o papel da imprensa na revolucao francesa e 1789 - as interacoes com a plebe urbana

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O papel da Imprensa na Revolução Francesa de 1789: as interações com a plebe urbana. Daniel Schneider Bastos Renan Almeida de Miranda Santos Romulo Teixeira Braga Nunes Resumo: Este trabalho foi apresentado como forma de avaliação para o curso de História Contemporânea I, administrado pelo Professor Daniel Aarão durante o primeiro período letivo de 2011 na Universidade Federal Fluminense (UFF). Buscou-se nele esclarecer o funcionamento da Imprensa antes e depois da Revolução Francesa em 1789, problematizando a questão do surgimento de uma nova esfera cultural. Foi nosso objetivo, também, relacionar o amadurecimento político dos “sans-culottes” parisiense em vista das transformações sociais proporcionadas pela liberdade de imprensa. Introdução: os anos que antecedem a Revolução Nos anos do Antigo Regime, falar de plebe urbana significava mencionar um grupo que se inseria na grande divisão da sociedade em três estados. O Terceiro Estado, comumente tratado como o povo, compunha a maior parte da população e incluía desde o mais pobre dos camponeses até o mais rico dos mercadores. Deve-se, então, destacar melhor o que passaremos aqui a chamar de plebe urbana. Ao falar

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Analise sobre o papel da imprensa escrita nos primordios da revolução francesa

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Page 1: O Papel Da Imprensa Na Revolucao Francesa e 1789 - As Interacoes Com a Plebe Urbana

O papel da Imprensa na Revolução Francesa

de 1789: as interações com a plebe urbana.

Daniel Schneider Bastos

Renan Almeida de Miranda Santos

Romulo Teixeira Braga Nunes

Resumo:

Este trabalho foi apresentado como forma de avaliação para o curso de História

Contemporânea I, administrado pelo Professor Daniel Aarão durante o primeiro

período letivo de 2011 na Universidade Federal Fluminense (UFF). Buscou-se nele

esclarecer o funcionamento da Imprensa antes e depois da Revolução Francesa em

1789, problematizando a questão do surgimento de uma nova esfera cultural. Foi

nosso objetivo, também, relacionar o amadurecimento político dos “sans-culottes”

parisiense em vista das transformações sociais proporcionadas pela liberdade de

imprensa.

Introdução: os anos que antecedem a Revolução

Nos anos do Antigo Regime, falar de plebe urbana significava mencionar um

grupo que se inseria na grande divisão da sociedade em três estados. O Terceiro

Estado, comumente tratado como o povo, compunha a maior parte da população e

incluía desde o mais pobre dos camponeses até o mais rico dos mercadores. Deve-se,

então, destacar melhor o que passaremos aqui a chamar de plebe urbana. Ao falar

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desse segmento da sociedade, estamos nos referindo aos mestres de pequenas

oficinas, os lojistas, os artesãos, os trabalhadores, os jornaleiros e os pobres da cidade.

Eram eles que se punham nas ruas para participar dos principais motins e distúrbios

pré-revolucionários. Qual era, então, o caráter desses movimentos e em que se

diferenciavam da Revolução Francesa propriamente dita?

Em 1775, iniciaram-se, em Paris e em suas províncias vizinhas, múltiplos motins

que reclamavam da escassez de cereais. O caráter desse movimento muito se

assemelha aos de diversos outros que surgem na segunda metade do século XVIII. São

insurreições desprovidas quase que completamente de ambições políticas, ou seja,

não desejavam substituir a Monarquia ou eleger diferentes soberanos. Muito pelo

contrário, partilhavam quase todos de um sentimento puro de justiça elementar e

imediata. Dessa forma, exigiam que o preço de seus alimentos se mantivesse razoável

e que suas condições de vida e de trabalho fossem aceitáveis. Não eram

revolucionários, mas também não estavam ignorantes à sua situação.

Os motins de 1775 foram os últimos grandes movimentos populares anteriores

à Revolução. Ocorreram ainda antes que quaisquer ideais de liberdade, igualdade ou

de soberania popular se espalhassem pelas massas rurais e urbanas da França.

