o parasitismo do infinito na psicanálise

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UNIVERSIDADE F EDERAL DE S ANTA CATARINA CENTRO DE F ILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS -GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CURSO DE DOUTORADO O PARASITISMO DO INFINITO NA PSICANÁLISE L UIS F RANCISCO E SPÍNDOLA C AMARGO Florianópolis 2011

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Esta tese de doutoramento trabalha o termo infinito em Freud e Lacan. "Nossa tese é que encontramos no problema dos finais de análise uma doutrina do infinito que se manifesta na forma de um parasitismo."

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA CURSO DE DOUTORADO

    O PARASITISMO DO INFINI TO NA PSICANLISE

    LUIS FRANCIS CO ES PNDOLA CAMARGO

    Florianpolis 2011

  • LUIS FRANCIS CO ES PNDOLA CAMARGO

    O PARASITISMO DO INFINI TO NA PSICANLISE

    Tese apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Psicologia no Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Orientador: Fernando Aguiar Brito de Sousa Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFSC

    Coorientador: Serge Cottet Departamento de Psicanlise da Universidade de Paris VIII

    Apoio CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    Florianpolis 2011

  • Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria Universidade Federal de Santa Catarina

    LUIS FRANCIS CO ES PNDOLA CAMARGO

    O PARASITISMO DO INFINITO NA PSICANL

    C172p Camargo, Luis Francisco Espndola

    O parasitismo do infinito na psicanlise [tese] /

    Luis Francisco Espndola Camargo; orientador,

    Fernando Aguiar Brito de Souza, co-orientador, Serge

    Cottet. - Florianpolis, SC, 2011.

    1 v.: il., grafs., tabs.

    Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa

    Catarina, Centro de Filosofia e Cincias Humanas.

    Programa de Ps- Graduao em Psicologia.

    Inclui referncias

    1. Psicologia. 2. Psicanlise - Aspectos sociais.

    3. Parasitismo. 4. Infinito. 5. Fantasia. I. Sousa,

    Fernando Aguiar Brito de. II. Cottet, Serge. III.

    Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de

    Ps-Graduao em Psicologia.

    IV. Ttulo. CDU 159.9

  • Tese apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Psicologia no Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Banca examinadora:

  • A G R A D E C I M E N T O S Agradeo a todos que me ajudaram e me apoiaram de alguma forma na realizao deste trabalho, especialmente: Fernando Aguiar, Serge Cottet, Jacques-Alain Miller, Marie-Hlne Brousse, Ktia Maheirie, Florent Leux, Priscila Camargo, Sabrina Camargo, Rabah Bounani, Lyna Leux, Michel Leux, Yvette Colomer, Rosa Maria Espndola, Ceclia Zica Camargo e Luciana Rosa. Ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGP/UFSC), pela sustentao e acolhimento. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pelo apoio. Ao Departamento de Psicanlise da Universidade de Paris VIII, pelo ensino e colaborao.

  • Ao Engenheiro Camargo

  • Essas vias que Freud abriu ao longo dessa experincia, ele as perseguiu durante toda a sua vida, atingindo enfim algo a que se poderia chamar uma terra prometida. No se pode dizer, entretanto, que tenha entrado nela. Basta ler o que se pode considerar como o seu testamento, Anlise Terminvel e Interminvel, para ver que ali havia algo de que teve conscincia, de que no tinha entrado na terra prometida.

    LACAN, Seminrio, Livro 1, 1986 (1953-54), p. 24.

  • R E S U M O

    CAMARGO, L. F. E. O parasitismo do infinito na psicanlise. Florianpolis, 2011. 235 p. Tese de doutorado. Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina.

    Este trabalho uma descrio do termo infinito em Freud e Lacan. Em primeiro lugar, tento demonstrar que as variantes do tratamento psicanaltico anlise das resistncias, anlise do eu, anlise do carter e anlise das relaes de objeto so diferentes modos de recusa do conceito de anlise infinita. Neste ponto, encontramos dissenses e rupturas no movimento psicanaltico relacionadas a uma recusa do conceito freudiano de pulso de morte. Em segundo lugar, tento demonstrar a existncia de um parasitismo do infinito na psicanlise a partir de trs obstculos encontrados no tratamento: os obstculos parciais, o obstculo fundamental e o obstculo absoluto. Duas formas de manifestao do infinito podem ser verificadas: a indestrutibilidade do desejo, encontrada no ncleo do inconsciente; o comportamento assinttico do tratamento, consequncia das interpretaes sobre os restos sintomticos a partir do complexo de castrao. Nos finais de anlise encontramos sempre um resto impossvel de desativar, denominado por Freud de fator pulsional constitucional e por Lacan de objeto a. Em termos de cura da neurose, subsistem restos do trabalho de anlise irredutveis ao saber, constituindo assim um limite interpretao. A noo matemtica de limite nos ajuda a esclarecer o ponto que demarca a continuidade e descontinuidade da enumerao dos significantes, o ponto limite entre finito e infinito. Conclumos que uma anlise sempre finita e infinita. Lacan resolve o impasse freudiano da seguinte forma: (1) anlise finita lgica da fantasia. Trata-se da operao de reduo das identificaes imaginrias do sujeito a uma fantasia fundamental. (2) Anlise infinita reduo do sintoma ao sinthoma. Resta um sintoma indestrutvel e incurvel, correlato indestrutibilidade do desejo inconsciente. Em outras palavras, o sujeito jamais se cura do seu inconsciente. Nossa tese que encontramos no problema dos finais de anlise uma doutrina do infinito que se manifesta na forma de um parasitismo. Palavras-chave: Psicanlise. Finito. Infinito. Limite. Fantasia. Sintoma.

    MarialiceRealce

  • A B S T R A C T

    CAMARGO, L. F. E. The parasitism of infinity in psychoanalysis. Florianpolis, 2001, 235 p. Doctoral thesis. Programa de Ps-graduao em Psicologia. Universidade Federal de Santa Catarina, Brazil.

    This work is a mapping of the word infinite in Freud and Lacan. First, I will show that the variants of psychoanalytic treatment - analysis of resistance, self-analysis, character analysis and analysis of object relations - are different ways to refuse the concept of infinite analysis. At this point, we find dissension and disruption of the psychoanalytic movement related to a rejection of the Freudian concept of death instinct. Second, I will try to demonstrate the existence of infinity of parasitism in psychoanalysis from three obstacles in treatment: the partial obstacle, the fundamental obstacle and the absolute obstacle. Two forms of the manifestation of the infinite can be verified: the indestructibility of desire, which is found in the nucleus of the unconscious, and the asymptotic behavior of the treatment, which is a result of interpretations of the symptomatic remains from the castration complex. In the final analysis we always find it impossible to disable a rest, called instinctual constitutional factor by Freud and object a by Lacan. In terms of cure of neurosis subsists the rest of the work of analysis irreducible to knowledge, thus constituting a limit to interpretation. The mathematical notion of limit helps us clarify the point that marks the continuity and discontinuity in the enumeration of signifiers, and the cutoff point between finite and infinite. We conclude that an analysis is always finite and infinite. Lacan resolves the Freudians deadlock as follows: (1) the finite analysis: logic of fantasy. It is the reductive operation of imaginary identifications of the subject to a fundamental fantasy. (2) Infinite Analysis: the symptom reduction sinthome. It remains an incurable and indestructible symptom, correlated to the indestructibility of unconscious desire. In other words, the subject will never cure of his unconsciousness. Our thesis is that we find in the final analysis the problem of a doctrine of the infinite that is manifested in a form of parasitism. Keywords: Psychoanalysis. Finite. Infinite. Limit. Fantasy. Symptom.

  • L I S T A D E I L U S T R A E S FIGURA 1 A ESTRUTURA TETRADRICA, SEUS LUGARES E OS TERMOS DOS DISCURSOS....... 55 FIGURA 2 A ESTRUTURA TETRADRICA DO DISCURSO DO ANALISTA ................................... 57 FIGURA 3 O APARELHO PSQUICO DE FREUD POR LACAN ..................................................... 63 FIGURA 4 GRFICO DA TABELA DA FUNO F(X) PARA X 2 ............................................ 70

    FIGURA 5 REDE 1-3 ............................................................................................................... 93 FIGURA 6 ESQUEMA L .......................................................................................................... 128 FIGURA 7 AS CINCO FASES DA PULSO E AS CINCO FORMAS DO OBJETO A .......................... 179 FIGURA 8 GRFICOS PARA A TABELA 5 DA FUNO F(X) = 1/X ........................................ 230 FIGURA 9 O ESQUEMA DE FREUD SOBRE A ESTRUTURA DE UM GRUPO PRIMRIO............. 238 FIGURA 10 FRMULA DA FANTASIA .................................................................................... 258

    FIGURA 11 ESQUEMA DE DIVISO DO SUJEITO .................................................................... 266

  • L I S T A D E T A B E L A S TABELA 1 RESULTADOS DA FUNO ................................................... 69

    TABELA 2 LEIS DA LINGUAGEM ARTIFICIAL DE LACAN ......................................................... 92 TABELA 3 SEQUNCIA AO ACASO ........................................................................................... 92 TABELA 4 PEQUENA COMPARAO ENTRE A TCNICA E A PSICANLISE ........................... 128 TABELA 5 TABELA PARA FUNO F(X) = 1/X ..................................................................... 229

  • S U M R I O

    INTRODUO................................................................................................................... 21

    1. As tcnicas psicanalticas e a Aufhebung do infinito ............................... 25

    1.1. Um desvio da verdade em psicanlise ...................................................................... 27 1.2. Eu, a verdade, falo........................................................................................................... 34 1.3. A verdade: motor e obstculo ..................................................................................... 40

    1.3.1. A verdade como um motor ........................................................................ 46 1.3.2. A verdade como obstculo ........................................................................ 49

    1.4. Verdade, real e realidade.............................................................................................. 54 1.5. A impossibilidade de dizer toda a verdade ............................................................. 60

    1.5.1. Os limites do aparelho psquico .............................................................. 60 1.5.2. Limite matemtico ...................................................................................... 67 1.5.3. Um limite verdade ................................................................................... 73

    1.6. O paradoxo do saber sobre a verdade ...................................................................... 86 1.6.1. Psicanlise e lgica ..................................................................................... 97 1.6.2. O inconsciente como saber ..................................................................... 107 1.6.3. O inconsciente como verdade ................................................................ 113 1.6.4. O infinito como impossibilidade de saber toda a verdade ............. 120 1.6.5. O ensino contra o saber e a verdade .................................................... 125

    1.7. As tcnicas como recusas do infinito...................................................................... 130 1.7.1. Um desvio fundamental ........................................................................... 130 1.7.2. A recusa do infinito .................................................................................. 144

