o mundo sonoro de platão

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HYPNOS, São Paulo, número 29, semestre 2012, p. 299-309 PLATÃO E O MUNDO SONORO PLATO AND THE WORLD OF SOUND LIA TOMÁS Resumo: O texto visa estabelecer algumas relações entre os conceitos de música e filosofia em Platão. Para tal, o conto Dans un monde sonore, de Victor Segalen será utilizado como metáfora desses conceitos. Pretendemos analisar que , para o filósofo, tanto a música como a filosofia envolvem necessariamente os atos de ouvir e pensar, de modo que a escuta exercita-se em meio a discursos de toda sorte havendo seleção de palavras que incitam mais ao pensamento do que propriamente à fala. Palavras-chave: Platão, música, filosofia, Victor Segalen. Abstract: In this article we intend to propose some relations between the concepts of Music and Philosophy in Plato. To this end, the tale Dans un monde sonore, by Victor Segalen will be used as a metaphor for these concepts. We also intend to assert that, for the philosopher, Music and also Philosophy both necessarily involve acts of hearing and thinking, in such a way that hearing is exercised in speeches of all sorts that involve a word-selection inciting more to thinking than to speaking. Keywords: Plato, music, philosophy, Victor Segalen. “... – Meu caro amigo, Mathilde está louca, você não percebeu? Desde que nos mudamos de Bordeaux, ela decidiu viver apenas pelos seus olhos! Mesmo quando caminha na escuridão apalpando os objetos, ela continua a olhar para a esquerda ou para a direita! As palavras de André me surpreenderam. Desde que ele se aposentara da universidade, deixando as aulas e seu laboratório de física, poucas notícias tínhamos dele e eu, em particular, nunca mais o encontrei. Aquele homem altivo e generoso mostrava-se agora angustiado. Suas palavras ecoavam na penumbra daquele estranho quarto, o qual parecia uma grande caixa de ressonância. – Mathilde está obcecada pela visão, continua André. Não quero dizer que ela tenha ficado surda, mas percebo que ela negligencia os dados mais banais da vida comum e ampara-se em meio aos hábitos de um primata. Apresente a ela qualquer objeto desconhecido e você ficará chocado com * Lia Tomás é prof. na UNESP (Inst. Artes), Brasil. E-mail: [email protected]

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Filosofia

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  • HYPNOS, So Paulo, nmero 29, 2 semestre 2012, p. 299-309

    PLATO E O MUNDO SONOROPLATO AND THE WORLD OF SOUND

    LIA TOMS

    Resumo: O texto visa estabelecer algumas relaes entre os conceitos de msica e filosofia em Plato. Para tal, o conto Dans un monde sonore, de Victor Segalen ser utilizado como metfora desses conceitos. Pretendemos analisar que , para o filsofo, tanto a msica como a filosofia envolvem necessariamente os atos de ouvir e pensar, de modo que a escuta exercita-se em meio a discursos de toda sorte havendo seleo de palavras que incitam mais ao pensamento do que propriamente fala.

    Palavras-chave: Plato, msica, filosofia, Victor Segalen.

    Abstract: In this article we intend to propose some relations between the concepts of Music and Philosophy in Plato. To this end, the tale Dans un monde sonore, by Victor Segalen will be used as a metaphor for these concepts. We also intend to assert that, for the philosopher, Music and also Philosophy both necessarily involve acts of hearing and thinking, in such a way that hearing is exercised in speeches of all sorts that involve a word-selection inciting more to thinking than to speaking.

    Keywords: Plato, music, philosophy, Victor Segalen.

