestação pessoal pensamos as experiências onde o Sagrado tem uma identidade pessoal, por exemplo, no judaísmo, ele é reconhecido como Iahweh. Por manifestação impessoal pensamos as experiências onde o Sagrado tem uma identidade impessoal, por exemplo, em algumas tradições indígenas o Xamã é a expressão de uma força presente na natureza. Outro fato relevante é de como essa experiência produz na coletividade uma estrutura orgânica e institucionalizada que são as religiões. Toda religião nasce de uma experiência mística do Sagrado que em um nível pessoal e coletivo motivam o surgimento das estruturas religiosas organizadas, as religiões.

A interpretação do Sagrado implica na compreensão de categorias como fé, místicas, tradições, culturas, ritos, mitos, símbolos etc. Estas categorias nos auxiliam a compreender como o Sagrado se manifesta de maneira objetiva nas culturas e estabelecem um importante núcleo organizador de sentido para a vida nos seus diversos aspectos. O Sagrado, portanto opera uma dinâmica e uma relação de movimento, criando caminhos sensíveis onde podemos percebê-lo tacitamente e ao contrário de tentarmos uma via de interpretação a partir de sua substância última, fazemos através dos seus rastros deixados ao longo da história. Talvez não seja demais afirmar que não há melhores intérpretes como os artistas para expressar os caminhos Sagrados. Na canção

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de Beto Guedes, Amor de índio, ele traduz o Sagrado como movimento, como amor: “tudo que move é Sagrado”... ”sim, o amor é Sagrado”.

1. O que é o Sagrado?

A palavra Sagrado tem uma origem no hebraico Kadosh onde aparece com o sentido de separado e uma origem latina Sacrum, que se referia aos deuses ou ainda Sanctum, que se referia ao santo, ambas com referência a aquilo que é separado. Esta palavra tem tal significado de algo especial, diferente e, portanto, causa reverência, atração, respeito e propriedade para uma ação reguladora ou organizadora da vida. Na experiência religiosa o Sagrado é traduzido como aquele que tem certo distanciamento do homem. Simbolicamente este distanciamento nos faz pensar sobre o seu caráter especial, extraordinário, misterioso, de alteridade. Ao mesmo tempo em que o Sagrado aparece com certo distanciamento ele também expressa proximidade com o ser humano. O Sagrado é ao mesmo tempo misterioso e desconhecido, mas revela-se e nesta dinâmica entra em relação com o humano.

As espiritualidades nas tradições religiosas revelam a dinâmica dessa expressão ou comunicação do Sagrado, que é ao mesmo tempo transcendência e imanência. O que isto significa? Significa que na revelação do Sagrado ocorre uma experiência de transcender, transpor realidades do cotidiano e ao mesmo tempo uma experiência que o revela a partir do cotidiano e da realidade humana. Uma ação é de fora pra dentro e a outra é de dentro para fora, pensando assim as realidades misteriosas e de certa maneira exteriores e as interiores ao humano e a natureza.

Mircea Eliade (1996) apresenta uma importante categoria de interpretação do fenômeno religioso, hierofania que significa manifestação do Sagrado. Portanto, o Sagrado se manifesta ao humano de diversas formas, cada cultura segundo sua maneira e experiência o percebe nos elementos da natureza ou a partir de uma experiência pessoal que é Phainomenon, do grego, aquilo que é visto, o que aparece aos olhos. Assim, o fenômeno corresponde à manifestação ou aquilo que aparece, o que pode ser percebido pelos olhos e afinal discutido. A contribuição de Eliade é de que a fenomenologia religiosa toma como objeto de estudo estas manifestações do Sagrado que objetivam no mundo aquilo que é subjetivo e certamente impossível de ser compreendido. Poderemos, no entanto pensar o Sagrado a partir das interpretações, produções ou revelações que Ele produz na história. Esse é um caminho possível a partir das ciências e da fenomenologia.