    2. O testamento de Freud: uma sinfonia do resto ...................................... 160

    2.1. Anlise interminvel, infinita e indefinida ........................................................... 162 2.2. A durao e a acelerao do tempo ....................................................................... 168 2.3. Tripartio: traumatismo, pulso e eu ................................................................. 171

    3. Os obstculos cura em Freud ..................................................................... 175

    3.1. Os obstculos parciais ................................................................................................ 175 3.1.1. O fator quantitativo .................................................................................. 175 3.1.2. Restos de fixaes libidinais .................................................................. 182 3.1.3. Fracasso na desativao do resto ......................................................... 186 3.1.4. O eu, a defesa e os restos ........................................................................ 196

    3.2. O obstculo fundamental .......................................................................................... 201 3.2.1. Uma herana arcaica ................................................................................ 201 3.2.2. Masoquismo primrio e reao teraputica negativa ..................... 206

    3.3. O obstculo absoluto ................................................................................................... 210 3.3.1. Ferenczi e o problem a do fim de anlise ............................................ 210 3.3.2. Uma stira aos analistas .......................................................................... 213 3.3.3. A rocha da castrao ................................................................................ 220

    4. O parasitismo do infinito no fim de anlise ............................................. 227

    4.1. O fim assinttico ........................................................................................................... 227

  • 4.1.1. Limite e infinito ......................................................................................... 229 4.1.2. A noo de assntota em Freud ............................................................. 231 4.1.3. A noo de assntota em Lacan ............................................................. 234

    4.2. O ideal e o infinito ........................................................................................................ 238 4.3. O sujeito do inconsciente habita um universo infinito ...................................... 244 4.4. O infinito parasita o finito ......................................................................................... 253

    5. Duas dimenses clnicas: a anlise finita e a anlise infinita ............256

    5.1. A anlise finita e a fantasia ....................................................................................... 257 5.1.1. O ..................................................................................................... 261 5.1.2. A frmula da fantasia ............................................................................... 263 5.1.3. A dimenso clnica da fantasia .............................................................. 269

    5.2. A anlise infinita e o sintoma ................................................................................... 271

    CONCLUSO ...................................................................................................................281

    BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................285

    APNDICES .....................................................................................................................297

    APNDICE A Plano da estrutura tetradrica dos quatro discursos ....................... 298

  • 21

    INTRODUO

    O leitor no encontrar aqui um trabalho conclusivo e definitivo sobre diversas hipteses que sero colocadas ao longo do texto. Entretanto, encontrar uma cartografia do infinito na psicanlise que visa sustentar a seguinte hiptese: a psicanlise uma doutrina do infinito. A prospeco deste trabalho de tese teve como objetivo determinar a natureza, as caractersticas e a disposio da trama de conceitos em torno da noo de anlise infinita, tanto em Freud como em Lacan. A necessidade de realizar tal mapeamento tem sua origem na seguinte pergunta: por que as anlises, muitas vezes, tm o aspecto e at o comportamento de um tratamento sem fim? Veremos que o impasse clnico da psicanlise e, sobretudo, do prprio Freud nos anos de 1930, foi formulado atravs do conceito de anlise infinita. Consideramos como um postulado que essa noo um conceito, alm do mais, um conceito-chave de onde podemos iniciar uma investigao para tentar compreender no s o problema do fim de anlise em Freud, mas tambm alguns movimentos do ensino de Lacan: a retomada de alguns impasses freudianos e a crtica aos desvios da prtica psicanaltica, que teve sua origem na orientao formulada pela IPA para os programas de formao de alunos dos Institutos de Psicanlise nos anos 1940 e 1950. Logo, este assunto tem grande valor para o ensino da psicanlise nas universidades e nas suas instituies formadoras, pois toca diretamente a questo da formao do psicanalista, em torno da qual subsistem ainda inmeras controvrsias. Nas sadas dos tratamentos, Freud e alguns de seus alunos encontraram restos irredutveis ao trabalho de anlise na forma de um fator quantitativo pulsional, responsvel pelas manifestaes residuais da neurose. Este fator estaria relacionado decomposio da pulso no desenvolvimento da libido sexual e parece sustentar a formulao deste novo conceito terico-clnico: a anlise infinita. Este problema apresentado por Freud atravs de um paradoxo, demonstrado pela conjuno de duas sentenas aparentemente contrrias: 1) A anlise finita e; 2) A anlise infinita (Die Endliche Und Die Unendliche Analyse). Isto , uma anlise finita e infinita e no finita ou infinita; ela as duas coisas.

  • 22

    Nesse sentido, viola-se ai o principio da no-contradio; uma anlise , ao mesmo tempo, um conjunto finito e um conjunto infinito. O operador lgico da sentena freudiana demarca que existe um ponto de disjuno entre o carter finito e infinito de uma psicanlise. Isso implica em afirmar que poderamos encontrar nos tratamentos, sem exceo, um ponto limite que tende ao infinito. Este paradoxo est relacionado a uma simples questo: por que os analisantes no conseguem se curar do seu inconsciente? Lacan destacou no incio de seu ensino a importncia do texto de Freud Anlise Terminvel e Interminvel ou Anlise Finita e Infinita, pois os desvios e as rupturas da doutrina freudiana encontrados nas formulaes de alguns psicanalistas da segunda gerao tiveram sua origem no conceito piv desse texto: a pulso de morte. Por conseguinte, foi necessrio descrever e sustentar uma tese secundria, a partir da seguinte questo-hiptese: as variantes do tratamento psicanaltico anlise do eu, anlise das resistncias, anlise do carter e anlise das relaes de objeto no seriam formas diferentes de uma recusa do conceito de anlise infinita, consequncia de um desacordo entre alguns psicanalistas sobre o conceito de pulso de morte? Em vista dos artigos Perspectivas da psicanlise (1924) e O problema do fim de anlise (1928), de Sandor Ferenczi, e o livro O trauma do nascimento (1929), de Otto Rank, Freud realiza uma interlocuo no texto Anlise Terminvel e Interminvel (1937). Ambos foram os primeiros alunos que demandaram Freud um limite de durao para os tratamentos e uma possibilidade de uma descarga definitiva atravs da simbolizao do trauma original. O conceito de anlise infinita a resposta de Freud. importante destacar que no pretendo aqui realizar uma abordagem exaustiva do conceito de infinito em Freud, como indicou Nathalie Chaurraud no artigo O infinito na psicanlise1. Ela colocou em evidncia que o conceito de infinito atravessa quase toda a obra de Freud. Assim, ele [Freud] abordou o infinito ligado a um problema de delimitao do eu (sentimento ocenico) ou pela via da religio (infinito divino). Igualmente, ele chegou a evocar o

    1 CHARRAUD, N. Linfinie dans la psychanalyse. In: Lacan et les mathmatiques. Paris:

    Anthropos, 1997, p. 83-101.

  • 23

    infinito matemtico (CHARRAUD, 1997, p. 87, traduo minha). Charraud apresenta a noo de infinito tomando como referncia os seguintes textos de Freud: Mal estar na civilizao (1929), Moiss e o monotesmo (1939) e O futuro de uma iluso (1927). Nesses textos, a noo de infinito apresentada respectivamente sob trs formas diferentes. Primeiramente, como sentimento ocenico: sentimento de alguma coisa de ilimitado, de unio com o grande todo, que Freud relaciona ao problema da delimitao do eu. Em segundo lugar, a noo de infinito aparece relacionada extrapolao da potncia atribuda ao pai pela criana, que corresponde ao princpio da ideia de Deus. Em ltimo lugar, Charraud demonstra que a noo de infinito est ligada s matemticas. No texto O futuro de uma iluso, Freud compara a psicanlise, como mtodo de investigao, ao clculo infinitesimal: Ironia dessa aproximao: o clculo infinitesimal toca o infinito matemtico (CHARRAUD, 1997, p. 90, traduo minha). No entanto, a autora no considerou a noo de infinito ligada ao problema do final de anlise, talvez, tendo em vista outro objetivo: ilustrar a paradoxo da relao da psicanlise cincia, a partir da noo de infinito ligada as matemticas. Nesse sentido, este trabalho pode ser considerado um complemento quele realizado por Nathalie Chaurraud. O leitor poder vislumbrar, a partir desta tese, que o conceito de infinito atravessa, do mesmo modo, toda obra de Lacan e, ademais, interessante destacar que se encontra no centro da sua proposio sobre a formao do analista: til pensar na aventura de um Cantor, aventura que justamente no foi gratuita, para sugerir a ordem, no fosse ela transfinita, em que se situa o desejo do psicanalista (LACAN, 2003, p. 255). Veremos que todas as referncias de Lacan ao texto de Freud Anlise Terminvel e Interminvel aparecem relacionadas ao problema do complexo de castrao, na abordagem do sujeito do inconsciente ao falo. No artigo intitulado O infinito e a castrao, publicado em Scilicet, nmero 4, de 1973, revista da EFP dirigida por Lacan nos anos 1970 o autor tenta demonstrar que a castrao o teorema fundamental da matemtica do inconsciente, e que na psicanlise o ponto de projeo infinita est relacionado ao significante flico. Destaca-se ainda a implicao existente entre fim de anlise e o conceito lacaniano de real. As anlises encontraro a o seu maior obstculo, um real irredutvel ao sentido, que se manifesta sob trs

  • 24

    aspectos diferentes: 1) restos transferenciais sob a forma de uma reao teraputica negativa; 2) restos ligados a pulso destrutiva sob a forma de um masoquismo primrio e; 3) restos ligados fase genital e/ou flica sob forma de uma recusa feminilidade. O texto Anlise Terminvel e Interminvel pode ser lido como a descrio freudiana da zona limite entre o esgotvel e o inesgotvel da simbolizao. Tentarei ir um pouco mais longe desta zona limite, realizando uma pesquisa sobre os desenvolvimentos tericos e clnicos desse conceito original de Freud, a partir de uma perspectiva encontrada em Jacques-Alain Miller, que coloca em evidncia dois eixos de leitura da obra de Lacan, a dimenso clnica do fantasma e a dimenso clnica do sintoma. Estas duas dimenses so respectivamente associadas nesta tese noo de anlise finita e anlise infinita. Lacan formulou o fim de anlise em termos de fantasia fundamental, enquanto que o sintoma se encontraria no universo infinito do sujeito. A propsito do sujeito do inconsciente, vale lembrar que para Lacan ele est associado ao sujeito da cincia. O sujeito do inconsciente o sujeito com o qual se trabalha numa psicanlise, e que traz consigo aquilo que Alexander Koyr coloca na passagem do pensamento da renascena cincia moderna: o conceito de infinito. Assim, o infinito parasitaria o sujeito da cincia e, por conseguinte, o sujeito do inconsciente. Foi o sujeito da cincia que, atravs das histricas, veio ser veculo da voz do inconsciente. O inconsciente se manifestou para Freud atravs dos seus derivados: os sintomas, sonhos e atos falhos; o inconsciente um parasita que habita o interior do ser falante.