    ... Meu caro amigo, Mathilde est louca, voc no percebeu? Desde que nos mudamos de Bordeaux, ela decidiu viver apenas pelos seus olhos! Mesmo quando caminha na escurido apalpando os objetos, ela continua a olhar para a esquerda ou para a direita! As palavras de Andr me surpreenderam. Desde que ele se aposentara da universidade, deixando as aulas e seu laboratrio de fsica, poucas notcias tnhamos dele e eu, em particular, nunca mais o encontrei. Aquele homem altivo e generoso mostrava-se agora angustiado. Suas palavras ecoavam na penumbra daquele estranho quarto, o qual parecia uma grande caixa de ressonncia. Mathilde est obcecada pela viso, continua Andr. No quero dizer que ela tenha ficado surda, mas percebo que ela negligencia os dados mais banais da vida comum e ampara-se em meio aos hbitos de um primata. Apresente a ela qualquer objeto desconhecido e voc ficar chocado com

    * Lia Toms prof. na UNESP (Inst. Artes), Brasil. E-mail: [email protected]

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    Plato e o mundo sonoro

    300 os movimentos e gestos vulgares que ela far com suas mos! Tenho a impresso que ela retrocedeu a um tempo primitivo, quando os homens surdos, em meio ao mundo harmonioso, tentavam conduzir-se pela vida apenas pela mais vil das sensaes, quando acreditavam tudo conhecer e compreender apenas por seus olhos antropides e suas patas desajeitadas. Assim, tendo que tolerar estas fantasias de Mathilde, eu me refugio neste quarto no qual me instalei de um modo menos extravagante...

    Confesso que eu me encontrava atnito. Quando cheguei residncia do casal para uma visita inesperada, Mathilde me recebeu calorosamente, po-rm com uma visvel aparncia de preocupao. E antes de eu reencontrar meu velho amigo, ela havia me prevenido: Andr est mal, muito mal...no h mais nada a fazer, visto que Andr enlouqueceu!

    Ainda confuso com o que eu acabara de ouvir naquele quarto, vi meu amigo desaparecer lentamente em direo a uma pequena lamparina que flamejava em cima da cmoda. Eu no sabia o que falar, nem ao menos se eu deveria falar algo. Meu pensamento se encontrava quase que suspenso na ressonncia das ltimas slabas da fala de Andr. Tinha a impresso que perdera a noo de h quanto tempo me encontrava naquele lugar, pois aqueles ecos me embalavam como se eu fosse uma folha de papel fustigada pelo vento. Mesmo hesitante, me levantei da poltrona caminhando tropegamente pelo quarto, quando subitamente a luz do crepsculo invadiu o recinto pelas frestas da janela, anunciando o final da jornada. No sei por que, murmurei: No, no ainda.....no ilumine....

    Ah! voc tambm acredita que eu estou louco? perguntou-me Andr subitamente.

    Imerso naquelas sensaes, eu no conseguia escutar o meu amigo, pois sua voz se dissolvia naquele espao. Percebi apenas que ele fechara as cortinas e o som dos ferrolhos se misturava com seus passos lentos e com o eco de sua fala, formando assim um canto imperturbvel. Era impressionante como isso se dava de maneira imperiosa naquele recinto: muitos sons, de todos os lados e de todas as maneiras possveis.

    Minha Mathilde se encontra distante e a cada dia que passa ela se afasta mais rapidamente. A harmonia desapareceu. Como nomear esta pobre fugitiva? Eu imagino Orfeu, o cantor dos cantores, abandonando o mundo em meio s liras e descendo aos infernos. Paramentado com suas harmo-nias mgicas, Orfeu doma a matria, as rochas, a areia; ele sopra, anima, fecunda, domina e passa como precursor entre os humanos errantes: aqueles que vem, que tocam, que apalpam, enfim, aqueles que no escutam. E eis que, dentre os obstculos, surge Eurdice....e Orfeu se pe a cantar o mais belo hino...

    Os ecos do quarto tornaram-se mais intensos e pareciam resplandecer.

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    301 Orfeu acreditou reconquistar e recobrir tudo. Ele esqueceu as impure-zas deste mundo brutal, deste mundo cego. Seu amor por Eurdice e seu desejo contnuo de am-la era puro, livre, harmonioso. Mesmo antes de partir dessa jornada infernal e no duvidando do poder de sua lira divina, ele quis envolv-la de amor. Ele cantou....

