o perfil feminino de helena, de machado de assis · 2019. 6. 4. · o perfil feminino de helena, de...
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O PERFIL FEMININO DE HELENA, DE MACHADO DE ASSIS
Renata Franqui (Universidade Estadual de Maringá)
Cezar de Alencar Arnaut de Toledo (Universidade Estadual de Maringá)
Resumo
O texto discute as nuances da personagem Helena, de Machado de Assis. O objetivo é verificar os aspectos que constituem sua subjetividade, a fim de dimensionar a função social atribuída à mulher naquele momento histórico e como a literatura a retrata. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, realizada a partir da apreciação da narrativa machadiana, bem como de literatura de apoio. A obra é uma importante representação dos costumes sociais característicos da sociedade urbana brasileira do século XIX, bem como uma fonte profícua para a compreensão do papel social desempenhado pelas mulheres das classes mais abastadas no Brasil dos anos oitocentos. A ideia é mostrar que a obra possui um sentido pedagógico e, por intermédio de sua protagonista, pode ser entendida como um contributo para a manutenção do status quo patriarcal, conservando a ordem vigente. Palavras-chave: Educação feminina; Literatura Brasileira; Machado de Assis. Introdução
O romance “Helena”, de Machado de Assis, foi originalmente publicado em
1876, na forma de 35 folhetins, no jornal O Globo, seguido da publicização do livro
impresso, no mesmo ano. O romance urbano conta a história de Helena, uma jovem
delicada e perspicaz que, em virtude da morte do Conselheiro Vale - por quem fora
adotada como filha -, vê-se acolhida pelos familiares paternos, que acreditavam na
legitimidade do parentesco. O enredo é ambientado no bairro do Andaraí, zona norte
do Rio de Janeiro, e foi construído a partir da relação de afeto entre Helena e seu
suposto irmão, Estácio, rapaz de robustos predicados. A escolha da obra como fonte
para a realização deste trabalho se deu pelo fato de ser uma importante
representação dos costumes sociais característicos da sociedade urbana brasileira
do século XIX, bem como fonte profícua para a compreensão do papel social
desempenhado pelas mulheres, especialmente as mais abastadas, no Brasil dos
oitocentos.
A CONDIÇÃO SOCIAL DA MULHER NO BRASIL OITOCENTISTA
A compreensão das identidades femininas engendradas na sociedade
brasileira do século XIX requer que se recorra à historicidade da época. A chegada
da família real portuguesa, em 1808, trouxe mudanças significativas no cenário
político, social e cultural do Brasil. Logo após, a independência política recém-
proclamada (1822), os debates acerca da abolição da escravatura e a vinda de
imigrantes europeus alteraram expressivamente a dinâmica da sociedade brasileira.
No cenário de transformações sociais e econômicas características do século XIX, a
função social da mulher fora redesenhada. Seu protagonismo se desenvolvia
especialmente devido à forte influência do ideal positivista comtiano, no qual a
natureza da mulher era considerada moralmente superior à do homem, mas a quem
não deveria caber uma função política na sociedade.
A atuação das mulheres era reduzida ao espaço privado, ocupando uma
posição secundária em relação ao homem, para o qual cumpria a função de
incentivadora em suas conquistas e êxitos. Essa diferenciação entre os papéis
sociais a serem desempenhados por um e outro gênero se devia à concepção da
época de que os homens “[...] eram seres ativos, menos dados a sentimentos, com
instinto sexual mais acentuado, e as mulheres, indivíduos submissos, puros,
bondosos, de sexualidade menos desenvolvida e destinadas principalmente a ser
mães e esposas” (STEIN, 1984, p. 24). Por ser considerada um ser naturalmente
puro, amoroso e abnegado, à mulher cumpria o destino de abdicar de sua
individualidade para desempenhar funções sociais condizentes ao ideal da época,
pondo-se sempre a serviço de outrem.
HELENA: NUANCES DE UMA PERSONALIDADE MOLDADA À LUZ DO PATERNALISMO
A obra “Helena” exibe uma representação da sociedade da época, cujos
personagens retratam os papéis socialmente atribuídos aos diferentes atores
sociais. As características dos personagens, apresentadas ao longo da narrativa
machadiana, põem em evidência as particularidades da sociedade brasileira nos
oitocentos, sobretudo no que se refere aos hábitos e costumes da elite.