  • 25

    1. AS TCNICAS PSICANALTICAS E A AUFHEBUNG1 DO INFINITO

    sempre em funo da questo o que fazemos quando fazemos anlise? Partirei, pois, da atualidade da tcnica, do que se diz, se escreve e se pratica quanto tcnica analtica.

    Lacan, O seminrio. Livro 1. 1986 (1953-1954), p. 19.

    Um dos primeiros objetivos deste trabalho de pesquisa foi levantar as questes centrais do texto de Freud Die endlich und die unendlich Analyse, publicado pela primeira vez em 1937, no Internationale Zeitschrift fr Psychoanalyse. Seguindo essa tarefa, colocada de antemo como uma das etapas desse trabalho, necessrio abordar o problema relativo tcnica psicanaltica. Veremos nesse captulo que ao mesmo tempo em que abordamos as razes pelas quais o ensino de Lacan tem como ponto de partida o problema relativo tcnica psicanaltica2, pelo qual podemos dizer se trata para Lacan de uma desmistificao de uma tradio em psicanlise em torno do termo tcnica psicanaltica, abordaremos tambm a relao a esse termo e o texto de Freud, tido por alguns autores, entre eles Lacan e James Strachey, como um dos

    1 Conforme Jean Hyppolite no comentrio sobre o texto Die Verneinung de Freud (Cf.

    HYPPOLITE 1998 [1954], p. 895), a Aufhebung uma palavra dialtica que ao mesmo tempo quer dizer negar, suprimir, mas tambm conservar. Segundo Hyppolite para Freud a denegao (traduzida como a negativa na edio brasileira das obras de Freud) a Aufhebung do recalque, mas nem por isso uma aceitao do recalcado. Na edio da Editora Imago temos a seguinte traduo do trecho do texto de Freud mencionado por Hyppolite: A negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que est reprimido; com efeito, j uma suspenso (Aufhebung) da recalque, embora no, naturalmente uma aceitao do que est reprimido (FREUD, 1996, V. XIX, p. 3). Uma nova traduo do texto de Freud Die Verneinung foi recentemente publicado no nmero 65 da revista Correio, publicao da Escola Brasileira de Psicanlise. Um contedo recalcado de representao ou de pensamento pode, pois, penetrar na conscincia sob a condio de que se deixe negar. A denegao um modo de tomar conhecimento do recalcado, j propriamente uma suspenso do recalque, mas certamente no uma aceitao do recalcado (FREUD, 2010 [1925], p. 26). 2 Cf. LACAN, Jacques. O seminrio, livro 1. Os escritos tcnicos de Freud. Rio de Janeiro:

    Jorge Zahar Editor, 1986 [1953-1954].

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    mais importantes a respeito da tcnica, ou seja, Anlise Terminvel e Interminvel. Em poucas palavras, esse trabalho uma resposta de Freud as tentativas de variantes da tcnica psicanaltica no seio do movimento psicanaltico.

    Na prpria Interpretao dos Sonhos, trata-se o tempo todo, perpetuamente, de tcnica. Posto de lado o que ele escreveu sobre os temas mitolgicos, etnogrficos, culturais, no h obra em que Freud no nos traga alguma coisa sobre a tcnica. Intil ainda sublinhar que um artigo como Anlise Terminvel e interminvel, aparecido por volta do ano de

    19341, um dos artigos mais importantes quanto tcnica

    (LACAN, 1986 [1953-1954], p. 17).

    Segundo a nota do editor ingls, James Strachey, Anlise Terminvel e Interminvel foi escrito no incio de 1937, finalizado e publicado em junho do mesmo ano. Foi traduzido para o ingls com o ttulo Analysis Terminable and Interminable e para o portugus brasileiro, atravs da Editora Imago, com o mesmo ttulo do ingls, isto , Anlise Terminvel e Interminvel. At o momento, a nica verso brasileira desse artigo de Freud aquela traduzida diretamente da edio inglesa. Por enquanto, ser aqui adotado o ttulo do artigo segundo a verso brasileira, mas ao longo deste trabalho, paulatinamente, o ttulo Anlise Terminvel e Interminvel ser substitudo por uma proposta de traduo de Jacques Lacan que introduz os seguintes termos: finito e infinito. Essa proposta consiste na substituio dos termos terminvel por finito e interminvel por infinito. Ela implica em tratar esses dois termos como conceitos particulares, sendo que Lacan apontara implicitamente uma necessidade de fundamentao a partir das suas origens, ou seja, a lgica, e cujas origens a entrada no pensamento ocidental demarcar precisamente o ponto de surgimento da cincia moderna, conforme tese proposta por Alexander Koyr2.

    1 O texto de Freud foi publicado em 1937. A propsito da manuteno de certos erros nos

    Seminrios de Lacan ler Jacques-Alain Miller Entrevista sobre o Seminrio com Franois Ansermet. In: Arteira. Vol. 3. Escola Brasileira de Psicanlise Seo Santa Catariana, 2010. 2 Ver seo 4.3.

  • 27

    1.1. Um desvio da verdade em psicanlise

    James Strachey sublinha que Anlise Terminvel e Interminvel (1937), bem como o artigo subsequente, Construes em Anlise (1937), publicado em dezembro do mesmo ano, so os ltimos escritos estritamente psicanalticos de Freud. Resumidamente, no ltimo dos artigos tcnicos, Construes em Anlise, Freud trata principalmente da diferena entre verdade histrica (construes substitutivas) e realidade material. A realidade material constitui para Freud o contedo recalcado ou apagado da memria. Tomar o contedo recalcado como equivalente ao contedo apagado, ou eliminado da memria, implica em considerar que a reconstruo da verdade reconstruo do contedo material no deve ser tomada como o reaparecimento material de uma verdade suprimida no sujeito, mas como a melhor das suas aproximaes possveis, como a miragem mais prxima da realidade apagada. Neste ponto, se esboa o problema da validade da verdade em psicanlise, onde se toma a interpretao como a melhor aproximao da verdade de um sujeito. Assim como para Freud, o problema do estatuto da verdade em psicanlise no passou despercebido por Lacan. Muito pelo contrrio, o problema do estatuto da verdade em psicanlise um assunto de grande relevncia para Lacan, e atravessa todo o seu ensino, desde o incio. Podemos encontr-lo pulverizado em vrios textos dos Escritos1, entre eles, Variantes do tratamento padro (1955), A coisa freudiana ou sentido do retorno a Freud em psicanlise (1956), Situao da psicanlise e formao do psicanalista em 1956, e dez anos mais tarde em A cincia e a verdade (1966). importante informar ao leitor que essas datas entre parnteses correspondem s datas das suas respectivas publicaes: Variantes do tratamento padro um escrito redigido em 1955 e publicado na Encyclopdie mdico-chirurgicale, psychiatrie no mesmo ano. A coisa freudiana um texto ampliado de uma conferncia pronunciada por

    1 Os Escritos uma coletnea de textos de Lacan publicados em 1966 pela editora Seuil.

    Esse livro rene comunicaes em congressos, colquios, conferncias, relatrios tericos, aulas de seminrios e artigos para revistas especializadas produzidos por Lacan desde 1936 at 1966.

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    Lacan em 1955, na Clnica Neuropsiquitrica de Viena, e publicado em volution Psychiatrique em 1956. Situao da psicanlise e formao do psicanalista em 1956 foi publicado em Les tudes Philosophiques, tendo em vista a comemorao do centenrio do nascimento de Freud. Ainda a ressaltar que nesse ltimo texto, Lacan lana uma dura crtica estrutura do programa de formao da IPA, atravs de um estilo irnico e mordaz que nos faz lembrar uma stira. A crtica atinge diretamente os costumes e as tradies que foram reproduzidos pela IPA.

    Est justamente nisso a falha do sistema como meio de triagem dos sujeitos e, conjugando-se esta com a insonoridade que ele ope fala, no nos havemos de surpreender com alguns resultados paradoxais, dos quais apontaremos apenas dois, um de efeito permanente, outro composto de casos singulares. 1. O de que os programas nele impostos docncia tomam essencialmente por objeto o que chamaremos de matrias de fico, nada se encontrando ali de positivo seno um ensino mdico que, por no se passar de repeteco, do ensino pblico uma cpia suprflua, o que de admirar que seja tolerado; 2. O de que, devendo uma poltica de silncio tenaz encontrar sua via para a Beatitude, o analfabetismo em seu estado congnito no fica sem esperana de ter sucesso (LACAN, 1998 [1966], p. 485).

    Lacan se reporta neste breve trecho, retirado do texto Situao da psicanlise em 1956, respectivamente estrutura do programa de formao dos analistas (1) e ao modelo de triagem dos novos analistas adotado pela IPA (2) que priorizava a mudez e a invisibilidade dos candidatos psicanalista (poltica de silncio e analfabetismo), ironicamente denominados por Lacan de sapatinhos apertados1. Sua aprovao dependia exclusivamente de alguns critrios relativos ao gradus (as Suficincias), que eram as regras obscuras fundadas, conforme o prprio Lacan, em uma hierarquia e na ideia de classe no interior do grupo psicanaltico: [...] daremos o nome de Suficincia ao gradus, ao nico gradus da hierarquia psicanaltica (LACAN, 1998a [1966], p. 478). Poderamos dizer que o gradus era as condies exigidas para que candidato psicanalista

    1 Em francs petits souliers

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    obtivesse um determinado grau necessrio para poder ser autorizado a praticar a psicanlise. O tema da formao do analista est diretamente articulado ao problema da anlise infinita. Tendo em vista que para Lacan a formao do analista dependeria diretamente da relao que cada sujeito mantm com o seu prprio inconsciente e com certas condies a serem atingidas na sua prpria anlise, o problema do infinito na experincia da psicanlise tem sua origem nas anlises didticas e na concepo de seus limites. Lacan no concordava com os termos exigidos pela IPA em relao a formao de novos analistas. Ele comparava o programa de formao dos analistas, e at mesmo a estrutura da prpria IPA, as estruturas de grupo descritas por Freud no seu trabalho de 1921, Psicologia das massas e anlise do eu. Nesse texto, Freud utiliza como modelos de estruturas de grupo a Igreja e o Exrcito estruturas centradas numa identificao ao lder.

    [...] a propsito da Igreja e do Exrcito, pelo mecanismo mediante os quais um grupo orgnico participa da multido, investigao essa cuja evidente parcialidade justifica-se pela descoberta fundamental da identificao do eu de cada indivduo com uma mesma imagem ideal, cuja miragem sustentada pela imagem do lder. [...] Freud sem dvida se interrogou sobre a margem deixada ao predomnio da funo do boss ou do chefo numa organizao que, para sustentar sua prpria fala, decerto podia, como seus modelos, equilibrar-se num recurso ao vnculo simblico, isto , numa tradio ou numa disciplina [...] (LACAN, 1998a [1966], p. 478).