    Cantou....ressoava o espao, dando-me a impresso de que agora os sons formavam um tipo de acorde dissonante.

    Orfeu cantou! E sua amada correu em sua direo com um olhar inte-rrogativo. Sem olh-la, ele estendeu sua mo para trs com o intuito de alcanar a dela; assim, pegou-a e saiu cantando e correndo quando, de repente, olhou-a de soslaio.....os joelhos de Eurdice j no respondiam...eles se dobraram e ela caiu na terra negra. Seus braos estendidos, sua boca tentando pronunciar algo se calara em um canto inaudito. Diante daquela imagem Orfeu emudeceu e partiu dos infernos em um silncio inexprimvel.

    Inebriado pelos sons e pelos poucos raios de luz que ainda se encontravam no quarto, perguntei-lhe quase de instinto:

    Orfeu ... voc?

    Andr olhou-me fixamente e respondeu:

    No, eu no sou Orfeu. Orfeu no era um homem, tampouco um ser vivo ou morto. Orfeu, em nossa humanidade mutante, o desejo de ouvir e de ser ouvido, a potencia de viver e criar no mundo da sonoridade, o smbolo soberbo da fuga de nossa rudeza de sensaes. Orfeu nunca existiu, ape-nas os poderes rficos, cujo apogeu em nossa humanidade nos permitiu conceber assim o mundo: uma substncia sonora da qual procede toda uma srie de atributos que preponderava em outros tempos: o entendido! o movimento! aquilo que vamos, aquilo que tocvamos! Estes seres, voc pode cham-los de rficos.

    Horas indecisas se passavam e o tremular das chamas ocupava meu pen-samento. Entretanto, me veio uma idia e perguntei:

    Andr, voc gosta de msica?

    Calmamente, ele me respondeu:

    Eu no sei o que voc chama de msica.

    Meio sem graa, misturei as primeiras coisas que me vieram cabea: os estudos de Helmholtz sobre a ressonncia, a gama de Ptolomeu, as teorias de Riemann. Com um meio-sorriso, Andr se esforou em responder com bom humor:

    Amigo, creio que voc est brincando. Todas essas pessoas que voc nomeou no eram msicos no sentido ao qual me refiro; eles mensuraram a oitava, descobriram sons ocultos, mas nunca suspeitaram desta essncia que nos penetra, nos anima e nos faz existir....

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    Plato e o mundo sonoro

    302 O conto Dans un monde sonore de Victor Segalen, cuja recriao acaba-mos de ler, retoma o mito de Orfeu e Eurdice como a histria de um casal que vive em mundos perceptivos distintos: por um lado temos Mathilde, a esposa que se recusa ativar a sua escuta, priorizando seus sentidos mais imediatos como a viso e o tato , para a sua sobrevivncia no mundo; por outro, encontramos Andr, um fsico aposentado que, por razes no reveladas, decide abandonar o contato com o mundo visvel e adentrar in-tegralmente na escuta do mundo. Para tanto, ele transforma um quarto de sua casa em uma espcie de caixa de ressonncia, no qual todo e qualquer som, independente de sua intensidade, pode ser ouvido.

    Pelos comentrios do narrador, personagem sem nome, ficamos a par das mltiplas experincias sensoriais vividas no espao desta cmara: o contato direto e imediato com os sons em seu estado bruto provocam uma espcie de vertigem, uma perda das referncias fsicas e espaciais e a explorao dos limites da sensibilidade. E Andr, atravs de seus comentrios prope, tanto para si como para seu amigo, uma espcie de inverso, uma recusa tcita deste estado de torpor causado pelo excesso de sonoridades: para ele, estar imerso no mundo sonoro, neste tnue universo das variaes da escuta, a nica via possvel para o ouvir.

    possvel que os leitores estejam se perguntando o porqu de apresentar esse conto em um texto cuja temtica Plato. A resposta, no entanto, s poder ser oferecida se entendermos que este conto pode ser interpretado, de modo potico e metafrico, como uma espcie de repositrio dos variados matizes do pensamento musical platnico; e assim, comecemos a deslindar essas variaes por meio de analogias com o conto apresentado acima.

