o que é liberalismo

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  • DONALD STEWART JR.

    O QUE O LIBERALISMO

    59 EDIO REVISTA E AUMENTADA

    IL INSTITUTO LIBERAL

    RIO DE JANEIRO /1995

  • Copyright Donald Stewart Jr., 1988.

    Direitos reservados para publicao: INSTITUTO LIBERAL Rua Professor Alfredo Gomes, 28 CEP 22251-080- Botafogo- Rio de Janeiro- RJ- Brasil

    Printed in Brazilt1mpresso no Brasil

    ISBN 85-85054-43-3

    Reviso tipogrfica REGINA ISABEL VASCONCELLOS SILVA

    Editorao eletrnica SANDRA GUASTI DE A. CASTRO

    Projeto grfico EDUARDO MUNIZ DE CARVALHO

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Ludwig von Mises do Instituto Liberal - RJ Responsvel: OTVIO ALEXANDRE JEREMIAS DE OLIVEIRA

    Stewart Jr., Donald, 1931 -S849e 5.ed.

    O que o liberalismo I Donald Stewart Jr. - 5. ed. rev. aum.- Rio de Janeiro : Instituto Liberal, 1995. 118 p.

    ISBN 85-85054-43-3

    1. Liberalismo. 2. Economia de mercado. 3. Interveno do estado. 4. Escola austraca. 5. Ao social. 6. Poltica fiscal. 7. Brasil. I. Instituto Liberal, Rio de Janeiro. 11. Ttulo.

    CDD. 320.510981

    AGRADECIMENTOS

    Que o meu primeiro agradecimento seja a Caio Graco Prado, por me ter solicitado um texto que explicasse o que o liberalismo. No fosse essa "provocao", talvez este livro no tivesse sido escrito.

    Aos amigos Og Francisco Leme, Jorge Gerdau Johannpeter, Jorge Simeira Jacob, Maria Helena e Otvio Salles, Roberto Deme-terco, Srgio Andrade de Carvalho e Alexandre Guasti, os meus agradecimentos por terem com seus comentrios e observaes me ajudado a rever e a complementar alguns conceitos que precisavam ser melhor enunciados.

    A Jos Guilherme Merquior, um especial agradecimento pela gentileza de ter encontrado uma parcela de tempo para ler o original e por t-lo saudado de forma to generosa.

    A Vera Castello Branco, que teve de enfrentar, por um lado, um microcomputador nacional (sempre a reserva de mercado!) que freqentemente enguiava, perdendo a memria de inmeras laudas j digitadas, e, por outro lado, o autor debutante- cuja inexperincia obrigava a que o texto fosse revisto e corrigido um nmero de vezes muito acima do tolervel -, o meu agradecimento por t-lo feito com

  • invarivel bom humor e delicadeza. A Adayl, minha querida mulher, cujo exame atento e severo foi

    to importante durante a elaborao deste trabalho, agradecer seria um pleonasmo; a ela dedico carinhosamente este livro.

    INTRODUO

    Captulo 1: O "RENASCIMENTO" DO PENSAMENTO LIBERAL

    O apogeu do liberalismo O declnio do liberalismo O abandono do liberalismo A social-democracia A lgica do intervencionismo A explicitao da idia liberal O ''renascimento" do pensamento liberal A divulgao das idias liberais O neoliberalismo

    Captulo 2: AOHUMANAEECONOM~

    Ao humana A sociedade humana A cooperao social

    SUMRIO

    11

    19

    19 22 23 26 26 28 31 33 34

    37

    37 40 41

  • As regras de justa conduta O mercado O lucro A funo empresarial A competio A igualdade de oportunidade A acumulao de capital Gesto empresarial e gesto burocrtica O "grau de servido" A importncia da economia A importncia das instituies

    Captulo 3: O QUE O LIBERALISMO

    Os pilares do liberalismo Liberdade econmica Liberdade poltica Princpios gerais O papel do Estado A diviso de poderes A garantia do mnimo Os impostos As tarifas aduaneiras Autoridade monetria Declarao de princpios

    Captulo 4: A SITUAO BRASILEIRA

    Apndice:

    43 45 47 50 52 56 60 62 63 65 67

    71

    72 73 75 76 77 79 81 82 83 85 88

    93

    ALGUNS CASOS CONCRETOS DA REALIDADE BRASILEIRA 103

    A previdncia social compulsria 103 O monoplio estatal do petrleo 105 A dvida externa 107 As concorrncias pblicas 1 09 Os investimentos e as tarifas 11 O

    BIBLIOGRAFIA 113

    LIBERALISMO a suprema forma de generosidade; o direito que a maioria concede minoria e portanto o grito mais nobre que j ecoou neste planeta. o anncio da determinao de compartilhar a existncia com o inimigo; mais do que isso, com um inimigo que fraco. incrvel como a espcie humana foi capaz de uma atitude to nobre. to paradoxal, to refinada e to antinatural. No ser portanto de estranhar que essa mesma humanidade queira logo se livrar desse compromisso. uma disciplina por demais difcil e complexa para firmar-se definitivamente na Terra.

    ORTEGA Y GASSET em A revolta das massas

  • INTRODUO

    O extraordinrio progresso da humanidade a partir do final do sculo XVIII um fato incontestvel. Telefone, televiso, eletricidade, comodidades que h duzentos anos nem os reis podiam imaginar, hoje, esto disposio da maioria dos indivduos que no conse-guem sequer conceber como seria possvel viver sem essas comodi-dades. Foi uma transformao muito grande, sem paralelo na histria da humanidade. No obstante desejarem usufruir desse progresso cientfico e tecnolgico, no obstante no estarem dispostos a renun-ciar aos seus benefcios, no obstante lutarem por alcanar um poder aquisitivo cada vez maior para melhor usufruir desses confortos, esses mesmos indivduos, inadvertidamente, liderados por suas res-pectivas elites intelectuais adotam uma postura ideolgica de conde-nao s causas, s teorias, aos princpios que tornaram possvel esse enorme aumento da riqueza. Esse verdadeiro divrcio entre causa e efeito tem impedido a humanidade de alcanar um nvel ainda maior de desenvolvimento e de prosperidade.

    Efetivamente, est se tornando cada vez mais difcil conciliar o desejado aumento de riqueza com a obstruo economia de mercado; compatibilizar investimentos com a obstruo circulao

    11

    -

  • de capitais; harmonizar o progresso tecnolgico com o desapreo propriedade privada dos meios de produo; elevar o padro de vida dos trabalhadores, impedindo a competio empresarial. Em suma, torna-se uma tarefa sobre-humana tentar atingir objetivos e ao mes-mo tempo condenar, renegar, desprezar os meios que nos levariam a atingi-los.

    Apreciar os efeitos e condenar as causas um comportamento dilacerante, esquizofrnico. Da a perplexidade, o atordoamento, a revolta desordenada, a busca de falsos culpados para as nossas mazelas; da tambm a crescente necessidade de esclarecer esse paradoxo, de apontar as premissas erradas que deram origem a essa contradio, de revelar os equvocos que a sustentam.

    Jacques Monod, prmio Nobel de biologia, em seu notvel ensaio O acaso e a necessidade, situa o fulcro dessa questo num conflito epistemolgico: enquanto a cincia conseguiu alcanar um extraordinrio progresso por ter se libertado de sua tradio animista, o mesmo no ocorreu com os sistemas de organizao da sociedade, que continuam a encarar os problemas sociais sob um enfoque essencialmente religioso, seja ele de origem crist ou marxista. Enquanto a cincia adota o conhecimento objetivo como nica fonte de verdade autntica, "os sistemas enraizados no animismo esto fora do conhecimento objetivo, fora da verdade, so estrangeiros e definitivamente hostis cincia, que querem utilizar, mas no respei-tar e servir". [46, p.188]'

    O conhecimento objetivo que permite identificar os meios que devemos adotar para melhorar as condies de vida do gnero humano- desiderato comum a todas as ideologias nos propor-cionado, sobretudo, pela cincia econmica. Pela correta compreen-so da cincia econmica, mister que se acrescente, j que um grande nmero de economistas parece acreditar que a preocupao de natureza social ou a imposio de natureza poltica so motivo suficiente para adotar medidas que contrariam os fundamentos da

    * Os nmeros entre colchetes, em todo este trabalho, referem-se bibliografia da pgina 113. O primeiro nmero indica o livro e o segundo, a pgina.

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    economia e que, embora possam ser agradveis para algumas pessoas ou durante o curto prazo, produzem conseqncias bastante desagradveis para a maioria das pessoas, a longo prazo.

    O liberalismo uma doutrina poltica que, utilizando ensina-mentos da cincia econmica, procura enunciar quais os meios a serem adotados para que a humanidade, de uma maneira geral, possa elevar o seu padro de vida. At o princpio deste sculo, s se podia formar uma idia sobre o iderio liberal a partir do estudo das obras dos grandes mestres do liberalismo clssico e dos diversos autores que os seguiram. A primeira tentativa - e, tanto quanto estamos informados, a nica- de enunciar a doutrina liberal foi feita por Ludwig von Mises em 1927. Na introduo de seu livro Liberalismo, afirma ele:

    "O liberalismo no uma doutrina completa e nem um dogma imutvel. Pelo contrrio, a aplicao dos ensinamentos da cincia vida social do homem. Assim como a economia, a sociologia e a filosofia no permaneceram imutveis desde os dias de David Hume, Adam Smith, David Ricardo, Jeremy Bentham e Wilhelm Humboldt, assim tambm a doutrina do liberalismo diferente hoje do que foi sua poca, muito embora seus princpios fundamentais tenham per-manecido inalterveis. Durante muito tempo, ningum tomou a si a tarefa de apresentar uma exposio concisa do significado essencial dessa doutrina. Isso pode justificar nosso presente esforo em forne-cer justamente este trabalho". [40, p.5]

    Uma doutrina poltica que lida com as conseqncias futuras da ao do homem, no sendo dogmtica, no sendo uma doutrina com-pleta e acabada, e sofrendo os naturais ajustes decorrentes da evoluo cientfica, est sujeita a ser enunciada de vrias formas; natural, portanto, que uma investigao histrica sobre o liberalismo aponte uma diversidade de escolas e interpretaes. Isto tem causado a impresso de que o liberalismo uma idia desarticulada e-o que grave- permite que a inegvel popularidade do conceito de liberdade, e de seus derivados liberal, libertao, seja usada como um biombo para esconder idias retrgradas e j superadas, como o mercantilismo e o Estado provedor, que j no deviam ter adeptos desde que foram completa e inequivocamente desmistificados pelas idias liberais.