Em Helena, Machado de Assis apresenta a heroína que dá nome ao romance
de modo profundo, caracterizando a densidade de seus aspectos subjetivos. No
romance machadiano a personagem Helena torna-se conhecida a partir da morte do
Conselheiro Vale. Homem considerado em vida pelo seu comportamento exemplar e
boas relações, fez cumprir seu último desejo, narrado em testamento, que fazia da
jovem Helena sua filha oficialmente reconhecida e herdeira de parte de seus bens.
Em sua análise do romance, Chalhoub fala a respeito da inserção de Helena
na família Vale. Ao ter o testamento conhecido e "[...] não satisfeito em legar as suas
propriedades, o conselheiro Vale dispunha que os seus também lhe deviam herdar
os sentimentos" (CHALHOUB, 2003, p. 14). Para o autor, "[...] vontade senhorial
carrega tamanha inércia que continua a governar os vivos postumamente"
(CHALHOUB, 2003, p. 13). O autor ressalta a predominância do "[...] ideário de
dominação de classe: a vontade do chefe de família, do senhor-proprietário, é
inviolável, e é essa vontade que organiza e dá sentido às relações sociais que a
circundam" (CHALHOUB, 2003, p. 13).
Helena é apresentada ao público leitor como uma moça de dezesseis ou
dezessete anos, de maneiras polidas e gravidade de aspecto, “delgada sem
magreza”, “talhe elegante e atitudes modestas” (ASSIS, 2012, p. 31). “Uma só coisa
pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão
de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não
era pequeno” (ASSIS, 2012, p. 32). A valorização de tais predicados femininos
evidenciava uma face conservadora que punha a mulher como guardiã do lar,
espaço que lhe cabia na sociedade oitocentista, constituindo um molde a ser
seguido pelas mulheres e cristalizando a ordem vigente.
A sensibilidade de Helena contrastava com sua própria racionalidade –
característica normalmente atribuída ao gênero masculino. “Dessa forma, Machado
de Assis abordava uma experiência subversiva ao que era designado aos gêneros”
(SALVAIA, 2016, p. 94).
Os romances moralizantes – a exemplo de Helena –, são aqui entendidos
como recursos pedagógicos, uma vez que serviam como veículos para educar as
mulheres letradas a respeito de seus comportamentos e modos de ser. Nesse
sentido, a construção da personagem Helena revela expectativas sociais a serem
desempenhadas pelas mulheres no período que corresponde às décadas finais dos
oitocentos. Assim, Helena constituía fonte de inspiração e de reconhecimento para
as mulheres que a conheceram pela narrativa de Machado, cumprindo seu sentido
pedagógico. A obra, por intermédio de sua protagonista, deve ser considerada como
um contributo para a manutenção do status quo patriarcal, conservando a ordem
vigente.
Considerações finais
A análise de uma obra literária é um importante instrumento para a
compreensão de um dado momento histórico. O retrato traçado por Machado de
Assis caracteriza os limites das sociabilidades e dos modos de ser e de pensar da
sociedade em uma época marcada pela falta de identidade nacional, dada às
alterações sociais, políticas e econômicas decorrentes do período imperial.
Especialmente no que se refere à expectativa socialmente atribuída à figura feminina
naquele período, salienta-se que competia às mulheres saber se portar nos espaços
de sociabilidade, a partir de um padrão de civilidade que estivesse de acordo com as
regras de comportamento determinadas pelas elites europeias.
Assim, apesar da origem humilde de Helena, sua ascensão social propiciada
pelo seu reconhecimento como pertencente à abastada família de seu falecido pai,
atribuiu-lhe a incumbência de se adequar aos padrões sociais de comportamento e
recato esperados de uma mulher da elite naquele momento histórico. Discutir o perfil
feminino delineado por Machado de Assis na obra permite entender as nuances das
relações sociais que se estabeleceram no período, revelando aspectos fundamentais
para a compreensão da sociedade retratada à época, marcada pela particularidade
das relações paternalistas, na qual a mulher devia cumprir o papel de esposa
recatada, mãe zelosa e dona de casa esmerada. Referências
ASSIS, M. de. Helena. 9. ed. São Paulo: Ática, 1979. CHALHOUB, S. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SALVAIA, P. Diálogos possíveis: o folhetim Helena (1876), de Machado de Assis, no jornal O Globo. 2014. 166f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP, 2014. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000931456>. Acesso em: 2 abr. 2018. STEIN, I. Figuras femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.