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O “pessimismo sentimental” e a experiência artística: por que a crítica não é um objeto em via de extinção. Este artigo pega carona no famoso artigo “O ‘pessimismo sentimental’ e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um objeto em via de extinção” 1 , de Marshall Sahlins, onde o antropólogo americano rebate a tese de uma série de antropólogos que estariam postulando o desaparecimento do objeto de estudo da antropologia, ou seja, a “cultura”, afirmando que o objeto, longe de desaparecer, está se transformando dentro de uma nova ordem global promovida pelo capitalismo. Para Sahlins, este pânico do desaparecimento do objeto do estudo da Antropologia está calcado num conceito tradicional de cultura entendido como sistemas limitados, coerentes, ou seja, muito bem determinado. Este parece ser o grande problema no entendimento da meta-crítica de arte na contemporaneidade, pois, assim como na antropologia, o “desaparecimento”, ou no caso da crítica, o “enfraquecimento” tem características de ser apenas aparente, pois, estas críticas que “desaparecem” acabam por reaparecer sob novas formas, e sobretudo dentro do que, como veremos a seguir Pierre Bordieu 2 chama de campo da industria cultural em contraposição ao campo da produção erudita: 1 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0104-93131997000200004&lng=es&nrm=iso&tlng=pt em 2 de maio de 2010. 2 BORDIEU, Pierre. P. 105.

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Page 1: O “pessimismo sentimental” e a experiência da crítica por que a cultura não é um objeto em via de extinção

O “pessimismo sentimental” e a experiência artística: por que a crítica não é

um objeto em via de extinção.

Este artigo pega carona no famoso artigo “O ‘pessimismo sentimental’ e a

experiência etnográfica: por que a cultura não é um objeto em via de extinção”1, de

Marshall Sahlins, onde o antropólogo americano rebate a tese de uma série de

antropólogos que estariam postulando o desaparecimento do objeto de estudo da

antropologia, ou seja, a “cultura”, afirmando que o objeto, longe de desaparecer, está

se transformando dentro de uma nova ordem global promovida pelo capitalismo.

Para Sahlins, este pânico do desaparecimento do objeto do estudo da

Antropologia está calcado num conceito tradicional de cultura entendido como

sistemas limitados, coerentes, ou seja, muito bem determinado.

Este parece ser o grande problema no entendimento da meta-crítica de arte na

contemporaneidade, pois, assim como na antropologia, o “desaparecimento”, ou no

caso da crítica, o “enfraquecimento” tem características de ser apenas aparente, pois,

estas críticas que “desaparecem” acabam por reaparecer sob novas formas, e

sobretudo dentro do que, como veremos a seguir Pierre Bordieu2 chama de campo da

industria cultural em contraposição ao campo da produção erudita:

O campo de produção propriamente dito deriva sua estrutura específica da oposição -

mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística que se

estabelece entre, de um lado, o campo de produção erudita enquanto sistema que

produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente

destinados (ao menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que

também produzem para produtores de bens culturais e, de outro, o campo da indústria

cultural especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais

destinados a não-produtores de bens culturais ("o grande público") que podem ser

recrutados tanto nas frações não-intelectuais das classes dominantes ("o público

cultivado") como nas demais classes sociais.

1 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131997000200004&lng=es&nrm=iso&tlng=pt em 2 de maio de 2010.2 BORDIEU, Pierre. P. 105.

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O campo de produção erudita, ao contrário do sistema da indústria cultural −

que busca a conquista do maior mercado possível – produz as suas próprias normas de

produção e os critérios de avaliação de seus produtos, busca o reconhecimento

cultural e legitima o que é ou não “arte”: “ O campo de produção erudita somente se

constitui como sistema de produção que produz objetivamente apenas para os

produtores através de uma ruptura com o público dos não-produtores, ou seja, com as

frações não-intelectuais das classes dominantes”3.