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  • Mas, as diversas formas com que tm sido enunciadas as idias liberais so apenas variaes de um pequeno conjunto de princpios que esto presentes em todos os autores verdadeiramente liberais. Recentemente, em 1986, John Gray assim se manifestou sobre essa "unidade" do liberalismo:

    "H uma concepo especfica, de carter nitidamente moder-no, que comum a todas as variantes da tradio liberal. Quais so os elementos que compem essa concepo? Ela ndvdualsta, porque sustenta a proeminncia moral do indivduo em relao aos desejos de qualquer coletividade social; igualitria, na medida em que confere a todos os homens o mesmo status moral, no admitindo que existam diferenas de natureza poltica ou legal entre os seres humanos; universalista, por afirmar a homogeneidade moral do g-nero humano e atribuir uma importncia secundria a certos aspectos histricos e culturais; e meliorista, por considerar a possibilidade de correo e aperfeioamento das instituies sociais e polticas. essa concepo do homem e da sociedade que d ao liberalismo uma identidade que transcende a sua enorme diversidade e complexida-de". (14, p. IX]

    Se as vantagens de natureza prtica e os fundamentos de natureza terica justificam que se proponha a adoo da doutrina liberal na organizao da sociedade, esta proposta se torna irrecus-vel, se considerarmos a sua enorme preocupao de natureza tica. A tica sempre ocupou um lugar central no liberalismo, desde os seus primrdios.

    Adam Smith era professor de Filosofia Moral e de tica, na universidade de Glasgow. Se o seu famoso livro Riqueza das naes no lhe tivesse granjeado justa e merecida fama, de igual prestgio e' reverncia seria merecedor por ter escrito, quase vinte anos antes, o belo livro The Theory of Moral Sentiments. Enquanto naquele Smith "lida com as motivaes mais fortes do gnero humano, neste trata de suas motivaes mais elevadas" (60, p.1 ]. Sua viso "econmica" fortemente condicionada por suas preocupaes de natureza tica e moral.

    A superioridade de natureza tica se evidencia pelo fato de que, numa sociedade liberal sujeita a uma economia de mercado, s

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    pode ser bem-sucedido aquele que servir ao prximo, ao consumidor. O caminho do sucesso depende necessariamente de se produzir algo que, a juzo do consumidor, seja considerado melhor e mais barato. Na economia de mercado, no so os empresrios, nem os agricul-to~es, nem os capitalistas que determinam o que deve ser produzido. Sao os consumidores. Mises ilustra bem a soberania do consumidor ao mostrar que na economia de mercado cabe "aos empresrios a

    dire~o de todos os assuntos econmicos. Esto no leme e pilotam o nav1o. Um observador superficial pensaria que eles so os sobera-nos. Mas no so. So obrigados a obedecer incondicionalmente s ordens do capito. O capito o consumidor". O empresrio-piloto obrigado a conduzir o navio ao destino que o consumidor-capito lhe determinou. Se no obedecer s ordens do capito, se no obedecer "s ordens do pblico tal como lhe so transmitidas pela estrutura de preos, sofre perdas, vai falncia e , assim, removido de sua posio eminente no leme do navio. Um outro que melhor satisfizer os desejos dos consumidores o substituir". (41, p.40]

    No se deve confundir liberalismo com conservadorismo. Na reafida.d~, liberais e conservadores s tm em comum a sua oposio ao soc1ahsmo. Como prevalece de uma maneira geral a iluso de que o espectro poltico seja linear, os liberais ora so colocados direita dos conservadores, ora mais ao centro. Nada mais equivocado. Na realidade, se quisermos usar uma figura geomtrica para ilustrar 0 espectro poltico, melhor seria usar o tringulo, onde teramos, nos seus vrtices, socialistas, conservadores e liberais. O excelente posfcio de Friedrich A. Hayek em seu livro Os fundamentos da liberdade- "Por que no sou um conservador" - uma convincente explicao de mais esse equvoco. (22, p.466]

    A crescente evidncia do fracasso do socialismo como forma de organizao social e a conseqente diminuio de sua ameaa comeam a tornar as coisa mais claras; comeam a tornar possvel separar o joio do trigo. Enquanto conservadores e socialistas se unem para apoiar a interveno do Estado em favor do protecionismo, da reserva d~. ';l~rcado, do subsdio, os liberais pregam a abolio desses pnv1leg1os; enquanto inmeros empresrios solicitam que 0 EsJ ado "proteja" a empresa privada, os liberais defendem o livre

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  • mercado e a soberania do consumidor. No Brasil, a ideologia dominante, o intervencionismo, que tem

    impedido o nosso pas de ser uma nao livre e desenvolvida, sustentada - ainda que por razes e com intensidades diferentes -pelos socialistas que idolatram o Estado; pelos empresrios podero-sos que no querem correr o risco do mercado; pelos conservadores que se opem a mudanas; pelos militares que combatem o comu-nismo, mas estatizam a economia; pelos sociais-democratas que so liberais em poltica e socialistas em economia; pelos polticos popu-listas que usam o Estado para dar conseqncia a sua demagogia; pelos intelectuais que vem no Estado a nica chance de se projeta-rem; pelos burocratas das estatais, que no querem perder suas vantagens e suas mordomias; pelos religiosos e por todos aqueles, enfim, que , sensveis s necessidades dos mais carentes, defendem de alguma forma o Estado Provedor, sem perceber que esse no o meio adequado para minorar o infortnio dos mais pobres.

    O liberalismo se insurge contra essa ideologia dominante, contra os que a sustentam. Liberalismo liberdade poltica e liberdade econmica; ausncia de privilgios; igualdade perante a lei; responsabilidade individual; cooperao entre estranhos; compe-tio empresarial; mudana permanente; a revoluo pacfica que poder transformar o Brasil no pas rico e prspero que inegavelmen-te pode vir a ser.

    O propsito deste pequeno livro o de tentar esclarecer e informar, de maneira simples e condensada, o que o liberalismo, segundo a corrente de pensamento habitualmente denominada de Escola Austraca, que, a nosso ver, a que explicita a doutrina liberal de forma mais completa e mais consistente. Para melhor compreen-so do que seja o liberalismo, pareceu-nos necessrio descrever, ainda que sumariamente (Cap. 1 ), a trajetria do pensamento liberal desde o seu surgimento no sculo XVIII, seu apogeu no sculo XIX, seu quase total esquecimento e abandono na primeira metade do nosso sculo e, finalmente, o seu "renascimento" nesse final de sculo. Pareceu-nos ainda necessrio analisar, tambm de forma sumria (Cap. 2), os principais aspectos de sua base conceituai. Aps enunciar os principais postulados da doutrina liberal (Cap. 3), para

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    que se percebam as conseqncias de natureza prtica em virtude dos equvocos que vm sendo cometidos, acrescentamos uma an-lise da situao brasileira (Cap. 4), para finalmente ilustr-la com o exame de alguns casos concretos mais relevantes (Apndice). Pro-curamos, desta forma, antecipar as respostas s perguntas que mais freqentemente nos so feitas por jovens, por pessoas engajadas nas ideologias socialistas e intervencionistas, e mesmo por aqueles que so liberais porque a vida, o bom senso, assim os ensinou, embora no tenham chegado a se interessar por conhecer as suas bases tericas.

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  • O apogeu do liberalismo

    O "RENASCIMENTO" DO PENSAMENTO LIBERAL

    O liberalismo surgiu, gradativamente, como uma forma de oposio s monarquias absolutas e ao seu correspondente regime econmico, o mercantilismo.

    O regime mercantilista pressupe a existncia de um Estado, seja ele representado por uma monarquia ou por um governo repu-blicano, com poderes para intervir na economia a fim de promover o desenvolvimento e redistribuir a renda. Com esse objetivo, favores e privilgios so concedidos s elites e aos grupos de presso (os "mercadores", no sculo XVIII), na presuno de que assim se estaria protegendo o cidado de algo desagradvel, ou proporcionando-lhe algo desejvel. Devemos ter em mente que at o sculo XVIII a produo. quer fosse de velas ou de tecidos, de l ou de seda, enfim, a produo mercantil organizada dependia de uma concesso do monarca, dos "favores do rei", que desta forma determinava quem iria produzir o qu e qual a regio a ser abastecida por aquele produtor.

    No raro o monarca reservava para si o privilgio de participar em algumas dessas atividades, seja porque fossem extremamente

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  • lucrativas, seja porque produziriam bens de grande luxo s acessveis alta nobreza.

    ilustrativo relembrar que quando Lus XIV, preocupado com a m performance econmica de seu reinado, perguntou ao seu ministro da Fazenda que medidas deveriam adotar para conter a crescente insatisfao popular, ouviu como resposta: Lasser faire, laissez passerl Essa expresso, que em nossos dias tem sido to injusta e inadequadamente vituperada, no foi proferida com a cono-tao anrquica e desumana que lhe atribuem; significa apenas: no impea os outros de produzir, no impea a circulao de mercalo-rias. Em suma: no conceda privilgios.

    Pode-se dizer com inteira propriedade que naquela poca o mercado interno era um patrimnio nacional ou seja, um patrocnio do rei, que dele dispunha ao seu alvitre, concedendo privilgios aos seus "amigos". No por mera coincidncia que essa expresso foi colocada na nossa Constituio de 1 ~88: porque aqui e agora, como l e ento, vigorava o mesmo regime econmico, o mercantilismo.

    O mercantilismo se baseia no conceito de que, quando algum ganha, algum perde. Est implcita nessa noo a idia de que a riqueza uma grandeza definida, de que a maior riqueza de uma nao s poderia existir como fruto da pobreza de outras naes. A quintessncia dessa doutrina a crena de que existe um conflito irreconcilivel entre os interesses das vrias classes de um pas e, mais ainda, entre os interesses de qualquer pas e os de todos os outros pases.

    A economia era portanto considerada como um jogo de soma zero. A evoluo do conhecimento econmico viria a demonstrar sociedade que a economia de mercado um jogo de soma positiva. Numa troca livremente pactuada, ambas as partes saem ganhando porque ambas preferem o stato quo post ao stato quo ante, ou ento no teriam efetuado a troca.

    Na poca das monarquias absolutas, a cincia econmica ainda no existia como uma disciplina autnoma, separada dos demais ramos do conhecimento humano; a idia liberal que surgia-e se insurgia contra o poder absoluto dos monarcas- era de natureza essencialmente poltica; as vantagens da liberdade econmica foram

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    usufrudas antes de serem explicadas. Na esteira da liberdade poltica, na Inglaterra, comearam a

    surgir movimentos em favor de medidas especficas de natureza econmica, como por exemplo a abolio das Com Laws (leis que garantiam a reserva de mercado de cereais aos produtores ingleses). Entretanto, no chegou a haver uma explicitao do que seria uma doutrina liberal de economia, nem tampouco se compreendia, naque-

    1~ tempo, como funcionava o mercado. O prprio Adam Smith, con-Siderado o fundador da cincia econmica, no chegou a explicar o funcionamento do mercado. Limitou-se a relatar, com uma acuidade extraordinria, como as coisas se passavam; descreveu o que existia e que j era familiar aos seus contemporneos. De uma maneira geral, suas observaes so simples e incontestveis; so registras da realidade e continuam to verdadeiras hoje como ontem.

    No final do sculo XVIII, a idia dominante entre as elites intelectuais era o liberalismo. Ser um intelectual era sinnimo de ser liberal. A partir de ento, o sopro da liberdade poltica e econmica mudou a humanidade. Comearam a cair as monarquias absolutas advm a separao entre a Igreja e o Estado; surge nos EUA ~ primeiro regime constitucional.