O método fenomenológico não é o único instrumento para a interpretação do Sagrado. Auxiliam-nos além das ciências, também a moral, as artes, as místicas. Nesse trabalho, propõe-se aos leitores uma provocação sobre o exercício da pesquisa onde o método fenomenológico é o ponto de partida para a percepção de um objeto de análise, o Sagrado, que deve ser cercado por

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outras possibilidades de interpretação. A pesquisa fenomenológica do Sagrado demonstrará uma coerência quando a caracterização ou descrição representar o caminho da pesquisa no lugar de uma tentativa de defini-lo. Toda forma de definição pode gerar um fechamento na possibilidade de compreensão. Assim, a descrição poderá aproximar-se da realidade demonstrando um estudo investigativo e aberto para sua compreensão. E uma definição poderia limitar a interpretação de uma categoria tão profunda e diversa.

Rudolf Otto (1992) descreve o Sagrado como o Totalmente Outro aquilo que possui caráter especial e diferente de tudo que compõe a natureza. Ele o caracteriza a partir daquilo que é misterioso, causa fascínio e desperta o respeito e reverência. Otto é o autor clássico que descreve o Sagrado a partir das três categorias: Mistério, Fascínio e Temor. Abordaremos na sequência as três categorias para compreender o que ele chama de o Totalmente Outro.

1.1 Mistério.

O Sagrado por mais que se revela e se apresenta nas experiências e nas tradições religiosas, permanece desconhecido. A teologia traduz na sua epistemologia o seu papel que é o de buscar compreender aquilo que se apresenta, mas que permanece misterioso. Ou seja, o papel da teologia é oferecer ao ser humano uma explicação daquilo que aparentemente é incognoscível. O Sagrado é mistério que pede explicação, uma explicação que nada mais é do que a necessidade humana de compreender e conhecer os fenômenos que se apresentam ao intelecto humano. Nessa relação que se estabelece para conhecer o mistério, imaginemos um encontro de partes distintas, onde o ser humano por sua experiência existencial não esgota o conhecimento do outro. É uma relação onde a alteridade, o outro se apresenta, mas também permanece mistério. Esta relação é alimentada e desejada pelo mistério que a alteridade apresenta. Esta também é a dinâmica do ser humano no seu caminho de reconhecimento de si, há mistérios que permanecem mistérios, mas que não liquidam com o desejo de continuar buscando conhecer.

Os místicos que se tornaram referência nas diversas tradições religiosas, apontam para uma possibilidade de relação com o Sagrado. Nessa relação de experiência e conhecimento continuam desconhecendo e assim como numa relação amorosa a atração os fazem buscar cada vez mais. Esta experiência também é experiência de conhecimento, de encontro, de estabelecimento de identidade, de elaboração de um ethos/costume/caráter/disposição. Ao falar disso, sugiro a metáfora do mergulho que expressa muito bem uma realidade aparentemente desconhecida e incognoscível que se apresenta ao sujeito como diante de uma aproximação ao oceano ou a um lago. Neste caso, o sujeito pode conhecer a realidade exterior ao oceano ou lago que apresenta suas belezas na superfície, mas se ele mergulhar descobrirá outras belezas e

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outras realidades abaixo da superfície. Estas realidades estão entre aquelas que aparentemente não faziam parte de seu contexto, mas que pelo movimento iniciado proporcionou o contato com belezas tão próximas e realidades distintas as que aparentemente faziam parte do seu contexto. O mergulho como a espiritualidade, proporciona ao sujeito acesso ao desconhecido e neste movimento ele passa a conhecer um pouco mais de uma realidade que é maior do que aquela que se apresentava quando ele reconhecia apenas as belezas da superfície. Quando o sujeito se lança em novas buscas, novas descobertas serão feitas em ambientes que ultrapassam aqueles corriqueiros. O desafio é o de perceber que nossa realidade é maior do que aquela que normalmente vemos e depois outro desafio é o de lançar-se na busca de outros lugares do que aqueles comuns a nossa realidade. Assim, o mistério representado pelo Sagrado sempre permanecerá, mas é possível conhecer e contemplar belezas sempre novas e que sempre nos desafiarão a colocar-se a caminho. O mistério diante das experiências do Sagrado não significa que não podemos experimentá-lo e percebê-lo. E pelo contrário, existem possibilidades de compreender as características a partir das estruturas que identificam o Sagrado nas experiências religiosas. Esses elementos tornam-se objetos de uma pesquisa ou investigação sobre o fenômeno religioso e o Sagrado que possui uma estrutura subjetiva, mas afeta de forma objetiva a história e a condição existencial dos sujeitos. Neste momento, temos material para uma análise e uma tentativa de descrição do Sagrado.

