o rei artur e os cavaleiros da távola redonda · escrito em letras de ouro, bem claro sob o sol...
TRANSCRIPT
O Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda
Após a morte do rei Constantino, o Abençoado (Cistenin Vendigeit),
chefe bretão, Vortigern, isto é Gwrtheyrn, ou seja, o Grande Rei, usurpa o
poder dos verdadeiros herdeiros: Aurelius Ambrosius e Uther Pedragon, que se
refugiaram na Armórica.
Vortigern aliou-se aos saxões e tornou-se genro de Hengist, chefe saxão.
Diante da ambição dos saxões e para escapar da morte, foi obrigado a lhes dar
cada vez mais terras. Sobrevivendo a uma conspiração na qual vários chefes
bretões foram mortos, Vortigern foi se refugiar no País de Gales, onde queria
construir uma fortaleza inexpugnável.
Escolheu como local o Monte Eryri (Snowdown), mas acontecia de
todos os dias cair por terra o trabalho do dia anterior. O rei chamou seus
magos e perguntou-lhes o que devia fazer, e estes mandaram que ele procurasse
uma criança sem pai e misturasse o sangue dessa criança à argamassa, fazendo
com que as fundações ficassem sólidas. Os mensageiros do rei se puseram em
viagem e quando chegaram à Kaermerddin, lá testemunharam uma briga entre
crianças na qual uma chamava a outra de bastarda. Uma vez informados de
que esta criança era neto de rei dos Demetae – sul do País de Gales – e que sua
mãe era freira em um convento, levaram mãe e filho à presença do rei. Este,
cheio de atenções para com a mãe, pediu-lhe provas da bastardia de Merlim, ao
que ela respondeu:
- Pela tua alma e pela minha, senhor rei, nunca conheci o homem que me
fecundou. Só sei uma coisa: quando estava com minhas companheiras
em meu quarto para descansar, diversas vezes me apareceu um jovem de
belíssimo aspecto. Ele me envolvia em seus braços, me beijava na boca
e depois de alguns instantes desaparecia e eu não o via mais. Outras
vezes, quando estava sozinha, ele vinha falar comigo, mas eu jamais o
via. Ele me freqüentou durante muito tempo dessa forma, fez amor
comigo diversas vezes sob o aspecto de um, de tal forma que me deixou
grávida.
Vortigern chamou então seus sábios e perguntou se tal coisa seria
possível. Um sábio respondeu:
- Li nos livros de nossos filósofos e em numerosas histórias que muitos
homens foram concebidos dessa maneira. Assim Apuleu afirma a
respeito do deus de Sócrates, haver entre a Terra e a Lua certos espíritos
que chamamos íncubus. Eles participam da natureza humana e angélica
e, quando desejam, tomam a forma humana e têm relações com
mulheres.
Vortigern mandou então que trouxessem o menino cujo nome completo
era Merlinus Ambrosius. Merlim enfrentou os magos, e chamando-os de
mentirosos revelou que no local onde se pretendia construir a fortaleza havia
um lago subterrâneo e que nesse lago havia dois dragões lutando, que
derrubavam num só golpe as fundações que se tentavam erguer. O rei mandou
escavar a terra e os dragões foram encontrados. Um branco, que foi o primeiro
vencedor, e outro vermelho, que obrigou o branco a recuar. O rei, então, pediu
ao menino que explicasse tudo aquilo. Merlim caiu em prantos e depois entrou
em um transe profético, falando assim:
- Infelicidade para o dragão vermelho, pois próximo está seu fim. Sua
caverna será totalmente ocupada pelo dragão branco, representante dos
saxões que você trouxe para esta terra. Quanto ao dragão vermelho, ele
representa os bretões que serão subjulgados pelo dragão branco.
No final de seu transe, após haver simbolicamente previsto que um
javali da Cornualha – Arthur? – viria lutar contra os inimigos dos bretões,
anunciou o fim trágico de Vortigern, e a breve volta de Ambrosius e Uther.
Como fora previsto, Ambrosius desembarcou na ilha da Bretanha, e
liderou os saxões contra os bretães, perseguindo também Vortigern que, oculto
em uma fortaleza, morreu queimado com toda sua família. Vencedor,
Ambrosius quis construir um monumento em homenagem aos 400 chefes
bretões mortos pelos saxões na planície de Salisbury. Não sabendo como
realizá-lo, mandou chamar Merlim, que lhe sugeriu:
- Se queres honrar teus mortos com uma sepultura perpétua, envia
mensageiros ao Círculo dos Gigantes que se encontra na montanha de
Cilara, na Irlanda. Lá encontrarão pedras que ninguém, hoje,
conseguiria reunir, a não ser com muita habilidade. Essas pedras são
grandes e não têm similares em virtudes... São pedras místicas e dotadas
de vários poderes curativos. Que sejam dispostas em círculo no local, e
assim permanecerão para sempre.
Ambrosius faleceu e Uther assumiu o trono da Bretanha, assumiu
também o nome Pedragon (que significa utha cabeça de dragão).
Devido às conquistas, Uther resolveu festejar foi passar páscoa em
Londres conheceu Igraine, esposa de Gorloise (duque da Cornualha).
Uther se apaixona por Igraine, o marido percebendo o interesse do Rei,
retorna com a esposa em Tintangel na Cornualha.
Uther desesperado pede ajuda a Merlim para “Ter Igraine”. O castelo
em que ela está é impossível entrar sem ser identificado.
Merlim então propõe a Uther uma troca, ele o ajuda a ter Igraine, e
quando nascer o primeiro filho do casal ele tem que ser entregue a Merlim.
Uther aceita, Merlim através de encantamento faz com que Uther tome a
forma de Gorloise (que estava ausente), entra no castelo, faz amor com Igraine.
Nesta mesma noite gorloise morre em combate (Igraine tem a visão e
fica atormentada, pois ao olhar Uther via Gorloise).
No mesmo tempo em que Igraine descobre o ocorrido é pedida em
casamento por Uther e se torna rainha.
Na época do natal a rainha deu a luz a criança, um belo menino. Uther o
entrega a Merlim, que o entrega a Sir Ector que tinha um filho chamado Kay.
Quando Ector quis saber de quem era o filho, Merlim declarou:
- Seu nome é Artur, e saberás de quem é filho quando chegar o tempo de
saber.
Artur foi criado aprendendo lições de honra, coragem, gentileza,
autodisciplina, o manejo das armas, a paciência com o falcão e o cão de caça e
o trato com o cavalo, coisas que o qualificavam a tornar-se cavaleiro um dia,
preparando-o, portanto para ser rei.
No natal, ao final de uma missa quando as pessoas já dispersavam
ficaram surpresos ao encontrar no pátio um grande bloco de mármore e,
enraizada no bloco, uma bigorna e ereta com a ponta enfiada na bigorna e
atravessando mármore abaixo, uma espada nua. Ao redor do bloco estava
escrito em letras de ouro, bem claro sob o sol invernal: “Quem retirar esta
espada desta pedra e da bigorna é o verdadeiro e nato rei de toda a Bretanha”.
Então um após outro – os reis menores, os lordes e, por fim, até os
simples cavaleiros de seus séquitos começaram a fazer tentativas para arrancar
a espada da pedra.
Como ninguém conseguia retirar a espada foi enviado mensageiros para
comunicar o fato e convidar todos os que desejarem ganhar a espada e, com
ela, conquistar o reino, a comparecer ao torneio que se realizaria em Londres
no Dia das Candeias (Festa Litúrgica Católica no dia 2 de fevereiro,
comemorativa da apresentação do menino Jesus no templo e da purificação de
Maria).
Chegado o dia, Artur junto com o pai e o irmão chegam ao torneio. Kay
descobre que tinha esquecido a espada na estalagem. Artur então escudeiro de
Kay, vai até a estalagem e a encontra fechada, então ele lembrou que pela
manhã ele havia passado por uma espada numa pedra.
Artur se aproxima e retira a espada da pedra e leva ao irmão.
Kay reconhece a espada, mas não desmente quando as pessoas começam
a dizer que ele é o novo rei.
Só que seu pai faz com que ele conte a verdade e Kay diz que foi Artur
que retirou a espada. É nesse momento que sir Ector compreende sua missão e
reconhece em Artur sua linhagem e seu destino.
Os cavaleiros, as pessoas em volta começam a por em dúvida que foi
Artur que havia retirado a espada. Então todos se encaminham até a pedra
Artur recoloca a espada e a retira novamente para a surpresa de todos.
Artur no mesmo instante é consagrado o Rei de toda Bretanha. Merlim
esclarece para Artur todo acontecimento e revela sua história, seu passado, sua
origem.
Merlim passa ser o conselheiro direto de Artur, como foi de seu pai
Uther.
Em uma das várias batalhas que o Rei Artur participou sua espada foi
quebrada, foi então que ele foi ao encontro de Excalibur – a espada que
aparecia em seus sonhos. Artur levado por Merlim a um lago, onde uma mão
segura excalibur, era a Senhora do Lago quem segurava.
Artur se apropria de excalibur e sua bainha mágica, ambas vindas da ilha
de Avalon.
A Senhora do Lago avia Artur que enquanto ele estivesse com a bainha
ele estaria protegido.
Artur reina em Camelot, um tempo de paz. O melhores cavaleiros do
reino, muitos deles escolhidos em batalhas passadas, passam a integrar a
Cavalaria de Artur.
Artur sente necessidade de se casar e lembra de Guenever, a filha de Leo
de Graunce de Camelaird. Ele já havia visto num outro momento e anuncia a
Merlim que quer desposá-la.
Merlim, apesar de saber que essa não foi uma boa escolha, providencia a
vida da nova rainha.
Guenever era Cristã e trouxe consigo a Távola Redonda. A Távola
Redonda fora montada e colocada no Salão Nobre, era uma mesa semelhante à
borda de uma enorme roda, com todo o espaço do meio vazio para os pajens e
os escudeiros transitarem. A sua volta, estavam dispostas altas cadeiras para
150 cavaleiros, constando atrás de cada cadeira, escrito com ouro, o nome do
cavaleiro que deveria sentar-se ali.
Artur percebeu que havia 4 lugares que ainda estavam vazios. E Merlim
o tranqüilizou dizendo que com o tempo estes lugares seriam ocupados.
O 1º seria ocupado pelo Rei Pellinore.
O 2º seria ocupado por Sir Lancelot – que estará próximo de ti, dentre
teus cavaleiros, ele te trará suas maiores alegrias e o mais amargo desgosto.
O 3º seria ocupado por Percival – filho do Rei Pellinore, que ainda não
nasceu, mas que ao chegar, será como um arauto, pois com sua chegada
saberás que em menos de um ano o Mistério de Santo Graal alcançará seu
florescimento em Camelot, e os cavaleiros deixarão a Távola Redonda e irão
em busca da maior façanha de todos os tempos e será como se todas as coisas
ansiassem pela Glória dourada do crepúsculo, atrás do qual esta a escuridão.
E o 4º lugar é a cadeira perigosa – significa morte para quem se sentar
ali, até que aquele para quem foi feita venha reclamá-la. Porém antes do
casamento, Morgana meia-irmã de Artur o seduz se passando por outra pessoa.