    Embora mais tarde o liberalismo viesse a ser considerado uma "explorao dos mais pobres", as grandes beneficirias de seu ad-vento foram as massas. Seu principal galardo ter possibilitado um crescimento populacional sem precedentes na histria da humanida-de, acompanhado de um aumento na expectativa de vida e no conforto material. O inegvel progresso econmico diminuiu a morta-lidade infantil, criou empregos, aumentou a produtividade, possibilitou a sobrevivncia de um grande nmero de pessoas que estavam fadadas a morrer por inanio, misria e doena. A humanidade ganhou anos de vida, com mais conforto.

    At mesmo Marx, no Manifesto comunista, reconhece que, " ... em cem anos, o predomnio do capitalismo criou foras produtivas mais macias e colossais do que todas as geraes precedentes em conjunto".

    H os que pensam, curiosamente, que esse desenvolvimento seria inevitvel, natural, e que os empresrios e os capitalistas apenas

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  • dele se "aproveitaram", ficando com a melhor parte. No pode haver equvoco maior. Em economia, freqentemente apreciamos os efei-tos e condenamos as causas; apreciamos o aumento de riquezas, mas condenamos a propriedade privada, o lucro, o livre comrcio, a liberdade de produzir, que so os fatores geradores da riqueza. E, sem perceb-lo, ao anular as causas, impedimos os efeitos. A fbula da galinha dos ovos de ouro continua vlida, mais do que nunca!

    O declnio do liberalismo

    O prprio sucesso do liberalismo, do chamado capitalismo, o fato de ter gerado uma riqueza sem precedentes, sem que a sua base terica tivesse sido enunciada, viria a minar as instituies sociais que o tornavam possvel. No se sabendo por que tanta riqueza era gerada, aquilo que cem anos antes ningum possua passou a ser considerado um "direito" de todos.

    Esse equvoco foi grandemente fortalecido pelo sucesso da teoria marxista, no s em funo do que Marx escreveu, mas, sobretudo, em funo do que seus seguidores e discpulos espalha-ram pelo mundo. Marx acreditava que o comunismo seria, inexora-velmente - por determinismo histrico -, a etapa seguinte do capita-lismo (que, segundo ele mesmo, havia criado "foras produtivas mais macias e colossais do que todas as geraes precedentes em conjunto"). Era portanto indispensvel a prvia criao de riqueza para que ela fosse socializada; no lhe passava pela cabea comu-nizar uma sociedade pobre. Se quisermos comparar o tom proftico de Marx com as observaes de Adam Smith, teremos de reconhecer o fato de que um lida com iluses, enquanto o outro lida com a realidade.

    Mas compreensvel que as idias marxistas e socialistas tenham despertado a devoo das massas. As massas, observa Eugen von Bhm-Bawerk, "no buscam a reflexo crtica; simples-mente seguem suas prprias emoes. Acreditam na teoria da explo-rao porque ela lhes convm, lhes agrada, no importando que seja falsa. Acreditariam nela mesmo que sua fundamentao fosse ainda

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    pior do que ". [5, p. 123] Esse comportamento, nas massas, compreensvel; o mes-

    mo, entretanto, no se pode dizer no caso das elites intelectuais e polticas. Na verdade, essas elites tm preferido defender medidas de cunho intervencionista que, embora momentaneamente agrad-veis, provocam necessariamente efeitos perversos. Por outro lado, rejeitam as propostas de liberalizao da economia que, embora momentaneamente desagradveis, produziriam efeitos amplamente benficos num futuro prximo. A reiterao desse tipo de escolha tem impedido que muitos pases, sobretudo os menos desenvolvidos, alcancem um maior e to desejado nvel de riqueza e de desenvolvi-mento.

    No obstante, convm lembrar que at 1914, no mundo oci-dental, no havia controle e nem imposto sobre a renda; no havia restrio aos movimentos de pessoas e de capitais; no havia Banco Central e as moedas tinham seu valor equivalente em ouro - no havia inflao; o recrutamento nacional era mnimo e raro, e jamais uma medida de sustentao de guerra. Tudo isso se modificaria.

    O abandono do liberalismo

    O fim da Primeira Guerra Mundial marca o advento da implan-tao de regimes totalitrios de conseqncias desastrosas para a humanidade. Na URSS surge o primeiro regime comunista, cuja feio verdadeiramente genocida s veio a ser revelada recentemen-te por autores como Soljenitsin, e cuja ineficincia e incapacidade de proporcionar o bem-estar para as massas comeam agora a ser reconhecidas pelo prprio Gorbachev. Na Itlia, com a implantao do regime fascista, cria-se o stato corporativo, um regime hbrido que mantm a propriedade privada apenas na aparncia, submetendo-a, entretanto, inteiramente, s determinaes e s ordens do poder central. Na Alemanha, o regime nazista (nacional-socialista), com caractersticas idnticas ao fascismo italiano, deflagra a Segunda Guerra Mundial e promove o maior genocdio da histria da humani-dade. O notvel livro Modem Times, do historiador Paul Johson,

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  • descreve esse perodo com uma riqueza de detalhes e de informa-es inexcedvel, especialmente no que diz respeito aos crimes monstruosos cometidos por Hitler e Stalin. [27, p. 285-31 O]

    As idias corporativistas tiveram grande aceitao: receberam o apoio da Encclica Papal Quadragsimo Anno, de 1931, influenciaram decisivamente a doutrina do partido nazista alemo e de inmeros outros movimentos fascistas em diversos pases. No Brasil, foi notria a sua influncia na dcada de 30, durante a ditadura de Getlio Vargas. curioso notar que hoje em dia nenhum partido se denomina de nacional-socialista (nazista), embora muitos deles defendam ardorosamente as idias nacionalistas e socialistas. Preferem usar denominaes como "democrtico", "liberal", "social", "progressista".

    Essa confuso semntica est hoje largamente disseminada. No leste europeu, os regimes de partido nico se auto-intitulam de "democrticos"; a ndia, que sempre viveu sob o mais odioso regime de castas, e os rabes, que s conheceram os regimes mais violentos e autocrticos, falam de sua "tradid' democrtica; nos EUA, "liberal" designa os que defendem o Estado provedor ( welfare state), a tal ponto que os verdadeiros liberais tiveram de se refugiar sob a denominao de "libertrios"; no Brasil, lderes polticos que defendem as idias mercantilistas do sculo XVIII se auto-intitulam de "progressistas".

    As conseqncias dessa confuso semntica so muito mais graves do que possam parecer primeira vista. A popularidade das noes de liberdade, democracia, progresso usada para defender idias e conceitos que sem dvida contrariam frontalmente o inequ-voco sentido desses termos.

    tambm no perodo entre guerras que tem incio a expanso e disseminao mundial das idias comunistas, fortemente apoiadas pela Unio Sovitica. Curiosamente, essa expanso s encontraria receptividade nos pases mais pobres e mais atrasados, e no nos pases desenvolvidos que, pelo menos luz da teoria marxista, so os que estariam em condies de ingressar na era socialista que se seguiria ao perodo capitalista.

    Para completar esse quadro de abandono da idia liberal, comeam a fazer sucesso, no mundo ocidental, as idias de Keynes que defendia- com uma aura de saber cientfico a interveno do

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    Estado na economia, a fim de corrigir os maus resultados e as desagradveis conseqncias do ciclo econmico, atribudas, por essas teorias, ao funcionamento da economia de mercado. "Enfatizo fortemente a necessidade de aumentar o poder de compra nacional atravs do aumento dos gastos do governo, financiados por emprs-timos" disse ele em 1933 [27, p.555]. Aps a Segunda Guerra Mundial, essa "nfase" viria a se tornar a estrela-guia da poltica econmica de muitos pases. Hoje, temos de suportar as conseqn-cias malficas da disseminao dessas idias: basta lembrar que em 1966, pela primeira vez, a inflao americana ultrapassava a taxa anual de 3% e a taxa de juros atingia o ento surpreendente nvel de 6% [27, p.556]. Pela primeira vez os polticos podiam alegar uma base terica - poder-se-ia dizer at mesmo cientfica - para as supostas benesses da interveno do Estado. A demagogia, que at ento no tinha como cumprir suas promessas, sendo por isso mesmo razoa-velmente limitada, ganhou uma nova dimenso, pois passou a ser feita s custas do errio pblico e da inflao.

    Tambm merece meno o fato de Keynes ter sido um dos maiores responsveis, na conferncia de Bretton Woods em 1944, pela criao do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional. O papel desempenhado por essas instituies- especialmente pelo Banco Mundial- no processo de estatizao da economia brasileira, em particular, e latino-americana, em geral, ainda no foi devidamen-te reconhecido. Com efeito, o enorme volume de financiamentos concedidos pelo Banco Mundial s empresas estatais contribuiu decisivamente para a expanso dessas empresas e, consequente-mente, para agravar os resultados negativos decorrentes do fato de setores importantes e bsicos da economia nacional serem inteira-mente controlados e dependentes da ao governamental.

    O sucesso do socialismo e do intervencionismo ofuscou intei-ramente o liberalismo. No perodo entre as duas guerras, as idias liberais estavam inteiramente esquecidas. Quase nada era publicado sobre o assunto e do pouco que se escrevia o mundo no tomava conhecimento. As idias socialistas-intervencionistas, por outro lado, floresciam. Livros eram editados; todos os artistas e intelectuais m-Anifestavam-se em favor do socialismo e do intervencionismo.

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  • A social-democracia

    Com a derrota da Alemanha na guerra, desaparecem os regi-mes de cunho nazi-fascista; em contrapartida, o regime comunista consolida-se na URSS e no leste europeu e expande-se pela frica e sia. Entretanto, a idia socialista-comunista comea, gradativa-mente, a perder seu encanto graas evidente falta de liberdade e de resultados concretos. O economista e historiador norte-americano Irving Kristol observou, com razo, que o fato poltico mais importante do sculo XX o fracasso do socialismo como forma de organizao social.

    Mas, curiosamente, a condenao aos regimes comunistas ou socialistas concentra-se no fato de neles no existir liberdade poltica; se fosse possvel, presume-se, "democratizar" o socialismo, podera-mos enfim reunir as vantagens da democracia, desejada por todos, com as benesses do socialismo, imaginadas por muitos. Surge assim a social-democracia, ou seja, o corpo de idias que combina a liberdade no plano poltico com o intervencionismo estatal no plano econmico.

    No Terceiro Mundo e sobretudo na Amrica Latina, a social-democracia adotada por quase todos os partidos polticos. Sendo liberal, democrata, em poltica e socialista, intervencionista, em eco-nomia, promete mais do que pode dar (comportamento tpico do populismo). De frustrao em frustrao, vacilante e inoperante dian-te da realidade que no consegue entender, procura enfrentar os problemas apenas pela via retrica e acaba gerando o desejo de interveno, a fim de "pr a casa em ordem"(regimes militares). Essa alternncia de militares e populistas, ambos intervencionistas, tem sido a saga da Amrica Latina e a grande causa de sua m perfor-mance econmica.

    A lgica do intervencionismo

    importante que nos detenhamos um pouco sobre o interven-cionismo, e sobre o que deve ser entendido como interveno.