1.2 Fascínio

O fascínio é outra característica apresentada por Rudolf Otto na descrição do Sagrado. Na relação com o mistério, o sujeito descobre as belezas presentes e é atraído por elas. O fascínio é fruto de uma relação onde o sujeito se descobre, percebe sentido para sua situação existencial e desta forma é atraído pela beleza.

O Sagrado nas diversas tradições é descrito por características que expressam o tipo ideal do humano, poderíamos chamar de realidades que compreendem talvez o desejo de completude, como: amor, harmonia, perdão, justiça etc. Se nesta relação e experiência transcendental o sujeito percebe estas características, ele no mínimo reconhece o seu caráter especial e assim numa relação de fascínio experimenta e descreve esta realidade. O livro do profeta Jeremias, traduz de maneira poética o reconhecimento de sua vocação. Jeremias expressa: Seduziste-me senhor, numa luta desigual e foi tua a vitória. Certo de que a espiritualidade, assim como a poesia e as artes, tem um duplo papel: primeiro a descrição do ator de sua experiência, segundo o que a descrição proporcionará em quem tem contato com a obra. Permitam-me pontuar que a experiência do Sagrado é uma experiência de relacionamento, a qual Jeremias foi seduzido pela beleza e a luta desigual representa uma

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experiência nada tranquila, que revela o caráter de pessoalidade e alteridade, e nesta troca desigual a vitória é descrita como a do Sagrado que demonstra seu caráter de especialidade. Mas a vitória também é a de Jeremias que estabelece neste relacionamento conhecimento do Totalmente Outro.

O poeta e bispo Pedro Casaldáliga (1988: 212) no seu poema intitulado Seduziste-me, Senhor conclui com a estrofe: Seduzimo-nos, Senhor, numa troca desigual e foi nossa a vitória! Este poema é a expressão de alguém que como Jeremias, faz uma experiência mística e descreve a relação nada tranquila e com pés de igualdade. Uma experiência de relacionamento pela qual as partes são atraídas e seduzidas por uma experiência de amor. O ser humano estabelece assim uma abertura e busca pela transcendência, colocando-se em um lugar especial e de experimentação da beleza.

1.3 Temor

O temor é descrito por Otto como o respeito que a pessoa encontra diante do Sagrado. Em alguns momentos e em algumas tradições religiosas foi acentuada a dimensão do medo pelo poder punitivo do Sagrado. Aqui, é importante salientar que Otto descreve o respeito como o reconhecimento da alteridade. E que na busca de compreensão do mistério, a pessoa experimenta o fascínio diante de algo que é especial e ao mesmo tempo respeito por se tratar de algo absoluto. O temor, portanto não corresponde a ideia punitiva onde o sujeito torna-se refém de uma experiência opressora.

Para Otto o temor e o fascínio geram um equilíbrio necessário para a experiência religiosa por meio da qual a atração do desconhecido, expressa a reverência diante da beleza. José Simões Jorge (1998:31) descreve o pensamento de Otto sobre essa relação de equilíbrio expressa nas experiências religiosas como: amor que teme e temor que ama, numa busca de equilíbrio que nunca é perfeito, e, por isso, jamais estável. Tanto a história religiosa da humanidade como a história religiosa pessoal, pode caracteriza-se pela busca de um equilíbrio entre o “temor-reverência” e o “amor-confiança”. Assim, o temor caracteriza uma relação nada estável e segura que ao mesmo tempo inspira confiança e segurança. Algo compreensível a partir das experiências místicas nas tradições religiosas pode ser facilmente refutado pelas correntes ateístas que não falam a partir do lugar da experiência de fé.