    No Fdon (60e-61a) encontramos uma conhecida passagem, na qual Plato coloca na fala de Scrates, a correlao da msica com a filosofia:

    Vrias vezes no curso de minha vida, fui visitado por um mesmo sonho; no era atravs da mesma viso que ele sempre se manifestava, mas o que me dizia era invarivel: Scrates, dizia-me ele, deves esforar-te para compor msica! E, palavra! sempre entendi que o sonho me exortava e me incitava a fazer o que justamente fiz em minha vida passada. Assim como se animam corredores, tambm pensava eu, o sonho est a incitar-me para que eu preserve na minha ao, que compor msica: haver, com efeito, mais alta msica do que a filosofia e no justamente isso o que fao?

    Encontramos, aqui, uma primeira aproximao com o conto de Segalen. Plato faz uma sinonmia entre msica e filosofia, embora ambas paream ser antagnicas em seus fins. Entretanto, ao compararmos esta fala com a do personagem Andr, percebemos a sutileza do que elas possuem em

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    303comum: tanto a msica como a filosofia envolvem necessariamente os atos de ouvir e pensar.

    Para a filosofia, a escuta exercita-se em meio a discursos de toda sorte, selecionando aquela parcela de palavras que incitam mais ao pensamento do que propriamente fala. Esta seleo atentiva requer do ouvinte uma audio ativa e uma sagacidade para distinguir os raciocnios circunstanciais daqueles que, por exerccio de sua maestria com a palavra, corrompem o sig-nificado dos conceitos por meio de tcnicas de argumentao. Plato chama a ateno para este fato no Sofista (224b), apontando que dos cidados que de cidade em cidade, vende[m] as cincias por atacado, o ouvinte atento deve se desviar para que, durante sua escuta, ele possa mobilizar-se para uma mudana interna, para uma alterao de suas estruturas de pensamento.

    Para tanto, essa mobilizao carece de silncio. O ouvinte necessita refrear constantemente suas reaes mais imediatas aos discursos, suas expresses de agrado, desagrado ou surpresa, e aguardar a finalizao daquele. Nas pa-lavras de Plutarco (2003: 14), quem se acostumou a ouvir com autodomnio e respeito, acolhe e retm o que til, discerne e reconhece o que intil ou falso, mostrando-se amante da verdade (...).

    Na fala do personagem Andr, as pr-condies descritas acima no so diferentes no que se refere msica. Para ele, a fundao do mundo em meio a sonoridades requer um ouvir muito alm da escuta intuitiva e sensria: ouvir tambm colher, escolher, concentrar-se em cada som percebido, estruturar e se orientar a uma possvel construo musical. Por isso convoca Orfeu, o desejo de ouvir que ascende na direo de sua condio originria, que aspira regressar a um estado de outrora no reino da imortalidade e atemporalidade.

    Seja para a filosofia ou para a msica, percebemos um constante jogo entre o ouvir e o no ouvir, entre o colher e o escolher, entre o perceber e transformar o percebido sejam palavras, sejam meramente sons em algo que tambm nos pertena mas que no entanto, possa ser exteriorizado. E nesse sentido, ouamos Heidegger:

    Dizer o ato recolhido que recolhe e que deixa as coisas estendidas uma perto das outras. Se tal a situao do falar em seu ser, que ento o escutar? Enquanto lgein, o falar no se determina a partir do som que exprime o sentido. Se, portanto, o dizer no determinado a partir do som emitido, ento o escutar que lhe corresponde no pode mais consis-tir, em primeiro lugar, num som que batendo no ouvido ento captado, em sons que ferem o ouvido e so retransmitidos. Se nosso ouvir fosse primeiramente e sempre apenas esse captar e retransmitir de sons, ao qual se juntariam ainda outros processos, ento seria verdade que a mensagem