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    Interveno uma norma ou uma medida de carter restritivo, impos-ta pelo governo, que obriga as pessoas a empregarem os seus recursos de forma diferente da que fariam se no houvesse a inter-veno.

    Imaginam os intervencionistas que, se as pessoas forem dei-xadas livres para usarem os seus recursos, no o faro da melhor maneira. A interveno, pois, se faz necessria para obrigar os indivduos a agirem de forma diferente da que agiriam se fossem deixados livres. Presume-se que, assim procedendo, as pessoas em geral sero beneficiadas.

    Essa a lgica da interveno. A interveno , portanto, um ato autoritrio; implica em reco-

    nhecer que as pessoas no devem ser livres para escolher, que precisam da tutela de um chefe, do Estado, que sabe o que melhor para o cidado. O intervencionismo obriga a que haja a submisso do consumidor ao Estado. Esse o seu equvoco bsico. O liberalis-mo, ao contrrio, defende a soberania do consumidor.

    Os resultados da interveno nunca so os desejados, nem mesmo os desejados pelo prprio interventor. A interveno beneficia apenas algumas pessoas ou alguns grupos, ou mesmo um grande nmero de pessoas a curto prazo, mas invariavelmente produz con-seqncias desagradveis para a grande maioria das pessoas a longo prazo.

    Os benefcios, por estarem concentrados em algumas pessoas ou em alguns grupos, ou por estarem concentrados no curto prazo, so bem percebidos, so anunciados e exaltados. Os malefcios, por estarem difusos entre o grande nmero e a longo prazo, no chegam a ser bem percebidos.

    O fato de os benefcios serem bem percebidos e os malefcios no o serem gera entre interventores e os que defendem a interven-o- ao constatarem que os resultados desejados no foram atingi-dos- uma certa perplexidade, uma busca de falsos culpados para as mazelas que foram provocadas pela prpria interveno.

    A culpa da nossa pobreza passa a ser atribuda ao FMI -e rompe-se com o Fundo; dvida externa- e decreta-se a moratria ganncia dos empresrios- e congelam-se os preos; s multina~

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  • cionais - e alguns pases chegam a expuls-las de seu territrio; falta de leis que estabeleam maiores direitos para os trabalhadores -e novas leis estabelecendo o que se convencionou chamar de "con-quistas sociais" so promulgadas.

    Mas, apesar de tudo isso, as mazelas persistem. Para comba-t-las, novas intervenes so propostas; as intervenes anteriores so consideradas tmidas. preciso intervir mais. E o processo continua.

    Todos deviam ter em mente a lio de Henry Hazlitt no seu excelente livro Economia numa nica lio: "A arte da economia est em considerar no s os efeitos imediatos de qualquer ato ou poltica, mas, tambm, os mais remotos; est em descobrir as conseqncias dessa poltica, no s para um nico grupo, mas para todos eles". [24, p.5]

    A explicitao da idia liberal

    No perodo entre as guerras, quando as idias liberais haviam sido completamente abandonadas, Ludwig von Mises, austraco, aluno do grande economista Carl Menger, publica sua "teoria da moeda e do crdito" [44], com contribuies originais cincia eco-nmica sobre as razes da ocorrncia de fenmenos como o ciclo econmico e a inflao; publica tambm Socialismus [43], uma con-tundente crtica ao socialismo como forma de organizao econmica da sociedade. Neste trabalho, von Mises demonstra, de maneira ineludvel, a impossibilidade do clculo econmico numa sociedade socialista levada s suas ltimas conseqncias. O socialismo uma contradio: os objetivos almejados no podem ser alcanados com os meios propostos.

    As dificuldades para o funcionamento da sociedade socialista, antevistas por Mises h mais de cinqenta anos, s agora comeam a ser reconhecidas. A inexistncia de um mercado como mecanismo de formao de preos e de transmisso de informaes, impossibi-litando portanto a efetivao do clculo econmico com base em preos reais, o que leva Gorbachev a afirmar em seu livro Peres-

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    troika: "A essncia do que planejamos fazer em todo o pas a substituio dos mtodos predominantemente administrativos por mtodos predominantemente econmicos. O fato de devermos ter uma computao exaustiva de custos bastante claro para as lderanas soviticas". E, mais adiante, na mesma pgina: "Levar dois ou trs anos para se preparar uma reforma da formao de preo e do mecanismo de financiamento e crdito, e cinco a seis anos para se passar ao comrcio atacadista nos meios de produo". [13, p. 98, 99]

    A tentativa de alcanar a quadratura do crculo com que se debate o lder sovitico fica evidente quando afirma, aps setenta anos de vigncia do regime sovitico: "A prtica de, para todas as questes, esperar instrues de cima, confiando nas decises toma-das em nvel superior, ainda no foi abolida ... A questo que as pessoas se desacostumaram a pensar e agir de modo responsvel e independente". E mais adiante: "A idia de Lnin, de encontrar as formas mais eficazes e modernas de se combinar a propriedade coietiva com o interesse pessoal, a base de todas as nossas buscas, de todo o nosso conceito de transformao radical da administrao econmica". E mais adiante ainda: ."Acreditamos que o problema fundamental ainda continua sendo a combinao dos interesses pessoais com o socialismo". [13, p. 71, 93 e 1 OS] Infelizmente Gorba-chev prope que a superao dessas contradies seja alcanada pelo fortalecimento do regime socialista, ou seja, prope a superao dos efeitos com o agravamento das causas.

    Para no merecer a mesma crtica que feita a Marx - a de ter escrito uma extensa condenao do capitalismo sem nunca ter enunciado o que seria um regime socialista- Mises publica, em 1927, Uberalismus. Nesse livro, o autor explicita, pela primeira vez, o que seja a doutrina liberal. Expe criteriosamente os fundamentos do liberalismo; analisa os conceitos de liberdade, propriedade, paz, igualdade, Estado, governo, democracia, riqueza, tolerncia, partidos polticos. Descreve como deveria ser a organizao da economia; examina os problemas de poltica internacional: o direito de autode-terminao, o nacionalismo, o imperialismo, o colonialismo, o comr-cio internacional.

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  • Suas obras, escritas em alemo entre as duas guerras, no chegaram a ter entre os povos de lngua inglesa a repercusso a que faziam jus. Na Alemanha de Hitler, Uberalismus foi proibido e teve seus exemplares destrudos. (Na Alemanha Oriental, aps a Segunda Guerra, continuava proibido). Esse fato fez com que Mises, aps ter emigrado para os Estados Unidos, escrevesse em ingls sua obra mxima: Human Action- A Treatise on Economics [39], publicada no incio da dcada de 50. Em Human Action, Mises remete a cincia econmica sua verdadeira essncia e razo de ser: a ao humana. Ao humana entendida como um comportamento propositado que visa a passar de um estado de maior desconforto para outro de menor desconforto. Sem esta motivao, no h ao. a partir de postu-lados simples e evidentes como este que Mises constri toda a sua teoria econmica.

    Em 1944, Friedrich A. Hayek, tambm austraco e discpulo de von Mises, publica O caminho da servido [21], como que anunciando o equvoco que a Inglaterra iria cometer, depois de ganhar a guerra, se adotasse, como de fato o fez, a poltica intervencionista ento em grande voga. Desde ento, entre muitos outros trabalhos, pblica Os fundamentos da liberdade [22] e sua famosa trilogia Direito, legislao e liberdade. [19]

    Em sua obra, Hayek esclarece decisivamente o funcionamento do mercado, ao mostrar que a maior parte do conhecimento humano conhecimento disperso, distribudo entre os bilhes de habitantes do planeta. A tarefa do mercado e do sistema de preos simples-mente a de transmitir e processar essas informaes. O mal da interveno no mercado reside precisamente em diminuir a transmis-so de informaes; em fazer com que sejam tomadas decises baseadas apenas num conjunto restrito de informaes, quais sejam, as de que dispe o interventor ou o planejador central. Prope tambm a demarquia (demos-archos, governo do povo) como forma de organizao social e, no final da dcada de 70, de forma notvel, em seu livro Desestatizao do dinheiro [18], prope a eliminao da moeda de curso legal.

    Essa seqncia de mestres e alunos austracos - Menger, Bhm-Bawerk, Mises e Hayek - justifica a denominao de Escola

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    -

    Austraca dada a essa corrente do pensamento econmico que, a nosso ver, melhor define as bases tericas do liberalismo.

    A grande contribuio da Escola Austraca consiste em ter tornado explcito, pela primeira vez, de forma ordenada e consistente, o que o liberalismo; em ter enunciado os fundamentos tericos daquilo que, at ento, s era percebido pelas suas inegveis vanta-gens de natureza prtica.

    Se queremos alcanar resultados prticos, precisamos conhe-cer qual a teoria que os explica; saber por que e como ocorrem. Ou ento os resultados prticos no sero previsveis; sero meramente acidentais e, portanto, no se repetiro. Embora existam teorias que no tm efeitos prticos, no existem resultados prticos, consisten-tes e duradouros sem que haja, por trs, uma teoria que os explique, que esclarea as suas relaes de causa e efeito.

    O "renascimento" do pensamento liberal

    Se na primeira metade do nosso sculo as idias liberais estiveram praticamente esquecidas e abandonadas, a segunda me-tade vem assistindo ao que tem sido denominado de renascimento do pensamento liberal.

    A expresso renascimento no nos parece adequada, pois indica fazer existir de novo o que existia antes. A rigor, a nosso ver, a expresso nascimento se aplica melhor no caso. O fato de o liberalismo s ter sido enunciado e explicitado recentemente nos permite considerar o perodo anterior como um perodo de "gestao", quando ainda no havia plena conscincia do que fosse o iderio liberal. Na realidade, o liberalismo uma idia moderna e muito pouco conhecida. A maior parte dos nossos contemporneos no sabe o que o liberalismo porque no o viveu na prtica, e no o conhece na teoria porque s agora as obras a seu respeito comeam a ser divulgadas e traduzidas para os diversos idiomas.

    No ps-guerra, o renascimento do pensamento liberal se faz presente nos pases que Paul Johnson denominou de os "Lzaros da Europa", referindo-se aos pases que ''ressuscitaram" depois da

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  • Segunda Guerra Mundial. Na Alemanha, Adenauer, tendo Erhard como ministro da economia; na Itlia, De Gasperi, tendo Einaudi como seu mentor econmico; e na Frana, aps o retumbante fracasso da Quarta Repblica, De Gaulle, tendo como chefe de sua assessoria econmica Jacques Rueff, conseguem realizar o milagre de, em prazo relativamente curto, soerguer economicamente os seus pases. importante notar que Erhard, Einaudi e Rueff fazem parte do pequeno grupo de economistas liberais que, juntamente com Hayek, Mises e Friedman, fundaram, em 1947, a Sociedade Mont Pelerin, que congrega at hoje adeptos do liberalismo em todo o mundo.