Engravida e vai embora, 9 meses passam Modred, filho bastardo de Artur
nasce e é criado com muito ódio de seu pai. E com o objetivo de tirá-lo do
trono e ser o novo Rei.
Depois de realizado o desafio imposto por Artur aos seus cavaleiros (A
busca do veado branco, da cadelinha e da Donzela que era Nimue, a Dama do
Lago), Artur recebeu os juramentos de todos os cavaleiros da Távola Redonda,
segundo o qual eles sempre defenderiam o direito, seriam os verdadeiros
servidores e protetores de todas as mulheres e agiriam com justiça em tudo e
com todos os homens; competiriam sempre pelo bem do reino da Bretanha e
pela Glória do reino de Logres, que estava para a Bretanha como a chama está
para a lâmpada e conservariam a fé um no outro e em Deus.
Merlim se encontrou com Lady Nimue (a Senhora do Lago) e esta lhe
apresentou Lancelot (nesta versão, Lancelot é descrito como “muito feio”).
Merlim dirigiu-se a Lancelot e disse:
Quando completares 18 anos, antes da próxima festa da Páscoa, deixa
este lugar e vai até o Rei Artur, em Camelot, pedir-lhe que te faça cavaleiro da
Távola Redonda.
No momento em que o Grande Rei e seus cavaleiros se sentam para a
ceia da véspera da Páscoa, um dos escudeiros avisa que Lancelot quer lhe falar.
Artur então pede que ele se aproxime e então Lancelot pede para ser
consagrado cavaleiro. Artur concorda e o nomeia.
Lancelot e Guienevere trocam olhares.
De todos os cavaleiros que tiveram assento junto à Távola Redonda, Sir
Gawain (pertencente ao povo antigo – sagrado), teve uma das aventuras mais
estranhas acontecida na távola: O Encontro com o Cavaleiro Verde.
Os anos passavam e passavam, e os nomes nos espaldares de cada
cadeira da Távola Redonda iam mudando, à medida que cavaleiros morriam
em batalha ou em alguma busca arriscada e novos cavaleiros iam tomando seus
lugares.
Os anos passavam e passavam, e a cada Pentecostes os cavaleiros do
Grande Rei, recém-consagrados ou antigos, reuniam-se ainda em Camelot onde
a Távola Redonda se localizava no Salão Nobre.
Quando o rei Pellinore foi morto, sua rainha nada mais quis saber do
mundo dos homens; pegou seu pequeno filho Percival e desapareceu com ele
no meio selvagem. Entre as montanhas da floresta de Gales, encontrou uma
cabana abandonada de um queimador de carvão e fez dela um lar para a
criança, onde esta pudesse crescer longe das guerras, contendas e crueldades
dos homens; que são diferentes das crueldades do reino animal.
Desde esse tempo em diante até os 17 anos, Percival cresceu sem nunca
ter visto outro rosto humano a não ser o da mãe. A floresta e as montanhas era
o seu mundo.
Mas com o passar dos anos em direção à vida adulta, Percival começou
a achar que faltava algo na vida da floresta.
Num desses dias, Percival encontra 4 cavaleiros que vem em sua direção
e o saúdam:
“Saudações em nome de Deus”, disse o principal cavaleiro.
Percival ao mesmo tempo surpreso e assustado pergunta quem eles são?
E eles explicam a ele que são cavaleiros e servem ao rei Artur na Távola
Redonda. Artur de Pedragon, o Grande Rei de toda bretanha e a Távola
Redonda é a ordem da cavalaria que ele fundou.
Percival diz que gostaria de ser um cavaleiro e pergunta o que deve
fazer?
Eles o mandaram ir até o Rei Artur em Camelot que ele o consagraria
cavaleiro no momento certo.
Percival comunica a mãe seus planos, esta nervosa tenta persuadi-lo,
conta a história de seu pai. O que faz com que Percival tenha mais certeza de
seu destino. E então foi ao encontro do Rei Artur.
Artur e seus cavaleiros faziam a refeição do meio dia e Percival olhava a
tudo e a todos com surpresa.
Nesse mesmo tempo chega a sala um cavaleiro vestido de armadura de
ouro vermelho que se aproxima da Távola, toma a taça na mão de Kay e sai
galopando.
Artur então se levanta e pergunta quem irá trazer sua taça, só que não
permite que nenhum cavaleiro vá, afinal de contas esta atitude foi uma afronta,
e este cavaleiro pelas leis da cavalaria não é digno de morrer por um dos
cavaleiros por isso Artur ia convocar um escudeiro.
Então Percival se prontifica a ir atrás do cavaleiro e Artur concorda.
Percival encontra o cavaleiro, luta com ele e o mata, em seguida veste
sua armadura e volta com a taça roubada.
Percival é consagrado cavaleiro.
A ordem dos cavaleiros da Távola Redonda fora criada quando o rei
Artur era jovem. Por onde quer que estivessem os cavaleiros em outras
ocasiões pois eles tinham vidas e metas próprias a seguir era seu hábito reunir-
se a seu rei nos dias das grandes festas da igreja. Foi num desses encontros que
uma moça se aproximou deles e pediu a Sir Lancelot que a seguisse em nome
do Rei Pelles.
Então Rei Pelles apresenta Galahad a Lancelot, seu filho com Elaine.
Galahad também quer ser consagrado cavaleiro.
Só que ainda não era seu tempo de ir, Lancelot e os cavaleiros que o
acompanhavam.
Quando chegaram a Camelot, o rei e a rainha haviam ido com toda a
corte assistir à missa matinal e eles encontraram algo estranho.
Na Távola estava escrito na “cadeira perigosa” (nunca ouve um
cavaleiro que havia sentado nela e todos que tentaram haviam morrido). No
dia do Pentecostes esta cadeira será preenchida. E Lancelot falou que era hoje
o dia.
Quando os cavaleiros estavam retornando, um escudeiro chegou
gritando que havia ocorrido um milagre. Apareceu uma espada dentro de uma
pedra boiando com o seguinte escrito:
“Ninguém poderá tira-me senão aquele a cujo lado deverei ficar”.
Muitos tentaram retirar a espada, mas não conseguiram.
Então voltaram para o salão, logo após entraram no salão um rapaz e um
ancião.
O ancião se apresentou e apresentou o cavaleiro:
“Senhor disse o ancião, trago-vos este cavaleiro da Linha do rei Pelles, e
por meio dele da linha de José de arimatéia, aquele que a este país trouxe o
Santo Graal da terra onde nosso Senhor Jesus Cristo bebeu dessa taça
milagrosa e por ocasião da última ceia repartiu o vinho com seus discípulos.
Este foi o início da permanência do Graal entre os homens; e muitos milagres e
muitas tristezas seguiram-se desde então; e por esta mesma causa o próprio rei
Pelles jaz inválido por uma ferida que jamais se fecha, estando seu país em
caos, porém, chegada a hora de findarem-se todas essas coisas. E com o tempo
vem também o cavaleiro que as levará ao seu cumprimento e ao seu final.
- Se é como dizes – disse o rei -, jamais houve homem mais bem-vindo.
Então o ancião, servindo o cavaleiro como se este fosse seu amo,
ajudou-o a desarmar-se recolocando o manto vermelho sobre a túnica branca.
E agora que sua cabeça estava descoberta, eram muitos os olhos que iam e
vinham de seu rosto para o rosto de Sir Lancelot. O ancião levou-o
diretamente para a Cadeira Perigosa e afastou o manto de Sir Bors, de modo
que as letras de ouro brilhavam novamente. Mas as palavras haviam mudado e
agora lia-se: “Esta é a cadeira de Galahad”.
O jovem cavaleiro tomou seu lugar, de modo grave e silencioso. Olhou
para o ancião e disse: - Cumpriste fielmente o que te foi exigido. Volta agora a
corbenic como vieste. Saúda meu avô e dizei-lhe que irei com certeza quando
o tempo me enviar.
E o ancião dirigiu-se ao grande portal, abriu-o – ninguém ousou segui-lo
– e empreendeu sua viagem.
O rei e todos os cavaleiros receberam então Sir galahad. Teriam feito o
mesmo para qualquer membro de sua irmandade. Mas as palavras do ancião
forneceram-lhes motivos de alegria para a recepção. Todos eles estavam muito
bem informados sobre o rei Pelles, denominado Guardião do Graal, Rei
Pescador, Rei Ferido – em virtude da ferida, em sua coxa, que não podia sarar;
e eles sabiam que por causa dessa ferida seu país também sofria, oprimido por
secas e colheitas magras, bem como pelas sombras de tristezas e
acontecimentos estranhos que o cobriam como uma nuvem. Agora parecia
que, com a presença do jovem cavaleiro, havia um presságio de mudança, e por
isso eles se rejubilavam.
Mas havia uma outra razão para alegria. Desde há muito eles sentiam –
os cavaleiros mais velhos, especialmente – que em Camelot os dias de glória e
esplendor haviam passado, que a longa batalha da justiça sobre a força havia
ficado para trás, tendo-se acabado os sonhos e tendo-se a vida acomodado
sobre um regime constante e sólido; e isto era motivo de aperto nos corações da
irmandade da Távola Redonda. Agora parecia haver algo pela frente, algo por
vir; alegria ou tristeza, talvez morte, mas algo por vir...
- Uma luz além da floresta – pensou Sir Lancelot -, mas primeiro é
preciso atravessar esta floresta escura. – E não tinha muita certeza da razão
deste pensamento.
- Se eu fosse uma árvore e a primavera estivesse para chegar – embora
ainda demorasse -, é assim que eu me sentiria – pensou Sir Percival; e seu olhar
sério pairava sobre o jovem cavaleiro sentado tão calma e gravemente na
Cadeira Perigosa. Sir Percival era um seguidor nato, e para alguém assim não
há nada melhor neste mundo do que encontrar o líder de seu coração.
- Como é que ele pode permanecer sentado lá, sem que alguma desgraça
lhe aconteça? – disse Sir Bors, preocupado, a Sir Lancelot a seu lado. – Ainda
nem teve tempo de provar seu valor.
E Sir Lancelot respondeu: - Não viste seu nome no espaldar? Penso que
isso só pôde acontecer por ser a vontade de Deus que ele esteja lá sentado.
Ao fim do repasto, o rei contou a seu cavaleiro mais novo sobre o
milagre que presenciaram antes de sua chegada.
- Já que a cadeira é destinada a ti, pode ser que a ti também seja
destinada a espada – disse ele. – Vem, façamos o teste.
Assim, mais uma vez os cavaleiros desceram as estreitas e íngremes ruas
de Camelot, com as gaivotas voando entre os beirais, no ar de verão; e mais
uma vez reuniram-se às margens do rio.
O bloco de mármore vermelho continuava lá entre as raízes do amieiro,
e a bela e estranha espada ainda se erguia sobre ele, fortemente presa.
E Sir Galahad, descendo por entre as raízes molhadas para dentro da
água rasa da margem, retirou a espada da pedra tão facilmente como se a
mesma estivesse dentro de uma bainha muito bem lubrificada.