Entretanto, diferente do que se possa imaginar, a Revolução continua a partilhar de

algumas das mesmas motivações das antigas manifestações. Os primeiros levantes de

1789 eram, em sua base, iguais aos antigos, mas partilhavam de um conjunto de ideais

distintos: os ideais revolucionários.

Imprensa no Antigo Regime

O Iluminismo como fenômeno sócio-cultural antecede a Revolução. Obras de

Rousseau como “Do Contrato Social” já se encontram publicadas mesmo em 1762.

Como então se pode dizer que citadinos de uma década e meio depois do

aparecimento dessa e de diversas outras obras filosóficas ainda se mantivessem

ignorantes dos conceitos iluministas? Um dos pontos para se abordar essa questão

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recai sobre a análise do aparato de controle do comércio livreiro do Antigo Regime e

suas formas de atuação.

Conforme se aproxima o ano da

Revolução, cada vez mais obras

filosóficas permeiam o ambiente

literário da França do século XVIII.

Através da análise de diversos

documentos da época, é claro como o

governo monárquico tenta

incessantemente classificar e censurar

toda publicação difamatória. Esse

árduo trabalho era feito através dos

censores, funcionários do governo que

avaliavam os livros antes dos mesmos

serem postos para a comercialização.

Ao menor sinal de críticas à Monarquia,

à Igreja ou ao Rei, o censor editava as

obras, removendo as passagens

indesejadas, ou até mesmo as proibindo

por completo. Quase todas as chamadas

obras filosóficas (obras que iam contra as

normas culturais e políticas vigentes) eram proibidas, sendo passível de prisão aquele

que fosse encontrado em posse de uma.

O governo tentava impedir o surgimento de novos livros filosóficos,

identificando-os mesmo antes que fossem postos nas livrarias. Entretanto,

complementar à fiscalização passiva, existia uma censura ativa, que visava atingir o

comércio clandestino de livros. Era tarefa da polícia impedir o contrabando das obras

proibidas, prendendo os livreiros ilegais e confiscando suas mercadorias. Contudo, o

comércio livreiro era um setor em constante expansão, e o apetite de seus clientes por

novos trabalhos, mesmo aqueles não aprovados pelo governo, era insaciável.

Estima-se que na década da Revolução, metade dos homens e um terço das

mulheres fossem alfabetizados, um índice duas vezes maior do que se comparado ao

Figura 1: Gazzete nationale, ou Le Moniteur

universel, n.1, 5 de maio de 1789. A diagramação dos jornais da época muito se diferenciava da atual. Por exemplo, as chamativas manchetes em letras capitais ainda não tinham nem começado a ser utilizadas.

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mesmo período do século anterior. Eram pessoas que de uma forma ou de outra

conviviam com a palavra escrita. Assim, não é de se espantar que muitos preferissem a

liberdade na comercialização das obras literárias. Alguns dos próprios funcionários do

governo pensavam o mesmo, como é o caso de Malesherbes, Diretor do Comércio

Livreiro eleito em 1750 e supervisor do trabalho dos censores (ver citação abaixo). Já

em sua época, Malesherbes percebeu que o mercado editorial tornar-se-ia

incontrolável, tanto pelo crescente número de publicações quanto pela dificuldade em

estabelecer um critério para classificar o que era ou não contra os costumes e a

tradição. Cada vez mais trabalho se destinava ao controle dos censores e cada vez mais

permissões tácitas1 eram dadas.

Como, então, continuar a controlar as publicações? Ora, a Revolução elimina a

necessidade de tal medida assim como faz com o Antigo Regime. Dessa forma, a

censura é taxada como um obstáculo na evolução da sociedade, estabelecendo-se a

liberdade de imprensa em resposta. Ironicamente, o novo regime propiciaria a

ascensão de uma nova forma de publicação, diferente da dos livros: os jornais e

panfletos.

