o projeto franciscano de vida / frei aldir crocoli, ofmcap

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O Projeto Franciscano de Vida Frei Aldir Crocoli, Capuchinho Introduzindo Para começar, uma breve palavra sobre “projeto de vida” e sobre métodos de leitura. Poderá ser útil, e não só em função deste ensaio. Somos pessoas e também congregações com projeto de vida. Toda a pessoa ao tomar consciência de sua existência já se sente em pleno vôo, “pro-jetada para o futuro” (de: pro + jactum impulso). Sente-se “acondicionada” nesta viagem, embora muitas vezes não saiba para onde vai. Foram as condições: as qualidades e dons, os contextos psicológicos, familiares e sociais, etc. Esta carga (ou carcaça) é irrenunciável. O êxito está em assumir com responsabilidade, identificar-se (ajustar-se) com ela, ir aprimorando o que é possível, dentro da especificidade de cada qual. Toda a Ordem ou Congregação da mesma forma: foi criada por Deus como um “projeto de vida”. Brotou também dentro de uma determinada realidade que lhe imprimiu uma face irrepetível. No Caso da Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria Auxiliadora, podem estar aí duas vertentes: a Franciscana, anterior e mais geral, e a de Missionárias de Maria Auxiliadora, como especificação da primeira. Ambas vertentes necessitam ser “conhecidas” em detalhes para poder dar-lhes desenvolvimento adequado e pleno. Pela minha experiência, parece-me que a vertente franciscana ainda carece de melhor conhecimento. Vivemos atualmente um momento embora difícil muito bonito. Temos condições de olhar com atenção para as nossas origens com muito maiores e melhores recursos que no passado. Faz apenas um século que se começou uma investigação científica das nossas fontes. Até então se fazia uma leitura mais ou menos fundamentalista. A leitura mais científica trouxe à tona uma série de novidades ainda de difícil assimilação porque se chocam com a carga histórica que se carrega imperceptivelmente. Dentre as fontes franciscanas, a mais rica e credenciada para nos revelar o projeto de vida original sem sombra de dúvida é a impropriamente chamada “Regra não Bulada”, objeto de nosso estudo, ao menos neste primeiro momento da caminhada. Agora uma breve palavra também sobre método de leitura. Para uma metodologia mais aprimorada de leitura importa ter presente, além das diversas formas em que Francisco pode ser considerado autor, critérios mais científicos. A esses, sempre convém explicitá-los, pois na maioria das vezes são usados inconscientemente, quando acabam, geralmente, reproduzindo o status quo da compreensão tradicional ou, então, distorcendo a análise. Geralmente os textos são lidos dentro de uma compreensão fundamentalista, mesmo por pessoas com certo grau de cultura acadêmica. Segundo essa metodologia de leitura, os textos são vistos como meteoros: surgem abruptamente, sem saber de onde, nem porquê. Não é levado em conta seu ambiente social, histórico, cultural, existencial... O texto é visto sem contexto. Nem se levanta suspeita sobre as condições

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O projeto franciscano de vida / Frei Aldir Crocoli, OFMcap Extraído de http://www.franciscanasmma.com.br/uploads/files/projetodeVida%20MovimentoFranciscano_freiAldir.pdf acesso em 14 jun. 2011.

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Page 1: O projeto franciscano de vida / Frei Aldir Crocoli, OFMcap

O Projeto Franciscano de Vida Frei Aldir Crocoli, Capuchinho

Introduzindo

Para começar, uma breve palavra sobre “projeto de vida” e sobre métodos de

leitura. Poderá ser útil, e não só em função deste ensaio.

Somos pessoas e também congregações com projeto de vida. Toda a pessoa ao

tomar consciência de sua existência já se sente em pleno vôo, “pro-jetada para o futuro”

(de: pro + jactum – impulso). Sente-se “acondicionada” nesta viagem, embora muitas

vezes não saiba para onde vai. Foram as condições: as qualidades e dons, os contextos

psicológicos, familiares e sociais, etc. Esta carga (ou carcaça) é irrenunciável. O êxito

está em assumir com responsabilidade, identificar-se (ajustar-se) com ela, ir

aprimorando o que é possível, dentro da especificidade de cada qual.

Toda a Ordem ou Congregação da mesma forma: foi criada por Deus como um

“projeto de vida”. Brotou também dentro de uma determinada realidade que lhe

imprimiu uma face irrepetível. No Caso da Congregação das Irmãs Franciscanas

Missionárias de Maria Auxiliadora, podem estar aí duas vertentes: a Franciscana,

anterior e mais geral, e a de Missionárias de Maria Auxiliadora, como especificação da

primeira. Ambas vertentes necessitam ser “conhecidas” em detalhes para poder dar-lhes

desenvolvimento adequado e pleno.

Pela minha experiência, parece-me que a vertente franciscana ainda carece de

melhor conhecimento. Vivemos atualmente um momento – embora difícil – muito

bonito. Temos condições de olhar com atenção para as nossas origens com muito

maiores e melhores recursos que no passado. Faz apenas um século que se começou

uma investigação científica das nossas fontes. Até então se fazia uma leitura mais ou

menos fundamentalista. A leitura mais científica trouxe à tona uma série de novidades

ainda de difícil assimilação porque se chocam com a carga histórica que se carrega

imperceptivelmente.

Dentre as fontes franciscanas, a mais rica e credenciada para nos revelar o

projeto de vida original sem sombra de dúvida é a impropriamente chamada “Regra não

Bulada”, objeto de nosso estudo, ao menos neste primeiro momento da caminhada.

Agora uma breve palavra também sobre método de leitura. Para uma metodologia

mais aprimorada de leitura importa ter presente, além das diversas formas em que

Francisco pode ser considerado autor, critérios mais científicos. A esses, sempre

convém explicitá-los, pois na maioria das vezes são usados inconscientemente, quando

acabam, geralmente, reproduzindo o status quo da compreensão tradicional ou, então,

distorcendo a análise.

Geralmente os textos são lidos dentro de uma compreensão fundamentalista,

mesmo por pessoas com certo grau de cultura acadêmica. Segundo essa metodologia de

leitura, os textos são vistos como meteoros: surgem abruptamente, sem saber de onde,

nem porquê. Não é levado em conta seu ambiente social, histórico, cultural,

existencial... O texto é visto sem contexto. Nem se levanta suspeita sobre as condições

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Projeto Franciscano de Vida 2

do autor do texto. Já na antiguidade da Igreja, ao menos na bíblia, se considerava a

“leitura alegórica”, quer dizer, sabia-se que muitas vezes não é o sentido das palavras

que é o decisivo, mas sim a realidade a que as palavras apontam.

Em meados do século XIX começou-se a empregar o método (nas suas diversas

variantes) histórico-crítico. Significou um grande avanço, pois por ele foi possível

estabelecer critérios fidelidade ao original, perceber as influências e alterações

posteriores. Foi possível captar o Sitz im Leben (contexto de origem) de cada parágrafo,

etc. Geralmente, se observam três aspectos neste método: o texto, o pré-texto e o

contexto. Para estes dois últimos aspectos são necessárias informações que não se

encontram no texto de modo muito explícito. Significou um grande avanço na ciência

bíblica, sobretudo. Atualmente não se concebe uma exegese sem o método histórico-

crítico. Porém costuma ser complementado por outros métodos de caráter mais

sociológico e existencial-religioso. Sua deficiência reside na compreensão de história,

geralmente vista muito retilínea, transparente e pouco dialética.

Os métodos sociológicos (são muitos) aportam essa contribuição de que os

métodos histórico-críticos carecem. Entendem todo o texto como fruto de um contexto,

onde interagem muitos protagonistas. É fruto da correlação de forças sociais. Daí ser

necessário também identificar as forças (pessoas, grupos hegemônicos ou minorias) e

as reações que despertam nas demais pessoas ou grupos.

Os métodos sociológicos também ajudam a perceber as várias dimensões da

realidade humana. O método mais simplificado talvez seja o de ver a realidade desde os

quatro lados básicos da vida humana: econômico, social, político e ideológico. Cada

um destes pode ser subdividido. Especialmente o ideológico, por ser amplo demais e

funcionar como o coberto de uma casa: ele dá a sensação de segurança estrutural. Já o

político e o social apontam para as relações entre os integrantes de um grupo, sejam

estas afetivo-sentimentais, sejam relações de poder.

Um jeito (método) simples para nós que ajuda a fugir de uma leitura

fundamentalista é simplesmente fazer-se algumas perguntinhas antes de começar a

análise: quando foi escrito (identificar aí o contexto histórico do grupo, da Igreja, da

sociedade); por que se escreveu este texto (qual é a situação que provocou essa reação

do autor); e o que se passava com o autor naquele momento (contexto pessoal).

Há ainda outro dado importante para uma correta compreensão de um texto:

saber desde onde se lê, isto é, a partir de que lugar social, com o olhar de quem se

investiga a realidade. Importa lembrar que jamais existe uma leitura neutra. Todo o

conteúdo recebe a forma do continente. Certas dimensões do conteúdo apenas quem

vive a experiência poderá perceber. É o que acontece também com a teologia e com a

Bíblia. Carlos Mesters diz que “o que mais ajuda a compreensão de um texto é o lugar

onde pisam os pés”. A realidade que os pés pisam, em meio a que realidade

perambulam, que direção seguem etc, tudo isso faz enxergar coisas diferentes. Muitas

vezes, então, é preciso descontruir toda uma compreensão para poder alcançar o

provável conteúdo que o autor desejava transmitir. Às vezes isso “escandaliza” e gera

muita dor. “Pensar dói”.

É sabido que Francisco de Assis, desde muito cedo na história, quando ainda ele

vivia, foi mitologizado (e santificado). Com isso lhe foram cortadas muitas das

incidências proféticas de seus escritos, sobretudo as de sentido mais sócio-histórico,

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Projeto Franciscano de Vida 3

ficando tão somente com seus aportes enquanto peregrino da santidade (segundo a

visão medieval de santidade). Não por maldade de ninguém, e sim simplesmente

porque a compreensão hegemônica tinha esse formato.

1 História da Regra não Bulada

A Regra não Bulada é, segundo David Flood, o texto mais importante e mais

rico do movimento franciscano por carregar consigo uma história coletiva de 12 anos.

Conhecendo a ele, conhece-se, além de Francisco, o espírito que animava o movimento

na primeira década de existência. Se olharmos para as fontes, encontraremos muitas (e

quase só) referências a Francisco como autor da Regra não Bulada. Provavelmente se

deva ao fato de querer dar-lhe maior peso e importância para os seus seguidores. No

entanto, dispomos de algumas informações que são irrefutáveis e nos revelam com

segurança que a história deste texto é bem diferente, muito mais rica e significativa. Na

realidade, foi um texto construído a muitas mãos, onde certamente Francisco tinha

grande peso, mas não era o único a pensar e decidir. Alguém disse, com muita

propriedade, que o movimento franciscano foi uma espécie de “Assembléia Constituinte

Permanente” durante a primeira década de existência. O resultado de todo esse

trabalhado é chamado por D. Flood de “Documento-Base” do movimento franciscano.

Os primeiros estudos mais específicos deste texto datam de 1973. Um grupo de

estudos coordenados por David Flood, Willibrord van Dijk e Thaddée Matura publicou

“La naissence d’un Charisme”, o nascimento de um carisma. Exatamente uma década

mais tarde, D. Flood publica “Frère François et le mouvement franciscain” (Frei

Francisco e o Movimento Franciscano). Para esse estudioso, opinião atualmente

consensual entre os estudiosos, a Regra não Bulada de São Francisco, erroneamente

chamada de Primeira Regra, acompanhou o desenvolvimento do movimento.

Inicialmente era pequena. Foi chamada de “proto-regra”. Tomás de Celano diz que

“Francisco escreveu para si e para seus irmãos presentes e futuros, de maneira simples e

com poucas palavras (grifo nosso), uma forma e regra de vida, utilizando

principalmente palavras do santo Evangelho, a cuja perfeição unicamente aspirava. E

inseriu poucas outras coisas que eram absolutamente necessárias para a prática do santo

modo de viver” (1Cel 32, 1-2).

Convém recordar desde logo que originalmente esta Regra não tinha subdivisão

em Capítulos e versículos. Nem havia título para cada capítulo. Muitos deles, aliás, são

incorretos ou parciais. Como estão hoje pode-se dizer que mais prejudicam do que

favorecem. Alguns acabam deslocando a atenção para aspectos que não são os

(originalmente) prioritários, como é o caso já do capítulo 1º, mas também o sétimo, o

nono, o décimo sétimo, o vigésimo segundo, etc. Supõem alguns estudiosos que sua

introdução tenha sido obra de um funcionário da Cúria romana, quando recebeu as duas

cópias (a Regra nova - que viria a ser Bulada – e a versão anterior – esta aqui).