Uma exclamação escapou dos cavaleiros atentos; e o rei disse: -
Certamente presenciamos um verdadeiro milagre! Dois de meus melhores
cavaleiros haviam falhado na tentativa!
Sir Galahad ficou olhando para a espada em suas mãos, sentindo seu
equilíbrio. – A façanha não era para eles, mas para mim – disse ele sem se
gabar, apenas constatando um fato, e colocou a espada na bainha vazia a seu
lado. – Não sou mais um cavaleiro sem espada. Tudo o que necessito agora é
um escudo.
- Deus te enviará um escudo, tal como te enviou a espada – disse o rei.
Sir Lancelot lembrou as palavras inscritas no punho e abafou um
sentimento amargo de perda, dizendo a si mesmo que ninguém poderia ser
sempre o melhor cavaleiro do mundo, capaz de convencer-se de tal fato, pois
ele ainda não acreditava nisso totalmente.
Então o rei se pronunciou mais uma vez: - Meus irmãos, penso que em
breve nos deveremos separar; e nunca mais eu os verei aqui comigo, como
agora. Por isso, pelo resto deste dia realizaremos uma competição aqui nos
prados aos pés de Camelot, com façanhas tais que, depois de passado o nosso
tempo, os velhos contarão sobre elas a seus netos, junto ao fogo em noites de
inverno, e os olhos das crianças deverão brilhar ao ouvir, e elas, por sua vez, as
reencontrarão a seus netos.
Assim, as inscrições foram feitas e os homens mandaram vir seus servos
com cavalos e armas; durante o dia todo, até o pôr-do-sol, os cavaleiros
competiram na planície junto a Camelot. E os homens procuravam ver como
Sir Galahad se sairia, sabendo que ele tivera uma educação tão estranha e
talvez jamais houvesse portado armas. Mas ele provou ser tão bom, tanto
como cavaleiro como no manejo da espada e da lança, que ao pôr-do-sol,
dentre todos que o haviam enfrentado, os únicos invictos eram Sir Lancelot e
Sir Percival.
Quando a penumbra cobriu os prados à beira do rio, eles deram a
competição por terminada, cavalgando de volta pelas ruas íngremes de
Camelot, seguidos por todo o povo que viera assistir. E assim voltaram ao
palácio, pois era a hora da ceia.
Mas os milagres desse dia ainda não haviam chegado ao fim.
Quando os cavaleiros se haviam desarmado e mais uma vez se
encontravam sentados à mesa, com as tochas acesas e as finas toalhas de linho
estendidas, ouviu-se uma trovoada estridente a ponto de parecer que o teto viria
abaixo. Após o trovão, um raio de sol atravessou o salão como uma espada
luminosa, ofuscando as tochas e iluminando todos os cantos mais íntimos de
suas almas; e uma grande devoção se apossou deles – uma quietude tamanha
que ninguém podia mover-se nem falar.
E estranho eles assim sentados, o Santo Graal surgiu no salão, sem que
ninguém visse as mãos que o seguravam. Entrou pelo grande portal, coberto
com um fino tecido branco, tal como todos haviam visto o cálice da comunhão
sobre o altar durante a celebração da missa. E a seus corações adveio a
compreensão daquilo que eles viam. Ele parecia estar flutuando, leve e sereno
como um raio de sol sobre o ar; e à sua chegada o salão foi invadido por mil
fragrâncias, como se todas as flores e especiarias o houvessem precedido.
Lentamente ele circundou a grande mesa, parando à frente de cada homem e
logo em seguida passando ao próximo; e cada um dos homens encontrou, após
sua passagem, comida muito mais deliciosa do que qualquer outra saída das
cozinhas do palácio.
E após haver circundado a mesa, o Graal desapareceu de suas vistas, tão
silenciosamente quanto entrara.
O raio de sol se apagou e as tochas iluminaram novamente as sombras
esfumaçadas, e o silêncio se desfez. E o rei, ainda sereno, disse: - Meus
irmãos, agora nossos corações devem elevar-se em alegria, por Nosso Senhor
nos haver dado tão grande sinal de seu amor, alimentando-nos com sua graça
de seu próprio cálice nesta grande festa de Pentecostes. Agora realmente
sabemos haver chegado o tempo do qual nos falou o ancião que nos trouxe Sir
Galahad.
Sir Gawain, o mais impetuoso da Távola Redonda, levantou-se e jurou
que na manhã seguinte sairia em busca do Santo Graal, jamais voltando à corte
sem ter contemplado abertamente o mistério que lhes fora permitido vivenciar
nesse dia – e até que as terras inférteis do rei Pelles fossem redimidas, como o
ancião predissera.
Mas o rei afundou o rosto nas mãos, e as lágrimas brotaram entre seus
dedos. – Gawain, Gawain, enches meu coração de tristeza, pois agora eu sei
que nos dispersaremos; e terei de perder os melhores e mais fiéis companheiros
que homem algum já teve. E bem sei que muitos de vós, a nata dos que irão
embora, jamais voltarão para mim.
Ele também sabia que, não fora Gawain, qualquer outro o teria feito,
pois assim estava previsto.
- Senhor – disse Sir Lancelot tentando confortá-lo -, se um de nós tiver
de encontrar a morte nessa busca, não poderíamos enfrentá-la de forma mais
doce e honrosa.
Mas o rei não se conformou.
Ora, a notícia da vinda da Galahad e de sua façanha com a espada
chegara aos aposentos da rainha, e ela saíra com suas damas para assistir à justa
da armadura. Adivinhando quem seria o novo cavaleiro, ela queria vê-lo, mas
não ousava fazê-lo perto demais, pois sabia que isto seria como uma adaga
penetrando-lhe o coração. E, ceiando depois em seus aposentos, ela ouvira o
trovão, e um dos homens lhe trouxera a notícia da vinda do Graal, como
também do juramento que Sir Gawain e todos os demais cavaleiros haviam
feito.
- Sir Lancelot também? – perguntou ela, e a agulha que usava para
bordar um lírio o atravessou, perfurando o dedo.
- Não seria Sir Lancelot se não o fizesse! – disse o pajem.
E o sangue vermelho se espalhou, manchando a pétala do lírio.
Na manhã seguinte, quando os cavaleiros se armavam e os cavalos eram
levados a circular pelo grande pátio, a rainha lavou seus olhos para que
ninguém percebesse que passara a noite chorando, e saiu para desejar-lhes boa
viagem. Mas finalmente a coragem desmoronou, e ela voltou ao jardim do
castelo para esconder sua tristeza, deixando-se cair pesadamente sobre um
assento de turfa embaixo de uma vinha.
Sir Lancelot, armado e pronto para montar, viu seu rosto no momento
em que ela se virou para sair; entregou seu cavalo ao pajem mais próximo e
seguiu-a rápida e silenciosamente.
O rei não estava olhando nessa direção. Às vezes ele achava difícil
ignorar o que havia entre sua consorte e seu melhor amigo. Mas enquanto nada
sabia, não havia necessidade de magoar as duas pessoas que ele mais amava
neste mundo. Ele rezava tão profundamente em seu coração que nem sequer
prestava atenção a isso, e nada jamais aconteceria que o forçasse a saber.
Sir Lancelot passou pela estreita porta de acesso ao jardim. Parou diante
de Guenever e tocou sua manga de seda, ao que ela exclamou: - Tu me traíste,
e me condenaste à morte!
- Querias que eu ficasse para trás, quando os outros juraram empenhar-
se na busca?
- Sim! Antes isso do que deixares o serviço de meu senhor, o rei, para ir
a terras estranhas das quais só Deus te poderá trazer de volta são e salvo!
- Se assim for a vontade de Deus, então Ele me trará seguramente de
volta.
- Estou doente de medo! – lamentou-se a rainha, sem ouvi-lo. – Se tu me
amasses verdadeiramente, não poderias ir sem minha licença
- Senhora – disse Sir Lancelot -, ouço os cavalos trotando no pátio. Dai-
me vossa licença para ir agora.
Ela calou-se por um momento e então disse: - Vi Galahad, quando subiu
da competição. Ele é muito parecido contigo.
- Ele é bonito – disse Sir Lancelot.
- Bonito és tu, és tu! – e irrompeu numa risada entrecortada de soluções;
e, virando-se, segurou o rosto dele entre as mãos. – Eu lamento pela mãe de
Galahad, pois mesmo tendo ela dado à luz o teu filho, eu tive mais alegria
contigo do que ela jamais teve!
- Senhora – disse Lancelot com voz alquebrada -, dai-me vossa licença
para ir.
- Vai – disse ela -, e Deus esteja contigo.
E Lancelot voltou ao pátio, onde todos os outros já estavam montados e
prontos para sair. Lá, com os demais, despediu-se de Artur, seu soberano e
melhor amigo; e isso também causava forte dor em seu peito, mas ainda por
estar com remorso por causa da rainha.
- Deus esteja contigo – disse o rei.
E eles se foram – Sir Percival o mais perto possível atrás de Sir Galahad.
E Camelot inteira chorou ao vê-los sair.
Sir Galahad, que nascera no castelo de Corbenic e fora educado lá
durante seus primeiros anos de vida, e cujo avô era o rei Pelles, sabia muito
bem onde o Graal estava guardado. Sir Lancelot também o sabia. Mas eles
também sabiam, como todos os demais cavaleiros que saíram da corte de Artur
naquela manhã, que simplesmente cavalgar até Corbenic e bater nos portões do
castelo exigindo ver o mistério que lá se abrigava serviria a um propósito
vazio. Eles teriam de atirar-se ao próprio destino, satisfeitos com qualquer
caminho a que este os levasse, e confiar em que, sendo certo o tempo e
provando eles seu valor, a procura que estavam realizando os levaria ao local
desejado por seus corações e ao objeto almejado por seus espíritos.
Assim, tendo cruzado o ri, separaram-se e cada qual adentrou por si a
floresta, no trecho onde as árvores eram mais grossas e os caminhos
inexistentes. E a floresta se fechou sobre eles, como se eles jamais tivessem
existido.
Muitos cavaleiros morrem, se perderam ou retornaram a Camelot.
Restando apenas Lancelot, Sir Bors, Percival e Galahad. Todos
passaram por provações as quais sobreviveram.
Lancelot ouve um chamado íntivo e vai ao encontro de seu filho
Galahad.
Por toda metade invernal daquele ano foi dado a Lancelot e seu filho
Galahad permanecerem juntos no navio, sendo esse o único tempo que jamais
iriam dividir nesta vida. Muitas vezes o navio ancorou em ilhas e terras
desconhecidas, longe do mundo dos homens. E muitas e maravilhosas foram
as aventuras que eles encontraram ao descer juntos à terra. Mas a história nada
conta delas, pois a narrativa seria longa demais, não nos aproximando do
mistério do Graal. Mas eles sempre voltavam ao navio, estando lá a moça
deitada como a dormir. E cortês, enquanto se dirigia à solidão e aos locais
desertos em seu íntimo. Mas agora Lancelot já havia aprendido o suficiente
para deixá-lo em paz; assim, a ligação entre ambos se tornara muito forte.
E assim que chegaram à praia, um cavaleiro surgiu da floresta,
montando um grande cavalo branco de batalha e conduzindo com sua mão
direita um outro, tão branco quanto as flores das pereiras nativas da orla.