    Portanto, podemos dizer que para Lacan era necessrio demonstrar que o modelo de organizao assumido pela IPA era fundado na identificao ao lder ou a um chefe de escola, o qual ocuparia na estrutura psquica dos sujeitos o lugar habitado pelo ideal do Eu. Essa tal estrutura de organizao de analistas apresentaria no prprio desfecho e nos seus objetivos a manifestao dos efeitos de uma identificao imaginria. Em minha opinio Lacan no responsabilizou diretamente Freud. Para ele, Freud estava muito bem avisado das consequncias das estruturas de grupos suportadas pela identificao ao lder: Atento mais precocemente a esses efeitos, Freud sem dvida se interrogou sobre a margem deixada ao predomnio da funo do

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    boss ou do chefo [...] (LACAN, 1998a [1966], p. 478). A seu ver, Freud tentou equilibrar esses efeitos imaginrios com recursos de vnculos simblicos, mais precisamente pela manuteno de uma tradio ou de uma disciplina que emergiria precisamente da prtica da interpretao na qual a anlise da neurose sempre reconduzida ao n do dipo. Freud no teria almejado outra coisa com isso seno garantir o imaginrio em sua concatenao simblica (LACAN, 1995 [1956], p. 466). Em outras palavras, essa concatenao simblica implicaria que para alm da miragem imaginria do ideal existiria o lugar do Outro inaugurado pela dimenso da fala1. Lacan menciona, em relao ao ideal do Eu, a advertncia de Freud sobre a miragem narcsica para sustentar sua critica sobre a direo que as anlises didticas vinham tomando nos anos 50, cada vez mais constitudas sobre uma relao dual entre o psicanalista e o paciente. Como exemplo, temos a prtica da interpretao das relaes objetais, onde o analista se oferece, de antemo, como o bom objeto para o paciente. Poderamos dizer que existe, na aplicao desta tcnica, uma prtica clnica em que o psicoterapeuta se oferece como ideal do Eu para o sujeito que, nesses casos, foi tratado ironicamente por Lacan como bom objeto para o consumo. Nessa modalidade tcnica, de um ponto de vista lacaniano, no incio do tratamento, isto , durante as entrevistas preliminares, bastaria ao psicoterapeuta simplesmente encarnar esse ideal do Eu para cada sujeito, para cada paciente e, posteriormente, passar a responder de uma determinada posio, singular a cada caso. Deste modo, o analista estabeleceria uma relao de trabalho dual, mas pautada excepcionalmente na transferncia positiva. Responder de uma determinada posio seria, em outras palavras, responder de um lugar positivo para o paciente.

    1 O Outro o lugar onde se constitui o eu que fala a outro eu que ouve. Esse lugar se

    estende para o sujeito na medida em que nele imperam as leis da fala. Lacan insiste que essas leis esto para alm do discurso do eu, isto , para alm da boa sintaxe vinculada lngua. Trata-se das leis que estruturam o campo do inconsciente, isto , as determinaes da lei simblica que Freud descobriu na Interpretao dos sonhos (Cf. Lacan, 1998a [1966], p. 432). Esse Outro (representado por A maisculo) um lugar essencial estrutura do registro do simblico e s pode ser compreendido como uma posio de alteridade, como uma posio de mediao entre um eu e um outro. Se eu disse que o inconsciente o discurso do Outro, foi para apontar o para-alm em que se ata o reconhecimento do desejo ao desejo de reconhecimento (Lacan, 1998a [1966], p. 529).

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    No entanto, no incio do tratamento esse lugar no se formaria assim to facilmente, pois se deveria levar em conta a realizao do trabalho clnico restrito transferncia positiva. Ora, sabe-se que esse manejo da transferncia positiva no algo assim to simples. A tentativa de uma manuteno do tratamento suportado exclusivamente na transferncia positiva necessitaria, previamente, de uma certeza: que o psicanalista estaria ocupando a posio de um ideal para o analisante. Na medida em que os ideais esto sempre ligados aos ideais sociais de uma determinada poca, fatalmente, a manuteno da transferncia positiva teria como conseqncia o estabelecimento de uma identificao do analista ao ideal social, como modelo de Eu para o paciente. Nesse sentido, a tarefa do tratamento consistiria numa adaptao do eu do paciente a um modelo, o eu do analista. Nesses termos, as prticas clnicas orientadas exclusivamente pelas tcnicas desenvolvidas a partir da psicanlise reconduziriam o tratamento sempre na direo de uma ortopedia psquica, conforme os ideais sociais de cada poca, interpretados pelo eu dos analistas. Mais ainda, esse modelo reconduziria o tratamento a uma satisfao das exigncias superegicas do analisante. Consequentemente, a se funda uma prtica que subjuga o paciente aos seus prprios ideais. Logo, o tratamento seria orientado pelos imperativos superegicos e os preceitos do mestre obscuro do super-Eu, ou seja, orientao contrria quela inaugurada pela experincia freudiana. Portanto, posso afirmar que a estrutura do programa de formao da IPA, nos anos de 1950, conduzia o candidato atravs de uma via oposta descoberta de Freud, pois essa estrutura de formao era concebida exclusivamente pela relao imaginria entre o psicanalista didata e o candidato analista. nesse sentido que temos no incio dos anos 50 um Lacan colocando no primeiro plano de seu ensino a mxima de um retorno experincia psicanaltica, noo freudiana de determinismo psquico como determinao significante, isto , determinao da estrutura e da ordem simblica.

    [...] a descoberta de Freud a verdade de que a verdade nunca perde os seus direitos, e que, [...] somente seu registro permite conceber essa durao inextinguvel do desejo cuja caracterstica no a menos paradoxal a enfatizar no inconsciente, como faz Freud de um modo incansvel (LACAN, 1998a [1966], 470).

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    A propsito dessa citao acima, vale reconsiderar a seguinte frase: somente seu registro permite conceber essa durao inextinguvel do desejo. Lacan ressalta a a propriedade indestrutvel do desejo, outra representao do infinito. Em outras palavras, o desejo um parasita do sujeito, sempre um desejo indestrutvel, impossvel de se extinguir. Trata-se do carter infinito do desejo no interior da estrutura simblica, que est representado por sua indestrutibilidade e pelo matema do Outro, A.

    [...] o Outro o lugar da memria que ele descobriu pelo nome de inconsciente, memria que ele considera como objeto de uma questo que permanece em aberto, na medida em que condiciona a indestrutibilidade de certos desejos (LACAN, 1998a [1966], p. 581).

    Sendo assim, o registro da verdade tomado por Lacan ao p da letra. Em outras palavras, aquilo que Lacan conceitua como determinao simblica justamente o conceito de sobredeterminao que Freud descreve na Interpretao dos Sonhos e que tem como ncleo da sua escanso o umbigo dos sonhos, ponto opaco e obscuro que determina os limites da interpretao. Esse ponto opaco Freud formula como ncleo do desejo, o ncleo como a sua prpria origem e como seu prprio fim. Trata-se de um ponto que rechaa tudo o que da ordem do sentido, colocando um limite ao processo de significao e reconstruo simblica. Sugiro tomar o umbigo dos sonhos como uma fora constante (K), um contnuo, e, ao mesmo tempo, a nascente de onde brota o desejo inconsciente. Esses desejos indestrutveis so tambm condicionados pela cadeia significante inaugurada pela simbolizao primordial, ilustrada por Freud pelo jogo do Fort! Da! Essa cadeia se desenvolve segundo ligaes lgicas cuja influncia sobre o que h por significar, ou seja, o ser do ente, e se exerce pelos efeitos de significante descritos por ns como metfora e metonmia (LACAN, 1998a [1966], p. 582). Nesse sentido, o sujeito da psicanlise o que representa no indivduo este refm da cadeia simblica, antes mesmo de seu nascimento e para alm do seu desaparecimento. Podemos compar-lo com o radicalismo da noo de determinismo psquico, representado por Lacan pela lgica combinatria da

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    sobredeterminao simblica, como demonstrado no Seminrio sobre A carta roubada1.

    Essa exterioridade do simblico em relao ao homem a noo mesma de inconsciente [...] Uma escrita, como o prprio sonho, pode ser figurativa, mas como linguagem sempre articulada simbolicamente, ou seja, exatamente como a linguagem fonemtica e, a rigor, fontica, porquanto lida (LACAN, 1998a [1966], p. 470-473).

    Lacan considera o inconsciente como aquilo que pode ser lido e decifrado. O umbigo dos sonhos esse ponto original do desejo, mas que, no entanto, no pode ser lido e nem decifrado, portanto, um ncleo impossvel de ser escrito na rede da sobredeterminao simblica e, deste modo, um ponto impossvel de ser enunciado pelo paciente. Nesse sentido, o umbigo do sonho um ponto exterior e interior ao inconsciente. Neste trabalho, pretendo esclarecer um pouco essa relao perdurvel que o inconsciente mantm com o ser falante a partir desta inextinguibilidade do desejo, que foi articulado noo de anlise infinita. necessrio ento mapear, descrever e, at mesmo, explicar as origens desse parasitismo da infinitude representado pela indestrutibilidade do desejo nos tratamentos que, para os psfreudianos (ou neofreudianos) e, sobretudo, para o prprio Lacan, acabou se tornando o principal problema no interior da experincia da psicanlise. Uma de minhas hipteses que as variantes tcnicas que surgem nos anos 50 so, em parte, tentativas de contornar o problema da anlise infinita ou interminvel. As tcnicas surgem na inteno de evitar o problema da indestrutibilidade do desejo correlacionada a infinitude das anlises. Algumas tentaram colocar um fim arbitrrio para os tratamentos. Foi o caso da anlise das defesas e da anlise do eu. Outras tcnicas tentaram contornar o problema renegando o conceito de pulso de morte, apresentado por Freud em Alm do princpio do prazer (1920), por exemplo, a anlise do carter de Wilhelm Reich. Lacan ser quem ir se debater, quebrar a cabea, ao recolocar o problema sobre o infinito na psicanlise de outra forma, exaustiva,

    1 Cf. LACAN, 1998a [1966], p. 13-66.

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    rigorosa e, sobretudo, fundamentada em conceitos obtidos da lgica e das matemticas.