1.1 Uma obra coletiva.

Não obstante os biógrafos dizerem que a Regra é obra de Francisco, os

estudiosos se deram conta de que, na prática, é obra a muitas mãos. Para nos confirmar

nisso, além de análise interna do texto, encontramos nas fontes dois argumentos muito

fortes. Em primeiro lugar a de um bispo que conheceu o movimento franciscano de

perto e que não tinha interesse em dar autoridade a Francisco diante dos seus

companheiros. Trata-se de Jacques de Vitry. Numa carta escrita em Gênova, em outubro

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Projeto Franciscano de Vida 4

de 1216, retornando de Perúgia onde se fizera ordenar bispo pelo papa Honório III,

falando dos frades que conheceu na Úmbria, dizia: “Uma vez por ano, os homens desta

Religião, com múltiplos proveitos, se reúnem em um lugar determinado para juntos

alegrarem-se no Senhor e para comerem juntos; e com o conselho de homens bons

elaboram e promulgam suas instituições santas, que depois eram confirmadas pelo

papa” (FF p. 1422). Num outro escrito “História Ocidental”, escrito por volta de 1222,

torna a escrever: “Uma ou duas vezes por ano, num tempo estabelecido, eles se reúnem

num lugar determinado para celebrar o Capítulo Geral, exceção feita àqueles que estão

separados por excessiva distância das regiões ou por interposição do mar” (FF p. 1425).

Era nestes capítulos que iam elaborando o texto da Regra, ano após ano, sempre

intercalando novos textos, conforme a necessidade.

Mas claro se torna o processo quando olhamos para um testemunho do próprio

Francisco. Encontramo-lo na “Carta a um Ministro”. Nela, depois de dizer ao ministro

como deve proceder com um frade mal comportando, escreve propondo um modo de

como se poderia estabelecer uma norma orientativa nestes casos (vv 13-20). E

acrescenta: “para que este escrito seja mais bem observado, peço que o guardes contigo

até Pentecostes (Capítulo Geral); lá estarás com teus irmãos. E, com a ajuda do Senhor

Deus, cuidarás de completar estar e todas as outras coisas que estão faltando na regra”

(v. 21). Se examinarmos na Regra o texto sugerido por Francisco para ser inserido, o

encontramos muito alterado (Ver cap 5, 5-6; e cap 12). Este testemunho, datado de

1220, é decisivo, porque relatado pelo próprio Francisco. Que ele tenha sido (mais ou

menos) forçado a proceder diversamente depois desta data é possível. Mas este era seu

método, pois até o Testamento foi corrigido mais de uma vez por Francisco a conselho

de alguns confrades (CA 57, 17; etc....).

1.2 Seu desenvolvimento.

Nos primórdios, em 1209, a proto-regra teria consistido praticamente nos

capítulos primeiro (a grande opção de vida: o seguimento de Cristo), parte do sétimo (a

vida cotidiana) e décimo quarto (a missão, isto é, o modo de ser no mundo). Depois,

conforme as circunstâncias encontradas na caminhada da vida, iam sendo debatidos os

desafios emergentes e estabeleciam-se novas orientações, anexando-as ao texto anterior,

a cada ano, sucessivamente, sem nunca subtrair o que já havia sido estabelecido. Desse

modo o texto foi crescendo conforme exigiam as novas necessidades, tanto internas

quanto externas ao movimento. Como o texto não tinha capítulos, as emendas iam

sendo inseridas próximas aos textos que tratavam do mesmo tema.

Pode-se dizer que o desenvolvimento da RnB teria acontecido como resposta a

três tipos de premências: a necessidade de aprofundamento das opções já assumidas,

uma vez que as circunstâncias mudavam e que ingressavam novos componentes no

movimento sem a experiência dos primórdios; a inserção de proibições para salvar os

valores originais, pois já não era possível debater com todos o que convinha ou não

fazer; e, por fim, a adequação às normas e orientações eclesiásticas, sobretudo às

decisões do Concílio de Latrão, de novembro de 1215. Vejamos com um pouco mais de

detalhes.

a) O aprofundamento se deu diante das necessidades provindas sobretudo da parte dos

novos ingressantes. Por exemplo: no capítulo sétimo se estabelecera que “todos os que

se aproximassem, fossem amigos ou adversários, ladrões ou bandidos, deveriam ser

acolhidos benignamente”. Quando, uns anos mais tarde, com o ingresso de pessoas de

classe mais nobre e motivados pela fama que o movimento começava a ter, surgiu forte

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Projeto Franciscano de Vida 5

a necessidade de aclarar o tipo de comprometimento dos frades com os pobres em

geral. Acolher é bom. Mas precisa fazer mais por eles. A fraternidade resulta de um

amor concretizado num trabalho de libertação e promoção. Por isso, em torno de 1214,

num capítulo de Pentecostes, se elaborou o atual capítulo 9 dessa regra. Outro exemplo

são os versículos 9-11 de capítulo 7 que tratam do trabalho. Se anteriormente (vv. 3-8)

se insistia na opção pelo trabalho manual, agora já se explicitará a necessidade que este

trabalho seja ao mesmo tempo promocional/libertador. E assim por diante.

b) Às vezes questões eram estudadas e delas eram tiradas proibições com o objetivo de

preservar o carisma. Por exemplo: os frades optaram por ser menores, viver na exclusão.

Ora, lá pelas tantas, por influência de sua vida, parecida com a de outros grupos laicais

como os humilhados, os frades começaram a ser solicitados a tomar a direção

econômico-administrativa de instituições públicas ou de caridade como hospitais, etc. A

questão foi debatida e a decisão, proibindo-se ocupar tais postos, resultou numa decisão

negativa, inserida nos versículos 1-2 do sétimo capítulo. O mesmo princípio pode ser

aplicado à proibição de andar a cavalo, no capítulo 15.

c) Por fim, a mesma coisa aconteceu em relação às adequações às normas eclesiais.

Por exemplo: a Igreja institucional era extremamente cuidadosa com o direito de

pregação. Grupos de leigos reivindicavam esse direito. Para preservá-lo minimamente

Igreja prescreveu o que os leigos poderiam dizer e o que não poderiam abordar. Os

frades se adequam inserindo na regra um exemplo de pregação laical que todos

poderiam fazer (cap. 21). Idem com relação à confissão e comunhão eucarística, aos

capítulos gerais, etc.

Reg

ra n

ão

Bu

lada

de

S.

Fra

nci

sco

1209-

1210

1211-1212 1213-

1214

1215-1216 1217-1218 1219-1220 1221-1222

Opçã

o f

un

dam

enta

l C

ap.

I

Cap.

2,14-15:

vestir

como

pobre

Cap. 3 –

oração

comunitária

e jejum

Cap. 20 –

Confissão e

Eucaristia

Cap. 6 -

Vigilância

e

entreajuda

Cap. 22 –

iIentificação

com Cristo;

Cap. 2 –

Ano de

noviciado;

Cap. 1,1b –

Os 3 Votos

Cap. 23 – A

grande

proclamação

Cap. 24 –

conclusão

geral.

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Projeto Franciscano de Vida 6

Vid

a co

tid

ian

a C

ap.

7,

3-9

.13-1

6

Cap.7,10-

12

Trabalho

como boa

obra;

Cap 5,9-17

– Relações

igualitárias

Cap 11 –

Relações

fraternas

Cap.8 –

Longe

do $.

Cap. 10

Cuidado

com os

doentes

Cap. 9, 1-9 –

compromisso

com os

excluídos;

Cap. 9,10-16

entre ajuda

recíproca;

Cap. 11 – as

relações

fraternas.

Cap. 7,1-2:

Minoridade

social;

Cap. 12:

precauções

com as

mulheres;

Cap. 13 –

pecado de

sexo;

Cap. 4-

visita de

apoio dos

ministros.

Cap. 5, 1-8-

entre ajuda

fraterna na

opção

assumida

Cap. 18 –

capítulos

provinciais

e gerais;

Mis

são

C

ap.

14

Cap. 15 –

não andar a

cavalo;

Cap. 17 –

viver o

espírito do

Senhor na

contramão

da

sociedade.

Cap. 16 –

missão

entre os

sarracenos;

Cap. 21 –

Exemplo de

pregação

laical;

Cap. 19 –

viver como

católico

Observe-se também que os títulos e capítulos conhecidos atualmente não são originais.

Inicialmente a Regra não Bulada não tinha capítulos nem títulos. Estes teriam sido

acrescentados, dizem, por alguém, mais tarde, influenciado pela mentalidade

hegemônica da Igreja. Note-se que vários títulos se tornam verdadeiros empecilhos para

correta compreensão do texto, por direcionarem a atenção para aspectos de somenos

importância como é o caso dos capítulos primeiro, nono, dezessete, etc.

2 A Opção Fundamental de Vida - RnB 1 1A Regra e vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem propriedade e) seguir a doutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo que diz: 2“Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens e dá aos pobres e terás um tesouro no céu: e vem e segue-me (Mt 19,21) 3E, Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me (Mt 16,24). 4E também: Se alguém quer vir a mim e não odeia pai e mãe e esposa e filhos e irmãos e irmãs e até mesmo a sua vida, não pode ser meu discípulo (Lc 14,26). 5E ainda: Todo aquele que deixar pai ou mãe, irmãos ou irmãs, esposa ou filhos, casas ou campos por causa de mim receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna (Mt 19,29).

2.1 “A Regra e vida destes irmãos é esta” (v. 1º). Aqui os frades estão fazendo uma

equivalência interessante: a “Regra e a vida” destes irmãos. Quer dizer a Regra é a vida

e a vida é a Regra. Não é um amontoado de orientações jurídicas. Nada mais avesso a

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Projeto Franciscano de Vida 7

Francisco que normas jurídicas. Estão dizendo que estes dois substantivos se

equivalem. Tornam assim a vida de Jesus de Nazaré uma Regra (parâmetro). O

conteúdo desta vida é, pois, o seguimento de Jesus Cristo. Ou melhor, a vida de Jesus

Cristo é a regra de viver, o “cânon” da vida, segundo o qual nosso viver se defronta e

confronta. O que vai ser escrito neste texto tem por objetivo explicitar o viver de Jesus

Cristo. Juntos vão tentar captar o “modus procedendi” de Jesus Cristo e fazê-lo próprio.

Aliás, as fontes franciscanas estão repletas de citações de Francisco em que ele se diz

exemplo para os frades ou que ele propõe o exemplo de Jesus Cristo e dos santos para

serem seguidos. A Admoestação VI é o texto de Francisco mais claro neste sentido.

2.2 “A Regra e vida destes irmãos é esta...” Se olharmos para a Regra Bulada

constataremos com clareza o nome que eles se dão: “A Regra e vida dos Frades

Menores é esta” (RB 1,1). Mas aqui, na Regra não Bulada, - o que mostra ser um texto

da primeira hora – eles ainda não têm nome. Os biógrafos nos contam que os

seguidores de Francisco demoraram um bocado para se dar um nome que expressasse

sua identificação com o projeto de vida. Inicialmente, se autodenominaram “Penitentes

de Assis” (LTC 37,7). Este nome não agradou muito por não definir sua identidade cm

maior propriedade. Dizia apenas que pertenciam ao movimento penitencial, muito

difundido e pluriforme naquele momento histórico em que a Igreja institucional, de

modo geral, estava envolvida em conflitos e lutas político-econômicas, quando não

bélicas, e o povo buscava viver o espírito evangélico, segundo sua compreensão. Havia

grupos de “penitentes” por todos os lados, e de todos os modos que se propunha o

“retorno ao Evangelho”. Francisco sente fazer parte deste movimento, mas ao mesmo

tempo sente ter um projeto bem determinado e diferente do deles. Faltava-lhe um nome

adequado.

Bugardo de Ursperg nos informa a existência de um segundo nome: Pobres

Menores. Mas, “percebendo depois que o título de grande humildade sempre traz a

glorificação e que muitos se vangloriavam diante de Deus mais do título da pobreza do

que de sua observância, preferiram chamar-se „Fratres Minores - Frades Menores‟,

obedientes em tudo à sé Apostólica” (FF. p 1432).

A Compilação de Assis nº 101, 13 também nos conta que “foi revelado ao bem-

aventurado Francisco que deveriam chamar-se (Religião dos) Frades Menores”. “O

Senhor quis que se chamassem Frades Menores” (CA 101,9). Percebe-se aqui uma

satisfação com o nome por expressar claramente sua identidade. Em primeiro lugar a

fraternidade num ambiente medieval onde a estratificação piramidal era uma realidade

universal e fazia parte da cultura. O movimento de Francisco quer romper com esta

praxe. Não querem saber de senhores e subalternos (RnB 6), nem pessoas importantes e

pessoas insignificantes entre eles. Querem irmãos, querem ser irmãos menores, irmãos

entre si e irmãos de todos, inclusive daqueles que se sentem excluídos: os leprosos, os

muçulmanos, os identificados como bandidos e maus. A fraternidade começa a partir

de baixo, dos últimos. O nome representa para Francisco uma revelação porque

comporta um programa de vida: ser irmão de todos. Não da boca para fora, mas em

“espírito e verdade”. Tornar possível aos outros nos sentirem como seus irmãos, o que é

possível apenas quando as relações não se calcam nem na posição social e nem no poder

econômico ou político.