Vendo-os esperando no convés, aproximou-se a meio-galope e, freando,
dirigiu-se a Galahad: - Senhor cavaleiro, permanecestes com vosso pai o tempo
que vos foi permitido. Agora deixai este navio, montai e cavalgai, pois a busca
nos aguarda.
Galahad pôs seu braço em torno dos ombros de seu pai, como se fosse o
mais forte e mais velho dos dois, dizendo: - Eu sabia que cedo ou tarde isto
teria de acontecer; e meu coração dói dentro de mim, pois não acredito que nos
vejamos novamente neste mundo.
Desceu então à terra. E Sir Lancelot, ainda de pé no convés como se lá
estivesse enraizado, com a mágoa enegrecendo seu dia primaveril, disse: - Reza
por mim, para que eu mantenha minha fé no Senhor Deus, tanto neste como no
outro mundo.
Sir Galahad respondeu: - Rezarei, pois sois meu pai e há amor entre nós,
e porque o pedis. Mas vossas próprias orações são fortes, e certamente
mantereis vossa fé por meio delas.
Sir Lancelot rezou como jamais havia rezado antes, mais humilde e
convictamente e com um anseio mais urgente de que, não estando realmente
excluído do amor divino, ele tivesse permissão para ter mais uma visão do
Graal, e que pudesse vê-lo não como daquela vez ao lado da cruz da estrada,
mas com seu coração e alma prontos e receptivos em seu íntimo.
Orou por longas horas, durante noites e dias, quase deixando mesmo de
dormir. E então uma noite, parando um pouco de rezar, descobriu que não se
encontrava mais no mar, mas subira para o curso retraído e remanescente do
que devia Ter sido outrora um grande rio, e o navio havia entrado pelo
profundo canal ainda existente, entre as rochas abaixo de um grande castelo.
Observando o local, ele viu que estava sob as torres traseiras do castelo
de Corbenic.
Corbenic, onde em sua juventude ele tinha vindo ter com Lady Elaine e
onde nascera Galahad, seu filho.
Enquanto ele hesitava, conjeturando sobre o que deveria fazer, uma voz
oriunda do luar lhe disse: - Lancelot, chegou também tua vez de deixar o navio.
Entra no castelo, pois esse é o local que teu coração almeja.
E ali parado, desesperadamente pensando no que fazer em seguida, pois
estava certo de ter de abrir a porta se quisesse chegar ao que procura, ouviu
uma melodia vindo de trás da madeira tão obstinada. Era uma música mais
doce do que qualquer canto do mundo; entrelaçadas às luminosas cadências,
ele parecia distinguir as palavras: “Glória, louvor e honra a Ti, Pai dos Céus”.
E então pensou que seu coração certamente se despedaçaria, pois sabia que o
Graal estava nesse aposento além dessa porta, e mais uma vez ele estava
excluído.
Ajoelhou-se junto à porta e orou, com a cabeça entre as mãos curvadas.
– Bom Deus, meus pecados me pesam. Mas se jamais fiz algo de vosso
agrado, por piedade, não me priveis daquilo que estou procurando há tanto
tempo.
- Para trás, Sir Lancelot. A ti é permitido ver, mas não entrar.
Deste modo, Sir Lancelot retrocedeu do local de seus anseios e
ajoelhou-se humildemente à soleira da porta, olhando para dentro.
Mais tarde ele nunca esteve certo de que realmente vira as flores e as
velas e ouvira a música, nem tampouco esteve seguro de realmente haver
olhado para dentro do aposento repleto de movimento de asas de anjos nas
cores do arco-íris. Contudo soube que, estando ali ajoelhado, vira novamente,
bem no centro do esplendor e da beleza, o Santo Graal sob o véu branco.
Ajoelhado diante do Graal estava um sacerdote idoso. Talvez fosse o
próprio Josefus, talvez não; o tempo parecia não existir nesse local, e nem
barreira alguma entre os que viviam neste mundo e os que já se encontravam
no céu. Em todo caso, ele estava além do pensamento. Sabia apenas que o
sacerdote estava celebrando a missa, e que no momento culminante, quando se
virou e ergueu a taça, havia mais três no aposento; e por um instante ele pensou
que deveriam ser Bors, Percival e Galahad; e depois soube que não eram,
apesar de não conseguir vê-los devido à sua luminosidade. E dois deles
estavam colocando o Terceiro nas mãos erguidas do sacerdote. E então Sir
Lancelot não estava certo de que o sacerdote erguia o Terceiro, ou se ele
próprio era o Terceiro, e carregando algo mais – algo pesado demais para ele,
de forma que o vergava até o chão.
Então Lancelot esqueceu que estava proibido de entrar no aposento, e
sabia apenas que deveria ajudar – tinha de carregar um pouco do peso.
Levantou-se e cambaleou pelo portal, com suas mãos estendidas.
Foi recebido por uma lufada de vento entrelaçado com fogo, que o
queimou e cegou. A escuridão o assolou de todos os lados; e ele sentiu mãos,
muitas mãos que o jogaram para fora do aposento, de forma que caiu
desajeitadamente atravessado no topo da escada, e a escuridão o absorveu onde
jazia deitado.
No dia seguinte, quando o castelo acordou e o povo se agitava
novamente por toda parte, encontraram Sir Lancelot deitado, como que
fulminado por um forte golpe, do lado de fora da sala do Graal. Sabiam de
quem se tratava, pois muitos dos cavaleiros mais velhos se lembravam muito
bem dele no decorrer dos vinte anos passados; mas como chegara a estar onde
jazia, e o presente estado, isso eles não sabiam, salvo o fato de que devia ter
estado à procura do Graal.
Levaram-no a uma câmara da torre, longe do barulho e do movimento
do grande castelo, deitando-o sobre a cama; e, ao desarmá-lo, procuraram em
todo o seu corpo por ferimentos, mas nada encontraram salvo sinais
esbranquiçados de antigas lesões, pois ele estava marcado como um velho e
bem testado cão de caça.
Deste modo, corriam-no e o deixaram deitado até que voltasse a si,
vendo que nada mais poderiam fazer por ele a não ser deixá-lo descansar. Mas
os dias e as noites se passaram, com alguém sempre em vigília ao seu lado,
tanto à luz do sol quanto da chuva, ou à luz de uma lamparina de prata; mas Sir
Lancelot nunca se moveu ou falou. E aqui e ali uma ou outra dama do grande
salão, lembrando-se dele à época em que ainda era uma donzela, ou a mais
nova ajudante de cozinha, que jamais havia colocado seus olhos sobre ele mas
ouvira histórias contadas pelo ancião do canil, que o conhecera, choravam um
pouco ao pensar que o maior cavaleiro de todos os tempos fenecia dessa
maneira.
Vinte e quatro dias e vinte e quatro noites. E então, perto do meio-dia
do vigésimo quinto dia, Sir Lancelot abriu seus olhos e olhou à sua volta, com
uma expressão excitada em seu rosto, como se ainda estivesse pensando ver o
que havia presenciado na sala do Graal. A luz desapareceu após ele conhecer e
aceitar sua perda.
Ele olhou para os que se encontravam ao redor de sua cama e perguntou:
- Como vim parar aqui neste quarto? Há quanto tempo estou aqui?
E eles lhe contaram como souberam de sua vinda, e desde quando se
encontrava lá deitado como morto.
Sir Lancelot disse então que devia prosseguir cavalgando; após lhe
haverem trazido alimento para refazer suas forças, e tendo ele comido, uma
moça lhe trouxe uma linda túnica nova de linho. Mas ele viu sobre um baú ao
lado da cama a rude camisa de pêlo que havia usado por mais de meio ano, e
vestiu-a ao invés daquela.
Durante mais quatro dias ele permaneceu em Corbenic, recuperando
suas forças; e no quinto dia pediu sua armadura, pois desejava voltar à corte de
Artur, de onde se havia ausentado por mais de um ano.
Assim, um atendente trouxe suas armas e armadura, ajudando-o a armar-
se; descendo ao pátio do castelo, ele encontrou um ágil e fogoso cavalo
castanho sendo trazido pelas rédeas.
- É um presente do rei Pelles – disseram -, do Guardião do Graal, o Rei
Mutilado.
- Peço-te transmitir-lhe meus agradecimentos – disse Sir Lancelot -, e
que Deus esteja com ele.
Montou seu cavalo e, deixando o Castelo do Graal atrás de si, seguiu seu
caminho.
Entretanto, não voltou imediatamente à corte do rei artur. Sabia que
para ele a busca havia passado e chegado ao fim; faltava-lhe, no entanto, a
vontade de dar meia-volta e cavalgar para casa – medo do que encontraria lá:
os lugares vazios na Távola Redonda; um receio, talvez de rever a rainha
Guenever. Após todo o cansaço e a luta, ele precisava de um intervalo antes de
retornar ao mundo mais uma vez.
Uma noite, estando longe de qualquer abrigo, vila, eremitério ou
choupana florestal, ele deitou-se, sem jantar, sob um salgueiro semimorto junto
ao último córrego de um rio quase todo seco, escolhendo esse local porque
havia um pouco de grama esparsa para seu cavalo pastar.
E dormindo lá, com seu escudo por travesseiro, sonhou.
Sonhou que estava novamente à soleira da porta do aposento do Graal,
em Corbenic, vendo tudo como já fora antes. Mas agora Galahad, Percival e
Bors lá estavam; e lá também, deitado sobre um maca, estava o próprio rei
Pelles. A luz, os cânticos e a beleza criaram uma nuvem brilhante na cabeça de
Sir Lancelot, que assim não podia enxergar até o âmago da visão de glória.
Mas como antes, ele sabia que a missa estava sendo celebrada, e viu o Graal e a
seu lado uma lança cuja lâmina estava tingida de vermelho. E sabia, apesar de
não ouvir voz alguma, que estavam recebendo suas ordens para levar o Graal
de volta à santa cidade de Sarras, de onde ele viera tanto tempo atrás, e que de
lá deveria voltar ao seu verdadeiro lugar. Havia mais uma ordem, para
Galahad apenas; e ele viu Galahad tomar a lança e levá-la até o Rei Mutilado,
tocando a ferida aberta em sua coxa com o sangue que pingava da lâmina. Viu
o rei Pelles erguer-se, curado e sadio, da maca onde estava deitado. Então
pareceu-lhe captar finalmente a voz; ou talvez fosse uma outra voz, que disse: -
Agora as águas estão livres e os rios correrão, e a Terra Devastada produzirá
trigo e o gado dará muitos novilhos, e os pássaros cantarão nas árvores entre as
largas folhas de verão.
Nesse instante ele acordou; e a visão gloriosa se tornou o primeiro raio
de sol atingindo seus olhos, e os pássaros cantavam como jamais ele os havia
ouvido na Floresta Selvagem, como se estivessem cantando na primeira manhã
do mundo. E então um outro som chegou a seus ouvidos: o rápido rumor de
água fluindo; erguendo-se em seu braço e olhando à sua volta, ele viu
claramente, por entre a verde miscelânea dos brotos nos ramos do salgueiro,
que o rio abaixo dele, não parecendo antes mais do que uma trilha de lama
estagnada, estava fluindo rápido e profundo. Então seu grande cavalo de
batalha desceu por entre os ramos do salgueiro para beber.