A assimilação de uma nova

realidade político-cultural

Os primeiros anos do processo

revolucionário são caóticos. A

instabilidade política se reflete muito

nas outras esferas da sociedade. O

mundo da imprensa se vê invadido por

toneladas de periódicos, jornais e

panfletos e, com o fim da censura,

escreve-se sobre todos os tipos de coisas. Desde os novos jornais revolucionários até

os antigos libelos políticos (panfletos difamatórios da antiga aristocracia), a cidade

1 Permissões informais, usualmente verbais, dadas às obras de caráter duvidoso que não podiam nem ser proibidas

nem permitidas completamente.

“Não é no rigor que se deve

buscar uma solução; é na

tolerância. O negócio de livros é

hoje extensivo demais e o público

está ávido demais por livros para

ser capaz de restringir o comércio

até certo ponto, acima de um

gosto que se tornou dominante.”

MALESHERBES, C. G. de.

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observa o aparecimento de uma nova realidade literária, dinâmica e volátil, rápida e

barata. E como essa nova realidade se relaciona com a plebe urbana? Ela se torna um

dos fatores decisivos para a afirmação dos citadinos revolucionários como um

heterogêneo grupo social que ficará conhecido como os sans-culottes2.

Primeiramente,

analisemos como a palavra

escrita realmente atuou,

tomando de exemplo os Jornais

(ver figura 1). No período da

Assembléia, existiam

aproximadamente 35 jornais

de sucesso circulando por Paris.

Sua principal função era a de

transmitir os debates que se

passavam entre os políticos

revolucionários aos

interessados, de forma que as falas transcritas vinham acompanhadas de comentários

do autor sobre as discussões. Eram as interpretações dadas sobre os processos do

governo revolucionário que mais comumente chegavam aos ouvidos do homem

parisiense da época, inserindo o mesmo na nova dinâmica da sociedade. Assim,

observa-se situação semelhante com outros tipos de publicações, de forma que é no

conjunto de uma ambientação político-cultural que a liberdade de imprensa tem sua

maior importância. Em outras palavras, a liberdade de imprensa está inserida num

outro tipo de revolução que acompanha a revolução política: uma revolução cultural.

Paralelamente, como interagiam os analfabetos com essa nova revolução das

mentalidades? Certamente a leitura lhes era impossível, mas reitera-se aqui que há

mais na influência da imprensa do que o simples ato de ler. Enquanto os panfletos e

jornais circulam soltos, mantém-se o costume vindo desde o Antigo Regime das

leituras comunitárias. A mais famosa leitura desse tipo era a que atualizava as

pequenas multidões sobre as novas leis e decretos da Assembléia, sendo de fato uma 2 A origem da expressão “sans-culottes” (original do Francês) está relacionada ao fato de os culottes (calções usados

pela nobreza que iam até os joelhos) serem vetados aos plebeus, de forma que esta população urbana usava calças compridas.

Figura 2: A Tomada da Bastilha (La Prise de la Bastille), Orléans,

Letourmi, 1789. Quase que como uma caricatura, a imagem mostra os revolucionários de armas na mão conquistando a antiga prisão. De fácil entendimento, estampas como essa eram populares na época.

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característica da época que as decisões oficiais do governo fossem transmitidas à

população. Em contrapartida, não só de letras vivia a imprensa, sendo o papel das

gravuras também importantíssimo para a época. Por exemplo, as mais famosas

gravuras da Revolução representavam a Queda da Bastilha (ver figura 2), que já então

se tornava um símbolo nacional (ver citação ao lado). Não é de se impressionar que a

data da conquista da antiga prisão seja até hoje a data de início da Revolução, afinal,

as inúmeras estampas da época firmaram o local como um marco devido à sua

praticidade e rapidez de assimilação. A figura impressa tornou-se um recurso simples

que atingia todas as camadas sociais.

Portanto, devemos

entender que a imprensa tem

grande papel na transformação do

homem de Paris no sans-culotte

que viria a ser uma das bases de

sustentação política no período do

Terror na Revolução. Através da

atmosfera criada pelos novos

veículos de informação, o ideal

revolucionário se perpetua pela

plebe urbana e a imbui de

princípios políticos. Ao fim, o sans-

culotte parisiense viria a ser

considerado um dos modelos de

manifestante popular, mesmo que o movimento viesse a se desmantelar com o fim do

período da República.

