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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA ROSEMARY COELHO DE OLIVEIRA O MOVIMENTAR-SE NO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO DA CRIANÇA: DIÁLOGOS COM JEAN-JACQUES ROUSSEAU VITÓRIA 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA

ROSEMARY COELHO DE OLIVEIRA

O MOVIMENTAR-SE NO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO DA CRIANÇA: DIÁLOGOS COM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

VITÓRIA 2011

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ROSEMARY COELHO DE OLIVEIRA

O MOVIMENTAR-SE NO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO DA CRIANÇA: DIÁLOGOS COM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação Física.

Orientadora: Drª. Sandra Soares Della Fonte

VITÓRIA 2011

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FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Oliveira, Rosemary Coelho de, 1980- O48m O movimentar-se no processo de humanização da criança:

diálogos com Jean-Jacques Rousseau / Rosemary Coelho de Oliveira. – 2011.

197 f. Orientadora: Sandra Soares Della Fonte. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Universidade

Federal do Espírito Santo, Centro de Educação Física e Desportos.

1. Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778. 2. Marx, Karl, 1818-

1883. 3. Movimento. 4. Crianças. 5. Ontologia. I. Della Fonte, Sandra Soares. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação Física e Desportos. III. Título.

CDU: 796

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ROSEMARY COELHO DE OLIVEIRA

O MOVIMENTAR-SE NO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO DA CRIANÇA: DIÁLOGOS COM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação Física.

Aprovada em 12 de dezembro de 2011.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________ Prof. Dra. Sandra Soares Della Fonte Universidade Federal do Espírito Santo Orientador ____________________________________________ Prof. Dra. Ana Carolina Galvão Marsiglia Universidade Federal do Espírito Santo

____________________________________________ Prof. Dr. Valter Bracht Universidade Federal do Espírito Santo

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Aos meus pequenos alunos do CMEI Jacyntha

Ferreira de Souza Simões, sujeitos que me

inspiram e convidam a pensar diariamente no

meu papel social como professora.

AGRADECIMENTOS

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À Sandra Soares Della Fonte, a melhor parceria que eu poderia desejar na escrita

dessa dissertação. Tê-la como orientadora desse texto foi um privilégio, pois seu

entusiasmo criador é contagiante e inspirador, além de ter sido fundamental para

produzir em mim todo vigor teórico que me atingiu durante este estudo. E ainda, muito

mais do que a orientação para esse texto, muito tem me ensinado sobre solidariedade,

compromisso, arte e docência.

Aos professores Valter Bracht e Ivan Gomes, pelas contribuições durante o exame de

qualificação e pelos profícuos diálogos ao longo de minha formação, realizados na

universidade ou nos prazerosos momentos de confraternização em tantos outros

espaços.

A professora Ana Carolina Galvão Marsiglia, pelo aceite em participar da banca de

defesa desta dissertação.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação do Centro de Educação Física, que

colaboraram neste meu momento de retomada de estudo e contribuíram para mais este

momento do meu processo de formação.

Aos colegas do curso de mestrado Adalberto, Alda, Doiara, Felipe, Grece, Guilherme,

Juliana, Keni, Luana, Maria Celeste e Mônica turma talentosa, com os quais tive a

felicidade de desfrutar da presença e generosidade nesse tempo do mestrado.

A minha família, Mamãe, Papai, Renata e Binho, pelo conforto de sempre, pelo amor

persistente e permanentemente construído, pelos sonhos compartilhados e por tanta

vida que há por vir. E todos os outros: avó, tias, tios, primos e primas que aguardaram o

término desta fase para me verem com mais frequência.

Aos amigos solícitos, como escrevê-los todos sem cometer a infâmia de esquecer

algum? À todos aqueles que amo, que divido anos incríveis da minha vida, que

construo relações que me fortalecem e me ajudam a crer que “vive melhor quem tem

amigos para confiar”.

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Aos colegas professores do CMEI Jacyntha Ferreira de Souza Simões e da EMEF

Neusa Nunes Gonçalves, com os quais divido as delícias e agruras do cotidiano

docente.

À Prefeitura Municipal de Vitória, pelo indispensável auxílio no formato de licença

remunerada durante dois anos, o que me permitiu gozar de tempo para realização

deste estudo.

8

No estado em que agora as coisas estão, um homem

abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os

outros seria o mais desfigurado de todos. Os preconceitos,

a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as

instituições sociais em que estamos submersos abafariam

nele a natureza, e nada poriam em seu lugar. Seria como

um arbusto que o acaso faz nascer no meio de um

caminho, e que os passantes logo fazem morrer, atingindo-

o em todas as partes e dobrando-o em todas as direções

(ROUSSEAU, Emílio ou da Educação).

Eu sei que é preciso ocupar as crianças em algo, e que a

ociosidade é o maior perigo a recear. Mas, que devem elas

aprender? Eis certamente um belo problema! Que

aprendam aquilo que deverão fazer quando homens, e não

o que devem esquecer

(ROUSSEAU, Discurso sobre as ciências e as artes).

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RESUMO

Essa pesquisa tem como foco a temática da educação de crianças pequenas e, dentro deste espectro, investiga, na obra Emílio ou da educação de Jean-Jacques Rousseau, o lugar que o movimentar-se ocupa no processo de inserção da criança no mundo humano. Para tanto, recorre como referencial teórico às reflexões de Karl Marx acerca da constituição do ser social. Movimentar-se é inicialmente visto por Rousseau como uma necessidade natural. O filósofo genebrino reconhece o movimento como o primeiro modo da criança conhecer e se reconhecer no mundo. Para Rousseau, a importância do mover-se com liberdade se expressa no fato dele se relacionar intrinsecamente com existência humana. Para ele, além de confundir-se com a própria existência, com o decorrer do desenvolvimento da criança, o movimento ganha utilidade por meio dos trabalhos manuais e dos exercícios físicos que auxiliam a fortalecer o temperamento e a saúde. Rousseau assevera que a criança deve vivenciar aquelas práticas corporais que são culturalmente realizadas pelos adultos, mesmo que algumas adaptações sejam necessárias. No centro do processo educativo, está, portanto, a criança. A posição de Rousseau sobre o lugar que o mover-se ocupa no processo de constituição social do ser humano se sustenta em um arcabouço muito complexo no qual “convivem” inovações e aspectos problemáticos. A determinação de uma essência natural para o ser humano é afirmada ao mesmo tempo em que a desigualdade é vista como um produto da ação humana. Em Rousseau, a nossa condição natural remete para os traços de igualdade e bondade que a natureza nos concede. Contudo, a construção do mundo social pode respeitar essa vocação natural ou pode contrariá-la. Portanto, esses atributos naturais estão sujeitos a mudanças. Há, em Rousseau, um dinamismo histórico que passa a conviver com essa ontologia natural essencialista. O essencialismo natural proposto por Rousseau oferece subsídios à compreensão que o desenvolvimento humano ocorre por etapas que também estão naturalmente postas e possuem validade universal. No bojo desse arcabouço, está a postulação de que o desenvolvimento humano é uma progressão natural de etapas ordenadas, fixas e universais. O social aparece como aquele que pode propiciar um bom desenvolvimento à medida que respeita a rota natural ou pode se colocar como empecilho para a atualização da essência natural do ser humano. Rousseau compreende que a atividade prática da criança, o seu conhecer sensível, é a base que constitui a razão humana. Esta compreensão coloca em xeque certos aspectos da tradição filosófica de desvalorização do corpo, do trabalho manual e das práticas corporais em geral. No entanto, ao enfatizar a atividade sensível nas fases iniciais, por vezes, Rousseau expurga o trabalho intelectual do desenvolvimento infantil. Esse tema é delicado, tendo em vista que, no mesmo momento em que caracteriza a infância como sono da razão e ainda sustenta a dicotomia e a hierarquia entre alma e corpo, ele menciona a existência, na infância, de uma razão complexa, uma razão sensitiva. Quando assim o faz, Rousseau abre a possibilidade de captar o entrelaçamento entre sensibilidade e razão no tornar-se humano; no caso das crianças, as próprias experiências sensíveis já implicam o desenvolvimento da consciência, ainda que de forma inicial, sob a forma de contato direto com o mundo. Por fim, a distinção entre educação da natureza, educação dos homens e educação dos objetos descamba em um “fetichismo objetal” que acaba por contrariar uma defesa constante de Rousseau ao longo de seu livro: a importância da mediação do adulto no processo educativo. Como um clássico da teoria educacional, Rousseau inspira novas indagações e precisa ser compreendido em uma complexidade não isenta de incongruências e inovações. Palavras-chaves: Movimento humano. Crianças. Ontologia. Jean-Jacques Rousseau. Karl Marx.

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ABSTRACT

This research focuses on the theme of education of children and within this spectrum, investigates, in work or education of Emile Jean-Jacques Rousseau, the place that occupies the move in the process of inclusion of children in the human world. The article draws as theoretical reflections on Karl Marx about the constitution of the social. Jogging is initially seen by Rousseau as a natural necessity. The Genevan philosopher recognizes the movement as the first mode of the child to know and be recognized worldwide. For Rousseau, the importance of moving with freedom is expressed in the fact that it is intrinsically relate to human existence. For him, and confused with the existence, in the course of child development, the movement wins usefulness through crafts and exercises that help strengthen the temperament and health. Rousseau asserts that the child should experience those bodily practices that are culturally performed by adults, even if some adaptations are necessary. In the center of the educational process, is therefore the child. The position of Rousseau about the place that occupies the move in the process of social constitution of the human being is based on a very complex framework in which "live" innovations and problematic aspects. The determination of a natural essence for human beings is affirmed at the same time that inequality is seen as a product of human action. In Rousseau, our natural condition refers to the traits of kindness and equality that nature gives us. However, the construction of the social world can respect this natural vocation or may antagonize her. Therefore, these natural attributes are subject to change. There is, in Rousseau, a historical dynamism that comes to live with that essentialist ontology natural. The natural essentialism proposed by Rousseau offers subsidies understanding that human development occurs in stages that are also naturally put and have universal validity. At the core of this framework is the postulation that human development is a natural progression of steps ordered, fixed and universal. The social appears as one that can provide a good development as regards the natural route or can stand as an impediment to update the natural essence of the human being. Rousseau understands the practical activity of the child, know your sensitive is the base which is human reason. This understanding calls into question certain aspects of the philosophical tradition of devaluation of the body, manual labor and bodily practices in general. However, by emphasizing the sensitive activity in the early stages, sometimes Rousseau purges the intellectual work of child development. This subject is a delicate one, considering that, at the very moment that characterizes childhood as sleep of reason and still maintains the dichotomy and hierarchy between soul and body, he mentions the existence in childhood, a complex reason, a reason sensitive. When it does so, Rousseau opens the possibility of capturing the intertwining of reason and sensibility in becoming human, in the case of children, their experiences already sensitive imply the development of consciousness, albeit initial form of contact right with the world. Finally, the distinction between the nature of education, education and education of men the objects descends into an "object fetishism" which turns out to counter a defense of Rousseau constant throughout his book: the importance of mediation in the adult educational process. As a classic of educational theory, Rousseau and inspires new questions need to be understood in a complexity not without inconsistencies and innovations. Keywords: Human Movement. Children. Ontology. Jean-Jacques Rousseau. Karl Marx.

11

12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 12

PERSPECTIVAS DE MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS....

16

A TEORIA DA PSICOMOTRICIDADE.....................................................

18

A ADESÃO DA EDUCAÇÃO FÍSICA À PSICOMOTRICIDADE..............

20

A RELAÇÃO ENTRE A TEORIA PIAGETIANA DE DESENVOLVIMENTO E A PROPOSTA DA EDUCAÇÃO PSICOMOTORA.....................................................................................

21

1º CAPÍTULO – ONTOLOGIA EM MARX E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA COMPREENSÃO DO MOVIMENTAR-SE HUMANO ................

29

INTRODUÇÃO....................................................................................

29

CONTORNOS GERAIS DAS DISCUSSÕES ONTOLÓGICAS ANTES

DE MARX.................................................................................................

31

TRABALHO E CULTURA EM MARX.......................................................

45

O MOVIMENTAR-SE HUMANO NA PERSPECTIVA DO SER SOCIAL...

52

2º CAPÍTULO – ROUSSEAU: ASPECTOS BIOGRÁFICOS, HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS......................................................................

55

ROUSSEAU: ASPECTOS BIOGRÁFICOS E DE SUA OBRA.................

55

A FILOSOFIA DE ROUSSEAU E O ILUMINISMO EUROPEU................

78

AS LUZES E SEUS PRESSUPOSTOS...................................................

83

13

A PARTICULARIDADE DO ILUMINISMO DE ROUSSEAU....................

87

3º CAPÍTULO – EMÍLIO OU DA EDUCAÇÃO: OS CONTORNOS DA OBRA. 93

O CONTEXTO DA PUBLICAÇÃO DO EMÍLIO.........................................

93

QUEM É EMÍLIO E QUEM É O SEU PRECEPTOR................................

100

A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO DE ROUSSEAU................................

112

A ESTRUTURA DA OBRA E A SEQUÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO

117

O LIVRO I................................................................................................

117

O LIVRO II...............................................................................................

123

O LIVRO III...............................................................................................

127

O LIVRO IV..............................................................................................

130

O LIVRO V...............................................................................................

139

4º CAPÍTULO - UM DIÁLOGO CRÍTICO COM ROUSSEAU ............................

144

O MOVIMENTAR-SE NA IDADE DA NECESSIDADE............................

145

OS CUIDADOS CORPORAIS E A LIBERDADE DO MOVER-SE..........

146

O MOVIMENTAR-SE NA IDADE DA NATUREZA..................................

154

A ONTOLOGIA ROUSSEAUNIANA EM DEBATE..................................

161

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 181

REFERÊNCIAS................................................................................................... 190

14

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a temática do movimento na infância vem ganhando evidência nas

minhas preocupações como professora. Após aprovação em concurso público e

inserção num Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI), refletir sobre a importância

do meu objeto de intervenção – o movimentar-se humano – para uma vivência plena da

infância dos meus alunos tem me sensibilizado, impulsionando-me à presente

pesquisa. Para tanto, realizo um breve resgate da minha trajetória docente com o intuito

de revelar o itinerário que me conduziu a tal preocupação.

Minha história como professora da educação infantil se inicia em dezembro de 2005,

quando, após o término da formação inicial, prestei concurso público para o magistério

da Prefeitura de Vitória, para o cargo de dinamizadora. Naquele momento, um cargo

recém-criado pela Secretaria de Educação do município. Informada apenas por meio do

edital do concurso de que esse cargo se destinava a professores de Educação Física e

Artes Visuais que atuariam com crianças pequenas nos Centros Municipais de

Educação Infantil (CMEIs), decidi fazer o concurso, por ter uma empatia por crianças de

faixa etária atendida por esse nível de ensino.

Essa empatia se construiu durante a minha formação inicial, quando tive oportunidade

de vivenciar alguns momentos de observação e intervenção pedagógica com crianças

na faixa etária proposta pelo concurso. Para além do currículo prescrito da minha

graduação, criei oportunidades de viver experiências com crianças na educação infantil,

por meio de estágios ou pela realização de trabalhos. Ao escolher o sujeito-aluno

observado, minha primeira opção era pelas crianças pequenas.

Outra experiência fundamental em minha formação inicial foi a minha atuação como

bolsista de iniciação científica no Laboratório de Estudos em Educação Física do

Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo

(LESEF/CEFD/UFES). Lá, tive a oportunidade de desenvolver minha inquietude como

estudante pesquisadora. Foram dois anos de iniciação científica, como bolsista do

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional

de Pesquisa (CNPq). A prática na organização de estudos, na sistematização de

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leituras, o contato com diferentes estudos realizados pelo laboratório, e o incentivo e

viabilização da participação em eventos acadêmicos foram uma experiência privilegiada

de formação e fomento para o anseio de continuidade dos estudos após a formação

inicial.

Por conta dessas experiências, tive a oportunidade de conhecer, ainda na graduação,

os CMEIs de Vitória, espaços reconhecidos nacionalmente como referência de

educação infantil pública e de qualidade. Tão logo me encantei com as características

daqueles espaços, por crer que ali se materializavam aspectos favoráveis para a

efetivação de um projeto de formação de crianças pequenas.

De certo modo, antes mesmo de terminar a formação inicial, ansiava por ter algum

contato com aquele espaço, por meio da pesquisa ou do ensino. Adicionava-se a isso,

o meu desejo de ter a chance de construir e viver minhas primeiras experiências

docentes num espaço de maior incentivo e valorização da autonomia do professor – a

escola pública.

A minha aprovação no concurso aconteceu em fevereiro de 2006 e, em abril, eu já

estava atuando como professora num Centro Municipal de Educação Infantil. Com o

resultado do concurso, estava diante de uma nova realidade: ser professora, estar na

escola e pensar a educação infantil, novidades suficientes para refazer a pessoa que eu

era. Desde então, tenho vivenciado, contribuído e refletido sobre as características do

atendimento de crianças de zero a seis anos nos CMEIs de Vitória.

Desde então, a experimentação, a observação da experiência de outros profissionais e

a busca na literatura da Educação Física e da educação sobre a natureza do trabalho

de movimento a ser privilegiado na infância deram a tônica do meu fazer docente em

construção.

A minha entrada como estudante no curso de Mestrado em Educação Física do

CEFD/UFES me fez ampliar a perspectiva de interesse. Para além da literatura atual

sobre o tema, passei a me preocupar como clássicos da teoria educacional tratam

movimentar-se para crianças menores de seis anos.

Para Saviani (1991), o clássico diz respeito àquilo que se firmou como fundamental,

como essencial, aquilo que resistiu ao tempo. Calvino (1993) explica que um livro

16

clássico, por exemplo, desloca toda a atualidade para um pano de fundo, mas, ao

mesmo tempo em que faz isso, não pode prescindir desse pano de fundo. Isso ocorre,

porque, ao se impor como inesquecível, ele nunca termina de dizer o que tinha para

dizer. Nesse sentido, o clássico inspira um diálogo constante entre tempos: o tempo do

próprio clássico e o tempo de sua leitura. Coloca-se como uma obra aberta a várias

indagações que, a partir de contextos determinados, lhe endereçamos. Por isso,

observa Calvino, ele repele para longe toda e qualquer crítica, como também ele

provoca, de modo incessante, discursos críticos sobre si.

Recorrer a uma obra clássica da educação é, a meu ver, uma opção ideológica que

vem a contrapelo do imediatismo vigente que tende a hipervalorizar o novo e a

depreciar o antigo, em uma aligeirada compreensão de que o antigo é sinônimo de

obsoleto ou ultrapassado. Assim, tendo em vista o tema do movimentar-se de crianças

pequenas, decidi construir uma pesquisa que dialogasse com uma obra clássica

partindo do entendimento de que o clássico possui uma riqueza própria e uma

estranheza que as impede de serem devoradas pelo tempo. Persiste não apenas e,

sobretudo em virtude da sua natureza material, mas antes pelo crescente significado

hermenêutico que o tempo nela imprime e revela.

A escolha de uma obra clássica se orientou pela própria natureza de nossa temática.

Optamos, assim, por realizar uma pesquisa teórica centrada no livro Emílio ou da

educação, de Jean-Jacques Rousseau: “[...] romance pedagógico e uma das maiores

obras-primas da literatura pedagógica de todos os tempos” (REALE; ANTISERI, 2005,

p. 287).

A opção por esse livro de Rousseau ocorre pelo fato de ser este filósofo um dos

precursores do pensamento educacional moderno que, ao pensar uma proposta de

formação ampla de seu aluno Emílio, inspirou gerações posteriores a elaborarem

projetos educacionais como ações públicas e políticas.

Outra qualidade que se ressalta na obra Emílio ou da educação é que nela a infância é

compreendida como uma fase específica do ser humano, ganhando, assim, uma teoria,

uma sistematização que enfoca seu estatuto como ser. A partir de então, a teoria

educacional moderna ganhou um corpo de conhecimentos sobre a criança e sobre a

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prática de educá-la segundo o princípio da natureza. Desenha-se com mais expressão

a especificidade da infância, isto é, a visão da infância como momento singular, em que

a criança é um ser próprio em sua condição (OLIVEIRA, 1989).

A possibilidade de dialogar criticamente com este livro de Rousseau é uma

oportunidade, tendo em vista que se trata de uma obra que não se esgotou com o

tempo; pelo contrário, como todo texto clássico, as problematizações desenvolvidas

nele são prenhes de futuro, o que ajuda a problematizar o nosso próprio tempo. Como

um clássico que é, “[...] a sua temporalidade não é a do interesse imediato, mas a

paciência longa que emana da originalidade e combate com o efêmero” (MORÃO,

1998, p. 9).

Desse modo, esta pesquisa tem como foco a educação de crianças pequenas e dialoga

com as proposições de Jean-Jacques Rousseau presentes em seu livro Emílio ou da

educação, que tanto influenciaram a pedagogia moderna e a educação infantil. Nesse

sentido, centramos essa investigação na seguinte questão: na teorização educacional

rousseauniana, que lugar o movimentar-se humano ocupa no processo de inserção da

criança no mundo humano?

Trabalhamos com a hipótese de que, em Rousseau, o movimentar-se humano se situa

no contexto da educação estética, com ênfase na experimentação e na afetividade, nos

primeiros momentos do processo de desenvolvimento da criança. De modo mais

preciso, o movimentar-se é um dos centros da educação estética da primeira infância,

base imprescindível para a educação moral e racional. Essa perspectiva ainda é

desafiadora na compreensão do que hoje chamamos Educação Infantil, apesar de ter

como base uma perspectiva natural essencialista de ser humano, isto é, apesar de

vincular-se à definição de uma essência humana pré-existente: em Rousseau, os seres

humanos são, por natureza, bons e iguais.

Embora vários estudos sobre Rousseau e suas contribuições para a educação e para a

educação infantil tenham sido desenvolvidos (cf. TOMAZELLI, 2007; GARCIA, 2011),

esta pesquisa oferece um tratamento mais detalhado acerca do mover-se no processo

de humanização da criança. Ainda que a questão do movimento apareça em alguns

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estudos sobre Rousseau (cf. PAIVA, 2007a), seu tratamento é periférico e se dá em

função de outros temas.

Mas o que se pretende ao delimitar uma investigação como essa? O objetivo geral que

norteia esta pesquisa é contribuir para o fortalecimento da compreensão de

movimentar-se a partir do universo da cultura. Isso se legitima a partir das

considerações que registramos a seguir.

PERSPECTIVAS DE MOVIMENTO NA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS

A partir da minha experiência e observação, tenho percebido que duas perspectivas

teóricas que adquiriram protagonismo no debate sobre o tema do movimentar-se infantil

e que apresentam grande inserção na perspectiva de movimento trabalhada com

crianças pequenas nas instituições educativas. São a concepção interacionista de

Piaget acerca do desenvolvimento e a teoria da psicomotricidade.

De acordo com Davis e Oliveira (1990), a concepção interacionista se ramifica em duas

correntes: a elaborada pelo biólogo suíço Jean Piaget e seus seguidores e a defendida

por teóricos soviéticos, em especial, pelo psicólogo soviético Lev Seminiovitch Vigostki.

No entanto, os estudos desenvolvidos por Duarte (1993, 1996, 2006) demonstram que

as produções acadêmicas brasileiras, a partir da forte influência de ideias defendidas

por intérpretes norte-americanos e europeus, apontam uma semelhança ou

complementariedade entre a obra de Piaget e Vigostki. Porém o autor afirma que a

aproximação entre as ideias vigotskianas e interacionistas só pode ser efetuada se

houver um grande esforço de descaracterizar a obra do autor soviético, desvinculando-

o, assim, de sua aproximação com a teoria marxista e dos pressupostos socialistas de

sua obra.

Nesse sentido, para a conceituação da concepção interacionista, recorremos às

proposições de Piaget. Esse autor, com a intenção de desvendar como surge e evolui a

inteligência na criança, elaborou uma concepção de desenvolvimento como um

processo contínuo de trocas entre o organismo vivo e o meio ambiente. Desse modo,

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essa concepção é chamada interacionista por apoiar-se na ideia da interação entre o

organismo e o meio.

A concepção interacionista de desenvolvimento vê a aquisição de conhecimento como

um processo construído pelo indivíduo durante toda a sua vida, portanto a criança não

está pronta ao nascer e nem adquirirá o conhecimento passivamente graças às

pressões do meio. O processo de desenvolvimento, na perspectiva piagetiana, depende

de fatores internos ligados à maturação, da experiência adquirida pela criança em seu

contato com o ambiente e, principalmente, de um processo de autorregulação que ele

denomina equilibração (DAVIS; OLIVEIRA, 1990).

Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo do indivíduo ocorre por meio de constantes

desequilíbrios e equilibrações. O aparecimento de uma nova possibilidade orgânica no

indivíduo (fome, por exemplo) ou mudança de alguma característica do meio ambiente

(manipular um brinquedo antes não manipulado, por exemplo), por mínima que seja,

provoca a ruptura do estado de repouso – da harmonia entre o organismo e o meio –

causando um desequilíbrio. Dois mecanismos são acionados para se alcançar um novo

estado de equilíbrio: a assimilação e acomodação.

No mecanismo de assimilação, o organismo desenvolve, sem alterar suas estruturas,

ações destinadas a atribuir significações aos elementos do ambiente com os quais

interage a partir da sua experiência anterior. O mecanismo de acomodação ocorre

quando o organismo tenta restabelecer um equilíbrio superior com o meio ambiente, no

entanto, nesse mecanismo o organismo é impelido a se modificar, a se transformar para

se ajustar às demandas impostas pelo ambiente.

Percebe-se, desse modo, que o desenvolvimento cognitivo humano é compreendido

como um processo de equilibrações sucessivas. Entretanto, esse processo, embora

contínuo, é caracterizado por diversas etapas. Cada etapa define um momento de

desenvolvimento ao longo do qual a criança constrói certas estruturas cognitivas. Essas

etapas estão dividas em quatro: a etapa sensório-motora, a pré-operatória, a

operatório-concreta e a operatório-formal.

20

Para compreender o lugar do movimentar-se no desenvolvimento da criança em Piaget,

recorri à sua caracterização da primeira etapa do desenvolvimento cognitivo. Esse autor

explica que a etapa sensório-motora é aquela que se inicia a partir do nascimento e vai

até, aproximadamente, os dois anos de idade, com o aparecimento da linguagem oral.

Nessa fase, a criança baseia-se, exclusivamente, em percepções sensoriais e em

esquemas motores para resolver problemas, que são essencialmente práticos, como:

bater numa caixa, pegar um objeto, jogar uma bola etc. Para o autor, embora a criança

já tenha uma conduta inteligente, considera-se que ela ainda não possui pensamento.

Para conhecer o mundo, portanto, a criança lança mão de esquemas sensório-motores:

pega, balança, joga, bate, morde objetos e atua sobre eles de uma forma “pré-lógica”,

colocando um sobre o outro, um dentro do outro.

Ao descrever a primeira etapa do desenvolvimento humano, Piaget propõe que a

primeira manifestação de inteligência é prática, ou seja, é o movimento a primeira

expressão da construção do conhecimento da criança. De outro modo, podemos

afirmar que o interacionismo piagetiano afirma que o movimento é o modo que a

criança de até dois anos se utiliza para conhecer o mundo e que será base de todo

construção dos conhecimentos posteriores.

A TEORIA DA PSICOMOTRICIDADE

Outra perspectiva teórica presente no trabalho de movimento realizado com crianças

pequenas é a psicomotricidade, que tem, dentre um dos seus maiores expoentes Jean

Le Boulch. Segundo esse autor, a psicomotricidade é uma ciência que estuda a

conduta motora como expressão do amadurecimento e desenvolvimento da totalidade

psicofísica do homem. Vitor Fonseca (2004) define a psicomotricidade como a ciência

da mediatização corporal e expressiva, que busca estudar e compensar condutas

inadequadas e inadaptadas em situações geralmente relacionadas com problemas de

desenvolvimento e maturação psicotomora, de aprendizagem, comportamento ou de

âmbito psicoafetivo. Esse autor afirma que a intervenção da psicomotricidade tem

caráter preventivo, educativo, reeducativo e psicoterapêutico, e essas intervenções

21

agem em prol de componentes essenciais e globais da adaptabilidade, da

aprendizagem e de seu ato mental concomitante.

A proposta de intervenção multifacetada da psicomotricidade revela suas diferentes

influências e bases argumentativas. Em relação às matrizes teóricas da

psicomotricidade, Fonseca (2004) afirma que suas matrizes vão desde a ginástica

médica (TISSÉ, 1894), passando pela perspectiva hipnótica (CHARCOT, 1887), pela

teoria somatopsíquica (FREUD, 1930), bem como pelas inferências filosóficas do tai chi

chuan chinês, da ioga hindu e dos filósofos somáticos e fenomenológicos (Kant,

Kierkegard, Marx, Cassirer, Merleau-Ponty, dentre outros). No entanto, diante de tantas

e diferentes referências,1 Fonseca (2004, p. 30) pondera:

Todavia, Wallon é sem dúvida o autor de referência primordial que deu ao termo ‘psicomotricidade’ a expressão teórica mais sólida e coerente, mantendo-se até hoje atualizadas muitas de suas abordagens conteudísticas e conceituais [...]. Como modelos teóricos de matriz, teremos igualmente de reconhecer as contribuições de europeus como Piaget, com o seu enfoque biológico e sensório-motor estruturado e construtivista, e, mais tarde Ajuriaguerra, com seu enfoque neurofuncional e neuropsiquiátrico prodigioso.

A natureza da intervenção da psicomotricidade se materializa em sua prática que se

ramifica em alguns campos de atuação: a educação, reeducação e terapia psicomotora.

As distinções entre esses campos, em linhas gerais, é que a educação psicomotora

apresenta-se sob um aspecto pedagógico e sua prática se efetiva, sobretudo, nas

instituições educativas, em que, por meio do movimento, procura desenvolver o

indivíduo como um todo; a reeducação psicomotora atua como uma estratégia de

ajuda, a qual, por meio dos jogos e exercícios psicomotores, procura corrigir as

alterações existentes no desenvolvimento psicomotor; a terapia psicomotora refere-se à

resolução de casos-problema nos quais a dimensão afetiva e relacional parece

dominante na instalação de um transtorno motor.

1 Fonseca (2004, p. 31) não deixa de reconhecer que a teoria da psicomotricidade, “[...] embora diversa e

multifacetada, o que revela seu vigor, sugere também uma fragmentação e fragilidade em termos de coerência de

conhecimento e de explicação da realidade”.

22

A ADESÃO DA EDUCAÇÃO FÍSICA À PSICOMOTRICIDADE

No caso brasileiro, a partir da década de 1970, o discurso da educação psicomotora

atingiu toda a escola. O processo educativo, nessa perspectiva, centrou-se nos

chamados aspectos psicomotores. Em outras palavras, começou a fazer parte do

discurso dos professores, notadamente daqueles que atuavam nas primeiras séries do

ensino fundamental e da educação infantil, expressões como: coordenação motora

dinâmica geral, coordenação motora oculomanual, lateralidade etc.

Particularmente, no âmbito da Educação Física escolar, a educação psicomotora

ganhou grande adesão, uma situação exemplar que a caracteriza foi a vinda ao Brasil

do professor Dr. Jean Le Boulch, em dezembro de 1978, para ministrar um curso de

psicomotricidade, sob a coordenação da Secretaria de Educação Física e Desportos do

Ministério da Educação e dirigido especialmente para professores de Educação Física

das Universidades Brasileiras. É nesse período também que crescem as publicações

sobre o assunto, como a tradução, para o português, de autores como o próprio Jean

Le Boulch, J. Chazuad, P. Vayer, Lapierre e Aucouturier, entre outros (SOARES, 1996).

O movimento de adesão dos professores de Educação Física à educação psicomotora

vinha como resposta a um modelo de treinamento desportivo que imperava em boa

parte das aulas de Educação Física nas escolas. No entanto, nos idos da década de

1970, com a aproximação das teorias da Psicomotricidade, a Educação Física assume

um papel inédito nas escolas.

Passa-se a ter, assim, um vigoroso envolvimento da Educação Física com as tarefas da

escola, com o desenvolvimento da criança, com o ato de aprender, com os processos

cognitivos, afetivos e psicomotores. A Educação Física mergulha num outro universo

teórico, metodológico e linguístico. Naquele momento, os professores de Educação

Física passam a compreender que estão na escola para algo maior, para a formação

integral da criança (SOARES, 1996). A Educação Física não tem mais um conteúdo

seu, era, então, apenas um conjunto de meios para... Um meio para socialização, um

meio para aprender as outras disciplinas escolares, um meio para aquisição de outros

conhecimentos que não o próprio mover-se.

23

A influência da Psicomotricidade possibilitou aos professores de Educação Física

sentirem-se professores com responsabilidades escolares, pedagógicas, na intenção de

desatrelar sua atuação escolar dos preceitos da instituição esportiva, valorizando o

processo de aprendizagem e não mais a execução de um gesto técnico isolado. No

entanto, se, por um lado, isso foi extremamente benéfico, por outro lado, foi o início de

um abandono do que era o conhecimento específico da Educação Física, como se o

que ela ensinasse de específico fosse, em si, maléfico ao desenvolvimento dos alunos

e à sua inserção na sociedade (SOARES, 1996).

Essa herança recebida pela Educação Física, dada a sua massiva divulgação, ainda se

faz presente, como aponta Bracht (1999, p. 79):

[...] a educação psicomotora exerceu grande influência na Educação Física nos anos 70 e 80. Influência esta que está longe de ter-se esgotado, conforme podemos perceber pela reportagem da revista Nova Escola (Falzetta, 1999), intitulada “A educação física dá uma mãozinha”, na qual se demonstra como a Educação Física pode auxiliar no ensino da matemática.

No âmbito da Educação Física, uns dos autores que foi expoente na aproximação entre

a área e o discurso da psicomotricidade foi o professor da Unicamp, João Batista Freire.

Seu livro Educação de Corpo Inteiro, publicado em 1989, teve papel determinante na

divulgação das ideias construtivistas da Educação Física. Sua proposta, embora

fundamentada basicamente na Psicologia do Desenvolvimento de Jean Piaget, também

buscou influência nos estudos da Psicomotricidade, pelas pesquisas de Le Boulch.

A RELAÇÃO ENTRE A TEORIA PIAGETIANA DE DESENVOLVIMENTO E A

PROPOSTA DA EDUCAÇÃO PSICOMOTORA

Esta aproximação entre a teoria de piagetiana de desenvolvimento e a teoria da

educação psicomotora é possível graças à sua matriz comum, que é a Psicologia.

24

Porém, não é qualquer Psicologia. De fato, a perspectiva de psicologia que vigora é

aquela proposta por Piaget: a Psicologia Interacionista.

A fundamentação de desenvolvimento dada por Piaget busca referência num modelo

biológico para explicar o funcionamento cognitivo humano. Ao propor etapas universais

para o desenvolvimento cognitivo de crianças, determina biologicamente as estruturas

do conhecer humano.