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    Plato e o mundo sonoro

    304 sonora entraria num ouvido e sairia pelo outro. exatamente isto que acontece, quando no nos concentramos naquilo que dirigido a ns. Mas aquilo que se no diz ele mesmo a coisa estendida-diante e apre-sentada depois de recolhida. O escutar propriamente este recolher-se, concentrado na palavra que nos dirigida, que nos dita. O escutar primeiro o ouvir recolhido. Na atitude que se pe escuta, manifesta-se a essncia do ouvir. Escutamos, se somos todo ouvidos (...) No ouvir, no sentido de escutar e de seguir o pensamento, no podemos ver mais que uma transposio desta audio propriamente dita para o plano espiritual (...) Somos todo ouvidos, quando nosso recolhimento se transporta, puro, para dentro do poder de escutar, quando ele esqueceu completamente os ouvidos e a simples impresso de sons (...) Quando ento teremos ouvido ? T-lo-emos, quando fizermos parte daquilo que nos dito (...) Se nosso ouvir fosse primeiramente e sempre apenas esse captar e retransmitir de sons, ao qual se juntariam ainda outros processos, ento seria verdade que a mensagem sonora entraria num ouvido e sairia pelo outro. exatamente isto que acontece, quando no nos concentramos naquilo que dirigido a ns. (...) O escutar propriamente este recolher-se, concentrado na palavra que nos dirigida, que nos dita. O escutar primeiro o ouvir recolhido. Na atitude que se pe escuta, manifesta-se a essncia do ou-vir. Escutamos, se somos todo ouvidos (...) Somos todo ouvidos, quando nosso recolhimento se transporta, puro, para dentro do poder de escutar, quando ele esqueceu completamente os ouvidos e a simples impresso de sons (...) Quando ento teremos ouvido ? T-lo-emos, quando fizermos parte daquilo que nos dito. (1973: 120-121)

    A convergncia entre a audio dos discursos (ou da palavra) e a audio musical encontra-se no III livro da Repblica. Neste, Scrates conversa com Glauco sobre diversas pautas referentes a educao dos guardies, destacando na msica o carter do canto, seus limites e convenincias: os componen-tes da melodia, os tipos de harmonia que devem ser ou no utilizados, os instrumentos e os ritmos. sobre a msica prtica que eles se referem e sua correlao com as demais atividades que compunham o ensino musical poca, a saber: o estudo do instrumento, o canto, a poesia, a dana e a ginstica. Vejamos algumas passagens:

    Mas sem dvida que s capaz de dizer que a melodia se compe de trs elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo.(398d) E certamente a harmonia e o ritmo devem acompanhar as palavras?(398d) Quais so ento as harmonias lamentosas? (...) Portanto, essas so as que se devem excluir (...)(398e) No entendo de harmonias (...) Mas deixa-nos ficar aquela que for capaz de imitar convenientemente a voz e as inflexes

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    305de um homem valente na guerra (...) E deixa-nos ainda outra para aquele que se encontra em atos pacficos (...)(399a-b) (...)No precisaremos para nossos cantos e melodias de instrumentos com muitas cordas e com muitas harmonias.(399c) Os fabricantes de flautas e os flautistas, recebe-los na cidade? Ou no este o instrumento que emite mais sons? E os prprios instrumentos de muitas harmonias, no se d o caso de serem imitaes da flauta? (399d) A seguir s harmonias, deveremos tratar dos ritmos no os procurar variados, nem ps de toda a espcie, mas observar quais so os correspondentes a uma vida ordenada e corajosa. (399e) Mas, na verdade, o bom e o mau ritmo seguem imitando-o, aquele, o estilo bom, este o inverso; e do mesmo modo sucede com a boa e a m harmonia, se o ritmo e a harmonia se adaptam palavra, como a h pouco se disse, e no a palavra a esses. (400d)

