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O Neurônio Tagarela -
franklin goldgrub
Capítulo IV
Crítica ao enfoque organicista da drogadição
"Devemos lembrar que a investigação científica meramente demonstrou que as
propriedades mágicas dos cogumelos derivam das propriedades de dois compostos
cristalinos. Seu efeito na mente humana é tão inexplicável e tão mágico como o dos
próprios cogumelos".[1]
"Nossas mentes não existem no vácuo; elas estão ligadas à química do
cérebro".[2]
"Em resumo, tudo o que é mental - tanto as funções normais como os distúrbios
de pensamento e emoção - se originam de alguma ordem ou desordem correspondente
no nível molecular".[3]
As três citações em epígrafe foram extraídas do mesmo livro, Receptors, de Richard M.
Restak, cujo conteúdo constitui um dos melhores exemplos da via preferencial - embora
não única - seguida pela psiquiatria biológica, o reducionismo orgânico. As referidas
citações tanto podem indicar uma contradição do autor (caso as três asserções sejam
mantidas em pé de igualdade) como, se a asseveração final prevalecer sobre as anteriores,
ilustrar a passagem da admissão do caráter enigmático das relações entre mente e cérebro
à proclamação enfática da solução proposta pelo enfoque organicista.
Uma leitura cuidadosa demonstra que não há contradição em Restak. Depois de fazer as
reverências de praxe ao mistério mente/cérebro, Receptors advoga a subordinação total
do psíquico ao biológico, a tal ponto que seria possível - embora não seja nossa intenção
perscrutar as motivações do autor - interpretar as raras ressalvas como uma rede de
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segurança cautelosamente estendida para o caso de fracassarem as expectativas mais do
que ambiciosas expressas no último capítulo.[4]
Assim, se a primeira citação compartilha a circunspecta avaliação feita por Schultes e
Hofmann com referência aos limites da neuroquímica, na seqüência é desenvolvida uma
argumentação tendente a minar essa concepção - inicialmente de maneira sutil e depois
mais explicitamente - partindo do princípio de que nossa "mente não existe no vácuo".
Enunciada nesses termos, trata-se de uma afirmação da qual ninguém em sã consciência
poderia discordar, a menos que assuma uma forma de idealismo (religioso ou filosófico)
dificilmente sustentável em nossos dias. Contudo, Restak passa sem escalas dessa
formulação genérica e óbvia à conclusão de que a mente está subordinada ao cérebro. Em
seu enfoque, o mistério que deixara perplexos os pesquisadores suíços teria sido dissipado
pelas pesquisas recentes, cujos resultados favorecem a concepção de que pensamento e
emoção, quer "normais" ou não, constituem a floração de um laborioso processo
subterrâneo gestado nas catacumbas moleculares.
Ao longo deste capítulo serão apresentados argumentos frontalmente contrários a essa
concepção. O escrutínio da literatura especializada - incluindo uma leitura atenta do
próprio livro de Restak - permite não somente objetar ao reducionismo organicista sua
falta de apoio factual mas também afirmar que, quando lidos através de outra perspectiva,
os mesmos dados invocados pelas neurociências sugerem uma interpretação radicalmente
oposta.
Como já assinalado, em seu trabalho quotidiano o psiquiatra depara com reações
idiossincráticas, imprevisibilidade de resultados e multiplicidade de efeitos colaterais,
simultâneos ou defasados em relação ao tratamento,[5] que obrigam a constantes
modificações das prescrições iniciais. Trata-se de um dado particularmente incômodo,
cujas implicações são evitadas pelos autores organicistas. Seguindo uma direção oposta e
bem mais favorável a seu ponto de vista, Restak alicerça seus argumentos numa analogia
travestida de evidência. A analogia em questão pode ser designada pela expressão
"estratégia de similarização entre doenças neurológicas e doenças mentais"[6] ou "DN =
DM" e merece ser cuidadosamente analisada.
Um exemplo pode conduzir-nos diretamente ao cerne da questão. Receptors descreve
a coréia de Huntington e a doença de Parkinson[7] a partir das respectivas etiologia
genética e fisiopatogenia, razoavelmente bem estabelecidas, e intercala a descrição com
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raciocínios que aproximam tais quadros neurológicos das psicoses funcionais. O
argumento ganha força através da constatação de que a dopamina, neurotransmissor cuja
escassez na doença de Parkinson constitui o principal mecanismo fisiológico desse quadro
patológico[8], se apresenta em níveis consideravelmente aumentados na esquizofrenia.
Assim, pareceria lógico supor uma etiologia simetricamente inversa; ao déficit do
neurotransmissor no referido quadro neurológico corresponderia seu excesso nos surtos. A
doença de Parkinson e a esquizofrenia seriam então enfermidades de etiologia
contrastante, suposição que lembra outra oposição proposta nas primeiras décadas do
século, entre epilepsia e esquizofrenia, amparada na relativa eficácia da convulsão
(provocada pelas terapias de choque) nos surtos esquizofrênicos. [9]
O paralelismo parece ainda mais tentador quando se observa que os pacientes
parkinsonianos tratados com L-Dopa, medicação destinada a aumentar os níveis de
dopamina, não raramente exibem sintomas esquizofreniformes. Assim, como numa
investigação policial, fecha-se o cerco em torno da dopamina, principal suspeito pela
esquizofrenia. Uma investigação conscienciosa, porém, exige a contraprova. Antes de
interrogar a relação entre fisiopatogenia e etiologia, cabe perguntar se já foi comprovada
a incompatibilidade entre doença de Parkinson e esquizofrenia. De fato, se ambas
coincidirem num mesmo sujeito, a dopamina ganharia um álibi de primeira e a referida
hipótese enfrentaria um obstáculo considerável. Seus autores seriam obrigados a admitir
pelo menos que a esquizofrenia obedece a uma etiologia mais complexa e que a
dopamina não seria um malfeitor solitário, restando determinar o seu grau de nocividade.
(E, de fato, ultimamente as hipóteses organicistas vêm abandonando as suposições
monistas, admitindo crescentemente a existência de causas múltiplas).
Se examinado com mais detimento, o paralelismo entre doença neurológica e psicose
funcional apresenta ainda outros problemas. De fato, nenhum neurólogo confundiria os
sintomas eventualmente ocasionados pelo L-Dopa com um quadro esquizofrênico. Eles
não são acompanhados pelos tipos de vivência comumente presentes nas crises
esquizofrênicas.[10] Os efeitos evocados ocasionalmente pelo L-Dopa parecem inscrever-se
no mesmo quadro lógico da sham-rage (falsa raiva) eliciada em sujeitos experimentais
pelo acionamento de eletrodos implantados no sistema límbico - ou seja, o de um
comportamento provocado pela estimulação do respectivo interruptor neuronal. Em
contraste com tais experimentos, a mesma resposta, quando ocorre em condições comuns,
ou seja, fora do laboratório, no caso de animais não humanos, situa-se no âmbito de uma
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reação a situações ambientais e está associada ao acionamento adaptativo do ramo
correspondente do SNA.
Não surpreende que o acionamento experimental do sistema nervoso autônomo através
de substâncias químicas altamente concentradas ocasione necessariamente uma reação
global que, alterando a configuração vigente do SNA, elicia a postura comportamental
associada ao novo quadro instaurado. Uma diferença fundamental, porém, separa animais
e humanos. No animal, a alteração química do autônomo gera um comportamento
desvinculado da situação ambiental vigente apenas para evocar a resposta adequada a
outra situação ambiental. Um predador drogado com substância ativadora do
parasimpático permanecerá inerme diante da sua presa, mesmo se estiver faminto. No ser
humano, diferentemente, sendo o comportamento função do discurso, a nova
configuração do autônomo fará emergir o conjunto de significações (discurso) ao qual está
associada. Esse conjunto de significações é necessariamente singular.
Em outras palavras, a alternação entre simpático e parasimpático nos animais está
diretamente vinculada à situação ambiental e expressa a base orgânica do repertório
necessário à sobrevivência de cada espécie. No ser humano, porém, a singularidade
discursiva imprime à expressão somática dos sentimentos, atitudes e emoções seus
incontáveis matizes e suas infinitas variações, que não constituem respostas a estímulos
mas manifestações da subjetividade.
Os experimentos com ratos, gatos, cachorros e chimpanzés apontam para a possibilidade
de desvincular quimicamente o comportamento animal das condições ambientais vigentes.
O comportamento induzido, porém, não é inédito; está necessariamente atrelado ao ramo
do autônomo ativado pelas substâncias injetadas. Mesmo a intoxicação extrema, para a
qual não haveria correspondência no repertório comum, constitui apenas um exagero das
possibilidades do SNA em determinada espécie. Para além de certo limiar, a intoxicação
ocasionará a morte do sujeito do experimento.