Conclusão

Tendo em vista os argumentos apresentados, falta-nos somente ressaltar

algumas peculiaridades do estudo histórico. Por mais tentador que seja classificar uma

única característica como causadora de uma revolução inteira, deve-se entender que a

liberdade de imprensa é apenas um de muitos outros processos da Revolução

Francesa. Desse modo, o fenômeno do fim da censura estaria incluído num conjunto

“Cidadãos, irmãos e amigos!... Aqui erguia-

se a Bastilha. Com que alegria esmagamos

sob nossos pés as suas pedras, que por

tanto tempo aprisionaram homens de

talento, homens que tiveram a coragem de

iluminar os seus companheiros cidadãos.

[...] Aqui nessas masmorras, cujos restos

estão diante de nós, estiveram

encarcerados aqueles escritores famosos

que prepararam e precipitaram a nossa

Revolução. À queda desse acalentado

monumento do despotismo devemos o

sucesso de nossa Revolução: de agora em

diante, o calendário de nossa era política

partirá dessa data. Quatorze de julho será

um dia lembrado através dos séculos.”

Discurso de Jean Lambert Tallien, 1789.

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muito maior de transformações sociais, sendo impossível remeter a um mito das

causalidades e tentar explicar um fato sobre um olhar fechado e restrito. É preciso

compreender que as palavras aqui apresentadas constituem somente uma das formas

de se encarar o problema e, por mais que seja importante, a imprensa não é o único

meio de conscientização política das massas urbanas.

Por fim, observemos no quadro abaixo uma contextualização geral do processo

revolucionário até seu período final, juntamente com os avanços da imprensa.

Figura 3: A Liberdade Guiando o Povo (recorte), por Eugène Delacroix, é uma das ilustrações mais famosas da Revolução Francesa. Nela, a Liberdade é caracterizada como uma mulher seminua guiando o povo insurgido. Ela carrega a bandeira da França em uma de suas mãos e um mosquete (arma de fogo) na outra.

Cronologia da Revolução, da imprensa e dos ideais revolucionários

1775: Revolta dos cereais em Paris, última insurreição popular na França que não se

encontrava imbuída de ideais revolucionários.

1789: O ano da Revolução. A explosão de publicações efêmeras toma conta da nova

esfera da imprensa urbana, ultrapassando a importância dos livros na propagação das

novas idéias. Essa nova forma de publicação atingia mais uniformemente todos os

setores da sociedade, incluindo os populares.

1789-1792: Período da Assembléia. A liberdade de imprensa é oficialmente instituída,

acabando-se também os privilégios de publicação das grandes companhias de comércio

livreiro. A imprensa agora está repleta de ideais políticos, contribuindo na formação dos

sans-culottes de Paris.

1792-1795: Período da Convenção, ou República do Terror. Apoiados pelos sans-

culottes, os jacobinos tomam controle do governo revolucionário. Os avanços da

imprensa durante a Assembléia são postos de lado, de forma que o novo governo

autoritário manda para a guilhotina aqueles contrários às suas medidas.

1795-1799: Período do Diretório. Com a destituição dos jacobinos e a ascensão

conservadora, os sans-culottes como grupo político perdem força e se desmantelam.

Mesmo assim, as experiências passadas com a liberdade de imprensa não são

esquecidas, elas são posteriormente restituídas durante e era napoleônica.

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Bibliografia

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UNESP, 2009.

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• FURET, François; OZOUF, Mona (org). Dicionário Crítico da Revolução Francesa.

São Paulo: Nova Fronteira, 1989.

• RUDÉ, George. A Multidão na História: Estudo dos Movimentos Populares na

França e na Inglaterra 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

• SOBOUL, Albert. Camponeses, sans-culottes e jacobinos. Lisboa, Portugal: Seara

Nova, 1974.

• _____________. História da Revolução Francesa. São Paulo: Zahar, 1981.