O autor a pouco citado, ainda propõe uma reflexão sobre o caráter racional e irracional da experiência do Sagrado descrita por Otto. Apesar de contrários, não são contraditórios. O aspecto irracional para Otto não é algo contrário à razão, mas algo que está acima da razão, o que ele descreve como suprarracional. Neste sentido, podemos perceber que o mistério do Sagrado é algo que pode ser compreendido pela experiência, mas que permanecerá sempre mistério. A acessibilidade ao mistério não significa esgotá-lo. Quem percorre este caminho descobrirá sempre algo diferente e sempre será

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desafiado a buscar ainda mais. Esta dimensão misteriosa é característica da própria existência humana. Fora de uma discussão sobre o fenômeno Sagrado, perceberemos a mesma questão posta ao humano diante de suas questões existenciais.

2 A experiência humana do Sagrado: a fenomenologia como possibilidade de pensar a experiência do Sagrado.

O termo relacionamento traduz de maneira profunda a possibilidade que os seres humanos têm de encontro com o outro, de exteriorização do seu ser e no diálogo com a diversidade, compreendendo o seu lugar no mundo e no reconhecimento do outro. Assim, relacionamento é o termo que nos faz compreender que fazemos parte de uma teia de relações e interdependências, sendo necessário desenvolvermos habilidades para transitar nestes diversos espaços.

Então, surgirá a necessidade de questionarmos os desafios e a qualidade de nossa presença diante da perspectiva de relações com os outros e com os mistérios que estão presentes na natureza. Desta forma, relacionamento é uma possibilidade de desinstalação, de mudança paradigmática, de elaboração de uma linguagem capaz de responder as questões postas pelas experiências existenciais. Esta nova perspectiva pode colocar a humanidade em uma dinâmica de crescimento e superação de todas as formas de opressão do humano nos diversos níveis: os existenciais, os sociais, os econômicos, os culturais, etc.

Perceberemos que na experiência humana do Sagrado as diversas tradições religiosas apresentarão a transcendência como uma possibilidade de autoconhecimento, de uma constituição moral capaz de balizar as relações sociais e a própria caracterização da noção de Sagrado.

2.1 A fenomenologia religiosa.

A fenomenologia religiosa é um caminho possível para compreendermos o Sagrado a partir de uma discussão cientifica, ela se ocupa do estudo e compreensão do fato religioso. Por fato religioso podemos pensar todas as formas de exteriorização, de objetivação daquilo que se refere ao transcendente. É substancialmente qualquer manifestação do Sagrado presente no cotidiano. Quando falamos em discussão cientifica não é necessariamente uma discussão positivista das ciências, pois esta eliminaria a possibilidade da investigação sobre o Sagrado, exceto como forma inferior de tentativa de abordagem da realidade. A fenomenologia religiosa se apoia na observação objetiva dos fatos que traduzem a experiência do Sagrado ao longo da história. Desta forma, obteremos uma compreensão e caracterização do que

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é expressão do Sagrado. Perceberemos uma similaridade em questões fundamentais das diversas caracterizações, como também a revelação de uma diversidade de linguagens e exteriorizações deste relacionamento com a transcendência.

A descrição ou caracterização do Sagrado se apoia no método fenomenológico que se articula com as diversas ciências como a história, a sociologia, a antropologia, a psicologia, a filosofia etc. E, também, outras formas de linguagem como as artes, a moral e a cultura. O filósofo Nietzsche chama a atenção para a importância do olhar que os artistas fazem da realidade. Eles são aqueles que por outros caminhos traduzem com maior fidelidade a realidade que se apresenta a eles. Portanto, a fenomenologia é a expressão de um método que deseja compreender os fenômenos assim como aparecem e para isso se apoiará nas ciências e toda forma de linguagem capaz de expressar tal realidade.

2.2 Hierofania: a manifestação do Sagrado.

Para Mircea Eliade (1996), o Sagrado possui um caráter especial que é uma oposição ao profano, ou seja, tudo aquilo que compõe as realidades do cotidiano, do natural, do comum e do corriqueiro. E ainda, que o Sagrado se revela ao ser humano, ele se manifesta de maneira oposta a tudo aquilo que é comum. Assim, hierofania significa a manifestação do Sagrado que ocorre em todas as culturas, momentos históricos etc. Eliade afirma que o mundo está repleto de hierofanias, ou seja, o mundo está repleto desta comunicação do Sagrado.