2.3 “Seguir a doutrina e as pegadas de NSJC que diz” (v. 1b). O pequeno grupo de

frades, muito espertamente, junta duas palavras: doutrina (ensinamento) e pegadas para

não deixar dúvidas na compreensão. Ocorre que todos os cristãos da Europa de então se

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Projeto Franciscano de Vida 8

diziam seguidores de Jesus Cristo: tanto os pobres dos movimentos penitenciais quanto

os grandes príncipes que promoviam guerras disputando terras para aumentar suas

posses ou as autoridades eclesiásticas, vivendo na maior mordomia possível. Todos

podiam se dizer “cristãos” porque seguiam a “doutrina”, isto é, os ensinamentos de

Jesus conforme sua compreensão e os ensinamentos dos teólogos a respeito de Jesus

Cristo e porque pertenciam oficialmente à instituição Igreja. Isso porque as teorias, as

glosas como as chama Francisco, conseguem justificar qualquer coisa.

Para evitar justificações racionais e para chamar à concretude o seguimento de

Cristo, eles juntam à palavra doutrina o termo “pegadas” da Primeira Carta de Pedro

2,21. Isto é, querem sempre confrontar a teoria cristológica com a prática de Jesus de

Nazaré. Querem estar atentos para observar nos evangelhos os caminhos por onde

passou Jesus, as pessoas que estavam em sua companhia e de quem Ele era amigo, a

proposta de vida que Ele apresentava, a quem Ele defendeu e porque, e a quem Ele

criticou e porque, etc. A prática de Jesus deverá ser seu referencial máximo pela vida

afora. Bastaria isso. Um exemplo muito ilustrativo se encontra na Compilação de Assis

57, 14-15: “E Francisco dizia: O Senhor quando esteve no deserto, onde orou e jejuou

por quarenta dias e quarenta noites, não mandou que aí se construísse cela ou casa

alguma, mas ficou sob uma rocha (gruta) da montanha. E por isso a exemplo de Cristo

ele não queria ter nem mandou que se construísse nem casa nem cela neste mundo”.

Era a justificativa prática para a decisão do movimento não ter residência própria, mas

viver nos “eremitérios”, quer dizer, nos lugares abandonados.

Esta idéia de “seguimento das pegadas de Jesus Cristo” é uma espécie de

constante no pensar de Francisco, pois é encontrada mais 6 vezes nos seus escritos: aqui

RnB 1,1, em Rnb 22,2; na Cara a Frei Leão (Le 3); na Carta a toda a Ordem (Ord 51);

Na II Carta aos Fiéis (2Fi 13) e nos Fragmentos de outra Regra (Fg 1,1).

Outro detalhe interessante que encontramos lendo os escritos de Francisco:

quando faz citações evangélicas ele as faz sempre como se Jesus Cristo estivesse

falando no presente momento. Aqui, por exemplo, neste texto que estamos vendo, Jesus

Cristo “diz”, no presente do indicativo, e não disse, no passado como na leitura do

Evangelho da missa que sempre começa com as palavras “naquele tempo...”. Não é,

pois, uma lembrança longínqua, mas uma ação no presente. Este modo de proceder dá a

entender que para o movimento franciscano, e especialmente para Francisco, as palavras

do evangelho são palavras “diretas” de Jesus Cristo, atualizadas na história. Há uma

relação direta com Jesus Cristo. Juntando esta consciência da ação atual de Jesus e a

decisão de seguir as pegadas pode-se vislumbrar a relevância da pessoa de Jesus Cristo

para Francisco e para o movimento.

2.4 “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro

no céu; e vem e segue-me” (Mt 19,21 – v.2). Com esta citação os frades estão definindo

o modo de seguimento de Jesus Cristo. A primeira condição é o desfazer-se das coisas,

dos bens. Não porque as coisas sejam más (maniqueísmo). Os franciscanos, ao

contrário, têm uma concepção positiva das realidades históricas. Mas elas podem

distrair ou desviar a atenção, podem atrapalhar a caminhada, impedindo que se esteja

empenhado full time com o seguimento, que supõe escuta e contemplação. Quem

desejar subir uma montanha não pode carregar muito peso. Os frades vivem a

consciência de que “não se pode servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo”. Para

facilitar o cumprimento da decisão, valem-se do conselho evangélico. Na prática esta é

uma maneira prática de romper definitivamente com o sistema sociocultural reinante.

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Projeto Franciscano de Vida 9

Mutatis mutandi essa hermenêutica permanece válida para todos os tempos. Porém,

não pode ser colocada como prova de seguimento de Cristo. É importante como

primeira condição, como primeiro passo.

Para a mentalidade medieval, no entanto, a capacidade de liberar-se dos bens

materiais era já sinônimo de conversão. Neste sentido Celano lê o gesto de

desnudamento de Francisco diante de seu pai Pedro Bernardone e do bispo de Assis,

Dom Guido II, como sinal preclaro de conversão, a ponto de cronometrar a vida de

Francisco em base a esta data: “tendo completado 20 anos desde que se uniu da maneira

mais perfeita a Cristo” (despojamento) Francisco entrega sua alma a Deus (1Cel 88,3).

Mas os franciscanos da primeira hora entendem o despojamento das coisas apenas

como o primeiro passo, a primeira condição do seguimento.

2.5 E “Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo e tome a sua cruz e siga-

me” (Mt 16,24 – v.3). São dois aspectos a serem considerados aqui:

a) Renegar-se a si mesmo. Não se trata de autodesprezo como historicamente se

entendia no passado. Deus não quer a auto-anulação de ninguém. Trata-se antes da

renúncia ao projeto egocêntrico de vida, de renunciar ao autocentramento. Seguir a

Cristo é abraçar a causa dele, seu modo de ser, de pensar, de estar presente na

sociedade. É abraçar a dinâmica centrífica, do heterocentramento. É o que diz o próprio

Jesus: “Como podeis crer, vós que buscais a glória uns dos outros e não a de Deus” (Jo

5,44)? Renunciar a si mesmo é colocar os outros, sobretudo os mais ameaçados em sua

vida como centro de sua luta cotidiana.

b) Tomar a cruz: Facilmente se entende a cruz como os problemas pessoais, de nível

psicológico, familiar ou mesmo biológico (defeitos, doenças, etc). Não é que esses não

devam ser contados como cruz, pois são obstáculos difíceis de transpor. Mas isso todas

as pessoas, cristãs ou não, deveriam fazer. Jesus não estaria, neste sentido, pedindo nada

de novo. Trata-se, por isso, de outra dimensão. Tomar a cruz é tomar ou assumir sua

responsabilidade sócio-eclesial de cidadão do mundo e membro da Igreja, que pode ter

no horizonte a própria crucificação (morte). Na prática vivemos muito em função de

nossos pequenos interesses pessoais. O seguidor de Jesus Cristo é convidado a abrir os

olhos para a realidade mais ampla: aquela do povo, do povo de Deus. Aliás, só é

possível renegar a si mesmo quando se assume a “cruz” dos outros. Trata-se de

substituição de eixos e não de deixar vazios existenciais. É um redirecionamento das

energias e investimentos existenciais.

Então sim é possível o seguimento, palavra que precede e que (pro)ssegue os

dois aspectos mencionados – renegar-se e tomar a cruz. O seguimento nesta dimensão é

mais exigente que na dimensão anterior, pois implica renunciar à autoprojeção social, à

fama, ao status social, ao ser bem-visto pela sociedade. E como dizia um capuchinho

falecido no final do século passado (Lázaro Iriarte): é muito mais exigente viver sem

prestígio, no anonimato (excluído) do que sem dinheiro.

Observe-se que esta condição que o movimento franciscano se coloca atinge em

cheio a luta pela autopresevação, a busca de sobrevivência, presente em todos os seres

vivos, e como tal positiva. Dom Ângelo Salvador dizia certa vez que ser cristão é

assumir, em certo sentido, um modo de ser anti-humano. Jesus é o exemplo de pessoa

cujo centro de interesses não era sua pessoa, nem seus gostos, mas sim a causa dos

outros e a causa do Pai. A maior prova desta atitude é sua morte na cruz, por isso,

coroada pela ressurreição.

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Projeto Franciscano de Vida 10

2.6 E também: “Se alguém quer vir a mim e não odeia seu pai e mãe e esposa e filhos

e irmãos e irmãs e até mesmo a sua vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26 – v.4).

Depois de desfazer-se dos bens (a), depois de desfazer-se do projeto pessoal em favor

do projeto do bem dos outros (= comunitário) (b), vem a terceira exigência: dispensar a

segurança afetiva dos familiares. No tempo de Jesus a família conferia, além da

identidade, segurança contra o abandono, segurança na doença, respaldo ao bom nome,

apoio afetivo, etc. Um membro da família não tinha autonomia para fazer qualquer

coisa, pois precisava dar continuidade à sua tradição, manter seu bom nome, etc. Todos

esses aspectos podem representar um grave perigo ao fiel seguimento de Jesus Cristo,

cuja causa muitas vezes levará a conflitos de interesse mesmo entre os membros da

mesma família. Por isso a família precisa ser “relativizada” enquanto ela não pode se

constituir em empecilho para dar os passos necessários no seguimento de Cristo. Esse

“odiar” do evangelho significa pôr em segundo plano, não assumir como critério

decisivo para minhas opções profundas o apoio dos familiares.

Os frades tinham por experiência que o seguimento mais radical de Jesus Cristo,

a começar pela primeira condição de desprender-se dos bens, não é um dado

pacificamente aceito pelos familiares. Pior ainda quando se compreende que é

necessário fazer também uma passagem para a exclusão social. A família se sente

desonrada com o gesto. Assim aconteceu com Francisco e com Clara de Assis.

2.7 “E ainda: „Todo aquele que deixar pai ou mãe, irmãos ou irmãs, esposa ou filhos,

casa ou campos por causa de mim receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna‟” (Mt

19,29). Os frades menores concluem o texto da “opção fundamental” com um olhar para

frente, ao futuro. Não se envereda por este caminho para levar uma vida morti-ficada,

para fazer sacrifícios porque os prazeres do mundo são maus. Envereda-se antes por este

itinerário para ir mais longe na realização humana profunda, para lhe conferir maior

plenitude. Vai-se por esta senda porque é o caminho mais garantido de viver “de modo

intenso e comunitariamente” a paz como soma de todos os bens. No horizonte não está

uma vida de penitência, mas antes uma plenificação e a ressurreição. Este modo de

viver foi o de Jesus Cristo que culminou sua caminhada como ressuscitado/exaltado.

É um versículo bíblico incluído aí com o objetivo de chamar a atenção para o

horizonte maior. Prender-se às condições de caminhada sem olhar para o que aguarda

no final não é nada alentador. Há uma sabedoria de quem já experimentou esse

cêntuplo...

2.8 A origem desses versículos e ênfase. Convém, por fim, recordar que as primeiras

duas citações evangélicas não foram inventadas ou colocadas casualmente no texto. Elas

surgiram por uma espécie de “revelação” quando, uns dois anos antes, Francisco, Pedro

Cattani e Bernardo de Quintavalle foram “consultar o Senhor” com a tríplice abertura

do evangelho na igreja são Nicolau (AP 4-5 ; LTC 28,6). - (A terceira citação será

inserida no atual capítulo 14 da Regra não Bulada.) - Isso que dizer que as presentes

citações eram revestidas de uma forte carga religioso-emocional, pois tinham sido luz

naquele momento fundacional. A nosso modo de ver, os frades devem ter meditado

longamente sobre elas e percebido que expressavam com precisão o que eles desejavam

viver, a tal ponto que dizem “Eis o que desejávamos, eis o que procurávamos”. Ao que

acrescenta Francisco: “Esta será a nossa Regra” (AP, 11, 4-5).

Martinho Conti, em a “Leitura Bíblica da Regra”, entende que a Regra é a

implementação da descoberta missionária de Francisco feita na escuta do evangelho de

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Projeto Franciscano de Vida 11

Mateus (e/ou Lucas 9/10) quando Jesus envia os discípulos em missão. Segue, neste

aspecto, a Celano e Boaventura. Talvez tenha parcela de razão. Mas o certo é que a

opção feita pelos frades no primeiro momento é, acima de tudo, uma opção pelo

seguimento de Jesus. Aqui são colocadas frases que tratam do seguimento, do modo de

seguir, muito mais do que descrever a tarefa que deveriam desempenhar, mesmo se

ambos os aspectos são inerentes e complementares. Trata-se apenas de ênfase. Quem

entende que a missão é decisiva pode justificar o modo de seguimento. Ao passo que o

contrário é impraticável. O Documento de Aparecida parece dar razão ao Movimento

Franciscano quando deseja que os cristãos sejam “discípulos missionários”.