    1.2. Eu, a verdade, falo

    Se considerarmos que a aurora do ensino de Lacan aconteceu no comeo dos anos 1950, podemos afirmar que no incio do seu ensino um dos temas principais a noo de verdade em psicanlise. O caminho inicialmente trilhado por Lacan uma retomada dos passos de Freud, sobretudo sobre um assunto que aparece no texto Construes em anlise, publicado no ano de 1937. Lacan quem enfrenta os obstculos encontrados por Freud, sem desconsiderar os conceitos desenvolvidos na metapsicologia, sobretudo as teorias das pulses, ponto terico que originou rupturas no movimento psicanaltico. A necessidade de uma descrio da verdade em psicanlise se constitui como um problema de fato, na medida em que Freud passou a verificar que a verdade construda no prprio trabalho de anlise; e essa verdade como construo ser, na maioria dos casos, assumida pelo analisando como uma verdade que j estava l, em algum lugar, pronta para ser descoberta. A verdade ser o hspede do sujeito. E essa noo nos conduzir a pensar o inconsciente como um depsito de verdades. COTTET (1989, p. 64) destaca o desejo do verdadeiro em Freud. Freud quem desloca a questo filosfica da verdade para situ-la, no mais no pensamento e sim, mas nas coisas. A verdade que se trata na psicanlise no apta para ser dita. O comrcio de longo curso da verdade j no passa pelo pensamento estranho, parece doravante passar pelas coisas: rebus por meio dele que me comunico, como o formula Freud [...] (LACAN, 1998a [1966], p. 411). Se por um lado temos o desejo do verdadeiro em Freud, por outro no se trata de uma verdade amvel ou desejvel para o analisante. O movimento da descoberta freudiana se dirige, antes de tudo, a um limite, ao franqueamento de uma interdio e de uma

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    transgresso. O trabalho de anlise do sonho da injeo de Irma1 revela que a verdade para Freud no uma verdade agradvel, que os contedos inconscientes no so uma grande maravilha e muito menos um conjunto enumervel de significantes. O que apareceu para Freud como impossibilidade de uma enumerao um limite, um dos temas do nosso trabalho. Com efeito, o limite de dizer toda a verdade se insere na doutrina do infinito na psicanlise. A propsito da verdade, no deixa de ser paradoxal a identificao de Freud com o dipo decifrador de enigmas. Serge Cottet2 destaca essa identificao com o dipo no encontro com o inominvel. dipo pagou o preo, no de sua cegueira, mas de seu desejo de ver e de saber a verdade (COTTET, 1989 [1982], p. 65). Assim como dipo, o sonho de Irma o paradigma do desejo de Freud e podemos ler nele o princpio da verdade como ponto de horror. Segundo Cottet (1989), Abraham, na correspondncia de 9 de janeiro de 1908, perguntou a Freud se o sentido sexual havia sido esgotado na interpretao do sonho de Irma. Freud responde: O que est por trs, oculto, o delrio de grandeza sexual; as trs mulheres, Mathilde, Sophie e Anna, so as minhas trs filhas e eu as possuo todas! (FREUD; ABRAHAM, Apud COTTET, 1989 [1982], p. 66). Na anlise do sonho modelo podemos correlacionar duas passagens a propsito dessa ampliao da interpretao do sonho de Freud. A primeira a respeito de certo silncio de Freud a propsito de uma distoro no rosto de Irma: Ela parecia plida e inchada. Minha paciente sempre tivera uma aparncia corada. Comecei a desconfiar que ela estivesse substituindo outra pessoa (FREUD, 1996 [1900], p. 144). Freud informa que essa distoro a condensao das trs figuras femininas em Irma: Minha paciente que sucumbiu ao veneno tinha o mesmo nome que minha filha mais velha (Anna). Era como se a substituio de uma pessoa por outra devesse prosseguir noutro sentido: esta Mathilde por aquela Mathilde [...] (FREUD, 1996 [1900], p. 147). Freud acaba sua interpretao demonstrando que existiam no mnimo trs figuras

    1 FREUD, S. O mtodo de Interpretao dos Sonhos: Anlise de um sonho modelo. ESB. V.

    IV. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1900], p. 131-155. 2 Cf. COTTET, Serge. O desejo do verdadeiro em questo. In. _____. Freud e o desejo do

    psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p. 64-76.

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    femininas compostas na distoro de Irma: [...] ento me vieram lembrana trs situaes semelhantes, envolvendo minha esposa, Irma e a falecida Mathilde. A identidade dessas situaes evidentemente me permitira, no sonho, substituir as trs figuras entre si (FREUD, 1996 [1900], p. 152). Para COTTET (1989 [1982], p. 66) o desejo de onipotncia que se enuncia no sonho de Freud, assinalado a Abraham, denuncia sua identificao com o pai da horda, o pai que possui todas as mulheres, o pai do gozo onipotente e violador de suas prprias filhas, as trs filhas de Freud que possuem os mesmos nomes das trs mulheres. Nesse sentido, a verdade um ponto de horror. Ela insiste em reaparecer a Freud como fantasia de um pai castrador e possuidor de todas as mulheres. No entanto, o que esta verdadeiramente em jogo a infinitizao da interpretao do sonho da injeo de Irma, tendo em vista impossibilidade de dizer toda a verdade. Portanto, a definio precisa de um conceito de verdade em psicanlise ser fundamental para Lacan. A questo sobre o lugar da verdade em psicanlise implicou em levantar, alm do seu desenvolvimento conceitual na doutrina, um debate com os analistas da segunda gerao da psicanlise a partir da seguinte pergunta: qual o estatuto da verdade em psicanlise? No parece ter sido para Lacan uma pergunta to simples de responder, pois veremos que se trata de um tema que atravessou todo o seu ensino. importante destacar que, enquanto eixo de investigao, o estatuto da verdade em psicanlise pode ser considerado como um dos problemas que motivou Lacan a empreender o movimento de um retorno Freud, ou melhor, um retorno ao sentido de Freud. No se trata a de um movimento revisionista, mas de um retorno justificado pela hiptese seguinte: Freud no foi bem lido. Em minha opinio, o retorno ao sentido de Freud uma crtica lacaniana ao movimento revisionista. Para os psicanalistas do movimento revisionista1 Erich Fromm, Karen Horney, Harry Sullivan e Clara Thompson a obra de Freud deveria ser reescrita. J para Lacan a obra de Freud deveria ser relida. Logo, fcil perceber as razes que levaram Lacan a colocar a verdade em

    1 Cf. MARCUSE. Crtica do revisionismo neofreudiano. In. MARCUSE, Eros e civilizao, p.

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    primeiro plano, proclamada principalmente no texto A coisa freudiana ou o sentido de retorno a Freud em psicanlise. Foi necessrio para Lacan se diferenciar da tendncia revisionista que tambm poderia ser tomada como um retorno Freud. Para Lacan o problema se encontrava na leitura que vinham realizando dos textos de Freud: uma leitura fragmentada.

    Mais eis que a verdade, na boca de Freud, pega o dito touro unha: Sou para vs, portanto, o enigma daquela que se esquiva to logo aparece, homens que tanto consentis em me dissimular sob os ouropis de vossas convenincias. Nem por isso deixo de admitir que vosso embarao seja sincero, pois, mesmo quando fazeis de vs meus arautos, no valeis mais ao portar minha bandeira do que essas roupas que vos pertencem e que se parecem convosco, fantasmas que sois. Por onde, afinal, irei passar em vs, onde estava eu ante dessa passagem? Ser que um dia vo-lo direi? Mas, para que me encontreis onde estou, vou ensinar-vos por que sinal reconhecer-me. Homens escutai, eu vos dou o segredo! Eu, a verdade, falo (LACAN, 1998a [1966], p. 410).

    Dez anos aps Lacan ter proferido a conferncia A coisa freudiana e o sentido do retorno a Freud em psicanlise em 1965, mais precisamente em A cincia e a verdade1, ltimo texto publicado na coleo os Escritos, mas que se trata na realidade de uma estenografia da aula de abertura do seminrio sobre O objeto da psicanlise, Lacan nos esclarecer que o sentido dessa pequena frase eu, a verdade, falo fora por ele pronunciada em sua conferncia na Clnica Neuropsiquitrica de Viena no ano de 1955. Esses esclarecimentos se encontram precisamente entre as pginas 879 e 883 do texto O objeto da psicanlise. Em um trecho desse escrito, precisamente na pgina 882, Lacan retoma o seguinte comentrio de Daniel Lagache a propsito da conferncia realizada em 1955: Por que ele [Lacan] no diz o verdadeiro sobre o verdadeiro? Segue a resposta de Lacan ao questionamento de Lagache:

    1 Esse texto foi publicado em 1966 no primeiro nmero da revista Cahiers pour lAnalyse,

    revista editada pelo Crculo de epistemologia da ENS que tinha como editor responsvel Jacques-Alain Miller e no conselho de redao, alm de Jacques-Alain Miller, Alain Badiou, Alain Grosrichard, Jean Claude Milner, Franois Regnault.

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    [...] tudo que h por dizer da verdade, da nica, ou seja, que no existe metalinguagem [...], que nenhuma linguagem pode dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro, uma vez que a verdade se funda pelo fato de que fala, e no dispe de outro meio para faz-lo. por isso mesmo que o inconsciente que a diz, o verdadeiro sobre o verdadeiro, estruturado como uma linguagem, e por isso que eu, quando ensino isso, digo o verdadeiro sobre Freud, que soube deixar, sob o nome de inconsciente, que a verdade falasse (LACAN, 1998a [1966], p. 882).

    Vale lembrar, em primeiro lugar, que Lacan qualifica essa conferncia de Viena como uma homenagem ao centenrio do nascimento de Freud. Segundo Lacan, se tem a a exposio de seu pensamento atravs de uma forma figurada, isto , sob a forma de uma coisa freudiana. Lacan quem empresta a voz a essa verdade. Emprestar minha voz ao sustento dessas palavras intolerveis, Eu a verdade falo... (LACAN, 1998a [1966], p. 882). Trata-se de uma alegoria para demonstrar que a via aberta por Freud no tem outro sentido seno o que Lacan retoma como o inconsciente linguagem1. Nesse sentido, o discurso de Viena uma alegoria, por ser um texto que tem a verdade como personagem interpretado pelo prprio autor desta alegoria. Lacan, o autor, quem empresta sua voz a essa figura misteriosa. Dar voz verdade , em outras palavras, dar voz ao inconsciente.

    Assim, num gesto brincalho, talvez, por se fazer eco do desafio de Saint-Just ao elevar aos cus, por ser inserido num pblico de assemblia, a confisso de no ser nada alm daquilo que se transforma em p e este que vos fala, disse ele, veio-me a inspirao de que, ao ver animar-se estranhamente no caminho de Freud uma figura alegrica, e ao fazer arrepiar-se como uma nova pele a nudez com que se veste aquela que sai do poo, eu lhe daria voz. Eu, a verdade, falo..., e a prosopopia continua. Pensem na coisa inominvel que, por poder pronunciar essas palavras, atingisse o ser da linguagem, para ouvi-las tal como devem ser pronunciadas, no horror (LACAN, 1998a [1966], p. 881).