Conseqüentemente, os experimentos limitam-se a demonstrar que a indução química é
capaz de substituir a situação ambiental comumente responsável pela configuração do
autônomo, a partir da qual se dá a ativação dos efetores (músculos lisos e estriados)
envolvidos nas ações adaptativas. Nesse sentido, a hipótese de James-Lange parece
aplicável ao comportamento animal em situação experimental[11]; em seu habitat, porém,
a seqüência do comportamento poderia ser descrita nos seguintes termos: situação
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ambiental ® configuração do SNA ® conduta. Caberia igualmente admitir a concomitância
entre configuração do SNA e conduta, sem invalidar o raciocínio anterior.
No ser humano, porém, a modificação induzida por via química no sistema nervoso
autônomo não acarreta a manifestação de um comportamento associado a outra situação
ambiental, mas dá lugar à emergência de um discurso já existente e que se encontrava em
estado inibido. O discurso em questão não poderia deixar de ter uma tradução
comportamental; entretanto, cabe lembrar que para a psicanálise tal expressão nunca é
direta. Manifesta-se invariavelmente através de uma refração, obedecendo à clivagem
inconsciente / consciência. De acordo com essa premissa, o discurso nunca é homogêneo
nem transparente. A referida clivagem se expressa tanto mediante a metaforização da
lógica inconsciente pela significação consciente/pré-consciente, como pela alternância
entre manifestação e latência.
Além disso, o sapiens, na ótica psicanalítica, não obedece ao princípio da adaptação ao
meio ambiente; pelo contrário, é seu desejo que transforma o meio. A conduta humana
mostra-se singular e imprevisível, visto ser mediada por uma interpretação do real,
interpretação complexa, heterogênea, freqüentemente conflitiva. O simpático fornece o
substrato orgânico para um amplo espectro de estados de espírito, como alegria, atenção,
euforia, agitação, inquietação, expectativa, persecutoriedade, ansiedade, compulsão,
hiperatividade, etc. Seria preciso acrescentar ainda que tais sentimentos são vivenciados de
maneira particular por cada sujeito. Quando a medicação altera a configuração do SNA, o
discurso que retorna ou emerge, por estar associado à polarização do simpático ou do
parasimpático, não expressa um padrão unívoco mas obedece à mesma complexidade.
Organicismo versus psicanálise
Desse ponto de vista, todo discurso se traduz necessariamente numa determinada
configuração do SNA. Daí resulta a possibilidade de percorrer essa via na contramão,
alterando quimicamente a relação discurso manifesto/discurso latente, como o álcool e a
maconha parecem demonstrar, situação que se repete, de maneira menos drástica, nas
modificações da disposição ou do estado de ânimo (humor) provocadas pela cafeína e
pela nicotina. Mas é importante insistir no fato de que, diferentemente do que acontece
com outras espécies, as reações do ser humano às substâncias químicas não são unívocas.
Os estados discursivos associados a determinado modo de predominância do simpático ou
do parasimpático variam de pessoa para pessoa bem como na mesma pessoa em
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momentos diferentes. Parafraseando Heráclito, não se entra duas vezes no mesmo rio
discursivo, ainda que a canoa bioquímica permaneça igual.
Em decorrência, as próprias configurações do sistema nervoso autônomo apresentariam,
no ser humano, uma gradação cuja sutileza acompanha a diferenciação entre os diversos
sentimentos e emoções. Por exemplo, haveria que distinguir entre as formas de
predomínio do parasimpático associadas a estados de espírito e sentimentos como
serenidade, contemplatividade, repouso, desânimo, apatia, tristeza, angústia e depressão.
Cabe mencionar ainda a possibilidade do equilíbrio entre os dois ramos do SNA, mediante
a otimização da homeostase, meta perseguida por uma série de práticas como Yoga,
meditação, homeopatia, acupuntura e outras disciplinas ligadas à medicina alternativa e à
filosofia oriental.
Conseqüentemente, através da ativação do ramo do SNA inibido, os remédios podem
trazer à tona uma conduta incompatível com a que se deseja erradicar, sem que se possa
prever aquela que irá emergir. A imprevisibilidade vai ao ponto de que tampouco se tem
qualquer garantia (apenas certo grau de probabilidade) de que as alterações fisiológicas
induzidas provoquem a modificação psicológica desejada. Em um caso o surto será
interrompido, em outro não, num terceiro ele se exacerbará. Essa descrição, aliás, ainda é
excessivamente genérica; muitas vezes será preciso variar a dosagem, bem como levar em
conta a diversidade dos efeitos colaterais, aferir o limiar a partir do qual a medicação
passará a agir ou não agirá mais (fenômeno da tolerância), bem como analisar os efeitos
da homeostase, o grau de remissão do surto, etc.
Os raciocínios anteriores têm por implicação a suposição de que, no ser humano, qualquer
conjunto de crenças (interpretações, discurso) é necessariamente acompanhado de
determinada configuração de seu sistema nervoso autônomo. Essa conclusão nada mais é
do que o reconhecimento da existência de uma contrapartida emocional/somática para
qualquer estado mental (discursivo). Embora vinculados, discurso, emoção e
comportamento não estão articulados através de uma correspondência simples, em virtude
dos fenômenos que a psicanálise designa pelos conceitos recalque, manifestação e
latência.
A aptidão das drogas em suscitar alterações mentais indica que a relação entre discurso,
emoções e configuração do SNA é uma via de mão dupla, embora a direção do tráfego
flua, quando não há intoxicação, no sentido preferencial discurso ® emoções ® SNA.
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A medicação provoca não apenas a alteração orgânica desejada, mas em acréscimo uma
série de efeitos colaterais, devido à propriedade do organismo de reagir globalmente, na
medida em que constitui um sistema altamente integrado. É possível compreender o
fenômeno do mimetismo a partir dessa ótica. Admite-se a existência de drogas
psicotomiméticas, ou seja, substâncias químicas que a partir de certa
quantidade freqüentemente eliciam alguns comportamentos semelhantes aos de
determinados quadros psicóticos[12] - sem que, apesar da similaridade formal, se possa
falar em psicose. Segundo a hipótese acima desenvolvida, é possível que as drogas
psicotomiméticas devem suas propriedades à brusca alteração induzida na configuração
vigente do sistema nervoso autônomo, com o correspondente acionamento do discurso
vinculado à nova configuração.
Levando em conta que a dopamina é um ativador dos circuitos neuronais acionadores do
simpático, não deveria surpreender que o paciente parkinsoniano eventualmente dotado
de um discurso persecutório inibido, cuja tradução somática inclui a exacerbação da
motricidade, exiba, quando medicado com L-Dopa, idéias paranóides. Nesse caso,
diríamos que o L-Dopa dispara o simpático e conseqüentemente o respectivo conjunto de
significações, percorrendo na contramão o circuito discurso ® emoções ® SNA.
Conseqüentemente, dá-se a inversão da relação manifestação/latência.
Podemos perguntar pelas implicações dessa hipótese em relação à psicose propriamente
dita, ou seja, a psicose espontânea. Trata-se de uma questão de sumo interesse. Se as
vivências pessoais mantêm estreita correspondência com a configuração do sistema
nervoso autônomo, então será possível dizer que, no caso da psicose, o conjunto de
significações dominante tem como criar uma interpretação do real capaz de produzir
desequilíbrios no funcionamento simpático/parasimpático, gerando estados de inapetência,
bulimia, letargia, insônia, prostração, agitação, etc. bastante comuns nas síndromes
paranóicas, nos estados maníaco-depressivos e nos surtos esquizofrênicos produtivos. (Tais
comprometimentos de funções definidas biologicamente contribuem sobremaneira para a
crença na etiologia orgânica da psicose, na medida em que o discurso é invisível para o
observador em contraste com o alarde das respectivas manifestações orgânicas).
Por outro lado, o quadro psicótico denominado esquizofrenia negativa, em que não há
manifestações delirantes nem alucinações, parece associado a um funcionamento orgânico
bastante adequado. O bom estado de saúde do paciente pode ser referido, nesse caso, à
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ausência do discurso pessoal (despersonalização), que permitiria ao seu sistema nervoso
autônomo funcionar sem qualquer perturbação derivada das crenças pessoais do sujeito.
Nos outros quadros psicóticos, em que o funcionamento do SNA é alterado pelos conflitos
emocionais resultantes do discurso, a alteração em questão exibe a propriedade de
bloquear ou inibir a homeostase, visto que o conjunto de crenças mantém vigente e
inabalável uma determinada interpretação do real que, traduzindo-se na longa
permanência de determinada configuração do autônomo, com predominância maciça do
simpático ou do parasimpático, dá lugar à cronicidade do surto. (Podemos exemplificar
esse raciocínio hipotetizando um acionamento duradouro do simpático nos estados
paranóicos, maníacos e de esquizofrenia produtiva, e do parasimpático na depressão. Na
esquizofrenia negativa e no autismo, conforme indicado, pareceria haver uma otimização
no funcionamento do autônomo, pelas razões já mencionadas).
Se essa hipótese for correta, não há porque surpreender-se com as correspondentes
alterações quantitativas nos neurotransmissores e nos neuroreceptores, que constituem os
mecanismos de ativação e inibição do sistema nervoso autônomo.