2.9 Seguimento e exclusão. Não resta dúvida que a razão principal desta opção é a

vivência do evangelho. Porém, porque, diferentemente de todos os demais santos, os

franciscanos escolhem esta articulação de idéias para concretizar o seguimento de

Jesus? No passado sua escolha sempre foi entendida como opção pela pobreza. Raul

Manselli e na sequência dele muitos outros (Miccoli, Ciceri, Accrocca...), porém, se

deram conta que o Testamento de Francisco ajuda a compreender a Regra. E no

Testamento, Francisco traduz a opção evangélica em termos de opção pelos excluídos,

mais concretamente pelos leprosos, e não pela pobreza. É muito diferente optar pela

pobreza que optar pelos pobres.

Optar pelos pobres é optar pela liminaridade social. É viver o Evangelho na

contramão da história, desde a margem e não desde o centro da instituição e do poder.

Escolhendo estes versículos evangélicos como portadores do modo de seguimento do

evangelho, os frades querem expressar uma passagem para a margem da sociedade. A

informação da Compilação de Assis 9, 2-3 (LP 102) de que Francisco desejava ver

todos os frades ao serviço dos leprosos e de que os noviços viviam seu período de teste

vocacional entre estes excluídos pode ser aceita como muito provável e comprovaria seu

entendimento do seguimento de Cristo.

Se o caminho do cristão consiste em refazer o caminho de Jesus, deve-se

observar que Jesus Cristo viveu toda sua vida, do nascimento “á beira do caminho, em

Belém”(OfP 15,7), até a morte como criminoso político entre malfeitores fora dos

muros de Jerusalém. Ele percorreu um caminho de crescente marginalização do sistema.

Não apenas nunca pertenceu à estrutura do sistema sócio-religioso de então. Foi sendo

cada vez mais perseguido, enxotado e eliminado. O nome de frades menores também

deve ser visto linkado com esta realidade de exclusão social. Por isso, o não ter

propriedades, nem casas, nem status na igreja, nem fama social. Estar aí como um

“irmão menor” que vive solidarizado com os últimos como Jesus Cristo. Eis o projeto-

programa dos frades menores que irá se desenhando com sempre maiores detalhes na

Regra não Bulada.

3 A vida cotidiana dos Irmãos Menores

Uma vez decido o seguimento da “doutrina e das pegadas de nosso Senhor Jesus

Cristo”, os primeiros irmãos, diz poeticamente David Flood, se perguntaram: Onde

vamos almoçar hoje? E esta noite, onde dormiremos? Quer dizer, precisaram ver

formatado o seguimento no cotidiano da vida, em meio aos desafios concretos

prioritários, relativos à sobrevivência. Por isso, passaram de imediato à abordagem

destas questões. Elas se encontram no atual capítulo 7 da RnB, sempre lembrados que

inicialmente a regra não tinha capítulos, menos ainda versículos. Começaremos logo a

olhar com atenção para o texto deste capítulo, ainda que não todo da primeira hora. É

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Projeto Franciscano de Vida 12

um belo exercício para treinar uma leitura crítica, contextuando no ambiente social e

no tempo.

Regra não Bulada 7

1Nenhum irmão, onde quer que esteja para servir ou trabalhar para outrem, jamais seja

capataz, nem administrador, nem exerça cargo de direção na casa em que serve, 2 nem aceite

emprego que possa causar escândalo ou “perder sua alma” (Mc 8,36). 3 Em vez disso, sejam os

menores e submissos a todos os que moram na mesma casa.

4E os irmãos que forem capazes de trabalhar, trabalhem; e exerçam a profissão que

aprenderam, enquanto não prejudicar o bem de sua alma e eles puderem exercê-la

honestamente. 5Porquanto diz o profeta: “Viverás do trabalho de tuas mãos; serás feliz e terás

bem-estar” (Sl 127,2); 6 e o Apóstolo: “Quem não quer trabalhar não coma” (2 Ts 3,10). “Cada

qual permaneça naquele ofício e cargo para o qual foi chamado” (1 Cor 7,24). 7E como

retribuição pelo trabalho podem aceitar todas as coisas de que precisam, exceto dinheiro. 8E, se

for necessário, podem pedir esmola como os outros pobres. E podem ter as ferramentas

necessárias ao seu ofício.

9Todos os irmãos se esforcem seriamente em praticar boas obras, pois está escrito: ”Vê

se estás sempre empenhado em praticar alguma obra boa, para que o diabo te encontre

ocupado”; 10e ainda: ”A ociosidade é inimiga da alma”. 11Por isso os servos de Deus devem estar

sempre entregues à oração ou a qualquer outra boa obra.

12Cuidem os irmãos, onde quer que estejam, nos eremitérios ou em outros lugares,, de

não apropriar-se de qualquer lugar, nem disputá-lo a outrem. 13E todo aquele que deles se

acercar, seja amigo ou adversário, ladrão ou bandido, recebam-no com bondade. 14E onde quer

que estejam os irmãos, e sempre que se encontrarem em algum lugar, devem respeitar-se e

honrar-se espiritual e diligentemente “uns aos outros, sem murmuração” (1 Pd 4,9). 15E

guardem-se os irmãos de se mostrarem em seu exterior como tristes e sombrios hipócritas. 16Mas antes comportem-se como gente que se alegra no Senhor, satisfeitos e amáveis, como

convém.

É certo que, na sua maior parte, este capítulo integrava a assim chamada “proto-

regra”, aquela apresentada, provavelmente, no final de l209, ao Papa Inocêncio III. Mas

depois, por ser um assunto de extrema importância ele foi sendo retomado freqüentes

vezes e, dessa forma, acrescido de inserimentos1. Os estudiosos identificam várias

camadas históricas neste texto. A hipótese mais provável se apresenta, na opinião

daqueles especialistas, dessa maneira:

a) A parte mais original, de l209, seriam os versículos 3 a 9 que expressam o

sentido que o movimento pretende dar ao trabalho e os versículos l3 a l6 que tratam da

vida cotidiana: a moradia e o relacionamento fraterno entre os irmãos e com outras

pessoas.

b) Os versículos 9 a 11 teriam surgido algum tempo depois, entre os anos de

l211 a l212 e querem ser um aprofundamento dos versículos imediatamente anteriores

sobre o sentido do trabalho, fato que os fez inserir imediatamente depois.

c) Por fim, os últimos versículos a serem promulgados foram os dois primeiros.

São bem posteriores. Por volta de l2l5/7. Apresentam-se como um inserimento negativo

com o objetivo de preservar sua proposta de vida.

1Para todo o desenvolvimento da Rnb veja-se a pequena, mas interessantíssima obra de D. FLOOD, W.

VAN DIJK e T. MATURA: La nascita di un carisma. Milano, Bibliot. Francescana Provinziale,

l976.

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Projeto Franciscano de Vida 13

Vejamos agora uma breve análise de cada uma dessas camadas, seguindo a

ordem cronológica de seu surgimento, para mais facilmente acompanhar o

desenvolvimento ideológico, as preocupações existenciais e as motivações evangélicas

que os fizeram emergir. De fato, nenhum texto, especialmente os da RnB, deve ser

considerado desligado do contexto, já que é sempre resposta a um contexto.

3.1 O trabalho braçal faz parte do projeto de Deus

As pessoas cultas da Idade Média viam com desprezo os trabalhos braçais.

Conveniente às pessoas “contemplativas”, que se ocupavam com as coisas de Deus e

àquilo que se refere ao transcendente, são as atividades nobres, as “artes liberais”. Por

isso a sociedade feudal era composta de três classes de pessoas: os oratores (os clérigos

– geralmente os mais cultos), os bellatores (os guerreiros) e os laboratores (os

trabalhadores). A primeira categoria, comparada com as ovelhas, fornece o alimento do

leite e a lã para a roupa. Os guerreiros, quais cães, defendem quer os clérigos quer os

trabalhadores dos lobos que tacam. Na prática estas duas classes, as mais importantes,

se assemelhavam em tudo: no poder econômico e político, no traje, nas relações sociais.

Os clérigos estão acima porque são os intermediários da divindade e numa sociedade

sacral como a da Idade Média, têm a precedência honorífica. Já a grande maioria das

pessoas pertencia aos laboratores, vistos como pessoas de segunda categoria. Seu

envolvimento com as coisas materiais era um empecilho para a contemplação das

realidades transcendentes, finalidade primeira na perspectiva platônica.

As Ordens Religiosas não adotavam o trabalho braçal como parte integrante de

seu carisma. Os próprios beneditinos acabaram formatando um grupo “diferente e

inferior de monges (os conversos) para os trabalhos braçais, inclusive com ofício

diverso, horários diversos, direitos diversos dos monges propriamente ditos que

passavam o dia entre a Capela e o “scriptorium”, onde se copiavam textos, pois não

havia a imprensa. Até meados do século XX nas Ordens Religiosas a ordem de

precedência, em tudo inclusive no refeitório, deixava os religiosos não clérigos depois

do noviço mais novo. É uma herança do que se vivia no passado. Nas igrejas da Idade

Média os trabalhadores braçais não podiam ocupar os bancos. Tinham de resignar-se a

permanecer de pé no fundo da igreja. Basta ver a catedral de Assis. A cena é bem

retratada no filme Irmão Sol, Irmã Lua. Houve um movimento religioso que se destacou

no rompimento desta discriminação: os humilhados. Eles tinham sacerdotes, mas a

grande maioria vivia do trabalho da lã, tecendo roupas para os pobres. Não é nada

impossível que Francisco os tenha conhecido pessoalmente.

A perícope da Regra começa com uma afirmação: os frades querem ser vistos

como trabalhadores: “Os irmãos, enquanto forem capazes de trabalhar, trabalhem”2.

Só é incapaz (a criança – não é o caso deles) o velho e o doente. Estes estão dispensados

e têm o mesmo direito à vida. Com esta afirmação os frades estão se enquadrando entre

a classe dos trabalhadores, daqueles que produzem realmente a comida. Com toda a

certeza sabiam do preconceito que incidia sobre esta classe. Mas é maneira concreta de

ser menor, de situar-se entre os menores, pois o trabalho é a linha divisória das classes.

É importante observar que não se trata apenas de uma opção por ganhar a vida com o

próprio trabalho. Eles escolhem ser trabalhadores, ser catalogados entre os

trabalhadores. A opção por viver dessa maneira irá determinar as demais dimensões da

vida, inclusive o tipo de missão a ser desenvolvida.

2 O texto original latino reza assim: “Et fratres, qui sciunt laborare, laborent et eandem artem...”. A

tradução portuguesa ainda que não literal parece conservar o sentido fiel do texto.

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Projeto Franciscano de Vida 14

E para dar força a esta sua opção são recordadas três citações bíblicas, muito

enfáticas, no sentido se estimular para o trabalho manual. R. Manselli é do parecer de

que os frades constituíam verdadeiras comunidades de trabalhadores3. O sentido do

trabalho é completado com os versículos 6b, 7 e 8. Isto é: trabalha-se porque é desígnio

de Deus, para contribuir com seu gesto criador, para cultivar o jardim terrestre e, sobre-

tudo, como gesto de caridade para com os outros. Não é nem sequer para conseguir seu

sustento e muito menos ainda para acumular riquezas4.

Pode ser devido a esta circunstância que o movimento franciscano escolhe ser

trabalhador e reúna três citações bíblicas, a maior autoridade, para defender sua postura

diante da mentalidade hegemônica. Citam uma vez o Primeiro Testamento e duas vezes

o Novo (Segundo) Testamento. Justificam assim que trabalhar para viver é expressão da

vontade divina. Queriam com isso também contestar a visão dos teólogos e da Igreja de

então?