Ou, ainda, como aponta Duarte (1998, p. 92): “[...] o interacionismo é um modelo

epistemológico que aborda o psiquismo humano de forma biológica, ou seja, não dá

conta das especificidades desse psiquismo como um fenômeno histórico-cultural”. Em

outras palavras, o autor afirma que a Psicologia histórico-cultural de Vigotski não é uma

variante do interacionismo-construtivista de Piaget, pelo contrário, o modelo biológico

proposto por Piaget não promove uma diferenciação entre a atividade consciente do

homem e o comportamento animal. Nesse sentido, assevera o autor:

Diferentemente do animal, cujo comportamento tem apenas duas fontes - 1) os programas hereditários de comportamento, subjacentes no genótipo e 2) os resultados da experiência individual - , a atividade consciente do homem possui ainda uma terceira fonte: a grande maioria dos conhecimentos e habilidades do homem se forma por meio da assimilação da experiência de toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmissível no processo de aprendizagem [...]. A grande maioria de conhecimentos, habilidades e procedimentos do comportamento de que dispõe o homem não são o resultado de sua experiência própria, mas adquiridos pela assimilação da experiência histórico-social de gerações (DUARTE, 1998, p. 97).

Em síntese, a diferença essencial entre a atividade humana, perante o comportamento

animal, localiza-se na capacidade de acumular e transmitir experiência, conhecimento.

A grande maioria dos conhecimentos humanos provém da transmissão da experiência

acumulada historicamente.

Por assim compreender a formação do indivíduo como parte do processo histórico de

objetivação do ser humano, a relação fundamental deixa de ser, como no caso dos

animais, entre o organismo singular e a espécie, e passa a ser a relação entre a

25

singularidade social do indivíduo e o gênero humano. A singularidade de cada ser

humano não é um dado biológico, mas resultado de um processo social, concreto,

histórico, o que torna inadequados, para análise do processo educativo do ser humano,

os modelos biológicos, como a relação espécie-espécime e a relação organismo-meio

(DUARTE, 1993).

Nessa direção, Bracht (1996) afirma que, nas abordagens de Educação Física

baseadas no conceito biológico de movimento e no conceito psicológico da abordagem

de desenvolvimento, o corpo e o movimentar-se humano são compreendidos de modo

desculturalizados, no sentido de que os movimentos, os jogos e brincadeiras utilizados

nessas abordagens não emanam do universo cultural. O autor afirma que, embora a

abordagem de João Batista Freire fale e valorize sobremaneira a cultura infantil,

privilegiando conteúdos, como jogos e brincadeiras, estas não emanam do universo

cultural. Os critérios a partir dos quais esses conteúdos são sistematizados e tratados

pedagogicamente advêm, exclusivamente, de análises do desenvolvimento infantil,

descontextualizadas social e historicamente.

Essa crítica de Bracht se soma a um grupo de intelectuais que têm trabalhado no

sentido de tratar o movimentar-se a partir do universo da cultura humana.

Independentemente da terminologia dada por diferentes autores para adjetivar o objeto

de ensino da Educação Física (cf. COLETIVO DE AUTORES, 1992; BETTI, 1996;

BRACHT, 1992, 1996; KUNZ, 1991, 1994).

Essa forma de compreensão do movimentar-se humano se desenvolveu fortemente no

campo da Educação Física na década de 1990 e tem inspirado muitas proposições

relativas à Educação Física na Educação Infantil. Mencionemos as proposições de

duas intelectuais que ilustram esse esforço. Já no final dos anos de 1990, Sayão (1999,

p. 233) insiste que

As crianças, mesmo as menores, são sujeitos detentores de uma cultura que é peculiar de sua fase. Esta cultura infantil expressa-se pelo brincar, pelo faz-de-conta, pelos jogos, pela imitação e por sua inconfundível capacidade de criar ritmos e movimentos. Isso confere a elas o estatuto de sujeitos histórico-culturais que, em relação com outras crianças e

26

com os adultos, criam e recriam suas linguagens de movimento e, consequentemente, a cultura.

Por sua vez, ao tomar a criança como ponto de partida, Ayoub (2001, p. 56-57) defende

que a linguagem corporal é uma das mais fundamentais a serem trabalhadas com

crianças:

Criança é quase sinônimo de movimento; movimentando-se ela se descobre, descobre o outro, descobre o mundo à sua volta e suas múltiplas linguagens. Criança é quase sinônimo de brincar; brincando ela se descobre, descobre o outro, descobre o mundo à sua volta e suas múltiplas linguagens.

Além disso, a autora reforça o caráter social e histórico das várias práticas corporais a

serem trabalhadas com crianças:

Brincar com a linguagem corporal significa criar situações nas quais a criança entre em contato com diferentes manifestações da cultura corporal (entendida como as diferentes práticas corporais elaboradas pelos seres humanos ao longo da história, cujos significados foram sendo tecidos nos diversos contextos sócio-culturais), sobretudo aquelas relacionadas aos jogos e brincadeiras, às ginásticas, às danças e às atividades circenses, sempre tendo em vista a dimensão lúdica como elemento essencial para a ação educativa na infância (AYOUB, 2001, p. 57).

Além de herdar a importante relação entre movimento e cultura desenvolvida pelo

campo acadêmico da Educação Física na década de 1990, várias reflexões sobre a

Educação Física na Educação Infantil também sofrem a influência da chamada

Sociologia da Infância. De acordo com Stemmer (2006) na década de 1990, surgem

novas formulações sobre a educação das crianças pequenas. Começa, então, a se

solidificar uma crítica à excessiva influência da Psicologia no campo da educação. A

crítica é feita ao que se chama de psicologização da educação; embora se reconheça a

importância da psicologia, apela-se à contribuição de outras áreas para subsidiar a

educação infantil. Entre essas áreas, estão a Antropologia e a Sociologia, campos que

27

atualmente ganham destaque na produção do conhecimento sobre a Educação Infantil.

Como exemplo, é possível apontar o aumento das pesquisas etnográficas sob

orientação antropológica nos programas de educação, que objetivam identificar as

culturas infantis:

Na sociologia, os artigos de Régine Sirota e Cléopâtre Montandon (publicados no Brasil em 2001) fazem um balanço da sociologia de língua francesa e inglesa, respectivamente, e mostram a “emergência de uma sociologia da infância”, tendo importante repercussão no campo da Pedagogia. A partir do final da década de 1990, e com mais força no início do século XXI, a sociologia da infância inscreve-se como um campo de interlocução particularmente profícuo para a educação infantil. Nesta mesma época anuncia-se a necessidade de construção de uma pedagogia para a educação infantil. Os estudos precursores dessa tendência foram as teses de Ana Lúcia Goulart Faria (1993) e Eloísa A. Candal Rocha (1999). Faria em sua tese investigou os parques infantis do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, durante os seus três primeiros anos de funcionamento (1935-1938), na gestão de seu idealizador Mario de Andrade. Rocha (1999) em seu estudo sobre a pesquisa em educação infantil analisou a produção científica apresentada nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), Associação Nacional de História (ANPUH), Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no período 1990-1996. Ambas indicam a necessidade de se construir uma pedagogia para a educação infantil (STEMMER, 2006, p. 55-56).

Como uma das precursoras deste movimento, Eloísa Rocha sustentou, em sua tese de

doutorado defendida no final da década de 90, a necessidade de desenvolver uma

autêntica Pedagogia da Educação Infantil, cujo objeto de estudo remete, segundo ela,

às próprias crianças e os seus processos de constituição em diferentes contextos. Ao

se referir ao campo da Psicologia, Rocha afirma: “Só mais recentemente é que um

conjunto de teorias, denominadas interacionistas, passam a ser divulgadas entre nós e

permitem uma abordagem dos processos de desenvolvimento humano a partir de

relações sócio-culturais” (ROCHA, 1997, p. 30).

Se considerarmos a Pedagogia da Infância uma das fontes da discussão

contemporânea que relaciona movimento, cultura e criança, não deixa de ser curioso

28

que ela vincule a discussão do desenvolvimento humano em termos sócio-culturais com

o interacionismo. Ora, estamos diante de uma perspectiva de compreensão social da

criança e de práticas corporais, mas que ainda permanece presa a um modelo

problemático de desenvolvimento humano (como já apontamos). Diante disso, o

presente estudo objetiva contribuir com a tradição de situar o movimentar-se como

elemento cultural, mas busca fugir dos problemas de uma fundamentação a partir do

interacionismo.

Como referencial teórico, optei pelas reflexões do filósofo Karl Marx acerca da

constituição do ser social. Essa escolha buscou atender a, pelo menos, três exigências.

A primeira diz respeito ao próprio objetivo geral. O marxismo tem se mostrado um

suporte relevante para investigações atuais que questionam o interacionismo (cf.

DUARTE, 1998, 2006). Por essa razão, pareceu-me profícuo, diante do objetivo geral

anunciado, adotar essa perspectiva. A segunda exigência vem do próprio clássico

escolhido para o diálogo crítico. Rousseau foi um filósofo e, ao discutir o

desenvolvimento da criança no livro Emílio ou da educação, utilizou-se de argumentos

de caráter especulativo-filosófico e não propriamente empírico-científicos (como

mostraremos no decorrer desta dissertação). Essa consideração me levou a não

recorrer, neste momento, à Psicologia Histórico-Cultural, apesar de considerar que a

sua contribuição seja profícua para a discussão proposta. Por fim, a definição do

referencial teórico se orientou pela indagação chave desta dissertação. Ao perguntar o

lugar do movimentar-se na inserção da criança no mundo humano, o foco da questão

está nas questões que permeiam o tornar-se humano: afinal, o que faz com que o ser

humano se humanize? O que confere humanidade a esse ser peculiar que somos? Por

isso, o privilégio da discussão ontológica em Karl Marx.

No campo acadêmico da Educação Física, Araújo et al. (2010) realizam um estudo do

movimentar-se humano por um viés ontológico. Suas reflexões seguem o rumo da

fenomenologia, em especial a de Merleau-Ponty. A centralidade conferida à percepção

e ao corpo na fenomenologia merleau-pontyana indica não apenas os méritos que essa

perspectiva filosófica possui para esse debate, mas também um vínculo mais orgânico

com o tema do corpo e do movimentar-se. Ao optar pela teorização marxiana,

reconheço que não vivenciarei uma situação tão favorável. Karl Marx não privilegiou, de

29

modo direto, reflexões sobre tais temas. Quando tangencia esses assuntos, o filósofo

alemão o faz de modo pontual e esparso. Mesmo assim, isso pode se mostrar

proveitoso e desafiante.

Diante do exposto, delimito como objetivos específicos deste estudo:

evidenciar os traços marcantes da constituição do ser social presente nas

formulações filosóficas de Karl Marx;

indicar alguns aspectos biográficos e históricos da produção filosófica de Jean-

Jacques Rousseau;

caracterizar aspectos gerais da filosofia rousseauniana;

destacar os aspectos relativos ao movimentar-se na proposta de educação de

Rousseau para crianças até seis anos;

avaliar as potencialidades e os limites desses aspectos referentes ao movimentar-se

desenvolvidos por Rousseau à luz das reflexões marxianas.

Para tanto, esta dissertação está organizada em quatro capítulos. O primeiro capítulo,

Ontologia em Marx e possíveis caminhos para compreensão do movimentar-se

humano, apresenta o referencial teórico que nos auxilia na compreensão e na análise

do lugar que Rousseau atribui ao movimentar-se no processo de inserção da criança no

mundo humano. Na primeira parte do capítulo, fazemos uma exposição sobre as

discussões ontológicas que precederam cronologicamente Marx. No tópico seguinte,

apresentamos contornos acerca da perspectiva ontológica que permeou o Iluminismo, a

filosofia de Hegel e a filosofia marxiana. Após a apresentação da ontologia em Marx,

elaboramos ligações entre a perspectiva marxiana de constituição do ser social e o

fenômeno do movimentar-se humano.

O segundo capítulo, intitulado Rousseau: aspectos biográficos, históricos e filosóficos,

apresenta e discute alguns elementos da filosofia de Jean-Jacques Rousseau, por meio

da exposição de sua biografia e algumas de suas obras. Longe de fazer uma

abordagem meramente internalista de suas obras, buscamos dar visibilidade a filosofia

de Rousseau no movimento iluminista, captando, em especial, as particularidades das

interpretações rousseaunianas aos ideais de seu tempo. Ao fazer isso, tivemos que

30

enfrentar a questão da atualidade de nossa pesquisa: estaríamos estudando um filósofo

ultrapassado em suas proposições? Nesse sentido, dialogamos com as críticas atuais

ao Iluminismo desenvolvidas por teóricos do movimento pós-moderno, já que grande

parte desse movimento surge em resposta à denominada crise da razão iluminista e

moderna.

No terceiro capítulo, Emílio ou da educação: os contornos da obra, oferecemos

aspectos gerais da proposta educacional de Rousseau no livro Emílio ou da educação.

Deste modo, situamos o contexto de publicação desta obra por meio do diálogo que

este livro estabeleceu com obras antecedentes do próprio Rousseau e de outros

autores. Discorremos ainda sobre os fundamentos que embasam a organização da

obra, assim como a situação fictícia criada pelo filósofo genebrino: quem é Emílio, quem

é o seu preceptor e seus pressupostos educacionais. Após isso, enfatizamos como o

autor trata o movimentar-se humano no período que ele determina como as duas

primeiras etapas da infância (idade da necessidade e idade da natureza).

Por fim, o quarto capítulo Um diálogo crítico com Rousseau teve o objetivo de lançar luz

sob nosso ponto de investigação qual seja: a questão do movimentar-se na criança

pequena. Deste modo, interessa-nos investigar como esta temática é abordada no livro

Emílio ou da educação e como as contribuições de Karl Marx nos permitem dialogar

criticamente com a posição rousseauniana.

31

CAPÍTULO 1

ONTOLOGIA EM MARX E POSSÍVEIS CAMINHOS PARA

COMPREENSÃO DO MOVIMENTAR-SE HUMANO

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, apresentamos o referencial teórico que nos auxilia na compreensão e

na análise do lugar que Rousseau atribui ao movimentar-se no processo de inserção da

criança no mundo humano. Como já mencionado na introdução, optamos por trabalhar

com a contribuição do filósofo alemão Karl Marx, em especial sua discussão sobre a

constituição do ser social. Nosso primeiro esforço é destacar os aspectos gerais que

explicam como Marx argumenta o processo de humanização do ser ou a sua

constituição como ser social. Em outros termos, queremos buscar na teoria marxiana o

que Costa e Vasconcelos (2011, p. 4) afirmam:

[...] Marx seria o fundador de uma nova “filosofia geral” que forneceria a explicação coerente do ser em todas as suas modalidades. Tal filosofia marxista aplicada ao ser social constituiria o materialismo histórico, o qual teria como objeto as leis de evolução mais gerais da sociedade.

Contudo, para fazer isso, optamos por recuperar, de modo panorâmico, os termos das

discussões ontológicas que precederam Marx para trazer a baila um elemento

enfatizado por Mészáros (1981): a radicalidade da discussão ontológica desenvolvida

pelo filósofo alemão do século XIX. Em seguida, sob essa perspectiva, abordaremos o

que significa tratar o movimentar-se humano a partir do âmbito da cultura. Nesse item,

nosso esforço é estabelecer uma relação entre o nosso referencial teórico e o objeto

desta pesquisa a fim de extrair dos argumentos marxianos elementos para pensar um

fenômeno que ele não privilegiou: o movimentar-se humano.

32

Antes, porém, de iniciarmos o itinerário anunciado, cabe uma observação inicial. Esta

dissertação coloca em diálogo dois pensadores clássicos: Rousseau, um filósofo do

século das Luzes, e Marx, filósofo do século XIX, período de consolidação da burguesia

como classe dominante. Lessa (1996[?]), aponta que explorar a relação entre

iluminismo e marxismo não é uma tarefa inédita. Vários autores têm ao longo do tempo

tecido pontos de continuidade e ruptura entre o Iluminismo e o marxismo. Portanto, o

debate que nos propomos a construir não é desprovido de sentido e, mesmo não sendo

original, continua, segundo Lessa, instigante e atual.

Ademais, se, por um lado, a anterioridade histórica não permitiu a Rousseau contato

com formulações marxianas, por outro, ressalta-se que Marx foi um leitor de Rousseau.

Sob certos aspectos, pode-se dizer que Rousseau foi precursor de Marx. Mészáros

(2006, p. 51) chega a afirmar que: “Há muito poucos filósofos antes de Marx que

possam ser comparados a Rousseau, em matéria de realismo social”. No próximo

capítulo, veremos a argumentação rousseauniana de que desigualdade não é um

fenômeno natural e sim histórico. Essa perspectiva é basilar em Marx. Além disso,

observa Mészáros (2006, p. 62), mesmo que sob tons moralizantes, Rousseau possui

importantes formulações de uma crítica à alienação capitalista de seu tempo: “[...] a

visão de Rousseau quanto aos múltiplos problemas da alienação e da desumanização

é mais aguda do que a de qualquer outro antes de Marx” (MÉSZÁROS, 2006, p. 57).

Sobre a aproximação teórica entre Rousseau e Marx, Della Volpe (1982) atribui ao

segundo uma “[...] profunda inspiração democrática” herdada do primeiro. De acordo

com o autor, Marx transcreve n’O Capital uma citação de Rousseau retirada do

Discurso sobre a economia política na qual se afirma: “Eu permitirei – diz o capitalista –

que vocês tenham a honra de servir-me, com a condição de me darem o pouco que vos

resta, pelo incômodo que assumo em mandar em vós” (DELLA VOLPE, 1982, p. 115).

Della Volpe denomina este recurso de “citação-homenagem” de Marx a Rousseau, de

acordo com ele:

Assim Marx, serve-se, na sua análise da expropriação da ‘multidão dos pequenos produtores’ por parte das ‘grandes fábricas’ (O Capital, I, 3, c.

33

30), do Rousseau crítico (moralista) da sujeição econômica num passo do Discours sur l’economie politique, passo esse, que [foi] reproduzido na citação marxista (DELLA VOLPE, 1982, p. 62)

Para Della Volpe (1982), é incontestável que o espírito democrático (igualitário)

rousseauniano reviva, fortalecido, no ideário marxiano e notadamente no socialismo

utópico:

Esforcemo-nos agora a captar, para além da superfície, a problemática específica do igualitarismo rousseauniano – que é, repetimos, igualitarismo antinivelador por excelência – e teremos algumas surpresas acerca do sentido da herança deixada por Rousseau ao socialismo científico, não utópico, e acerca do não-esgotamento histórico (na revolução francesa) da problemática democrática rousseauniana ou sua vitalidade dialético-histórica (mas não redutível a antíteses-sínteses genéricas como [...] de tipo intelectualístico-hegeliano) (DELLA VOLPE, 1982, p. 68).

CONTORNOS GERAIS DAS DISCUSSÕES ONTOLÓGICAS ANTES DE MARX

Para discutir a relação entre marxismo e Iluminismo, Lessa (1996 [?], p. 2-3) parte da

seguinte tese: apesar de algumas proximidades entre essas tendências, a ruptura

decisiva entre elas reside no fato de que “[...] há traços de continuidade entre a

concepção ontológica escolástica-medieval e a concepção de natureza humana no

Iluminismo”, concepção essa que teria em Marx o seu crítico mais radical. Para

desenvolver essa tese, Lessa apresente os termos da discussão ontológica de períodos

anteriores ao moderno.

Assim, ele lembra que, na Grécia antiga, ganha ênfase a diferenciação entre essência e

fenômeno, na qual a essência era o ser por excelência e o fenômeno um ser menor, de

segunda categoria, pois sua existência era dependente, ou consequente, da existência

do ser essencial. Interessava neste contexto, identificar a ordem que havia por detrás

da nebulosidade posta pelos fenômenos, era o modo mais pleno do conhecer:

Desvelar a ordem por trás da fluidez e da efemeridade dos fenômenos, revelar o que é em contraposição ao que é agora mas não será em seguida, é a tarefa da razão em contraposição aos sentidos; é a tarefa

34

da episteme em contraposição a doxa. Conquistar a essência oculta pelo caos dos fenômenos, esta a verdadeira tarefa dos sábios (LESSA, 1996 [?], p. 3).

Com a Idade Média, ocorreu um desenvolvimento das investigações nesta área, pois

ganhou mais centralidade a relação entre o ser e a essência. Naquele contexto, a

essência, identificada na época clássica como o ser por excelência, foi identificada na

época medieval como Deus. E a esfera fenomênica como aquela concebida por Deus,

e por isso com um quantum inferior de ser.

Com essa diferença, um novo aspecto aparece na relação essência e fenômeno, que é

a questão da continuidade. A existência temporal é uma característica do mundo

terreno, já que, para o mundo medieval,

[...] a existência divina está fora do tempo e, portanto, fora da continuidade. Decorre que o ser essencial não possui atributos, pois sempre e eternamente é ele próprio; que o ser essencial não possui limites ou definições, não possui heterogeneidade ou determinações, já que é eterno, infinito e imutável (LESSA, 1996 [?], p. 4).

Em contraposição, o mundo humano seria o exato oposto do divino. Como ser criado

por Deus, a essência destes seres terrenos seria decorrente e, por conseqüência,

secundária diante da essência divina. Assim, a vida humana é compreendida como

[...] uma essência que transpassaria na efemeridade do fenomênico, pelo qual os atributos de cada ente se alteram ao longo do tempo, constituindo o ciclo natural do nascimento, crescimento e morte. A continuidade, nesse contexto, possui uma dimensão claramente negativa: ela é signo de uma existência delgada, de segundo nível, de uma existência carente do verdadeiro e autêntico ser. O tempo, por sua vez, é concebido como medida dessa efemeridade e, portanto, como signo de um ser não essencial (LESSA, 1996 [?], p. 5)

Com isso, percebemos que dois pólos se configuram: essência e o ser, por um lado; e

fenômeno, existência de outro lado como existência efêmera, secundária, temporária.

Neste cenário se constitui o debate sobre a concepção ontológica medieval. Lessa

(1996 [?]) aponta que, embora o período medieval guarde semelhanças com o mundo

35

grego, como por exemplo, na continuidade da contradição entre o caráter processual e

de totalidade do real, este período apresenta características inovadoras, graças as suas

novas condições históricas vigentes.

Para ilustrar esta perspectiva inovadora, Lessa (1996 [?]) apresenta a concepção de

dois teóricos deste tempo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. As relações

sociais fundadas pelo modo de produção feudal, na Idade Média, possibilitaram um

desenvolvimento inédito das forças produtivas e a decorrente possibilidade de

aprofundamento do conhecer sobre a natureza.

Em Santo Agostinho, a compreensão do mundo humano como terreno do pecado foi

atenuada para possibilitar a assimilação pela moral cristã do crescente interesse pela

natureza entre a população em geral, como decorrência e possibilidade do

desenvolvimento das forças produtivas. São Tomás de Aquino, sem romper com a

identificação entre o mundo humano e o pecado, atenua afirmando que a natureza é

também criação divina. Assim como pelo conhecimento de um produto pode-se

conhecer o artesão que o fez, também pelo conhecimento da natureza poder-se-ia

chegar a Deus. Tal concepção de mundo mostra que a história da humanidade não é

de autoria dos próprios seres humanos: “Na melhor das hipóteses, aquela de São

Tomás, sequer o ser dos homens é humano. Na pior, a de Santo Agostinho, a história

humana é signo do pecado e da queda em desgraça por obra do pecado original”

(LESSA, (1996 [?]), p.7).

De acordo com Lessa (1996 [?], p. 7), a Idade Moderna é conhecida pelo fato de

ocorrer, neste período, o abandono da preocupação ontológica pelos filósofos, tendo

em vista que:

De um lado, teríamos as verdades de caráter ontológico, que se preocupariam com o porquê das coisas. Essa seria a esfera exclusiva da religião e da Igreja. De outro lado, teríamos a angulação tipicamente moderna, que buscaria explicar como as coisas funcionam, não se preocupando em explicar os fundamentos últimos do porquê as coisas serem como são. A postura tipicamente ontológico-medieval seria substituída por uma outra postura, científica, empírica, moderna; muito mais preocupada em descobrir como utilizar as forças da natureza na produção de mercadorias do que em descobrir os velados desígnios de Deus nos entes terrenos.

36

Se a cotidianidade medieval era marcada pela permanência e pela reclusão, esta

tendência é substituída, na modernidade, pela mobilidade e pelo rápido

desenvolvimento do mundo mercantil burguês. Este cenário de ruptura entre o medieval

e a modernidade é descrito por Lessa (1996 [?]) como um momento de expansão e

intensificação da presença das mercadorias na vida social, o que abre espaço para o

desenvolvimento da propriedade privada e da individualidade humana numa escala e

intensidade inéditas na história; o indivíduo e a sociedade passam a ser concebidos

como duas coisas distintas e diversas, de tal modo que a realização pessoal de um

indivíduo pode ocorrer mesmo em situação de miséria crescente da coletividade; e

ainda um espírito utilitarista substitui o espírito místico-ontológico do período medieval

tanto nas relações dos indivíduos entre si, quanto na relação com a natureza.

Para o autor, entre o mundo burguês moderno e o período medieval, há uma

diferenciação ontológica mais acentuada do que aquela existente entre o mundo grego

e o feudalismo.

Dentro do contexto da modernidade, Lessa (1996 [?]) pontua três correntes de

pensamento que trazem especificidades sob o ponto de vista ontológico e da

compreensão da realidade; são elas: o iluminismo, o pensamento de Hegel e a teoria

marxiana.

Cronologicamente, na distinção dessas correntes três correntes, o autor pontua as

características da filosofia iluminista. O iluminismo apresenta traços de continuidade e

ruptura em relação à concepção ontológica do período medieval. Para Lessa (1996 [?]),

a continuidade se expressa mais no aspecto formal de apresentação do pensamento e

do encaminhamento do raciocínio do que no conteúdo que proclama.

No que diz respeito à discussão ontológica, ao invés de rever a perspectiva escolástica

própria do período medieval, o Iluminismo suspende esta preocupação. Conforme

Lessa (1996 [?], p. 9), os iluministas “[...] se preocupam em combater a superstição

presente na ideologia do Ancien Regime por meio do avanço das Luzes, não restando

entre eles qualquer espaço para questão ontológica enquanto tal”.

No entanto, embora a discussão ontológica não tenha sido priorizada na filosofia

Iluminista, entre os séculos XVI e XVIII as questões referentes à compreensão sobre o

37

ser – ou que faz os seres serem o que são – passou por uma profunda transformação e

assumiu uma forma completamente nova. Pois se antes, no período medieval, o

desígnio divino era quem fundava as determinações essenciais, no Iluminismo, se

inaugura uma concepção em que as leis universais oriundas na Natureza, prescritas

por Deus, determinam o real.

Como veremos nos capítulos seguintes é comum observar nos escritos de Rousseau

trechos em que a Natureza é citada como verdadeiro princípio organizador dos destinos

da humanidade. No livro O contrato social, quando explica os limites do pacto social,2

Rousseau afirma que:

[...] o pacto fundamental, ao invés de destruir a igualdade natural, substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima a desigualdade física que a Natureza pôde pôr entre os homens, fazendo com que estes, conquanto possam ser desiguais em força ou em talento, se tornem iguais por convenção e por direito (ROUSSEAU, 1965, p. 37).

Nas Luzes, o ser divino da essência humana, próprio da Idade Média, se converteu na

essência natural, a-histórica dos homens. Naquele contexto, a relação entre o ser

humano e a natureza é reconhecida como uma relação de continuidade. Contudo, a

natureza humana é concebida como algo imutável, já que não é um constructo humano

e, portanto, ela não pode ser transformada pelos atos humanos; são forças extra-

sociais – o ser divino, no período medieval e a Natureza, no Iluminismo – que

determinam o que é o homem.

Neste cenário, é possível verificar o debate sobre a essência da natureza humana. Esta

discussão é bem ilustrada pela discordância existente entre Hobbes e Rousseau. Para

o primeiro, a natureza humana é naturalmente ruim e, para o segundo, a natureza do

homem é boa. Neste contexto, há uma concepção de natureza a-histórica da

humanidade, ou seja, da qual a existência dos homens é apenas uma fatal decorrência

e não um constructo de eventos humanamente organizados:

2 No capítulo II, veremos que o pacto social ao qual Rousseau menciona diz respeito à regra legisladora que foi

estabelecida entre os homens para que vivam em sociedade, sobrepondo assim aos desejos naturais, em nome de um

convívio socializado.

38

O Iluminismo compartilhará dessa concepção de mundo. Para ele, os homens são essencialmente proprietários privados, individualistas, por que assim é a natureza humana; e a história, nada mais é que o desdobramento de leis da natureza postas a existir com a própria

natureza (LESSA, 1996 [?], p. 13).

Derivam, ainda, duas outras importantes críticas da filosofia das Luzes, que contribuem

para construção da concepção do real enquanto reino da razão. A primeira delas diz

respeito à crítica a uma concepção propagada pela Igreja e amplamente divulgada no

período medieval de que os homens precisavam ser salvos por Deus, graças ao

pecado original. Nas Luzes, ganha espaço a ideia de Deus como apenas um fiador da

estabilidade do universo e o autor de uma natureza útil ao homem:

Poder civil e poder eclesiástico coexistem ao longo daquele período que chamamos de Idade Média, sendo sua fronteira simplesmente a linha na qual parou a última batalha. No interior de seu território, cada um reina sem compartilhamento; quanto aos indivíduos, eles não dispõem de nenhuma liberdade de escolha [...]. A história européia moderna, do Renascimento até as Luzes, de Erasmo a Rousseau, é a da consolidação da separação entre instituições públicas e tradições religiosas, e a do aumento da liberdade individual. Com efeito, o poder temporal da Igreja é abalado sem ser abolido [...] (TODOROV, 2008, p. 67-68).

Portanto, é evidenciado que, nas Luzes, não há uma suposta propagação do ateísmo,

mas sim uma preocupação em combater a superstição presente na ideologia

escolástica, que, como tal, alimentava uma crença sem base na razão ou no

conhecimento que alimentava nos homens falsas obrigações. Deseja-se, portanto, que

a religião saísse do âmbito do Estado sem, no entanto, abandonar o indivíduo. Esta

crítica fundamenta um dos princípios do Iluminismo, a laicidade. Nela, cada um tem o

direito de permanecer dono de si sem pisotear a liberdade dos outros, assim sendo,

cabe ao Estado controlar a esfera legal, mas é de direito da sociedade civil sua

expressão autônoma de crenças. O ideário iluminista propaga que cada cidadão “[...]

dispõe da autonomia em seu domínio e se vê protegido contra as instruções do outro,

fala-se de uma sociedade laica ou, como se diz também, secular” (TODOROV, 2008, p.

65).

39

A segunda crítica que também se relaciona com o conceito de autonomia reside na

crítica aos moldes do poder vigente como aquele que advém de uma origem divina.

Esta crítica rejeita a submissão da sociedade ou do indivíduo a preceitos cuja única

legitimidade advém daquilo que uma tradição atribui aos deuses ou aos ancestrais,

assim, não é mais a autoridade do passado que deve orientar a vida dos homens, mas

o seu projeto para o futuro (TODOROV, 2008).

Para Lessa (1996 [?]), é Rousseau quem cumpre o papel mais radical dos pensadores

em relação a esta crítica. Ele aponta a tese da soberania popular como o poder legítimo

como a mais inovadora e revolucionária dentre os Iluministas. Em O contrato social,

encontramos a discussão que fundamenta a teoria da soberania e o conceito da

“vontade geral”. Em síntese, Rousseau afirma que, em nome do contrato social, os

associados concordam em se subjugar para o bem da comunidade:

Todas essas cláusulas [do contrato social], bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros (ROUSSEAU, 1965, p. 30).

Essa noção fundamenta a ideia da vontade geral ou da soberania popular, que se

coloca em oposição ao conceito de vontade particular. Em Rousseau, a ideia de

soberania não representa a vontade de um, mas sim a vontade dos membros do pacto

social, o que significa dizer que a sociedade política deve ser governada

democraticamente. Este argumento era expressamente controverso no século XVIII,

época em que a tradição monárquica possuía grande abrangência na Europa. Sobre a

fundamentação rousseauniana sobre a democracia, acrescenta Simpson (2009; p;

121):

[...] quando Rousseau argumentou que as pessoas devem votar sobre suas próprias leis, ele quis dizer que as próprias pessoas devem votar, não somente os seus representantes. Sua teoria da democracia foi um argumento para uma democracia direta e não uma democracia

40

representativa! Este era o seu ponto quando dizia: ‘A Soberania não pode ser representada... Qualquer lei que o povo em pessoa não ratificou é nula, não é, absolutamente, uma lei’.

No entanto, mesmo diante das evidências das ideias revolucionárias de Rousseau,

Lessa (1996 [?]) afirma que, pelo fato de ter sido um pensador pré-revolucionário,

guardando em si a mescla entre o velho e novo ou entre a sociedade a ser destruída e

aquela a ser construída, o filósofo suíço apresentou uma solução conservadora se

comparada à radicalidade de sua teoria da soberania da vontade geral, ao propor que

caberia ao Príncipe conduzir a sociedade degenerada à sociedade livre.

Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e só a ele pode pertencer. E, ao contrário, é fácil ver pelos princípios anteriormente expostos, que o poder executivo não pode pertencer ao maior número como legislador ou soberano, pelo fato de este poder só consistir em atos particulares que não são de modo algum da jurisdição da lei e, por conseguinte, do soberano cujos atos não podem ser senão leis. [...] Chamo, pois, governo, ou suprema administração, ao exercício do poder executivo; e príncipe ou magistrado, ao homem ou ao corpo incumbido dessa administração (ROUSSEAU, 1965, p. 64-65).

Para Lessa, a substituição do povo pelo legislador parece indicar o reconhecimento de

Rousseau da impossibilidade real, historicamente determinada – ainda que em via de

superação – de o povo fazer a história com suas próprias mãos. Portanto, afirma que,

embora a concepção da objetividade natural e da natureza humana presentes no

Iluminismo represente um forte avanço e exiba rupturas decisivas com o mundo

medieval, essa ruptura ocorreu pelo abandono e não pela resolução da questão

ontológica.

Lessa completa afirmando que, em favor de uma postura científica empírica que

privilegiou o como ao invés do porquê, teve-se como resultado a afirmação de uma

ontologia espontânea, nunca explicitada e por isso não examinada atentamente. Deste

modo, o conceito de Natureza nas Luzes era ao mesmo tempo a essência do ser e um

paradigma valorativo. Em caráter conclusivo, Lessa (1996 [?]) avalia que, nas Luzes,

41

[...] a natureza humana é a explicação final, o fundante não fundado, a causa não causada, da história humana. Aos homens caberia, na melhor das hipóteses, realizar com plenitude as determinações imanentes de sua natureza – ou então, viver em constante desarmonia e infelicidade

(LESSA, 1996 [?], p. 14-15).

A segunda corrente filosófica fruto da modernidade destacada por Lessa (1996 [?]) é a

filosofia fundada pelo alemão, nascido em 1770, Wilhelm Hegel. Sua herança iluminista

é reconhecidamente significativa, já que grande parte de sua produção intelectual foi

posterior à Revolução Francesa, esta que foi amplamente motivada pelos ideais

iluministas. Silveira (s/d) afirma que, em sua formulação definitiva, a filosofia de Hegel

tinha a liberdade ou a vida plena como seus objetivos norteadores. Este pressuposto é

apontado por Todorov (2008) como um ideal que expressa a esperança de uma vida

mais plena no futuro ou na consolidação do progresso, por meio do livramento da

obscuridade. Para ele, os iluministas e seus sucessores

[...] crêem que, apesar dos atrasos e lentidão, a humanidade poderá atingir sua maioridade graças à difusão da cultura e do saber. Essa visão da História como cumprimento de um objetivo será retomada e reforçada por Hegel, depois por Marx, e passará, graças a este último, à doutrina comunista (TODOROV, 2008, p. 24- 25).