E ele teve consciência de que seu sonho fora verdadeiro; o Rei Mutilado
estava curado e seu país também, e o Graal estava sendo levado para seu lugar,
com Galahad e seus companheiros.
A espera findara; e tendo assobiado para seu cavalo, selando-o sem
seguida, ele o montou e cavalgou de volta para Camelot.
Para Sir Galahad, Sir Bors e Sir Percival, tudo havia acontecido como
Sir Lancelot vira em seu sonho. Mas aquele viram, ouviram e souberam de
tudo o que para ele fora misericordiosamente velado pelo brilho da glória. E
suas almas, tendo sido elevadas, pairavam soltas dentro deles, como uma
espada semi-retirada da bainha.
Obedecendo à vós, eles se amaram e seguiram para a orla do mar,
adiante da desembocadura do rio.
Lá encontraram o emponente navio que dera a Galahad sua espada.
Olhando para seu interior, viram, sob a tenda, a cama com a coroa de ouro
ainda pousada à cabeceira. Mas aos pés, onde Galahad deixara sua velha
espada no lugar da outra, estava a mesa de prata que haviam visto por último
na sala do Graal, sob um véu de samito púrpura.
-Irmãos – disse Galahad -, esta é a última de nossas viagens. Que Deus
esteja conosco. – E subiram a bordo.
Imediatamente o grande vento, que já conheciam tão bem, acordou nos
longínquos cantos do céu e veio encher as velas, afastando o navio da praia e
fazendo-o deslizar sobre as ondas.
Durante muitos dias velejaram dessa maneira; seus corpos jamais tinham
fome enquanto o Graal se encontrava com eles. Finalmente, sem terem visto
entrementes qualquer terra, o vento abandonou as velas e o navio adentrou um
porto de uma grande cidade; e pela beleza e pela luz brilhando ao seu redor,
eles perceberam que devia ser Sarras, a Cidade Sagrada, que é como a soleira
da Cidade de Deus.
Ao ancorar ao longo do cais, eles ouviram novamente a voz: - Deixai o
navio agora, tomai a mesa de prata com seu conteúdo e levai-a para a cidade,
não a depositando em lugar algum até que chegueis a uma igreja que coroa o
lugar. Então colocai o Graal dentro de seu velho abrigo.
Assim, eles tomaram a mesa de prata, carregando-a entre si, e desceram
à terra. Entrementes, um segundo navio adentrou o porto, e olhando em sua
direção eles viram as velas brancas brilhando ao sol da manhã, e o corpo da
jovem Anchoret deitado no convés, onde o haviam colocado tantos meses
antes.
- Verdadeiramente – disse Galahad -, a moça manteve muito bem sua
promessa.
Então, com Bors e Percival na frente e Galahad atrás, puseram-se a
carregar a mesa de prata com o Graal sobre ela, subindo ruas íngremes entre as
douradas colmeias do casario rumo à Cidade Sagrada. Mas a cada passo que
davam, o peso da mesa e do Graal se tornava maior, até que, ao alcançarem os
portais da Cidade Sagrada, encontraram-se à beira da exaustão.
À sombra do portal sentava-se um mendigo aleijado, todo entrevado e
curvo, tendo ao lado sua muleta e a tigela de esmolas. Vendo-o, Galahad
exclamou: - Amigo, vem pegar o quarto canto desta mesa, ajudando-nos em
nossa caminhada!
- Pois é, muito contente eu ficaria em ajudar-vos – disse o homem -, mas
vede como estou. Dez anos decorreram desde que eu andava sem ajuda.
- Estás vendo o que acontece conosco – respondeu Galahad. – Estamos
exaustos sob o peso do que carregamos. Não tenhas medo, levanta-te e tenta.
Os olhos do mendigo se fixaram no Graal sob seu véu. E a todos que
olhavam parecia haver sob o véu um brilho que não provinha da luz do sol,
pois a rua estreita estava escura pela sombra. Ele emitiu um pequeno gemido e
levantou-se, vagaroso e cambaleante, mas ereto como sempre havia sido. A
força lhe retornou, e alegremente ele tomou o quarto canto da mesa de prata. E
de súbito parecia não haver mais peso algum.
Assim eles atravessaram os portões e subiram à Cidade Sagrada, com
uma grande multidão jubilosa à sua volta, aumentando a cada passo a notícia
do que estavam levando para Sarras e da cura do mendigo. Chegando à grande
igreja, o coração palpitante da cidade, colocaram o Graal diante do altar-mor.
Então voltaram mais uma vez ao porto, onde os esperava o segundo navio.
Lá também havia uma multidão, olhando com devoção e espanto;
Galahad e seus dois companheiros subiram a bordo e ergueram a maca sobre a
qual jazia a moça; carregaram-na pelas ruas íngremes e congestionadas à igreja
na Cidade Sagrada, onde os sacerdotes já se encontravam, e colocaram-na ao
lado do Graal. E a luz, penetrando pelas altas janelas de vidros coloridos,
banhou suas vestes brancas com as cores da rosa, da dedaleira e da íris, e de
todas as mais belas flores do verão.
E lá, diante do altar, ela foi sepultada, com todas as honras devidas a
uma filha de reis.
Mas quando a notícia de tudo isso chegou ao rei da cidade, Escorant,
este mandou chamar os três para que lhes explicassem o significado do que
ouvira. Eles responderam a cada pergunta verazmente, e contaram-lhe toda a
história da busca do Graal. Mas os olhos de seu espírito eram cegos, e ele não
acreditou numa só palavra do que disseram; declarou-os impostores e,
chamando pelos guardas, mandou colocá-los na prisão.
- Ficai lá e apodrecei – disse ele -, até que penseis numa outra história.
Por uma ano eles permaneceram presos, mas tal como havia ocorrido
com José e seu povo quando cativos na bretanha, o Senhor Deus enviou o
Santo Graal para confortá-los e mantê-los durante o seu cativeiro.
Ao final de um ano, o rei Escorant caiu doente, sabendo estar prestes a
morrer. Lembrou-se dos três prisioneiros nos calabouços e, tendo modificado
seu coração, mandou vir Galahad, Bors e Percival. E estando eles em sua
presença, sujos da imundície da prisão, pediu-lhes perdão por havê-los tratado
tão mal.
Eles o perdoaram total e incondicionalmente, mesmo Bors, que tinha
maior dificuldade em perdoar do que os outros dois. E nesse mesmo instante
ele morreu.
Ora, o rei Escorant não deixou filho algum como herdeiro; e assim,
tendo ele sido sepultado em sua esplêndida tumba, o povo de Sarras começou a
conjeturar quem deveriam ter como seu próximo rei. Sua escolha recaiu em
Galahad, lembrando como ele e seus companheiros vieram trazendo o Graal,
bem como a cura do mendigo inválido junto aos portões da Cidade Sagrada. E
disseram: - Seguramente não poderíamos escolher um rei melhor do que esse.
Quando seus representantes chegaram dando-lhe esta notícia, Galahad
respondeu: - Nada foi obra minha, mas o poder do Graal.
E os homens disseram: - Mesmo que assim seja, há outra razão. O rei
Escorant não tinha direitos de sangue à coroa; mas vós sois da linha de José de
Arimatéia, e trouxestes de volta a esta cidade o Graal que ele havia trazido há
muito tempo. Por isso, é adequado ao final desta portentosa e misteriosa
aventura que carregueis o peso dourado da coroa, mesmo sendo por um só dia.
Assim, Galahad foi coroado rei de Sarras, apesar de não o desejar, e o
artefato de ouro parecia tão pontiagudo quanto espinhos sobre sua cabeça.
Na manhã após a coroação, Galahad levantou-se à primeira luz da
madrugada e colocou sua armadura, já bastante gasta, que havia usado por
tantas aventuras. Apenas deixou de lado o elmo e a coifa de malha desatada
caindo sobre os ombros, de forma que sua cabeça permanecia descoberta.
Chamou por Bors e Percival, e juntos saíram do palácio para a catedral no
centro da Cidade Sagrada.
Chegando à catedral guarnecida de altas torres, onde a luz acabava de
despertar nas janelas do lado oeste, eles dirigiram seus olhares ao altar-mor e
ao Graal em seu lugar de costume. Lá parado, viram alguém em vestes de
bispo. Pareceu-lhes ser o mesmo sacerdote que viram na sala do Graal, em
Corbenic. E, deveras, ele parecia conhecê-los também – porque os saudou tão
logo haviam atravessado a soleira. E a Sir Galahad, agora o rei de Sarras,
disse: - Vem agora, Galahad, e vê e participa daquilo que tanto almejaste.
Galahad se aproximou, tendo os outros atrás, e, ajoelhado-se, olhou para
dentro do Cálice que o sacerdote havia descoberto e segurava em sua direção.
Atrás, Bors e Percival nada mais viam além da taça de ouro
estranhamente lavrada. Eles haviam participado do mistério em Corbenic, que
desta vez não se destinava a eles; apenas a devoção, a alegria e a reverência
que sempre sentiram à missa. Este era o último mistério a cujo encontro
Galahad tinha de ir só – não importando quão perto eles estivessem ajoelhados
atrás dele – tal como cada pessoa vai só para seu nascimento e sua morte.
Eles viram como seu corpo começou a tremer, como se um forte vento o
estivesse atravessando. Ele olhou para o alto; e seu rosto, com o primeiro raio
de sol da manhã banhando-o, luzia como se aceso por uma luz interior; e seus
olhos estavam plenos de tudo o que os outros não podiam ver.
Ele ergueu suas mãos e clamou, com voz alta e jubilante: - Senhor,
agradeço-vos por terdes realizado o desejo de meu coração. Aqui está a
maravilha que ultrapassa qualquer maravilha, que o coração não pode imaginar
nem a língua relatar. Agora permiti que eu me reuna a vós!
E tombou com o corpo estendido, o baque de sua armadura ecoando por
todos os espaços vazios sob o teto elevado e curvo. Pois ele havia visto o cerne
de todas as coisas, para onde homem nenhum pode olhar e continuar vivo em
seu corpo.
Bors e Percival saltaram para ampará-lo em seus braços, e ele olhou de
um para outro, num último adeus. A Bors disse: - Quando voltares a Camelot,
saúda por mim Sir Lancelot, o senhor meu pai, e leva-lhe meu amor.
E sua cabeça caiu contra os ombros de Percival.
Repentinamente, aos dois que ficaram atrás pareceu que o vazio da
grande catedral estava pleno do arfar de asas e da glória de música inaudível; e
o próprio céu se abriu, de lá descendo uma mão que tomou o Graal da frente do
altar e retornou às alturas.
O céu se fechou diante de suas faces, deixando atrás de si apenas o vazio
da grande catedral. Mesmo o homem em trajes de bispo se foi; eles estavam
sós, e Galahad morto.
E foram assolados por um desespero que jamais haviam conhecido.
O povo de Sarras também estava enlutado por Galahad. Fizeram-lhe o
túmulo no local em que ele morrera, junto ao lugar onde Anchoret jazia;
sepultaram-no com todas as honras de um rei.