    No Japo, um partido de cunho liberal permanece no poder h quarenta anos, no podendo deixar de ser apontado como respons-vel pelo seu grande sucesso econmico. Merece registro o fato de que a constituio vigente no Japo, de corte marcadamente liberal, foi promulgada aps a guerra pelo general Mac Arthur, comandante em chefe das foras de ocupao. Na Inglaterra, por outro lado, o predomnio da social-democracia, representada pelo Partido Traba-lhista, conduz a uma grande estatizao da economia e ao seu empobrecimento relativo. A nao inglesa, que havia vencido a guerra e aspirava a uma posio de grande potncia juntamente com os EUA e a Rssia, acaba, em relativamente pouco tempo, superada pela Alemanha, Frana e Japo, e j tem sua posio ameaada pela Itlia. O governo Thatcher procura reverter essa tendncia, a dotando medidas arrojadas de privatizao da economia. Nesse seu intento, fortemente influenciado pelo IEA -lnstitute of Economic Affairs. Em 1987, no jantar de comemorao dos trinta anos de fundao do I EA, Margaret Thatcher reconhecia que o seu governo no teria sido possvel sem a base ideolgica do IEA, cujo presidente, Ralph Harris, foi presidente da Sociedade Mont Pelerin, no perodo 1983-84.

    Tambm merece ser mencionado o perodo em que, na Argen-tina, no governo Frondizi, lvaro Alsogaray, tambm membro da Mont Pelerin, consegue em 22 meses reverter uma situao calamitosa legada pelo primeiro governo Pern. Acaba com a inflao (os ndices de preo permaneceram constantes nos ltimos trs meses de sua gesto), ao mesmo tempo em que libera a economia concedendo ampla liberdade para que o mercado estabelea os preos, os sal-

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    rios, a taxa de cmbio, as exportaes e as importaes. No mesmo perodo, as reservas argentinas, que haviam sido dilapidadas, atingi-ram em valores de hoje o equivalente a quase cinco bilhes de dlares. Nesse perodo registrou-se a maior taxa de investimento em muitas dcadas e, no ano de 1960, o peso argentino foi qualificado pelo Comit Lombard de Londres como "a moeda estrela do ano". Por razes polticas, o presidente Frondizi interrompe essa breve expe-rincia liberal, e a Argentina, assim , retorna social-democracia e ao populismo estatizante. [1, p.4]

    No leste asitico, tem merecido destaque o desempenho eco-nmico de pases como Coria, Formosa, Cingapura e Hong-Kong, fortemente apoiados na livre iniciativa, na taxa de cmbio livre (ou pelo menos realista) e no grande comrcio internacional.

    Enquanto isso, o Terceiro Mundo, perdido na retrica social-democrata ou em regimes verdadeiramente socialistas, continua a lamentar a sua sorte e a apontar falsos culpados para as suas mazelas.

    H que se reconhecer a regularidade de resultados num caso e no outro. imperioso tirar as lies dessa experincia.

    A divulgao das idias liberais

    O renascmento do pensamento liberal vem recebendo um forte impulso com a criao de institutos de carter essencialmente doutrinrio, sem vinculao de natureza poltico-partidria, que se propem a explicar e divulgar as vantagens da sociedade organizada com base na democracia representativa no plano poltico, na econo-mia de mercado no plano econmico e na mxima descentralizao de poder no plano administrativo; as vantagens de uma sociedade estruturada segundo os princpios da propriedade privada, do lucro, da ausncia de privilgios e da responsabilidade individual.

    O primeiro desses institutos foi criado por Anthony Fisher em 1957. Fisher, um ex-piloto da RAF, e que iniciava sua carreira empresarial num bem-sucedido negcio de criao de galinhas, tendo lido O caminho da servido, decide entrar para a poltica e procura

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  • Friedrich Hayek a fim de manifestar-lhe essa sua disposio de contribuir para que no ocorresse o que o livro dramaticamente prenunciava. Hayek desaconselha esse tipo de ao e recomenda que seja criado um instituto com o propsito ostensivo de divulgar as idias liberais atravs da publicao de livros, realizao de confe-rncias, elaborao de polticas alternativas para serern oferecidas aos diversos candidatos e promoo de debates entre os defensores das idias liberais e os das idias intervencionistas. Assim surgiu o lnstitute of Economic Affairs- IEA.

    A partir de ento, institutos vm sendo criados em diversos pases, sempre com o mesmo propsito. Na Amrica Latina, j existiam na Argentina, no Chile, no Peru, na Venezuela, na Costa Rica, na Guatemala e no Mxico, quando, em 1 983, foi criado o Instituto Liberal no Rio de Janeiro. Hoje j existem tambm os Instituto Liberal de So Paulo, do Paran, do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais, da Bahia, de Pernambuco e de Braslia, atuando com esse mesmo propsito, qual seja, o de divuigar, de explicar, de convencer os membros da sociedade quanto s vantagens da idia liberal.

    As palavras com que Ludwig von Mises termina o seu Lbera-lismus refletem bem o esprito que preside o trabalho que vem sendo desenvolvido por esses institutos:

    Jamais uma seita, um partido poltico, acreditou que fosse possvel divulgar a sua causa apelando para a razo humana. Preferem recorrer retrica bombstica, s canes e s musicas retumbantes, s bandeiras coloridas, s flores e aos smbolos; seus lderes procu-ram criar vnculos pessoais com seus seguidores. O liberalismo no tem nada a ver com tudo isso. No tem flores nem cores, no tem msicas nem dolos, no tem smbolos nem s/ogans. Tem substncia e argumentos. Isso h de conduzi-lo vitria.

    O neoliberalismo

    Quando este livro foi escrito (1 988) ainda no havia ocorrido a queda do muro de Berlim e quase ningum se atrevia a qualificar-se

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    como liberal. Ser liberal era sinnimo de ser retrgrado, conservador, insensvel, de estar na contramo da histria. A grande maioria das pessoas se qualificava como socialista ou social-democrata. Era difcil encontrar algum que admitisse no ser "de esquerda". A vergonha de no ser socialista era tanta que o bloco parlamentar que tentou se opor a ferocidade intervencionista da nossa Constituio de 1988 se auto-intitulava "Centro". Salvo as honrosas excees, quem no comungasse com as idias socialistas se dizia de centro-esquerda ou ento de centro. Nunca mais do que isso.

    O embate que ento se travou foi entre a esquerda que se autoproclamava progressista, sensvel s necessidades dos mais carentes, e o centro, que procurava transmitir a impresso de serem pessoas sensatas e equilibradas. Afinal, como muita gente acredita que n mdio virtus, essa posio andina pde gerar uma certa simpatia. Foi o embate entre a ideologia equivocada (o socialismo) e o vazio ideolgico (o centro). O roto contra o esfarrapado!

    De l para c muita coisa mudou. Com a divulgao de inmeras obras de autores verdadeiramente liberais e com a evidn-cia emprica do fracasso do socialismo muitas pessoas comearam a defender publicamente a abertura e a privatizao da economia bem como o fim dos monoplios estatais.

    Curiosamente, essas pessoas passaram a ser qualificadas pelos seus oponentes como neoliberais e as idias, ainda que vagas, que defendiam, de neoliberalismo. A alienao jurssica das esquerdas brasileiras, diante do coro cada vez maior dos que defendiam reformas que nos aproximassem mais de uma econo-mia de mercado, deve t-las feito supor que essas idias teriam algo de novo, ou pelo menos que seriam uma verso algo moder-nizada de idias antigas.

    Da talvez o prefixo neo que a literatura internacional sobre liberalismo desconhece. Essa designao prevalece apenas no Brasil e, pelas mesmas razes, em alguns pases da Amrica Latina.

    O liberalismo no pretende ser uma idia moderna ou nova; pretende ser uma idia correta e adequada para atingir o objetivo comum de todas as ideologias, qual seja, elevar o padro de vida das populaes em geral. J no final do sculo XVIII defendia Jeremy

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  • Bentham "o maior bem-estar para o maior nmero". No h nada de novo nisso!

    A qualificao de neoliberal s aplicvel a um socialista que se tornou liberal. O prefixo neo, no caso, se aplica ao indivduo e no s idias que ele passou a defender que, como j se salientou, no tm nada de novo.

    Apesar de ventos mais favorveis s idias liberais em geral e economia de mercado em particular, a designao liberal ainda vista pela maior parte de nossos polticos como um apodo. Recente-mente, o presidente Fernando Henrique Cardoso e o vice-presidente Marco Maciel, para citar apenas os dois mais proeminentes, vieram a pblico para se defender da "acusao" de serem liberais- que lhes fazem seus opositores - dizendo-se social-democrata o primeiro, e social-liberal (seja l o que isso signifique), o segundo.

    No obstante, no desempenho de suas funes, tm defendido medidas e posturas coincidentes e compatveis com as que os liberais h muito defendem.

    Como dizia Victor Hugo: "nada mais forte do que uma idia cujo tempo chegou".

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    Ao humana

    AO HUMANA E ECONOMIA

    Desde tempos imemoriais, a condio humana, o comporta-mento do homem, tem ocupado o centro das preocupaes dos grandes expoentes da humanidade, de seus maiores pensadores e filsofos. No obstante, foi s no sculo XX que a ao humana passou a ser considerada e estudada do ponto de vista de suas inexorveis regularidades; passou a ser considerada como o objeto de uma cincia e no mais apenas como um padro de comporta-mento desejvel. Ludwig von Mises denominou a cincia da ao humana de praxeologia (praxis-ao, prtica + /oga-cincia, teoria). A economia vem a ser uma parte - a parte mais elaborada e mais estudada dessa nova cincia.

    Mises comea o seu monumental livro Ao Humana: um tratado de economia, definindo ao humana como sendo um com-portamento propositado: visa a passar de um estado de menor satisfao para um estado de maior satisfao. Pode-se tambm dizer que ao humana a realizao de uma vontade, a tentativa de atingir objetivos, a resposta do homem s condies do meio

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  • ambiente, o seu ajustamento ao universo que lhe determina a vida. So noes esclarecedoras, complementares. Mas a definio em si completa e suficiente. [39, p.11]

    Toda ao humana visa, a priori, a substituir um estado de menor satisfao por um estado de maior satisfao ou, o que d no mesmo, a substituir um estado de maior desconforto por um estado de menor desconforto. O aumento de satisfao o lucro propiciado pela ao. Lucro, no seu sentido mais amplo, o objetivo de toda ao. Ao agir, o homem no faz mais do que escolher os meios para realizar esse objetivo. O que cada um considera um estado de coisas mais satisfatrio depende de um julgamento de valor individual e, portanto, subjetivo. Varia de pessoa para pessoa e, na mesma pessoa, de um momento para outro.

    Dizer que o objetivo da ao humana , a priori. o de substituir um estado de coisas menos satisfatrio por outro mais satisfatrio significa dizer que ao ser humano no dada a opo de algumas vezes preferir uma situao mais satisfatria e, outras vezes, uma situao menos satisfatria; significa dizer que o homem s age para aumentar a sua satisfao, ou para diminuir o seu desconforto. Essa irrefutvel regularidade produz conseqncias e precisa ser levada em conta na escolha dos meios para atingir os fins escolhidos. Afeta, portanto, e decisivamente, a cincia econmica.