Para este texto, nos interessa destacar as características que compõe a concepção

ontológica que permeia a filosofia de Hegel. Como o mapa completo das ideias

fundamentais do hegelianismo é bastante amplo, dado que se trata de umas das

filosofias mais ricas e complexas já produzidas na história moderna, recorremos a

Reale e Antiseri (2007), para nos apropriamos de alguns dos fundamentos do núcleo

conceitual desse sistema filosófico. De acordo com os autores, o ponto de vista

fundamental do pensamento de Hegel é o de entender a realidade ou a verdade não

como uma substância fixa ou imutável, mas como sujeito, como pensamento ou

espírito.

Para Hegel, o espírito se autogera, gerando ao mesmo tempo a própria determinação e

superando-a completamente. Deste modo:

42

Hegel salienta que o movimento próprio do espírito é o movimento de refletir-se em si mesmo; trata-se do sentido de “circularidade” [...] E Hegel distingue três momentos nessa ‘reflexão circular’: 1) primeiro momento, que ele chama o do ser ‘em si’; 2) segundo momento, que constitui o ‘ser outro’ ou ‘fora de si’; 3) terceiro momento, que constitui o ‘retorno a si’ ou o ser em si e para si’. [...] (REALE; ANTISERI, 2007, p. 103).

Visto como inteiro, o círculo do absoluto também marca o ritmo por estes três

momentos, momentos que são respectivamente denominados “ideia”, “natureza” e

“espírito”. Para uma melhor ilustração do processo auto-produtivo do absoluto e seus

três momentos, os autores lançam mão de um exemplo particular apresentado pelo

próprio Hegel:

Se [...] o embrião é em si o homem, ele, entretanto não o é para si; para si só o é como razão desdobrada [...], e somente essa é sua realidade efetiva. A semente é em si a planta, mas ela deve morrer como semente e, portanto, sair fora de si, a fim de poder se tornar, desdobrando-se, a planta para si (ou em si e para si) (REALE; ANTISERI, 2007, p. 103).

Analogamente, como no processo que leva o embrião ao homem através do desdobrar-

se do primeiro, é sempre a realidade que se desenvolve, concretizando-se e, então,

voltando a si mesma, e o mesmo ocorre também como o absoluto. A ideia é, para

Hegel, o termo mais idôneo para exprimir em geral o absoluto. A ideia que é logos, o

local da racionalidade pura, tem em si o princípio do seu próprio desenvolvimento e, em

função dele, primeiro se objetiva e se faz natureza, alienando-se, e depois, superando a

alienação retorna a si mesma. Por isso, que Hegel afirma que o espírito é a ideia que se

realiza e se contempla por meio de seu próprio desenvolvimento (REALI; ANTISERI,

2007).

No sistema lógico fundado por Hegel, o ser é a qualidade comum a tudo que existe, é a

unidade essencial de toda coisa existente, ele é a primeira fase de sua lógica. No

entanto, devido à amplitude e abstração desta categoria/qualidade, ela pode ser

esvaziada e ser confundida com o nada, a antítese do ser. Para fugir desta contradição,

43

o ser se desdobra, definindo-se, determinando-se. Neste momento o ser passa a ser

outro, a natureza, que é a ideia fora de si, isto é, alienada ou objetivada. Este primeiro

movimento resulta no ser como natureza, que engloba tudo aquilo que é natureza,

dentre ela, o ser humano:

Com a passagem da ideia à natureza, poderia parecer que se esteja retornando ao ser, isto é, à primeira fase da Lógica. Mas, na realidade, diz ele, ‘esse retorno ao início é, ao mesmo tempo, progresso. Aquilo com que começamos era o ser, o ser abstrato, e agora temos a ideia como ser’, e a natureza é precisamente essa ideia-como-ser (como objeto) (REALE; ANTISERI, 2007, p. 124).

O segundo movimento de desdobramento do espírito se configura quando o ser

humano, como ser natural, torna-se social. O ser social objetiva-se em várias

manifestações, inclusive manifestações que permitirão a ele reconhecer-se; são elas: a

arte, a religião e a filosofia. Dentre estas manifestações, a filosofia é o momento que o

pensamento se pensa e retorna ao ser. O encontro do pensamento consigo é o ser

absoluto, o ser pensando a si mesmo, o ser autoconsciente. No momento que o homem

filosofa, ele eleva-se bem acima da consciência comum, ou seja, sua consciência eleva-

se à altura da pura razão, ou ainda, adquire o ponto de vista do absoluto (REALE;

ANTISERI, 2007).

Como procuramos evidenciar, no pensamento de Hegel, há a prioridade da ideia sobre

a matéria; para ele, a essência do mundo é a ideia; contudo, o pensamento é descolado

do ser pensante humano; ou seja, na visão hegeliana, o pensamento é anterior ao

homem, esta característica faz com que sua produção filosófica seja reconhecida como

idealista.

Do estudo da obra de Hegel e da crítica dirigida ao sistema idealista hegeliano, Marx se

apropria do que há de mais fundamental em seu sistema: a dialética. Porém, ao

contrário de Hegel, Marx irá desenvolver a dialética segundo a concepção materialista.

Na epopéia do espírito narrada por Hegel, o homem é só mais um dos elementos, para

ele, o motor da história é a contradição ou a dialética. E o sujeito da história é o espírito.

Já em Marx, inaugura-se uma especificidade de modo radical:

44

[...] pelo trabalho, ao transformar a natureza a humanidade cria possibilidades e necessidades objetivas. Isso significa que são as novas condições de existência objetivas que determinarão o desenvolvimento da consciência. Marx, portanto, com a descoberta do trabalho enquanto categoria fundante do ser social, supera o idealismo de Hegel (LESSA; TONET, 2008, p. 37).

Marx promove uma virada materialista, a partir de sua apropriação da produção teórica

do filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Assim, ele elabora uma crítica àquilo que ele

considerava um limite na filosofia especulativa hegeliana, a compreensão que o

pensamento é o sujeito e o ser é um atributo do pensamento:

A teoria feuerbachiana da alienação manifesta-se em diferentes momentos de sua obra. Em 1839, em sua Contribuição à crítica da filosofia de Hegel, Feuerbach levanta-se contra o caráter abstrato e alienado da filosofia de Hegel, que começa pelo conceito de ser, por um ser inicialmente indefinido precisando passar pela tortuosa engrenagem das sucessivas mediações para, assim, cumprir as três etapas de sua evolução e tornar-se, efetivamente, um ser real carregado de determinações (FREDERICO, 1995, p. 29).

Outra parte da crítica feuerbachiana a Hegel e assumida por Marx está na

compreensão da natureza como uma realidade derivada de uma ideia abstrata, de um

Deus oculto, anterior a tudo e a todos, que, como na teologia, desponta como o criador.

Contra essa forma alienada de raciocínio, Feuerbach propõe que se ponha de lado a

especulação, o ser abstrato, Deus, e que se parta do real, da natureza e do homem.

Este argumento inaugura uma inflexão no pensamento idealista, a partir daqui somos

conduzidos a uma ontologia que propõe a substituição do abstrato pelo concreto. Para

Feuerbach, o ponto de partida da filosofia não pode ser deus, o começo da filosofia é o

real, ou seja, determinado. Neste sentido, o autor ecoa a máxima: “Contemplai a

natureza! Contemplai o homem! Aqui tendes, diante dos olhos, os mistérios da filosofia

(FEUERBACH, 2002, p. 38).

45

A produção de Marx sobre a ontologia do ser social dialogará estreitamente com os

conceitos apresentados aqui da filosofia de Feuerbach3, conforme assume Marx ao

assinalar sua contraposição à filosofia hegeliana e afirmando o naturalismo realizado ou

humanismo feuerbachiano:

O ser objetivo atua objetivamente e não atuaria objetivamente se o objetivo não estivesse posto em sua determinação essencial. Ele cria, assenta apenas objetos, porque ele é assentado mediante objetos, porque é desde a origem, natureza. [...] Vemos igualmente como só o naturalismo é capaz de compreender o ato da história universal (MARX, 2004, p. 126-127).

No plano teórico, a partir do diálogo com a produção de Hegel e Feuerbach, Marx

produz os Manuscritos econômico-filosóficos ou Manuscritos de Paris. Estes escritos

foram produzidos em Paris, em 1844, quando Marx possuía 26 anos, não se trata de

uma obra fechada, mas sim da reunião de vários escritos do autor, que não foram

publicados em vida e permaneceram inéditas por quase cinquenta anos depois de sua

morte. Os Manuscritos foram escritos por Marx antes de seu célebre encontro com

Engels. Além de estabelecer, na obra, o diálogo com a produção de Hegel e

Feuerbach, ele elabora sua primeira crítica à economia política de Adam Smith e David

Ricardo. Inaugura-se, a partir de então, a construção de sua contundente crítica ao

capitalismo, que o notabilizaria no século XX. A esta dissertação interessa investigar

nos Manuscritos a teorização sobre a constituição do ser social, reconhecendo as

categorias que compõe a formação do ser social.

Do contato de Marx com a teorização feuerbachiana ocorre um rompimento que confere

ao pensamento marxiano um perfil próprio e uma posição até então, inédita na história

da filosofia. Na filosofia feuerbachiana,

[...] o pensamento se desdobra de um sujeito; este, enquanto ser material, é ser passivo que registra, experimenta e sofre a determinação do mundo exterior. E quanto menos interferir, mais próximo estará ele estará da verdade, entendida como desvelamento, revelação que se

3 Para aprofundamentos acerca da relação entre as reflexões marxianas e a filosofia de Feuerbach, sugiro a leitura de

Frederico (1995).

46

descortina à contemplação paciente e complacente (FREDERICO, 1995, p. 171).

O passo decisivo para a ruptura de Marx com Feuerbach é a descoberta da atividade

material como responsável pela autoformação do gênero humano. Em 1844, por meio

de seu contato, no exílio, com o movimento operário francês, Marx elabora uma

alternativa à filosofia contemplativa de Feuerbach. Seu ponto de partida neste tema é a

fundamentação hegeliana desenvolvido na Fenomenologia do Espírito. Nesta obra, o

conceito de atividade ganha lugar de destaque:

[...] Marx retoma a ideia hegeliana de atividade (melhor dizendo, de auto-atividade), vendo nela o próprio processo de produção do homem. Hegel, segundo Marx, ‘apesar de toda sua abstração, vê no trabalho o ato pelo qual o homem se produz a si mesmo’; ‘o homem real e, portanto, verdadeiro, aparece como um resultado de seu próprio trabalho’. Com isso, Hegel teria dado à ideia de trabalho, presente na economia política inglesa sob uma forma particular (restrita ao mundo burguês) uma dimensão ontológica universal. Mas essa formulação permaneceu abstrata: ‘o único trabalho que ele (Hegel) reconhece é o trabalho espiritual’ (FREDERICO, 1995, p. 173).

Esse pressuposto hegeliano contribui para que Marx compusesse o percurso do “fazer-

se a si mesmo” do homem e é fundamental na concepção arquitetônica da teoria

marxiana acerca da mediação histórica do trabalho humano na formação do ser social.

Em síntese, os Manuscritos são a expressão da luta de Marx em desenvolver seu

próprio pensamento sob a influência de duas fundamentações filosóficas contraditórias,

a fenomenologia dialética de Hegel e o materialismo empirista de Feuerbach. Como

novidade, os Manuscritos inauguram, ao diálogo também desenvolvido com teóricos da

economia política, uma análise bem estruturada da forma capitalista da atividade de

produção. É a partir deste diálogo ampliado que Marx expõe e desenvolve o lugar do

trabalho como forma efetivadora do ser social.

Tendo em vista a fundamentação de marxiana, veremos que o homem é um ser

“automediador da natureza” que, por meio de sua atividade vital, desprendeu-se da

natureza, diferenciou-se dela, elevou-se acima de seus limites, e sobre ela passou a

47

exercer uma ação transformadora. Marx, assim, atribui uma prioridade ontológica ao

trabalho humano, a atividade material nascida com a invenção dos instrumentos de

trabalho humano que medeiam o intercâmbio dos homens com a natureza e dos

homens entre si, conforme veremos a seguir.

TRABALHO E CULTURA EM MARX

De acordo com a tradição marxista, para sua sobrevivência, os seres humanos devem

transformar constantemente a natureza. Marx define o trabalho como prioridade

ontológica do ser social: sem produzir os meios para satisfazer suas necessidades

humanas, o ser humano não existiria:

[...] o trabalho, a atividade vital, vida produtiva mesma aparece ao homem apenas como meio para a satisfação de uma carência, a necessidade de manutenção da existência física. A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species [sic], seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem. [...] O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente (MARX, 2004, p. 84).

Para Marx, não haveria uma essência humana independente da história. A essência do

trabalho humano é a luta pela existência e é no trabalho que ocorre o salto do ser

orgânico para o ser social, ou seja, a partir do trabalho, o ser humano se faz diferente

da natureza, se faz um autêntico ser social, com leis de desenvolvimento histórico

completamente distintas das leis que regem os processos naturais. Assim, o ser

humano possui uma natureza contraditória: é natureza e não é natureza.

A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é o corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do

48

homem está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza (MARX, 2004, p. 84).

Essa transformação da natureza não só leva à mudança da própria natureza, mas

também à modificação do próprio homem e de sua própria realidade. Essa condição

distingue o homem dos outros seres, como afirmam Lessa e Tonet (2008, p. 18):

Entre os homens, a transformação da natureza é um processo muito diferente das ações das abelhas e formigas. Em primeiro lugar, porque a ação e seu resultado são sempre projetados na consciência antes de serem construídos na prática. É essa capacidade de idear (isto é, de criar ideias) antes de objetivar (isto é, de construir objetiva ou materialmente) que funda, para Marx, a diferença do homem em relação à natureza, a evolução humana.

Discutiremos sobre o processo de formação do indivíduo, por meio da conceituação e

relação que as categorias objetivação e apropriação estabelecem. A relação entre

ambas expressa a dinâmica essencial da auto-produção do homem pela sua atividade

social.

Para Marx (2004, p. 80), “O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto,

fez-se coisal, é a objetivação do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação”.

O ser humano objetiva-se quando se projeta para fora de si, exterioriza-se por meio de

suas realizações, ou seja, toda produção humana possui a marca da existência

humana. O resultado do processo de objetivação é, sempre, a transformação da

realidade, quer seja pela construção de um novo mundo objetivo, quer seja pela

modificação do próprio indivíduo que também se reconstrói quando modifica a natureza.

Por meio do trabalho há a exteriorização do ser humano, suas produções são suas

projeções fora de si, estas são a exteriorização de sua existência. O ser humano põe

aquilo que ele é naquilo que ele faz.

Já em suas formas básicas, a atividade vital de existência humana se diferencia da

atividade vital dos animais, mesmo quando voltadas para a criação das condições de

existência humana. O consumo de um objeto natural por um animal não deixa de ser

um ato de apropriação, mas a diferença qualitativa que distingue a apropriação humana

49

de qualquer outra está no fato da apropriação humana ser um processo gerador de

uma realidade qualitativamente nova, um processo gerador de história:

O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto de sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. [...] A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. [...] É verdade que também o animal produz, constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata, enquanto o homem produz sua liberdade com relação a ela; o animal só produz a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira [...] (MARX, 2004, p. 84-85).

Ao produzir os meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, o

ser humano humaniza a si próprio, na medida em que a transformação objetiva

engendra também uma transformação subjetiva. Ao transformar a natureza, o ser

humano produz um novo mundo, com novos objetos, conhecimentos, técnicas e

habilidades, organização geral do trabalho e crenças. Esse mundo novo que surge em

decorrência da ação humana transformadora sobre a natureza representa o mundo da

cultura.

Temos, assim, que a relação entre a objetivação e apropriação é estabelecida quando o

ser humano se apropria da natureza objetivando-se nela e inserindo-a em sua atividade

social. Sem a apropriação da natureza não haveria a criação da realidade humana, não

haveria objetivação humana. Sem objetivar-se através de sua atividade vital, o ser

humano não pode apropriar-se de modo humano da natureza.

A necessidade de apropriação ou incorporação das objetivações produzidas pelo

sujeito social e histórico coincide com o sentido lato da educação. O ser humano, ao se

inserir no processo histórico-social de constituição como gênero humano, não pode

prescindir da apropriação dos resultados da história da atividade humana, do patrimônio

cultural produzido por seus antecedentes. Essa apropriação dos resultados da história

humana é o processo educativo, entendido, de um modo ampliado, como um dos

processos de introdução ao mundo humano.

50

Por isso, “[...] o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em

cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo

conjunto dos homens” (SAVIANI, 1991, p. 14). Assim, a finalidade do trabalho educativo

é alcançada quando cada indivíduo apropria-se e incorpora os elementos culturais

necessários à sua formação como ser humano.

Por meio da apropriação da natureza e sua objetivação, o ser humano cria um novo

mundo. No entanto, a característica menos ou mais humana deste novo mundo é

pautada pelas condições sociais concretas em que se realizam a atuação mais ou

menos consciente deste indivíduo neste novo mundo.

Esse posicionamento [sobre o caráter humanizador ou alienante da vida do indivíduo], por sua vez, requer a mediação de categorias que sintetizem o que, no atual momento da história humana e nas condições sociais concretas em que se realiza a formação dos indivíduos, se constitui nas possibilidades máximas de vida humana existentes numa sociedade e quais as condições sociais que impedem, ou ao menos cerceam [sic], a realização dessas possibilidades na vida de indivíduos. O critério para se definir o que é humano e o que é alienação em relação ao humano é o das possibilidades já alcançadas historicamente (DUARTE, 1993, p. 60).

No que diz respeito à atividade vital humana, sua alienação ocorre quando o produto

criado pelo ser humano se torna uma força superior a ele próprio. A alienação é um

processo de submissão dos seres humanos a um produto de sua própria atividade vital.

O trabalho alienado é a ruptura entre o ser humano e sua criação, ele perde o objeto

produto de sua exteriorização e se sujeita a ele. Aquilo que é produzido por ele não lhe

pertence mais. Deste modo, temos como conseqüência da alienação, o total

estranhamento do ser humano em relação às suas produções, assim

[...] quando mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, e tanto menos o trabalhador pertence a si próprio. [...] O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto (MARX, 2004, p. 81).

51

Marx acrescenta que o processo de estranhamento dos seres humanos em relação as

suas objetivações não ocorre somente no final do processo de criação das mesmas,

mas principalmente durante o ato de produção, dentro da própria atividade produtiva.

Assim, ele nos provoca: “Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao produto da

sua atividade se no ato mesmo da produção ele não estranhasse a si mesmo?” (MARX,

2004, p. 82).

Este estranhamento do ser humano durante o ato de produção e com o produto

resultante de sua produção não é um processo natural. A resultante da objetividade do

homem em seu objeto não é naturalmente a alienação. Numa compreensão

equivocada, poderíamos acreditar que toda objetivação geraria imediatamente uma

alienação, no entanto:

A objetivação não é essência saindo de si mesma e se alienando no objeto, para depois retornar a si mesma, superando a objetividade, que nesse sentido seria concebida como sinônimo de alienação. É verdade que a alienação tem origem objetiva, mas não decorre da objetividade das forças essenciais humanas, e sim do fato de que a objetivação e apropriação dessas forças ocorram sob relações sociais de dominação (DUARTE, 1993, p. 72).

Com isso, vemos que a origem objetiva da alienação se estabelece nas relações

sociais de dominação, que cerceiam e impedem que a vida de indivíduos se desenvolva

com a potencialidade própria do humano. Se a alienação é um processo de submissão

dos seres humanos a um produto de sua própria atividade vital, isto ocorre num

contexto relacional, ou seja, o homem não se reconhece em suas produções porque

outrem se apropria de suas produções:

Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho está diante dele, então isto só é possível pelo fato de o produto do trabalho pertencer a um outro homem fora do trabalho. [...] Considere-se ainda a proposição colocada antes, de que a relação do homem consigo mesmo lhe é propriamente objetiva, efetiva, pela sua relação com outro homem. Se ele se relaciona, portanto, com o produto do seu trabalho, com seu trabalho objetivado, enquanto objeto estranho,

52

hostil, poderoso e independente dele, então se relaciona com ele de forma tal que um outro homem estranho a ele, inimigo, poderoso, independente dele, é senhor deste objeto. Se ele se relaciona com a sua própria atividade como uma atividade não livre, então ele se relaciona com ela como atividade a serviço de, sob domínio, a violência e o jugo de um outro homem (MARX, 2004, p. 86-87).

As relações sociais de dominação fazem com que aqueles que produzem a riqueza

humana não possam se apropriar do mundo resultante de seu trabalho. Portanto, como

consequência deste contexto de relações desiguais determinadas, no qual o trabalho

exteriorizado é estranhado pelo seu produtor, que se engendra a relação de

desigualdade entre classes sociais. Em decorrência disso, nasce a propriedade privada,

que é resultante do conceito do trabalho estranhado, da vida estranhada e do homem

estranhado. Marx afirma que se “[...] a propriedade privada aparece como fundamento,

como razão do trabalho exteriorizado, ela é antes uma consequência do mesmo”

(MARX, 2004, p. 87).

No entanto, a partir da alienação que engendra a propriedade privada, o conjunto de

objetivações humanas – o patrimônio cultural humano – não é apropriado pelo conjunto

da humanidade. Nestas condições, há uma relação de estranhamento do gênero

humano consigo mesmo, o que repercute numa assimilação parcial, fragmentada de

sua humanidade. Para que o ser humano se aproprie da essência plena da

humanidade, ele precisa fazê-lo de modo pleno, ou omnilateral, como aponta Marx

(2004):

[...] a apropriação sensível da essência e da vida humanas, do ser humano objetivo, da obra humana para e pelo homem, não pode ser apreendida apenas no sentido da fruição imediata, unilateral, não somente no sentido de posse, no sentido de ter. O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto como um homem total. [...] A propriedade privada nos fez tão cretinos e unilaterais que um objeto somente é nosso se o temos, portanto, quando existe para nós como capital ou é por nós imediatamente possuído, comido, bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim, usado (MARX, 2004, p. 108).

53

Portanto, vimos que o ser humano constitui sua historicidade por meio da dialética entre

objetivação e apropriação. Entretanto, esse processo dialético não se dá no abstrato,

pelo contrário, realiza-se no contexto de relações sociais concretas e que podem

inclusive colocar obstáculos a esse processo.

Com os argumentos até aqui levantados, podemos estabelecer relações entre a

organização e a e a divisão do trabalho e as questões da corporeidade e do movimento

humano. Herold Junior (2008, p. 108) chega a afirmar que, “[...] caso não seja feita essa

análise da corporeidade laborativa como ponto de apoio para a luta política, o preço a

ser pago é o fato de análises do corpo endossarem reducionismos”.

Em uma de suas facetas, este reducionismo se expressa pela apreensão alienada da

realidade, própria do capitalismo. Esta alienação está relacionada com o processo de

divisão das sociedades em classes antagônicas e a relação de produção existente

entre estas classes, fato gerador da divisão do trabalho. Por sua vez, essa divisão

social do trabalho acarretou que a objetivação do ser humano e a apropriação dos

resultados dessa objetivação ocorressem de forma fragmentada, o que impediu que a

totalidade da riqueza material e não material fosse posta a serviço da realização e do

desenvolvimento da totalidade dos seres humanos.

Com isso e partir do pressuposto marxiano que a base do processo de produção social

é a relação entre o homem e a natureza (o que faz com que o trabalho das "mãos" e o

trabalho do "pensamento" sejam dificilmente diferenciados), Marx concebe a dicotomia

entre corpo e pensamento como fundada na divisão social do trabalho entre concepção

e execução, o que funda a concepção de um ser humano dicotômico (HEROLD

JUNIOR, 2008). O que fundamenta a afirmação de Gonçalves (2004):

Na sociedade capitalista, o processo de trabalho, alienando-se de suas raízes humanas, alienou também o homem em sua corporalidade. Sua atividade produtiva, criativa, em que ele expressa seu ser total, é transformada em tempo de trabalho e absorvida pelo capital. Os seus próprios poderes físicos tornaram-se independentes e aparecem-lhe como estranhos, desvinculados de seu ser total. O corpo vivo, participante do ato criador de transformar a natureza, tornou-se um corpo mecanizado, que tem tarefas a cumprir de forma automatizada [...]. O corpo do trabalhador não é somente um corpo alienado, mas é

54

um corpo deformado pela mecanização e pelas condições precárias de realização de movimentos (GONÇALVES, 2004, p. 63).

Neste contexto, a força de trabalho do trabalhador é transformada em força executora

e o “capital” é visto como a inteligência que pensa o trabalho, ficando assim liberto das

contingências de sua prática. Como consequência desta relação alienada, temos que:

O fato de o capital apresenta-se como inteligência é, assim, a inversão da concreta relação entre o homem e natureza, necessariamente baseada na ação e na inteligência, embasamento este não percebido pela necessidade da produção e da reprodução do capital que, entre outras coisas, explica pela mistificação o fato de aqueles que produzem a riqueza social não poderem usufruir dessa produção (HEROLD JUNIOR, 2008, p. 109).

O MOVIMENTAR-SE HUMANO NA PERSPECTIVA DO SER SOCIAL

Neste item, nosso objetivo é estabelecer relação entre o referencial teórico adotado e a

problemática desta pesquisa. Portanto, se indagamos pelo lugar que Rousseau atribui

ao movimentar-se no processo de inserção da criança no mundo humano, torna-se

premente evidenciar a compreensão assumida de movimentar-se humano. Por sua vez,

isso requer elaborar ligações entre a perspectiva marxiana de constituição do ser social

e o fenômeno do movimentar-se humano.

Como já afirmamos na introdução dessa dissertação, pretendemos fortalecer a

discussão do movimentar-se humano no horizonte da cultura. Marx parece nos inspirar

a compreender o mover-se humano como não apenas componente da atividade vital

humana, mas também como objetivação humana propriamente dita e, portanto,

resultante do trabalho e parte do patrimônio cultural genérico (portanto, representante

do gênero humano).

Para indicar os caminhos de compreensão do movimentar-se humano a partir do âmbito

da cultura, voltamos, então, à interlocução com a base teórica:

55

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participa o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais (MARX, 1983, p. 211).

Entendemos, assim, que o primeiro sentido do mover-se humano confunde-se com um

movimento primordial que ocorre pelo e no trabalho. Motivado pelas necessidades de

sua sobrevivência e orientado por finalidades, o trabalho, explica Marx, é um “pôr-se em

movimento” corporalmente a fim de apropriar-se da natureza. Denominamos como um

mover-se primordial, porque ele compõe a atividade vital humana; assim, para realizar-

se, o trabalho implica a indissociabilidade entre corporeidade e movimento humano.

Portanto, se a atividade vital humana só pode desenvolver-se por meio desse mover-

se, então toda a vida humana envolve o mover-se corporal, ou seja, o ser humano não

existe sem o seu mover-se; mais precisamente, o ser humano é corporeidade em

movimento.

Um elemento de destaque é que Marx nos convida a pensar que esse movimento

mobiliza a plenitude do humano, pondo “[...] em movimento as forças naturais de seu

corpo – braços e pernas, cabeça e mãos” (MARX, 1983, p. 211). Um ponto aqui se

ressalta: para além de uma atividade de cunho físico, o trabalho primordial do homem

solicita a plenitude das suas capacidades intelectuais e sensitivas para se realizar.

Esse movimento primordial marca a diferença entre o movimento humano e o

movimento dos outros seres da natureza. O movimento humano deixa de ser movido

por uma programação genética ou instintiva e passa a ser construído conforme as

finalidades da ação humana de transformar a natureza; ao fazer isso, o próprio ser

humano se modifica e, nesse sentido, o seu mover-se torna-se social. Esse salto

ontológico ocorre com todo ser que nasce pertencente à espécie humana. Ao nascer

somos pertencentes à espécie humana e, para nos inserirmos no processo histórico do

gênero humano, precisamos produzir e reproduzir a realidade humana.

56

O mecanismo fundamental do processo histórico-social de humanização do gênero humano deixa de ser centrado, como no caso do processo de hominização, na relação adaptativa com a natureza, e passa a ser, simultaneamente, um processo de apropriação da natureza, incorporando-a à atividade social humana e um processo de objetivação do ser humano (DUARTE, 1993, p. 103).

A partir dessa diferença que demarca o salto ontológico entre o mundo da natureza e o

mundo humano, no qual a ação humana (o seu mover-se) deixa de ser natural e

assume um caráter social, são produzidas outras formas de movimentar-se. Estas

novas formas de movimentar-se compõem o segundo sentido do mover-se, que não

mais se confunde com o próprio trabalho, mas é uma resultante dele. Dessa maneira,

fazem parte do patrimônio cultural genérico (do gênero humano), como um aceno de

adeus ou de olá, gestos de alegria, demonstrações de carinho, feições de repreensão,

enfim, formas de expressão humana que se materializam em gestos e cujo modo de

expressão é eminentemente não-conceitual. Não é o mover-se da existência humana

em geral, mas o mover-se como linguagem gestual e conhecimento sensitivo. Esse

modo específico de expressar e conhecer possui raízes históricas e sociais e, portanto,

sofrem variações ao longo do tempo ou de acordo com comunidades e/ou grupos. Esse

enraizamento social aponta para contornos culturais que conferem sentidos e

significados diversos a esse mover-se.

É no horizonte dessas compreensões do mover-se humano que lançaremos nosso

olhar analítico sobre a obra rousseauniana Emílio ou da educação. Neste livro,

Rousseau propõe, durante um longo passeio, uma releitura do processo de

educabilidade do homem, de sua autoconstrução e de sua inserção na sociedade.

Propomo-nos o exercício analítico de perceber como o movimento humano é abordado

em relação às crianças desde seu nascimento até os seis anos. Entretanto, para

investigarmos esse tema particular, necessitamos compreender aspectos gerais da

vida, obra e contexto desse filósofo. É isso que faremos no próximo capítulo.

57

CAPÍTULO 2

ROUSSEAU: ASPECTOS BIOGRÁFICOS, HISTÓRICOS E

FILOSÓFICOS

Este capítulo tem o objetivo de apresentar e discutir alguns elementos da filosofia de

Jean-Jacques Rousseau. Aqui não se pretende esgotar o assunto, mas debater

aspectos gerais de suas formulações filosóficas que permitam situar e compreender o

livro “Emílio ou da educação”, obra que teremos como interlocutora para pensarmos o

lugar do movimentar-se humano no desenvolvimento de crianças pequenas. Se, por um

lado, a tarefa é modesta, por outro, ela demanda, a nosso ver, pelo menos, um duplo

entrelaçamento: em sua filosofia, convergem, ao mesmo tempo, facetas de sua vida

singular e de seu tempo histórico. Assim, neste capítulo, apresentaremos alguns

aspectos da vida de Jean-Jacques Rousseau, evidenciando como estes se tornam

presentes em sua filosofia e se relacionam com o contexto sócio-histórico em que ele

viveu; por sua vez, buscaremos evidenciar como esse contexto ganha singularidade

nos trabalhos desse filósofo.

ROUSSEAU: ASPECTOS BIOGRÁFICOS E DE SUA OBRA

A opção de trabalhar, neste primeiro momento do texto, aspectos biográficos do autor

também se deve a um fato peculiar: ao longo de sua vida, além de sua produção

filosófica e literária, Rousseau produziu algumas obras de caráter autobiográfico, como

cartas e ensaios. Como afirma Starobinski (1991), isso indica que Rousseau não

consentiu separar seu pensamento e sua individualidade, suas teorias e seu destino

pessoal. Portanto, para compreendê-lo, é importante considerá-lo tal como se

apresenta, nessa fusão e confusão da existência (singular e social) e das ideias.

58

Rousseau é reconhecido como uma figura complexa e controvertida, objeto de diversas

interpretações também opostas entre si, o que não nos permite descrevê-lo como um

homem médio. A complexidade e controvérsia de sua personalidade e obra se

expressa nas muitas denominações que recebeu. No entanto, é incontestável a

contribuição dos seus escritos para a teorização da educação.

Considerado com razão como o maior pensador do século XVIII, ele [Rousseau] se impôs por motivos contrastantes. Para alguns é o teórico do sentimento interior como o único guia da vida, para outros é o defensor da absorção total do indivíduo na vida social, contra as renascentes fraturas entre interesses privados e interesses coletivos; para alguns é liberal, para outros é o primeiro teórico do socialismo; para alguns é iluminista, para outros é antiiliuminista; para todos é o primeiro grande teórico da pedagogia moderna (REALE; ANTISERI, p. 277-278).

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra4 em 28 de junho 1712. Sua mãe,

Suzanne Bernand, morreu oito dias depois de seu nascimento, em decorrência do

parto. Ao longo de sua infância, o pequeno Rousseau recebeu uma educação bastante

desordenada. Inicialmente foi entregue aos cuidados de uma tia, com quem viveu até

antes de seus primeiros estudos regulares. Ele realizou seus primeiros estudos

regulares sob a orientação do Pastor Lambercier, em Bossey, onde durante dois anos,

devotou singular afeição a Srta. Lambercier, irmã do pastor, da qual recebeu os

primeiros corretivos físicos. Acusado de haver furtado um pente, foi expulso dali, não

sem antes ser severamente punido. O episódio gravou-se em sua alma e concorreu,

sem dúvida, para torná-lo inimigo jurado de toda ação injusta. Em seu livro Confissões,

Rousseau relata os efeitos deste episódio em sua vida:

4 “Nesta época, Genebra não passava de 20.000 habitantes e definia-se como uma República em meio às monarquias

européias, uma vez que seus magistrados eram eleitos todo ano pela assembléia reunida de cidadãos. Mas nem tudo

era assim tão perfeito naquela república, pois nem todos os genebrinos eram Cidadãos. Estes eram constituídos por

pessoas nascidas na cidade, de um pai também cidadão ou burguês; podiam exercer todas as profissões,

beneficiando-se de certos privilégios econômicos; como eram os únicos que possuíam direitos civis e políticos,

tinham privilégio exclusivo de poderem ser eleitos para a mais alta magistratura. Aos poucos, constituíram uma

aristocracia que, a partir do século XVII, fechou cada vez mais” (PISSARA, 2006, p. 31).

59

E o que eu sentia era o rigor de um castigo assustador por um crime que eu não cometera. A dor do corpo, viva embora, me foi pouco sensível. Eu sentira só a indignação, raiva, desespero [...].

Ao escrever isso, sinto que meu pulso se eleva ainda; terei sempre presentes esses momentos, ainda que viva cem mil anos. Esse primeiro sentimento da violência e da injustiça ficou-me tão profundamente gravado na alma que todas as ideias que com ele se relacionam me despertam a primeira emoção; e esse sentimento relativo a mim, na sua origem, tomou por si próprio uma tala consciência e de tal modo se desligou de qualquer interesse pessoal que meu coração, se inflama ao espetáculo ou à narração de qualquer ação injusta, qualquer que seja o objeto ou o lugar onde se cometa, como se o seu efeito recaísse sobre mim (ROUSSEAU, 2006, p. 41-42).

Em 1728, quando Rousseau tinha 16 anos, no retorno de um passeio pelo campo com

amigos, o jovem encontra as portas da cidade fechadas. Embora isso já lhe tivesse

ocorrido outras vezes, esse episódio precipitou uma decisiva mudança em sua vida. Por

conta da ocasião e da dificuldade em reencontrar um local para abriga-lo, Rousseau

buscou ajuda de um sacerdote católico, o pároco Pontvere, que lhe recomendou com

uma carta de apresentação a procurar Françoise-Louise de La Tour, a baronesa de

Warens, em Annecy5.