Se para Sahlins, o desaparecimento da “cultura” está ligado a um conceito onde

a cultura é colocada sob suspeita, pois, foi utilizada para marcar “diferenças” entre os

povos, ou seja, um instrumento para marcar hegemonicamente as classes sociais. A

“critica de arte” parece seguir uma caminho semelhante, pois ao objetivar

principalmente o campo da produção erudita, não reconhece as milhares de novas

críticas dentro do campo da industria cultural efetuadas incisivamente nas novas

mídias que aparecem aos borbotões.

Este crescimento da arte popular, e, portanto da sua forma de critica, é bem

descrita por Paulo Scarpa que fala da importante transformação que está ocorrendo

nas ciências humanas em geral com uma espécie de valorização do “popular enquanto

objeto legítimo de estudo, com a cultura erudita perdendo cada vez mais espaço nos

processos de distinção social dentro do meio intelectual e acadêmico. Esta tendência

contemporânea pode foi verificada por Eagleton:

Enquanto nos velhos tempos, você poderia ser expulso pelos colegas da roda de bebida

se não conseguisse detectar uma metonímia em Robert Herrick, hoje pode ser visto

como um indescritível nerd se para começar, tiver ouvido falar de metonímias ou de

Herrick. (EAGLETON, 2005, p. 16)

Um segundo ponto a ser avaliado diz respeito ao que Sahlins chama de um

“pânico pós-modernista” produzido por uma “perda” da coerência das ordens

culturais, com os modelos (formas) de cultura se alterando à medida que a articulação

entre povo, lugar e tradição vai perdendo todo isoformismo. E daí, como pode ser

efetuada a crítica frente a esta “falta de forma”?

3 ibid

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Acontece, que esta “forma” que a crítica esta acostumada a julgar esta ligada a

um conceito ultrapassado − advindo da filosofia cartesiana e que foi aprimorado por

Kant − da relação sujeito-objeto, e que a arte contemporânea deve encontrar uma

nova forma de juízo estético para estas novas formas culturais fractais, desprovida de

limites, estruturas, com superposições complexas que não podem ser comparadas no

espaço terrestre.

Neste sentido é interessante lembrar o período que foi chamado por Ernst

Cassirer como o século da crítica:

O século XVIII que tanto gostou de proclamar-se o "século da filosofia" não tem menos

direito ao título de "século da crítica". Na verdade, essas duas fórmulas constituem

apenas a expressão diferente de uma só e mesma realidade. Elas tendem a caracterizar

sob seus diversos aspectos o dinamismo intelectual com que a época sente-se

interiormente animada e que alimentou os seus mais originais movimentos de idéias.

Em todos os grandes espíritos do século manifestam-se os laços íntimos que unem à

filosofia a Critica estética e literária - e não por acaso mas sempre na base de uma

unidade profunda e intrínseca dos problemas. Sem dúvida, existiram sempre relações

estreitas entre os problemas fundamentais da filosofia especulativa e os da crítica

literária, a partir desse Renascença que queria ser um "re- nascer das artes e das

ciências" e resultou tanto de permutas diretas e estimulantes quanto de um

enriquecimento recíproco.

Esta ligação umbilical da filosofia à critica faz com que Luiz Camillo Osorio em

Razões da crítica (2005) lance mão da estética kantiana para combater o “pessimismo

sentimental” que remete aos “bons tempos” do crítico Mário Pedrosa, considerado

como pioneiro na crítica de arte moderna brasileira:

Independentemente de ser ele (Mario Pedrosa) a maior referência intelectual e ética

da crítica no Brasil, ficar nesta nostalgia não ajuda em nada, e é urgente pensar sobre

seus desdobramentos contemporâneos. Creio que há hoje no Brasil uma discussão

sobre arte bastante intensa e autores qualificados atuando em museus, curadorias,

universidades e, inclusive, na imprensa. (OSORIO, 2005, p. 7).