Assim, para o cristianismo, Jesus é uma hierofania, pois é a manifestação da encarnação de Deus na história. Como também, um Moai (monumento de pedra) pode ser a representação do Sagrado para o povo Rapa Nui na ilha de Páscoa. Para Eliade o poder da hierofania está no fato do objeto comunicar a manifestação do Sagrado e não no puro e simples objeto. O objeto Sagrado representa uma relação com a transcendência que deve ser compreendida no contexto simbólico de uma cultura. A compreensão deste termo fenomenológico fundamenta uma discussão sobre o reconhecimento da diversidade religiosa e nos provoca a pensar o diálogo interreligioso. O reconhecimento da diversidade religiosa representa basicamente o reconhecimento do outro, sem uma visão de hierarquização de verdades, nem da padronização ou homogeneização das experiências. Mas uma abertura para o diálogo com o diferente e perceber as relações, as similaridades, as diferenças, etc. em uma perspectiva de respeito à alteridade vislumbrando uma possibilidade de desenvolvimento dos valores humanos.

As culturas são os espaços onde ocorrem estas manifestações do Sagrado. Desta maneira, é fundamental que sejam compreendidas com o apoio das ciências e sem um olhar que seguro de um referencial e conceito, seja

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impedido de compreender a realidade que se apresenta. Assim, é importante o reconhecimento das categorias de interpretação do fenômeno religioso como: ritos, mitos, utopias, fé, místicas etc. Estas, na sua particularidade, descrevem as características do Sagrado que desejamos conhecer.

Então, concluindo a discussão estabelecida neste texto e sabendo que ela não se fecha e se abre pelo fato do objeto de estudo proposto caracterizar-se pelo seu caráter misterioso. O Sagrado torna-se uma experiência que desejamos conhecer e podemos submetê-lo ao conhecimento, mas não será conhecido em sua totalidade. Ele, portanto, expressará uma dinâmica que propõe a nossa condição existencial uma busca incondicional que trará referências e estímulos para um conhecer ilimitado e em constante movimento. O Sagrado sempre se manifestará no movimento, na dança, na dinâmica da vida. Alguns o reconhecerão a partir de uma linguagem de fé, de um ser supremo, de um criador. Outros o reconhecerão sem uma linguagem de fé, mas uma linguagem que descreverá uma força estranha com as mesmas características de movimento, dança que compõe a natureza e a dinâmica da vida. Estes também serão motivados a buscar explicações para as questões essenciais que respondam ao desconhecido ao longo de sua existência, sem necessariamente apoiar-se numa linguagem religiosa para construir uma explicação sobre os mistérios que compõe a existência.

Perguntas para reflexão e diálogo

1. É possível pensarmos o Sagrado como caminho para conhecer a natureza e a própria condição existencial? Apresente argumentos que justifiquem a questão.

2. O que significa uma experiência mística? Ela pode ser uma ação geradora de uma estrutura religiosa organizada? Discuta.

3. Apresente uma síntese das categorias Mistério, Fascínio e Temor descritos por Rudolf Otto.

4. Descreva o conceito de hierofania apresentado por Mircea Eliade e sua relação com as culturas.

5. O conceito de hierofania pode auxiliar o debate sobre o diálogo interreligioso? Justifique sua relevância no atual momento histórico.

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Atividade complementar

Cinema e debate:

Sugerimos do cinema nacional, o filme CAFUNDO para a análise de uma história verídica que expressa uma experiência mística e sua relação com as culturas, à produção de sentido e a elaboração do ethos. Assistam ao filme com um olhar de alguém que deseja pesquisar e conhecer uma experiência religiosa. Após a sessão, aplique os conceitos discutidos no texto para uma interpretação do fato religioso apresentado e estabeleça um debate com seu grupo.

Bibliografia

CASALDÁLIGA, Pedro, Na procura do Reino, Ed. FTD, São Paulo: 1988.

ELIADE, Mircea, O sagrado e o profano: a essência das religiões, Ed. Martins Fontes, São Paulo: 1996.

JORGE, José Simões, Cultura Religiosa: O homem e o fenômeno religioso, Ed. Loyola, São Paulo: 1998.

OTTO, Rudolf, O Sagrado, Ed. 70, Lisboa: 1992.

QUEIRUGA, Andrés Torres, A revelação de Deus na realização humana. Ed. Paulus, São Paulo: 1995.

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