Ao enviar Jean-Jacques a Annecy, Pontvere, intencionava ganhar mais uma alma para

a igreja católica. Como a Sra. de Warens não pôde incumbir-se pessoalmente do

assunto, ela enviou o jovem Jean-Jacques a Turim, a um estabelecimento destinado à

instrução de catecúmenos, para que ele abjurasse a religião protestante. Desse modo,

Rousseau foi batizado em 23 de abril de 1728 com o nome de Jean-Joseph Rousseau

(PISSARA, 2006).

Entre 1728 a 1735, Rousseau transitou, em busca de trabalho, por Annency, Lyon,

Fribourg, Lausanne e Neuchâtel. Em 1731, torna-se cantor do coro da catedral de

5 “A baronesa de Warens era separada de um grande proprietário rural suíço, ela própria uma recém-convertida, e

destinatária de várias pensões que lhe eram concedidas a fim de ajudá-la a recrutar outros prosélitos para a fé

católica. Seu encontro com Rousseau foi decisivo, e suas vidas iriam ficar estreitamente interligadas nos cerca de

doze anos subsequentes” (DENT, 1996, p. 14)

60

Annency, depois professor de música em Lausanne e Neuchtânel, companheiro de um

monge grego, criado de um oficial aposentado em Paris.

Entre 1732 e 1737, reencontra em Chambéry a Sra. de Warens e volta ser professor de

música, torna-se também seu amante e homem de confiança. A Sra. de Warens teve

importante papel na biografia de Rousseau, ela foi a pessoa que lhe possibilitou estudar

e se instruir sem distrações neste período, longe do tumulto da cidade e por seu

intermédio ele fez frequentes viagens a Besançon, Lyon, Grenoble, Genebra e

Montpellier (FERREIRA, 2004).

Em 1740, em Lyon, Rousseau aceita um trabalho como tutor dos filhos de um rico

aristocrata, Jean Bonnot de Mably. O ambiente era repleto de pessoas altamente

educadas e influentes que formavam uma espécie de microcosmo de todas as

tendências da alta cultura contemporânea. Este período foi duplamente importante na

biografia de Rousseau. Primeiro porque ele se tornou amigo de dois irmãos mais jovens

de seu empregador, eram eles: Abbé de Mably, um cientista social e o outro Abbé de

Condillac, que estava na época com um pouco mais de vinte anos, ainda não famoso

por sua defesa radical da teoria de John Locke de que a mente humana é uma tela em

branco. Condillac foi o primeiro dos grandes filósofos do século XVIII que Rousseau

conheceu, aquele foi o seu primeiro contato com a força do Iluminismo Francês

(SIMPSON, 2009).

Outra razão que reforça a importância deste período na biografia de Rousseau é que,

na ocasião, ele foi contratado como preceptor dos dois filhos do Sr. De Mably. Por

conta de tal tarefa, passou a formular e emoldurar ideias sobre a educação. Embora

sua experiência como preceptor não tenha sido exitosa e seu contrato não tenha sido

renovado após o primeiro ano, a experiência como preceptor potencializou seus

escritos educacionais. Datam desta época dois breves ensaios sobre educação

referentes à instrução do Sr. de Sainte-Marie, o primogênito de Mably (DENT, 1996).

O filosófo de Genebra deixa Chambéry e se muda para Paris, com a esperança de

interessar a Academia de Ciências com uma notação musical de sua invenção. A

Academia, porém, apresentou objeções, dizendo que seu método não era novo nem

61

útil. Rousseau chegou a Paris com cartas de recomendações da família Mably e de

seus amigos em Lyon, que facilitaram seu acesso aos círculos sociais mais elevados da

metrópole parisiense. Datam de então suas primeiras amizades em círculos

intelectuais; Rousseau conheceu Denis Diderot logo que chegou a Paris e os dois

jovens se tornaram amigos. Ambos tinham aproximadamente a mesma idade e eram

filhos de operários pobres e esperavam encontrar meios de sobreviver em Paris através

de suas produções escritas.

Com sua amizade com Diderot e por intermédio dele, Rousseau conheceu outros

membros do nascente ciclo encyclopédiste que se consolidava nesse meio tempo.

Diderot, juntamente com Jean d’Alembert, já profundamente envolvido nos preparativos

da publicação da Enciclopédia, convidou Rousseau a escrever um grande número de

verbetes sobre tópicos musicais. Alguns anos depois, Rousseau contribuiu com um

extenso verbete adicional sobre a economia política (conhecido como Discurso sobre

economia política, o qual foi publicado finalmente no volume V da Enciclopédia em

1755).

Logo após se encontrarem, d’Alembert pediu a Diderot que o ajudasse a traduzir e editar uma enciclopédia, em inglês, de artes e ciências. Diderot aceitou e, instalando-se como o planejador principal, expandiu de maneira significativa o escopo do projeto para torná-lo um sumário original e compreensivo de filosofia, arte, ciência e tecnologia, que não hesitaria em apresentar as ideias mais controvérsas [sic] da época. O resultado foi a Enciclopédia, ou Dicionário Racional das Ciências, das Artes e das profissões, publicada em 28 volumes entre os anos 1751 e 1772 [...] (SIMPSON, 2009, p. 29).

O filósofo contemporâneo Bertrand Russel (2001) afirma que a Enciclopédia foi o mais

destacado monumento do período do iluminismo no século XVIII. De acordo com ele,

conscientemente, os intelectuais que a construíram davam as costas à religião e à

metafísica e viam na ciência a nova força propulsora do intelecto. Ao reunirem numa

vasta obra todo o conhecimento científico da época, não como um mero registro

alfabético, mas sim como um relato do modo científico de se encarar o mundo, esses

escritores esperavam forjar um poderoso instrumento para a luta contra o

62

obscurantismo da autoridade estabelecida. Sobre os objetivos da Enciclopédia

escreveu Diderot (apud SIMPSON, 2009, p. 29):

Na realidade, o objetivo de uma enciclopédia é coletar todo o conhecimento que se encontra espalhado pela face da terra e fazer com que seja conhecido, em sua estrutura geral, por todos os homens entre os quais nós vivemos, e para transmitir àqueles que virão depois de nós para que o trabalho do passado seja útil a todas as épocas vindouras, que nossos netos, à medida que se tornem educados, possam ao mesmo tempo se tornar mais virtuosos e mais felizes.

Em Paris, em 1745, Rousseau residia em um quarto do Hotel Saint-Quentin; ali

trabalhava Thérèse Le Vasseur, criatura simples, de poucas letras, com a qual

estabeleceu uma ligação amorosa, descompromissada de início; com o decorrer do

tempo, Thérèse se tornou sua companheira até seus últimos dias de vida. Desse modo,

viu-se Jean-Jacques sobrecarregado de obrigações. Era preciso viver e sustentar

Thérèse e uma corte de parentes que dela dependia.

No ano de 1746, carente de segurança financeira, Rousseau aceitou um emprego como

secretário da rica família Dupin, cujo senhor ele havia conhecido através das suas

conexões aristocráticas em Paris. Na maior parte dos cinco anos seguintes, trabalhou

para a família em sua residência e, especialmente, na sua fazenda. Os Dupins eram

proprietários de Chenon-ceaux, um dos mais famosos castelos do Vale do rio Loire,

região conhecida como o Jardim da França e o Berço da Língua Francesa. Naquele

cenário magnífico, Rousseau compôs música, poesias e uma curta ópera para

apresentação no castelo (SIMPSON, 2009). Os anos junto com a família Dupin foram

importantes também porque, nesse período, Rousseau teve seu primeiro filho e

inaugurou uma polêmica que permeia sua biografia:

Fomos passar o outono [...] no castelo de Chenonceaux [...] Enquanto eu engordava em Chenonceaux, minha pobre Thérèse engordava em Paris de uma outra maneira [...] a criança [...] foi deixada pela parteira no balcão dos Enfants-Trouvés [...] No ano seguinte, mesmo inconveniente e mesmo expediente (FERREIRA, 2004, p. XXVI).

63

Assim como com seu primeiro filho, Rousseau repetiu este gesto ainda por outras

vezes, por ocasião do nascimento de seus outros quatro filhos. Tal informação da

biografia de Rousseau é amplamente divulgada e contribuiu para que muitos diminuam

o valor de suas ideias, apontando-o como um homem sem caráter e falso moralista.

Contudo, o número e o destino de filhos que Rousseau teve com Théresè Levasseur

são ainda motivo de grande polêmica e incerteza, como nos afirma SIMPSON (2009, p.

28):

A história tradicional diz que tiveram cinco filhos, todos abandonados em orfanatos. Este é o relato feito por Rousseau em sua autobiografia [Confissões] e que outras pessoas têm repetido por muitos séculos. Na realidade, essa informação circulou por muito tempo e, desde então, algumas pessoas com sonhos de grandeza têm tentado reivindicar e alegar que são uma de suas crianças perdidas. Porém, existem algumas evidências de que a história seja incorreta e que talvez as crianças nunca tenham existido. Alguns acadêmicos, por exemplo, sugeriram que os problemas de saúde de Rousseau o deixaram incapaz de ter filhos. Essa teoria levanta a questão de por que ele ter admitido ter sido pai e ter abandonado as crianças. Uma possibilidade óbvia é que a senhorita Levasseur não era monógama e Rousseau não sabia ou tentou protegê-la e a si mesmo de um escândalo. De qualquer forma, todas estas interpretações encontram sérios obstáculos.

Até então, ao que parece, Rousseau não se havia interessado seriamente por

problemas político-filosóficos, pelo menos como autor. Eram conhecidas suas incursões

no campo da música e, em menor escala, no do desenho e da pintura. Corria o ano de

1749, por conta de suas ideias progressistas, Diderot foi detido por escrever obras

consideradas pelas autoridades como insurgentes e insubordinadas e foi encarcerado

em Vincennes, nos arredores de Paris. Em agosto de 1749, ao realizar uma visita ao

amigo, ocorreu o que Rousseau considerou um fato decisivo em sua vida, colocando-o

por consequência no hall dos filósofos da época e que impuseram à atenção da França

Iluminista:

Esse ano de 1749 foi de um calor excessivo. São duas léguas de Paris a Vincennes. E como não podia pagar fiacres, às duas horas da tarde, eu saía a pé, quando estava só, e ia depressa para chegar mais cedo. As

64

árvores do caminho, sempre afastadas, à moda da terra, quase não davam sombra; e, muitas vezes, esgotado de calor e fadiga estendia-me no chão, exausto. Para moderar o passo, lembrei-me de levar sempre um livro. Um dia, levei o Mercúrio da França, e enquanto caminhava e o percorria, vi aquela questão, proposta pela Academia de Dijon para o prêmio do ano seguinte: “Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes”. No momento dessa leitura, vi um outro universo e tornei-me um outro homem; apesar de ter uma viva lembrança da impressão que recebi, os detalhes me escaparam depois que os gravei numa das minhas quatro cartas ao Sr. Malesherbes [...].

O que me recordo bem nessa ocasião foi que ao chegar a Vincennes, estava numa agitação que chegava ao delírio. Diderot o percebeu, eu lhe disse o motivo, e li-lhe a prosopopéia de Fabricius, escrita a lápis num carvalho. Ele me exortou a dar saída às minhas ideias e a concorrer ao prêmio. Fi-lo, e desde esse instante perdi-me. Todo o resto da minha vida e minhas desgraças foram o efeito inevitável desse momento de desvario (ROUSSEAU, 2008, p. 322-323).6

O Discurso sobre as ciências e as artes foi sua primeira publicação com teor filosófico,

no que viria a ser mais tarde reconhecido como o seu legado para a filosofia. Contudo,

ele não se trata de um ensaio acadêmico, ortodoxo e técnico, mas quase um panfleto

que critica a sociedade parisiense que o abriga e ao ideário Iluminista insurgente em

sua época. No Discurso, Rousseau argumentou que o progresso da alta cultura, desde

a Renascença, havia deixado a civilização europeia menos feliz e menos orientada em

termos morais.

Sobre esta questão, cabe uma ressalva. A palavra moral é a tradução típica da palavra

moeurs em francês, que foi a palavra usada pela Academia ao propor a questão: “Si lés

rétablissement des sciences a contribué à épurer lês moeurs” (Se a restauração das

ciências e das artes contribuiu para a purificação da moral), contudo

6 “A famosa passagem foi escrita vinte anos depois do fato e, dada a dramaticidade que ela expõe e sua semelhança

com a experiência de São Paulo na estrada de Damasco, faz com que alguns acadêmicos acreditem que a mesma é

totalmente fictícia ou altamente rebuscada. Certamente, a ideia de Rousseau ler enquanto caminhava, simplesmente

para andar mais devagar parece superficial. E ainda, outro elemento do relato parece fragilizar a confiabilidade do

relato: o conteúdo do concurso que ele menciona foi anunciado na publicação de outubro do Mercure de France, o

que faz com que seja difícil de entender o comentário de Rousseau sobre o calor do verão europeu. No entanto, uma

coisa é incontestável, no outono daquele ano, Rousseau começou a produzir seu ensaio proposto pelo Mercure de

France e este ensaio resultou em sua primeira obra-prima, o primeiro discurso, ‘Discurso sobre as ciências e as

artes’” (SIMPSON, 2009, p. 54).

65

[...] esta palavra em francês tem uma conotação diferente, pois além da ideia de ‘moralidade’ em si, ela também adota um âmbito geral de maneiras, hábitos e costumes. Por exemplo, perguntar sobre as mouers de um determinado grupo é perguntar não somente sobre sua moralidade, no sentido mais estreito, mas também sobre toda a sua maneira de viver (SIMPSON, 2009, p. 51).

Com esta compreensão do termo moeurs, a questão proposta pela Academia ganha

novo contorno. Para além de perguntar se o progresso da ciência e das artes purificou

a moral ou tornou as pessoas moralmente melhores, a academia inquiria se o

progresso da ciência e das artes havia contribuído para criar hábitos, costumes e

instituições melhores.

Em resposta à questão proposta pela Academia, Rousseau inaugura sua crítica ao

Iluminismo do século XVIII reconhecendo-se como um homem que faz parte da

conjuntura do século das Luzes, que, no entanto, não se sente plenamente

representado pelas convicções e motivações intelectuais dos filósofos daquele século.

O Discurso sobre as ciências e as artes é estruturado em duas partes. Na primeira, o

autor se entrega à tarefa de apontar por meio de exemplos ao longo da história que,

nas diferentes civilizações, sempre que as ciências e artes avançaram, houve uma

corrupção paralela das moeurs. Assim, Rousseau procura demostrar por meio de

elementos que, na história há uma relação diretamente inversa entre o progresso das

ciências e das artes com relação a virtude e a felicidade. Sobre a tese central da

primeira parte do Discurso, Freitas (2006, p. 15-16) afirma

[...] é a de que do absoluto controle dos povos promovido pelas artes surgem todas as espécies de infortúnios morais por entre os homens. As graças sociais e culturais que porventura tenham advindo das luzes são sempre anuladas pelo vício do amor-próprio. E para constatar tal afirmação, Rousseau utiliza, na primeira parte do Discurso, variadas induções históricas. A partir delas ele identifica a mesma peculiaridade em todos os tempos e lugares onde as artes evoluíram para a perfeição [...], à medida que avançaram no sentido do desenvolvimento das letras, degeneraram-se em nações arruinadas por invasões e crimes de todas as sortes.

66

Na segunda parte do Discurso, Rousseau vai além da observação histórica para afirmar

que o avanço das ciências e das artes não só acompanhou o declínio moral, mas que

este progresso é a causa do declínio dela. Nesta segunda parte do texto, o autor

desenvolve a ideia de que, em um estado de natureza, os costumes eram primitivos e

rústicos, portanto ainda não degenerados e sustentados por sentimentos naturais que

dirigiam a conduta humana para a realização do bem com simplicidade:

Não se pode refletir sobre os costumes, sem recordar com prazer a imagem da simplicidade dos primeiros tempos. É uma linda praia, apenas ornamentada pelas mãos da Natureza, para a qual voltamos incessantemente os olhos, e da qual nos sentimos afastar com tristeza. Quando os homens, inocentes e virtuosos, gostavam de ter os deuses por testemunhas de suas ações, habitavam juntos as mesmas cabanas [...] (ROUSSEAU, 1965, p. 223-224).

Este estágio primeiro da humanidade tinha como característica a semelhança dos seres

entre si e os fazia aptos a manterem suas vidas pautadas nos sentimentos de amor de

si e da piedade, sendo estas faculdades inatas que os uniam pelo caráter imediato das

relações afetivas que eles estabeleciam (FREITAS, 2006). Este argumento sobre o

estado da natureza como o estágio de bondade natural humana aparece nesta sua

primeira obra e permeará grande parte da obra do filosófo genebrino. Como

comentaremos mais adiante, ao falarmos sobre o seu segundo Discurso: o Discurso

sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, que fora publicado em 1755.

Rousseau argumenta que a corrupção da bondade natural se deu com o

desenvolvimento degenerado das sociedades, que trouxe consigo elementos como a

ociosidade, a vaidade, o luxo e a polidez, que desenvolveram por meio da corrupção do

amor de si em amor-próprio.

O início da história é o início de uma vida pautada pelo olhar do outro. E assim que os indivíduos começarem a viver sob esse olhar começarão também a depender da comparação e da opinião para se sentirem considerados. Isto porque eles, antes dependentes apenas de si mesmos para saciar suas necessidades, passarão a se submeter, com o intuito de não se sentirem excluídos, aos juízos de quem com eles

67

conviver. Este será o exato momento da entrada corrompida na sociedade, exatamente aquele em que o vício do amor-próprio, um degenerescência do amor de si que atua como uma força psicológica sobre os homens, estabelecerá a força de mentira e da aparência como tipo de relação que eles travarão entre si (FREITAS, 2006, p. 15).

As críticas dirigidas ao luxo, à ociosidade e às decorrentes comodidades e fragilidades

morais que elas fomentam contribuem para uma argumentação que recairá no tema da

formação humana.

Se a cultura das ciências é prejudicial às qualidades guerreiras, é-o ainda mais às qualidades morais. Recebemos desde a infância uma educação insensata que nos adorna o espírito e nos corrompe o entendimento. Vejo por toda parte imensos estabelecimentos em que, com grandes gastos, se instrui a juventude, ensinando-lhes todas as coisas, menos os seus deveres. [...]. Eu sei que é preciso ocupar as crianças em algo, e que a ociosidade é o maior perigo a recear. Mas, que devem elas aprender? Eis certamente um belo problema! Que aprendam aquilo que deverão fazer quando homens, e não o que devem esquecer (ROUSSEAU, 1965, p. 225-226)

O fragmento acima inaugura uma preocupação que percorrerá grande parte da obra de

Rousseau, o tema da educação. Reconhecemos aqui no primeiro Discurso um gérmen

das preocupações que mais tarde terão lugar central no Emílio, mas ainda é cedo para

desenvolver as ideias de tal afirmação.

No ano seguinte, 1750, seu Discurso recebia o prêmio ambicionado e dava lugar a

ardente polêmica. Estava lançado o escritor, ou melhor, o pensador, já confiante em

sua capacidade e desejoso por divulgar suas opiniões sobre um sem-número de

problemas de questões relativas ao gênero humano.

Seguem-se várias polêmicas à publicação do seu Discurso. O jornal Mercure de

France, em 1751, publica duas refutações ao texto, sendo uma anônima (atribuída ao

rei da Polônia) e, outra, do Sr. Gautier. Rousseau responde a primeira e, depois,

publica sua Carta a Grimm, sobre a refutação de seu discurso pelo Sr, Gautier. O

mesmo jornal publica o Discurso sobre as vantagens das ciências e as artes,

pronunciado por Bordes, na Academia de Lyon (PISSARA, 2005).

68

Outra controvérsia se localiza no fato de que, o texto que o inseriu no espaço da

intelectualidade iluminista do século XVIII, levantava críticas àquilo que era

extremamente caro àqueles intelectuais: o ideal de progresso por meio do

esclarecimento. O argumento desenvolvido por Rousseau em seu texto desafiava

alguns dos compromissos mais básicos dos seus contemporâneos: a certeza que o

progresso da cultura intelectual, e especialmente o progresso da tecnologia poderiam

melhorar a vida humana indefinidamente.

Em uma avaliação rápida, poderíamos afirmar então que Rousseau foi um anti-

intelectualista. No entanto, Dalbosco (2008, p. 9-10) assevera que o fundamento da

crítica rousseauniana não possui esse teor, na verdade:

[...] o ataque de Rousseau à arte e à ciência não teve o propósito de defender o retorno da humanidade a sua bárbarie inicial, mas sim, ao apostar na interioridade (subjetividade) humana, justificando-a por meio do nexo entre natureza e consciência, promover um retorno do homem socializado a si mesmo, como forma crítica à coisificação social. [...] Em sua ofensiva contra a ciência e a arte está embutido uma crítica da cultura sustentada na tese de que o processo de socialização provoca no ser humano a perda de unidade consigo mesmo através da dependência do olhar dos outros.

Em resposta as críticas recebidas ao seu texto, Rousseau produziu reorganizações em

sua argumentação, numa delas em resposta à Leszinski, que o criticava por não ser

muito claro sobre a ordem de casualidade entre a cultura intelectual e o declínio da

moral, Rousseau escreveu em sua autobiografia (ROUSSEAU apud Simpson, 2008, p.

77): “É assim que eu colocaria uma ordem nesta genealogia: a primeira fonte de todos

os males é a desigualdade; dela surgem os ricos... Dos ricos surgem o luxo e o ócio; do

luxo surgem as artes, e do ócio as ciências”.

Esta reformulação em sua argumentação abre caminho, para seu discurso seguinte,

Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade. Em novembro de 1753,

Rousseau faz um retiro em Saint-Germain e mais uma oportunidade se ocupa de um

tema proposto pela Academia de Dijon: qual a origem da desigualdade entre os

homens e se ela é autorizada pela lei natural? Escreve assim o Discurso sobre a origem

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e os fundamentos da desigualdade entre os homens, que foi publicado em 1755.

Rousseau se refere a este texto como aquele “[...] que manifesta os seus princípios com

mais ousadia, para não dizer audácia” (ROUSSEAU, 2008, p. 372).

O assunto proposto por este novo concurso, mais ainda que o tratado no concurso

anterior condizia com suas preocupações filosóficas, permitindo-lhe tratar sobre uma

teoria que vinha elaborando. Ao contrário do que se podia esperar, seu segundo

Discurso não mereceu a láurea acadêmica. A Dedicatória à República de Genebra,

posta no pórtico da obra, encobria uma fina malícia e provocou profunda hostilidade

contra o autor por parte dos “magníficos, mui distintos e soberanos senhores” do

Grande Conselho, aos quais era dirigida. Seu segundo discurso marcou uma nova

época na história da filosofia e talvez de toda civilização europeia.

Esse trabalho deu aos leitores uma nova maneira de entenderem sua própria vida e o

mundo social que os cercava. Em síntese, em seu escrito, Rousseau argumentou que a

desigualdade está enraizada na vaidade e na ganância humana. A razão que fazia a

questão proposta pela Academia calhasse com suas preocupações filosóficas está

relacionada com sua teoria da “bondade natural do homem” que havia sido defendida já

em seu primeiro discurso. Se as pessoas são naturalmente boas, por que então se

tornam tão más? O primeiro discurso atribui isso, em parte, ao desenvolvimento da alta

cultura; entretanto esta ainda não era uma resposta completa. Seu segundo discurso

apresentou esta complementaridade.

A parte revolucionária da teoria de Rousseau era a sua reivindicação que a vaidade e a ganância não eram partes essenciais da natureza humana, mas sim produtos de arranjos sociais injustos. Consequentemente, foi capaz de ratificar sua teoria da ‘bondade natural dos homens’, até mesmo diante das óbvias crueldades e injustiças do mundo ao seu redor. Ele as interpretou como um tipo de corrupção de uma condição humana original (SIMPSON, 2009, p. 35).

Ao desenvolver seu argumento sobre a ideia da bondade natural dos homens,

Rousseau, dialogava diretamente com a teorização desenvolvida pelo filósofo inglês do

século XVII, Thomas Hobbes, é dele a máxima: “O homem é o lobo do homem”. Para

70

Hobbes, a ações humanas são motivadas por um pequeno conjunto de emoções

básicas, entre estas, as mais importantes são a vaidade e o medo da morte violenta.

Por sua vez, estas emoções colocam as pessoas em conflitos, se por um lado o medo

da morte faz com que as pessoas estejam em posição ofensiva antecipada, uma em

relação às outras, pois deduzem que é melhor atacar primeiro do que serem atacados,

por outro lado, a vaidade faz com que os humanos sintam prazer na dor alheia, portanto

mesmo que não haja vantagem estratégica em atacar o outro, elas o farão pelo prazer

de se sentirem superiores. Deste modo, Hobbes acreditava que sem o poder regulador

dos governos, a sociedade humana seria uma guerra dos homens contra os homens.

Com base nisso, Hobbes desenvolveu sua teoria política afirmando que o principal

objetivo do Estado era regular a relação entre as pessoas, impedindo que elas se

ferissem e por esse propósito qualquer ação do Estado seria justificável (SIMPSON,

2009).

Em contrapartida, o argumento de Rousseau negava a ideia que os seres humanos são

inerentemente maus. Em seu segundo Discurso, o autor refuta a ideia de Hobbes:

Hobbes pretende que o homem é, por natureza, intrépido e não busca senão atacar e lutar. Um filósofo ilustre pensa ao contrário – e Cumberland e Puffendorf também o asseguram – que nada é tão tímido quanto o homem em estado natural, o qual se encontra em constante pânico e prestes a fugir ao menor ruído que o impressione, ao menor movimento que perceba (ROUSSEAU, 1965b, p. 148).

Portanto, para Rousseau, foi importante investigar aquilo que levou os homens do

estágio natural à produção de desigualdades. Deste modo, a questão proposta pela

Academia convergia favoravelmente para que ele desenvolvesse esta argumentação.

Para compreensão da resposta dada por Rousseau à Academia se faz necessário

esmiuçar a questão proposta por ela. No contexto da França, daquele período, ao

propor a questão da desigualdade a Academia questionava mais do que os disparates

econômicos, vividos pela França às vésperas da Revolução Francesa, ocorrida em

1789:

71

Nos anos que antecederam a revolução, a sociedade francesa ainda mostrava vestígios do seu passado feudal, especialmente em relação aos seus cidadãos, que eram divididos em vários grupos sociais e categorias legais, cada um com seus próprios direitos e responsabilidades. As categorias mais comuns eram os três ‘estamentos’: o clero, a nobreza e a plebe. Mas, na realidade, as coisas eram mais complicadas que isso, pois o latifúndio demandava certos direitos e deveres que ofuscaram os estamentos e, no terceiro estamento, a rica população urbana demonstrava uma tendência ao domínio, deixando os plebeus à sua própria sorte. Mais ainda, a desigualdade entre os homens e as mulheres existia dentro e entre os estamentos de muitas maneiras sutis. O resultado era uma sociedade altamente complicada e estratificada (SIMPSON, 2008, p. 83).

Deste modo, as desigualdades que foram criticadas pelo segundo Discurso vão além

de uma crítica à desigualdade econômica, como ligeiramente poderíamos supor. No

começo de seu texto, Rousseau esclarece sob qual ponto de vista tratará o tema da

desigualdade:

Eu concebo na espécie humana duas espécies de desigualdades: uma, que chamo natural ou física, porque foi estabelecida pela Natureza, e consiste na diferença das idades, da saúde, das forças corporais e das qualidades do espírito e da alma; outra, a que se pode chamar de desigualdade moral ou política, pois depende de uma espécie de convenção que foi estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios desfrutados por alguns em prejuízos dos demais, como o de serem mais ricos, mais respeitados, mais poderosos que estes, ou mesmo mais obedecidos [grifo nosso] (ROUSSEAU, 1965b, p. 143).

No início do texto, Rousseau propôs um discurso evolutivo da humanidade, de acordo

com qual a natureza humana muda dependendo das condições ambientais e sociais.

Em relação aos aspectos físicos do homem, o autor afirma que em seu estágio primitivo

ou selvagem o homem vivia de maneira simples, uniforme e solitária conforme a

prescrição da Natureza. No entanto, quando se tornou um ser sociável, tornou-se

escravo, fraco, medroso e abjeto, já que as comodidades da vida pós-primitiva o

fizeram degenerar sensivelmente (ROUSSEAU, 1965).

72

Sob o aspecto daquilo que Rousseau chamou de “lado metafísico e moral”, ele afirma

que em relação aos animais, o homem primitivo assim como os animais estava

submetido ao comando da Natureza, porém sua capacidade de aquiescer ou resistir

aos mandos da Natureza demonstram a originalidade humana. Todavia, a faculdade

que distingue com mais veemência os seres humanos dos animais é a capacidade da

perfectibilidade:

[...] haverá uma outra qualidade bastante específica que os distingue e sobre a qual não pode haver contestação; é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com a ajuda da circunstância, desenvolve sucessivamente todas as outras, e reside , entre nós, tanto na espécie como no indivíduo, ao passo que o animal atinge ao cabo de alguns meses aquilo que será durante toda a vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, será o que foi no início do milênio. Mas por que somente o homem está sujeito a imbecilizar-se? Não é de maneira alguma porque retorne ao seu estado primitivo; mas, enquanto o animal, que nada adquiriu e tampouco tem nada a perder, permanece sempre de posse de seu instinto, o homem, perdendo com a velhice ou devido a outros acidentes tudo o que sua perfectibilidade o fizera adquirir, não descamba assim mais baixo que o próprio animal? (ROUSSEAU, 1965b, p. 154).

Neste trecho, dois aspectos são importantes em se ressaltar: O primeiro diz respeito ao

conceito de perfectibilidade, que se trata da capacidade de aperfeiçoar-se, graças a

capacidade espontânea de adaptação às circunstâncias impostas pela Natureza:

O homem pode aprender como o seu meio ambiente funciona e pode adaptar-lhe o seu comportamento para sua própria vantagem, assim como modificar esse meio ambiente a fim de obter mais vantagens. Virtualmente todos os comportamentos humanos são aprendidos e adquiridos, e poucos se tornam tão consolidados que não permitam sua modificação se a necessidade (ou o gosto) o exigir. A nossa capacidade para toda essa flexibilidade e adaptabilidade, a nossa aptidão para aumentar o nosso estoque de conhecimentos e aplicá-los de modos infinitamente variados, Rousseau as atribui perfectibilidade (DENT, 1996, p. 181).

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Para Rousseau, a perfectibilidade humana é nossa benção e nossa maldição. Se por

um lado, ela nos possibilitou a nossa capacidade para atividades organizadas como a

agricultura, a construção, a ciência, as letras, as manufaturas, por outro lado, foi essa

mesma capacidade que tirou o homem de sua condição original, quando vivia de

maneira “simples, uniforme e ordinária” e o tornou tirano de si e da natureza. Portanto,

para Rousseau, nossa perfectibilidade é a fonte tanto de nossas virtudes quanto de

nossos vícios.

O segundo aspecto que merece destaque está no fragmento: “Mas por que somente o

homem está sujeito a imbecilizar-se? Não é de maneira alguma porque retorne ao seu

estado primitivo” (ROUSSEAU, 1965b, p. 154), aqui vemos que o autor não nos

convoca a um retorno ao primitivo, mas chama a nossa atenção que, tal como as coisas

se apresentam, uma existência limitada foi trocada por uma corrupta e destrutiva. A

alternativa para uma vida plenamente humana, mesmo que em sociedade, requer o

desenvolvimento de todas as faculdades, o pleno exercício dos sentidos e da

imaginação, o raciocínio ativo. A perfectibilidade pode abrir caminho para o vício e o

erro, mas sem ela tampouco pode haver virtude ou sabedoria.

Em 1754, Rousseau visita Genebra, volta ao protestantismo e recupera sua cidadania.

Começa a trabalhar num tratado, ao qual deu o título de Institutions Politiques (do qual

o Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político será a primeira e única parte).7 Em

uma passagem do livro nono do livro Confissões, Rousseau escreve sobre a

importância deste seu texto:

Entre os diversos trabalhos que tinha iniciado, o que eu meditava havia muito tempo, do qual me ocupava com mais gosto, e no qual desejaria trabalhar minha vida toda, e que, na minha opinião, seria o selo da minha reputação, eram as minhas Instituições Políticas. Já havia treze ou catorze anos que tivera a primeira ideia dele, quando, em Veneza, tive oportunidade de notar os erros desse governo tão gabado. Desde

7 No livro décimo do seu livro Confissões, Rousseau nos conta: “Tinha ainda duas obras começadas. A primeira

eram as minhas Instituições Políticas. Examinei o estado desse livro e vi que ele pedia ainda vários anos de trabalho.

E não tive coragem de prosseguir e esperar que ficasse terminado para executar minha resolução. De modo que,

renunciando a esse trabalho, resolvi aproveitar dele o que se pudesse destacar e queimar o resto; e, trabalhando com

ardor, sem interromper o Emílio, dei, em menos de dois anos, a última demão ao Contrato Social” (ROUSSEAU,

2006, p. 465).

74

então, minhas vistas se estenderam muito para o estudo histórico da moral. Vi que tudo se prendia radicalmente à política, e que, de qualquer modo que se procedesse, nenhum povo seria nunca o que a natureza do seu governo quisera que ele fosse. De forma que essa grande questão do melhor governo possível, parecia-me que se reduzia a isto: “Qual é a espécie de governo próprio a formar o povo mais virtuoso, mais esclarecido, mais sábio, o melhor em suma, tomando a palavra no seu maior sentido? Eu supunha que essa questão se aproximava muito desta outra, se por acaso fosse realmente diferente: “Qual é o governo que, por sua natureza se mantém mais próximo da lei?”. E daí, “qual é a lei?”, e uma cadeia de questões da mesma importância. Eu via que isso tudo me levaria a grandes verdades, úteis à felicidade do gênero humano e sobretudo ao bem da minha pátria, onde eu não encontrara, na viagem que acabara de fazer, as ideias das leis e das liberdades bastante justas e bastante claras, como o desejava; e eu julgava que esse modo indireto de lhas dar seria o que mais pouparia o amor próprio dos seus membros, e o que faria com que me perdoassem ter sabido enxergar um pouco mais longe que eles (ROUSSEAU, 2008, p. 370).

O Contrato Social é uma obra que se distancia substancialmente dos dois discursos

escritos por Rousseau, pois se nos dois discursos ele defendia a teoria da bondade

natural do homem e mostrava como as instituições sociais corrompem esta bondade,

no Contrato, o autor inicia seu trabalho dizendo que considerará os homens como eles

são, ou seja, corrompidos socialmente. Ao iniciar seu texto, o autor anuncia: “Eu quero

investigar se pode haver, na ordem civil, alguma regra de administração, legítima e

segura, que tome os homens tais como são e as leis tais como podem ser”

(ROUSSEAU, 1965, p. 21).