    Nesta pequena passagem parece ficar mais claro a forma da homenagem de Lacan ao centenrio do nascimento de Freud; dar

    1 Cf. LACAN, 1998a [1966], p. 881.

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    voz verdade, a verdade como o inconsciente. Poderamos ento substituir a frase Eu, a verdade, falo por eu, o inconsciente, falo? Lacan nos alerta, no se trata exatamente do inconsciente como a verdade, mas que a verdade manifestada pelo inconsciente. Em outras palavras, em psicanlise a via da verdade a via do inconsciente, que tem como seu prottipo a via rgia dos sonhos, na medida em que o sonho um rbus, um ideograma singular a ser decifrado. O comrcio de longo curso da verdade j no passa pelo pensamento estranho, parece doravante passar pelas coisas: rbus, por meio dele que me comunico, como formula Freud (LACAN, 1998a [1966], p. 411). No sentido em que a via rgia da verdade no o pensamento, como supunha Descartes, se compararmos o pensamento com o sonho. No temos, portanto, acesso direto ao seu contedo, a no ser na sua forma reelaborada, isto , pela elaborao secundria realizada pelo trabalho da fala. Assim, Lacan retoma no seu ensino o problema do cogito cartesiano. Com Freud, a verdade no passa mais pelo pensamento consciente; o pensamento se constitui ao se vincular fala. Em relao verdade, a partir de Freud, j no se trata mais do penso, logo sou, mas sim de falo, logo sou. [...] na experincia de escrever: penso: logo existo, com aspas ao redor da segunda orao, l-se que o pensamento s funda o ser ao se vincular fala, onde toda operao toca na essncia da linguagem (LACAN, 1998a [1966], p. 879). Em relao a esta frase enigmtica eu, a verdade, falo, vale lembrar que o sujeito a no Lacan. Lacan o intrprete do sujeito da orao, intrprete do texto da fala da verdade, intrprete dessa coisa sem rosto que sai do poo e que vem animar estranhamente o caminho de Freud. Pode-se entender da o ttulo desse texto: A coisa freudiana. Essa coisa precisava de um nome, necessariamente, e Freud encontrou um: o inconsciente. Para Lacan a verdade falada pelo inconsciente, mais precisamente, por seus derivativos ou formaes. Essa a tese que se pode ler em todos os exemplos descritos por Freud no livro A interpretao dos sonhos. A verdade fala por um ideograma cifrado, a verdade fala por um rbus e est intimamente articulada a um desejo que deve ser remontado. Nesse sentido, podemos afirmar que a verdade em psicanlise deve ser decifrada, pois ela est implcita na estrutura de uma linguagem prpria a cada sujeito. A

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    verdade para Freud, ou seja, a verdade decifrada no sonho correspondente da decifrao do desejo recalcado. A falta desse verdadeiro sobre o verdadeiro, velada na pergunta de Daniel Lagache, e que Lacan trata ironicamente, se encontra na ideia da existncia de um recalque originrio. Essa falta do verdadeiro sobre o verdadeiro, que exige todos os fracassos que a metalinguagem constitui no que ela tem de falsa aparncia, propriamente o lugar do Urverdrng [...] (LACAN, 1998a [1966], p. 882). Introduzindo esses elementos poderamos at arriscar a desenvolver outra crtica sobre a noo de recalque originrio. Isso no ser feito neste captulo. Entretanto, cabe avisar o leitor, desde j, que a hiptese do recalque originrio corresponde exatamente idia de uma verdade ltima a ser revelada no tratamento, isto , a do verdadeiro sobre o verdadeiro. Essa idia conduziu alguns psicanalistas por uma via de elucubraes tericas que visavam demonstrar na experincia da psicanlise a ltima verdade do sujeito como recalque originrio. Um exemplo princeps dessas tentativas encontra-se no livro de Otto Rank O trauma do nascimento. Para Rank (2002 [1928]), o recalque originrio corresponde primeira separao entre o beb e sua me. Isto , o nascimento o trauma original. Otto Rank foi duramente criticado por Freud no seu texto Anlise Terminvel e Interminvel (1996 [1937a]). Para Freud, o livro de Rank era simplesmente uma boa elucubrao terica, mas que suas teses no se comprovava na experincia prtica da clnica.

    1.3. A verdade: motor e obstculo

    O sentido de um retorno a Freud um retorno ao sentido de Freud [...] a descoberta de Freud questiona a verdade, e no h ningum que no seja pessoalmente afetado pela verdade.

    LACAN, 1998a [1966], p. 406.

    O problema da verdade em psicanlise est correlacionado ao fim do tratamento. Os limites da interpretao, os limites das representaes das coisas pelas palavras e os limites do sentido do

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    discurso, so todos limites que introduzem na psicanlise a noo de incompletude e, at mesmo, a noo de infinitude no tratamento. Em seu pequeno livro Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanlise (1990), Luiz Alfredo Garcia-Roza descreve a diferena entre a verdade para o filsofo e a verdade para o psicanalista. Passados trs mil anos, vamos encontrar a psicanlise ainda procura de sua altheia e, para ela, a verdade fundamental a verdade do desejo (GARCIA-ROZA, 1990, p. 7). A tese apresentada por Garcia-Roza a mesma que encontramos nos primrdios da psicanlise em Freud. justamente no livro A interpretao dos sonhos (1996 [1900]) que Freud inaugura um tratamento orientado pela busca da revelao de uma verdade fundamental, a verdade do desejo inconsciente.

    No se devem assemelhar os sonhos aos sons desregulados que saem de um instrumento musical atingido pelo golpe de alguma fora externa, e no tocado pela mo de um instrumentista; eles no so destitudos de sentido, no so absurdos; no implicam que uma parcela de nossa reserva de representaes esteja adormecida enquanto outra comea a despertar. Pelo contrrio, so fenmenos psquicos de inteira validade realizaes de desejos; podem ser inseridos na cadeia dos atos mentais inteligveis de viglia; so produzidos por uma atividade mental altamente complexa (FREUD 1996 [1900], p. 157).

    A interpretao dos sonhos, a revelao dos mecanismos na sua formao, representa a hiptese geral que existem atos e fenmenos psquicos organizados. O sonho o paradigma do inconsciente. Isto quer dizer que esses fenmenos, aparentemente inexplicveis, possuem uma forma lgica. No entanto, o inconsciente no se oferece assim to benevolente e de fcil acesso ao psicanalista. necessrio decifr-lo, percorrer o caminho da sua formao, descrever a sua estrutura, sua lgica interna, determinar o mecanismo das suas derivaes. O psicanalista quem toma o relato do paciente como enigma, quem toma o relato como um hierglifo, onde os equvocos, enganos, esquecimentos e ausncias so os ndices de uma verdade, so os vestgios de uma verdade fundamental, que em geral no agradvel para aquele que a detm. Normalmente, no incio do tratamento o sujeito no quer saber da sua verdade. Os ndices de seu desejo esto condensados (Verdichtung) ou deslocados (Verschiebung). a lei do mal

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    entendido, est tudo fora do lugar. A denegao (Verneinung) um dos mecanismos pelo qual o sujeito revela os movimentos de negao da sua prpria histria; um mecanismo que tem como consequncia o desconhecimento, revelando-se como obstculo a interpretao do inconsciente. A Verneinung tambm uma forma negativa de apresentao do contedo recalcado: No pense o senhor que essa mulher do sonho a minha me. A noo de denegao implica que o contedo ou a imagem recalcada de uma ideia s pode abrir caminho conscincia desde que seja negado. O resultado desse mecanismo uma separao entre a ideia e o contedo afetivo1. H uma aceitao intelectual do contedo recalcado, ao passo que simultaneamente persiste algo a essncia do recalque, ou seja, o contedo afetivo. um dos mecanismos de defesa do eu [ego]2. Se a palavra falta porque h recalque (Verdrngung), h omisso. No se trata de uma denegao ou uma repetio, mas de uma interrupo no discurso. Seu efeito uma abolio simblica, uma supresso. O desejo um desejo recalcado, abolido, suprimido da conscincia. Freud nomeou o lugar do desejo recalcado de o inconsciente. No livro A Interpretao dos Sonhos, encontramos um Freud descobridor. Podemos visualizar nesse livro o personagem Freud desbravador de um continente obscuro e desconhecido. Freud aquele que se depara com o sujeito dividido e no recua diante dessa diviso. Essa diviso marca duas partes do ser, as partes iluminadas de sua histria e, por outro lado, as partes fragmentadas, restos opacos de um passado distante, passado que insiste em reaparecer atravs de atos inconscientes, atos psquicos aparentemente inexplicveis: sintomas, sonhos, atos falhos e pensamentos autnomos. O enigma da psicanlise ou um dos enigmas da psicanlise reside nesse fato desconcertante: o de que somos dois sujeitos um dos quais nos inteiramente desconhecido (GARCIA-ROZA, 1990, p. 9). Garcia-Roza (1990) descreve o paradoxo sobre a verdade na psicanlise, comparando-a com a relao que a filosofia mantm com a verdade na filosofia antiga. Garcia-Roza tem como um dos

    1 Cf. FREUD, S. A Negativa. In: FREUD. ESB. V. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996 (1925).

    2 Cf. FREUD, A. O Ego e os mecanismos de defesa. Porto Alegre: Artmed, 2006.

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    pontos de partida a releitura de Heidegger sobre o estatuto da verdade em Parmnides: A questo da altheia, a questo do desvelamento como tal, no a questo da verdade (HEIDEGGER Apud GARCIA-ROZA, 1990, p. 11). Para Heidegger, a questo sobre a verdade no tem como ponto de partida o seu desvelamento. A questo sobre a verdade tem o seu ponto de partida na concordncia entre a coisa e a palavra, isto , entre o enunciado e a coisa. Nesse sentido, a verdade para a filosofia antiga (Parmnides) adequao do intelecto coisa. Trata-se de uma posio em relao verdade muito prxima quela de Lacan, j que para este ltimo o problema da verdade se encontra na relao do significante com a coisa. No temos acesso coisa. Acessamos a coisa indiretamente, a partir de seus derivativos, a partir de suas manifestaes que sempre so representadas pelas palavras. De uma forma mais requintada, podemos dizer que a representao da coisa uma representao articulada linguagem; uma imagem que pode ser articulada fala, isto , um significante. Uma imagem pode ser representada por um ou mais significantes.

    Leiam a Traumdeutung, e vero que assim mesmo que Freud o entende o conjunto dos sentidos representado pelo conjunto do que significante do sonho, cada imagem, faz referncia a toda uma srie de coisas a significar, e, inversamente, cada coisa a significar representada em vrios significantes (LACAN, 1986 [1953-54], p. 303).