As drogas psicotomiméticas justificam a distinção
entre comportamento e estrutura (ou discurso, conforme argumentação anterior), na
medida em que o primeiro pode ser eliciado elétrica ou quimicamente, de maneira
relativamente isolada e por um tempo limitado.[13] Uma das drogas com propriedades
psicotomiméticas mais conhecidas é o ácido lisérgico, cujos efeitos incluem alterações
perceptuais eventualmente alucinatórias, mas ainda assim compatíveis com a lucidez. Isso
dependerá, conforme argumentação supra, das características pessoais do usuário. O
próprio Albert Hoffman, que descobriu a fórmula química do LSD, passou pela experiência
e descreveu-a do ponto de vista de um pesquisador. Foram relatadas igualmente vivências
criativas, estados de fruição estética e serenidade mas também tentativas de suicídio,
ocorrência de delírios persecutórios e sentimentos de euforia ou melancolia. A mesma
variação de respostas (em pessoas diferentes e/ou na mesma pessoa) é comum em
relação a outros psicotrópicos (maconha, álcool, cocaína, etc.)
Pode-se argumentar, do ponto de vista organicista, que tais intoxicações, por serem
exógenas, ocorrem num prazo de tempo limitado, enquanto a disfunção orgânica, no caso
da psicose, é crônica, visto que as alterações orgânicas supostas como causas derivariam
de um desequilíbrio bioquímico endógeno. O argumento é logicamente plausível (embora
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não explique as variações relacionadas ao efeito das drogas) e será examinado ao longo
deste capítulo.
O organicismo considera a loucura uma doença e coerentemente rastreia sua causa na
fisiologia cerebral. Sempre que alguma pesquisa correlaciona estados delirantes e
alucinatórios a alterações na taxa de neurotransmissores ou receptores, proclama-se que
o(s) fator(es) causal(is) foram identificados. Por outro lado, a remissão de quadros
psicóticos conseqüente à administração de substâncias químicas representa para o
organicismo a prova da pertinência de suas hipóteses. (Esse argumento já foi analisado
criticamente nos dois primeiros capítulos).
O enfoque organicista ainda abre espaço para a influência ambiental e é capaz
igualmente de levar em consideração determinantes ligados à história individual, embora
não explique de que maneira ambos poderiam desencadear ou contribuir para o
desencadeamento do desequilíbrio orgânico considerado como fator fundamental
responsável pela psicose. Mais ainda, o organicismo não dispõe de um quadro teórico que
integre os dois fatores etiológicos (orgânico e ambiental) nem discute o aspecto
epistemológico relacionado à questão.
A psicanálise (estruturalista) lê a lógica dos delírios, alucinações e alterações de humor a
partir de uma teoria que focaliza a condição humana a partir da função simbólica
(linguagem). Se à suposição de que cada pessoa é equiparável a um sistema interpretativo
forem acrescentados os argumentos derivados da hipótese que propõe vincular discurso,
emoção e sistema nervoso autônomo, torna-se possível explicar as modificações orgânicas
constatadas nos quadros psicóticos como decorrência da estrutura discursiva do sujeito. A
sintomatologia psicosomática, tema do próximo capítulo, se inscreve no mesmo quadro.
As hipóteses organicista e psicanalítica divergem claramente em relação aos aspectos
etiológico, teórico e epistemológico. Para a primeira, a causa fundamental da psicose é
fisiopatogênica e sua origem deve ser buscada numa disfunção genética (mesmo que a
situação atual ou a história de vida possam participar do desencadeamento do surto). Para
a segunda, as alterações da fisiologia cerebral decorrem do sentido que cada pessoa - ou
sistema interpretativo - confere à sua própria realidade, sentido que, via configuração do
sistema nervoso autônomo, modifica quantitativamente as taxas de neurotransmissores e
receptores, além de exercer influência considerável sobre os sistemas endócrino e
imunológico. O reconhecimento dessa última relação inaugura uma nova disciplina, a
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psicosomática. Para a abordagem psicanalítica, a loucura seria uma possibilidade inerente
à função simbólica, que diferencia a humanidade das outras criaturas da natureza, nas
quais não se constatam fenômenos como neurose, psicose, perversão, doenças
psicosomáticas e sublimação.
Haveria alguma maneira de pôr a prova e comparar as duas concepções?
Em princípio, ambas são coerentes com os respectivos postulados e parecem igualmente
plausíveis. As alterações orgânicas verificáveis na psicose podem ser colocadas tanto na
categoria de causa como na de efeito. O "estado atual de nossos conhecimentos" não tem
permitido, até agora, comprovar ou refutar um desses enfoques. Na seqüência, serão
examinadas as implicações contidas nas hipóteses organicista e psicanalítica para melhor
confrontá-las com as evidências disponíveis.
A drogadição e o fator social
A cronicidade não se limita à psicose. Qualquer que seja a abordagem, psiquiátrica ou
psicológica, a conduta humana é comumente compreendida através dos conceitos de
repertório ou personalidade, dos quais deriva a concepção de padrão (emocional,
comportamental, atitudinal). Para uma posição organicista coerente, o comportamento
voluntário seria função do funcionamento cerebral e a personalidade (ou repertório de
comportamento), uma expressão comportamental devida à bioquímica dos circuitos
neuronais. Desse ponto de vista, os termos repertório ou personalidade são qualificados
com os adjetivos "normal" e "patológico", de acordo com a nosografia médica.
Correspondentemente, qualquer atitude, conduta, crença, sentimento, emoção, traço de
caráter, etc. estaria necessariamente enraizada em determinantes biológicos.[14] Kramer e
Restak não fogem a essas implicações dos pressupostos organicistas e procuram
efetivamente estendê-los a uma ampla gama de comportamentos, fenômenos e conceitos.
(A medicalização à ultranza da vida quotidiana seria um prato cheio para as diatribes de
Michel Foucault. Levando em conta que a crítica ética ao reducionismo organicista já foi
empreendida por vários autores, este livro seguirá outra direção e examinará a
argumentação elaborada para sustentar o enfoque néo-darwinista, discutindo a
interpretação dos experimentos bem como os conceitos formulados por autores como
Kramer e Restak).
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No caso de Kramer, é a própria noção de eu (ego) que recebe uma redefinição
bioquímica; quanto a Restak, seu interesse maior reside em demonstrar que a biologia
molecular detém a última palavra quando se trata de entender a ampla gama de
atividades e características humanas, da timidez à psicose, da apreciação musical ao abuso
de drogas. Trata-se da mesma posição, expressa por vias diferentes mas complementares.
A drogadição tem certamente um valor estratégico para a discussão acerca da relação
entre o psíquico e o orgânico. Com referência às suas causas, os diferentes
posicionamentos são praticamente idênticos aos existentes em relação à psicose, com a
diferença de que aqui o fator social costuma assumir o protagonismo, seguido de perto
pela importância concedida à dependência química (hipótese organicista), da qual se
espera a elucidação das razões pelas quais o drogadito permaneceria escravizado a tal ou
qual psicotrópico. Nesse quadro, o determinismo inconsciente comparece como
coadjuvante. A contribuição psicanalítica para o estudo da drogadição tem-se restringido à
tentativa de identificar traços comuns nos usuários de drogas, pautando-se sobretudo pela
descrição de determinado tipo de personalidade. Assim, o usuário é qualificado de
dependente, termo cuja significação é ambígua, já que na acepção organicista do
vocábulo tratar-se-ia de uma dependência específica a certa substância. Daí a expressão
"dependência química". Para a psicanálise, a dependência seria psicológica.
É lícito supor, porém, que a ciência dos sonhos tenha muito mais a dizer a respeito da
drogadição. A indagação acerca da relação entre drogas e subjetividade não requer outro
ponto de partida senão o mesmo já utilizado com referência à medicação psiquiátrica,
visto que, em princípio, o problema é idêntico: trata-se, afinal, de compreender a relação
entre a fisiologia cerebral e os respectivos estados mentais. Na seqüência, será preciso
interrogar as implicações inerentes ao fato da medicação psiquiátrica ser prescrita,
enquanto a droga é consumida por opção. Evidentemente, ao termo opção caberia aplicar
aspas, já que não se sabe em que medida se trata de compulsividade ou livre arbítrio, ou
a que combinação entre ambos. (Essa indecidibilidade, aliás, na ótica psicanalítica, vale
para todo e qualquer comportamento humano).
Obviamente, atrás de compulsividade e livre arbítrio perfilam-se os
termos inconsciente e consciência, cuja mútua determinação escapa a qualquer tentativa
de definição apriorística. Antes de confrontar os enfoques organicista e psicanalitico a
respeito da drogadição, seria preciso preliminarmente refletir sobre o fator social e
justificar a afirmação de que, para a discussão em pauta, ele é pouco relevante. Tal
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afirmação parece tanto mais absurda quanto se sabe que a drogadição, nos moldes atuais,
é um fenômeno típico das sociedades industriais contemporâneas. Contudo, é preciso
lembrar que a questão não está sendo abordada a partir do ponto de vista estátistico nem
pensada pelo ângulo das conseqüências sociais. A drogadição será interrogada em relação
a seu sentido.