Como podemos perceber nesta obra ele chama a atenção que considerará os homens

como são, ou seja, não abordará sobre a perspectiva de um devir a ser, mas toma os

seres humanos após seu processo de sociabilização, isto é, quando já desnaturalizados

pelas instituições sociais. Em relação ainda sobre a diferença entre os discursos e o

Contrato, afirma Dalbosco (2007, p. 140):

Do Segundo discurso ao Contrato Social, também ocorre uma inversão de significado em relação aos conceitos de estado de natureza e estado social: enquanto o Segundo discurso o estado de natureza é visto como fonte da bondade natural humana e o estado social como fonte de sua perversão, no Contrato Social o estado social é associado, direta e

75

positivamente, à possibilidade de superação do nível instintivo e, portanto, desregrado da vida humana em seu estado natural.

Esta mudança de perspectiva pode demonstrar uma incoerência da filosofia de

Rousseau sobre a natureza humana. O que de fato ocorre, é que ele se propõe a

abandonar uma visão mais pessimista do estado social, para perspectivar alternativas

diante do corrompimento já ocorrido da moral. Isso se dá pelo reconhecimento e

consideração do autor sobre as conquistas que o ingresso da humanidade na

sociedade trouxe. Assim, a obra Contrato Social

[...] representa a perspectiva de que quanto mais o ser humano se socializa, tornando sua ação cada vez mais racional e livre, embora não necessariamente moral, tanto mais sua dimensão impulsiva e desejante é colocada sob o controle da racionalidade moral e jurídica e o aumento progressivo de sua socialização corresponde, portanto, à intensificação da dimensão moral e jurídica de sua ação (DALBOSCO, 2007, p. 140).

A tese básica do Contrato Social é que nenhum homem possui autoridade natural sobre

seu semelhante, portanto ninguém tem autoridade política somente pela virtude de seu

nome, de sua família ou por seu status social. Assim o autor, nega qualquer argumento

que considere que Deus conceda a “algumas” pessoas a autoridade para decidir o

destino de todas as outras. Desse modo, negando que a autoridade política e a

obrigação moral de obedecer à lei vem da natureza ou de Deus, ele achou que isso

deveria vir de pacto social.

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se todos, não obedeça portanto senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente. Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social (ROUSSEAU, 1965, p. 30).

O Contrato trouxe uma grande contribuição ao debate ocorrido durante os séculos XVII

e XVIII, sobre a natureza e os limites da obrigação política, e dedicou-se aos tópicos

76

clássicos da filosofia moderna, tais como: a soberania, a cidadania, a igualdade, a

liberdade e a justiça. Longe de defender que as pessoas são naturalmente boas, o

argumento do Contrato Social assume que as pessoas são geralmente egoístas e vãs

e, baseado nisso, questiona que tipo de organização política pode ser justificada

moralmente (SIMPSON, 2009).

No outono de 1754, Rousseau regressa a Paris, na mesma época, ele começa a redigir

a obra Ensaio acerca da origem das línguas que não foi concluído. “Porém o passar

dos anos não acalmava seu espírito itinerante, além do que a vida social parisiense, em

lugar de atraí-lo, começava a desagradá-lo” (BINI, 2008, p.10).

No que se refere ao seu texto, Emílio ou da educação o ano de 1757 é emblemático.

Conforme a cronologia da vida e obra de Jean-Jacques, apresentada por Michel

Launay (apud SANTOS; ARAPIRACA, 2006), durou cerca de cinco anos a concepção

do Emílio. O seu início data de 1757, quando no livro Júlia ou a Nova Heloísa é

abordada a educação dos filhos de Julie. Rousseau (2006, p. 372) reconhece que “[...]

tudo que há de ousado no Emílio aparecera antes em Júlio”. Contudo, enquanto a

recepção da obra Nova Heloísa foi, conforme suas palavras, aplaudida, o mesmo não

ocorreu com o Emílio, como ficará claro adiante. Entre os anos de 1759 e 1760,

seguiu-se uma série de dificuldades para a impressão do livro:

O Contrato Social imprimia-se rapidamente. O mesmo não acontecia com Emílio, cuja publicação eu esperava, para pôr em prática o retiro que tinha em mente. De tempos em tempos, Duchesne me mandava modelos de impressão para escolher: quando tinha escolhido, em vez de começar, mandava-me outros mais. Finalmente, quando estávamos já bem definidos acerca do formato, dos tipos e quando já tinham sido impressas várias folhas, devido a qualquer modificação que eu fazia numa prova, ele recomeçava tudo, e ao fim de seis meses nós nos achávamos menos adiantados do que no primeiro dia (ROUSSEAU, 2006, p. 506-507).

Na opinião de Rousseau e de comentaristas de sua obra, Emílio ou da educação é sua

principal obra. Trata-se de uma obra extensa, dividida em cinco livros, nele ele detalha

o processo formativo-educacional de um aluno fictício, o Emílio, desde o nascimento até

77

seu ingresso maduro na sociedade adulta. Do ponto de vista teórico, o livro Emílio é um

aprofundamento da argumentação realizada por Rousseau no segundo Discurso:

Se a ênfase do Segundo Discurso recai sobre o conceito de liberdade natural, fazendo residir nela a autenticidade da subjetividade, Emílio tem como meta principal alicerçar tal autenticidade na liberdade moral. Portanto sem descaracterizar a liberdade natural, Emílio vê na liberdade moral a forma de assegurar a autenticidade da ação humana. Mas, para que o educando possa alcançá-la, é preciso que seja educado em sua fase inicial, isto é, em sua infância, de acordo com os ditames da natureza, pois ela é, nesta fase inicial, a principal fonte de formação do caráter (DALBOSCO, 2007, p. 11).

Em 19 de junho de 1762, o Emílio é queimado publicamente em Genebra. Perturbado

com a receptividade a sua obra, doente e deprimido, Rousseau elaborava hipóteses

sobre o seu impacto

Pensei que os jesuítas, furiosos pelo tom depreciativo com que falara dos colégios, se tinham apossado da minha obra; que eram eles que retardavam a edição; que instruídos por Guérin, amigo deles, de meu estado presente e prevendo a minha morte próxima, de que eu não duvidava, queriam retardar a impressão até aquele momento, no anseio de truncar, de alterar a minha obra, e de emprestar-me, para ficar de acordo com suas opiniões, sentimentos diferentes dos meus. [...] Sempre sentira [...] que os jesuítas não gostavam de mim, não só como os enciclopedistas, como ainda porque todos os meus princípios eram ainda mais opostos às suas máximas e a seu crédito do que a incredulidade de meus confrades, porque o fanatismo ateu e o fanatismo devoto, tendo em comum a intolerância, podem unir-se mesmo como fizeram na China e como fazem contra mim; ao passo que a religião racional e moral, não dando qualquer poder humano sobre as consciências alheias, não deixa arma alguma nas mãos dos árbitros daquele poder (ROUSSEAU, 2006, p. 510).

De acordo com que previa Rousseau, a publicação de seu livro gerou reações

controversas. Embora muitos reconhecessem o caráter original e a qualidade do texto,

poucos ousaram externar esta percepção positiva. Como ele relata:

78

A publicação daquele livro não produziu esplêndidos aplausos que receberam todos os meus trabalhos. Nenhuma outra obra teve tantos e tão grandes elogios particulares, nem tão pouca aprovação pública. O que me disseram e o que me escreveram as pessoas mais capazes de julgá-la confirmou que aquela era a melhor de minhas obras, bem como a mais importante. Mas tudo isso foi dito com as mais estranhas precauções, como se fosse de vital importância guardar em segredo o bem que dela pensavam. A Sra. de Boufflers, que me dissera que o autor daquele livro merecia estátuas e as homenagens de toda humanidade, pediu-me com o maior desembaraço, no final de seu bilhete, que o devolvesse. D’Alembert, que me escreveu que aquela obra decidia a minha superioridade e devia pôr-me acima de todos os homens de letras, não assinou sua carta, embora tenha assinado todas as que me tinha escrito até então [...]. La Condamine lançou-se sobre a Profissão de Fé de tresvariou; Clairaut se limitou, em sua carta, ao mesmo trecho; mas não teve medo de exprimir a emoção que a leitura lhe havia proporcionado; e observou-me devidamente que tal leitura lhe tinha aquecido a alma; de todos aqueles que enviei o meu livro, foi ele o único que disse em voz alta e livremente e a todo mundo o que pensava de bem a respeito de meu Emílio (ROUSSEAU, 2008, p. 516).

O que se viu em seguida, em lugar dos grandes elogios particulares e a pouca

manifestação de aceitação pública de seu livro, foram manifestações enfáticas de

censura. No livro IV do Emílio, Rousseau inclui um longo ensaio (e, para alguns, até

mesmo, autônomo) que se intitula “A profissão de fé do vigário saboiano”, no qual

apresenta

[...] a sua mais completa declaração sobre a natureza e a base da crença e do sentimento religiosos; a sua explicação da natureza de Deus; um exame das relações de Deus com as Suas criaturas; e uma explicação das ligações entre a crença religiosa e moralidade. Critica severamente o significado atribuído aos milagres e à revelação em religião, assim como a intolerância entre diferentes seitas religiosas (DENT, 1996, p. 186).

No contexto do livro Emílio, o ensaio “A profissão de fé do Vigário Saboiano” aparece

como um trecho do Livro IV da publicação. Ele ganha espaço quando o preceptor

apresenta a Emílio ideias de religião e expõe o gênero da crença e da obediência

religiosa que seria apropriado à sua educação. O livro e notadamente o ensaio foram

considerados intoleravelmente ofensivos à ortodoxia religiosa.

79

Em junho de 1762, logo após a sua publicação, Emílio foi condenado pelo corpo

docente da Faculdade de Teologia na Sorbonne e exemplares do livro foram

queimados. Avisado da iminente prisão, Rousseau fugiu de Montmorency, refugiou-se

em Yverdon, na Suíça. No entanto, não permaneceu por muito tempo lá, porque

também, em Genebra, o Emílio era queimado em praça pública, sendo também

queimado na ocasião O contrato social como contrapeso.

Decepcionado com tratamento que suas obras receberam em Genebra e na França,

Rousseau passou a se sentir perseguido e assim obrigado a se refugiar8, vivendo assim

uma maré de dissabores.

Não fiquei muito tempo em dúvida sobre o acolhimento que teria em Genebra, no caso de ter vontade de voltar para lá. O meu livro foi queimado naquela cidade e no dia 18 de junho foi expedida ordem de prisão, isto é, nove dias depois de ter sido expedida em Paris [...].

Aqueles dois decretos foram o sinal do grito de maldição que se ergueu contra mim em toda Europa com um furor de que não há exemplos. Todas as gazetas, todos os jornais, todas as brochuras deram o mais terrível sinal de alarme. Principalmente os franceses, aquele povo tão doce, tão delicado, tão generoso, que tanto se orgulha de decoro e de consideração para com os desgraçados, esquecendo repentinamente suas virtudes favoritas, destacou-se pelo número e pela violência dos insultos com que me acabrunhavam. Eu era um ímpio, um ateu, um maníaco, um louco varrido, um animal feroz, um lobo (ROUSSEAU, 2008, p.532-533).

Em 1764, Voltaire publicou anonimamente O sentimento dos cidadãos, um panfleto no

qual tornou público, entre outras coisas, o fato de Rousseau ter abandonado os filhos

que tivera com Thérèse Levasesur. Rousseau ficou desvairado com essa denúncia e,

ao lado das dificuldades cada vez maiores que vinha enfrentando com as autoridades

religiosas, passou a conviver com distúrbios paranóicos. O que fez que com o tempo

ele se tornasse cada vez mais perturbado, morbidamente desconfiado, imaginando

conspirações e escárnios à sua volta (DENT, 1996).

8 Em suas Confissões, Rousseau afirma que, a partir da condenação de suas obras, passou a viver como um “judeu

errante”, remetendo-se à lenda do judeu que foi condenado pelas palavras de Cristo a vagar sobre a Terra até o fim

dos dias.

80

Neste cenário, apesar de ser tecnicamente um fugitivo da justiça, as autoridades

francesas não o prenderam. Ele permaneceu perambulando pela França, da casa de

um amigo a outro, muitas vezes utilizando o pseudônimo de Renou. Ele também tomou

a surpreendente decisão de se casar com Therese Levasseur. Nos anos seguintes e

últimos de sua vida, motivado por responder seus desafetos, Rousseau privilegiou em

sua obra a escrita autobiográfica. Algumas dessas obras mostram sinais acentuados de

sua perturbação mental. Rousseau juiz de Jean-Jacques: diálogos, escrita entre os

anos de 1771 e 1776, é uma dessas obras (DENT, 1996).

No outono de 1776, foi derrubado e ferido por um cão. Enquanto se recuperava,

começou a escrever seu último trabalho Os devaneios de um caminhante solitário, que

a morte em 1778 o impediu de concluir. Em maio daquele ano, Rousseau mudou-se

com Thérèse para uma pequena cabana em Ermenonville, não muito longe da Paris

Central, onde faleceu no dia 2 de julho daquele ano. Foi sepultado na propriedade, mas

seus restos mortais foram transferidos para o Panthéon, em Paris, durante a Revolução

Francesa.

A FILOSOFIA DE ROUSSEAU E O ILUMINISMO EUROPEU

Neste item, interessa-nos compreender a relação entre a filosofia rousseauniana e o

seu tempo histórico. Rousseau é um filósofo cuja produção se realiza na atmosfera das

Luzes e do projeto enciclopedista do qual participou. Diante da distância temporal das

suas obras em relação aos dias atuais, cabe-nos perguntar: em que medida é legítimo

tê-lo como interlocutor? Não seria ele um pensador ultrapassado?

O ideário Iluminista, na contemporaneidade, padece de uma descrença, denominada

por alguns como: crise da razão. Todorov (2008, p. 23) aponta alguns elementos que

compõe esta crise:

O século XX, em particular, que conheceu a carnificina de duas guerras mundiais, os regimes totalitários estabelecidos na Europa e alhures, as consequências mortíferas das invenções técnicas, pareceu trazer um desmentido definitivo a todas as esperanças formuladas por outrora, a ponto de termos deixado de reivindicar as Luzes, e as ideias trazidas

81

pelas palavras como humanismo, emancipação, progresso, razão, livre arbítrio, caíram em descrédito.

Dalbosco (2008) considera que a distância temporal que nos separa do século XVIII,

reiterada pelos diferentes ataques contemporâneos dirigidos à razão, faz empalidecer

os ideais filosófico-pedagógicos dos iluministas e algo semelhante ocorre com o

pensamento de Rousseau.

Para compreender tal afirmação, é necessário considerar que, no debate educacional,

há uma tendência em voga que reivindica a transcendência do ideário iluminista, por

meio do intitulado movimento pós-moderno, que em linhas gerais toma como referência

social a transição entre a modernidade iniciada com o Renascimento e Iluminismo e a

pós-modernidade iniciada na metade do século XX.

Este movimento questiona as pretensões totalizantes de saber do pensamento

moderno. Nesse contexto, ele sinaliza que o pensamento moderno prioriza as grandes

narrativas, vistas como vontade de domínio e controle. Nesta perspectiva, a “teoria pós-

moderna” combate o ideário iluminista – que é fruto do pensamento moderno –

questionando as noções de razão e racionalidade. Duvida do progresso, critica o sujeito

racional, livre, autônomo, centrado e soberano da modernidade.

Aqui cabe um resgate daquilo que se convencionou denominar de pós-moderno. Esse

termo foi inicialmente usado no campo da arte e pensado como uma categoria estética.

Como problema filosófico, a discussão sobre o pós-moderno foi inaugurada pelo filósofo

francês Jean-François Lyotard, em 1979, em seu livro “A condição pós-moderna”. Ele

definiu o pós-moderno como uma modificação geral na condição humana, histórica e

social.

De acordo com Lyotard (2000), pós-moderno se caracteriza pela crítica à ciência

moderna ocidental e sua justificação a partir de grandes relatos – as metanarrativas.

Com isso, ele queria dizer que a condição pós-moderna decorreria na incredulidade em

relação à crença em visões totalizantes da história, que prescreviam regras de conduta

política e ética para toda a humanidade. Em contraposição à metanarrativa, Lyotard

82

defende o determinismo local e valoriza os jogos de linguagem como narrativas

fragmentadas, isto é, as micro-narrativas.

Grande parte deste movimento surge em resposta à filosofia iluminista, que acreditava

que a razão e seus produtos - o progresso científico e a tecnologia - levariam o homem

à felicidade, emancipando a humanidade dos dogmas, mitos e superstições dos povos

primitivos.

[...] a regra do consenso entre o remetente e o destinatário de um enunciado com valor de verdade será tida como aceitável, se ela se inscreve na perspectiva de uma unanimidade possível de mentalidades racionais: foi este o relato das Luzes, onde o herói do saber trabalha por um bom fim ético-político, a paz universal. Vê-se neste caso que, legitimando o saber por um metarrelato, que implica uma filosofia da história, somos conduzidos a questionar a validade das instituições que regem o vínculo social: elas também devem ser legitimadas. A justiça relaciona-se assim com o grande relato, no mesmo grau que a verdade (LYOTARD, p. XVI, 2000).

As ideias de razão, ciência, racionalidade e progresso constante que estão no centro do

pensamento iluminista estão indissoluvelmente ligadas ao tipo de sociedade que se

desenvolveu nos séculos seguintes e, conforme afirma Silva (2010), são precisamente

essas ideias que estão na raiz dos problemas que assolam a contemporaneidade.

Da sua formulação clássica em 1979 até os dias atuais, o termo pós-moderno assumiu

sentidos diversos, muitas vezes, fluídos. A fim de ilustrar um tipo de crítica que pode ser

endereçada a esta dissertação, apresento a caracterização do que seja o pensamento

pós-moderno a partir de um autor brasileiro que se considera pertencente a esta

tendência: Tomaz Tadeu da Silva9. Silva (2010) identifica quais as principais críticas

realizadas pelo pós-moderno às noções modernas, são elas: crítica às pretensões

totalizantes de saber do pensamento moderno, crítica às noções de razão e de

racionalidade, crítica à noção de progresso; crítica aos princípios considerados

9 De acordo com Gandin, Paraskeva, Hypolito (2002), Tomaz Tadeu da Silva é um teórico brasileiro que faz uma

avaliação da produção teórica educacional, partindo da ideia de que há limites e um esgotamento na teoria

educacional crítica, indicando a necessidade de se buscar novos paradigmas para uma interpretação da complexidade

dos processos educativos. Nesse sentido, formula os princípios do que vem sendo chamado de teoria pós-crítica

desenvolvendo algumas ideias a respeito da filosofia da diferença e com o aporte teórico do filósofo Gilles Deleuze.

83

fundamentais na modernidade e crítica ao sujeito racional, livre e autônomo da

modernidade.

Em relação à pretensão totalizante moderna, o autor afirma que o pós-modernismo tem

uma desconfiança profunda em relação a esta pretensão. De acordo com ele, em nome

da ânsia de ordem e controle, a perspectiva social moderna buscou elaborar teorias e

explicações abrangentes que tentavam reunir num único sistema a compreensão total

da estrutura e do funcionamento do universo e do mundo social.

O segundo aspecto que recebe críticas dos filósofos pós-modernistas diz respeito as

noções de razão e racionalidade que são fundamentais para perspectiva iluminista. De

acordo com Silva, para crítica pós-moderna, essas noções, ao invés de levar ao

estabelecimento da sociedade perfeita do sonho iluminista, levaram ao pesadelo de

uma sociedade totalitária e burocraticamente organizada. Silva (2010, p. 112) ainda

afirma que, “[...] em nome da razão e da racionalidade, frequentemente se instituíram

sistemas brutais e cruéis de opressão e exploração”.

A terceira crítica recebida pela modernidade está na dúvida posta pelo pós-modernismo

em relação à noção de progresso que, segundo Silva (2010), está no centro da

concepção moderna de sociedade. O autor chama atenção que o prestígio dessa noção

pode ser medido pelo prestígio do adjetivo correspondente: progressista. De acordo

com ele, para o pós-moderno, o progresso não é algo necessariamente desejável ou

benigno: “[...] sob o signo do controle e do domínio sobre a natureza e o outro, o avanço

constante da ciência e da tecnologia apesar dos evidentes benefícios, tem resultado,

também, em certos subprodutos claramente indesejáveis” (SILVA, 2010, p. 112-113).

A crítica em relação aos princípios considerados fundamentais na modernidade diz

respeito aos princípios que se baseiam em alguma noção humanista de que o ser

humano tem características essências, as quais devem servir de base para a

construção da sociedade. São os ditos “axiomas inquestionáveis”. Silva (2010) afirma

que, no jargão pós-modernista, por se basear nessas fundações, o pensamento

moderno é qualificado como fundacional. Sob o ponto de vista pós-moderno, não há

nada que justifique privilegiar esses princípios em detrimento de outros. Ainda que a

modernidade tenha os considerado como últimos e transcendentais, eles são tão

84

contingentes, arbitrários e históricos tanto quanto quaisquer outros. Exatamente por

isso, o pós-moderno se denomina radicalmente como antifundacional.

A quinta crítica é aquela que o autor afirma que o pós-modernismo reserva a um de

seus mais fulminantes ataques, que é ao sujeito racional, livre, autônomo, centrado e

soberano da Modernidade. De acordo com Silva (2010), esse sujeito é correlativo do

privilégio concedido pela modernidade ao domínio da razão e da racionalidade. Para

Silva (2010, p. 113),

No quadro epistemológico traçado pelo pensamento moderno, o sujeito está soberanamente no controle de suas ações: ele é um agente livre e autônomo. O sujeito moderno é guiado unicamente por sua razão e por sua racionalidade. O sujeito moderno é fundamentalmente centrado: ele está no centro da ação social e sua consciência é o centro de suas próprias ações. O sujeito da Modernidade é unitário: sua consciência não admite divisões e contradições. Além disso, seguindo Descartes, ele é identitário: sua existência coincide com seu pensamento.

De acordo com o autor, a crítica pós-moderna se faz pela compreensão que o sujeito

não converge para um centro, supostamente coincidente com sua consciência. O que

se soma ao fato do sujeito ser fundamentalmente fragmentado e dividido. Para a

perspectiva pós-modernista, o sujeito não é o centro da ação social. Ou ainda, o sujeito

“[...] não pensa, fala ou produz: ele é pensado, falado e produzido. Ele é dirigido a partir

do exterior: pelas estruturas, pelas instituições, pelo discurso. Enfim, para o pós-

modernismo, o sujeito moderno é uma ficção” (SILVA, 2010, p. 113-114).

Além desses aspectos pontuados por Silva, podemos ainda apresentar duas objeções

dirigidas ao Iluminismo elaboradas por Taylor (apud DALBOSCO, 2008, p. 3):

[...] a primeira consiste em acusá-lo de defender uma perspectiva demasiadamente otimista de mundo e de sociedade, sustentada por uma filosofia da história linear e por um conceito retilíneo de progresso. A segunda objeção o acusa de estar amparado numa teoria simplificada da vontade humana, concebendo-a como orientada pela felicidade. Deste modo, a bondade e a maldade dependeriam da educação, do saber e do esclarecimento.

85

Diante desse breve panorama de questionamentos pós-modernos que vigoram na

produção educacional contemporânea, nossa pesquisa padeceria de falta de

legitimidade e atualidade. No entanto, a nosso ver, afirmar que o Iluminismo possuía

um ideário de composição uniforme não permite distinguir suas sutilezas, nuances e

complexidades.

Cabe-nos a partir daqui, recuperar e reconhecer a produção de alguns autores

buscaram responder, de alguma forma, a estas críticas. Portanto, nos dedicaremos a

apresentar os mais importantes argumentos por eles desenvolvidos.

AS LUZES E SEUS PRESSUPOSTOS

Um ponto de partida importante é reconhecer que o Iluminismo não foi um movimento

unitário, construído como programa e com posições homogêneas no que diz respeito as

suas concepções filosóficas e sociais. De acordo com Dalbosco (2008), a tensão crucial

existente no movimento por um lado estava entre a esperança em novidades

extraordinárias a serem geradas pelo poder da razão e da ciência e por outro lado se

localizava nas angústias de catástrofes naturais e sociais eminentes geradas pelo

progresso. Em relação às divergências do projeto das Luzes, afirma Todorov (2008, p.

14), que ele foi:

[...] conduzido por numerosos indivíduos que, longe de estarem de acordo entre si, estão constantemente engajados em ásperas discussões, de país a país e também em cada país. O tempo que decorreu desde então nos ajuda a fazer a triagem, é verdade, mas até certo ponto: os desacordos de outrora fizeram nascer escolas de pensamento que se enfrentam ainda em nossos dias. As Luzes foram uma época mais de debate do que de consenso; de assustadora multiplicidade, aliás. No entanto, é certo que reconhecemos sem muita dificuldade a existência do que se pode chamar de um projeto das Luzes.

Embora, não tenha sido um movimento com características homogêneas, o movimento

Iluminista emana de toda Europa e expressa uma vontade comum de um grupo de

86

pensadores, que manifestaram uma vontade comum por meio da filosofia, da política,

das artes, do romance ou da autobiografia. Esta vontade comum diz respeito iniciativa

de tomarem nas mãos o seu destino e colocarem o bem-estar da humanidade como

objetivo principal de seus atos.

De acordo com Todorov (2008), três ideias se encontram na base deste projeto: a ideia

da autonomia, da finalidade humana de nossos atos e da universalidade. A

conceituação destes pressupostos contribuirá para que possamos contextualizar a

produção rousseauniana. Mas antes sintetizo a explicação de Todorov sobre essas

ideias.

A autonomia consiste em privilegiar o que escolhemos e decidimos por nós mesmos em

detrimento daquilo que nos é imposto por uma autoridade externa. Neste contexto,

emancipação e autonomia são dois conceitos que designam os dois tempos igualmente

indispensáveis de um mesmo processo. Com o desenvolvimento da capacidade e da

liberdade de dispor de condições para examinar, questionar, criticar ou colocar em

dúvida nenhum dogma ou instituição é considerado sagrado ou inquestionável. O que

incide diretamente sobre o caráter de qualquer autoridade:

Esta [a autoridade] deve estar de acordo com os homens, isto é, ser natural e não sobrenatural. É nesse sentido que as Luzes produzem um mundo ‘desencantado’, obedecendo de ponta a ponta às mesmas leis físicas, ou, no que diz respeito às sociedades humanas, revelando os mesmos mecanismos de comportamento (TODOROV, 2008, p. 15)

Não é difícil imaginar que, a autoridade religiosa herdada do período medieval foi alvo

de críticas por parte dos teóricos iluministas. No entanto esta crítica é nuançada, não se

trata de uma crítica ao conteúdo das crenças, mas um desejo de deslocamento da

religiosidade do âmbito do Estado para o âmbito individual.

A história europeia moderna, do Renascimento até as Luzes, de Erasmo a Rousseau, é a da consolidação da separação entre as instituições públicas e tradições religiosas, e a do aumento da liberdade individual. [...]. Uns após outros, segmentos inteiros da sociedade reclamam a

87

retirada da tutela religiosa e o direito à autonomia (TODOROV, 2008, p. 68-69)

Com isso, vale, no entanto ressaltar que as Luzes não pregavam o ateísmo. Mas sim,

este foi um período em que houve um grande estímulo para uma atitude de tolerância e

de defesa a liberdade de consciência e manifestação religiosa.

Outro aspecto relevante em relação à autonomia é que ela não deve ser entendida

como auto-suficiência. Os homens nascem, vivem e morrem em sociedade; sem ela,

eles não seriam humanos. Todo ser humano é acometido por uma insuficiência

congênita, de uma incompletude, à qual busca preencher ao longo da vida por meio da

solicitação de afeto aos outros seres.

Nossa mais doce existência é relativa e coletiva, e nosso verdadeiro eu não está inteiramente em nós. Enfim, tal é a constituição do homem nesta vida, de modo que não conseguimos nunca gozá-la totalmente sem a colaboração de outrem10 (ROUSSEAU apud TODOROV, 2008, p. 53).

A segunda ideia que se encontra na base do projeto Iluminista é da finalidade humana

de nossos atos. Esta segunda base do projeto iluminista compreende que o ser

humano deve ser o centro das ações humanas, ou seja, a existência humana deixa de

ser um simples posto à serviço de um objetivo transcendental ou mais elevado, como a

salvação de sua alma ou o advento da cidade de Deus. A humanidade se torna

absoluta em relação às coisas não-humanas.

A autonomia sozinha não basta para descrever a maneira como as Luzes concebem o ideal da conduta humana. É melhor ser dirigido por sua própria vontade do que por uma regra vinda de fora, decerto, mas para ir aonde? Nem todas as vontades e ações são equivalentes. Ora, não se pode mais apelar ao céu para decidir quais são as boas e quais são as más, é preciso ater-se às realidades terrestres. Da finalidade longínqua – Deus – deve-se passar a uma finalidade mais próxima. Esta, proclama o pensamento das Luzes, é a própria humanidade. É

10

Todorov retirou este fragmento do livro Dialogues (1772-1777) de Jean-Jacques Rousseau, sem tradução para o

português.

88

bom o que serve para aumentar o bem-estar dos homens (TODOROV, 2008, p. 103).

E a qualidade que melhor representa este pressuposto de bem-estar dos homens é a

felicidade. O ideal religioso da salvação da alma é substituído pelo ideal de felicidade

humana. Em outras palavras, a felicidade humana (coletiva e individual) se torna, nas

Luzes, a finalidade das ações humanas.

Se a partir da ideia de autonomia e de finalidade humana, o indivíduo é convidado a se

despir das antigas tutelas medievais, seriam os indivíduos a partir de então,

irrestritamente livres? Por meio deste questionamento, ganha espaço o terceiro

elemento do tripé que compõe o projeto Iluminista que é a ideia de universalidade.

A ideia da universalidade consiste em afirmar que todos os seres humanos, possuem,

por sua própria natureza humana, direitos inalienáveis. De acordo com Todorov, as

Luzes absorvem esta compreensão por herança do pensamento do direito natural

moderno11, formulada e amplamente difundida nos séculos XVII e XVIII. De acordo com

este pensamento, ao lado dos direitos de que os cidadãos gozam no âmbito de sua

sociedade, eles possuem outros, comuns a todos os seres humanos e, portanto, a cada

um. E estes são direitos que embora não escritos, devem ser de conhecimento de

todos e por isso, imperativos. Em destaque estão: o direito à vida e o direito a

integridade corporal.

Sendo assim, por exemplo, a pena de morte é ilegítima, mesmo quando atinge um

criminoso que matou, já que o direito natural provoca ao perguntar: se o assassinato

privado é um crime, como o assassinato público deixaria de sê-lo? E todo ser humano

11

“É certo que o termo Direito Natural abrange uma elaboração doutrinária sobre o Direito que, no decorrer de sua

vigência muitissecular, apresentou — e apresenta — vertentes de reflexões muito variadas e diferenciadas, que não

permitem atribuir-lhe univocidade. Existem, no entanto, algumas notas que permitem identificar, no termo Direito

Natural, um paradigma de pensamento. Entre estas notas, que determinam o que uma doutrina do Direito Natural

normalmente considera merecedor de estudo, podem ser destacadas: a ideia de imutabilidade — que presume

princípios que, por uma razão ou outra, escapam à história e, por isso, podem ser vistos como intemporais; a ideia de

universalidade destes princípios metatemporais, ‘diffusa In omnes’, nas palavras de Cícero; e aos quais os homens

têm acesso através da razão, da intuição ou da revelação. Por isso, os princípios do Direito Natural são dados, e não

postos por convenção. Daí, a ideia de que a função primordial do Direito não é comandar, mas sim qualificar como

boa e justa ou má e injusta uma conduta, pois, para retomar o texto clássico de Cícero, a "vera lex" — "ratio naturae

congruens" —, por estar difundida entre todos, por ser "constans" e "sempiterna", "vocet ad officium jubendo,

vetendo a fraude deterreat". Essa qualificação promove uma contínua vinculação entre norma e valor e, portanto,

uma permanente aproximação entre Direito e Moral (LAFER, 1988, p. 35-36).

89

tem direito à integridade de seu corpo, tornando assim a tortura, mesmo que praticada

pelo Estado como ilegítima. Em suma, “Pena de morte e tortura constituem, então, uma

rejeição da universalidade que reivindicam as Luzes. Os desvios de que ela mesma é

objeto consistem numa ruptura do equilíbrio entre universal e particular, entre unificação

e tolerância” (TODOROV, 2008, p. 126).

O reconhecimento destes direitos do homem são os pressupostos para o exercício da

liberdade. Por sua vez, todos os seres humanos possuem um conjunto de direitos

idênticos, ou seja, são iguais em direitos, o que faz concluirmos que a demanda da

igualdade decorre da universalidade.

A partir da ideia de universalidade, o pertencimento ao gênero humano, à humanidade

universal, se torna mais fundamental do que o pertencimento a determinada sociedade.

A universalidade extrapola as fronteiras territoriais, assim todos os habitantes de um

país devem ser seus cidadãos; todos os habitantes da Terra são de pronto, seres

humanos.

Diante dessa síntese, pergunto: como Rousseau se posicionou diante dessas

questões? Dalbosco (2008) nos oferece elementos sobre aquilo que poderíamos

chamar do Iluminismo de Rousseau. De acordo com o autor, o filósofo de Genebra

possui em sua filosofia duas características, as quais ele denomina primitivista e

dialético da razão.

A PARTICULARIDADE DO ILUMINISMO DE ROUSSEAU

A primeira faceta é atribuída pela nostalgia de Rousseau em relação ao seu estado

natural, que para alguns pode ser compreendido como uma defesa do autor ao retorno

deste período. Deste modo, desenhou-se o mito em torno de seu pensamento

aclamando-o como o autor da teoria do bom selvagem, pautado em seu argumento

sobre a bondade natural.

No entanto, Dalbosco (2008) problematiza que a presença do primitivismo no

pensamento de Rousseau não nos convoca a um “querer voltar atrás”, mas ao

90

questionar os rumos da civilização marcada pelo uso abusivo de determinado

procedimento racional e do desenvolvimento técnico-científico dele resultante. Para o

autor, grande parte da originalidade de Rousseau está no questionamento da união até

então indissolúvel para alguns iluministas, entre o desenvolvimento da moral e o

progresso da cultura.

Outra característica apontada por Dalbosco (2008, p. 5) é aquela em que Rousseau é

compreendido com um dialético da razão. O autor pondera que o modo que ele toma o

termo dialético da razão “[...] expressa, primeiramente e em sentido mais amplo, a ideia

de que não há um único modelo de racionalidade que pudesse seguir retilineamente

numa única direção”. Embora o autor reconheça a maneira simples pela qual toma o

termo, ele o faz para em seguida expressar como essa dialética se apresentou no

pensamento de Rousseau:

No contexto do pensamento de Rousseau a dialética da razão se expressa como capacidade de aprender a pensar em forma de paradoxos e isso não significa outra coisa senão desenvolver a capacidade reflexiva de perceber as tensões e conflitos inerentes à vida humana e social e buscar contorná-los da melhor forma possível. Ela põe-lhe a exigência de conceber o ser humano e suas ações de modo amplo, considerando seus sentimentos, suas paixões e afetos também como constitutivos de seu agir racional (DALBOSCO, 2008, p. 6).

Ainda na esteira de reconhecer as particularidades do Iluminismo de Rousseau, a partir

daqui pretendo indicar qual relação Rousseau estabeleceu com os pressupostos

iluministas, apontados por Todorov (2008). Em relação ao primeiro pressuposto, a

autonomia, Rousseau foi um algoz defensor.