    Essa caracterstica bsica e essencial da ao humana o que Mises denomina de um ultima te given que traduzimos como "um dado irredutvel". um conceito apriorstico e evidente em si mesmo, a partir do qual Mises desenvolve a sua teoria. A praxeologia e a economia seriam assim cincias axiomtico-dedutivas - como a lgica e a matemtica, distintas das cincias naturais como a fsica e a qumica, que so cincias hipottico-dedutivas.

    Embora portanto no sejam adequadas comparaes com as leis fsicas e nem se queira atribuir s leis econmicas qualquer carter mecanicista, para ilustrar o conceito podemos dizer que afirmar essa regularidade da ao humana equiv!.le a afirmar que a gravidade terrestre atua sobre um corpo no espao, sempre, como uma fora que o faz se aproximar da Terra. Imaginar que a gravidade possa, em algum momento ou em alguma circunstncia, atuar de

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    modo a que um corpo se afaste da Terra to inconcebvel quanto imaginar que a ao humana possa ter como objetivo um estado de coisas menos satisfatrio ou mais desconfortvel.

    O homem, ao agir, escolhe; entre duas coisas que no pode ter ao mesmo tempo, seleciona uma e abandona a outra. Ao, portanto, no apenas escolher algo, como, necessariamente, re-nunciar s suas respectivas alternativas. O pr-requisito que impele o homem ao sempre algum desconforto. Um homem perfeita-mente contente com a sua situao no teria motivo para agir. Mas, para que o homem aja, no basta a existncia de um desconforto e a imagem de uma situao mais favorvel; preciso tambm que o comportamento propositado tenha condies de remover, ou pelo menos de aliviar, o desconforto. Se no houver essa possibilidade, nenhuma ao produzir os efeitos desejados; o homem ter de se submeter ao inevitvel.

    A economia no tem nada a dizer em relao escolha dos fins; limita-se a investigar que meios devem ser utilizados para que os fins escolhidos sejam atingidos. O problema econmico decorre, basicamente, do fato de os meios serem escassos e os fins alterna-tivos ilimitados. Ao utilizar um meio escasso para atingir um determi-nado fim, o homem renuncia a inmeros outros fins que poderiam ser atingidos com aquele mesmo meio. Neste sentido, pode-se dizer que o custo de uma ao, de uma escolha, corresponde a tudo aquilo a que se renunciou em virtude da escolha feita. Se os meios no fossem escassos, se no houvesse custos, todos os fins poderiam ser simultaneamente atingidos; seria o paraso. O problema seria mera-mente de natureza tcnica e no econmica.

    importante assinalar que a escolha, tanto dos objetivos quanto dos meios, sempre individual e nunca coletiva. Os homens podem ter objetivos em comum e usar os mesmos meios para atingi-los, mas isso no configura uma deciso coletiva ou do coletivo. O fato de que, numa comunidade, os objetivos e os meios habitualmente escolhidos sejam genericamente os mesmos configura apenas o que se costuma chamar de estgio cultural de uma coletividade, de um povo.

    Ao no a mesma coisa que trabalho. Ao significa empre-gar meios para atingir fins. Geralmente o trabalho um dos meios

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  • usados. Mas, muitas vezes, basta um sorriso, uma palavra para que o objetivo seja atingido. Falar ou ficar calado, sorrir ou permanecer srio podem ser formas de ao.

    A ao humana est sempre voltada para o futuro. Nesse sentido, sempre especulativa. O homem age visando a alcanar uma situao futura mais satisfatria, quer esse futuro seja remoto ou apenas o prximo instante. Sua mente imagina condies que lhe sejam mais favorveis e sua ao procura realiz-las.

    importante ainda notar que comportamento propositado dis-tingue-se nitidamente de comportamento instintivo, isto , dos refle-xos e das respostas involuntrias das clulas, rgos e nervos do corpo humano. Tambm no se deve confundir a ao com as motivaes psicolgicas que influem na escolha de um determinado comportamento. As reaes instintivas do corpo humano e as moti-vaes de natureza psicolgica so apenas fatores que, juntamente com muitos outros, determinam a es~olha a ser feita pelo ser humano e, portanto, a sua ao.

    So essas as condies gerais da ao humana. importante compreender que essa definio de ao humana no comporta excees. universal. a mesma na Rssia ou nos Estados Unidos; no regime comunista ou no regime capitalista. Ningum poder apontar um perodo da histria ou uma vaga tribo da Nova Zelndia em que seja outra a concepo de ao humana. Ao, tal como foi definida, uma categoria intrnseca ao gnero humano, indissocivel do ser humano. Sem ela o homem perde a sua caracterstica mais essencial que o distingue dos animais.

    A sociedade humana

    O fato de a ao humana ter sempre por objetivo substituir uma situao menos satisfatria por outra mais satisfatria a razo de existir o que se denomina de progresso ou desenvolvimento em geral, e desenvolvimento econmico em particular. Essa regularidade, essa lei, levou o homem, ao longo de sua histria, a selecionar os meios que melhor lhe propiciassem a consecuo desse objetivo.

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    As chamadas instituies sociais que vieram a ser gradativa-mente adotadas pelo homem, tais como a diviso do trabalho, a cooperao social, a competio, a moeda, nunca foram, em si, objetivos estabelecidos a priori. A priori, o objetivo da ao humana apenas aumentar a satisfao ou diminuir o desconforto. As insti-tuies que o homem escolhe para atingir os seus fins so apenas meios. A descoberta e a adoo desses meios so muito mais fruto do intercmbio annimo e no planejado do que de uma inteno prvia e deliberada. No foram imaginadas a priori, por algum crebro privilegiado, para serem a seguir adotadas. So fruto de uma seieo natural; so o que Hayek denomina de uma "ordem espontnea". [19, V.l - p.35-59]

    J nos seus primrdios o homem percebeu que a diviso do trabalho e a sua conseqncia natural, a troca di reta, resultavam num meio bastante eficiente de diminuir o desconforto. Surge ento na humanidade o que se pode denominar de cooperao social. Surge a sociedade humana.

    Sociedade ao em concerto, cooperao: fruto do comportamento propositado do homem. A origem da cooperao, da sociedade e da civilizao, que transformaram o homem animal num ser humano, se deve ao fato de o trabalho realizado sob o signo da diviso do trabalho e da troca ser mais produtivo do que o trabalho isolado, e ao fato de que a razo humana foi capaz de perceber essa verdade, essa realidade.

    Talvez, nesse processo de seieo de meios, o passo mais importante tenha sido dado h alguns milnios, quando algum prima ta percebeu que, em certas circunstncias, a renncia a algum prazer imediato seria amplamente compensada por uma maior satisfao futura. A partir da, talvez, os nossos primeiros catadores e caadores tenham dado origem ao que viria a ser chamado de sociedade humana. O homo sapiens passa a ser tambm homo agens.

    A cooperao social

    A primeira forma de cooperao social surge no pequeno grupo

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  • e prevalece at hoje no mbito da famlia. Nessa forma de cooperao prevalece o preceito "a cada um segundo suas necessidades, de cada um segundo suas possibilidades". Na famlia, a diviso do trabalho se processa segundo esse preceito e o grupo vive em comunho de bens, sujeito ao comando hegemnico de um chefe que lhe determina as prioridades e lhe dirime os conflitos.

    Mises observa, com inteira razo, que entre os membros do grupo surgem "sentimentos de simpatia e amizade e um senso de lealdade grupal. Esses sentimentos proporcionam ao homem as mais agradveis e sublimes sensaes; so os momentos mais preciosos da vida: elevam a espcie humana a nveis de uma existncia realmente humana. Mas no foram esses sentimentos que deram origem s relaes sociais. Ao contrrio, eles so fruto da cooperao social; s florescem no contexto da cooperao social. No precede-ram o estabelecimento das relaes sociais e nem foram a semente que lhes deu origem". [39, p. 144]

    Entretanto, se prevalecesse apenas essa forma de cooperao grupal, a cooperao social ficaria bastante limitada, e a humanidade reduzida a algumas centenas de milhares de pessoas vivendo no seu crculo restrito, produzindo e consumindo em comunidade. Se nin-gum est disposto, sabemos todos, a admitir o vizinho na sua famlia e, portanto, viver com ele em comunho de bens, muito menos estar disposto a efetivar essa forma de cooperao com um habitante de Minas Gerais, da Colmbia ou da Mandchria.

    O advento da cooperao social entre estranhos, de importn-cia inexcedvel para a humanidade, abre um campo que, ao longo da histria do homem, vem sendo continuamente ampliado e cujos efeitos ainda esto longe de serem esgotados. Ainda h muito pro-gresso a ser realizado. Na realidade, estamos ainda, por assim dizer, na pr-histria do que poderemos vir a ser.

    No so razes de natureza altrustica que levam dois estra-nhos a cooperar entre si; a cooperao s existir se cada uma das partes envolvidas for capaz de oferecer outra uma vantagem comparativa, ou seja, algo melhor e mais barato. A troca voluntria s se realiza quando ambos os parceiros aumentam a sua satisfao, quando ambos se beneficiam da troca. O resultado da troca voluntria

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    sempre positivo; a satisfao de um no obtida s custas da insatisfao do outro. Cada parceiro d mais valor quilo que recebe do que quilo de que se desfaz. Por isso, quanto maior for a coope-rao entre estranhos, maior ser o aproveitamento das vantagens comparativas e maiores a produtividade e a satisfao geral.

    Por outro lado, os grupos que preferirem um maior isolamento autrquico, e que por isso permitirem que seus chefes adotem medi-das para impedir ou restringir a cooperao entre estranhos, estaro impedindo ou restringindo o possvel aumento de satisfao dos membros de suas comunidades.

    As regras de justa conduta

    Mas, como na cooperao entre estranhos no h chefes nem comandos- e, entretanto, continuam a existir prioridades a serem determinadas e conflitos a serem dirimidos -. os estranhos que, nos primrdios da humanidade, se dispuseram a cooperar, perceberam logo a necessidade da existncia de regras de conduta a que todos se submetessem, que todos aceitassem e entendessem como ben-ficas para aumentar a satisfao e diminuir o desconforto geral. As regras mais evidentes de cooperao social, adotadas h milnios, so o "no matars" e o "no roubars". So regras que tm conse-qncias econmicas extraordinrias, uma vez que suas implicaes quanto propriedade privada e ao cumprimento de contratos ampliam consideravelmente a possibilidade de cooperao entre estranhos. fcil imaginar o estgio a que estaria reduzida a humanidade se essas regras no tivessem sido aceitas e adotadas universalmente.

    Pode-se dizer que o processo civilizatrio um processo de conteno dos instintos; colocar a regra acima do instinto. O homem civilizado, diferentemente dos animais, no est merc de seus instintos; compreende que a melhor forma de satisfazer os seus apetites no tomar pela violncia o que pertence ao seu vizinho e nem atacar qualquer fmea que lhe desperte o interesse sexual. Ao colocar a regra acima do instinto, o homem estabelece o Estado de direito, o imprio da lei; lei entendida no seu sentido correto: uma regra

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  • geral de justa conduta aplicvel a todos os casos futuros. Essa ressalva necessria em virtude do fato de o termo lei ser usado, hoje em dia, para designar legislaes, regulamentos, portarias e atas autoritrios impostos sobre a sociedade.