Como já foi assinalado inúmeras vezes, a ponto de constituir quase um truísmo, a
drogadição parece intimamente associada a certas características da sociedade industrial,
intensificadas sobretudo a partir da segunda metade do século XX: anomia[15],
desigualdade social, sensação de descartabilidade, incerteza face à velocidade das
transformações tecnológicas que afetam a identidade profissional e os vínculos afetivos,
competição cada vez mais exacerbada, perda de segurança, desestruturação da família,
invasão da privacidade, excesso de informação, e outras.
O resultado se expressa através de uma considerável instabilidade e não surpreende que
o stress constitua o sintoma por excelência do atual mal-estar na civilização. A partir dessa
constatação, trata-se de entender como os psicotrópicos participam do quadro em
questão. Tudo leva a crer que eles desempenham um papel nada desprezível,
simultaneamente paliativo e agravante, cuja compreensão, porém, pouco pode esperar do
enfoque estatístico. Aqui também é lícito conjeturar que o fator social não faz senão
desencadear e multiplicar as proporções de algo cuja razão de ser é de outra natureza,
mesmo porque as características da sociedade industrial não são alheias à mesma
subjetividade. Quaisquer sejam suas instituições e valores, não há nada na sociedade que
já não esteja presente no próprio sujeito. Tal como aconteceu em relação à hipótese da
origem orgânica da psicose, e apesar da sua ampla aceitação, a hipótese da origem social
da drogadição também pode ser contestada.
O uso de drogas ultrapassa os limites de classe, cultura e história; substâncias capazes de
modificar estados mentais foram e são conhecidas por todas as sociedades. As diferentes
modalidades de consumo - coletivo, individual, ritualizado ou não - podem ser
importantes em relação à estatística da drogadição; sem dúvida, em sociedades onde a
margem de liberdade individual é relativamente pequena, como as ditas primitivas, não
somente a dependência química como qualquer outro comportamento desviante esbarra
nos estritos e estreitos limites estipulados pelo grupo. Mas as razões pelas quais os seres
humanos, não importa a sociedade e/ou época considerada, descobriram e usaram
substâncias psicotrópicas, quer através de rituais amparados em crenças culturalmente
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aceitas, quer no marco da contra-cultura, permanecem opacas para o raciocínio estatístico
e sociológico. Postulamos que tais razões dizem respeito ao sentido (portanto ao valor
psicológico) associado ao efeito (fisiológico) das drogas.
No que se refere à questão sócio-econômica e estatística, admite-se sem qualquer
discussão que as características da sociedade industrial favorecem a drogadição, tanto do
ponto de vista da oferta (indústria das drogas) quanto da procura (alienação, desamparo).
Desse ângulo, quer se trate dos avanços da química ou do hedonismo, quer se leve em
conta a realidade brutalmente competitiva que prevalece no mundo criado pela segunda
revolução industrial, é evidente que o aumento exponencial do número de dependentes
químicos constitui uma conseqüência. A sociedade de consumo, com seu imenso aparato
publicitário a serviço do estilo de vida inerente, vende os produtos da farmacologia, oficial
ou clandestina, como qualquer outra mercadoria. É obvio que o termo drogadição pode
ser perfeitamente aplicado ao uso crescente de pílulas (somníferos, estimulantes,
ansiolíticos, inibidores de apetite), plenamente integrado aos padrões socialmente aceitos.
Tudo isso é inegável. Mas o que interessa à discussão ora proposta é algo de outra
natureza e se refere à motivação do "dependente químico", questão básica sem cuja
elucidação seria inútil prosseguir. Quando se examina esse ponto, a singularidade
reaparece, apoiada pela constatação da diversidade de reações no interior de uma mesma
categoria sócio-econômica e/ou cultural. Assim, é possível deparar tanto com a
satanização da droga (pelo estado e pela religião) como indiferença, curiosidade (que
motiva uma ou mais experiências seguidas de adesão ou desinteresse), drogadição com e
sem criminalidade, com ou sem tratamento, tratamento com maior ou menor êxito, para
mencionar apenas algumas das atitudes e situações mais freqüentes.
Não bastaria apenas dizer que os adolescentes das favelas e as crianças de rua exibem um
alto grau de vulnerabilidade aos traficantes em virtude de suas condições de vida; seria
preciso perscrutar o fator específico subjacente às estatísticas, sem o que não há como
compreender porque nem todos os membros desses grupos se tornam drogaditos, nem
porque alguns abandonam a dependência química e outros não, nem a razão pela qual
adolescentes de classe média ou alta, cujas famílias permanecem relativamente
estruturadas, optam (ou "optam") pela adição. Cabe lembrar que o alcoolismo e o
tabagismo tampouco conhecem diferenças de classe e que o mapa da drogadição
possivelmente acabará tendo a mesma configuração que o do consumo de álcool e
-
cigarro, variando apenas a qualidade do produto consumido (cigarros de filtro vs "arranca-
peito", whisky escocês vs pinga, morfina pura vs morfina misturada com talco).
O estudo do aspecto social da drogadição é certamente relevante. Permite planejar
intervenções institucionais, corretivas ou preventivas, com diversos graus de êxito,[16] mas
não tem como auscultar o fenômeno em sua intimidade. Diferentemente, o organicismo e
a psicanálise radiografam o dependente em busca dos determinantes internos. Assim
como em relação à etiologia da psicose, depararemos com as mesmas divergências entre
ambas as abordagens. Se descartarmos a solução eclética, que visa conciliar as posições
divergentes a partir da idéia de uma co-determinação, a indagação que incide sobre a
articulação entre as manifestações orgânicas e psicológicas da drogadição presume a
primazia de um dos fatores, considerado condicionante, em relação ao outro.
A própria expressão "dependência química" já prejulga o encaminhamento comumente
dado à questão. Ela atesta que os efeitos orgânicos da drogadição são muito mais
chamativos e costumam eclipsar o fator psicológico. Sempre na contramão desse enfoque
e assim como foi feito em relação à medicação psiquiátrica, a argumentação a seguir
procurará demonstrar que o comportamento do drogadito é ditado pelo discurso. As
manifestações orgânicas relacionadas ao abuso decorrem do efeito dos psicotrópicos
sobre o sistema nervoso autônomo, e não, como geralmente se pensa, a dramática
expressão da invasão do metabolismo por uma substância diabólica. A demanda por
psicotrópicos, como o hábito e a síndrome de abstinência, dependem primariamente do
discurso e secundariamente de seu efeito sobre o sistema nervoso autônomo.
A argumentação organicista
A premissa organicista é extraída do princípio darwinista referente à adaptação do
organismo ao meio. O enfoque darwinista pressupõe que o comportamento de toda e
qualquer espécie seja funcional, sendo ditado pelas condições ambientais às quais as
espécies, incluindo o homo sapiens, respondem para sobreviver. A partir desse alicerce
elabora-se o enunciado segundo o qual as condutas inadequadas são manifestações de
deficiências biológicas que afetam negativamente a adaptação.
É possível construir por dedução um silogismo organicista:
a) As disfunções neurológicas são doenças causadas por fatores orgânicos e entre
seus sintomas contam-se alguns que expressam um severo dano infligido às funções
-
intelectuais e emocionais, resultando em comportamentos inadequados (ou seja, não
adaptativos).
b) As psicoses funcionais afetam as funções intelectuais e emocionais, resultando
em comportamentos inadequados (não adaptativos). A similaridade entre os
sintomas psicóticos e alguns sintomas ditos psíquicos das doenças neurológicas
justifica a suposição de que as psicoses funcionais também constituam doenças e
que sua etiologia específica deva ser buscada igualmente em alterações patológicas
do sistema nervoso central.
c) A drogadição compromete similarmente o intelecto e as emoções, resultando em
comportamentos inadequados; a intoxicação aguda produz freqüentemente quadros
similares a sintomas psicóticos. Conseqüentemente, por analogia, pode-se considerar
que a drogadição decorre dos mesmos fatores subjacentes às doenças neurológicas
e às psicoses funcionais. A respectiva etiologia específica residiria numa falha do
metabolismo cerebral, de provável origem genética, que promoveria o consumo
compulsivo de substâncias nocivas.
d) Todos os desvios de comportamento (drogadição, criminalidade, tendências
transgressivas menos graves)[17], que infringem o princípio da adaptação ao meio,
prejudicam o intelecto, as emoções e a sociedade da qual a sobrevivência individual
depende; tais desvios são, portanto, comportamentos inadequados; suas causas,
conseqüentemente, devem ser buscadas na patologia cerebral, a exemplo das
doenças neurológicas, das psicoses funcionais e da drogadição.
e) Finalmente, mas não menos importante, se os comportamentos inadequados
dependem de falhas no substrato biológico, os comportamentos "normais", ou seja,
adaptativos, decorrem de um funcionamento orgânico adequado, ou seja, saudável.