Estando tudo terminado, Sir Percival colocou de lado suas velhas roupas
de cavaleiro e vestiu o hábito rude de um eremita, e com a ajuda de Bors
construiu uma cabana de pau-a-pique fora dos muros da cidade, a fim de passar
o resto de sua vida em prece e contemplação.
Sir Bors permaneceu junto dele em fiel a amizade; mas jamais colocou
de lado sua espada ou trocou a armadura pelo hábito de eremita, pois sabia que,
quando Percival não mais precisasse dele, as linha de sua própria vida o
levariam de volta à Bretanha e à corte do rei Artur. E sabia, para sua tristeza,
que esse tempo não estaria longe. Desde o momento de seu primeiro encontro
Percival havia seguido Galahad, e assim o faria ainda.
Percival viveu apenas um ano e três dias, após Sir Galahad e então foi
sepultado ao lado de seu amigo e sua irmã na igreja situada no coração da
Cidade Sagrada de Sarras.
Então, estando só, Sir Bors colocou sua armadura e, descendo até o
porto, seguiu a bordo de um navio para oeste. E após muitos dias no mar,
chegou às suas próprias praias e cavalgou para Camelot.
Ao chegar houve grande alegria, pois dois anos haviam passado desde a
chegada de Lancelot, o último até então dos cavaleiros do Graal que voltaram
para casa; havia muito o rei e a rainha haviam dado Sir Bors como perdido para
eles, junto com Sir Galahad e Sir Percival.
Lá ele encontrou seu irmão Lional, Sir Gawain com uma cicatriz na
cabeça, Sir Hector do Brejo e outros velhos amigos. Muitos, porém, ainda
faltavam; e quando eles se sentaram para cear aquela noite, metade dos lugares
da Távola Redonda estavam vazios; entre os faltantes, muitos haviam sido os
melhores a sentar-se ali. Dos que lá se encontravam, muitos tinham ferimentos
e cicatrizes e de alguma forma não eram os mesmos de antes.
E ele sentiu que a grande aventura do Graal fora bastante cara. Sabia
que o fim fora a vitória, mas estava cansado demais para ver como ocorrera.
Quando a refeição noturna terminou, ele procurou Sir Lancelot, seu
parente. Notara que o cavaleiro mais velho não comia carne nem tomava vinho
a ceia; lembrou-se então de haver vislumbrado, sob o decote de sua fina túnica
de seda, a rude beirada de uma camisa de crina, bem como o vermelhão da pele
arranhada sobre ela. Levou para o lado, subindo a rampa sobre o jardim do
castelo, onde seria possível falar-lhe com a certeza de não ser ouvido por
outrem. – Senhor – disse ele -, trago-vos uma mensagem. Galahad realizou o
desejo de sua alma e morreu em meus braços e de Percival, pois havia
penetrado no âmago do mistério aonde não é possível a um mortal chegar e
permanecer mortal. E com seu último alento pediu-me saudar-vos e trazer-vos
seu amor.
- Eu gostaria de ter estado com ele- lamentou Lancelot, com ar tristonho.
- Assim ele queria, assim todos nós queríamos. Falamos muitas vezes
de vós, e queríamos que estivésseis entre nós.
- Havia uma razão para não ser assim – disse Sir Lancelot. – Uma razão
– um impedimento... não cabia só a mim doar... só a mim renunciar, vês...?
Sua voz se tornara ausente e introspectiva, como se ele falasse consigo
mesmo e não com Bors. E este viu seus olhos perseguindo algo a se mover lá
em baixo; olhando na mesma direção observou, através da luz difusa do
entardecer de verão que a rainha havia entrado no jardim.
No dia seguinte, quando Bors descansava o rei mandou vir seus
escrivães, que haviam documentado de cada cavaleiro chegado a história de
suas aventuras na busca. E eles anotaram a história de Sir Bors, a única que
ultrapassava a de Sir Lancelot e narrava as últimas aventuras de Sir Galahad,
Sir Percival e dele mesmo, bem como a subida do Graal aos céus.
Então a história ficou completa, e o rei a enviou aos monges da
biblioteca da abadia de Salisbury, afim de ser conservada – para que em anos
futuros a história da busca do Graal não se perdesse para a posteridade.
O tempo florescente adivindo à Britânia com a Busca do Graal chegara
ao fim e passara, embora por algum tempo persistisse uma quietude dourada,
como o veranico que às vezes chega quando os dias estão ficando mais curtos e
o outono já esta bem começado.
Os cavaleiros voltaram a sentar-se em seus antigos lugares da Távola
Redonda – os que haviam retornado definitivamente. Mas muitos deles não
tiveram volta, e, dentre eles, alguns dos mais bravos e melhores. E uma nova
geração de jovens cavaleiros entrou para tomar seus lugares: homens que nunca
haviam conhecido os dias primitivos, os brilhantes dias de sublime aventura, de
jovens campeões reunidos à volta do jovem Grande Rei, batalhando para salvar
a Britânia e sustentar o Direito à sua frente.
Nessa onda de novos homens, estando sua mãe, Margawse, que o havia
conservado sempre a seu lado, agora já morta chegou Mordred, meio-irmão de
Gawain e Gaheris, Agravane e Gareth. Mordred, que era filha do Grande Rei.
À sua chegada, foi como se a escuridão que aguardava começasse a
concentrar-se pronta para o tempo de iniciar seu domínio...
Mordred podia ser considerado muito parecido com seu pai, porém
moldado numa forma mais leve e mais fina. Enquanto Artur era moreno e de
cabeça bem feita, como um campo de feno ao tempo da colheita, antes de seu
cabelo tornar-se riscado de cinza, Mordred tinha palidez de algo cultivado num
porão escuro, longe da luz e do ar. Pele pálida, cabelo pálido, olhos pálidos,
opacos e marmoreados com azul brilhante, como um manancial turquesa. De
tal modo que ninguém conseguia jamais ver o que acontecia por detrás deles;
uma voz leve e agradável e um tanto pálida também. Ele era um condutor de
homens ao seu modo, embora não à maneira de seu pai, mas podia lançar
costumes que os outros iriam seguir: a mania de usar vestes negras, de brincar
com uma flor ou uma pena entre os dedos; um jeito de pensar e de
secretamente falar mal da Rainha, com um encolher de ombros e uma
risadinha.
Mordred não tinha nada contra a própria Rainha, mas não estivera na
corte sete dias antes de sua mente perspicaz ter adivinhado o amor de Guenever
e Lancelot, o principal dos cavaleiros do Rei e seu mais caro amigo e como
próprio Rei tomara o cuidado de não saber e de nunca reconhecer, mesmo para
si mesmo, a existência desse amor.
Guenever era o ponto fraco nas defesas do Rei; Lancelot e Guenever,
juntos, eram um modo pelo qual o Rei podia ser alcançado e levado à ruína, e
tudo o que ele sustentava consigo. Mordred odiava o pai, o Grande Rei, e
cobiçava o seu trono, como Margawse, sua mãe e meia-irmã de Artur, o havia
ensinado a fazer por toda a infância e seus tenros anos.
Os cavaleiros mais velhos e mais fiéis, entre eles por excelência Gawain,
resistiam a esse novo costume. Mas, sem ninguém saber como aconteceu,
exceto o próprio Mordred e talvez Agravane – o promotor de desordens, que
por primeiro foi seu seguidor e sua mão direita -, não muito tempo atrás muitos
dos recém chegados estavam murmurando entre si que Sir Lancelot e a Rainha
Guenever estavam traindo o Rei com seu amor um pelo outro, ou que
Guenever estava traindo a ambos; e que, de qualquer forma, o Rei devia ser
avisado.
Diante de fatos foi levantado a desonra da Rainha, pois ela estava sendo
acusada de trair o Rei, mas no tribunal a mesma foi inocentada.
À partir da chegada de Mordred houve muitas batalhas, onde Mordred
se opôs claramente a Artur com o objetivo de fazer aliados para guerrear e
derrubar o Rei.
Mordred fugira rumo ao ocidente, e à medida que avançava, assolava as
terras dos que não queriam juntar-se a ele. Mas nos dias que se seguiram,
muitos se aliaram a ele – por medo, porque as coisas haviam ido muito longe
para esperarem o perdão de Artur agora, ou porque haviam optado pelo
governo sem lei do usurpador, ou simplesmente porque haviam amado
Lancelot, e por causa dele empunhariam a espada por qualquer comandante
que estivesse contra Artur, o que era a mais triste razão de todas. Houve ainda
muitos que tomaram suas armas e saíram a combate por seu verdadeiro rei; e
assim, quando o Grande Rei também se apressou rumo ao ocidente em
perseguição ao seu filho traidor, havia pouco a escolher entre os dois exércitos,
no tamanho e na força.
Por duas vezes as tropas travaram batalha, e por duas vezes o Grande
Rei fez recuar o usurpador. Até que por fim, bem longe, dentro do território
ocidental pantanoso, os dois exércitos toparam-se face a face para a maior
batalha de todas; aí acamparam em lados opostos de uma região plana,
desolada e aberta, entre florestas úmidas no seu primeiro verde primaveril e os
ventosos cursos d’água daquelas paragens. Em certo momento, Artur
perguntou a uma velha senhora que veio ao acampamento real para vender
ovos e queijo:
- Velha mãe, este lugar tem nome?
- Sim, - respondeu ela, - esta é a planície de Camlann.
Nessa noite, quando todas as coisas foram aprontadas para a batalha que
se deveria desencadear no dia seguinte, Artur ficou em sua barraca e não
conseguiu dormir. Além da varanda na entrada, onde seus escudeiros
dormiam, a planície aberta espichava-se como um mar escuro, com a quietude
do vento perpassando o longo capinzal e as moitas de tojo em lugar do ruído
das ondas, para onde as fogueiras do inimigo marcavam suas praias mais
adiante. Sua mente parecia cheia de memórias rodopiantes, e o som do mar
mergulhava e transmudava-se no sussurro dos juncos à volta da margem da
água tranqüila... Água calma... Água do lago envolvente... E Merlin de pé a
seu lado no dia em que recebera a espada Excalibur. A voz de Merlin em seus
ouvidos novamente, através de todos os anos transcorridos, a dizer-lhe:
- Lá longe está Camlann, o lugar da última batalha... Mas essa é uma
outra história; e para um outro dia, que ainda está muito distante.
Ficou estabelecido entre eles que Artur e Mordred se encontrariam uma
hora antes do meio-dia, a meio-caminho entre os dois acampamentos de guerra
e cada um acompanhado de apenas catorze cavaleiros e seus escudeiros, para a
assinatura do tratado.
Sir Bediere e Sir Lucan voltaram ao acampamento real e relataram a
Artur o acordo; ao ouvi-los, um grande alívio cresceu nele, pois ele pensou que
talvez, depois de tudo, Deus lhe estivesse mostrando um caminho para reverter
as trevas e salvar a Britânia. Porém, apesar disso não confiava em seu filho, e
manteve os homens de sua tropa em alerta no acampamento e de frente para o
inimigo; quando os cavalos foram trazidos e ele montou, juntamente com seus
catorze cavaleiros escolhidos, estando pronto para se dirigir ao encontro, disse
aos seus capitães.