    A lei precede o Estado, que surgiu exatamente pela necessi-dade de fazer com que as regras estabelecidas, o "no matars" e o "no roubars", fossem obedecidas. Ao Estado foi atribudo, pelos cidados, monoplio da coero, para fazer com que a regra fosse respeitada e a sua violao eventualmente punida.

    A coero um mal, uma violncia. O Estado como detentor do monoplio de coero um mal necessrio. O seu papel, portanto, deve ser limitado; o poder de coero s deve ser usado para garantir o cumprimento das regras, para garantir os direitos individuais esta-belecidos pelas prprias regras, para fazer com que sejam cumpridos os contratos e compromissos assumidos entre os cidados. impor-tante notar que os direitos individua[s referem-se basicamente quilo que o homem tem e no lhe pode ser tirado: o direito vida, liberdade, propriedade, sade. , evidentemente, um paradoxo considerar que o homem tem "direito" a ter aquilo que no tem. Assim, o "direito" casa prpria, ao emprego e a tudo o mais que quisermos listar como "direito" representa apenas o desejo de possuir algo e o expediente de pretender obt-lo s custas de algum.

    Grande parte da confuso hoje reinante decorre do fato de ser crena geral que o homem possa "fazer" as leis. Est implcita nessa noo a idia de que o homem pode moldar a sociedade como melhor lhe aprouver. Na tradio inglesa do direito consuetudinrio - uma das mais fecundas experincias humanas na tentativa de estabelecer regras de justa conduta cabia aos juizes a funo de ''descobrir" as leis, isto , de tornar explcitas, atravs da jurisprudncia, as normas de conduta que, por serem habitualmente adotadas, deviam ser consideradas como o comportamento que se espera de uma pessoa nas suas relaes com as outras pessoas. De certa forma, cabia-lhes o mesmo papel que coube a Moiss quando imprimiu os dez manda-mentos nas tbuas da lei do seu povo. "Descobrir" a lei significa perceber o que funciona e abandonar o que no funciona. O respeito palavra empenhada, a honestidade, o direito de propriedade, as

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    regras morais de uma maneira geral so valores que esto arraigados em ns porque funcionam, porque os grupos que os adotaram au-mentaram a sua satisfao e diminuram o seu desconforto. O tema por demais importante e merece um exame mais cuidadoso. Aos que se interessarem, recomenda-se a excelente trilogia de Hayek, Direito, legislao e liberdade (19], publicada no final da dcada de 70 e traduzida para o portugus em 1985.

    O que importa, por ora, consignar que a adoo da regra e a submisso a ela surgiram na humanidade como um meio para atingir o objetivo de aumentar a satisfao ou diminuir o desconforto. A implementao de leis ou regras que contrariem os inexorveis determinantes da ao humana s poder ser feita pelo aumento da coero. Na medida em que isso ocorra, a sociedade livre transfor-ma-se em uma sociedade submetida a um poder autoritrio, seja ele o monarca, o dspota, o ditador militar ou o representante de uma eventual maioria que controla um Estado todo poderoso.

    O mercado

    Se, na sociedade humana, as regras e o Estado, no seu papel de faz-las obedecidas, cumprem a funo de dirimir os conflitos, preciso de alguma forma determinar as prioridades; determinar o que deve ser produzido. O problema pode ser resolvido atravs de um chefe (modernamente se diria de um planejador central) que estabe-lea as obrigaes de cada indivduo. Mas, nesse caso, a cooperao social entre estranhos fica limitada ao conhecimento que essa auto-ridade tenha em relao s necessidades e s possibilidades de cada um. Na sociedade livre, a cooperao entre estranhos feita atravs do mercado, permitindo assim que homens cujos valores e propsitos sejam diferentes possam cooperar entre si sem que haja necessidade de acordo quanto aos objetivos de cada um.

    O mercado no um local, uma praa onde se realizam trocas. O mercado um processo de transmisso de informaes, informa-es essas que so representadas pelos preos. As pessoas, ao comprarem ou deixarem de comprar um produto por um determinado

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  • preo, esto dando uma informao. O conjunto dessas informaes que, por assim dizer, comanda, dirige, orienta a utilizao dos recursos escassos, de forma a que seja obtida a maior satisfao possvel.

    Todo produto cujo preo de mercado for superior soma de todos os fatores que concorrem para a sua produo (custo de produo} permite, a quem produzi-lo, uma margem denominada lucro. Todo produto cujo custo de produo for superior ao maior preo que as pessoas estejam dispostas a pagar no ser produzido, a no ser com prejuzo e por quem estiver disposto a suport-lo. Quanto maior for a margem de lucro, maior ser o estmulo para que o produto em questo seja produzido. No mercado livre, os preos informam o que as pessoas desejam que seja produzido e, quanto maior for a expectativa de lucro, mais rapidamente elas sero atendidas.

    As intervenes no mercado - subsdios, tabelamentos, gra-vames de qualquer natureza - deJormam os preos e, portanto, deformam as informaes a serem processadas pelo mercado. Quan-to maior a interveno, maior a deformao dos preos e maior a desinformao da decorrente: investimentos passam as ser feitos para atender a uma demanda que s existe em virtude do subsdio; produtos desejados pelos consumidores deixam de ser produzidos pelo fato de seus custos de produo excederem o valor do tabela-mento, e assim por diante. Desorganiza-se a produo. Diminui a satisfao.

    O estabelecimento de tarifas aduaneiras ou reservas de mer-cado significa apenas o favorecimento de produtores de um determi-nado produto em detrimento da enorme maioria de consumidores. Os ganhos decorrentes da proteo podem ser to grandes que, para mant-los, os capitalistas e empresrios desses setores de produo paguem aos seus operrios salrios maiores que os de mercado, a fim de t-los como cmplices e co-interessados no sistema de pres-so, que tem por finalidade manter o privilgio decorrente da prote-o. Os prejudicados so todos os consumidores que, direta ou indiretamente, so obrigados a pagar um preo maior, ou que, na impossibilidade de faz-lo, deixam de ter acesso ao produto em questo.

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    No caso da interveno via monoplio estatal, os consumido-res, alm de serem obrigados a usar produtos e servios piores e mais caros, acabam sendo tambm obrigados a arcar com um nus adicional. Nos dias que correm, estamos assistindo a uma presso cada vez maior dos funcionrios das estatais por maiores salrios e vantagens. Para obt-los, recorrem ameaa ( muitas vezes concre-tizada) de interrupo de servios essenciais. As greves no setor privado j no so freqentes, como outrora, porque os operrios j esto percebendo que os empresrios privados no podem descon-siderar a realidade; se os salrios exigidos forem superiores aos que o mercado determinaria, haver inevitavelmente demisso e desem-prego. Mas o Estado empresrio pode atender a reivindicaes absurdas ou exageradas transferindo as conseqncias para o pbli-co em geral: basta-lhe aumentar as tarifas ou os preos de seus produtos, que por serem essenciais e monopolizados (energia, co-municao, previdncia), so de substituio difcil ou at mesmo impossvel. Ou ainda, o que mais freqente, cobrir o dficit de suas empresas recorrendo inflao. De qualquer forma, como sempre, privilegia-se um pequeno grupo (os funcionrios das estatais) em detrimento da imensa maioria de consumidores e de assalariados, que sofrem as conseqncias do aumento de preos e da inflao.

    O pargrafo acima foi escrito em 1988. No momento em que fao a reviso desta nova edio (junho, 1995) no posso deixar de consignar que pela primeira vez na histria um governo brasileiro, eleito democraticamente, tomou uma atitude sria em relao a uma greve de servidores pblicos a greve dos petroleiros. At agora a atitude do governo tem sido serena e firme, como deveria sempre ser. Se mantiver esse comportamento, estaremos dando um passo fun-damental para a implantao em nosso pas de um verdadeiro Estado de direito.

    O lucro

    Convm que nos detenhamos um pouco mais sobre a questo dr, lucro e sua significao verdadeira.. Conceitos como lucro, inves-

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  • timento, capital adquiriram um significado especfico ao tempo e nos pases em que prevalecia uma razovel liberdade econmica. Esses termos continuam a ser empregados hoje em dia, apesar de a cres-cente interveno do Estado na economia ter-lhes modificado inteira-mente o significado. A tal ponto que podemos afirmar, ao mesmo tempo, que o lucro a mola do progresso e que o lucro deveria ser confiscado. Estamos, claro, nos referindo a duas coisas que so diferentes, embora recebam a mesma denominao. Examinemo-las.

    Considera-se, geralmente, que o empresrio faz jus ao lucro porque corre riscos, ou porque tem capital (ou pelo menos tem o seu controle), ou porque tem know-how, experincia, e at mesmo porque trabalha muito (o que bastante verdadeiro na maioria dos casos). Na realidade, o empresrio uma mistura de tudo isso; no existe na natureza o empresrio em estado puro. Suas atividades, como a de qualquer ser humano, so mltiplas, o que dificulta a compreenso do que seja, na essncia, a atividade empresarial.

    Para melhor compreender esse fenmeno, faamos o que Mises denomina de uma construo imaginria [39, p. 236]. Supo-nhamos um empresrio diferente. Nosso empresrio no tem capital: toma dinheiro emprestado e considera os juros correspondentes no custo de produo de seu produto. No tem know-how. compra o know-how e igualmente inclui esse valor no custo. Nosso empresrio detesta trabalhar: contrata um gerente competentssimo, por um bom salrio, que constri e opera a fbrica, contrata o financiamento, compra o know-how. faz, enfim, tudo o que necessrio para produzir um determinado produto. Nosso empresrio tem horror a riscos: coloca tudo o que pode no seguro, faz operaes hedgee de mercado futuro para se prevenir das eventuais variaes nos juros, nos preos dos seus insumos ou do seu produto acabado. Todas essas despesas so includas no custo de produo e, ao final de tudo, pagando todos os fatores de produo, os bens de capital, os juros, o know-how, os seguros, o gerente etc., o produto custa 60 e encontra compradores em nmero suficiente para absorver toda a produo, dispostos a pagar 100 pelo mesmo. Resulta portanto um lucro de 40.

    A que se deve esse lucro, se todos os fatores que contriburam para a produo j foram adequadamente remunerados? Qual a sua

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    justificativa? Esse lucro fruto de uma descoberta. A descoberta de que, juntando fatores de produo existentes - capital, know-how, bens de produo, trabalho. gerenciamento, seguro etc.- e que eram valorados por 60, esses fatores transformam-se num produto que os consumidores valaram por 1 00. A descoberta do nosso empresrio extremamente apreciada; os consumidores esto dispostos a pagar 100 por um produto cujos componentes eles prprios valoravam apenas em 60. Talvez esse novo produto substitua com vantagens um outro at ento usado e que os consumidores pagavam, digamos 11 O, e que tinha um custo de produo de, digamos, 1 05. A quem pertence a descoberta? A quem pertence a diferena de 40, o lucro puro de 40, que no existia antes de ser descoberto? Pertence, claro, ao descobridor. A tica do lucro a tica da descoberta. O valor gerado pela descoberta pertence a quem descobriu. Este fato amplamente reconhecido na expresso coloquial inglesa "Finders Keepers": qualquer coisa que no tenha dono torna-se, com inteira justia, propriedade privada da primeira pessoa que, descobrindo sua utilidade e seu valor potencial, dela se apossar. Desse tipo de lucro podemos dizer: quanto mais, melhor; quanto mais descobertas que favoream o consumidor, melhor. Onde houver liberdade de entrada no mercado, e onde o sistema de preos no for deformado por intervenes do Estado ou por preos monopolsticos, a perspectiva de lucro estimula a atividade empresarial, beneficiando a sociedade e favorecendo o consumidor.