Como já foi comentado, a psiquiatria biológica poderá conceder um papel auxiliar, maior
ou menor, dependendo do autor, a fatores ambientais, quer atuais quer passados, na
esteira dos conceitos de "psicose exógena" e/ou "psicose reativa", categorias nosográficas
descritas pela psiquiatria tradicional. Desconhece-se, contudo, qualquer tentativa teórica
de articular os fatores ambientais considerados acessórios com os orgânicos tidos por
necessários e específicos, no sentido de explicar sua eventual conjugação para
desencadear um surto.
Quanto à argumentação organicista propriamente dita, é interessante comparar os
caminhos paralelos percorridos por Kramer e Restak. O primeiro centra sua atenção nos
neurotransmissores e examina as propriedades da serotonina em relação ao humor. De
-
acordo com a premissa de que a modificação de comportamento induzida por uma
substância comprova sua ação causal, ele deduz que a depressão e eventualmente os
estados de inibição, insegurança, baixa auto-estima, falta de espontaneidade, apatia,
desânimo, ansiedade e angústia decorrem da diminuição acentuada da taxa de serotonina.
Compartilhando o pressuposto de que a toda alteração orgânica significativa corresponde
uma patologia, Kramer inscreve-se decididamente na ótica adotada pela psiquiatria
biológica. Tal pressuposto freqüentemente utiliza extrapolações do tipo: se a medicação
empregada para erradicar determinada afecção somática evoca, na qualidade de efeito
colateral, uma outra sintomatologia, de natureza psíquica, então cabe considerar o
elemento psicoativo da referida medicação como causa da respectiva disfunção. Mais
especificamente, pesquisas com essa orientação visam relacionar as alterações constatáveis
na taxa normal de neurotransmissores com determinados quadros psicóticos (excesso de
dopamina e esquizofrenia, por exemplo), no intuito de estabelecer a respectiva
causalidade.
Tal gênero de abordagem, cujos resultados foram inicialmente acolhidos com grande
entusiasmo, tem enfrentado crescentes objeções, já mencionadas anteriormente: reações
idiossincráticas (como por exemplo os suicídios e homicídios decorrentes do mesmo
aumento de serotonina que a hipótese organicista associa à erradicação da depressão),
graves efeitos colaterais concomitantes ou defasados em relação ao tratamento
psiquiátrico (como a discinesia tardia), aumento da tolerância à medicação, evidências de
inespecificade (p.ex., constatação de que alterações nas taxas de outros
neurotransmissores, às vezes de ação antagônica, provocam efeitos semelhantes às
ocasionadas no neurotransmissor pesquisado), bem como o comportamento paradoxal do
lítio, inexplicavelmente atuante nos casos opostos da mania e da depressão. O
organicismo desenvolveu hipóteses etiológicas para explicar as alterações na taxa de
neurotransmissores. Nessa perspectiva, as pesquisas tem rastreado causas genéticas,
viróticas e anatômicas.[18] As objeções aos resultados dos estudos sobre correlação entre
taxa alterada de neurotransmissores e sintomatologia psicótica têm afetado obviamente as
hipóteses etiológicas, que visam dar lastro aos referidos estudos. Cabe acrescentar que as
hipóteses etiológicas tem enfrentado objeções semelhantes às das hipóteses
fisiopatogênicas.
Se tal situação enfraquece significativamente o impacto da argumentação de Kramer, resta
ainda assim saber como uma interpretação não organicista poderia explicar os eventuais
-
efeitos positivos comprovadamente decorrentes do aumento da taxa de serotonina. De
acordo com a hipótese apresentada no capítulo anterior, a ação principal da fluoxetina
(Prozac) ocorreria na região pré-frontal (cujos circuitos neuronais estão associados ao
movimento voluntário), produzindo a liberação da motricidade inibida em nível cortical.
(Caso essa hipótese seja confirmada, a ação da serotonina demonstraria algo que a
intoxicação alcoólica tem ilustrado desde sempre, isto é, que o controle exercido sobre
impulsos, sentimentos e ações pode ser "afrouxado" quimicamente).
Assim como a via preferencial (discurso ® emoções ® SNA) pode ser percorrida na
"contramão" por indução química (SNA ® emoções ® discurso), cabe supor que o
mesmo processo aconteça em relação ao pré-frontal. Caso em que a via preferencial
discurso ® emoções/motricidade, invertida quimicamente, resulta no percurso
motricidade ® emoções ® discurso. Dessa forma, os circuitos corticais liberados
quimicamente do controle acarretarão por sua vez a manifestação do discurso
anteriormente inibido, do qual constituem a expressão motriz. A estimulação química da
motricidade voluntária e de seu conteúdo ideacional inibido constitui o que se chama
metaforicamente de "rebaixamento da censura". Com a finalidade de investigar essa
hipótese poder-se-ia formular uma situação experimental para elucidar o modo de ação
do álcool e da cannabis sativa, cujos efeitos de desinibição parecem bastante semelhantes
aos provocados pelo aumento da serotonina. Estudos comparativos poderiam igualmente
revelar algo sobre a dosagem, os colaterais e a duração das modificações induzidas, ainda
que estas difiram de pessoa para pessoa.
Efetivamente, a compreensão dos efeitos idiossincráticos não exige outras considerações a
não ser o acréscimo do referido postulado da singularidade, uma propriedade da
identidade discursiva inerente ao ser humano. Em relação às tentativas de suicídio e
homicídio atribuídas ao Prozac, supõe-se que o conteúdo discursivo associado à
motricidade quimicamente desinibida, ao invés de caracterizar-se por sentimentos de
auto-estima e espontaneidade no convívio social, expressaria, pelo contrário, a
exacerbação da auto e/ou da heteroagressividade.
Portanto, diferentemente de Kramer, é possível considerar que a serotonina, se mantida
em níveis elevados durante determinado período de tempo, promoverá a desinibição de
circuitos nervosos ligados à motricidade voluntária e conseqüentemente liberará a
manifestação do respectivo discurso. A mesma hipótese também pode ser utilizada para
entender o comportamento de outros agentes psicoativos de ação semelhante, como o
-
álcool e a maconha, tanto em relação à desinibição como com referência aos efeitos
posteriores (arrependimento e prostração, por exemplo).
Aqui reside uma diferença importante: a administração lenta e constante de fluoxetina, ao
contrário da embriaguez alcoólica e dos efeitos do THC, poderia garantir a permanência
da referida desinibição motora e do respectivo discurso por um tempo maior. Além do
que, sendo um remédio receitado (e portanto respaldado pela sociedade), o tratamento
com Prozac não costuma ser associado pelos seus usuários à transgressão. Quem consulta
o psiquiatra para tratar a depressão não é alguém que tenda à transgressão, ao contrário
do usuário de drogas "de abuso". Resumindo, é possível comparar o tratamento com
Prozac a uma leve embriaguez constante, com autorização social e sob supervisão médica.
Um apoio a essa hipótese provém da constatação de que, em pacientes deprimidos
hospitalizados (casos mais severos), os inibidores de retomada de serotonina, como o
Prozac, são menos eficazes do que os antidepressivos tricíclicos.[19] Na medida em que os
últimos atuam basicamente no sistema nervoso autônomo[20] e os primeiros em nível
cortical, seria possível entender a diferença da respectiva ação a partir do contraste entre a
relativa incolumidade do discurso inibido, no caso das depressões leves, e seu
comprometimento no caso das depressões severas. No primeiro caso, a desinibição do
discurso latente, por acionamento do simpático, costuma ocasionar alteração no humor;
nas depressões mais graves, há bloqueio da homeostase, resultando na manutenção de
um duradouro predomínio do parasimpático. Nesse caso, a respectiva alteração química
dependerá de uma intervenção maciça sobre o sistema nervoso autônomo.
Neurotransmissores e receptores
As questões tratadas por Restak dizem respeito a uma questão paralela, que passa pela
alimentação e incide principalmente na drogadição. Se Kramer chega à conclusão de que
os estados de humor decorrem da neuroquímica cerebral[21], ou seja, das características
internas do sistema nervoso central, geneticamente determinadas, Restak acrescenta que a
complexa arquitetura neuronal também é desenhada pela matéria que a nutre, ou seja, o
tipo de ‘combustível' empregado para mantê-la em ação. A sua questão, portanto,
ultrapassa a da etiologia da psicose e não se restringe a celebrar uma descoberta
farmacológica como o Prozac; trata-se de estender o postulado organicista às razões pelas
quais serão escolhidos, por mecanismos internos do próprio organismo, determinados
-
ingredientes e não outros para alimentar os circuitos nervosos. Cabe ao abastecimento
determinar, em boa medida, se o respectivo comportamento será normal ou patológico.