    Falemos um pouco sobre o entrelaamento destes conceitos. Ao designar a palavra como componente da melodia, Plato condiciona a msica ao canto, assim como tambm critica boa parte dos msicos de seu tempo, os quais inverteram a supremacia da letra sobre a msica. A palavra impe um ritmo que deve ser acompanhado pelo instrumento, bem como pelos movimentos do corpo, formando um conjunto harmonioso; quando o msico prescinde da palavra ou a subordina aos sons de seu instrumento, evidencia apenas sua habilidade tcnica, apresentando uma espcie de harmonia pela metade. Na Leis (669b-70), Plato censura a msica instrumental, alegando que alguns msicos criam melodias sem palavras e com ritmo para serem tocadas pela ctara ou pela flauta, o que torna difcil julgar se o carter que estas msica expressam so dignos, tanto para aqueles que a executam quanto para aque-les que a escutam. Vale dizer que esta desarmonia do carter musical, do thos, ao mesmo tempo em que exalta as singularidades do instrumentista, o qual neste caso se comporta como se fora apenas um ser dotado de hbitos primatas, tambm incita estes instintos aos que ouvem mesclando em uma mesma obra gritos de animais, vozes de homens, rudos de instrumentos e toda classe de sons confusos.

    Cabe aqui um pequeno desvio de percurso para um aparte musicolgico. A definio de msica proposta por Plato na Repblica, a qual composta por harmonia, ritmo e lgos jamais foi colocada em dvida pela musicologia at meados do sculo XVII. Sem adentrar na questo se esta a nica defi-nio dada por Plato ou se h variantes, complementos e contradies sobre este conceito no corpus platnico, a musicologia elegeu esta definio por lhe parecer mais apropriada. O mesmo se pode dizer sobre a condenao da msica instrumental, associada ao trabalho escravo, falta de inteleco dos

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    Plato e o mundo sonoro

    306 msicos prticos e a ser essa uma mera sombra do que a msica realmente . A guisa de exemplo, citamos Bocio e sua conhecida definio sobre o que o msico em seu tratado De Institutione Musica, (1, 34) a qual s comeou entrar em declnio nos primrdios do Renascimento:

    (...)Da decorre que a especulao racional no depende do ato de fazer. De fato, nenhuma obra das mos existiria se no fosse guiada pela razo. possvel entender quo grandes so o mrito e a glria da razo a partir do fato de que os outros artfices, por assim dizer, de habilidades fsicas, tomam seus nomes no da disciplina, mas dos seus prprios instrumentos. Ento o citarista toma seu nome da ctara, o aulets do aulos, e os outros so chamados com os nomes dos seus instrumentos. Pelo contrrio, msico aquele que recebe para si a cincia do canto, ponderando com a razo, no atravs da servido do trabalho, mas atravs da autoridade da especulao.(...) Assim, h trs tipos de pessoas que esto envolvidas com a arte musical. Um tipo o dos que se apresentam em instrumento, outro compe as canes e o terceiro avalia a performance dos instru-mentos e as canes. Mas aqueles que se ocupam de instrumentos e a consomem todo o seu esforo como os citaristas ou aqueles que provam suas habilidades no rgo ou outro instrumento musical -, esto afastados do entendimento da cincia musical, porque agem como escravos, como foi dito: nenhum deles chega razo, pois esto totalmente afastados da especulao. (Castanheira, 2009: 146-148)

    Voltemos a Plato. Quanto harmonia, cabe observar o entendimento metafsico e concreto que envolve este conceito, e cuja duplicidade compa-rece com freqncia nos dilogos platnicos: por vezes, a harmonia pode ser entendida como um termo tcnico em que significa as amarras, as presilhas, as juntas ou as articulaes de uma determinada estrutura; figurativamente, harmonia pode tambm significar um pacto, os laos travados entre duas ou mais partes; outras vezes, a harmonia refere-se especificamente afinao das cordas da lira pode ser identificada com a srie de notas empregadas em uma melodia particular.