Na defesa pela importância da crítica Osorio diz perceber um misto de arrogância

e defesa de território embutido nessa nostalgia que insiste no fim da crítica. A crise da crítica

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ressoa na crise da política, de um espaço comum, múltiplo e pautado pelas diferenças, onde se

negociam expectativas e anseios. “É como se as obras, em nome de uma falsa liberdade, não

fossem mais passíveis de ser julgadas. Não havendo mais nada a ser julgado, tudo é possível e

ninguém deve ficar ditando regras” (OSORIO, 2005, p.9).

Neste sentido, Osorio vai chamar a atenção para a importância da crítica na

elaboração do sentido da obra:

A crítica procura contato entre o especifico e o comum, abrindo passagens entre a arte

e o mundo. Os critérios do que seja arte não existem de antemão, o ajuizamento se faz

necessário não para criar critérios, mas para participar do processo de constituição de

sentido, sempre cheio de negociações e desdobramentos imprevisíveis. (OSORIO,

2005, p. 31)

E ainda:

O juízo de gosto é belo exprime um acordo das faculdades humanas que apraz no

próprio ato. Por conseguinte trata-se de um prazer subjetivo que não diz nada, ao

menos à principio, em relação ao objeto. O belo propiciado não pela característica da

obra e sim pela sua representação formal realizada pela ação da imaginação. (OSORIO,

2005, p. 26)

Mas apesar de Osorio apresentar fortemente estes argumentos que demonstram a

importância da critica na contemporaneidade, e de se aproximar da teoria fenomenológica dos

efeitos proposta por Wolfgang Iser (1996); quando ele vai discutir a forma como esta crítica

deveria ser elaborada, ele acaba por cair no mesmo substancialismo, que descrevemos

anteriormente, ao trazer o conceito kantista de gênio: “A partir deste momento a arte passa a

ser considerada como produto de um gênio, que cria livre de coerção a regras e cuja obra

constitui uma forma nova de perceber e pensar a realidade” (OSORIO, 2005, p. 25)

Dessa forma, apesar de Osorio combater valentemente o “pessimismo

sentimental” com relação ao fim da crítica, ele sentimentalmente se agarra ao

conceito substancialista de gênio e não leva em conta a filosofia contemporânea com

o final das metanarrativas que prediz a impossibilidade de submeter todos os discursos

(ou jogos de linguagem) à autoridade de um metadiscurso que se pretende a síntese

do significante, do significado e da própria significação, isto é, universal e consistente. (

LYOTARD, 1988, p. XI):

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[...] O vínculo social é a linguagem, mas ele não é constituído de uma só fibra, é uma

tessitura onde se cruzam pelo menos dois tipos, na realidade um número

indeterminado, de jogos de linguagem que obedecem a regras diferentes. ‗Nossa

linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças,

de casas novas e velhas, e de casas dimensionadas às novas épocas; e tudo isto cercado

por uma quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares e com casas

uniformes‘. A unitotalidade ou a síntese sob a autoridade de um metadiscurso do saber

é inaplicável, ele pergunta: ‗A partir de quantas casas e ruas uma cidade começa a ser

uma cidade?‘ Ninguém fala todas as línguas, elas não possuem uma metalinguagem

universal. (WITTGENSTEIN citado em LYOTARD, 1988, p. 75)

Enfim, este ensaio tem como objetivo mostrar que a crítica passa atualmente

por dois problemas fundamentais: (i) o desinteresse dos próprios participantes em

trabalhar com a cultura erudita, que perde espaço para a indústria cultural e seus

novos métodos críticos, onde muitas vezes como Marshall Mcluhan nos ensina “os

meios é a massagem(mensagem), e (ii) a dificuldade na obtenção de um (uns)

método(s) críticos que sejam aderentes a este novo Zeitgeist, uma abordagem, que

sem dúvida terá que ser multidisciplinar, a partir de teorias advindas das artes em

geral, da filosofia, da antropologia e demais disciplinas das ciências humana, que

permitam analisar a obra de arte por diversas perspectivas e ilustrar as diversas

posições.