Desse ângulo, os fatores genéticos continuam explicando o funcionamento básico mas o
ambiente comparece fornecendo a matéria prima que poderá, via alteração do
metabolismo, determinar as particularidades individuais, ou seja, o mapa metabólico de
cada sistema nervoso central, dando conta assim da variabilidade do comportamento
humano. Não por acaso Restak cita aprobatoriamente o conhecido adágio anglosaxão
"you are what you eat". Trata-se, em última análise, de entender a relação entre os fatores
orgânicos (essenciais) e os elementos ambientais (acessórios), bem como construir a ponte
entre o comportamento observável e suas causas moleculares.[22]
Nesse ponto da argumentação, Restak exibirá um organicismo coerente, afirmando que a
ingestão de ingredientes inadequados decorre das mesmas falhas que produzem a
psicose, embora infinitamente mais sutís, a ponto de poderem ser atribuídas pelos leigos a
características pessoais ou determinantes sócio-econômicos. Contudo, segundo Restak, o
estudo acurado dos diversos tipos de adição, da morfina ao açúcar, da cocaína à cafeína,
da anfetamina à nicotina, da maconha ao álcool, mostraria que o consumo abusivo de tais
substâncias seria em sua origem um comportamento adaptativo, já que o organismo
busca, dessa maneira, suprir uma carência. Portanto, a referida carência é que, no caso das
drogas ou dos hábitos compulsivos em geral, deveria ser considerada não adaptativa, ou
seja, patológica. Cumpre-se, assim, uma exigência capital do silogismo organicista: "A
respectiva etiologia específica residiria numa falha do metabolismo cerebral, de provável
origem genética, que promoveria o consumo compulsivo de substâncias nocivas".
Restak também assinala que às vezes é difícil estabelecer a fronteira entre o uso aceitável
e o abuso de estimulantes e calmantes. (Não deixa de ser interessante que ele passe por
alto os hábitos "não-ingestivos", como por exemplo o jogo - cavalos, cartas, dados, roleta,
loteria). Seja como for, o reducionismo de Restak situa resolutamente o comportamento
humano no interior do paradigma darwiniano/mendeliano, definindo a não adaptação ao
meio como patológica. Quanto à origem do déficit orgânico, trata-se de uma questão que
deve ser endereçada à genética.
Assim, se para Restak a etiologia orgânica da psicose é ponto pacífico, o organicismo não
deveria restringir-se a essa constatação mas abordar também afecções menos chamativas,
às quais se aplicaria o mesmo raciocínio. Ele advoga a ampliação da jurisdição coberta
pelo sistema nervoso central, essa máquina extraordinariamente complexa, capaz de
explicar tanto os estados saudáveis como as disfunções patológicas. Em conseqüência,
-
toda a gama de comportamentos voluntários repousaria, em última análise, no nível
molecular[23]. Assim como Kramer não se contenta em constatar a excelência da
fluoxetina mas, a partir de seus efeitos, deduz a constituição bioquímica do eu, Restak
também reivindica a extensão da neurologia ao comportamento em geral, liberando-a dos
limites estritos da anátomo-fisiologia.
O considerável progresso da farmacologia nas últimas décadas despertou nas
neurociências a mesma ambição que instigou o ambientalismo, a fenomenologia e a
psicanálise a construir uma teoria abrangente acerca da condição humana. Assistimos à
segunda floração do darwinismo, que primeiramente foi tomado como modelo para
pensar a sociedade e atualmente ingressa no território da subjetividade, adquirindo os
contornos próprios a um sistema filosófico.[24]
Em grande medida, esse gesto se apóia no conceito de receptor, cuja abrangência
ultrapassa os limites que restringiam seu correlato, o neurotransmissor.[25]
A descoberta das funções cumpridas pela neurotransmissão permitiu ao organicismo
reivindicar sua autonomia face aos determinantes ambientais e inconscientes, tornando a
psiquiatria biológica uma corrente referendada pela medicina.[26] A psiquiatria abandona
as concepções psicanalíticas sobre a loucura, consideradas inoperantes, para valorizar o
aspecto pragmático da intervenção medicamentosa, que sempre produz algum efeito -
para melhor ou pior. Tais alterações permitem a Kramer, em Ouvindo o Prozac, imaginar
um futuro onde, em virtude do progresso ininterrupto das neurociências, os animadores
de humor colocarão ao alcance da humanidade a programação do estado de ânimo,
determinando assim a relação com a realidade (o outro) a partir da auto-imagem
preferida.
Por mais que tal perspectiva já pareça extremamente ambiciosa, o conceito
de receptor permite ultrapassá-la. Se a modulação dos neurotransmissores torna possível
codificar adequadamente a auto-estima, Restak postula que a alimentação planejada dos
receptores permitirá influenciar a própria capacitação, dando acesso à utilização plena
desse computador de alcance infinito, o cérebro humano, não somente em termos de
auto-aceitação mas também com referência ao poder de modificar a realidade. Cada
pessoa poderia assim programar seu desenvolvimento intelectual, otimizando o binômio
inteligência/memória.
Restak e as descobertas da farmacologia
-
Para debater com Restak, será preciso antes descrever detalhadamente sua argumentação
e a maneira pela qual ele entrelaça os conceitos de doença neurológica, doença mental e
drogadição, de acordo com o arcabouço lógico do silogismo organicista acima descrito.
Conseqüentemente, trata-se de examinar as seguintes questões:
1. Apresentação da argumentação de Restak em relação à biogênese da drogadição
e da psicose, com base no modelo das doenças neurológicas cuja etiologia ou
fisiopatogenia é conhecida.
2. Exame das hipóteses de Restak sobre o modo de ação das substâncias químicas,
quer medicamentosas, quer de abuso.
3. Reinterpretação, na perspectiva da psicanálise, dos mesmos dados que Restak
invoca para sustentar as teses organicistas.
4. Descrição e análise da drogadição de animais, do fenômeno da tolerância e das
hipóteses relativas à etiologia genética da psicose. Comparação entre a discinesia
tardia, síndrome decorrente do tratamento prolongado com neurolépticos, e a
síndrome de abstinência.
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A argumentação de Restak não peca por falta de abrangência. Receptors oferece um
panorama extremamente revelador acerca do interesse da humanidade por substâncias
psicotrópicas, quer se trate de culturas que permaneceram adscritas à economia de caça e
coleta, como as populações da bacia do Amazonas, quer se trate de suas congêneres mais
complexas dos altiplanos peruano, boliviano, da América Central e da América do
Norte[27], quer por parte de civilizações cuja influência na história do ocidente é
considerável, como as da África do Norte e do Oriente Médio. quinta-feira, 25 de
setembro de 2008
A tentativa de teorizar os efeitos das substâncias psicotrópicas tem início com o livro de
Louis Lewin, Phantastica: Narcotic and Stimulating Drugs, publicado em 1924 na Alemanha.
Nele se encontra a primeira tentativa de classificar os estupefacientes, categorizados por
esse autor como inebriantes, hipnóticos, euforizantes, excitantes e "fantasticantes"
(alucinógenos), de acordo com a sua incidência sobre o humor, a alternância vigília/sono
e a percepção. Lewin, um brilhante precursor das neurociências, afirma categoricamente
que os alteradores de consciência devem seu poder às modificações induzidas no cérebro.
Se ainda fosse necessário prová-lo, de seu livro depreende-se o interesse que todas as
populações humanas dedicaram a esse aspecto da botânica. A classificação de Lewin
-
especifica as modificações provocadas no comportamento, sem ocupar-se com a
respectiva composição química.
Vinte anos depois, as pesquisas de Albert Hofmann sobre o ácido lisérgico (LSD) resultam
na primeira descrição química dos psicotrópicos. Na primavera de 1943, o químico da
Sandoz, que estudava as propriedades analépticas ou estimulantes de amidos do ácido
lisérgico, ingeriu acidentalmente (provavelmente através de absorção pela pele) certa
quantidade do composto batizado LSD-25 e não pôde continuar seu trabalho. "Ao chegar
em casa, deitei-me e mergulhei numa espécie de embriaguez que não era desprazeirosa,
caracterizada por uma extrema atividade imaginativa...".[28]
Os efeitos da absorção do LSD sobre a percepção e as emoções, experiência repetida
posteriormente de maneira deliberada para estudar os efeitos da droga, levaram-no à
suposição que inaugura o vislumbre da relação entre química cerebral e psicose.[29] Pela
primeira vez era apresentada "...a hipótese de que certas doenças mentais, consideradas
até então de natureza puramente psíquica, possuíam uma causa bioquímica, porque agora
parecia provável que os traços indetectáveis de uma substância psicoativa produzida pelo
próprio corpo poderiam causar distúrbios psíquicos"[30]. É o que será denominado, na
terminologia psiquiátrica, de capacidade psicotomimética das drogas. No caso do LSD,
trata-se de um notável potencial para alterar a percepção.[31]
O interesse de Hofmann, a partir da descrição feita por Lewin e Heffter, leva-o a descobrir
a similaridade entre o LSD, sinteticamente produzido no laboratório da Sandoz suíça, e a
mescalina, extraída de um cacto, utilizada pela população indígena centroamericana em
cerimônias religiosasHeffer, que haviam conseguido isoladar a mescalina. Heffter. É
interessante notar que tais práticas culturais, banidas pelo catolicismo no início da
colonização, ingressaram na clandestinidade - antecipando o que viria acontecer com as
drogas no século XX. Juntamente com o cacto peyotl, o cogumelo conhecido
como teonanacatl também fazia parte do acervo de conhecimentos botânicos dessas
populações, sendo usado para fins terapêuticos. Hofmann isolou seus princípios ativos,
encontrando semelhanças estruturais entre mescalina, epinefrina e norepinefrina, bem
como entre LSD e serotonina. Por sua vez, a psilocibina e a psilocina, substâncias ativas
do cogumelo teonanacatl, são derivados de triptamina, mesmo caso da serotonina.