Todorov (2008) afirma que, na produção de Rousseau, grande ênfase é dada a questão

da autoridade, principalmente quando a mesma é discutida na obra Contrato Social. Na

obra, o autor desenvolve o argumento de que a autoridade deve estar baseada na

vontade do povo. Para tanto, este processo não é simples. Até porque, Rousseau

sugere que às vezes o povo pode enganar-se a respeito de seus próprios interesses,

ou pode não discernir com clareza onde eles se situam, e permitir assim a imposição de

regras e procedimentos que lhe são prejudiciais ou que lhe implicam mera subjugação.

91

Por isso, a argumentação de Rousseau, nos contribui a pensar que o processo de

aquisição de autonomia exige anteriormente esclarecimento.

Fazendo uso de sua capacidade e liberdade de colocar em dúvida dogmas ou

instituições consideradas sagradas ou inquestionáveis, ou seja, exercendo sua

autonomia de pensamento, Rousseau levantou argumentos em seus dois discursos

sobre a teoria da bondade natural dos homens, que por consequência eram

incompatíveis à doutrina do pecado original. Pois, se as pessoas não são marcadas

pelo pecado original, então elas não precisam de um redentor sobrenatural para

transformá-las em pessoas puras, felizes e aceitáveis diante dos olhos de Deus; elas

somente precisam das instituições sociais certas para cultivar sua bondade natural. E,

portanto, eram sem importância, o sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo.

No entanto, como homem de seu tempo, Rousseau não negava a existência de Deus

(TODOROV, 2008).

Mas, por meio de sua argumentação Rousseau travava um embate com a organização

religiosa que possuía status de Estado, a Igreja católica. Para eles o significado da vida

e da morte de Cristo estava na doutrina do pecado original e as ideias de Rousseau

feriam esta doutrina e possuía correspondência com um movimento combatido pela

Igreja Católica enfaticamente, o pelagismo12.

Outro aspecto em relação à autonomia, como apontamos anteriormente, se ela não

deve ser entendida como auto-suficiência, para Rousseau ela tampouco deve ser

entendida como interdependência absoluta entre os seres. Ele ressaltava que os

homens não deviam viver apenas em função de outrem, negligenciando o ser,

preocupando-se somente com o parecer, fazendo da exposição em público seu único

objetivo. Em seu segundo discurso, aborda o processo de desenvolvimento do estágio

primitivo para o estágio social, de acordo com Rousseau neste estágio:

12

Fundador do pelagismo no século V, Monge Pelágio argumentou que a doutrina do pecado original era

incompatível com a justiça divina, pois um Deus justo não puniria as pessoas por pecados que na puderam evitar

serem cometidos. Para Pelágio, o pecado original parecia corroer a ideia de livre-arbitrio; se as pessoas não podem

evitar cometer pecados, então elas são totalmente livres para escolher como viver e, consequentemente, merecer a

salvação. Deste modo, se a ideia doutrina do pecado original fosse verídica, ela seria incompatível com a ideia de um

Deus Justo (SIMPSON, 2009).

92

Foi necessário, para a própria conveniência, mostrar-se diferente do que de fato se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente distintas; e desta distinção saíram o fausto majestoso, a astúcia enganadora, e todos os vícios que lhes servem de cortejo (ROUSSEAU, 1965, p. 186).

A imagem de uma auto-suficiência do indivíduo já representa o momento de corrupção

social no qual a vaidade e o exibicionismo são seus produtos. Rousseau

problematizava a noção de autonomia levada a esse extremo de independência e

mesmo tentativa de estar acima das demais pessoas. Ao contrário de muitos libertinos

de sua época, afirma Todorov (2008, p. 109) que Rousseau opõe-se àqueles que

festejam irrestritamente a ideia de autonomia, como auto-suficiência:

Primeiro por que ele não consegue imaginar que uma sociedade possa escapar de toda regulação de forças e das vontades de seus membros: ‘Ensina-me então em qual crime pára aquele que não tem por leis senão os desejos de seu coração, e não consegue resistir a nada que deseje?’ Principalmente, Rousseau não ignora que a auto-suficiência do indivíduo é uma armadilha. ‘Todos sentirão que a felicidade não está neles mesmos, mas depende de tudo que os cerca’.

A segunda ideia que se encontra na base do projeto Iluminista é da finalidade humana

de nossos atos, em relação a esta ideia uma máxima possível seria: “É bom o que

serve para aumentar o bem-estar dos homens”. E uma palavra que no contexto do

Iluminismo sintetiza a ideia de bem-estar humano na Terra é a felicidade. Deste modo,

o ser humano se torna o horizonte de nossa atividade, o ponto de convergência das

ações humanas.

Em seu primeiro discurso, Rousseau argumenta que o progresso da alta cultura havia

deixado a civilização europeia menos feliz e menos orientada em termos morais. Não

ingenuamente, Rousseau reconhece que uma ideia de progresso irrestrito poderia

resvalar na qualidade da existência humana, já que de acordo com ele, o progresso da

ciência e das artes não havia contribuído para criação de hábitos e costumes melhores,

ao contrário, para ele sempre que houve o avanço das ciências e das artes,

paralelamente ocorreu uma corrupção da moral.

93

Como já abordamos, quando apresentamos as ideias centrais que compõe o primeiro

Discurso, Rousseau aponta que se no primeiro estágio da humanidade, o estágio da

bondade natural, uma característica que preponderava entre os humanos era o

sentimento de amor de si e da piedade que os uniam, após a corrupção deste estágio

se deu o desenvolvimento degenerado das sociedades, trazendo consigo infortúnios

morais. Com a entrada na história, os sentimentos de amor de si e piedade foram

substituídos por uma faculdade corrupta, o amor-próprio. Esta transfiguração repercute

no ideal de felicidade humana que é objetivo maior das ações humanas, visto que,

diante desta degeneração dos sentimentos, a humanidade passou a conviver com a

vaidade e comparação e são estes sentimentos despertos após a entrada na sociedade

que Rousseau procurará criticar e combater com seu projeto de educação natural, no

livro Emílio, como veremos adiante.

O terceiro aspecto levantado por Todorov (2008) é o da universalidade, que está

pautado na ideia que todos os homens nascem iguais e têm, por conseguinte, direito a

mesma dignidade. Este pressuposto motivou Rousseau a desenvolver o argumento de

seu segundo Discurso. Como já vimos, nesta obra o autor negava a ideia que os seres

humanos são inerentemente maus e passa a investigar aquilo que os levou do estágio

natural a produção das desigualdades.

Assim percebemos que Rousseau partia de um entendimento universal sobre a

humanidade, um pressuposto a priori, uma condição inicial comum à toda humanidade.

Ao pensar uma alternativa para dissolução das desigualdades, no livro Contrato Social,

ele propõe um pacto social no qual todos os cidadãos possam se engajar no projeto de

sociedade com as mesmas condições e gozando dos mesmos direitos.

Ainda dialogando com a ideia de universalidade em seu Contrato, no tópico IV do

primeiro livro ele aborda o tema da escravidão, afirmando que:

Uma vez que homem nenhum possui autoridade natural sobre seu semelhante, e pois que a força não produz nenhum direito, restam pois as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens [...]. Dizer que um homem se dá gratuitamente é dizer coisa absurda ou inconcebível; um tal ato ilegítimo e nulo, pelo simples fato de não se achar de posse de seu juízo quem isto comete. Dizer a mesma coisa de

94

todo um povo é supor um povo de loucos: a loucura não faz direito (ROUSSEAU, 1965, p. 25).

Por considerar a liberdade um pressuposto universal humano, Rousseau e outros

filósofos de seu tempo, eram opositores da escravidão, como afirma Todorov (2008, p.

119):

Os pensadores das Luzes condenam a escravidão, mesmo que não se engajem numa luta eficaz contra ela. ‘A escravidão é tão oposta ao direito civil quanto ao direito natural’, declara Montesquieu. Rousseau varre de uma vez só todas as constantes justificativas à manutenção dessa prática. ‘Essas palavras, escravidão e direito, são contraditórias; elas se excluem mutuamente’. Condorcet entabula suas Reflexões sobre a escravidão dos negros (que ele assina sob o pseudônimo ‘M. Schwartz’) por essas palavras: ‘Reduzir um homem à escravidão, comprá-lo, vendê-lo, mantê-lo na servidão são verdadeiros crimes, e crimes piores do que o roubo’.

Atos como a escravidão, a pena de morte e a tortura ferem a ocorrência da igualdade

que é condição inicial para a demanda da universalidade. O reconhecimento destes

direitos dos seres humanos virá mais tarde a influenciar o movimento que Rousseau é

reconhecido com um dos maiores influenciadores, a Revolução Francesa.

Com esses argumentos, evidenciamos que Rousseau pertencia ao movimento

iluminista, mesmo que, em alguns momentos, ele confira aos ideais de seu tempo

sentidos muito peculiares. Portanto, aquilo que Dalbosco chama “o iluminismo de

Rousseau” ratifica o argumento de Todorov. O Iluminismo como movimento filosófico

possuía convergências e alguns eixos comuns, mas, de modo algum, foi tão

homogêneo como se pensa.

95

CAPÍTULO 3

EMÍLIO OU DA EDUCAÇÃO: OS CONTORNOS DA OBRA

Este terceiro capítulo tem como objetivo trabalhar traços gerais da obra “Emílio ou da

Educação” de modo a evidenciar a concepção de educação rousseauniana. Deste

modo, situamos o contexto de publicação desta obra por meio do diálogo que este livro

estabeleceu com obras antecedentes do próprio Rousseau e de outros autores.

Discorremos sobre os fundamentos que embasam a organização da obra, assim como

a situação fictícia criada pelo filósofo genebrino: quem é Emílio, quem é o seu preceptor

e seus pressupostos educacionais.

Além disso, indicamos as características gerais de cada um dos livros (capítulos) que

compõe a obra, com especial destaque para os dois primeiros. Com trabalho

desenvolvido neste capítulo, criamos um solo mais adequado que permita um mergulho

posterior no nosso objeto específico de análise.

O CONTEXTO DA PUBLICAÇÃO DO EMÍLIO

No capítulo anterior, vimos que, antes mesmo da publicação em 1762 do Emílio ou da

educação, o tema da formação humana já aparecia nos escritos de Rousseau. Já em

seu primeiro discurso – sua primeira obra de teor filosófico – Rousseau aborda este

tema que permeia sua produção filosófica subsequente e que é coroado no Emílio.

Nessa sua primeira obra, o autor afirma que com o desenvolvimento das ciências e das

artes, as pessoas se sentiram encorajadas a se preocuparem com coisas menos

importantes, ignorando o que é realmente significativo. Com isso, ele afirma que, após

algum tempo, essa mesquinharia passa a ser cultivada e ensinada, tornando-se por

consequência o objetivo da educação:

96

Vejo por toda parte imensos estabelecimentos em que, com grandes gastos, se instrui a juventude, ensinando-lhes todas as coisas, menos os seus deveres. Vossos filhos ignoram o próprio idioma, mas falarão outros que não estão em uso em nenhuma parte; saberão compor versos que mal compreenderão; não distinguindo o erro da verdade, possuirão a arte de os tornar conhecidos aos demais, através de argumentos especiosos; mas não compreenderão o significado das palavras magnanimidade, equidade, temperança, humanidade, coragem; o doce nome da pátria jamais soará em seus ouvidos [...] (ROUSSEAU, 1965, p. 225-226).

Como já afirmamos no capítulo anterior, do ponto de vista teórico, o livro Emílio é um

aprofundamento da argumentação realizada por Rousseau no Segundo Discurso.

Como mencionado, nesta obra seu objetivo foi mostrar como as mudanças

proporcionadas pelo progresso agiram sob o homem natural causando a corrupção de

sua moral e que os vícios adquiridos pelo coração humano não são naturais a ele, mas

sim fruto de uma sucessiva corrupção da bondade original. No Emílio, Rousseau

continua sua argumentação de que o ser humano é naturalmente bom. Porém, ambas

as obras descrevem um processo de mudança e desenvolvimento do caráter humano;

nesta última, ele explica este desenvolvimento tendo como referência seu único aluno,

deste modo:

[...] a relação entre os dois trabalhos é aproximadamente a mesma daquela entre as ciências da biologia evolucionária e a embriologia. Algumas pessoas explicam as coisas analisando a origem de todas as espécies, enquanto outras explicam as mesmas coisas analisando o desenvolvimento dos indivíduos. A óbvia diferença metodológica entre essas ciências e a teoria de Rousseau é que ele concebeu que o discurso evolucionário era simplesmente conjectural e o indivíduo Emílio era ficcional (SIMPSON, 2009, p. 149).

Se até aqui estabelecemos uma relação entre as duas primeiras obras filosóficas de

Rousseau, o Contrato Social é uma obra que tem continuidade no Emílio. Além das

duas obras terem sido publicadas no mesmo ano – 1762 –, como já exposto, sua

proximidade está também no aspecto que o projeto educacional proposto ao Emílio é

conduzido para que ele possa, enfim, viver em uma sociedade regida pelo contrato,

como apontam alguns autores.

97

Paiva (2007b) reitera este argumento ao afirmar que, no Segundo Discurso, temos uma

hipótese elaborada, no Contrato, o plano utópico; por sua vez, no Emílio, há a

possibilidade que conduz de um plano a outro. Assim afirma o autor:

Não é à toa que o resumo do Contrato Social se encontra no Emílio e faz parte das lições que o jovem Emílio deve receber para poder bem julgar os governos, participar de sua comunidade e ser útil a coletividade (PAIVA, 2007b, p. 166).

Sobre o trecho do Contrato que se encontra no Emílio, também reitera Simpson (2009)

que, já no final da efetivação do projeto educacional de seu aluno fictício, Rousseau

relembra-o de seus compromissos como cidadão. No entanto, o autor pondera que este

trecho tem contribuído para alguns equívocos na leitura da obra:

[...] pois o ápice da educação de Emílio no livro V é que ele é ensinado como ser cidadão e ainda lhe é fornecida uma versão condensada de O contrato social para ensinar-lhe os deveres cívicos. Isso tem levado muitos acadêmicos a acreditar que o objetivo da sua educação é criar um ‘homem civil’ e até argumentar que a sociedade civil, descrita em O contrato social, seria uma comunidade de pessoas como Emílio. Esse assunto é extremamente confuso, e não é somente uma questão de como os dois trabalhos funcionam juntos; ele levanta também questões sobre o significado do próprio Emílio (SIMPSON, 2009, p. 154).

O Emílio consiste em uma obra extensa, escrita na fase da maturidade intelectual de

Rousseau; trata-se de uma reunião de textos que versam sobre o projeto de formação

de um aluno fictício, um órfão chamado Emílio, que é colocado sob os cuidados de um

preceptor, Jean-Jacques. Paiva (2007a) assevera que, mesmo com esses elementos

de ficção, o livro não é uma obra de abstração literária, mas sim uma obra filosófica,

que se centra a pensar profundamente a existência e a formação humana:

Em vez de vaguear ao sabor de loucas aventuras, o preceptor prefere abrir o caminho das empiricidades para criar o sentido da existência e dialogar com o real a fim de estabelecer o estatuto da ação formativo: arte que encampa um plano global de construção das identidades, tanto

98

individual como coletivas, com o intuito de propiciar a felicidade da espécie humana, ou seja, o bem-estar geral do homem (PAIVA, 2007b, p. 325).

Trataremos mais adiante da alternativa rousseauniana de utilizar um aluno fictício para

elaborar e desenvolver seus preceitos educacionais. Cabe-nos, ainda, indicar que essa

obra é composta de cinco livros, no qual o autor detalha o processo formativo-

educacional deste aluno, pensando seu desenvolvimento cognitivo-moral em diferentes

fases e idades e elencando para cada uma delas situações e necessidades específicas.

O texto do Emílio compreende um grande projeto de formação com vistas a propor uma

reformulação ao processo de educabilidade do homem, de sua autoconstrução e de

sua inserção na sociedade (PAIVA, 2007a). Por um lado, na obra é possível reconhecer

uma grande valorização da natureza, vista como fonte legítima da virtude e da

felicidade, e denominada como o primeiro mestre no processo de socialização humano.

Rousseau chega a aconselhar: “Observai a natureza e segui a rota que ela vos traça”

(ROUSSEAU, 2004, p. 24). Por outro lado, este projeto deseja formar um membro da

sociedade, ativo e que cumpre seus deveres como cidadão. Portanto, afirma Paiva

(2007b, p. 166):

[...] na teoria formacional rousseauniana está implícito um projeto de desenvolvimento de uma nova sociedade política. Não é à toa que o resumo do Contrato Social se encontra no Emílio e faz parte das lições que o jovem Emílio deve receber para poder bem julgar os governos, participar de sua comunidade e ser útil à coletividade.

De acordo com Paiva (2007b), o século XVIII foi um período de grande efervescência

em torno das questões relativas à pedagogia. Anteriormente a publicação do Emílio,

Charles Rollin, que foi reitor da Universidade de Paris e professor do colégio real,

publicou o livro Tratado dos estudos no qual já demonstrava uma preocupação com a

pedagogia praticada pelos jesuítas, procurando estabelecer uma crítica aos seus

métodos e conteúdos. Esta crítica já havia sido inaugurada no século anterior, pela

Didática Magna de Comenius, publicada em 1657. Esta obra é considerada como o

primeiro tratado sistemático de pedagogia e didática. Nela, o pedagogo nascido na

99

Morávia13 posicionou-se em defesa de uma educação para todos, abordou processos

intuitivos de aprendizagem, bem como da arte de ensinar tudo a todos, por meio de seu

método inovador e baseado nos princípios da natureza.

Podemos afirmar que a Didática Magna antecipou algumas questões presentes no

Emílio. No entanto, ressalva Paiva (2007b), faltou às publicações do século XVI e XVII

o impacto que produziu a obra rousseauniana. Como fruto do movimento renascentista

e do seu consequente realismo-humanista, a Didática, assim como outras desse

período, estava carregada de conceitos religiosos e suas prescrições resumiam-se “[...]

numa rotina formal de preparação do aristocrata ou do devoto fervoroso” (PAIVA,

2007b, p. 164).

Na análise realizada por Boto (2002), na qual ela dialoga com partes do repertório da

história das ideias pedagógicas, tendo como referência a reflexão bibliográfica corrente

no campo da história da Filosofia da Educação, a autora afirma que os estudos sobre a

criança nos moldes que hoje conhecemos ocorrem a partir do pensamento

renascentista, destacadamente na figura de Comenius. Sob essa influência, elaboram-

se aspectos da pedagogia jesuítica. De acordo com a autora, as contribuições mais

relevantes ao pensamento pedagógico nos séculos XVII e XVIII, são dos dois teóricos

clássicos: Comenius e Rousseau.

O Emílio de Rousseau é uma obra que inaugura uma nova perspectiva de publicações

pedagógicas. Nela o autor denuncia o descaso de sua época à figura da criança, critica

o modelo educacional veiculado pelos colégios religiosos de seu tempo e, ainda,

descreve a condição da criança. Assim, dado o seu ineditismo, esta obra “[...] surge,

pois, como um dos principais relatos fundadores da modernidade educativa” (BOTO,

2010, p. 211). O reconhecimento deste ineditismo se reforça diante da compreensão de

infância que vigorava no final do século XVII e início do século XVIII:

É importante lembrar que, à época, a partir dos sete anos de idade, a pessoa deixava de ser considerada criança. Dos sete até os doze ou

13

Jan Amos Komenský (em latim, Comenius e, em português, Comênio) nasceu em 28 de março de 1592, na cidade

de Uherský Brod (ou Nivnitz), na Morávia, Europa central, região que pertencia ao antigo Reino da Boêmia e hoje

integra a República Checa. Viveu e estudou na Alemanha e na Polônia (NARADOWSKI, 2004).

100

treze anos, vive-se a puerilidade, etapa que não era compreendida como uma segunda fase da infância. Não se chamavam crianças aquelas que houvessem completado sete anos. Essa era a idade da vida prevista para indicar o término do período infantil. O próprio termo infans – do latim – identificaria o ser incapaz de falar. Aos sete anos, a fala é fluente do ponto de vista da articulação e repertório. Daí a suposição de que a infância abarcaria apenas os primeiros sete anos de vida (BOTO, 2010, p. 214).

Em Rousseau, há uma expansão do período que até então abarcava a infância, ela é

esticada para além dos sete anos; o filósofo enfatiza que, a partir daí, há a necessidade

de fazer interagir a acepção de infans e de puer, inaugurando o que Boto (2010)

denomina de puerícia infantil. No início do Livro II, do Emílio, Rousseau afirma

Eis a segunda fase da vida, aquela onde acaba propriamente a infância, pois as palavras infans e puer não são sinônimas. A primeira está contida na segunda e significa quem não pode falar; daí em Valério Máximo encontrarmos puerum infantem. Mas continuo a me servir dessa palavra [enfant, ou criança em francês] segundo o costume de nossa língua, até a idade para qual ela possui outros nomes (ROUSSEAU, 2004, p. 69).

Ocorre assim, a partir de Rousseau, aquilo que Streck (2008) denomina de “guinada

antropológica na compreensão de educação”, já que a partir de então ensinar e

aprender passam a ser compreendidos e explicados em termos acessíveis a uma

cultura que não é mais definida a partir de dogmas e conceitos teológicos. De acordo

com o autor, Rousseau “[...] fecha um processo que havia começado com a Didática

Magna de Comenius e tem continuidade no ensaio Alguns pensamentos sobre

educação de John Locke” (STRECK, 2008, p. 22).

Para o autor, com a publicação do Emílio engendra-se a compreensão de que pensar a

educação implica colocar a criança ou o educando como o centro do processo de

aprendizagem. Não se trata mais de organizar o conhecimento de forma a se adaptar

melhor à mente da criança, como era preocupação em Comenius ou Locke. Também

não faz mais sentido estabelecer regras detalhadas como na Ratio Studiorum dos

101

jesuítas14. A novidade se localiza em ter a própria criança como critério e medida do

aprender:

Essa fé na capacidade humana implica uma nova postura diante do processo educativo. Para Rousseau, mais importante do que analisar e detalhar as ‘matérias’ a serem ensinadas é observar e estudar as crianças. Vamos encontrá-lo estudando os tipos de choro, observando suas brincadeiras, sua linguagem ou os modos de raciocínio em diferentes fases de seu crescimento. Inicia-se com Rousseau o estudo sistemático da infância como parte do estudo do homem, e várias correntes psicológicas e sociológicas modernas podem reclamá-lo como precursor (STRECK, 2008, p. 24).

Essa fé na capacidade humana pode ser retratada no trecho do Livro I do Emílio, em

que expõe seu entendimento que o processo educacional é imprevisível, dada a

potencialidade contingente do humano, deste modo afirma Rousseau (2004, p. 48):

Conhecemos, pois, ou podemos conhecer o primeiro ponto de onde cada um de nós parte para chegar ao grau comum de entendimento; mas quem conhece a outra extremidade? Cada qual avança mais ou menos segundo seu gênio, seu gosto, suas necessidades, seus talentos, seu zelo e as oportunidades que tem para se entregar a ele. Que eu saiba, nenhum filósofo até agora foi suficientemente ousado para dizer: eis o termo aonde o homem pode chegar e que não seria capaz de ultrapassar. Ignoramos o que nossa natureza nos permite ser; nenhum de nós mediu a distância que pode haver entre um homem e outro homem.

Na obra, é possível também encontrar informações valiosas sobre o desenvolvimento

cognitivo e moral da criança, suas teses ressaltam insistentemente, a importância de

que a criança seja vista com suas especificidades e não como uma simples projeção do

adulto. Por meio de afirmações como estas, Rousseau é considerado como o inventor

do conceito moderno de infância, mesmo que, evidentemente não no sentido abordado

14

As origens do Ratio Studiorum remontam à atuação da Companhia de Jesus e representam um Plano de Estudos da

Companhia de Jesus, “[...] constituído por um conjunto de regras cobrindo todas as atividades dos agentes

diretamente ligados ao ensino” (SAVIANI, 2007, p. 55). Era um plano adotado por todos os jesuítas, não importando

o lugar onde estivessem, e se baseava naquilo que passou a ser conhecido como pedagogia tradicional (SAVIANI,

2007).

102

mais tarde, no século XX, no âmbito da psicologia do desenvolvimento infantil ou da

sociologia da infância, por exemplo. No entanto, Dalbosco (2007) afirma que o conceito

de infância rousseauniano é fruto da modernidade porque mesmo sem poder contar

com uma ‘ciência desenvolvida’ do mundo infantil, seus escritos antecipam de forma

romanceada e intuitiva, muitas teses e princípios que mais tarde a psicologia e a

sociologia elaborarão sobre a infância.

E se Rousseau não formulou sistematicamente uma teoria da infância, ele ofereceu ao

menos, contribuições detalhadas sobre problemas relacionados ao mundo da criança e

de seu processo de socialização. Sua originalidade torna-se ainda mais clara, se

comparada com aquelas ideias dominantes sobre o conceito de infância de sua época.

De acordo com Dalbosco (2007), muito do que se preservou até o século XVIII sobre a

compreensão de infância refere-se a uma longa tradição que remonta ao menos até a

filosofia antiga, mais precisamente até o pensamento de Platão. Nesta direção, afirma

Manacorda (1996, p. 242):

Sem dúvida, Rousseau revolucionou totalmente a abordagem da pedagogia, privilegiando a abordagem que chamarei ‘antropológica’ isto é, focalizando o sujeito, a criança ou o homem, e dando um golpe feroz na abordagem ‘epistemológica’, centrada na reclassificação do saber e na sua transmissão à criança como um todo já pronto. Pela primeira vez, ele enfrenta com clareza o problema, focalizando-o ‘do lado da criança’, considerada não somente como homem in fieri, mas propriamente criança, ser perfeito em si.

QUEM É EMÍLIO E QUEM É O SEU PRECEPTOR

O livro Emílio ou da educação trata-se de uma narrativa que dar a ver a constituição de

princípios que constituem a infância. Como mencionamos antes, Jean-Jacques

Rousseau faz a opção de apresentar e discutir seus princípios filosóficos políticos e

educacionais por meio do auxílio da criação de um aluno fictício, o que examinaremos a

partir daqui. O Emílio é um menino inventado, um aluno que Rousseau criou com a

intenção de esquadrinhar, do ponto de vista teórico, o substrato do ser criança:

103

Assim, tomei partido de tomar um aluno imaginário, de supor em mim a idade, a saúde, os conhecimentos e todos os talentos convenientes para trabalhar em sua educação conduzi-la desde o momento do seu nascimento até que, já homem, já não precise de outro guia que não ele mesmo. Este método me parece útil para impedir que um autor que desconfia de si se perca em visões; pois, a partir do momento em que se afasta da prática ordinária, ele só tem de dar provas do valor de sua prática em seu aluno, e logo sentirá, ou o leitor sentirá por ele, se está seguindo o progresso da infância e marcha natural do coração humano (ROUSSEAU, 2004, p. 29).

O que Rousseau chama de método, Boto (2010) denomina categoria operatória. Para a

autora, ao criar seu aluno, o filósofo genebrino não pretendia confundi-lo com uma

criança histórica, ele é um relato, uma metáfora, uma suposição que reitera sua

hipótese anterior, sobre o estado de natureza. Ao nascer, Emílio é uma expressão

legítima da bondade natural existente no homem, na qual Rousseau estabelece uma

analogia entre o homem em seu estado de natureza e os primeiros anos de vida da

criança. E o seu projeto educacional é uma elaboração pensada como alternativa para

mudança que ocorrerá ao longo de sua vida e que o tornará um homem social.

[...] o menino Emílio não existe, não existiu e não foi pensado para existir. Trata-se de um artifício lógico-dedutivo para meditar sobre educação e sobre as orientações de ensino. Rousseau constrói a temporalidade da vida do Emílio como uma ficção; jamais se teria proposto a aplicá-la. Por decorrência, todo o teor normativo da obra deverá ser palmilhado mediante ponderações da razão, como se de uma metáfora tratasse. Emílio não é história do passado; não é projeto de futuro. Emílio é alegoria para reflexão sobre o ato de educar as crianças. Não tem história; mas, por ocupar-se da virtude, tem compromisso com alguma verdade: verdade da essência; verdade universal; verdade contida na acepção primeira da condição de Humanidade (BOTO, 2003, p. 9).

Com a invenção do Emílio, Rousseau desafia – pela conjectura de seu tempo – todos

os modelos de ensino até então vigentes: dos colégios à preceptoria doméstica. Emílio

não será ensinado no ambiente familiar e tampouco não conviverá com o modelo da

educação coletiva dos colégios. O Emílio por tudo isso é um ser exemplar: “[...] trata-se

104

de um conceito metodológico ou, nas palavras de seu criador, ‘um modelo a ser

proposto’ – um ideal regulador” (BOTO, 2010, p. 217).

Seu criador realiza um relato da trajetória de vida deste ser individual estabelecendo

uma relação entre suas diferentes fases de aprendizagem e desenvolvimento e as

etapas trilhadas pela espécie humana em direção à civilização. Visto assim, o Emílio,

ao nascer, é o homem do estado de natureza e o Emílio ao final de seu projeto de

educação, aos vinte e cinco anos é o homem civil, que vive em uma sociedade

corrompida, mas a despeito disso, está preparado para viver na sociedade do contrato

social.

Nas páginas iniciais do livro I, Rousseau apresenta diferentes características de seu

aluno imaginário. Embora ele afirme que se pudesse escolhê-lo escolheria um “espírito

comum”, ele estabelece um modelo ideal, no qual apresenta sua região de nascimento,

seu aspecto de saúde, sua condição social e sua origem familiar:

[...] se pretendo que meu aluno seja um habitante da Terra, eu o escolherei numa zona temperada; na França, por exemplo, mais do que em outro lugar (ROUSSEAU, 2004, p. 32)

Escolhamos, pois, um rico; pelo menos estaremos certos de ter feito um homem a mais, ao passo que um pobre pode tornar-se homem por si mesmo (ROUSSEAU, 2004, p. 33)

Emílio é órfão. Não importa que tenha pai e mãe. Encarregado dos deveres deles, herdo todos os seus direitos. Deve honrar seus pais, mas só a mim deve obedecer. É a minha primeira, ou melhor, minha única condição (ROUSSEAU, 2004, p. 33).

Quem se encarrega de um aluno doente e malsão troca sua profissão de preceptor pela de enfermeiro; cuidando de uma vida inútil, perde o tempo que destinava a valorizá-la; expõe-se a ver uma mãe, aos prantos, censurá-lo pela morte de um filho que ele terá conservado durante muito tempo.

Não me encarregarei de uma criança doente e cacoquima, mesmo que ela viva oitenta anos. Não quero um aluno sempre inútil para si mesmo e para os outros, preocupado unicamente com sua própria conservação e cujo corpo atrapalhe a educação da alma (ROUSSEAU, 2004, p. 34).

105

A partir destes fragmentos, percebemos que Rousseau assume para sua proposta de

formação um aluno que possui, em grau superlativo, as qualidades positivas de sua

espécie ou a solução perfeita para a viabilização de seu método, ou seja, delineia seu

aluno com traços peculiares, os quais ele considera os mais favoráveis para a

intervenção do preceptor. Rousseau utilizou esta idealização como um artifício para

pensar questões consideradas por ele como essenciais no projeto de formação de um

ser humano. Para tanto, afastou aquelas características que ele considerou

interferentes neste seu projeto, assim, seu aluno ideal é um aluno nascido na França,

um aluno rico; um aluno órfão e saudável. E para cada uma destes traços ele cria uma

argumentação explicativa. No que diz respeito à opção pelo local de nascimento de seu

aluno ideal, Rousseau justifica:

A região não é indiferente à cultura dos homens; eles só são tudo o que podem ser nos climas temperados. Nos climas extremos a desvantagem é visível. Um homem não é plantado num lugar, como uma árvore, para nele permanecer para sempre, e quem parte de um dos extremos para chegar ao outro é obrigado a percorrer o dobro do caminho percorrido por alguém que, para chegar ao mesmo lugar, parta do termo médio.

[...]

Um francês vive na Guiné e na Lapônia, mas um negro não viverá igualmente em Tornea, nem um samoiedo em Benin. Parece também que a organização do cérebro é menos perfeita nos dois extremos. Nem os negros nem os lapões têm a inteligência dos europeus. Assim, se pretendo que meu aluno seja um habitante da Terra, eu o escolherei numa zona temperada, na França, por exemplo, mais do que em outro lugar (ROUSSEAU, 2004, p. 32).

No que se refere à escolha pela posição sócio-econômica, de seu aluno, Rousseau

também justifica:

O pobre não precisa de educação; a de sua condição é obrigatória, não poderia ter outra. Pelo contrário, a educação do rico recebe por sua condição é a que menos lhe convém, tanto para ele mesmo quanto para a sociedade. De resto, a educação natural deve tornar um homem próprio para todas as condições humanas; ora, é menos razoável educar

106

um pobre para ser rico do que um rico para ser pobre, pois, proporcionalmente ao número de pessoas nas duas condições, há mais arruinados do que novos-ricos. Escolhamos, pois, um rico; pelo menos estaremos certos de ter feito um homem a mais, ao passo que um pobre pode tornar-se homem por si mesmo (ROUSSEAU, 2004, p. 32-33).

Com a construção de um aluno “ideal” Rousseau teve a possibilidade de afastá-lo das

intervenientes que poderiam “atrapalhar” seu projeto educacional. Para que o mesmo

elaborasse algumas de suas ideias mais inovadoras, o autor utilizou o artifício de

afastar da realidade – que é permeada de imprevisibilidades – seu aluno e elaborar a

partir desta condição seus pressupostos educacionais. Talvez esse fato também se

vincule ao teor do texto de ser um romance filosófico e não propriamente um estudo

empírico. Esta alternativa expõe algumas limitações e fragilidades que são próprias de

uma obra clássica, já que ela é marcada pelo seu tempo. Deste modo, Dalbosco (2011)

afirma que mesmo sendo Emílio ou da educação uma obra clássica, o que lhe confere

um teor de universalidade15, um clássico também contém um conteúdo por vezes

defasado e fora de época.

Com as características dadas ao Emílio, Rousseau deixou escapar de suas reflexões,

pelo menos, duas questões que consideramos fundamentais para o pensamento

educacional contemporâneo. A primeira delas está relacionada com a educação

especial, ou seja, ao optar por um aluno plenamente saudável, o autor, deixou de

contribuir para uma discussão que mais tarde seria amplamente debatida pelo campo

pedagógico que diz respeito a práticas que promovam a inclusão de alunos com

necessidades educacionais especiais.

Outro aspecto não privilegiado a partir da “retirada” do Emílio do mundo está

relacionado com questões de ordem social: a condição francesa/ européia de Emílio

sinaliza uma visão etnocêntrica. Poder-se-ia indagar que condições, Rousseau teria

para abordar um aluno não-europeu. Contudo, não se trata apenas de uma

familiaridade com esse aluno. Os argumentos que ele utiliza para justificar sua escolha

15

Dalbosco (2011, p. 14) afirma que “Ao clássico liga-se uma potencialidade infinita de transportar cada um, no

caso, o leitor e o intérprete, para um mundo imaginário, o qual, apesar de ser imaginário ou exatamente por sê-lo,

exerce uma força surpreendente sobre o leitor, tornando-o capaz de enfrentar, pela energia espiritual (intelectual)

nele despertada, as situações existenciais, concretas e dramáticas em que vive”.

107

são altamente questionáveis, pois envolvem o impacto que supostamente fatores

climáticos e geográficos teriam sobre a organização biológico-cerebral humana.

Embora, não se trate de afirmar uma superioridade dada ao nascer, mas decorrente da

influência destes fatores. Assim, sua máxima da igualdade natural dos homens não é

desdita.