    A descoberta pode ser tanto a de uma jazida de ouro ou a da cura da AIDS, como a de um processo de se produzir melhor e mais barato uma mercadoria j existente ou um produto novo nunca antes imaginado. A descoberta tem que dar origem a um produto que o consumidor valorize mais do que os fatores que concorreram para a sua produo. De nada adiantaria "descobrir" um mtodo de ensacar a gua do mar, j que nenhum consumidor daria valor ao produto assim obtido. O processo de descoberta um processo permanente de tentar identificar algo que o consumidor considera melhor e mais barato do que as alternativas de que dispe no momento. O sucesso da descoberta depende da aprovao do consumidor, que soberano para fazer a sua escolha. Nesse sentido, pode-se dizer que, numa

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  • sociedade livre, e portanto competitiva, o lucro a medida da contri-buio empresarial sociedade; a forma com que a sociedade diferencia o empresrio competente do incompetente.

    Numa sociedade autoritria e intervencionista, entretanto, as coisas se passam de uma maneira bastante diferente; o lucro passa a ser tambm fruto do favorecimento e do privilgio - e, por isso mesmo, inquo e imoral. Desse tipo de lucro pode-se dizer que, quanto menos, melhor.

    Esse aparente paradoxo, que decorre do emprego da mesma palavra para designar dois fenmenos bastante distintos, leva muitas pessoas a condenarem o lucro quando, na realidade, se desejam uma melhoria das condies de vida dos membros da sociedade, deviam combater os privilgios concedidos atravs de protecionismos, sub-sdios, monoplios, reservas de mercado e outros favorecimentos da mesma natureza.

    importante notar que o intervencionismo invariavelmente protege alguns produtores em detrimento do consumidor, enquanto que a liberdade de entrada no mercado favorece o consumidor, obrigando o produtor a "descobrir" a maneira de satisfaz-lo. Quando o caminho do sucesso deixa de ser o de produzir algo melhor e mais barato e passa a ser o de obter os favores do "rei", ou o de ser "amigo do rei", a sociedade se degenera moralmente e empobrece economi-camente.

    A funo empresarial

    Costuma-se caracterizar a atividade empresarial como uma atividade economizadora, isto , que procura encontrar meios e processos de produzir com mais eficincia. Kirzner argutamente observa que embora essa preocupao esteja sempre presente na atividade empresarial, ela no constitui a sua verdadeira essncia. Ser mais eficiente num processo de produo implica saber a priori o que dever ser produzido. Se fosse s essa a natureza da atividade empresarial, estaramos apenas produzindo cada vez melhor as mesmas coisas.

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    O essencial da funo empresarial, continua Kirzner, consiste em "descobrir'' o que at ento no havia sido percebido por outros. A atividade empresarial pura um processo de descobertas; o papel do empresrio puro estar alerta para perceber oportunidades que at ento passavam despercebidas. Descobrir oportunidades inex-ploradas exige um estado de alerta (alertness). A economizao e a otimizao, por si mesmas, no so capazes de gerar essa desco-berta. A atividade economizadora s pode "deduzir" melhoramentos que esto implcitos no conhecimento existente, mas no lhe possvel "descobrir" porque, por definio, a descoberta no est implcita no conhecimento existente.

    O que gera oportunidades de lucro empresarial puro a imperfeio do conhecimento existente entre os participantes no mercado. O processo gerador de lucro , portanto, um processo de correo da ignorncia dos participantes no mercado. um processo de remoo da ignorncia. Depois de feita a descoberta, a competi-o e a atividade economizadora faro o seu papel de reduzir o custo.

    A descoberta de uma oportunidade de lucro representa a descoberta de alguma coisa obtenvel em troca de nada; algo obtido depois de pagos todos os custos. Ou seja, o lucro puro tem custo zero. O lucro puro gerado ex-nihif, criado a partir do nada. O valor assim gerado corresponde a uma verdadeira criao.

    O processo de descobertas a que nos referimos no apenas, e nem principalmente, a descoberta daquilo que queremos descobrir. Se sabemos o que queremos descobrir, o problema situa-se mais adequadamente no campo da pesquisa. Pode ser resolvido com uma atuao competente e dedicada de um pesquisador ou de um cien-tista. A descoberta que especfica da funo empresarial a descoberta daquilo que sequer imaginamos poder descobrir. tudo aquilo que nem sabemos que pode existir e, portanto, aquilo que nem sentimos falta quando no temos. H dez anos ningum sentia falta do fax; hoje ningum consegue viver sem ele.

    Analogamente, a ignorncia a ser removida pela funo em-presarial no apenas, e nem principalmente, a ignorncia daquilo que algum no sabe e sabe que no sabe. Muito mais importante a remoo da ignorncia daquilo que no sabemos e no sabemos

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  • que no sabemos. a ignorncia absoluta. Ignorncia absoluta aquela que no podemos superar quaisquer que sejam os meios empregados- com a mais diligente das pesquisas porque ignoramos qual seja a nossa prpria ignorncia. Esse tipo de ignorncia s pode ser superado atravs do processo de descobertas inerente funo empresarial e economia de mercado.

    Ao restringirmos a liberdade de entrada no mercado, ao inibir-mos a atividade empresarial estamos restringindo, limitando, a remo-o de nossa ignorncia e, portanto, a correo dos erros que cometemos em virtudes de nossa ignorncia. o que no sei se melhor ou pior, podemos ser felizes porque ignoramos a nossa prpria ignorncia e no percebemos os nossos erros. S no pode-mos deixar de sofrer as inevitveis conseqncias; e geralmente atribu-las a falsos culpados. Por ignorncia.

    Sem dvida alguma, com o conhecimento tecnolgico existen-te e o capital j acumulado poderia qer produzida uma infinidade de novos bens ou poderiam ser substancialmente melhorados os que j so habitualmente produzidos. A questo reside em saber qual o conjunto de bens que deve ser produzido, com o capital e o know-how j existentes, de forma a se obter a maior satisfao possvel. Ou seja, como devem ser alocados os fatores de produo, de forma a atender s necessidades que o consumidor, a seu juzo, considera mais urgentes. A funo empresarial consiste exatamente em, valendo-se das informaes transmitidas pelo mercado - os preos e das conseqentes possibilidades de lucro, "descobrir" qual o conjunto de bens, entre todos aqueles cuja produo tecnicamente possvel, que propicia a maior satisfao possvel, que atende s necessidades mais urgentes dos consumidores.

    A competio

    Mas, ainda que desejveis, ainda que frutos do processo de descoberta, no se imagine que os lucros sero altos ou que perma-necero altos. Havendo liberdade de entrada no mercado, quanto maior a possibilidade de lucro, maior o estmulo para que novos

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    empresrios passem a produzir aquele produto to desejado e que enseja tantos lucros. Havendo liberdade de entrada no mercado inevitvel que haja competio. Quanto maior a liberdade de entrada, maior a competio e, como conseqncia, maior a correspondente reduo dos preos e dos lucros. Se a competio for limitada apenas s fronteiras nacionais, seus efeitos sero benficos; se for ampliada para prevalecer entre um grupo de pases, seus efeitos sero melho-res ainda; se for estendida a todo o planeta, seus efeitos sero o mximo que o homem pode almejar nas condies vigentes de conhec}mento tecnolgico e de disponibilidade de capital.

    E exatamente por isso que uma das mais importantes funes do Estado assegurar a liberdade de entrada no mercado, de forma a possibilitar a maior competio possvel. Lamentavelmente, em vez disso, no caso brasileiro, o Estado promove a reserva de mercado, o protecionismo, a carta patente, privando assim os indivduos, os consumidores, dos benefcios que a competio ensejaria.

    A palavra competio evoca alguma confuso. H quem con-sidere discutveis as suas vantagens. A habitual condenao do que se convencionou denominar de "capitalismo selvagem" um bom exemplo disso. A competio freqentemente obriga empresrios a fecharem suas fbricas e a despedirem seus empregados; claro que isso s ocorre em virtude de outros empresrios terem construdo novas fbricas e contratado outros operrios. Foi Schumpeter quem cunhou a expresso "destruio criativa" (creative destruction) [58, p.11 O] para designar esse fenmeno. O surgimento, no incio do sculo, da indstria automobilstica "destruiu" a indstria de carrua-gens e arreios e a atividade de criao de cavalos de trao, que empregavam centenas de milhares de pessoas e vultosos capitais. No se pode negar que a humanidade se beneficiou extraordinaria-mente dessa "destruio". Entretanto, nos dias de hoje no so poucos os que, em nome de uma "manuteno do emprego", pro-pem, numa atitude bastante consetVadora, que se mantenha, via concesso de privilgios, indstrias menos eficientes, quando no obsoletas, evitando a sua substituio por outras que atenderiam melhor os interesses dos consumidores.

    A competio social no um fenmeno restrito aos empres-

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  • rios que visam a obter lucros. inconcebvel qualquer forma de organizao social em que no haja competio. Se quisermos imaginar uma sociedade em que no haja competio, teremos de imaginar um sistema totalitrio em que o chefe supremo, que deter-mina a posio de cada pessoa no contexto social, no exerccio de sua tarefa, no seja de forma alguma influenciado pela ambio ou pelo desejo de seus subordinados. Os indivduos seriam indiferentes ao seu destino. Se as pessoas agissem dessa forma, j no seriam seres humanos.

    Convm lembrar que a competio empresarial um fenme-no dos ltimos duzentos anos. At o final do sculo XVIII, cabia ao monarca distribuir os produtores por rea e por atividade, com o objetivo precpuo de evitar a competio.

    O razovel nvel de competio que prevaleceu em parte do mundo ocidental (embora com altos e baixos em alguns pases) foi responsvel pela contnua queda nos preos reais das mercadorias nos ltimos duzentos anos. Essa contnua queda dos preos no bem percebida em virtude de os preos nominais sofrerem os efeitos da inflao que tem estado presente mesmo nos pases mais desen-volvidos, sobretudo nesse sculo, aps a Primeira Guerra Mundial. O fenmeno melhor percebido se considerarmos que os processos tecnolgicos consomem, por unidade produzida, cada vez menos ao, chumbo, cobre, energia, mo-de-obra, combustvel. At mesmo a vantagem comparativa dos pases subdesenvolvidos nos setores que empregam muita mo-de-obra, em virtude de seus salrios bem menores, est sendo grandemente diminuda pela crescente aplica-o da informtica e da robotizao, o que provavelmente aumentar ainda mais o gap econmico existente entre o Primeiro e o Terceiro mundos.

    Essa notvel reduo de custos e de preos