A partir de tais análises, escreve Restak, "...os neurocientistas agora tinham razões para
acreditar que as afecções emocionais poderiam resultar de mudanças bioquímicas situadas
no cérebro".[32]
Entretanto, as pesquisas de Hofmann não desembocaram na psicofarmacologia
psiquiátrica, a não ser indiretamente[33]; em compensação, na década de 60, os alcalóides
-
encontrados no peyote reapareceram sob forma sintética na atmosfera comunitária e
pacifista da contra-cultura hippie, que ressuscitou no seio da economia industrial mais
desenvolvida do planeta os rituais das culturas pré-colombianas da América Central,
inclusive a figura do xamã (no caso, Timothy Leary). O império contra-atacou e as
instituições governamentais norte-americanas patrocinaram pesquisas cujos resultados
advertiram os usuários dos altos riscos incorridos com o LSD. Se retrospectivamente é
possível ver no trabalho de Hofmann a menção pioneira à correlação entre química
cerebral, drogadição e psicose, o desenvolvimento do primeiro remédio criado no interior
do campo psiquiátrico se deu por outra via.
Em 1948, John Cade, psiquiatra australiano, realizou um experimento destinado a verificar
a hipótese de que os estados maníacos resultariam da ação de uma toxina. Partindo da
suposição de que tal toxina deixaria vestígios nas excreções, ele comparou o efeito da
urina de pacientes maníacos em cobaias com a de um grupo de controle, verificando que
a primeira exibia um maior índice de letalidade. Em seguida, isolou os três componentes
básicos da urina -: uréia, ácido úrico e creatinina - constatando que a primeira era a única
a causar danos. A creatinina era não-tóxica e o ácido úrico apenas intensificava a ação
tóxica da uréia. Prosseguindo a pesquisa, buscou estudar mais especificamente o ácido
úrico, mas verificou que seus cristais não se dissolviam em água; o urato mais solúvel e
mais próximo em composição química do ácido úrico era o urato de lítio. Com essa
adaptação, fez então o experimento, mas em vez da ação tóxica esperada constatou que o
lítio reduzia consideravelmente a toxicidade da uréia, ao invés de aumentá-la (como
acontecia com o ácido úrico). O urato de lítio foi substituido por sua vez pelo carbonato
de lítio (melhor tolerado pelo organismo), dando lugar ao mesmo efeito calmante. Depois
de um auto-teste, Cade aplicou a substância em pacientes maníacos, com resultados
bastante favoráveis. Em 1949, o artigo Lithium salts in the Treatment of Psychotic
Excitement é publicado no The Medical Journal of Australia. "Sua descoberta dos efeitos
anti-maníacos do lítio inaugurou a moderna ciência da psicofarmacologia" escreve Restak,
e comenta: "Mesmo agora, quarenta anos após o experimento de Cade, o mecanismo de
ação exato do lítio permanece desconhecido. Mas sabe-se com certeza do seguinte: a
mania não resulta de uma deficiência de lítio no corpo"[34].
O tom categórico de Restak quando recusa ao lítio propriedades etiológicas não deixa de
surpreender, já que, como Kramer, ele julga perfeitamente razoável construir uma
hipótese com base no raciocínio de que se uma substância erradica determinado sintoma,
cabe supor que o mesmo foi causado pela sua ausência ou diminuição[35]. A atitude de
Restak deixa de surpreender se for levado em conta que o lítio é paradoxalmente tão
-
eficaz na mania como na depressão, evidência que Receptors, reveladoramente, deixa de
mencionar... Essa propriedade do lítio, que o torna tão ilegível como incômodo para o
organicismo, explica por que Restak lhe nega peremptoriamente qualquer dimensão
etiológica. Diaz, que admite os dados a favor e contra as hipóteses organicistas com a
isenção própria de um cientista, escreve no capítulo Ações cerebrais das drogas:
"Paradoxalmente, acumulou-se evidência que o lítio não somente é o melhor agente anti-
maníaco à disposição do clínico, mas também um bom antidepressivo para um subgrupo
de pacientes. Em terceiro lugar, afirma-se que o lítio é um profilático ativo no tratamento
dos distúrbios afetivos, ainda que para sustentar este ponto alguns autores exijam um
número maior de estudos controlados. Constata-se uma heterogeneidade, cuja natureza
não foi identificada, na resposta a este íon, em virtude do que inexiste qualquer análise
capaz de predizer sua eficácia farmacológica, a não ser o teste em cada caso. Apesar disso,
adverte-se que a terapia deve ser cautelosa e que os níveis de lítio devem ser
freqüentemente rastreados no sangue e nos eritrócitos para prevenir a toxicidade central
e periférica do íon".[36]
O artigo de Cade foi recebido com reservas. Segundo Kramer[37], apenas no final dos
anos 60 foram reconhecidas e saudadas as propriedades do lítio. Eficaz igualmente para
prevenir ou debelar quadros maníaco-depressivos, é inócuo em relação à esquizofrenia. O
lítio revela-se assim uma substância duplamente paradoxal: no seio de uma
inespecificidade absoluta (age tanto na mania como na depressão, condições exatamente
opostas), define nitidamente a fronteira entre mania-depressão e esquizofrenia, oferecendo
pela primeira vez à psiquiatria a possibilidade de estabelecer um diagnóstico diferencial
confiável. Nenhuma outra substância química pôde repetir esse feito notável... nem o
próprio litio.
"O firme vínculo entre uma droga e um diagnóstico tornou-se um modelo ideal ao qual
nem mesmo o lítio se aplica. Com uma medicação disponível eficaz, os psiquiatras
americanos tornaram-se diagnosticadores tão entusiastas de depressão
maníaca (sic)[38] que hoje somente metade dos pacientes que recebem esse diagnóstico
respondem bem ao lítio, e duas ou três outras drogas estão em uso comum para a
doença. E o lítio está agora sendo usado para tratar outras formas de perturbação".[39]
O lítio, desta vez através de seu histórico como substância terapêutica, acaba por provocar
um terceiro paradoxo, agora na própria psiquiatria biológica. Na seqüência dos
-
comentários anteriores, Kramer escreve: "Os medicamentos, é cada vez mais reconhecido,
alteram os sistemas neuroquímicos. Eles não tratam doenças específicas. E a proliferação
de doenças tornou-se tão perturbadora que a pesquisa de ponta envolve tentativas de
elucidar vínculos entre elas" (...) "Esse anuviar de fronteiras constitui um efeito não
esperado - humanístico - de se ouvir drogas: como a psicanálise, a resposta positiva a
drogas pode enfatizar a banalidade bem como a futilidade de tentativas de categorização
mecânica".[40] A breve referência à psicanálise provavelmente significa que o método
psicanalítico (associação livre, atenção flutuante) é aplicável tanto à histeria de conversão,
como à neurose obsessiva e à fobia (histeria de angústia). A conclusão é surpreendente:
em vez de preocupar-se com o diagnóstico e a etiologia dos distúrbios mentais, pilares da
psiquiatria biológica, Kramer considera pragmaticamente que a nosografia e a etiologia
são menos importantes do que o efeito da medicação. Mais ainda, propõe que a resposta
aos fármacos passe a constituir doravante o critério do diagnóstico, mesmo que essa
atitude subverta a modalidade tradicional de intervenção psiquiátrica.
Se a proposta relativista de Kramer for aceita, é de se temer (ou rejubilar?) que ela resulte,
cedo ou tarde, na abolição da nosografia psiquiátrica. De fato, a "proliferação de doenças"
mencionada por Kramer não seria outra coisa senão o reconhecimento de que a
idiossincrasia se sobrepõe aos quadros nosográficos. Na clave psicanalítica, um dos
[1] (Plants of Gods, Richard Evans Schultes e Albert Hofmann, citado por Restak).[2]
(Restak, op.cit. pg. 59).
[3] (Restak, op.cit. pg. 7).
[4] "À medida em que avançamos na última década do século vinte, que foi declarada a
Década do Cérebro, o conceito abrangente de receptor provavelmente se mostrará ainda
mais propenso a facilitar o conhecimento do cérebro, propiciando, na esteira desse
processo, a compreensão de nossos pensamentos, estados de espírito e comportamento.