- Se virem qualquer espada desembainhada, não aguardem ordens, mas
avancem ferozmente e matem todos os que puderem, porque há uma negra
sombra em meu coração, e eu não confio em Sir Mordred.
No outro lado da planície, Mordred deu ordens às suas próprias tropas:
- Se vire alguma espada desembainhada, saiam a toda velocidade e
matem todos os que se postarem contra vocês, porque não acredito nesse
tratado, e sei bem que meu pai procurará vingar-se de mim.
E assim cavalgaram à frente, encontrando-se no local determinado, a
meio caminho entre as duas tropas; desmontaram, entregando os cavalos aos
cuidados dos escudeiros, para discutir e assinar o tratado, que os escrivães
haviam feito em duplicata sobre finas placas de pergaminho. Então o acordo
foi firmado, sendo primeiro Artur e depois Mordred a assiná-lo, utilizando-se
da sela do Rei como prancha para escrever. Terminado isto, foi trazido vinho;
primeiro Artur e depois Mordred beberam, os dois da mesma taça. Parecia que
a paz se estabelecia entre eles, ao menos por um mês, e que a maldição e as
trevas haviam passado.
Contudo, mal haviam bebido e suas cópias do tratado haviam sido
regularmente trocadas, e eis que uma víbora, despertando o calor daquele dia
de primavera, e perturbada pelo pisotear de homens e cavalos perto do lugar de
seu sono, deslizou por entre as raízes secas de capim, enroscou-se em suave
caracol e mordeu um dos cavaleiros de Mordred através de alguma laçada solta
na malha metálica do seu calcanhar.
Quando o cavaleiro sentiu a dor aguda e afogueada, olhou para o chão e
viu a cobra, impensadamente sacou sua espada e partiu a pequena e iníqua
figura ao meio.
As duas tropas, vendo o tempestuoso relâmpago de um raio de sol na
lâmina nua, lembraram-se das ordens recebidas, e o mal estava feito. De
ambos os lados ergueu-se uma enorme gritaria e o sopro de trompas e
trombetas, e os dois exércitos explodiram rolando em direção mútua,
tenebrosos como maldição debaixo de seus estandartes coloridos e penachos
flutuantes, deslizando rápidos com pontos de luz semelhantes ao bruxuleio do
relâmpago de verão no coração de uma nuvem trovejante, nos lugares onde a
ácida luz solar amarelada batia em alguma lâmina de espada e ponta de lança; e
emitindo um crescente rugido tempestuoso de cascos, gritos de guerra e
rangidos de armas, à medida que avançavam.
Então Artur gritou numa voz terrível:
- Meu Deus! Este é o dia mais amaldiçoado!
E jogando-se sobre a sela, aplicou as esporas nos flancos do seu cavalo e
girou-o com uma pressa frenética, para juntar-se à vanguarda de sua própria
tropa de guerra. Sir Mordred agiu exatamente igual no mesmo instante; e a
batalha fechou-se à volta dos dois.
Foi a mais grave e mais selvagem batalha que jamais se travou em
qualquer terra da Cristandade.
Já quase passava do meio-dia quando a luta se travou; porém, logo as
nuvens que se formaram no alto fizeram aquela hora parecer noite; e à medida
que as massas da batalha varriam e voluteavam aqui e acolá, iluminadas pelos
clarões das lâminas e rasgadas pelos guinchos agudos dos cavalos derrubados,
pelos gritos de guerra e pelos brados de morte dos homens, as negras massas
nebulosas que se arqueavam acima dos combatentes pareciam ferver como se
no coração de uma poderosa tempestade, ecoando o estrépito de lanças ao
longo da planície de Camlann. Muitos golpes terríveis foram desferidos,
fazendo cair muitos poderosos campeões; velhos inimigos lutaram uns com os
outros no cambaleante aperto, e amigo combatia contra amigo, e irmão contra
irmão. E à medida que o tempo passava, ambas as fileiras se afinavam, e cada
vez mais os pés dos vivos eram embaraçados pelos corpos dos mortos; um a
um os estandartes e penachos, esfarrapados como o céu em rasgos, desabavam
dentro da lama; e toda a lama da pisoteada planície de Camlann destilava
vermelho.
Durante todo o dia Mordred e o Grande Rei se embrenharam no meio do
grosso da batalha, não sofrendo ferimento algum; era como se eles se
mantivessem vivos por encantamento; e sempre no meio ondulante da luta eles
se procuravam um ao outro, mas nunca conseguiam encontrar-se ao longo de
todo o negro dia.
Artur divisou dois homens de pé, logo atrás dele; um era o velho Sir
Lucan e o outro Sir Bedivere, ambos gravemente feridos. De todos os homens
que o haviam seguido de volta de Benwick ou que haviam aderido ao seu
estandarte na marcha a partir de Dover, e também de todos aqueles que tinham
sido seus antes de serem arrastados de sua lealdade pela traição de Mordred ou
pelo amor a Lancelot, esses dois, apoiados pelo cansaço em suas espadas ao
lado dele, eram tudo o que permanecia vivo.
A negra amargura da morte assomou em Artur, o Rei, e um forte gemido
irrompeu dentro dele:
- Que aflição, meu Deus, por ver este dia! Invade-me a aflição por todos
os meus nobres cavaleiros que jazem aqui mortos! Agora, na verdade, sei que
é chegado o fim. Porém, antes de todas as coisas caírem nas trevas – onde está
Sir Mordred, que provocou toda esta desolação?
Então, enquanto procurava à sua volta, eis que percebeu mais uma figura
ainda de pé: Sir Mordred, com a armadura rompida e amassada, postado a
pouca distância, sozinho no meio de uma confusão generalizada de homens
mortos.
Artur não usaria a espada Excalibur contra seu próprio filho; por isso,
estando Sir Lucan mais perto dele, solicitou-lhe:
- Dê-me uma lança, pois bem ali está o homem que trouxe este dia à
realidade, e a coisa ainda não terminou entre nós dois.
- Senhor, deixe-o estar! – pediu Sir Lucan. – Ele é amaldiçoado! E se
você deixar este dia de malfazejo destino ir-se embora, será muito mais
intensamente vingado dele em outra ocasião. Meu senhor e soberano, peço-lhe
que se lembre do seu sonho da última noite e do que o espírito de Gawain lhe
contou. Embora pela graça e pela mercê de Deus ainda esteja vivo neste fim de
dia, desista da luta agora; porque há três de nós aqui, enquanto Sir Mordred
está só, e por isso ganhamos o campo; e uma vez que o dia da maldição tenha
passado, terá passado mesmo e novos dias virão.
Artur, porém, respondeu:
- Dê-me a vida ou dê-me a morte, a coisa não estará acabada até que eu
tenha matado meu filho, que trouxe a destruição sobre Logres e sobre toda a
Britânia, e por quem tantos bons homens jazem aqui mortos.
- Então, Deus o ajude muito -, desejou Sir Bedivere.
E Sir Lucan entregou ao Rei sua lança; ele a agarrou com ambas as
mãos e fez uma caminhada cambaleante rumo à figura solitária. A terrível
embriaguez vermelha da batalha caíra sobre ele e, enquanto avançava, gritou:
- Traidor! Agora chegou sua vez de morre!
Ao ouvi-lo, Sir Mordred ergueu a cabeça e pressentiu a morte; e com a
espada desembainhada foi ao seu encontro. Assim eles correram, tropeçando
nos mortos, e alcançaram-se no meio desse pavoroso campo avermelhado,
debaixo daquele pavoroso céu sanguinolento. O Grande Rei golpeou o filho
abaixo do escudo com uma grande estocada de lança, que penetrou direto
através do corpo. Quando Sir Mordred sentiu a ferida mortal dentro de si, deu
um grande urro, selvagem e desesperado, e precipitou-se à frente sobre a haste
da lança, como um javali projetado por sua própria pressa em cima do dardo do
caçador, até que foi parado pela guarda da mão; e, com tudo que restava de sua
força, girou sua espada no alto com as mãos, vibrando no Grande Rei, seu pai,
uma tal pancada no lado do elmo encimado pelo dragão que a lâmina talhou
através deste e da coifa de malha e bem fundo dentro do crânio. Ao terminar o
golpe, Sir Mordred desabou rigidamente morto sobre a lança, carregando-a
consigo ao solo. No mesmo instante o Rei Artur caiu também, não morto, mas
num negro desmaio, sobre o manchado e pisoteado solo.
Quando Artur, ao voltar a si, viu o corpo de Sir Lucan estendido ali, o
pesar o invadiu e ele exclamou:
- Meu Deus, esta é uma visão terrível! Ele queria ajudar-me, e ele
mesmo precisava mais de ajuda!
Artur divisou, não muito longe, as sussurrantes praias de um lago,
margeadas de junco. Brancos nevoeiros cobriam a água, que tremeluzia ao
alvo facho da lua; e as praias distantes estavam perdidas na bruma e no luar, de
modo que ali poderia não ter havido praia distante alguma. Artur conhecia
aquele lago. E o conhecia até o âmago do coração.
Reunindo tudo que restara de suas forças, disse a Sir Bedivere:
- A esse lago... A uma outra parte desse lago Merlin me levou, muito
tempo atrás... – E parecia-lhe estar forçando muito as palavras a sair, de modo
que deviam explodir como um berro; porém, vinham apenas como um sussurro
rasgado, que Sir Bedivere tinha de inclinar-se bem perto para ouvir:
- Agora cesse o seu lamento; haverá tempo para lamentar-se mais
tarde... porém para mim meu tempo com você diminui, e ainda há mais uma
coisa que você deve fazer por mim.
- Qualquer coisa, - prometeu Sir Bedivere, - qualquer coisa, meu
soberano...
- Tome Excalibur, minha boa espada, e leve-a até aquela praia do lago e
atire-a longe, dentro da água. Depois volte e conte-me o que viu.
- Meu senhor, - ajuntou Bedivere, - farei como me ordena e levarei sua
espada.
Retirou a grande espada de onde jazia, ao lado do rei, e cambaleando
com fraqueza por causa de suas próprias feridas, desceu em direção à borda da
água.
Nesse lugar cresciam amieiros aqui e ali, ao longo do barranco; ele
passou através deles, curvando-se sob os galhos baixos, e fez uma pausa para
contemplar a grande espada sem suas mãos; e o branco facho da lua
evidenciava-lhe as gemas no punho, enquanto brincava como água corrente
entre as manchas coaguladas sobre a lâmina magicamente forjada. Ele pensou:
“Esta não é apenas uma arma de Grande rei; esta é a espada de Artur, e uma
vez atirada dentro do lago será perdida para sempre, e uma coisa má poderia
acontecer”.
E quanto mais a contemplava, mais se enfraquecia em seu propósito.
Por fim, retirou-se de junto da água e escondeu a Excalibur entre as raízes dos
amieiros.
Em seguida retornou a Artur, que o inquiriu:
- Fez como lhe ordenei?
- Senhor, está feito -, afirmou Bedivere.
- E o que você viu?