    Nos mitos mais antigos sobre a msica, Orfeu simbolizava a unio in-dissolvel entre o canto e o som da lira, alm de ser uma potncia mgica e obscura que subvertia as leis naturais e que propiciava a reconciliao dos princpios opostos que regiam a natureza em uma unidade. Em Homero, a msica abarcava no apenas funes recreativas, pois era indispensvel no acompanhamento do canto ou da dana, propiciava a recordao de situaes peculiares e era vista como essencial na educao da classe aristocrtica. Com Damon, mentor de Plato nas passagens citadas acima, acentua-se a idia de

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    307que a msica exerce uma direta e profunda influncia sobre o esprito, e por conseqncia, sobre a sociedade em seu conjunto: desta crena, o ajuste dos modos musicais a determinados thoi, ou ainda, a diferentes caracteres ou estados anmicos os quais dotam a msica de uma funo educativa.

    Edward Lippman (1975:87-90) destaca que tanto a filosofia do thos como a metafsica da harmonia so fundamentadas em uma concepo genrica da msica. No entanto, essa concepo genrica no privilegia a estrutura harmnica da natureza e do homem, como no caso da metafsica, mas acen-tua o carter rtmico da arte musical, englobando assim a dana, a poesia e a melodia. A msica se restringe ao fenmeno sensrio e o tom permanece vinculado ao significado verbal e ao movimento. No entanto, sob este prisma a msica apenas um fenmeno sensrio, possui um status ontolgico mais baixo, pois parte do mundo ilusrio da mudana: ela apenas a imitao de outros fenmenos sensrios, uma aparncia fugidia, que pode influenciar, perigosamente ou no, o estado de esprito humano.

    No entanto, Plato proclama na Repblica, pela voz de Scrates, a res-taurao da verdadeira msica, uma msica filosfica, por assim dizer. O mlos o singular do plural homrico melea, os membros do corpo, da qual provm melodia , segundo J. Lohmann, uma palavra na qual so pensadas simultaneamente tanto a constituio de um corpo quanto uma determinada estrutura de articulao. Quando o termo empregado no coletivo indica o mundo articulado dos sons. A particularidade deste con-ceito reside na oposio que ele faz a pos em termos modernos, entre o domnio pico e lrico e tambm ao grau de abstrao que este conceito possui: o conceito de mlos abstrao da estrutura meldica da palavra humana, (...) uma colorao involuntria do que dito espontaneamente e que est no reino da percepo dos sons pelos ouvidos, como a cor est para o mundo visual (1989: 19).

    Haveria, assim, alguma desarmonia entre as atividades que envolvem esta msica filosfica apontada por Plato? Cantar e contar, assim como ouvir e pensar, no seriam atividades afins? No seria o mesmo para com os movimentos dos corpos e o ritmo da poesia?

    (PAUSA)

    Meu caro amigo, Mathilde est louca, voc no percebeu? Desde que nos mudamos de Bordeaux, ela decidiu viver apenas pelos seus ouvidos! Mesmo quando ela caminha na escurido, aproxima-se dos objetos e en-costa sua cabea como se pudesse escutar algo.

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    Plato e o mundo sonoro

    308 As palavras de Andr me surpreenderam. Desde que sua esposa se apo-sentara da universidade, poucas notcias tnhamos dela e eu, em particular, nunca mais a encontrei.

    Mathilde est obcecada pela escuta, continua Andr. No quero dizer que ela tenha ficado cega, mas percebo que ela negligencia os dados mais banais da vida comum e se refugia em meio aos hbitos de um primata. Apresente a ela qualquer objeto desconhecido e voc ficar chocado com os movimentos e gestos vulgares que ela far, raspando, arranhando, cha-coalhando, tentando retirar qualquer som desses por meio de suas mos! Tenho a impresso que ela retrocedeu a um tempo mtico, quando alguns homens, em meio ao mundo harmonioso, tentavam conduzir-se pela vida apenas pela mais nobre das sensaes, quando acreditavam tudo conhecer e compreender apenas pela memria das narrativas e por seus ouvidos......

    [Recebido em maio 2011; Aceito em julho 2012]

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    Lia Toms

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