Há outros aspectos menores, mas interessantes a perceber nestes versículos:

a) A profissão: Os frades entre outras ocupações “serviam os leprosos,

trabalhavam na lavoura, nos trabalhos domésticos, eram lenhadores e hortelãos,

construíam casas, etc5. Permanecer na profissão aprendida, “se não for contra a salvação

da alma e se puderem executá-la honestamente”. Havia uma mentalidade geral na Igreja

de que algumas profissões eram anti-éticas, entre elas mercador, soldado, magarefe,

cambista de dinheiro e outras mais...6. Segundo Manselli, o “comerciante era um

condenado com mínimas chances de salvação, tanto que 1Cel julga a vida de Francisco

na família e na sociedade em base a esta mentalidade de condenação da atividade

mercantil, como atividade pecaminosa e fonte de pecado7. Por onde deveria passar o

critério de honestidade defendido pelos frades? Certamente não pela sujeira que o

trabalho ocasiona e sim pelo “projeto de Deus” que o “inventou” como continuação de

seu gesto de amor, convidando a humanidade a cuidar do jardim da natureza.

b) Exceto dinheiro. Negam-se a comercializar o trabalho e a considerar o

trabalho como meio de ascender socialmente. Em Assis, todos tinham de trabalhar pelo

“engrandecimento da cidade”. Naquele momento histórico o dinheiro era o símbolo

“número um” do acúmulo. Alguns anos mais tarde os frades vão acrescentar o capítulo

VIII, que infelizmente sempre foi entendido apenas no sentido moralístico. Eles só

podiam usar linguagem religiosa, mas a questão não deveria ser vista do ponto de vista

moral e sim sócio-econômico, pois é disso que estão abordando no momento.

c) “Se for necessário podem pedir esmolas como os outros irmãos”. Em

primeiro lugar convém esclarecer o sentido da “esmola”. Se os frades vão pedir

esmolas, “fazem-no por razões econômicas e não por motivos de bom exemplo ou de

3 MANSELLI, R. Francesco. Roma: Bulzoni, l980. P. 264: “Deste texto emerge clara a fisionamia da

fraternidade como uma comunidade de trabalhadores, de preferência, manuais”. 4 Sobre o sentido de trabalho adotado pelo Movimento recomenda-se a obra de FLOOD, D. e

CALOGERAS A. Dalla parte dei poveri. Una introduzione alla vita francescana. Padova:

Messaggero, l992, sobretudo pp. 99 - l20. E o pro-manuscrito "El capítulo sobre el trabajo en la

Regla no-bulada" de Fr. Jerônimo Bórmida. Córdoba, l995. 5 Cfr TEIXEIRA, Celso M. Op. cit. p. l9 6Sobre esta questão veja a obra do especialista da Idade Média LE GOFF, Jacques Mercadores e

banqueiros da Idade Média. Lisboa: Gradiva, pg. 55ss. Também MANSELLI, R. Op. Cit. p. 131. 7 MANSELLI, R. Op. Cit. p. 33.

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Projeto Franciscano de Vida 15

moral”8, como ordinariamente se costuma entender numa leitura ascético-moralista .

Isto é, como a cidade de Assis não reconhecia o serviço aos leprosos e outras atividades

semelhantes como trabalho, poderiam não lhes dar o necessário para viver. Por isso os

frades forçam esta prática da misericórdia como autêntico trabalho pelo qual se tem o

direito de viver. Em segundo lugar, D. Flood levanta o dado histórico de que na Idade

Média o termo eleemosyna designava também a “casa dos pobres”. Podia então se tratar

de sair para socorrer os pobres: “Vadant pro eleemosyna”9. Os frades não estariam

denunciando que o modo de pensar da Igreja em relação ao trabalho era incorreto? Em

terceiro lugar, o texto atual fala “como os outros pobres”. Constata D. Flood que não

existe nenhum argumento em manuscritos para esta tradução. Nos códices mais antigos

encontrava-se originariamente “como os outros irmãos”. No presente caso a alteração

se deu por conta dos copistas, por motivos emotivos: é que já não mais sentiam os

pobres em geral como seus “irmãos” de família, e sim como pessoas carentes das quais

se deve ter compaixão. Por isso a frase se tornava incompreensível. Para adequar o texto

ao modus vivendi alteraram o texto ao invés da vida.

3.2 Ser fermento de fraternidade entre os excluídos Os versículos l2 a l6 referem-se à questão fraterna. Os frades tratam aqui da

convivência social e entre si. Chamam a atenção estes aspectos:

a) Não apropriar-se de lugar. A “não apropriação” está diretamente relacionada

com a convivência social, com a fraternidade com os que estão mais à margem da

sociedade e não, outra vez, com o aspecto moral e ascético, como geralmente se

costuma compreender. Quando o texto fala de eremitérios significa simplesmente

lugares semi-abandonados: igrejas velhas, casas abandonadas, grutas naturais ... e não

conventos retirados da população como logo após passou a ser prática construir e hoje

está em nossas cabeças. Um exemplo de eremitério era a estrebaria de Rivotorto (lCel

44), requisitada para guardar os animais. Quando eles escreveram conheciam bem as

grutas do Monte Subásio onde hoje ainda se podem ver as grutas de Frei Francisco, de

Frei Leão, de Frei Bernardo, etc. A não apropriação está em vista da fraternidade.

Apropriar-se é forma de afastar os demais, levantando uma cerca jurídica que impede o

outro de se aproximar.

b) Nem disputá-lo a outrem. A disputa de que trata aqui é reivindicação jurídica

diante das autoridades. Os frades renunciaram a isso na sua opção de vida de serem

irmãos de todos, conforme o projeto original. Como excluídos voluntários, abdicaram

deste direito.

c) Adversário, ladrão ou bandido. Não se trata de adversários dos frades, e sim

da cidade, que bane os que lhe são indesejáveis, como aconteceu ao próprio Francisco.

A punição para os bandidos e outros malfeitores não costumava ser a prisão quanto a

expulsão, a excomunhão social (aos ladrões inveterados se cortava a mão direita). A

Igreja excomungava do “espaço da salvação” e a sociedade bania do seu “território

geográfico e das relações sociais e econômicas”. Estas pessoas banidas passavam a

viver sem direito algum, nem mesmo o da propriedade. Não tinham aonde ir a não ser

para os bosques. Era o último grau de marginalização, semelhante ao dos leprosos e em

certo sentido mais triste, pois sobre eles pesava a culpa de um mal moral.

8 Ibidem.. p. 55. 9 Cfr FLOOD, D. Frei Francisco e o Movimento... p. 40. MANSELLI, observando desde outro ponto

de vista, sugere que a autorização da esmola revela o desejo de viver a condição de incerteza e

risco como a grande maioria da população citadina, sobretudo os trabalhadores”. Op. Cit p. 264.

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Projeto Franciscano de Vida 16

Assemelhavam-se às bruxas e aos judeus. Em algumas regiões da França eram

conhecidos como “boisilleurs”, isto é, habitantes dos bosques10. A essas pessoas os

frades decidem acolher “benignamente”, partilhando com eles os recursos da vida e

cedendo seu “eremitério”, partindo em busca de outro.

d) Respeitar-se e honrar-se espiritual e diligentemente, não ser um hipócrita,

mas satisfeitos e amáveis, como convém. Trata-se da “ternura na luta”. A opção que os

frades fizeram era, inegavelmente”, dura e muito sacrificosa, “rigoroso acima das forças

humanas” como conta Boaventura na LM 3,9,3. Por isso, impunha-se a “necessidade de

ajudar-se mutuamente na fidelidade”. Aos irmãos esta seria a primeira responsabilidade,

pois são os companheiros de caminhada. E a alegria pela opção feita é um dos melhores

recursos para conseguir tal objetivo. Optar por um projeto de vida e depois não vibrar

por ele, é uma contradição, uma hipocrisia, no entender do movimento. Por isso,

convém honrar-se espiritualmente, isto é, estimular-se e amparar-se no espírito do

projeto, que é o Espírito do Senhor.

3.3 O trabalho miseri-cor-dioso

Este inserimento positivo visa aprofundar o sentido do trabalho. Há quem (a

maioria) entenda que estes versículos estariam supondo o fato de frades viverem na

ociosidade. Baseiam-se no argumento das citações de S. Jerônimo e de S. Bento

presentes no texto. O texto teria sido acrescentado para motivar os levados pelo “dolce

far niente” da vida, os “muito ocupados em nada fazer”, como diz o apóstolo Paulo (2

Tes 3,11). Esta hipótese encontraria sua razão de ser considerando-se o fato de

ingressarem na Fraternidade também nobres, portadores da rejeição pelo trabalho

manual. A estes seria difícil entregar-se a tais tipos de atividades. O texto os estimularia

a assumir o trabalho braçal, muito degradante para eles. Ou mesmo se refira aos

preguiçosos... Pode ser...

Todavia, outra interpretação parece mais plausível, considerando-se sua datação

(1211). Por três vezes o texto menciona as “boas obras”. Tal insistência leva a crer que

a tônica aponta nesta outra direção, a do trabalho misericordioso. As “boas obras” eram

também, na Idade Média, sinônimo de obras de misericórdia materiais: dar de comer, de

beber, de vestir, enterrar os mortos, visitar doentes, presos e confortar os tristes. Os

frades reunidos, alguns anos depois do início do Movimento, refletem sobre o tipo de

trabalho preferível, aquele que deve ser buscado em primeiro lugar. E concluem: deve

ser o trabalho “miseri-cor-dioso”, junto aos que não podem retribuir, especialmente os

leprosos11. Este tipo de trabalho, para eles, tem o mesmo valor da oração, no sentido de

afastar o diabo, o agente número um da divisão. Pela freqüência e modalidade de

emprego da palavra “alma” (três vezes só neste capítulo e sempre como sinônimo de

espírito, de orientação existencial, de opção fundamental...) tudo leva a crer que não a

entendiam de modo tão dualista como era corrente entre seus contemporâneos. Sua

antropologia é mais positiva e integradora de todas as dimensões da existência.

3.4 O trabalho determina o lugar social do frade

Parece ser mais fácil agora compreender o significado dos primeiros três versos

do capítulo. Eles são uma resposta encontrada no capítulo de Pentecostes daquele ano

10Sobre esta questão veja-se sobretudo MOLLAT, M. op. cit. pp. 56 a 65 11 Todo o trabalho de promoção humana era visto como obra de misericórdia: sepultar os mortos, cuidar

dos doentes, dos leprosos, dos peregrinos... A atenção dedicada a eles fez surgir inúmeras ordens

religiosas como os templários, os hospitalários, os mendicantes... Cfr. PAGLIA, Vincenzo. Storia

dei Poveri in Occidente. Milão: Biblioteca Universal Rizzoli. 1994. P. 218.

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Projeto Franciscano de Vida 17

(l2l5/6). Supõe este texto que frades tivessem sido convidados ou até mesmo já

estivessem trabalhando em instituições públicas ou em fazendas de senhores feudais,

como era o caso dos humilhados mais ao norte da Itália12. Para Flood e Calogeras estes

versículos iniciais são o resultado de um longo e difícil debate dos frades. Por detrás

seguramente está a „vontade‟ de Assis que deseja que, mediante a promoção sócio-

econômica, os frades retornem ao „sistema de Assis‟ que vê o trabalho como mercadoria

e o trabalhador como proprietário (ainda que pequeno) de sua força de trabalho. Deste

sistema que faz do trabalho um comércio e que tem como meta o acumular nasce a

esmola como subsistema econômico. Por isso os frades definem seu trabalho como

“serviço”. O serviço é uma ação produtiva atenta aos outros (não atenta ao lucro) que

traz consigo a idéia de reciprocidade que solicita aos outros receber e trocar. Os frades

querem mudar o mundo a partir das relações de trabalho renovadas, postula Manselli13.

Alguns outros aspectos particulares a destacar:

a)“Camerarii vel cancellarii”. São termos quase sinônimos, de conceituação

imprecisa, e de prática mais imprecisa ainda. Segundo D. Flood14 “camerarium” seria

aquele que tem acesso à câmara, à secretaria, aquele que está informado dos planos do

patrão, o notário, que sabe dos negócios do dono, enquanto que o “cancellarium” seria

mais aquele que leva a “cancela”, a chave do cofre, o tesoureiro. Ambas as profissões,

portanto, supõem saber ler e escrever, fazer contas, etc. Por vezes ambas as funções

eram exercidas pela mesma pessoa. Para os frades, não é que estas profissões sejam

proibidas ou desonestas de per si. No entanto, elas implicam necessariamente em fazer o

jogo do dono; supõem uma aliança implícita, ainda que o envolvido diga não a desejar.

Ora, como os frades haviam decidido em ser “submissos e menores” seria um contra-

senso assumir tais cargos. O que importava para eles era manter bem claro o projeto de

seguimento de Jesus Cristo “desde os menores. O jeito de viver devia manifestar, sem

necessidade de explicações, a aliança com aqueles deserdados pelos quais optarem com

seu projeto de vida.

b)“Causar escândalo ou perder a alma”. Somos de opinião de que os frades

não estão julgando a sociedade. Mas olham para si mesmos. Causar escândalo está

relacionado com o fato de prometer uma coisa com o projeto de vida e depois camuflar

fazendo outra coisa diferente. Isto também poderia ser lido como “perder a alma”, isto

é, perder o espírito que anima o Movimento.

Tentemos imaginar a discussão que deve ter acontecido entre os cerca de 500

frades quanto colocaram em pauta estes pontos no capítulo geral! E que paixão pela

causa devia animar os principais líderes do Movimento, em número certamente grande e

não apenas Francisco como ordinariamente nos era apresentado.

3.5 Alguns desenvolvimentos posteriores

A história segue inexoravelmente seu ritmo. O Movimento Franciscano também

deu desenvolvimento aos gérmens que trazia em seu bojo. Aqui apenas citaremos

alguns aspectos, pois não é nosso objetivo descrevermos mais detalhadamente.