Ademais, a sua opção por um aluno burguês pode indicar uma inclinação do filósofo à

sua condição social, posição corroborada por Ponce (1991, p. 136):

Para ser coerente com os ideais da classe que representava, Rousseau (1712-1778), como já dissemos, não se incomodou com a educação das massas e sim, apenas, com a educação de um indivíduo suficientemente abastado para permitir-se o luxo de contratar um preceptor. De fato, Emílio era um jovem rico, que vivia das rendas e que não dava um só passo sem o seu mestre.

Essa escolha por um aluno filho da burguesia poderia ainda ser o modo propício para

estabelecer uma crítica aos moldes que a educação burguesa ocorria naquele tempo.

Neste último caso, essa opção implicaria abraçar uma necessidade mais desafiante,

tendo em vista que a educação que o “[...] rico recebe por sua condição é a que menos

lhe convém, tanto para ele mesmo quanto para a sociedade” (ROUSSEAU, 2004, p.

33). Nesta direção, percebemos que em vários momentos do livro, a questão da

ganância, da vaidade, da avareza são problematizadas na educação do Emílio. Em um

trecho que aborda o trato com alguns desejos e vontades próprios da segunda infância,

Rousseau prescreve:

Como posso conceber que uma criança de tal modo dominada pela cólera e devorada pelas paixões mais irascíveis possa algum dia ser feliz? Feliz, ela! É um déspota; ao mesmo tempo, é o mais vil dos escravos e a mais miserável das criaturas. Vi crianças educadas dessa maneira [...]. Todos se empenhavam em vão para satisfazê-las; seus desejos excitados pela facilidade de obter, elas teimavam nas coisas impossíveis e por toda parte só encontravam contradições, obstáculos, sofrimento e dores. [...] Se tais ideias de dominação e tirania as tornam miseráveis desde a infância, que será delas quando crescerem e suas relações com os outros homens começarem a se ampliar e a se multiplicar? Habituadas a

108

ver todos se curvarem diante delas, que surpresa terão, ao entrarem na sociedade e sentirem que tudo que lhes resiste, por se verem esmagadas pelo peso desse universo que julgavam poderem mover à vontade! (ROUSSEAU, 2004, p. 86-87).

Se o contorno geral do aluno imaginário está delineado, cabe-nos então tracejar

também aquelas características constitutivas que compõe o sujeito responsável por sua

condução neste projeto educacional extenso. Rousseau o denomina preceptor e

descreve suas qualidades e atribuições:

Muito se tem raciocinado sobre as qualidades de um bom preceptor. A primeira qualidade que eu exigiria dele, e só esta supõe muitas outras, é a de não ser um homem venal. Há ofícios tão nobres que ninguém pode fazê-los por dinheiro sem se mostrar digno de fazê-los; é o caso do soldado, e também o do preceptor. [...] Seria preciso que o preceptor tivesse sido educado para seu aluno [...]. Como é possível que uma criança seja bem educada por quem não tenha sido bem educado? (ROUSSEAU, 2004, Livro I, p. 28).

Em Emílio ou da educação, o preceptor é o adulto responsável por dirigir a vida do

menino e depois do jovem Emílio, seus pressupostos se afastam dos padrões

pedagógicos da época. Em certo momento da obra, Rousseau sugestivamente afirma

que prefere nomear o preceptor de governante, já que de acordo com sua

compreensão ele dirigirá a vida do menino Emílio. Portanto, ele afirma: “De resto,

prefiro chamar de gouverneur e não de precepteur o professor dessa ciência [a de

ensinar às crianças], pois se trata menos, para ele, de instruir do que de dirigir. Não

deve dar preceitos, e sim fazer com que eles sejam encontrados” (ROUSSEAU, 2004,

p. 31). Com isso, fica evidenciado que na obra o papel do condutor do processo

formativo do Emílio não se restringe à transmissão de conhecimentos, mas abrange um

conjunto de intervenções sistemáticas que proporcionam seu desenvolvimento rumo a

um projeto de autonomia do mesmo.

De acordo com Dozol (2003) o mestre criado por Rousseau ao construir a relação com

seu aluno tem como seu pressuposto maior o anseio de conectar-se às fases de seu

desenvolvimento chegando a uma forma pedagógica que se sustenta na

109

complementariedade dos sujeitos envolvidos. Assim, a autora desenvolve seu

argumento sob um aspecto que deve ser ressaltado: se a partir do Emílio, Rousseau

rompe radicalmente com quase tudo com o que se disse ou se acreditou antes dele

com relação à criança, não podemos afirmar o mesmo em relação à figura do mestre.

Com relação ao mestre, há na concepção de Rousseau uma faceta tradicional,

baseada num arquetípico já existente antes dele, que é a compreensão da autoridade

magistral16 como uma condição ao processo formativo. O filósofo não abre mão de

afirmar que será por meio da condução de seu mestre que a criança se formará um

homem pleno. Se com a obra o autor concebe seu aluno imaginário, ele também

concebe o seu mestre e este irá dirigir o seu processo de formação, porque Emílio não

será capaz de fazer isso sozinho:

[...] esta mesma criança se realizará plenamente pelas mãos firmes e hábeis do seu mestre. São estas mãos firmes e hábeis, movidos num jogo em que se articulam autoridade e sedução, que deverão aparecer – não para o Emílio, mas para nós – numa tentativa de reconhecer o lugar devido ao mestre, aos olhos de Rousseau, em todo e qualquer projeto de formação humana (DOZOL, 2003, p. 60).

O trecho anterior nos ajuda a perceber que em Rousseau – de acordo com a autora,

por ser tributário de uma tradição de maestria – o professor é aquele que é responsável

pela condução da ação formativa, já que há na natureza humana um potencial a ser

desdobrado e bem socializado, mas que isto só se realiza por intermédio de uma ação

não espontânea. Em análise sobre o Emílio, Freitag (apud DOZOL, 2003, p. 56)

observa que:

O herói é o educando, Emílio. Mas este não tem vez nem voz, pois predomina a ótica do preceptor. Este é onisciente e onipotente com relação ao seu educando. Ele sabe ‘para onde’ conduzir Emílio: à

16

Em seu livro, Dozol (2003) afirma que na tradição de costumes e dos usos humanos, a figura do mestre pode ser

esboçada sobre diferentes contornos. Diferentemente de concepções estereotipadas e caricaturadas, a figura do

mestre, que por muitas vezes é entendida como sinônimo de autoritarismo ou diretivismo recebe em seu estudo uma

extensa mediação teórica para o entendimento filosófico-educacional e estético da figura do mestre e da mestria.

Portanto, para aprofundamentos, conferir Dozol (2003).

110

liberdade e autonomia intelectual e moral. Ele também sabe ‘como’ fazê-lo, deixando o educando descobrir o mundo passo a passo, de acordo com suas aptidões, típicas, para cada idade. Ele ainda sabe ‘por que’ educar Emílio: é preciso formar novos cidadãos, fora do ambiente do vício da sociedade feudal, capazes de reconstruírem a sua sociedade mediante um novo contrato social.

Em verdade, o herói é o produto do trabalho do narrador/ preceptor. E, neste sentido, o verdadeiro herói é o próprio narrador/ preceptor/ autor.

Outro aspecto que a autora observa em Rousseau diz respeito à noção de autoridade

que há na relação entre o preceptor e seu aluno. Graças à especificidade da infância

que Rousseau reconhece e por ter colocado a criança como centro do processo

pedagógico em torno do qual tudo gravita, a ideia de autoridade que Rousseau

preconiza possui contornos peculiares. Podemos afirmar que o autor desenvolve duas

acepções bastante distintas de autoridade.

A primeira delas refere-se a uma ideia de autoridade convencional, que é instituída por

meios arbitrários, que de acordo com Rousseau deve ser combatida veementemente

durante a formação do Emílio, já que para ele este tipo de autoridade é fundado por

causas alheias à verdadeira condição humana, que é a liberdade. Em um momento do

Livro II, Rousseau afirma:

Segue-se daí que o primeiro de todos os bens não é a autoridade, mas a liberdade. O homem verdadeiramente livre só quer o que pode e faz o que lhe agrada. Eis a minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la a infância, e todas as regras de educação decorrerão dela (ROUSSEAU, 2004, p. 81).

Deste forma, em sua obra o autor ataca este modo de autoridade que não propicia uma

potencialização da liberdade humana. Em suas diferentes manifestações, ele golpeia a

autoridade de opinião e dos preconceitos nacionais; a autoridade dos escritores e do

saber instituído, inclusos os pretensos mestres e professores; a autoridade religiosa e

seus supostos representantes e alardeados milagres e profecias; a legitimidade da

autoridade política, na figura do rei que equivocadamente julga governar, de fato, os

seus súditos; a autoridade do gosto, ou mais precisamente, aquilo que ele considera

111

mau-gosto da sociedade parisiense do século XVIII com seus supérfluos e excessos

(DOZOL, 2003).

Diante destas críticas, Rousseau ressignifica o conceito de autoridade até então posto,

já que seu pressuposto é favorecer a autonomia de seu aluno. Deste modo, ele procura

estabelecer uma mediação entre a autoridade do mestre que deverá ser usada para

propiciar a autonomia do educando. Assim, estamos diante da segunda acepção para a

autoridade. Sob este novo aspecto, Rousseau procurará engendrar por meio de uma

fina tessitura, onde se cruzam fins educativos e alternativas pedagógicas, a autoridade

que o preceptor estabelece em relação ao seu Emílio. Neste contexto, a autoridade

deve variar conforme o conhecimento que o mestre tem dos períodos de

desenvolvimento da criança e suas necessidades:

Emílio, nas primeiras fases do seu desenvolvimento, não está ainda em condições de experimentar e de julgar a autoridade dos homens, mas já é capaz de sentir a das coisas; assim, experimentando a necessidade, mais tarde há de reconhecer a autoridade da lei, pois ninguém foge à dependência dos homens, uma vez socializado.

Isto não quer dizer, porém, que a autoridade do mestre esteja anulada. Embora não apareça aos olhos da criança, ela é atuante, sentida junto ao turbilhão das imposições da natureza que, aos poucos, coloca a criança e o mestre em seus lugares, de acordo com a ordem das coisas. Tal autoridade se complementa com a obediência que as próprias coisas impõem a sobrevivência, e não por obediência incondicional aos desejos ou desmandos do adulto (DOZOL, 2003, p. 73).

Por conta de sua ressignificação do uso da autoridade, Rousseau elabora alternativas

pedagógicas peculiares. Nos dois primeiros livros, que apresentam características e

prescrições da primeira e segunda infância de Emílio, há uma preocupação com a

ocultação da autoridade do preceptor; inclusive, o preceptor parece aos olhos do Emílio

como seu colega. Em função disso, em vários momentos, o preceptor finge não

dominar alguns conhecimentos, encena uma suposta ignorância ou desconhecimento

para incentivar uma ação do seu aluno.

Com essa alternativa, para trazer seu aluno fictício para dentro dos princípios da

educação natural, o preceptor encena e simula situações para provar e reforçar o

112

caráter do Emílio em muitas passagens do livro. No entanto, conforme Dalbosco (2009),

um dos problemas que se coloca aí é o de saber até onde a encenação corresponde

efetivamente aos princípios da educação natural e quando a própria arte da encenação

não se transformaria em uma criação artificial e meramente dissimuladora do educador.

No fragmento seguinte, temos uma amostra do uso da encenação como recurso de

ensino:

No dia seguinte de manhã, proponho-lhe um passeio antes do almoço, ele não queria outra coisa; para correr, as crianças estão sempre prontas, e esta tem boas pernas. Subimos à floresta, percorremos os Champeaux e nos perdemos, já não sabemos onde estamos; quando chega a hora de voltarmos, não conseguimos reencontrar o caminho. O tempo vai passando, vem o calor, estamos com fome, apressamo-nos, erramos em vão de um lado para o outro, por toda parte só encontramos bosques, pedreiras, planícies, nenhuma informação para reconhecimento. Muito acalorados, muito cansados, com muita fome, com nossas idas e vindas só conseguimos perder-nos mais. Finalmente, sentamo-nos para descansar e para conversar. Emílio, que suponho educado como outra criança, não conversa, mas chora; não sabe que estamos à porta de Montmorency e que um simples matagal a esconde de nós; esse matagal, porém, é uma floresta para ele, um homem da sua altura enterra-se no mato.

Após alguns instantes de silêncio, digo-lhe com um ar inquieto: Meu caro Emílio, como faremos para sair daqui? (ROUSSEAU, 2004, p. 238, grifo nosso).

Numa passagem mais contundente, Rousseau prescreve que encenar ou ocultar

conhecer a resposta das questões elaboradas pelo educando deve ser uma decisão

consciente do condutor do processo de ensino. O condutor deve percorrer o caminho

da construção do conhecimento do aluno, ainda que o conheça muito bem.

Tomai com vosso aluno o caminho oposto; que ele sempre acredite ser o mestre, e sempre o sejais vós. Não há sujeição mais perfeita do que a que conserva a aparência de liberdade; assim se cativa a própria vontade. A pobre criança que nada sabe, que nada pode, que nada conhece, não está à vossa mercê? Não dispondes, com relação a ela, de tudo que a cerca? Não podeis agir sobre ela como quereis? Seus trabalhos, suas brincadeiras, seus prazeres, seus sofrimentos, não está tudo em vossas mãos sem que ela saiba? Sem dúvida, ela só deve fazer

113

o que quer, mas só deve querer o que quereis que ela faça. Ela não deve dar um passo sem que tenhais previsto; não deve abrir a boca sem que saibais o que vai dizer (ROUSSEAU, 2004, p. 140).

Já no terceiro livro, que remete a terceira infância (dos doze aos quinze anos), quando

as faculdades intelectuais de Emílio já estão mais desenvolvidas, seu relacionamento

com o tutor fica mais honesto. Para Simpson (2009), esta é talvez a parte mais difícil da

sua educação, já que o tutor tem que demonstrar sua autoridade sem causar nenhum

ressentimento em Emílio ou inflar sua vaidade. O que ocorre com sucesso, graças às

qualidades que ele cultivou em seu aluno enquanto ainda era seu “colega de classe”.

Os aspectos até aqui levantados demonstram que há, em Rousseau, um grau de

complexidade na relação entre o preceptor e seu aluno. Ao investir numa compreensão

que assume o grau de responsabilidade do adulto sobre o processo formativo da

criança, ele apresenta aspectos que demonstram que este processo não é

verticalizado:

Rousseau é um dos primeiros, entre os modernos, a expor a tensão constitutiva do processo pedagógico que emerge do ideal de autonomia e de emancipação atribuído aos envolvidos e faz isso quando, ao pensar especificamente no papel do adulto, indica o grau de complexidade presente em sua relação com a criança, mostrando que a tarefa adulta movimenta-se no fio de navalha de não adestrar a criança e nem se deixar ser por ela escravizada (DALBOSCO, 2009, p. 183).

Em suma, com a finalidade de preparar o Emílio para si mesmo e para vida como

cidadão, o mestre educará seus sentidos, sua inteligência e sua moral, valendo-se da

própria potencialidade que há no interior de seu aluno e que, aos poucos, vão se

mostrando conforme suas fases maturacionais.

Nesse sentido, vale a pena observar que a autoridade e a condução do preceptor se faz

no respeito incondicional à fase do desenvolvimento do aluno. Essa é uma herança que

Rousseau deixará para gerações posteriores e implica um deslocamento no processo

educativo: o professor deixa de ser o ponto de partida do processo educativo, quem

assume esta centralidade a partir daí é o educando. A intervenção do professor

114

dependerá sempre das características e do interesse de seu aluno, que são próprias de

sua fase do desenvolvimento. Nesta direção afirma o filósofo: “Tratai o vosso aluno de

acordo com a idade. Começai por colocá-lo em seu lugar, e conservai-o ali de tal modo

que já não tente sair” (ROUSSEAU, 2004, p. 93).

A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO DE ROUSSEAU

Como até aqui procuramos expor, Emílio ou da educação não se trata de um livro

dogmático, mas sim um livro “exemplar” que reúne um conjunto de reflexões e

observações sobre a educação do menino Emílio. Jean-Jacques Rousseau, autor da

obra, afirma que, diante da insatisfação com as práticas educacionais preconizadas em

seu tempo, sua tarefa foi propor uma prática melhor, na verdade, para além de

prescrições educacionais; o compromisso que assume é com a formação humana. Para

tal, no prefácio, o autor pondera que sua obra não pretende ser uma manual de

prescrições estanques e adequadas a qualquer cenário ou circunstância. Deste modo,

afirma que maior ou menor facilidade de realização do projeto educacional que propõe

depende de mil circunstâncias que, segundo ele, são impossíveis de serem

determinadas. Para Michel Launay, que introduz o livro Emílio ou da educação:

Seria preciso ser muito ingênuo para tomar Rousseau ao pé da letra e não saber que seu estilo natural é somente o resultado de uma arte aperfeiçoada, que volta contra a literatura as armas da literatura, a fim de salvar o que ainda pode ser salvo da natureza. [...] Pôde-se tirar do Emílio uma coletânea de fórmulas e de máximas que chamavam, no vocabulário da época, o ‘espírito de Rousseau’. A arte da fórmula incisiva, da concisão que se transforma em laconismo, a arte suprema de sugerir, através das palavras, a energia do silêncio e da ação, é muito conhecida por Jean-Jacques, e ele faz a teoria disso, exatamente no Emílio, ao criticar os educadores que acreditam agir sobre as crianças com filas de palavras (LAUNAY, 2004, p. XVIII- XIX).

Ainda no prefácio, Jean-Jacques Rousseau afirma que seu projeto educacional não é

um molde de uma educação perfeita, mas sim e tão somente como uma referência

115

pedagógica de princípios, deixando em aberto a possibilidade para que cada sociedade

ou grupo social elaborasse, em seu território e com seus costumes, o melhor projeto

educacional possível.

O livro é uma reconstrução romanceada e fictícia de um longo percurso da vida de um

aluno – desde o seu nascimento até o seu ingresso adulto na sociedade, que está sob

a tutela de seu preceptor. A organização e o formato da obra obedecem a um

pressuposto que é descrito por Rousseau:

Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação. Essa educação vem-nos da natureza ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e a aquisição de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas (ROUSSEAU, 2004, p. 9).

O pressuposto dos três mestres é o esteio que fundamenta os princípios da educação

proposta para o Emílio. A educação da natureza, que é o primeiro mestre, propicia a

auto-formação do jovem Emílio por meio do desenvolvimento de suas estruturas

internas, quer sejam nossas faculdades internas ou nossos órgãos. Deste modo, esta

educação não pode ser treinada ou controlada pelo homem, ela é um presente da

Natureza, ela é um a priori para as duas formas de educação que se desenvolverão

mais tarde.

A partir deste pressuposto, Rousseau afirma que educar é deixar a natureza fazer seu

papel. Este pensamento expressa que devem o educador e os pais educar a criança

seguindo o curso da natureza, o que significa prioritariamente, respeitar a criança em

seu mundo, deixando que em sua primeira infância ela se desenvolva naturalmente.

Neste contexto o filósofo afirma: “Observai a natureza e segui a rota que ela vos traça.

Ela exercita continuamente as crianças, enrijece seu temperamento com provas de toda

espécie e cedo lhes ensina o que é o sofrimento e dor” (ROUSSEAU, 2004, p. 24)

Em Rousseau, permitir que a criança se desenvolva naturalmente é sinônimo de

respeitar o desenvolvimento pleno da criança, sem que se obrigue que ela queime

116

etapas. Deste modo, a educação na infância não começa pela razão, mas pelos

sentidos, em razão disso é papel do adulto ajudar a criança desenvolver naturalmente

seus sentidos no confronto com a natureza. Deste modo, no Livro I, o autor pontua:

No início da vida, quando a memória e a imaginação ainda estão inativas, a criança só presta atenção ao que realmente atinge os seus sentidos; sendo as sensações os primeiros materiais de seus conhecimentos, oferecê-las numa ordem conveniente é preparar sua memória para um dia apresentá-la na mesma ordem ao entendimento. Como, porém, a criança só presta atenção às suas sensações, basta inicialmente que lhe mostremos de maneira bem distinta a ligação dessas mesmas sensações com os objetos que as causam (ROUSSEAU, 2004, p. 51).

Sobre a relação que estabelecemos com os três tipos diferentes de educação,

Rousseau afirma que aquele que vem da natureza não está de forma alguma sob

nosso controle. Aquele vindo da educação das coisas está sob nosso controle somente

em alguns aspectos e aquele vindo dos homens é o único que dominamos, embora

mesmo estes últimos dominemos por hipótese, já que o autor problematiza que de fato

não podemos garantir inteiramente as palavras e ações que a criança terá contato ao

longo de sua infância (ROUSSEAU, 2004).

Com a função da natureza no processo de formação da criança esclarecido, seguimos

para a formulação sobre o papel que a educação pelas coisas estabelece no projeto de

educação elaborado por Rousseau. Se a natureza é a primeira “professora” da criança,

a experiência por meio das coisas deve ser a lei para ela. Para esta educação se

desenvolver, ela necessita que os objetos afetem a sensibilidade do educando através

da experiência empírica/ sensível.

Rousseau afirma que não devemos perverter a ordem das coisas, pois a natureza quer que as crianças sejam crianças antes de chegarem à idade adulta. É necessário tratar a infância de acordo com sua idade, e deixá-la em contato com a natureza, sem promessas, sem adulações. Por meio da experiência, a criança desenvolverá a sensibilidade para discernir entre o que são as necessidades legítimas e as necessidades supérfluas que corrompem o caráter (SANTOS, 2011, p. 78).

117

Um dos pressupostos da educação pelas coisas é que ele deve acontecer num período

que no desenvolvimento da criança a autonomia ainda está ausente, e, portanto, a

educação argumentativa não tem o mesmo poder de esclarecimento e convencimento

como tem os exemplos extraídos da simples funcionalidade das coisas, com seus

respectivos riscos, possibilidades e proibições (DALBOSCO, 2009). Deste modo,

Rousseau afirma no Livro II:

Não deis a vosso aluno nenhum tipo de lição verbal. Ele deve receber lições somente da experiência; não lhe ordeneis nenhum tipo de castigo, pois ele não sabe o que é ser culpado; não façais nunca com que peça desculpas, pois não saberia ofender-vos. Carente de qualquer moralidade em suas ações, ele nada pode fazer que seja moralmente mau e mereça castigo ou reprimenda (ROUSSEAU, 2004, p. 94).

Ou ainda, em outro trecho, mais contundentemente afirma Rousseau:

Jovens mestres, [...] lembreis de que em todas as coisas vossas lições devem consistir mais em atos do que em palavras, pois as crianças facilmente se esquecem do que disseram e do que lhe dissemos, mas não do que fizeram e do que lhes fizemos (ROUSSEAU, 2004, p. 107)

Com isso, vemos que sendo a educação pelas coisas um dos princípios da educação

das duas primeiras fases da infância, a ênfase destes períodos não deve recair sobre

uma educação discursiva. Dalbosco (2009) afirma que num sentido atualizado a

educação pelas coisas pode ser sintetizada pela ideia da educação da experiência:

Mas é preciso que ter claro que Rousseau, ao associar o conceito de experiência – entendendo-o mais amplamente, não só no sentido epistemológico que a tradição empirista lhe conferiu, mas também como esfera do agir humano em sua dimensão ético-pedagógica – ao princípio pedagógico da educação pelas coisas, quer dizer com isso que o ponto de partida do ato educativo precisa levar em conta o mundo do educando, com seus respectivos limites e potencialidades (disposições naturais) (DALBOSCO, 2009, p. 179).

118

Com o decorrer do processo formativo, quanto mais a socialização da criança avançar,

mais a educação pelas coisas cederá lugar à educação discursiva, baseado no diálogo,

na negociação e no contrato. A partir dos aspectos até aqui apresentados, podemos

afirmar que a obra está estruturada do mesmo modo que deverá ser conduzido o

projeto educacional humano sob a perspectiva rousseauniana. Sendo assim, o relato da

trajetória do Emílio percorre propositalmente as diferentes etapas do desenvolvimento

humano: da criança ao adulto e da educação estética à educação moral e da razão;

Consequentemente, a infância é, em Rousseau, uma categoria escolhida

meticulosamente para operar o pensamento sobre a condição humana. Além disso, em

seu projeto educacional, ele realiza um intenso investimento na educação estética

(educação da sensibilidade) nas fases iniciais do desenvolvimento, compreendendo

que esta é condição fundamental para a educação moral e racional. Portanto, não se

trata de ver a educação estética como momento inferior, mas como fundamento

necessário para construção da moralidade e o desenvolvimento da razão.

A terceira educação, que é a educação dos homens, é o conjunto das regras sociais e

convenções apresentadas pelo preceptor que implicarão numa heteroformação e na

preparação para o convívio social do educando, o que fará do homem um cidadão.

Sobre essa terceira educação, já apresentamos características fundamentais ao tratar o

papel do preceptor (vide p. 100).

Delineado este panorama, é importante ressaltar que o próprio Rousseau reconhecia

que era impossível realizar um projeto educacional com a sintonia destes três mestres.

Sendo assim, por mais esforços e por melhores que sejam as intenções do educador,

na educação humana o dilema está configurado: formar um homem ou um cidadão?

Esta fratura para Rousseau é o preço da civilização:

A educação é ela própria uma tarefa impossível. Ela é, segundo Rousseau, uma arte – não uma ciência – cujo êxito é improvável porque jamais seremos capazes de controlar o concurso de todos os mestres. Mas isso não a torna menos relevante. O ser humano nasce fraco, carente de tudo, e só a educação faz com que ele desenvolva os meios para a sobrevivência. [...] Uma situação paradoxal e que reflete bem o

119

estado permanente da educação: ela nunca será capaz de cumprir plenamente o que dela se espera ou o que ela promete. Mais do que isso, quanto melhor sucedida ela for, mais ela correrá o risco de fazer do ser humano o que ele talvez nunca deveria ser (STRECK, 2008, p. 30).

A ESTRUTURA DA OBRA E A SEQUÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO

Considerada essa concepção ampla de educação elaborada por Rousseau, vejamos

agora como isso ganha materialidade na própria estrutura do livro. Na versão em

português que utilizamos17, os capítulos são apenas numerados como livros. Deste

modo, o primeiro capítulo se denomina Livro I e assim por diante, até o quinto capítulo,

o livro V. Entretanto, Paiva (2007) chama a atenção que a obra Emílio ou da Educação

antes da versão definitiva publicada em 1762 teve outras versões. Na primeira versão,

concluída em 1759 e chamada Manuscrit Favre, Rousseau estruturou a obra da

seguinte forma: Idade da necessidade – do nascimento até os dois anos; Idade da

natureza – dos dois aos doze anos; Idade da força – dos doze aos quinze anos; Idade

da razão – dos quinze aos vinte anos; Idade da sabedoria: dos vinte aos vinte e cinco

anos e por fim, até o resto da vida a Idade do Bem. Esta estruturação nos diz muito

sobre as características e necessidades que predominam nas diferentes fases da vida,

o que desdobra em cinco livros, sendo que cada um deles assume aspectos e facetas

singulares. Considerando o recorte desta pesquisa, focaremos, com mais zelo, os livros

I e II.

O LIVRO I

O livro I descreve as posições do autor para o desenvolvimento infantil até os dois

anos. Nas primeiras páginas deste livro, Rousseau afirma que está é a educação mais

importante e figurativamente explica esta afirmação:

17

A terceira edição da Editora Martins Fontes, publicada em 2004.

120

No estado em que agora as coisas estão, um homem abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos. Os preconceitos, a autoridade, a necessidade, o exemplo, todas as instituições sociais em que estamos submersos abafariam nele a natureza, e nada poriam em seu lugar. Seria como um arbusto que o acaso faz nascer no meio de um caminho, e que os passantes logo fazem morrer, atingindo-o em todas as partes e dobrando-o em todas as direções (ROUSSEAU, 2004, p. 7).

Neste fragmento, destacamos dois aspectos que revelam a compreensão de Rousseau

a esta primeira fase da vida humana. O primeiro aspecto está relacionado com a

proximidade com a natureza que há na criança e que, de acordo com o autor, não pode

ser abafada. O segundo aspecto está relacionado com o traço fundamental da primeira

infância: a necessidade, característica constituinte desta fase da vida.

Sob o primeiro aspecto, de acordo com Rousseau, a criança na primeira infância deve

ter condições favoráveis para seu desenvolvimento natural. Para tanto, o autor defende

que o seu desenvolvimento não deve ser acelerado, antecipando uma educação

racional, em detrimento da educação de seus sentidos. É necessário que, nesta fase, a

criança seja estimulada fisicamente, para preparar o terreno de sua razão.

Neste primeiro capítulo, ao apresentar objeções às práticas comuns no século XVIII no

tratamento das crianças e oferecer alternativas a estas práticas, Rousseau afirma que

uma das grandes necessidades da criança encerra-se nos anseios de sua

corporeidade:

Seus traços mudam de uma hora para outra com rapidez inconcebível; nelas vedes o sorriso, o desejo, o terror nascerem e passarem como relâmpagos, e a cada vez credes ver um novo rosto. Certamente elas têm os músculos da face mais móveis do que nós. Em compensação, seus olhos opacos não dizem quase nada. Tal deve ser o gênero de seus sinais numa idade em que só têm necessidades corporais. A expressão das sensações está nas caretas e a expressão dos sentimentos está nos olhares (ROUSSEAU, 2004, Livro I, p. 53).

De acordo com Dalbosco (2011), o princípio fundamental da educação natural na

primeira infância para Rousseau é o respeito do adulto ao mundo da criança. Rousseau

121

nos estimula a pensar que a criança não é um adulto em um corpo pequeno. Para o

filósofo genebrino, a infância caracteriza-se por ser uma fase em que a criança é um ser

frágil e repleto de necessidades e precisa essencialmente do cuidado do adulto para

exercer sua infância plenamente. É importante ressaltar que ele a compreende como

um ser que necessita de cuidados, mas nem por isso é um ser inferior. Suas

necessidades surgem devido a sua configuração física e são, sobretudo, fisiológicas e

biológicas:

Se o homem nascesse grande e forte, a estatura e a força ser-lhe-iam prejudicais, pois impediriam que os outros pensassem em socorrê-lo e, entregue a si mesmo, morreria de miséria antes de ter conhecido suas necessidades. Queixamo-nos da condição infantil e não vemos que a raça humana teria perecido se o homem não tivesse começado por criança.

Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação (ROUSSEAU, 2004, p. 9)

De tal modo, podemos antecipar que a primeira infância é a fase que a criança mais

precisa do adulto, pois, sem seus cuidados, não sobreviverá. Ao adulto cabe

reconhecer quais são as reais necessidades desta fase da vida, para que ele não se

torne refém da tirania do choro ou da manha. Martins (2011) sintetiza esse pressuposto

ao afirmar que é competência do adulto:

[...] estar atento às suas [da criança] particularidades e, de modo especial, às suas necessidades naturais. Para Rousseau, ao nascer, a criança começa a conhecê-las e expressá-las, e pode sentir-se tentado a facilitar a vida da criança. Porém se ceder a essa tentação poderá criar na criança desejos e necessidades artificiais (MARTINS, 2011, p. 64).

O papel do educador da criança é, portanto, proteger a criança; no entanto, é

importante salientar sob qual condição deve se realizar essa proteção. Primeiro, o

adulto não deve ser refém da zanga de uma criança ou de suas tentativas de controle

122

imperioso, como já pontuamos. Segundo, o adulto deve favorecer o curso natural e, por

isso, saudável do desenvolvimento da criança.

A junção desses dois aspectos configura a abordagem educacional arquitetada por

Rousseau, que é a ideia de uma “educação negativa”. Em sua obra “Cartas a

Beaumont”18, o autor explica no que consistia essa educação:

O que eu chamo de educação positiva é aquela que tem a tendência de educar a mente além da idade cronológica e dar à criança o conhecimento dos deveres do homem. O que chamo de educação negativa é aquela que tem a tendência de aperfeiçoar o [sentido] dos órgãos, que são os instrumentos do nosso conhecimento, antes de nos dar o conhecimento em si e que nos prepara para a razão, exercitando nossos sentidos. A educação negativa não é ociosa, longe disso. Ela não nos dá virtudes, mas nos protege contra os vícios; ela não ensina a verdade, mas nos protege dos erros (ROUSSEAU apud SIMPSON, 2009, p. 159).

Sob essa perspectiva, devemos evitar controlar, dirigir, adestrar ou forçar a criança a

todo tempo, mas também devemos reconhecer que há um curso natural e ordenado do

desenvolvimento do corpo, do raciocínio e sentimentos da criança, cabendo ao

educador respeitar a integridade deste desenvolvimento, dando espaço e oportunidade

para que ele ocorra de modo e em tempo adequado. O ideal seria que Emílio não

tivesse nenhum ensinamento sobre as virtudes ou a verdade, mas que ele fosse

submetido ao maior número possível de experiências.

Contudo, estar atento às necessidades da criança não significa que o adulto deva

abandoná-la e deixá-la fazer o que bem entender. Com afirma Dalbosco (2007), existe

18

Após a publicação do Emílio, Rousseau viu-se em conflito com algumas instituições de seu tempo, notadamente

com a Igreja Católica. Sobretudo, por conta das ideias publicadas a respeito da “religião natural” e de suas críticas à

ideia de revelação propagada pela Igreja. Estas críticas estão concentradas no quarto capítulo do livro, no trecho

denominado Profissão de fé do Vigário Saboiano. Em 1762, o livro Emílio ou da educação foi denunciado pelo

corpo docente da faculdade de teologia da Sorbonne e na ocasião um mandado de prisão foi expedido contra

Rousseau, e o autor fugiu da França. Em agosto daquele ano, o arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont,

publicou uma carta pastoral de instrução e orientação aos sacerdotes e membros da Igreja explicando em detalhe por

que a profissão de fé era inaceitável, irreligiosa e sacrilegiosa. Em resposta a esta carta, em março de 1763 Rousseau

publicou sua Carta a Christophe de Beaumont: “A Carta de Rousseau constitui um de seus escritos mais vigorosos.

Na primeira parte apresenta um enunciado geral das principais ideias que deram forma a toda a sua obra. Na

segunda, critica e refuta as objeções que o arcebispo fez contra os pontos de vista expressos em A profissão de fé”

(DENT, 1996, p. 55).

123

aí uma tensão se coloca ao processo pedagógico: de um lado, uma ação de caráter

eminentemente impositivo; e, do outro, uma ação sem uma intervenção pré-elaborada:

[...] se torna evidente o esforço em evitar duas posturas pedagógicas extremas, o autoritarismo e o espontaneismo, consideradas extremamente prejudiciais à formação do Emílio. Neste contexto, o conteúdo da educação natural é desenvolvido na tentativa de oferecer um tratamento satisfatório à tensão que perpassa o processo pedagógico entre deixar a criança desenvolver-se livremente e a necessidade de conduzi-la. Nesta tensão se radica, pois, um dos maiores problemas das teorias educacionais, o qual é formulado lapidarmente por Kant, anos mais tarde, em suas preleções Über Pädagogik, com clara inspiração em Rousseau: ‘Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão à pressão das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, a pressão é necessária! Mas de que modo cultivar a liberdade? (DALBOSCO, 2007, p. 322).