Graças a essa pesquisa, pela primeira vez na história da humanidade, teremos a
possibilidade de programar nosso próprio cérebro" (op.cit., pg. 216).
[5] O último item pode ser exemplificado através da discinesia tardia, isto é, o descontrole
na motricidade voluntária que sobrevém freqüentemente após a suspensão do tratamento
com neurolépticos.
[6] A expressão "doença mental" é própria da psiquiatria e sua utilização aqui não significa
coonestá-la.
-
[7] Nos capítulos VIII e IX de Receptors, intitulados Russian Dolls e Double Agents.
[8] Seria mais exato dizer: um dos principais mecanismos. Ver adiante a ressalva de José
Luis Diaz a esse respeito.
[9] Sempre em torno de 70% segundo a maioria das estatísticas. O mesmo tratamento
(eletrochoque) foi transposto para a PMD (atual distúrbio bi-polar), com resultados
semelhantes. Além da transitoriedade dos efeitos, essa inespecificidade é bastante
significativa; constitui um argumento muito forte, senão decisivo, contra a suposição de
que o eletrochoque seria um tratamento etiológico.
[10] "Em neurologia, a descoberta realizada em 1960 de um decréscimo de dopamina no
corpo estriado ou striatum dos pacientes afetados pela doença de Parkinson levou a tratá-
los com L-dopa, da qual a dopamina é o metabolito. Mas se esta droga permitiu melhoras
espetaculares no que concerne aos transtornos motores, também produziu com bastante
frequência complicações psiquiátricas com aparição de manifestações psicóticas que se
assemelhan mais a episódios confuso-oníricos do que a verdadeiras psicoses
esquizofrênicas e que cessam com a suspensão da terapia com L-dopa". (Jean Garrabé,
op.cit., pg. 190).
[11] Ela precisaria apenas ser atualizada em relação à descoberta do sistema nervoso
autônomo, ocorrida duas décadas depois. O tema é abordado no segundo capítulo.
[12] Como a dopamina, acima mencionada.
[13] Cf. o exemplo da "sham-rage".
[14] É o caso, por exemplo, da ‘inteligência', cuja base genética começa a ser
insistentemente afirmada. Em Receptors, Restak escreve: "Não apenas a inteligência mas
traços de personalidade tais como timidez, introversão e suscetibilidade a certas formas de
doença mental revelam-se fortemente influenciados pela genética" (op.cit., pg. 99).
[15] Termo cunhado por Durkheim para designar a perda do referencial constituído pelos
valores tradicionais.
[16] O êxito provavelmente depende de que o sujeito esteja em conflito com referência à
dependência. Nesse caso, os programas de recuperação (cursos de profissionalização,
educação artística, esportes etc.) são eficazes. Freqüentemente a crença religiosa cumpre
um papel importante enquanto motivação para o afastamento da droga e pode ser
compreendida como um procedimento sugestivo.
[17] A imprecisão deste último item dará lugar a confrontos entre organicistas
conservadores e organicistas liberais a respeito da inclusão ou não do aborto, maconha,
homosexualidade, desobediência civil, contra-cultura e outros comportamentos na
categoria do patológico.
-
[18] No final deste capítulo serão discutidas as hipóteses referentes à etiologia genética.
Quanto à etiologia anatômica e virótica, a precariedade dessas hipóteses dispensa seu
exame.
[19] Kramer menciona as evidências correspondentes a essa afirmação na pg. 137 e
seguintes.
[20] A potência maior da imipramina (Tofranil) reside em que ela inibe não somente a
retomada de serotonina mas também a de norepinefrina. Em compensação, o simpático
será fortemente ativado - transpiração, palpitações cardíacas, boca seca, prisão de ventre e
retenção urinária, segundo Kramer. O Prozac apresenta colaterais ‘simpáticos' (como a
perda de apetite) em grau menor, já que sua ação se exerceria, (segundo nossa hipótese),
sobretudo no lobo frontal. Cumpre-se, assim, o previsto pela ‘Lei de Denniker': quanto
mais significativo for o efeito de um psicotrópico, maior a sua propensão a provocar fortes
colaterais extra-piramidais.
[21] Em certos trechos de Ouvindo o Prozac encontrar-se-ão ressalvas e ponderações; em
outros, a hipótese do eu bioquímico é afirmada enfaticamente. O resultado final reflete
uma mescla entre cautela e radicalismo; mas a originalidade do livro, sua contribuição
principal, repousa na defesa incondicional do reducionismo orgânico.
[22] "Este desajuste (desencontro) entre receptor e transmissor inclui não somente eventos
no nível químico e molecular mas pensamentos e sentimentos que são os correlatos, no
nível comportamental, das alterações químicas" (op.cit., pg. 216).
23 Conforme a tese subjacente ao trecho mencionado em epígrafe: "Em resumo, tudo o
que é mental- tanto as funções normais como os distúrbios de pensamento e emoção - se
origina de alguma ordem ou desordem correspondente no nível molecular".
[24] "...estas drogas, utilizadas com propriedade e sensibilidade, podem ajudar-nos a
alcançar o objetivo que muitos sistemas filosóficos e psicólogicos sugeriram como nossa
melhor estratégia para enfrentar e vencer um mundo cambiante; modificando não o
mundo mas nossas respostas a ele" (idem, pg. 215).
[25] "Na próxima década a pesquisa sobre receptores promete trazer avanços notáveis e
de grande alcance em nossa compreensão do comportamento humano e no tratamento
de doenças mentais até agora incuráveis bem como da drogadição. A aplicação desses
avanços estende-se além da compreensão de estados mentais extraordinários. Também
promete melhorar as funções normais: enriquecendo a memória, desenvolvendo a
inteligência, aumentando a concentração e alterando os estados internos de humor das
pessoas". (Idem, pg. 5).
[26] Referindo-se às décadas anteriores ao surgimento das neurociências, Restak escreve:
"Os psiquiatras tinham realmente mais afinidade com psicólogos, filósofos e outros
-
estudiosos que consideravam a personalidade humana de maneira a excluir a biologia, do
que com os outros médicos" (idem, pg. 9).
[27] "Embora não se saiba precisamente há quanto tempo estas plantas sagradas
começaram a ser empregadas dessa maneira, descobertas arqueológicas de espécimes de
peyote em cavernas do Texas sugerem seu uso cerimonial há mais de três mil anos".
(Restak, op.cit., pg. 52)
[28] Op.cit., pg. 48. Por outro lado, Jacques Postel e Claude Quétel, em Historia de la
Psiquiatria, fazem recuar um século o gesto que atribui às drogas a propriedade
psicotomimética. Segundo os referidos autores, o alienista Moreau de Tours preconizou
em 1845 o uso do haxixe para esclarecer certos aspectos da ‘patologia mental'. Esse
clínico considerava que somente através de uma vivência equivalente à de seu paciente o
médico conseguiria entrar em contato com a loucura: "Fazei como eu, provai do haxixe,
experimentai en vós mesmos". (Postel e Quetel, pg. 395).-
[29] Vislumbre que por sua vez permite entrever , se adotarmos um ponto de vista não
organicista, a comunhão entre o sentido que preside a alteração voluntária da química
cerebral (ou seja, a motivação que conduzirá ao uso de drogas) e o sentido subjacente à
psicose.
[30] Hofmann, citado por Restak (pg. 51).
[31] ""...LSD é de longe o mais ativo e potente alucinógeno..." (Restak, op.cit. pg. 52).
[32] (Idem, pg. 59).
[33] O LSD foi efetivamente utilizado como psicotomimético em pesquisas sobre a
alucinação psicótica.
[34] (Op.cit., pg. 66). Diaz escreve que Mandell e Knapp (1979) supõem que "...os efeitos
do lítio sobre o sistema serotoninérgico explicariam a eficácia do íon tanto na mania como
na depressão", ao incrementar a disponibilidade do triptófano, seu precursor, ao qual se
atribui um papel de regulação na síntese da serotonina cerebral.
[35] Eis um exemplo: "De fato, em um ponto os cientistas discutiram seriamente a
possibilidade da existência de um composto natural do tipo PCP no interior do cérebro,
cuja disfunção, de maneira misteriosa, produziria esquizofrenia. (...) Se uma droga como o
PCP provoca modificações tão profundas no funcionamento normal do cérebro, a ponto
de que uma pessoa sob sua influência possa agir pela primeira e única vez em sua vida
como esquizofrênica, raciocinaram, o PCP plausivelmente agiria no mesmo sítio ou sítios
cerebrais responsável(is) pela esquizofrenia". Mas, "...não houve como confirmar ou refutar
esta hipótese perfeitamente razoável" (Restak, op.cit., pg. 129).
[36] Op.cit., pg. 18.
[37] Pgs. 61 e segs.
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[38] Um erro do tradutor. A tradução correta é "mania-depressão".
[39] (Kramer, op.cit., p.62)
[40] (Idem, p.62)
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