12 Sobre isso veja-se a obra de MANSELLI, Raoul. Francesco. Roma, Bulzoni, l989 pp. 102 e 263.

Segundo este estudioso da Idade Média era característica das Comunas italianas a utilização de

religiosos para os ofícios administrativo-financiários. Os Humilhados exerciam intensa atividade

neste sentido, manuseando, por vezes, altas somas de dinheiro. 13 Op. Cit. pp. 106 - l09. 14 FLOOD, D. Op. Ccit p. 3l

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Projeto Franciscano de Vida 18

a) A Regra Bulada

A RnB nos fornece dados relativos ao trabalho até l2l5-6, no máximo. Este

assunto só passou a ser abordado, segundo as referências históricas de que se dispõe

hoje, depois de l22l, na reelaboração da Regra, aquela que foi Bulada, em l223, por

Honório III. Esta traz duas referências importantes em relação à questão econômica:

a) No capítulo seis reafirma a não propriedade como opção fundamental: “Os

irmãos não tenham propriedade sobre coisa alguma, nem sobre casa, nem lugar, nem

outra coisa qualquer, mas como peregrinos e viandantes que neste mundo servem ao

Senhor em pobreza e humildade...” (Rb 6, l - 2). E nisto ela segue fielmente o espírito

das disposições anteriores, embora no Testamento o próprio Francisco já altere ou

adéqüe à realidade existente.

b) Todavia há outro ponto mais crítico que precisa ser analisado com prudência.

Trata-se do trabalho. Aqui parece claro que o partido dos “doutos” tenha levado a

melhor. Quando da redação da RB acabou ficando aprovado: “Os irmãos, aos quais o

Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem com fidelidade e devoção... (RB 5,l). Isto

é, leia-se: os irmãos que estão acostumados a trabalhar trabalhem; os demais continuem

a fazer o que faziam antes. Desaparece assim a opção pelo modo comum da

humanidade ganhar a vida e, com isso, também a opção social, tão clara na redação

anterior. O trabalho passa a ser visto na ótica ascética, como exercício de humildade,

perdendo sua conotação fundamental básica de “opção de classe sócia”, opção pela

minoridade social, opção pela categoria social que realmente está embaixo, como

excluída da história.

Além disso, outros aspectos ainda chamam a atenção nesta transição de uma

compreensão a outra:

a) Sobre o trabalho pesa a suspeita de que possa se tornar empecilho para a

oração (“desde que não extinga o espírito da oração e santa devoção” – RB 5,3).

Exatamente como a teologia da época apregoava, por influência do platonismo

agostiniano.

b) A dimensão ética do trabalho (“honesto”) vem transformada em postura

moral-religiosa: trabalhar “fiel e devotamente”. A razão de ser de ambas é muito

diversa. Também nisto se manifesta a influência do pensamento teológico.

c) A fraternidade já não está pensada em aberto como no início, abrangendo aos

excluídos, mas apenas em relação aos frades. “Podem receber o necessário para si e para

os seus irmãos”. Sentem-se já não participantes da situação de pobres, mas tendo um

projeto à parte, como grupo com identidade “religiosa”, distante talvez dos mais

necessitados.

d) O ideal de pobreza ascética parece suplantar o testemunho de um seguimento

da pessoa de Cristo pobre e nos pobres. E o ideal da pobreza daquele tempo era muito

diverso do testemunho de Cristo. Ele podia ser conciliado com grandes propriedades,

sem dificuldade alguma.

Numa palavra, há uma transformação de meta e de estratégia. O movimento

revela com isso que a teologia monacal tomou conta de sua caminhada (como

instituição ao menos). Perdeu muito de sua profecia social para um viver o Evangelho

na mortificação, segundo os esquemas da teologia monacal.

Não se quer negar aqui que a Rb não mantenha o sentido positivo de trabalho

contra toda uma mentalidade religiosa e da nobreza de então. Ele é “graça”. Ela mantém

também a relação direta entre não propriedade e fraternidade no capítulo seis. Conserva

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Projeto Franciscano de Vida 19

ainda a relação de não propriedade e itinerância (“como peregrinos e forasteiros”(Rb

6,2). São aspectos positivos sem dúvida alguma, porém num enquadramento ideológico

que possibilitará as compreensões sempre mais conformes ao contexto sócio-eclesial

que desconhece a profecia e sobrevaloriza a dimensão ascética.

b) O Testamento

O Testamento é muito enfático. É bom recordar que foi escrito nas últimas

semanas de vida de Francisco. Ditado por ele mesmo. É interessante dar-se conta, que

como diz K. Esser, nele Francisco aproveitou o momento para dizer o que mais lhe

estava ao coração, o que lhe aflorava mais naturalmente. Nos versículos l9b a 22 ele

trata da questão do trabalho. E fica evidente que ali Francisco deseja recuperar algo que

estimava de grande importância. “E eu trabalhava com minhas mãos e quero trabalhar.

E quero firmemente que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho honesto. E os

que não souberem trabalhar o aprendam...” Não há dúvida que Francisco intui aqui

algo maior que o simples trabalhar. Ainda mais que o texto original seria:” Et omnes alii

fratres volo quod laborent de laboritio...” Esta última palavra não existia no latim.

Teria sido uma tradução imediata e direta do italiano “laboraccio” isto é, trabalho que

suja, que faz parte daquela classe de atividades abrangidas pelo preconceito de

impróprias às pessoas “cidadãs”15 e inaptas à contemplação. Toda esta ênfase que

Francisco atribui ao trabalho revela que esta aspiração estaria profundamente ligada à

opção fundamental, muito mais do que a algum aspecto moral ou ascético periférico do

seu projeto de vida.

Concluindo

Impõe-se hoje recuperar o essencial da opção original do movimento

franciscano: estar entre os trabalhadores, como representantes da classe humilde. Hoje

nós diríamos, entre os assalariados, os que estão submetidos a todo o tipo de manobra

pela classe burguesa. A ala masculina do movimento franciscano, geralmente, se porta

como trabalhadores liberais e a sobrevivência geralmente não é sua preocupação básica,

nem estão associados aos que vivem esta preocupação! Com as mulheres, isto é, com as

congregações religiosas femininas, já as circunstâncias são mais duras e próximas à

experiência dos primeiros tempos do franciscanismo. Diferenciam-se no aspecto de que

administram bens próprios, capitais rentáveis (colégios, hospitais...). Para eles também

deveria retornar o sentido do “privilégio da pobreza”, isto é, não ter grandes

propriedades. Isto me parece um grande valor a ser resgatado, por todo o movimento.

4 A Missão dos Frades Menores Começa aqui a terceira dimensão da proto-regra de São Francisco. Se a primeira

clareava a opção pelo tipo de seguimento de Jesus Cristo e a segunda focava vários

aspectos da vida cotidiana, como a sobrevivência mediante o trabalho que por sinal

recebe outro sentido, a inserção entre os pobres, o modelo de residências e as relações

desejadas entre os integrantes do movimento. Nesta terceira dimensão da proto-regra, os

frades da primeira hora buscaram definir sua missão na sociedade, seu objetivo neste

mundo.

Geralmente as pessoas entram no mundo, tomam consciência aos poucos de sua

existência e à medida que fazem isto, se envolvem em empreendimentos de

sobrevivência e de progresso econômico-social-cultural “como todo o mundo”: casam e

15 Cfr. DESBONNETS, T. Da intuição à instituição. Petrópolis: Vozes-CEFEPAL, l987, p. 37.

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Projeto Franciscano de Vida 20

procuram subir na vida. Mas há pessoas que fazem outras opções. Estas geralmente

são identificadas como vocacionadas. Ingressam na Vida Religiosa ou clerical.

Francisco pessoalmente estava orientado para fazer “como todo o mundo”. Mas

depois mudou de opção. A sua decisão não foi de ingressar na Vida Religiosa de então,

mesmo que o Cardeal João de São Paulo lhe tenham insistido bastante (1Cel 33,1). Com

certeza deverá ter ponderado muito a opção pelo caminho clerical. Mas não foi este o

caminho que encetou. Buscou outro espaço, outro modo de “estar no mundo sem ser do

mundo” e trabalhando para sua transformação. O que fazer então? E como fazer isso?

A resposta nos é dada com o capítulo 14 da RnB. O texto é relativamente difícil

de entender. Pressupõe que o leitor se situe naquele contexto: são cerca de doze irmãos,

no máximo um sacerdote, ainda são desacreditados pela população e são vistos com

desconfiança pela Igreja, mesmo se a LTC observa serem eles apoiados pelo Bispo Dom

Guido II. Transcrevemos aqui o texto para facilitar.

Regra não Bulada 14

1Quando os irmãos vão pelo mundo, nada levem consigo pelo caminho, nem

bolsa (cf Lc 9,3; 10,4) nem sacola nem pão nem dinheiro (cf Lc 9,3) nem bastão (cf MT

10,10). 2E, em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa

(cf Lc 10,5). 3E, permanecendo na mesma casa, comam e bebam do que eles tiverem (cf

Lc 10,7). 4Não resistam ao mau (cf Mt 5,39), mas àquele que lhes bater numa face,

ofereçam-lhe também a outra (cf MT 5,39 e Lc 6,29). 5E a quem lhes tirar a veste, não

lhe proíbam de tirar também a túnica (cf Lc 6,29). 6Tenham atenção para com todo

aquele que lhes pede: E se alguém lhes tirar as coisas que são suas, não as peçam de

volta (cf Lc 6,29).

Como se percebe imediatamente, o texto corresponde perfeitamente à descrição

que Celano faz da primeira regra apresentada ao papa: “seriam quase só citações

bíblicas” (1Cel 32,1). No texto o itálico identifica as citações bíblicas. Como é do estilo

de Francisco, ao invés de comentar os textos ele os cita, deixando-os como fonte de

inspiração. Certamente, ao meditá-los, se pode ir muito além das simples palavras.

Seguiremos este processo aqui abaixo.

4.1 Ser peregrino e forasteiro (v. 14,1). Este versículo seria uma das citações

encontradas naquela tríplice abertura do evangelho na igreja são Nicolau, quando

Francisco, Bernardo e Pedro Cattani “foram pedir conselho ao Senhor” (AP 10; LTC

28). Ela foi deslocada das outras duas porque ela cria o ambiente para a missão.

O advérbio de tempo “quando” parece desnecessário, pois, como os frades não

tinham moradia fixa, estavam sempre “indo pelo mundo”. Mas sua presença se justifica

porquanto a Regra não tinha capítulos nem títulos intermediários, o advérbio temporal

fazia a passagem do final do atual capítulo sete para este. Lá os frades falavam das

relações entre si; aqui abordarão sua realidade de peregrinos e viandantes.

A citação encontrada neste versículo não é literal. É uma composição de Lc 9 e

10 e Mt 10, também chamada de “diatésseron”, uma prática muito comum na Idade

Média. O que o movimento queria expressar com esta citação? A nosso ver: a condição

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Projeto Franciscano de Vida 21

do evangelizador. Se por um lado retiram dos textos evangélicos os itens “sandálias e

duas túnicas”(Lc 10,4 e Lc 9,3) – sabe-se que eles andavam sempre descalços e com um

só burel - e são justamente os dois itens mais necessários ao corpo – insistem em não

levar nada consigo de provisão, pois esta é sempre uma defesa. Não se trata somente de

um mimetismo evangélico. Eles vislumbram aqui a condição de fragilidade ou

dependência que o evangelizador precisa adotar para atuar em nome de um Deus que se

fez humilde e servo de todos. Por que desse modo? Porque a fé em Deus não pode ser

imposta, mas sim ser acolhida como Boa Nova. Esse é o jeito de proceder de Deus:

nunca obriga a ninguém; simplesmente convida: “se queres...”. Deus não parou sequer

a mão daqueles que crucificavam seu Filho.

Observe-se que esta citação bíblica em Mt se encontra no contexto de envio dos

Doze, mas em Lucas aparece ao enviar os 72 discípulos, isto é, um múltiplo das doze

tribos de Israel. Portanto destinado a todo o povo. Em ambos evangelistas estão

relacionadas com a cura dos doentes, a purificação dos leprosos, a expulsão dos

demônios, além do anúncio do Reino de Deus. O envio dos discípulos por Jesus

ultrapassa a dimensão de pregação do Reino: é envio para transformar e libertar a

realidade humana e social. A teologia da libertação favoreceu alcançar esta

compreensão.

4.2 A construção da paz (14,2). Este versículo e o próximo são afirmativos. Os demais

se apresentam como proibição. Os frades se expressam aqui novamente com o emprego

de uma citação bíblica, em contexto de missão, assim como originalmente está nos dois

discursos de envio missionário em Mateus e em Lucas. Eles não acrescentam

comentários ao breve versículo. Deixam-no como fonte de inspiração. É assim seu

método, também em outros escritos.