- Senhor, o que poderia eu ver sob a lua, a não ser as ondulações
brilhantes espelhando-se sobre as águas do lago?
- Isso não está sendo dito com sinceridade -, observou o Rei. – Por isso,
volte ao lago, e tal como você me é caro, cumpra a minha ordem.
Assim, Sir Bedivere retornou à margem do lago, e retirou a espada do
seu esconderijo, tencionando plenamente, desta vez, fazer como o Rei
ordenara. Mas de novo o facho da luz refletiu-se sobre o pomo cravejado e
sobre a lâmina resplandecente, e ele sentiu o poder dela nas mãos, como se
fosse uma coisa viva. E pensou: “Se algum dia os homens se reunirem de novo
para afastar as trevas, como nós as afastamos quando a Távola e o mundo eram
jovens, esta é a única espada verdadeira para quem quer que os conduza”. – E
devolveu a espada ao seu esconderijo, e voltou à capela onde o rei jazia
esperando por ele.
- Você fez o que lhe pedi, desta segunda vez? - perguntou-lhe o Rei.
- Joguei a Excalibur longe, dentro do lago -, respondeu Sir Bedivere.
- E o que você viu?
- Apenas os juncos agitando-se ao vento da noite.
Num sussurro severo e angustiado, o Rei disse-lhe:
- Pensei que Mordred fosse o único traidor entre a irmandade; mas
agora, você me traiu duas vezes. Tenho amado você; contei-o entre os mais
nobres dos meus cavaleiros da Távola Redonda, e você é capaz de romper a
lealdade a mim pela riqueza de uma espada.
Bedivere ajoelhou-se ao lado dele com a cabeça pendente, explicando-
lhe enfim:
- Não pela riqueza, meu soberano. Estou envergonhado; mas não foi
pela riqueza, não pelas gemas no punho, nem pela têmpera da lâmina.
- Eu sei disso -, confessou o Rei, mais gentilmente. Agora, então vá de
novo rapidamente; e desta vez não me engane, se ainda valoriza o meu afeto.
Sir Bedivere firmou-se em seus pés, e desceu pela terceira vez até a
beira do lago, retirando a grande espada de seu esconderijo; e uma terceira vez
sentiu o poder dela em sua mão e viu o branco facho da lua sobre a lâmina;
mas, sem pausa alguma, girou-a por sobre a cabeça e arremessou-a com a
última força do braço, do peito e do ombro, bem longe, dentro do lago.
Esperou pelo ruído da queda na água, mas não houve nenhum, pois para
fora da nebulosa superfície do lago levantou-se uma mão e um braço vestido de
samito branco, que veio ao encontro dela, apanhando-a pelo pomo. Por três
vezes o braço brandiu a Excalibur em círculos lentos e largos de despedida, e
depois se desvaneceu para dentro da água, levando consigo a grande espada e
ocultando-a aos olhos do mundo. E nenhum anel alargado de ondulação
denunciou para onde fora.
Sir Bedivere, cego pelas lágrimas, retornou tropeçando à capela e ao
senhor que o aguardava.
- Fiz como me mandou -, disse o cavaleiro a Artur.
- E o que você viu? – indagou o Rei.
- Vi uma mão saindo do lago e um braço vestido de samito; e a mão apanhou a
Excalibur, brandiu-a três vezes, como que em despedida – e então recolheu-se,
carregando a espada consigo água abaixo.
- Isso foi dito com sinceridade e muito bem executado -, observou o Rei;
e ergueu-se no cotovelo. – Agora devo ir-me daqui. Ajude-me a descer à
margem da água.
Sir Bedivere o ajudou a firma-se nos pés e suportou seu peso sobre seu
próprio ombro, acompanhando-o meio-apoiado, meio-carregado, à margem do
lago.
E lá, onde antes parecia haver apenas a água polida e os juncos
sussurrando ao luar, uma barca estreita, toda drapeada de negro, parecia esperá-
los, no meio das sombras dos amieiros. Nela se achavam três damas, vestidas
de negro e com os cabelos cobertos de negros véus, sob as coroas reais que
usavam. Seus rostos desolados e sua mãos estendidas mostravam-se pálidos
enquanto elas, sentadas, levantavam o olhar para os dois ali na margem, e
choravam. Umas delas era a Rainha de Northgalis e a outra era Nimue, a
Senhora de todas as Senhoras do Lago; e a terceira era a Rainha Morgana La
Fay, libertada por fim de sua própria maldade, agora que a escura trama do
destino estava sendo tecida em direção ao seu fim.
- Agora deite-me na barca, que está esperando por mim há longo tempo
-, disse Artur; Sir Bedivere o ajudou a descer o barranco e gentilmente o
abaixou até às mãos das três rainhas vestidas de negro, que emitiram lamentos
suaves ao recebê-los e deitá-lo no chão. A Senhora do Lago tomou-lhe a
cabeça contundida em seu regaço; e ajoelhando-se ao lado dele, a Rainha
Morgana La Fay murmurou:
- Ai de mim, querido irmão, você demorou muito, longe de nós, e seu
ferimento está ficando gelado.
A barca desgarrou-se das sombras sob os amieiros, deixando Sir
Bedivere postado sozinho na margem.
Ele chorou como uma criança deixada no escuro, e lamentou-se:
- Oh, meu Senhor Artur, o que será de mim, agora que você se vai daqui
e me deixa sozinho?
O Rei abriu os olhos e o fitou pela última vez, dizendo:
- Console-se e faça o melhor que puder, porque preciso ir para o Vale de
Avalon, a fim de curar meus graves ferimentos. Um dia voltarei, no tempo de
maior necessidade da Britânia, mas ainda não sei quando será esse dia –
somente que está bem longe ... Mas se não ouvir mais nada de mim no mundo
dos homens, reze por minha alma.
E a barca prosseguiu em frente, adentrando a branca névoa entre a água
e a lua. Aí o nevoeiro acolheu de vez a embarcação, que desapareceu. Só por
um pouco, Sir Bedivere, concentrando a vista nela, pareceu ouvir um fraco e
desolado lamento, como de mulheres chorando pela morte de alguém.
Então o lamento também se foi, e só os juncos murmuravam na desolada
praia do lago.
- A morte do Rei não é certa -, prosseguiu Lancelot, não buscando
mudar a resolução dela, mas apenas querendo confortá-la.
Ela, porém, balançou a cabeça e explicou:
- Ele não voltará durante a minha vida, nem durante a sua... – E
continuou: - Neste mundo, eu e você não nos devemos mais encontrar. Por
isso, deixo-o livre, como nunca fui forte o suficiente para fazer antes. Retorne
à sua própria terra, tome uma esposa e viva com ela em alegria. Mas lembre-se
para sempre, amor, de orar por mim a fim de que Deus nos perdoe os pecados e
me conceda a salvação de minha alma.
- Não, doce senhora, - retrucou Sir Lancelot, - tenho-a amado desde o
dia em que fui feito cavaleiro, e já estou muito velho para mudar meus
caminhos. Você sabe muito bem que por sua causa não me casarei com lady
alguma, mesmo que você me dê minha liberdade uma centena de vezes. Nunca
serei infiel a você, mas conservarei sua doce companhia de outra forma: porque
os votos que você tomou eu também tomarei, e trocarei minhas armaduras de
cavaleiro pela veste de um eremita, e passarei o resto dos meus dias em oração
e jejuns. – E sorrindo com grande amabilidade, no seu velho sorriso enviesado,
continuou: - Mas minhas primeiras preces sempre serão por você, a fim de que
encontre a paz e a salvação de sua alma.
- Reze pela sua própria, - disse Guenever, - reze pela sua própria alma.
- Assim o farei. Entretanto, você bem sabe que nunca fui presenteado
com o dom da oração, embora não tenha sido por falta de tentativa. Por isso, se
minha prece for suficiente a pelo menos um de nós, farei o melhor possível,
pensando que sua alma talvez seja a mais luminosa para minhas preces. Creio
que Deus não reclamará de mim por isso.
Então ele estendeu a mão para tocá-la. Ela porém afastou-se, dizendo:
- Não, nunca mais.
Assim, Sir Lancelot cavalgou rumo a oeste, dirigindo-se para as terras
pantanosas próximas a Avalon, e sempre buscando notícias mais recentes do
Rei Artur.
- Mas este lugar é Avalon -, afirmou, meio em dúvida. – Você,
Bedivere, confirmou que o Rei disse estar indo para Avalon, a fim de ser
curado de seu ferimento.
- E também que se eu não ouvisse mais falar dele nesta vida, que rezasse
por sua alma -, disse Bedivere em seu pardo hábito de eremita.
Lancelot meneou a cabeça. Estava exausto e chocado demais para
pensar, pois esperava encontrar Artur ali, ou então que lhe fosse mostrado seu
túmulo.
- Mas isto é Avalon -, repetiu ele.
O velho Arcebispo percebeu sua confusão e respondeu-lhe
bondosamente, jamais vindo a saber que falara quase nas palavras.
- Avalon das Macieiras não é igual aos outros lugares. É o limiar entre o
mundo dos homens e a Terra do Viver. Aqui estamos na Avalon dos homens
mortais. Porém existe uma outra Avalon. O rei está aqui, mas se foi por entre
o nevoeiro.
Merlin teria entendido o que ele queria dizer; porém Merlin adormecera
havia trinta anos ou mais debaixo de seu mágico espinheiro branco, e Sir
Lancelot estava muito alquebrado para entender isso.
Entretanto, ele compreendeu que chegara ao fim de suas jornadas.
Afinal, perguntou a ambos:
- Podem vocês receber-me em sua companhia, e dar abrigo e pastagem
ao meu cavalo que me tem servido tão bem?
- Podemos, sim, e prazerosamente -, concordou Sir Bedivere.
E o velho Arcebispo acrescentou:
- Seja bem-vindo, meu filho.
Assim, Sir Lancelot retirou seus arneses de cavaleiro, ele que havia sido
o melhor de todos os cavaleiros da Cristandade, e tomou sobre si o hábito
marrom que os outros usavam.
Sir Bedivere e muitos outros da irmandade permaneceram na pequena
igreja e seu eremitério pelo resto de seus dias, congregando-se outros mais com
eles, de tal modo que, por fim, o lugar tornou-se uma abadia novamente; e mais
tarde ainda, majestosos e belos edifícios de pedra foram construídos onde
estiveram a igrejinha de pau-a-pique e as cabanas ao seu redor. E as pessoas
começaram a denominar esse lugar Glastonbury.
Porém Sir Bors e Sir Ector, Sir Bleoberis e Sir Blamore viajaram para
bem longe, à Terra Santa, e lá faleceram numa Sexta-Feira da Paixão, pela
causa de Deus.
E salvo um valente lampejo aqui e ali, as trevas inundaram a Britânia.
Porém Sir Lancelot uma vez dissera ao seu amigo Rei enquanto
passeavam ao pôr-do-sol, no estreito pomar abaixo dos muros de Camelot:
- Nós devemos erguer uma tal labareda que os homens se lembrem de
nós do outro lado da escuridão.
E de fato ele dizia a verdade, porque as histórias de Artur e de seus
cavaleiros são contadas e recontadas até o dia de hoje.