    Normalmente, o significante imagem acstica e sua estrutura est diretamente relacionada ao conceito, isto , ao significado. Portanto, o significante s funciona na articulao de significantes. Ora, a estrutura significante est, como se diz comumente da linguagem, em ele ser articulado (LACAN, 1998a [1966], p. 504). Vale sublinhar que a propsito da verdade, no s a altheia da psicanlise estaria velada, ou at mesmo, desarticulada da cadeia significante do sujeito, mas tambm os mecanismos dessa mesma omisso e supresso. Isto implica em afirmar que os modos de dissimulao da verdade so desconhecidos do prprio sujeito. Nesse sentido, para o psicanalista no seria suficiente encontrar as verdades. Seria tambm necessrio revelar os mecanismos lgicos de dissimulaes das verdades. Deste modo, creio que podemos afirmar que assim como a verdade, a sua dissimulao tambm dissimulada.

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    Segundo Garcia-Roza, esse o maior mistrio no homem. O mistrio no diz respeito somente ao que velado, mas tambm ao fato de que a prpria dissimulao velada. A verdade , originalmente, mistrio, dissimulao da dissimulao (GARCIA-ROZA, 1990, p. 16). Temos a o recalque, a denegao e a condensao como esses mecanismos de dissimulao.

    [...] somente no movimento dialtico da palavra do alm do discurso que tomam sentido e se ordenam os termos de que nos servimos comumente sem pensar mais no assunto, como se tratasse de dados (LACAN, 1986 [1953-54], p. 305).

    percorrendo o caminho da Verdichtung, Verneinung e da Verdrngung atravs da associao livre que Freud encontra um procedimento que permite rastrear o desejo a partir das infinitas determinaes de sentido. Trata-se de descrever os circuitos das sobredeterminaes do desejo. Todos levam ao mesmo ponto. Esse ponto o ncleo de origem, de onde brota o desejo como um miclio. Nesse sentido, o que Freud descobre no apenas que o sonho a realizao de um desejo, mas que o sonho o prprio velamento dessa verdade Freud demonstra no livro A interpretao dos sonhos, quando prope uma suspenso do princpio de contradio como princpio bsico do inconsciente, que a palavra da verdade, a qual espera ser revelada pela interpretao ou por uma reconstruo substitutiva, a revelao do sentido de um sonho e de toda a srie de formaes do inconsciente, sintomas, lapsos e chistes. Essa revelao por interpretao ou construo obedece s leis desconhecidas que no so as leis do discurso social. O discurso singular a cada sujeito e submetido condio de se deslocar no erro at o momento em que se encontra com a contradio. No entanto, dizer que a verdade habita a interioridade do sujeito no significa eliminar o fato de que a palavra se instaura e se desloca na dimenso da verdade, mas que na presena das palavras no sabemos se elas so verdadeiras ou no. Isto , a palavra cria a dimenso da verdade a partir do equvoco de que representam as coisas em si. Por outro lado, a funo significante no se constitui somente pela relao que tem com a coisa significada, mas pela relao que tem com as outras palavras, pelo lugar no discurso do Outro.

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    Nesse sentido, para Lacan a linguagem s pode ser concebida em psicanlise como uma rede, como uma teia sobre o conjunto das coisas. A linguagem inscreve no plano do real esse outro plano que Lacan denominou de plano do simblico1. Nessa perspectiva podemos dizer que a funo significante das palavras particular a cada sujeito e est relacionada com a rede significante prpria a cada sujeito. Isso torna ainda mais complexa a funo significante da palavra, na medida em que a relao significante passa a ser particular a cada sujeito. Em outras palavras, a razo pela qual as coisas tm o nome que tm, no est na coisa e, muito menos no signo, se considerado isoladamente, mas nas definies, nas relaes entre os signos, que no so iguais para cada sujeito, mas determinadas na relao que cada qual mantm com a linguagem. Portanto, nos anos 1950, a psicanlise para Lacan no ser nada mais do que uma srie de revelaes particulares de cada sujeito. Em outras palavras, para Lacan a verdade uma reconstruo do passado. A verdade a realizao plena da histria do sujeito construda caso a caso. A propsito da busca da verdade, Garcia-Roza descreve uma importante diferena entre o filsofo e o psicanalista.

    O filsofo movido por uma inquietude frente realidade. Pergunta-se pela prpria essncia do dizer e pela possibilidade desse dizer falar sobre o ser. Constri, ento, seu prprio discurso, discurso esse que por ser autolegitimado apresentar-se-, da por diante, como juiz de todos os discursos, sendo o que lhe confere legitimidade a estrita obedincia ao princpio da no-contradio (GARCIA-ROZA, 1990, p. 17).

    A busca da verdade na filosofia se caracteriza pela tentativa de construo de um discurso universal onde poderia haver uma correspondncia entre o pensamento e o ser. Portanto, na filosofia se trata de eliminar o erro e o equvoco pelo caminho da no-contradio, sobretudo na lgica clssica. Ora, nessa perspectiva poderamos afirmar que a Psicanlise e Filosofia possuem posies contrrias em relao verdade. Onde a filosofia encontra argumentos no-vlidos e falcias a psicanlise encontra uma abertura para a revelao de uma lgica particular a cada sujeito.

    1 Cf. LACAN, 1986 [1953-54], p. 113.

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    Tudo isso j fora verificado por Freud no tratamento da histeria. Aquilo que insiste em aparecer para Freud uma verdade fundamental que surge no registro do equvoco e do erro e, sobretudo, fundamentalmente no aparente absurdo dos sintomas histricos.

    Nossos atos falhos so atos que so bem sucedidos, nossas palavras que tropeam so palavras que confessam. Elas revelam uma verdade de detrs. No interior do que chamam associaes livres, imagens do sonho, sintomas manifestam-se uma palavra que traz a verdade. Se a descoberta de Freud tem um sentido este a verdade pega o erro pelo cangote, na equivocao (LACAN, 1986 [1953-54], p. 302).

    Ou seja, onde o filsofo supe o erro, o psicanalista supe encontrar o sentido de uma verdade singular. A verdade surge para a psicanlise na emergncia de um equvoco. Freud aquele que recupera o valor da palavra ambgua, pois ao mesmo tempo em que essa palavra revela, ela tambm oculta a verdade. Nesse sentido, Freud redimensiona o estatuto da verdade e da palavra.

    1.3.1. A verdade como um motor

    Segundo Jacques Lacan, o movimento em torno da verdade , em primeiro lugar, o motor da experincia psicanaltica:

    O motor da experincia, mesmo motivado nos termos deles, no pode ser apenas essa verdade de miragem que se reduz miragem da verdade. Tudo partiu de uma verdade particular, de uma revelao que fez que a realidade no fosse para ns o que era antes, e isso a o que continua a pendurar no vivo das coisas humanas a cacofonia insensata da teoria, assim como impedir a prtica de se degradar ao nvel dos desgraados que no conseguem se livrarem dos apuros

    (LACAN, 1966, p. 408) 1.

    Ao afirmar que o motor da experincia psicanaltica a verdade de uma miragem reduzida pelo trabalho de anlise a uma miragem de verdade, Lacan est indiretamente dirigindo uma

    1 Traduo cotejada com a verso brasileira.

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    crtica aos ps-freudianos adeptos da anlise das defesas e da anlise do eu. Segundo Lacan, o motor da experincia jamais poderia ser para esses adeptos uma miragem da verdade.

    Foi por recusar como imprpria essa interrogao de Freud (sobre a causa da verdade) que os psicanalistas de hoje chegaram a um ambientalismo declarado, em contradio com a contingncia que Freud atribuiu ao objeto no destino das tendncias, e retornaram ao mais primrio egocentrismo, num contra-senso com a situao de dependncia em que Freud reclassificou o eu (LACAN, 1998a [1966], p. 438)

    As teorias sobre as tcnicas na psicanlise tm sua origem em parte na busca impetuosa de alguns psicanalistas em encontrar a verdade ltima do inconsciente, o recalque originrio ou primitivo. Atingindo diretamente a fonte das neuroses, eles acreditavam poder reduzir a durao do tratamento. Nesse sentido, vrios psicanalistas, entre eles Otto Rank, acreditavam poder encontrar a verdade ltima, a fonte das neuroses. Para Lacan, a busca dessa verdade ltima se constitui num engano. Lacan ilustrou esse problema atravs de uma velha histria sobre a antiga floresta de Bondy, localizada nos arredores de Paris. A Floreta de Bondy costumava ser um lugar habitado por bandidos. Essa ilustrao visou recolocar uma crtica sobre a teoria da tcnica. Vale lembrar que, ao contrrio do mtodo freudiano, onde a teoria uma descrio e explicao da experincia clnica, a tcnica acaba se tornando a padronizao de uma prtica extrada de uma teoria: no que as rvores do encaminhamento tcnico ocultem a floresta da teoria que deploro, mas que por muito pouco acreditaramos estar na floresta de Bondy (LACAN, 1998a [1966], p. 407). A alegoria de Lacan a seguinte. No interior da floresta de Bondy as rvores se confundem com os bandidos, na medida em que elas so justamente aquilo que os ocultam. Temos por baixo do significante rvore a idia de bandidos.

    (1)

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    Deste modo, rvores e bandidos so a mesma coisa, na medida em que cada rvore pode esconder em si um bandido. Por um mecanismo de deslocamento as rvores passam a substituir os bandidos, ocupando as suas devidas posies: [...] ficaramos ento a perguntar onde esto os bandidos que no so rvores (LACAN, 1998a [1966], p. 407). Encontramos a lgica de uma fantasia na histria da floresta de Bondy. Nessa perspectiva, Lacan considera como desvios da psicanlise a proliferao das variantes do tratamento padro nos anos de 1950. Ele tem na mira as tcnicas psicanalticas anlise das resistncias, anlise da relao de objeto, anlise do carter e anlise do eu , pois as mesmas no conseguiram se desembaraar da verdade no interior da fantasia. Tomando como exemplo a alegoria da floresta de Bondy, para os psicanalistas adeptos das tcnicas os bandidos estariam atrs de algumas rvores. O que Lacan insiste em ressaltar que a verdade para Freud no est l, a verdade na psicanlise reduzida a uma miragem da verdade. Na experincia da psicanlise, a verdade o resultado de um trabalho de construo atravs da formalizao de um saber.

    Essa verdade, sem a qual j no h meio de discernir o rosto da mscara, e fora da qual parece no haver outro monstro seno o prprio labirinto, o que ela? Em outras palavras, em que eles se distinguem um do outro, na verdade, se so todos de igual realidade? (LACAN, 1998a [1966], p. 407).

    Na segunda pergunta de Lacan do extrato acima, podemos por induo colocar a seguinte hiptese: verdade e realidade psquica esto no mesmo registro e so de fato de igual realidade. Em outras palavras, mesmo que na floresta no tenha bandidos, as rvores tomam os seus lugares na fantasia de quem acredita de fato que a floresta de Bondy realmente um lugar de bandidos. Isto , para esses crentes mesmo que no seja possvel ver os bandidos (realidade material) eles estariam l escondidos por trs das rvores (realidade fantasiada). Por conseguinte, encontramos nesses exemplos a psicanlise como a cincia das miragens que se estabelece no campo da transferncia, mas isso no significa que para Lacan o verdadeiro deixe de existir. Freud no trouxe outra coisa ao conhecimento do homem seno a verdade de que existe o verdadeiro. No entanto, o verdadeiro est para Lacan no registro daquilo formalizar, mais

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    tarde, como o real. De um lado temos o saber e a realidade psquica localizada no registro do simblico e do imaginrio, mas por outro, o verdadeiro est no campo do real.