Como entendê-lo? A criação de condições para o aparecimento da paz é a

primeira tarefa a se ter mente, “indo pelo mundo”. Logo, todas as atitudes que geram

medo, distância, sentimentos de opressão pela prepotente aparência do enviado, tudo

precisa ser retirado do caminho. Ocorre que a paz não é um fruto que possa ser colhido

diretamente, pois a paz não existe em si. A paz é uma realidade fruto de outros valores,

é como que a vibração harmônica de muitos sons. Estes são necessários para gerar a

harmonia. Os ministros gerais da Família Franciscana escreveram que a “paz é um bem

que se alcança com o bem”. A bíblia diz a mesma coisa afirmando que a “paz é fruto da

justiça”. Isso dá o que pensar!

Por isso a contribuição na construção da paz na proposta de vida franciscana

abrange, entre outros aspectos: a relação fraterna com todos os seres da natureza; a

autoproibição de qualquer posse por ser uma atitude que impele o outro ser o que

realmente é e torná-lo meu prolongamento; desfazer-se de qualquer forma de poder,

para não oprimir; colaboração com o crescimento do outro, seja pessoa ou outro ser da

natureza, etc. Tudo isso somente é possível se vivido num clima de uma fé confiante

num Deus paternal/maternal.

4.3 O desafio da inculturação (14,3). Aqui está outro detalhe importante. Não há

relação de igualdade quando não se aceita a realidade da outra pessoa, inclusive seus

hábitos e costumes, visto que a pessoa humana sempre será uma realidade ao mesmo

tempo física e cultural. A dificuldade ao clima, ao tipo de alimentação – muitas vezes

carregado de religiosidades e normas-tabus – é parte integrante da pessoa. Aceitar e

acolher a toda essa carga de dados é imprescindível para acolher a realidade da pessoa.

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Projeto Franciscano de Vida 22

Quando Francisco e os frades falam isso eles têm diante de si o caso dos monges

cistercienses, por exemplo, que nunca comiam carne vermelha ou as regras rigorosas

dos beneditinos em relação ao jejum e à abstinência de carnes. Lembremos que conflito

semelhante foi vivido pelos cristãos no tempo dos apóstolos Pedro e Paulo, quando o

cristianismo saia do judaísmo para se adaptar à cultura helênica (Atos 15).

Talvez os frades tenham percebido que não aceitar os hábitos culturais e

religiosos das diversas populações seria uma forma de se mostrar superior. A atitude de

dependência solicitada no primeiro versículo não pode estar desvinculada desta postura

de inculturação, pois ela suprime as barreiras.

4.4 Os ditos da não violência ativa (14, 4-6). Antes de analisar o seu conteúdo, uma

breve constatação. Para incrível que os primeiros frades tenham se valido destes versos

para falar de sua missão. Não é sua formação acadêmica nem sua cultura bíblica que

lhes possibilitou ir a essa fonte. Por detrás desta opção está a experiência pessoal e o

contexto muito beligerante que os circunda. Afinal, Francisco, Assis, e toda a Europa

respirava violência, implícita quando não explícita. Era um clima de beligerância geral:

famílias se digladiando, reinos disputando espaços geográficos, piratas de mar e da terra

saqueando... a tal ponto que, como contam os Fioretti 21 ao falar do lobo de Gúbio,

todos andavam armados para se sentirem minimamente seguros.

Francisco e Clara, provavelmente, jamais ouviram falar no termo “não-violência

ativa”. Contudo esse fato não impossibilita que eles o possam ter captado (farejado,

intuído), vivido e praticado a realidade que eles apontam. Tal assertiva pode ser

comprovada pelo emprego do texto evangélico da não-violência ativa na Regra não

Bulada. A não-violência não se destina a “ensinar a submissão, a subordinação, a baixar

a cabeça aos pequenos e já indefesos. Geralmente os pobres já apresentaram as duas

faces para outros baterem” (Creusa Maciel). Já foram, há muito tempo, espoliados do

manto e da túnica, já carregaram o fardo por muitas milhas etc. Nem o evangelho de

Jesus, nem Francisco pretenderam humilhar ainda mais as pessoas, mesmo se

desejavam eles mesmos ser menores e propusessem para toda a sociedade a minoridade.

Se o Reino é dos pobres e para os pobres, com vistas à sua libertação e dignificação,

então a proposta de Jesus, assumida pelo movimento franciscano deve ter um conteúdo

muito diverso do que fomos acostumados a entender. E este conteúdo novo foi captado

pelos nossos fundadores. Para compreender a proposta de Francisco e Clara se

necessita, até certo ponto, desfazer-se das estruturas de compreensão e ter olhares

novos.

O Sermão da Montanha, contexto destes ditos da não-violência, explana a nova

lei dada pelo verdadeiro legislador, Jesus de Nazaré. Mateus mostra, em Jesus, o

confronto entre a antiga e a nova Lei. Jesus aponta como seu seguidor deve fazer frente

à violência institucionalizada com a não-violência (ativa), apresentando uma terceira via

de ação ou reação. Colocados no Sermão da Montanha, os ditos da não-violência se

tornam regra de vida, um novo mandamento a ser observado, diz Bernard Häring. Estão

situados no contexto da comparação entre a antiga e a nova Lei para indicar a

substituição de um pelo outro. Embora difícil de perceber „a primeira vista, esses

“ditos” comprovam que o Reino chegou para os pobres. Os pobres não devem mais

aceitar ser espezinhados, confirmando o estado de violência. Para cumprir o verdadeiro

espírito da lei antiga levando-a à perfeição, Jesus mostra agora a necessidade de agir

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Projeto Franciscano de Vida 23

diferentemente, e assim impedir que a dignidade das pessoas continue sendo ultrajada.

Feita referência ao homicídio, ao adultério, ao juramento, Jesus vai agora falar da

superação da lei do talião, do “olho por olho e dente por dente”. Quer dizer, vai propor

atitudes que interrompam o círculo vicioso da violência. No passado, a Lei estava

preocupada apenas em limitar a violência. Oferece, agora, novas pistas: não resistir

(violentamente) ao homem mau, oferecer a outra face, deixar levar também o manto a

quem arrancou a túnica, caminhar duas milhas e não apenas uma e não pretender a

devolução do emprestado (Mt 5, 38-42). Essas orientações para transcender a lei do

talião (Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21) passarão a ser chamadas de “ditos da não-

violência”.

Para a melhor compreensão destes versículos na Regra não Bulada, convém

antes examiná-los no contexto evangélico original, no Sermão da Montanha. São ali

inseridos logo após as bem-aventuranças, dentro da nova interpretação da antiga Lei,

para conduzi-la à plenitude. Não aparecem aí por causalidade. Exatamente ao contrário,

são colocados no coração do evangelho de Mateus, porque devem determinar o modo de

ser do seguidor de Jesus Cristo. É isto que levou Bernhard Häring dizer que a “doutrina

da não-violência faz parte essencial do Sermão da Montanha”. Segundo esse autor,

Jesus contrapõe sete vezes16 as duas versões da Lei(a nova e a antiga), significando que

essa doutrina, ou melhor, essa postura social do cristão cobre a totalidade das situações

humanas. Assim como as bem-aventuranças geram um modo de ser diferente,

igualmente a não-violência leva o cristão a ter uma postura que Häring denomina de

“revolucionária”, enquanto rompe com o modo de proceder dos oprimidos de uma

sociedade.

Alberto DE MINGO ajuda a compreender esses “ditos da não-violência”

buscando sua leitura no contexto social do tempo de Jesus, superando o costume de vê-

los como um convite a sofrer, sem revolta, as ofensas e as injúrias, como se o cristão

fosse “uma pessoa que devesse evitar toda a reação e padecer com resignação as mais

diversas agressões”. Ao contrário, também para este biblista, esses ditos da não-

violência “são uma chamada à defesa da dignidade dos mais desprotegidos”.

Conforme estudos recentes, é difícil decidir qual das versões dos ditos da não-

violência seria a mais original, se a mateana (Mt 5, 38-41) ou a lucana (Lc 6, 27-36).

Provavelmente Jesus as teria evocado inúmeras vezes em seus discursos e instruções,

em diversos contextos e de diferentes modos. Os evangelistas as trabalharam dentro do

esquema próprio de seu evangelho. Neste ensaio privilegiamos a de Mateus, pois

escrevendo para judeus convertidos, parece traduzir com maior fidelidade o contexto

original. Para não nos estender, será examinado com maior riqueza de detalhes apenas o

dito da bofetada no rosto.

a) O dito de não resistir ao mau (com violência). Não se trata de passividade

generalizada. Ao contrário, o verbo grego “resistir” aqui empregado tem conotação

especificamente militar, isto é, é resistir com arma ou de modo violento. Flávio Josefo o

emprega 17 vezes, e sempre com esta conotação. Jesus introduz os ditos da não-

violência com este versículo para caracterizar a interrupção da lógica da violência.

Recomenda que não se afronte a violência com outra violência. Sabe que a paz é um

bem que se constrói com o bem e não com a violência.

16 Na prática, Jesus faz seis contraposições diretas e específicas. Creio que para o autor a sétima vez seria

a contraposição inicial que diz respeito a todos os casos específicos.

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b) O dito de “oferecer a outra face”. Assim se expressa o versículo bíblico de

Mateus: “Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda”. Mateus,

que escreve para judeus convertidos e, portanto, como bom conhecedor dos costumes

judeus. A Misná, uma grande compilação dos ditos rabínicos do século III dC

mesclando leitura bíblica e costumes jurídicos, reportando tradições anteriores, talvez

contemporâneas a Jesus, ilustra o significado social de uma bofetada naquele contexto

cultural pela indenização a ser dada: “Se alguém desferir um soco a seu próximo terá de

indenizá-lo com uma selá. Se der uma bofetada, deverá dar-lhe 200 sus. E se a bofetada

for com o reverso da mão, com 400 sus”17. Por trás da diferença de sanções se esconde

o conceito antropológico-cultural da “honra social” ofendida, ocupando o centro do

sistema de valores nas sociedades mediterrâneas. Ali a honra abrangia tanto a auto-

estima pessoal quanto o “bom nome”, ou o reconhecimento e a valorização social. Esse

aspecto oferece a chave para entender a gravidade da ofensa.

A Misná é tolerante com o soco: a indenização é baixa. Isso permite entender

que tolera o soco como maneira violenta, mas ordinária, de resolver conflitos. A

bofetada é penalizada com indenização maior devido à humilhação produzida pelo

gesto. A bofetada fere mais a honra do que o corpo. Isso é intolerável entre “próximos”,

isto é, entre pessoas com o mesmo nível social. Pior ainda quando o tapa é desferido

com o reverso da mão. Note-se, porém, que esta punição, segundo a Misná, é aplicada

entre pessoas livres e nas relações sociais em geral. Não era absolutamente utilizável em

se tratando do patrão para com os escravos ou dos pais em relação aos filhos.

Busquemos agora compreender a aplicação feita por Jesus deste dito da não-

violência de mostrar a outra face. Segundo Alberto DE MINGO18, o dito corresponde a

uma cena em que um superior bate em um inferior (sem ser pai ou patrão). Jesus não

aceita a humilhação social por quem arrogasse sua superioridade e quisesse, batendo,

reafirmar essa sua superioridade (artificial). E pede ao inferior que “mostre a outra

face”. Que reações isso vai suscitar no agressor e em quem vê a cena? Em primeiro

lugar surpresa, pois que o agredido mostre a outra face não é nunca esperado. Agindo

desse modo, “o agredido toma a iniciativa de negar ao agressor o que ele se havia

proposto: reafirmar sua superioridade e obter a submissão do interlocutor”. O agredido

está, dessa maneira, “desmontando os pressupostos sociais que conferem ao agressor o

poder de humilhar e submeter”. Seu gesto é um desafio. Inclusive no caso em que um

agressor opte por dar-lhe um soco, estaria reconhecendo o outro como igual e não como

subalterno. De todo o modo, a iniciativa proposta por Jesus faz a razão mudar de lado e

passar para as mãos de quem era considerado inferior. Esse demonstrou que sua

dignidade de pessoa humana não desmoronou com uma bofetada.

c) O dito da túnica: A túnica e o manto eram as duas únicas peças de roupa usadas,

tanto por homens como por mulheres no tempo de Jesus. Tirar a túnica era tirar toda a

parte interna do vestuário. O manto era proteção do frio e agasalho para a noite. Quem

tirasse a túnica estava fazendo grave violência contra o outro, deixando-o

completamente nu. Observe-se que Mateus fala em “mover processo” para tirar a túnica.

Supõe-se que já tenha retirado desse endividado todos os bens que lhe pertenciam. Só

17 A selá equivalia a 4 sus. E um sus é o salário de um dia de trabalho ou um denário romano. Então um

soco teria a indenização de uma selá, isto é, o equivalente ao salário de 4 dias de trabalho. Um tabefe na

face esquerda, ao salário de 200 dias de trabalho. E se for com o reverto da mão, ao salário de 400 dias de

trabalho, isto é, mais de um ano de salário. 18 DE MINGO, A. Los dichos de La noviolencia. Em: Rev. Moralia. º 101-103, 2004 pp 125-146.

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Projeto Franciscano de Vida 25

lhe sobrava a roupa do corpo. Nesse caso, Jesus manda entregar também o manto

(uma lei do Deuteronômio 24, 12-13 impedia ao credor permanecer com o manto à

noite, pois o pobre precisa dele para se cobrir). Ficando assim totalmente nu diante de

todos, denunciaria a grande violência sofrida e a total insensibilidade do credor. A razão

mudava de lado: o credor, sempre pessoas de grandes recursos econômicos, seriam

flagrados em toda a sua impiedade e maldade. Estando totalmente nu, o endividado

denunciava a violência do credor e o provocava a repensar seu procedimento. Jesus

coloca esse recurso “irônico” de uma violência não-violenta na mão dos pequenos, para

fazer frente à forte exploração e pressão fiscal dos detentores do poder econômico que

não receavam espoliar completamente seus devedores.

d) O dito da milha: Também aqui não se trata de uma generosidade ingênua ou

submissa. Lembre-se que Jesus está superando a “lei do talião”. Trata-se do costume

dos soldados romanos de obrigar civis dos países dominados a carregar seus pesados

equipamentos (cerca de trinta quilos) por uma milha, enquanto eles caminhavam

tranqüilamente ao lado, sem peso algum. Desse modo, indiretamente, faziam os povos

dominados reconhecer sua condição de humilhados. Jesus recomenda que o dominado

carregue o fardo por duas milhas, isto é, o dobro do solicitado. Não por generosidade e

sim para induzir a uma contravenção no soldado pela qual ele seria punido. Havia uma

lei proibindo obrigar a mesma pessoa a andar mais de uma milha com o fardo.

Os frades ao assumirem esses ditos da não violência omitem este da milha.

Talvez porque já não fazia nenhum sentido no seu tempo. Isso revela que eles

examinavam com muita atenção cada palavra do evangelho antes de inseri-la no texto

da Regra.

e) O dito do empréstimo: Em Jesus é outro modo de romper com o endividamento por

juros exorbitantes é instaurar uma economia de entreajuda recíproca. O mesmo que

Jesus pede a quem deseja segui-lo, a quem pede o que fazer para alcançar a vida eterna,

a quem reclama por ter ganho a mesma paga tendo trabalhado o dobro de tempo de

outro, etc. Jesus propõe sempre uma economia de partilha. E não podia ser diferente

aqui. Ocorre que a economia é o que mais submete pessoas a outras, porque ela tem

uma violência intrínseca muito forte.

Com esses “ditos da não-violência” Jesus confirmava que o Reino estava, de

fato, irrompendo com uma nova prática. Os gestos que propõe mostram o protagonismo

dos pobres. Por isso, esses ditos não são normas morais e nem simples atitudes internas.

São propostas de ação que mostram como o poder de Deus não atua violentamente nem

nas pessoas mais desprovidas, mas ao mesmo tempo encontra estratégias para

interromper toda a forma de violência. Os seguidores de Jesus são chamados a

surpreender e a destronar os que, amparados pelo sistema social, cometem atos de

injustiça contra os mais fracos. Esses ditos nada apresentam de passividade. Apontam

antes para uma terceira via entre as duas muito conhecidas (a luta ou a fuga) diante de

conflitos: a ação direta não-violenta. É assim que conclui o articulista:

Com esses ditos Jesus propõe estratégias de ação na qual os oprimidos podem

recobrar a iniciativa moral e encontrar uma alternativa criativa à violência. São

gestos que afirmam a dignidade dos pobres e a fazem ver aos opressores. Utilizam

o humor para romper o círculo da humilhação e denunciam a injustiça do sistema.

Aos agressores se dá uma oportunidade de arrependimento e para a mudança de

mentalidade diante da irrupção do Reino (MINGO, 2004, p. 146).

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Projeto Franciscano de Vida 26

Cremos que essas conclusões podem oferecer nova luz para a compreensão do

capítulo XIV da Regra não Bulada de São Francisco. Se admitimos que os primeiros

frades, devido à sua experiência de vida, captaram a mensagem de Jesus, ao menos

parcialmente nesta perspectiva, então não resta dúvida de que eles se sentiam

verdadeiros revolucionários frente ao sistema imperante, muito mais do que poderíamos

imaginar até pouco tempo com nossa leitura fundamentalista das fontes. Pode-se dizer

que os frades queriam gerenciar uma nova pauta (pluridirecional) de paz. Pensavam,

talvez, naquilo que atualmente se fala em “cultura de não-violência”, como propõe

Creusa Maciel19, inspirando-se na prática não-violenta de M. Gandhi.

Este capítulo trata da missão dos frades e abre, historicamente, a seção dos

capítulos dedicados aos trabalhos missionários. É o primeiro deles, tanto na ordem

lógica quanto cronológica. Note-se em primeiro lugar que não se percebe aqui vestígio

algum de clericalismo na missão, permitindo deduzir que o grupo inicial de frades se

percebia mais próximo aos movimentos sociais do que das Ordens Religiosas. Raoul

Manselli diz que, nos primeiros tempos, os frades se sentiam “leigos e não clérigos”. É

impressionante que nem a frase de “anunciar o Reino” aparece aqui. Antes predominam

duas tensões: a forma de presença submissa a todos, portanto, desarmada, humilde,

serviçal, que se adapta aos outros; e o engajamento em favor da construção da paz,

ajudando o povo a romper com toda a forma de violência que dia mais ou dia menos

levará a conflitos abertos.

No primeiro versículo, os frades apresentam as condições do enviado: ir sem

nada de próprio. Toda a posse exigiria alguma forma de defesa (arma), e que viria

certamente a atrapalhar a verdadeira ação missionária. Logo a seguir é apresentada a

tarefa da paz, mediante uma singela frase do evangelho. Saudar dizendo: “Paz a esta

casa”. Este pensamento evangélico é usado para trazer à memória toda a pauta da

promoção da paz, muito mais do que servir apenas como saudação inicial. Aliás, este é

o modo de Francisco falar. Cita um versículo evangélico sem comentá-lo para que ele

próprio apresente sua força e conteúdo. Observe-se que se trata da única tarefa

afirmativa explícita no capítulo, e ocupa o seu centro, formando seu eixo, ao redor do

qual giram os demais aspectos da missão. Os outros versículos se referem às condições

ou à metodologia para a promoção da paz. As condições do “missionário” (ir sem nada

e se inculturando) e a metodologia para enfrentar as injustiças e a violência estão ambas

em função da construção da paz. Parece justo, pois, dizer que a GRANDE MISSÃO

DOS IRMÃOS É TRABALHAR PELA PAZ.

Concluindo

Duas constatações são claras ao final desta análise:

a) O movimento franciscano pensa sua missão a partir da secularidade. No que se

propõem como missão não se encontra nada que diga respeito aos clérigos como alguns

anos após a morte de Francisco os frades assumem. Tem consciência de ser um

movimento de seguimento de Jesus Cristo, de ser um grupo que deseja viver acima de

tudo o evangelho, mas o faz na condição de Leigos. Não apontam absolutamente para a

19 MACIEL, Creusa. A Não violência e a integridade da criação. In: SINFRAJUPE. Francisco e a

ecologia.

Petrópolis: Secretariado Nacional do Sinfrajupe, 1991, p. 59-73.

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Projeto Franciscano de Vida 27

dimensão eclesiástica da vida religiosa. Não se fala em pregação doutrinária. E a

preocupação prática parece não ser propriamente a explicitação da fé, como o foi com

os dominicanos. É antes um movimento penitencial: pretendem abrir os olhos do povo

para um novo modo de viver, calcado em valores esquecidos pelo povo, mas

proclamados com ênfase por Jesus Cristo. E o fazem desde sua condição de pessoas do

povo, sem status ou mandato especial (sacramento da ordem). Elegem principalmente as

praças para suas pregações. Parecem ter captado que Jesus também não pertenceu ao

segmento sacerdotal, não era investido de nenhum mandato oficial. Andava na periferia

da estrutura religiosa.

b) Em segundo lugar, o movimento franciscano assume a causa da paz. Naquele

ambiente de beligerância generalizada, a paz é a grande aspiração. Por isso a grande

acolhida do povo à proposta do movimento franciscano. E como “a paz é um bem que

se constrói com o bem” e não com palavras, os frades:

- propõem viver os valores de Jesus Cristo que é o caminho, a verdade e a vida. Querem

fazê-lo como que segue suas pegadas, bem no concreto da vida dele e da sua;

- tornam-se menores para não oprimir ninguém, mas antes para fazer os menores sociais

sentirem-se solidarizados e dignificados. O que mais humaniza é sentir-se

solidarizado...;

- abdicam ao direito de propriedade que sempre levanta cercas e distanciamentos

sociais. Não só levanta cercas, mas geralmente leva as pessoas confundir posse de bens

com dignidade humana, atribuindo valor à pessoa segundo sua posse. Na Idade Média

quem não fosse proprietário ao menos de um animal de trabalho não podia sequer

recorrer à justiça.

- Tratam a todos respeitosamente como irmãos, desde os leprosos e os hereges (infiéis)

até as pessoas de elite e as convidam a exercer cidadania. Implantam, quase sem saber,

um regime altamente democrático, onde as decisões são tomadas comunitariamente. Eis

a missão franciscana, extremamente válida ainda hoje.

Em forma de síntese, nesta conclusão, este capítulo poderia ser assim

apresentado: Olhando a estrutura do texto percebe-se que a questão nuclear é a CAUSA

DA PAZ. Senão vejamos:

- O v. 1 (não levem dinheiro...) fala das condições de quem deseja ser evangelizador: ir

sem seguranças de tipo algum, sem armas de defesa, na total dependência dos

destinatários. Assim não poderá se impor. Em RnB 16,6 fala em “estar submisso a toda

humana criatura” e do versículo 10 em diante em entregar a própria vida.

- O v. 2 (Paz a esta casa...) fala do anúncio da paz. É o único versículo do capítulo que

indica algo a fazer, que é propositivo. Embora apenas citando o evangelho (Mt 10,13;

Lc 10,5) deixa claro que é a primeira coisa a ter em mente. A atenção principal do

evangelizador é a causa da paz. Para os franciscanos ela seria o novo nome do Reino ou

seu sinônimo.

- O v. 3 (Comam e bebam do que tiverem...) é um versículo positivo, mas trata de outra

condição para a evangelização. A comida é o que mais expressa a realidade cultural de

um povo e acolhê-la é predispor à fraternidade, condição e caminho para a paz.

- Já os v. 4-6 recortam os ditos da não violência dos evangelhos (Mt 5, 38-42; Lc 6, 27-

36). Mesmo se tomadas mais da versão lucana – e os retrabalha – visam barrar o ciclo

da violência imperante, sentida nestas três dimensões:

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a) no desprezo por pessoas (algumas categorias), expressa pelo tabefe na face

(direita). O tabefe mais que doer é sinal de desprezo, na cultura judaica. A forma de

violência aqui contornada é o desprezo por pessoas ou categoria de pessoas, etc;

b) na espoliação sofrida pelos mais pobres, de quem se arranca até a roupa do corpo,

isto é, se tira tudo o que é possível. Mesmo se os processos jurídicos fossem raros neste

sentido, a injustiça institucionalizada segue, sorrateiramente às vezes, fazendo este

papel.

c) na economia de acumulação que vai continuamente excluindo os mais frágeis da

sociedade, porque sempre favorece a aquém já tem mais. Basta ver o juro que recebe do

banco quem lhe confia pouco e quem lhe confia muito, ou ainda o valor do juro pago

por um pobre e por um rico ou uma grande multinacional.

Portanto, trabalhar pela paz é a “razão de ser dos irmãos menores”. E isso não

para ser revolucionário, mas para poder seguir os passos de Jesus Cristo, o grande

libertador, morto como criminoso político por querer reverter a situação de opressão

vivida pela grande maioria do povo. Com esse projeto de vida e missão, Francisco não

podia aceitar o conselho do Cardeal Jaó de São Paulo para ingressar em outra Ordem

(1Cel 33, 1-3), pois nenhuma delas vislumbrava essa perspectiva.

Francisco teria tido toda esta clareza? Provavelmente não de forma conceitual.

Mas a viveu de forma meridiana. É como a resposta de uma mãe idosa celebrando o

jubileu de casamento: a senhora amou mesmo seu marido. Disse ela: “eu não sei se

amei. Só sei que fiz tudo por ele, não pensei em mais ninguém, não me reservei

absolutamente nada só para mim. Sempre vivi assim”.