    1.3.2. A verdade como obstculo

    Em O manejo da interpretao dos sonhos em psicanlise (1911), Freud apresenta algumas consideraes sobre os limites da interpretao dos sonhos. Durante o trabalho de anlise a interpretao completa de um sonho pode se tornar uma empreitada interminvel e pode deixar a tarefa mais imediata do tratamento relegada ao segundo plano. Entende-se como tarefa mais imediata a interpretao do sintoma neurtico. Mesmo que um sonho traga elucidaes a respeito da neurose do paciente logo surgiro outros sonhos mais obscuros e complexos, incapazes de ser decifrados em uma nica sesso. Na medida em que o analista avana na interpretao de um nico sonho surgiro paralelamente outros sonhos. Essa proliferao de contedos onricos durante o trabalho de anlise poder levantar a suspeita de que se trata a de uma manifestao das resistncias do paciente. Dessa forma, uma produo demasiada de material onrico, ofertado interpretao do analista, se constitui assim como obstculo ao tratamento. Nessa perspectiva, podemos dizer que produo simblica por parte do analisando, e suas respectivas interpretaes, desencadeariam a produo de novos contedos e, por conseguinte, novas interpretaes, projetando o tratamento no comportamento de uma curva assinttica. Podemos descrever a busca da verdade na psicanlise em dois tempos. Primeiro tempo, o do incio do tratamento. Segundo tempo, o tempo do final do tratamento. A meu ver em ambos os casos, a busca da verdade se constitui como um mesmo obstculo. No incio do tratamento temos a transferncia. Na perspectiva da transferncia, a busca da verdade pode desencadear a proliferao do contedo inconsciente. Essa proliferao pode ser considerada pelo paciente como uma demanda do analista, ou o modo pelo qual o paciente oferece material a ser decifrado, a ser decifrado, na suposio do psicanalisante, pelo trabalho do analista. O paciente supe que a revelao da verdade uma tarefa exclusiva do analista. Nessa perspectiva, o analisante oferta o contedo como

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    um presente ao analista. Uma oferta que pode ser interpretada como um ato de amor de transferncia. Aqui, encontramos a perspectiva da transferncia como obstculo ao tratamento, obstculo associao e ao trabalho que deve ser realizado pelo prprio analisante e que deve ter um fim. Se o analista toma essa proliferao de produo onrica para ser decifrada e interpretada por ele, correr o risco de projetar o tratamento assintoticamente. Segundo Freud (1911), o sentido desses contedos sempre o mesmo e conduz a anlise a um mesmo ponto. Freud (1911) faz algumas recomendaes a respeito desse problema. Em primeiro lugar, uma interpretao realizada numa sesso deve ser considerada suficiente. Em segundo lugar, no se deve considerar prejuzo o fato de que o contedo do sonho no seja inteiramente decifrado. Em outras palavras, Freud nos alerta que no caminho da restituio da histria sujeito o tratamento pode se tornar uma mquina de produo simblica, uma mquina de produo de sentidos infinitos. Percebendo que o trabalho de analise embrenhou-se nessas vias, podemos dizer que encontramos, ao mesmo tempo, o desencadeamento de uma produo de sentido e de uma demanda de interpretao, que para Freud est sempre relacionado ao desejo recalcado patognico. Freud interpretou esse comportamento nas anlises como uma defesa. Da mesma forma, o tratamento passa a se manter numa relao transferencial apoiada numa demanda infinita de saber por parte do analisando, at o ponto onde os limites da interpretao se encontrariam com os limites da prpria anlise. Lacan estava atento para isso. Ele encontrou nesse comportamento um gozo. O que o gozo? O gozo aquilo que no serve para nada (LACAN, 1985a, p. 11). Lacan (2007 [1975-1976], p. 70-71) afirma que a operao de emenda da analise entre o imaginrio e o saber inconsciente visa produo de sentido. O sentido outra emenda entre o simblico e o real. A tarefa da anlise seria dar um sentido ao gozo, a mesma coisa que ouvir no gozo o sentido1. Concluindo, o trabalho da anlise que visa produo de sentido pode ser ele mesmo parasitado pelo gozo.

    1 Lacan (2007, p. 71) aponta o jogo homofnico da palavra jouissance [gozo] com a

    expresso jous sens [eu ouvi o sentido].

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    Essa parcela de gozo pode ser a centelha da manifestao de uma reao teraputica negativa, na medida em que o limite da interpretao pode ser interpretado como um limite do analista. Por conseguinte, poderamos dizer que o tratamento encontra seu fim projetando essa demanda para alm de seu objetivo principal. A demanda inicial, que consistia na resoluo da neurose, passou no decorrer do tratamento para uma demanda de sentido. Podemos ainda citar outro exemplo em que a busca da verdade um empecilho ao fim do tratamento: toda aquela que visa revelar o verdadeiro sobre o verdadeiro. Essa a perspectiva de Otto Rank, restituir o trauma original como a origem da histria do sujeito. Se a perspectiva de Freud foi uma restituio da histria do sujeito, como o analisante poderia chegar ao momento do seu nascimento se a percepo da realidade depende exclusivamente da constituio do aparelho psquico? A histria do nascimento seria pura fico, uma histria que, em ltima anlise, dependeria do testemunho de terceiros. No se trataria de uma histria do sujeito, mas de uma histria sobre o sujeito. Poderamos dizer que conforme o sujeito regride cronologicamente aos confins de sua histria ele encontra um limite na sua prpria reconstruo.

    Vocs vero marcado, ao longo da obra de Freud, onde, como lhes disse, as indicaes tcnicas esto por toda a parte, que a restituio do passado permaneceu, at o fim, no primeiro plano de suas preocupaes. por isso que, em torno dessa restituio do passado, se colocam as prprias questes que so abertas pela descoberta freudiana, e que no so nada menos do que as questes at aqui evitadas, inabordadas, na anlise quero dizer, isto , aquelas que dizem respeito s funes do tempo na realizao do sujeito humano (LACAN, 1986 [1953-1954], p. 22-23).

    Lacan sugere uma resposta para esse problema. A restituio da integralidade da histria do sujeito se apresenta como restaurao do passado. O acento de Freud recai mais sobre a reconstruo que sobre a revivescncia, no sentido daquilo que se denomina de revivescncia dos afetos. O revivido exato, aquilo que o sujeito se lembra como sendo dele, como tendo sido verdadeiramente vivido, que possui uma relao direta com ele, pouco importa. O essencial aqui a reconstruo.

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    Portanto, problematizar o estatuto da verdade implica necessariamente em problematizar o valor daquilo que reconstrudo como o passado do sujeito.

    Para sustentar o que lhes estou dizendo, s preciso evocar um artigo que ele publicou em 1934, Konstruktion in der analyse, onde se trata, ainda e sempre, da reconstruo da histria do sujeito [...]. Esse artigo como que o extrato, a ponta, a ltima palavra daquilo que colocado em jogo o tempo todo, numa obra to central quanto O Homem dos Lobos qual o valor do que reconstrudo do passado do sujeito? (LACAN, 1986 [1953-1954], p. 22-23).

    O que deve ser considerado no o modo como o sujeito revive, rememora os eventos formadores da sua existncia, mas o que de tudo isso ele ir reconstruir no trabalho de anlise. A construo depende da relao que o sujeito mantm, no presente, com o seu passado. A restituio da integralidade do sujeito [...] apresenta-se como uma restaurao do passado. Mas o acento sempre recai sobre a face da reconstruo que sobre a face da revivescncia [...] (LACAN, 1986 [1953-1954], p. 23). O acento no est na lembrana, mas no que reescrito como histria. Em Construes em anlise (1996, [1937b]), Freud demonstra que na experincia clnica a transferncia estabelecida entre o analisante e o analista calculada para favorecer a construo de uma conexo perdida. Esse trabalho de reconstruo, que Freud compara ao trabalho do arquelogo, na verdade um trabalho preliminar. O analista completa a conexo perdida com um fragmento de construo. Esse fragmento um substituto da verdade que poder servir como matria de composio. A tarefa que compete ao paciente elaborar, a partir desse fragmento fornecido pelo analista, sua verdade da forma mais completa possvel, visto que no decorrer do trabalho o analisante se confronta com pontos obscuros e indefinidos do seu prprio inconsciente.

    [...] se a anlise corretamente efetuada, produzimos nele uma convico segura da verdade da construo, a qual alcana o mesmo resultado teraputico que uma lembrana recapturada. O problema de saber quais as circunstncias em que isso ocorre e de saber como possvel que aquilo que parece ser um substituto incompleto produza, todavia, um resultado completo tudo isso constitui assunto para uma investigao posterior (FREUD, 1996 [1937b], p. 284).

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    Podemos verificar nesse extrato do texto de Freud que, ao mesmo tempo em que ele apresenta a construo como miragem da verdade, como substituto da lembrana reprimida, Freud se pergunta como o substituto da verdade cumpre a funo da verdade suprimida. A reconstruo da histria do sujeito implica necessariamente em produzir efeitos de verdade no tratamento. Deste modo, podemos dizer que a verdade efeito do trabalho de anlise. Freud destaca uma diferena entre a interpretao e construo. A interpretao aplicada, sobretudo, sobre uma formao do inconsciente, enquanto a construo a tentativa de recompor uma realidade psquica ou uma lembrana esquecida. A construo o restabelecimento de um sentido de fragmento da histria primitiva, que fora apagado da memria. Arrisco-me a supor que a reconstruo das lacunas de memria o que Lacan denomina de miragens da verdade1. Lacan (1986 [1953-1954]) destacou especialmente nesse ltimo artigo tcnico de Freud o lugar da verdade na interpretao e a reconstruo do inconsciente como histria do sujeito. Primeiramente, o ponto piv de uma anlise a relao que o sujeito mantm com o seu passado. Nessa perspectiva, podemos afirmar que encontramos em Freud a noo de um inconsciente histrico, conforme leitura proposta por Miller (2009a)2. O inconsciente simblico o inconsciente possvel de ser reconstrudo como histria vivida pelo sujeito. Na perspectiva do inconsciente simblico as verdades podem aparecer como obstculos, pois sero sempre miragens de verdade e reconstrues substitutivas de uma verdade perdida. O inconsciente simblico pressupe o recalque originrio. A sada de Lacan foi substituir o recalque originrio por um inconsciente real.