Assim, vemos que no projeto educacional proposto no Emílio, ao educador compete

reconhecer as verdadeiras necessidades da criança para distinguir o momento mais

propício para sua intervenção. Disso, retiramos que a formação do homem em

Rousseau deve iniciar com a consideração da criança com as características que a

compõe, sem a intenção fazê-la parecida com o adulto.

O procedimento pedagógico proposto por Rousseau propõe também que, ao longo da

primeira infância a criança deverá passar por provações, que servirão para que seu

corpo adquira força e “prepare o terreno” para o seu desenvolvimento cógnito-moral, ou

ainda como melhor afirma Rousseau:

De todas as faculdades do homem, a razão, que não é, por assim dizer, senão um composto de todas as outras, é a que se desenvolve com mais dificuldade e mais tardiamente, e é ela que se pretende utilizar para desenvolver as primeiras! A obra-prima de uma boa educação é formar um homem razoável, e pretende-se educar uma criança pela razão! Isto é começar pelo fim, é da obra querer fazer o instrumento (ROUSSEAU, 2004, p. 90).

124

Em suas prescrições, Rousseau afirma que a criança precisa ser educada para saber

enfrentar as intempéries da vida e, portanto, tal educação deve começar por exercitá-la

a conviver com as duras e rígidas exigências postas pela própria natureza. Assim

sendo, para ele, o desenvolvimento saudável do corpo é condição fundamental para o

cultivo da inteligência e da moralidade humana futura.

Longe de terem forças supérfluas, as crianças, nem mesmo têm força suficiente para tudo o que a natureza lhes exige. É preciso, portanto, facultar-lhes o emprego de todas as forças que ela lhes dá e de que não poderiam abusar. Primeira máxima.

É preciso ajudá-las e suprir o que lhes falta, quer em inteligência, quer em força, em tudo o que diz respeito à necessidade física. Segunda máxima.

[...]

O espírito destas regras é dar às crianças mais verdadeira liberdade e menos domínio (ROUSSEAU, 2004, p. 58).

Com esse cenário, o caráter da intervenção proposta por Rousseau na primeira

infância, percorre o caminho descrito a seguir:

No início da vida, quando a memória e a imaginação ainda estão inativas, a criança só presta atenção ao que realmente atinge seus sentidos; sendo as sensações os primeiros materiais de seus conhecimentos, oferecê-las numa ordem conveniente é preparar sua memória para um dia apresentá-las na mesma ordem ao entendimento. Como, porém, a criança só presta atenção às suas sensações, basta inicialmente que lhe mostremos de maneira bem distinta a ligação dessas mesmas sensações com os objetos que as causam. A criança quer tocar em tudo, pegar em tudo; não vos oponhais a esta inquietação; ela lhe sugere um aprendizado muito necessário. É assim que ela aprende a sentir o calor, o frio, a dureza, a moleza, o peso, a leveza dos corpos, a julgar sua grandeza, sua figura e todas as qualidades sensíveis olhando, apalpando, escutando e principalmente comparando a visão com o tato, estimando com os olhos a sensação que produziram em seus dedos (ROUSSEAU, 2004, p. 51-52).

Este trecho origina uma síntese importante da discussão desenvolvida no livro I: na

primeira infância, a porta de entrada do sujeito no mundo humano se dá pelas

125

sensações e isso é garantido pela proteção e cuidado dados pelo adulto. E mais:

representa também um gérmen da tônica que perpassará grande parte do projeto da

segunda infância, que está descrita no Livro II, qual seja, o estímulo e o

aperfeiçoamento dos sentidos. De acordo com Santos (2011), um dos pressupostos

fundamentais dessa próxima fase do projeto consiste no desenvolvimento da

sensibilidade da criança para que ela possa considerar-se senhora de si mesma,

reconhecendo por conta própria seus limites.

O LIVRO II

Este capítulo aborda a segunda infância ou idade da natureza. Aqui, Rousseau

apresenta a ideia que a educação nesta fase da vida deve oportunizar o contato direto

com a natureza, como a vida no campo, na qual o aluno poderá exercitar a plenitude de

seus movimentos e explorações corporais. Nesta etapa, a criança é incentivada a

vivenciar a vida campestre e a exposição direta com o meio natural, o que a ensina a

lidar com provações postas pelo ambiente natural e a afasta dos hábitos viciosos dos

adultos que vivem na cidade. No trecho a seguir, o autor explica essa opção do

preceptor na educação do Emílio:

Trata-se, pois, de voltar à origem da propriedade, pois é de lá que a primeira ideia deve nascer. Vivendo no campo, a criança terá tido alguma noção dos trabalhos campestres; para isso, só é preciso lazer e olhos, e ela terá essas coisas. Em todas as idades, e sobretudo na sua, a criança quer imitar, produzir, dar mostras de potência e de atividade. Não terá visto duas vezes lavrarem um jardim, semearem, germinarem e crescerem os legumes, e quererá também cultivar o jardim.

Pelos princípios acima estabelecidos, não me oponho ao seu desejo; pelo contrário, favoreço-o, compartilho seu gosto, trabalho com ela, não por seu prazer mas pelo meu, é isso pelo menos que ela acha; torno-me seu jardineiro ajudante; enquanto ela não tem braços para isto, lavro a terra para ela; ela toma posse dessa terra plantando uma fava, e com certeza essa tomada de posse é mais sagrada e mais respeitável do que a de Nuñes Balboa sobre a América meridional em nome do rei da Espanha, plantando seu estandarte nas costas do mar do Sul (ROUSSEAU, 2004, p. 104-105).

126

No campo, o preceptor deverá permitir que seu aluno exercite seu corpo, que aprenda a

usar os sentidos. A educação na segunda infância consiste em formar ideias simples a

partir das experiências, o que Rousseau chama de razão sensitiva ou razão pueril:

Em vez de deixá-lo estragar-se no ar corrompido de um quarto, que seja levado diariamente até um prado. Ali, que corra, se divirta, caia cem vezes por dia, tanto melhor, aprenderá mais cedo a se levantar. O bem-estar da liberdade compensa muitos machucados. Meu aluno muitas vezes terá contusões; em compensação, estará alegre. Se vossos filhos se machucam menos, estão sempre contrariados, sempre presos, sempre tristes. Duvido que a vantagem esteja de seu lado (ROUSSEAU, 2004, p. 71).

A opção de Rousseau por educar seu aluno em um terreno em que a natureza é mais

abundante revela seus pressupostos fundamentais no processo de educação da

segunda infância: ao educar a criança no campo, o preceptor a aproxima de sua

condição natural, afastando-a da artificialidade da sociedade, evitando que ela

desenvolva desejos obsessivos que são fruto da dissimulação própria das relações

estabelecidas no terreno da civilidade. Estes desejos artificiais podem conduzir a

criança a um distanciamento de sua sensibilidade. Portanto, ele afirma:

Em que, então, consiste a sabedoria humana ou o caminho da verdadeira felicidade? Não exatamente em diminuir nossos desejos, pois, se eles estivessem abaixo de nossa potência, uma parte de nossas faculdades permaneceria ociosa, e não gozaríamos de todo o nosso ser. Também não consiste em ampliar nossas faculdades, pois, se nossos desejos ao mesmo tempo se ampliassem em maior proporção, tornar-nos-íamos mais miseráveis. Trata-se, pois, de diminuir o excesso de desejos relativamente às faculdades, e de igualar perfeitamente a potência e a vontade.

[...] quanto mais o homem tiver permanecido próximo a sua condição natural, mais a diferença entre as suas faculdades e os seus desejos será pequena e, consequentemente, menos distante estará de ser feliz. Nunca ele é menos miserável do que quando parece carente de tudo, pois a miséria não consiste na privação das coisas, mas na necessidade que sentimos delas (ROUSSEAU, 2004, p. 74-75).

127

Com isso, no entanto, Rousseau não propõe que haja uma separação radical entre a

criança e a sociedade, mas ele chama atenção que a criança deve ter um modo de vida

diferente do que até o momento era proposto a elas. Ele salienta que a necessidade da

infância é peculiar, diferente de outros estágios da vida humana.

Homens, sede humanos, este é vosso primeiro dever; sede humanos para todas as condições, para todas as idades, para tudo que não é alheio ao homem. Para vós, que sabedoria há fora da humanidade? Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável instinto (ROUSSEAU, 2004, p. 72).

Em síntese, a opção por educá-la no campo favoreceria seu contato mais intenso com

o meio que Rousseau considerava mais próximo ao meio natural, propiciando assim

que a criança seja educada reconhecendo os limites impostos pela natureza. Soma-se

aí que a teoria da educação natural tem também a preocupação de não ser ligeira ou

nos moldes das relações estabelecidas na cidade; pelo contrário, para o seu autor, o

segredo da boa educação consiste em “perder tempo”, ou seja, permitir que a criança

experimente as coisas pela via dos sentidos de modo diverso e exaustivo, para então

fazer seus juízos próprios.

Por isso decreta Rousseau: “Mestres zelosos, sede simples, discretos, contidos. Jamais

vos apresseis em agir, a não ser para impedir que os outros ajam. Repeti-lo-ei sem

cessar: adiai, se possível, uma boa instrução, por medo de apresentar uma que seja

má” (ROUSSEAU, 2004, p. 101). Ou ainda, como afirma no trecho seguinte:

Respeitai a infância e não vos apresseis em julgá-la, quer para bem, quer para mal. Deixai as exceções se revelarem, se provarem, se confirmarem muito tempo antes de adotar para elas métodos particulares. Deixai a natureza agir bastante tempo antes de resolver agir em seu lugar, temendo contrariar suas operações. Dizeis que conheceis o valor do tempo e não quereis perdê-lo. Não vedes que o perdeis muito mais empregando-o mal do que não fazendo nada, e que uma criança mal instruída está mais distante da sabedoria do que aquela que não foi absolutamente instruída (ROUSSEAU, 2004, p. 119).

128

O que até aqui apresentamos são os contornos gerais que compõem o projeto

educacional da primeira e segunda infância. Na obra, percebemos que Rousseau

delimita especificidades próprias a cada uma das fases descritas nos dois livros, no

entanto, é possível perceber que comum ao projeto destas duas fases está a ideia de

uma educação que privilegie a educação sensível. Essa unidade entre os dois estágios

pode ser explicada a partir da afirmação de Dent (1996, p. 117):

Num primeiro e incompleto rascunho do Emílio (MS Favre), Rousseau divide em quatro estágios de desenvolvimento do homem; a idade da natureza (até os 12 anos); a idade da razão (inteligência) (12-15); a idade da energia, força vital (15-20); a idade da sabedoria (20-25). Embora não aderisse a um tão esquemático padrão da obra final, ele serve, no entanto, como útil quadro de referência.

Deste modo, podemos perceber que na primeira versão da obra, Rousseau nem

mesmo ansiava distinguir os dois estágios: primeira e segunda infância. Cremos, então,

que daí decorra toda semelhança e continuidade que há no projeto educativo de

ambas. No entanto, como demonstramos até aqui existem particulares que as

constituem.

A primeira infância carrega como sua maior particularidade a necessidade do cuidado

do adulto dadas as necessidades essenciais da criança que precisam ser atendidas

para que ela acesse o mundo humano. Neste contexto, a sobrevivência da criança está

totalmente atrelada ao cuidado do adulto, mas este mesmo deve estar atento a sua

intervenção de modo atenda suas necessidades sem que permita nascerem

necessidades tiranas e artificiais na criança. Para tanto, o educador deve estar atento

aos sinais que a criança expressa (choro, expressões faciais), de modo a perceber o

que é natural e o que é artificial.

Já na segunda infância, a idade da natureza, a educação que deve se privilegiar é

aquela que potencialize a experiência sensível, já que nesta fase “Todo o seu saber

está na sensação, nada passou para o entendimento” (ROUSSEAU, 2004, p. 120). O

investimento nesta fase é para que a criança se torne forte e robusta, para que mais

tarde ela possa vir a ser sábia e sensata.

129

Deste modo, advoga o autor que, antes da criança desenvolver sua racionalidade, a

criança deve fortalecer o seu corpo e aprimorar seus sentidos, que são os alicerces da

sua inteligência. Aqui é importante dar destaque a uma ponderação apresentada por

Rousseau. O autor afirma

No entanto, estou muito distante de achar que as crianças não tenham nenhuma espécie de raciocínio. Pelo contrário, vejo que raciocinam muito bem em tudo o que conhecem e que se relacione com seu interesse presente e sensível. É, porém, sobre seus conhecimentos que nos enganamos, ao lhe atribuirmos os que elas não têm e fazendo-as raciocinar sobre o que não são capazes de compreender (ROUSSEAU, 2004, p. 121).

Com tudo isso, ressaltamos que Rousseau não afirma que a infância é alheia a razão,

mas é o sono dela. A segunda infância não é o tempo de querer tornar as crianças

atentas a considerações que não lhe dizem respeito, como o interesse pelo futuro ou

pela felicidade quando adultos, mas este é o tempo de promover uma educação dos

sentidos. Desta forma, o autor incentiva o contato com os objetos (as coisas) para que a

criança tenha um melhor discernimento com relação ao mundo.

O projeto da educação natural proposto a estas duas fases, deste modo, privilegia uma

educação por intermédio das coisas, que possibilita que a criança desenvolva sua

liberdade num meio favorável de modo bem regrado e o educador é um potencializador

que aponta os caminhos (sem dizê-los, mas sugestionando) para que tal aconteça.

O LIVRO III

O livro III versa sobre a idade da força que compreende dos doze aos quinze anos; o

livro IV aborda da idade da razão que abrange dos quinze aos vinte anos; e o livro V

trata sobre a idade da sabedoria que se estende dos vinte aos vinte e cinco anos.

À idade da força, Rousseau propôs uma educação útil. Segundo Rousseau, nesta fase,

o Emílio vive sua terceira fase infância ou a adolescência como conhecemos nos

130

moldes contemporâneos. Neste momento, são perceptíveis suas mudanças físicas; o

autor observa que, nesse período, as forças se desenvolvem mais rápido do que as

necessidades. Esta ocasião é propícia para orientar essas forças em direção do estudo

e do trabalho, consideradas pelo autor como atividades úteis e que possibilitam a

entrada do menino no mundo socializado. Essa utilidade se materializa em dois

importantes aspectos: a aprendizagem das ciências e a escolha da profissão.

Com o arcabouço construído até este momento, nesta fase a educação do Emílio está

preocupada com a construção de sua capacidade de julgar. Por isso, diante do subsídio

previamente elaborado, neste momento sua educação acontece pela via da razão e

que é mediada exclusivamente com relação aos outros. A virada do projeto é ilustrada

pela passagem seguinte:

No começo, nosso aluno só tinha sensações, e agora tem ideias, ele apenas sentia, agora julga. Pois da comparação de várias sensações sucessivas e simultâneas e do juízo que delas fazemos nasce uma espécie de sensação mista ou complexa que chamo de ideia (ROUSSEAU, 2004, p. 275).

Com isso, a educação natural preconizada nos dois primeiros estágios da infância de

Emílio é substituída pela educação moral. Em Rousseau, a educação da adolescência

focaliza diretamente o amadurecido racional do ser humano, visto que

É neste período que se inicia a maturação da consciência, a qual possibilita ao aluno a percepção de que não está e não vive só. Sabendo que não está sozinho, precisa aprender a conviver socialmente, fato esse que exige sua maturidade para tornar-se sociável. É também na fase da adolescência que a construção moral começa a se formar (POKOJESKI, 2011, p. 111).

No que diz respeito à aprendizagem de Emílio sobre as ciências, Rousseau continua

insistindo que o conhecimento e as ideias do adulto não devem ser emprestados ao seu

aluno. A sabedoria do preceptor consistirá em desafiar e estimular questões ao jovem

Emílio, para que ele não aprenda, mas invente a ciência:

131

Lembrai sempre que o espírito de minha educação não é ensinar à criança muitas coisas, mas não deixar jamais entrar em seu cérebro ideias que não sejam claras e justas [...]

A idade tranquila da inteligência é tão curta, passa tão depressa, tem tantos outros usos necessários, que é loucura querer que ela baste parar tornar douta uma criança. Não se trata de ensinar-lhe as ciências, mas de dar-lhe o gosto para amá-las e métodos para aprendê-las quando esse gosto estiver mais desenvolvido. Este é com toda certeza um princípio fundamental de toda boa educação (ROUSSEAU, 2004, p. 221-222).

Consequentemente, na medida em que Emílio desenvolve sua inteligência com o

conhecimento das ciências, Rousseau demonstra uma preocupação subsequente com

sua inserção no mundo do trabalho:

À medida que a criança progride em inteligência, outras considerações importantes obrigam-nos a escolher melhor suas ocupações. Assim que ela consegue conhecer suficientemente a si mesma para compreender em que consiste o seu bem-estar, assim que ela consegue entender relações bastante amplas para julgar o que lhe convém e o que não lhe convém, está em condições de perceber a diferença entre o trabalho e a diversão e só considerar esta última como o descanso do outro. Então, objetos de utilidade real podem entrar em seus estudos e levá-la a dar-lhes uma atenção mais constante do que dava a meras diversões (ROUSSEAU, 2004, p. 232).

Dada a conjuntura de seu tempo, Rousseau afirma que mesmo que Emílio tivesse

nascido príncipe, de nada valeria esse privilégio dentro da nova sociedade que

despontava. O autor reconhece ou prevê que ele vive uma época pré-revolucionária19 e,

portanto, a configuração social estava prestes a ser modificada, logo a condição

primeira na sua escolha da profissão é que ela favoreça a independência de Emílio.

Isso faz ressaltar dois aspectos: ele não deve depender de escravos ou servos, muito

menos de favores de nobres ou patrões, mas também ele não deveria ser educado

19

Num trecho de rodapé de seu livro, o autor afirma: “Considero impossível que as grandes monarquias da Europa

ainda durem muito tempo; todas elas brilharam, e todo Estado que brilha está em seu declínio. Tenho para esta minha

opinião razões particulares do que esta máxima; mas não vêm ao caso dizê-las e cada um as vê até demais”

(ROUSSEAU, 2004, p. 260).

132

para ser um empregado das indústrias que, em sua época, começavam a se constituir

(STRECK, 2008).

A educação do Emílio deveria valorizar e privilegiar o trabalho manual, que naquele

contexto era desprezado pela nobreza, mas que conseguia reunir dos aspectos

altamente valorosos para Rousseau: a estética e a utilidade:

Ora, de todas as ocupações que podem fornecer ao sustento do homem, a que mais o aproxima do estado natural é o trabalho manual; de todas as condições, a mais independente da sorte e dos homens é a do artesão. O artesão só depende do seu trabalho; é livre, tão livre quanto o lavrador é escravo, pois este último depende do seu campo, cuja a colheita está a mercê dos outros (ROUSSEAU, 2004, p. 262).

A construção do conhecimento das ciências e a aprendizagem do ofício são os

aspectos mais relevantes na educação do Emílio em sua idade da força. Como aponta

Streck (2008), a construção de ambos está situada dentro de um marco maior, que

exige muito mais tempo e é mais complexo – ser aprendiz do ofício de ser humano.

O LIVRO IV

No final do livro III, quando Emílio está com quinze anos, seu intelecto já está bem mais

maduro, ele é um conhecedor das relações essenciais do homem com as coisas –

objetivo maior da educação natural –, mas ainda nada sabe sobre as relações morais

do homem com o homem – objetivo privilegiado a partir do livro IV. No entanto, o

fundamento para o progresso em sua formação está construído:

Emílio tem poucos conhecimentos, mas os que tem são seus de verdade; nada sabe pela metade. Dentre as poucas coisas que sabe, e sabe bem, a mais importante é que existem muitas coisas que ele ignora, mas pode um dia saber, muito mais que outros homens sabem e ele nunca saberá em sua vida, e uma infinidade de outras que nenhum homem jamais saberá. Ele tem um espírito universal, não pelas luzes, mas pela faculdade de adquiri-las; um espírito aberto, inteligente, pronto

133

para tudo e, como diz Montaigne, se não instruído, pelo menos instruível (ROUSSEAU, 2004, p. 281).

Nos livros anteriores, o critério da boa educação era voltado para o aperfeiçoamento do

ser, agora este ser é colocado em relação a outros seres. Com abertura para o

conhecimento construída, este é, portanto, o momento de Emílio conhecer a sociedade.

Não é à toa, que este é considerado por Rousseau, seu segundo nascimento:

“Nascemos, por assim dizer, duas vezes: uma para existir, outra para viver; uma para

espécie, outra para o sexo” (ROUSSEAU, 2004, p. 285).

Esta metáfora do segundo nascimento anseia distinguir que, em um primeiro período da

vida, a formação do indivíduo confere maior ênfase a sua formação como pessoa, para

mais tarde esta formação servir de alicerce para as relações que este indivíduo

estabelecerá socialmente.

É o segundo nascimento de que falei; é aqui que o homem nasce verdadeiramente para a vida e que nada de humano lhe é alheio. Até agora nossas preocupações foram brinquedos de criança; só agora assumem uma verdadeira importância. Esta época em que terminam as educações comuns é propriamente aquela em que a nossa deve começar [...] (ROUSSEAU, 2004, p. 287).

Logo, com a entrada na adolescência, o educando ultrapassa a fase em que era

reconhecido pelo seu ser físico e era instigado a estabelecer suas relações com as

coisas, com o mundo natural e passa a se compreendido como ser moral. Agora a

ênfase de seu ensino será a relação com os outros seres humanos, sua sensibilidade

agora se desenvolverá de modo que ultrapasse os limites de si próprio e estenda-se

aos seus semelhantes (CENCI, 2011).

Deste modo, neste período da vida de Emílio, seu preceptor investirá na formação

moral de seu aluno. Antes disso, vale a pena um esclarecimento sobre a educação

moral proposta por Rousseau. No Emílio, vemos que a educação moral está baseada

na idade e no desenvolvimento das faculdades do educando. Deste modo, as fases do

desenvolvimento infantil descritas nos livros I, II e III coincidem com a educação

134

negativa, como já descrevemos neste capítulo. Nestas fases, um embrião da educação

moral já é produzido, mas sob a perspectiva da educação negativa. Por isso alerta

Rousseau, no livro III:

A igualdade convencional entre os homens, muito diferente da igualdade natural, torna necessário o direito positivo, isto é, o governo e as leis. Os conhecimentos políticos de uma criança devem ser nítidos e limitados; ela deve conhecer do governo em geral apenas o que se relaciona com o direito de propriedade, de que já tem alguma ideia.

[...]

Não avanceis mais do que isso e não entreis na explicação dos efeitos morais dessa instituição. Em todas as coisas, é importante expor bem os usos antes de mostrar os abusos. Se pretenderdes explicar às crianças como os signos fazem com que se deixem de lado as coisas, como nasceram da moeda todas as quimeras da opinião, como os países ricos em dinheiro devem ser pobres de tudo, tratareis essas crianças não apenas como filósofas, mas como homens sábios, e pretendeis fazer com que entendam o que até poucos filósofos compreenderam bem (ROUSSEAU, 2004, p. 252-253).

É possível encontrar nesse trecho, problematizações que mais tarde desdobram em

questões morais, nas relações de desigualdade entre os homens, mas Emílio ainda

está cativo de uma relação de bem-estar pessoal e de utilidade.

Podemos, então, sintetizar a posição de Rousseau da seguinte maneira. Na primeira

etapa da infância, as ações da criança não apresentam moralidade, uma vez que não

dispõe de razão desenvolvida e a consciência está potenciada, mas não em exercício;

na segunda infância, o princípio é o de uma educação voltada ao fortalecimento do

corpo e o refinamento dos sentidos. Nesta fase, a criança adquire a consciência de

existir e o papel da educação moral é auxiliá-la a manter o equilíbrio entre as

faculdades e os desejos. Por isso, ao educador é dada a tarefa de identificar e distinguir

as necessidades dos caprichos. No terceiro período da infância, a educação moral

insere-se ainda no contexto da educação negativa, ou seja, a criança orienta-se em

termos da utilidade e não ainda da moralidade. Com isso, os aspectos que dizem

respeito diretamente à ordem moral e à vida social ainda não devem lhe ser

apresentados diretamente, uma vez que ela não tem subsídios para entendê-los. A

135

educação moral nesta fase consiste em prevenir a vaidade que poderá ser despertada

com o progresso do desenvolvimento da razão (CENCI, 2011). Com isso afirma

Rousseau:

O estudo que convém ao homem é o de suas relações. Enquanto ele só se conhecer pelo seu ser físico, deverá estudar-se pelas suas relações com as coisas; é o trabalho de sua infância. Quando começar a sentir seu ser moral, deverá estudar-se por suas relações com os homens; é o trabalho de sua vida inteira, a começar do ponto que acabamos de chegar (ROUSSEAU, 2004, p. 290).

Em síntese, a educação moral deve ser entendida na infância tendo como base o

contexto da educação negativa que, ao invés de ensinar-lhe a verdade, investe em

preservar a criança do erro. Como já afirmamos neste capítulo, esta educação visa a

preparar as faculdades humanas para que elas se desenvolvam no seu devido tempo,

sem antecipar etapas. Portanto, afirma Cenci (2011, p. 157):

A educação moral na infância – que conforme já foi salientado, possui caráter indireto – não deve estar voltada a inculcação de virtudes, mas à prevenção dos vícios. Essa noção de prevenção mostra que as virtudes necessárias para vida social não são adquiridas espontaneamente. Conduzir o educando e prevenir os vícios demanda já uma postura ativa de sua parte. É claro que falta ainda o advento da sociabilidade e o despertar das paixões e da razão, ou seja, as condições externas e internas para que seu papel se torne diretamente o de educador enquanto educador moral. Isso ocorrerá com o despontar da adolescência.

Sendo assim, o advento da educação moral como uma ação direta e ativa se

desenvolve a partir dos quinze anos do Emílio e tem três importantes conceitos

fundantes: a ideia de amor de si, do amor-próprio e da piedade. Estes conceitos estão

atrelados a compreensão de Rousseau segundo a qual as paixões são o principal

instrumento da conservação humana; desse modo, ele considera vãs e ridículas as

tentativas que desejam contê-las ou destruí-las. E a primeira fonte para todas outras

paixões humanas é o amor de si.

136

O amor de si é a paixão primitiva, inata e anterior a todas as outras paixões. As paixões

que surgirão posteriormente não passam de modificações desta primeira. O amor de si

é sentimento original humano; ele é encarregado do primeiro e o mais importante dos

cuidados, o compromisso humano de cuidar de sua própria conservação. Deste modo,

explica Rousseau: “É preciso que nos amemos para nos conservarmos, é preciso que

nos amemos mais do que qualquer outra coisa, e por uma consequência imediata do

mesmo sentimento, amamos o que nos conserva. Toda criança apega-se à sua ama

[...]” (ROUSSEAU, 2004, p. 288).

Com o exposto neste trecho, Rousseau nos permite confundir o sentimento de amor de

si como um sentimento egoísta, já que a partir do compromisso de cada ser humano de

cuidar de sua preservação, amando a nós mesmos em função da preservação da

nossa vida, vamos ampliando esse círculo amando aqueles que nos ajudam a nos

preservar. Assim,

O primeiro sentimento de uma criança é amar a si mesma, e o segundo, que deriva do primeiro, é amar os que lhe são próximos, pois no estado de fraqueza em que se encontra não conhece ninguém a não ser pela assistência e pela atenção que recebe. No começo, o apego que tem por sua ama e por sua governanta não passa de hábito. Procura-as porque precisa delas e sente-se bem por tê-las; trata-se mais de conhecimento do que de benevolência. É-lhe preciso muito tempo para compreender que não apenas elas lhe são úteis como também querem sê-lo, e é então que começa a amá-las.

Assim, a criança inclina-se naturalmente para benevolência, pois vê que tudo o que a rodeia dispõe-se a ajudá-la, e dessa observação ela toma o hábito do sentimento favorável a sua espécie [...] (ROUSSEAU, 2004, p. 289).

O trecho citado é exemplar para reconhecermos em Rousseau sua herança

contratualista, como abordamos em nosso segundo capítulo. Em sua explicação sobre

a passagem da natureza para a sociedade, o autor compreende que pacto social é

construído por indivíduos isolados que abrem mão de sua liberdade irrestrita em nome

de algo. O problema dessas teorias é que elas pressupõem a existência de indivíduos

antes da constituição social. Como já tratado, o tema do contrato é sistematicamente

137

desenvolvido por Hobbes em seu Leviatã, por Locke nos seus dois Tratados sobre o

governo civil e por Rousseau em seu Contrato Social. Para Delacampagne (2001),

Na verdade, a noção de contrato social reside na crença segundo a qual alguns homens, no estado de natureza, teriam sido capazes de raciocinar, de negociar, de assinar contratos – ao passo que o raciocínio jurídico, assim como a linguagem que serve para transcrevê-lo, só é possível no estado social, e os ‘homens’, assim como prova tudo o que sabemos sobre a pré-história, nunca viveram de outra forma que não fosse em grupos. O ser humano é sempre-já um ser social, e o estado de natureza não é menos uma ficção do que o próprio contrato. Em resumo, se quisermos salvar esse contrato do ridículo, não há outra solução senão considerá-lo, como sugere muito adequadamente Rousseau, uma simples ‘hipótese’ (DELACAMPAGNE, 2001, p. 102-103).

Com isto, sendo o sentimento do amor de si o sentimento por vocação do humano,

fomenta-se assim terreno fértil para se relacionar a infância, com o arquétipo do estágio

natural do homem. Entretanto, na adolescência quando as relações sociais do Emílio

se ampliam e suas necessidades e paixões aumentam, juntamente com elas o

sentimento de ligação com os outros seres se desperta e provoca o sentimento dos

deveres e das preferências. Desde modo, o amor de si, que é – a “[...] única paixão que

nasce no homem é, em si mesma, indiferente ao bem e ao mal, torna-se boa ou má

pela contingência nas circunstâncias nas quais se desenvolve” (GARCIA, 2011, p. 172)

– dá espaço ao amor-próprio:

[...] mas, à medida que amplia suas relações, suas necessidades, suas dependências ativas ou passivas, o sentimento de suas relações com o outro desperta e produz o dos deveres e das preferências. Então, a criança se torna imperiosa, ciumenta, enganadora e vingativa (ROUSSEAU, 2004, p. 289).

O amor-próprio diferentemente do amor de si – que só a nós mesmos considera e se

satisfaz quando nossas verdadeiras necessidades são atendidas – se compara, nunca

está e nem poderia estar satisfeito. É por isso que as paixões gentis e afetuosas

nascem do amor de si e as paixões odiosas e irascíveis nascem do amor-próprio:

138

Tendo Emílio até o presente olhado apenas para si mesmo, o primeiro olhar que lança aos seus semelhantes leva-o a comparar-se a eles, e o primeiro sentimento que excita nele esta comparação é desejar o primeiro lugar. Eis o ponto em que o amor de si transforma-se em amor-próprio e onde começam a nascer todas as paixões que dele dependem (ROUSSEAU, 2004, p. 324).

Contudo, o fato de Rousseau afirmar que estas paixões odiosas e irascíveis nasçam do

amor-próprio não deve nos levar a descartar a importância desta paixão no contexto da

formação moral, pelo contrário, ele ajuda a criar condições imperiosas para tal. O amor-

próprio passar a existir e desenvolve-se com a socialização do indivíduo, e mesmo

tendo como características principais o egoísmo e a comparação com os outros, ele

pode e deve ser modificado por referência à inclusão do outro. Nas palavras de Dent

(1996, p. 41),

Intrinsecamente, o amor-próprio dirige-nos no sentido de obter para nós próprios o reconhecimento dos outros e uma posição na sociedade em que sejamos respeitados como seres significativos cujas necessidades e desejos têm o direito absoluto a ser levados em conta em pé de igualdade com os de quaisquer outras pessoas. Possuir tal posição é inerentemente valioso, como reconhecimento de nossa dignidade humana e moral. Desfrutá-la é um dos nossos bens particulares; de fato, o amor-próprio é simplesmente a forma que o amor de si mesmo (que nos dirige para a fruição do nosso próprio bem) adota quando o bem pessoal procurado é aquele de que necessitamos em nosso trato com outros. É o desejo de ter o que nos é próprio, o que nos pertence, como membros iguais em nossa associação com outros.

Reivindicar tal reconhecimento como algo que nos é devido não envolve, de maneira nenhuma, negar o direito dos outros. Com efeito, Rousseau empenha-se em mostrar que somente se o concedemos a outros é que podemos esperar recebê-los deles. Assim, não está envolvida aqui uma competição nem luta por dominação – isso só ocorre quando as outras pessoas são percebidas como ameaçando negar-nos ou privar-nos de honra e prestígio.

Deste modo, a contradição do sentido do amor-próprio está configurada. Verifica-se que

a ideia de amor-próprio ultrapassa a ideia de amor de si, ou seja, expande-se de uma

sensibilidade limitada ao indivíduo e traz consigo a ideia de sociabilidade que só se

139

realiza na existência e na relação com os demais seres; assim, constitui-se como

necessária ao desenvolvimento da moralidade. A partir disso, “O amor próprio

possibilita, pois, ao educando, enfrentar a situação de ter de sair do seu isolamento

pelo processo da socialização, mediante o qual descobre a maldade e a perversão de

sua condição, mas também o amor à justiça” (CENCI, 2011, p. 152).

O princípio fundamental da educação na adolescência de Emílio consiste em não

renunciar por completo o amor-próprio, mas em transformá-lo na referência da inclusão

do outro em sua ação. Não renunciá-lo por completo significa que o educador deve ter

como baliza que o amor-próprio carrega uma dupla definição. Neste contexto da

introdução da sociabilidade do Emílio, Rousseau traceja os contornos do nascimento da

terceira paixão fundante do projeto de educação moral – a piedade:

O primeiro sentimento de que um jovem com esmero é suscetível não é o amor, mas a amizade. O primeiro ato de sua imaginação nascente é ensinar-lhe que existem semelhantes, e a espécie o afeta antes do sexo. Eis, portanto, outra vantagem da inocência prolongada: tirar proveito da sensibilidade nascente para jogar no coração do jovem adolescente as primeiras sementes da humanidade; vantagem tanto mais preciosa quanto esse é o único tempo da vida em que os mesmos cuidados podem ter um verdadeiro sucesso (ROUSSEAU, 2004, p. 300).20

Já com as sementes de humanidade semeadas no coração do jovem Emílio, mais

adiante na obra, Rousseau descreve como seu aluno é sensível à experiência de seu

semelhante:

Tendo refletido pouco sobre os seres sensíveis, Emílio saberá tarde o que é sofrer e morrer. As queixas e os gritos começarão a agitar suas entranhas; o aspecto do sangue que corre fará com que desvie o olhar; as convulsões de um animal moribundo dar-lhe-ão não sei que angústia antes que ele saiba de onde lhe vêm essas novas reações. Se tivesse permanecido estúpido e bárbaro, não as teria; se fosse mais instruído,

20

Neste trecho, Rousseau pondera se nesta altura da formação de Emílio ele já precisa de uma companheira ou se

ele, como seu tutor, prolongará seu estado natural, ou o seu tempo de inocência. Rousseau conclui que estender seu

tempo de inocência poderá ser vantajoso, já que assim ele poderá aproveitar sua sensibilidade nascente e usá-la como

aliada em sua formação moral.

140

conheceria sua origem; já comparou ideias demais para nada sentir, e não o suficiente para compreender o que sente.

Assim nasce a piedade, primeiro sentimento relativo que toca o coração humano conforme a ordem da natureza. Para tornar-se sensível e piedosa, é preciso que a criança saiba que existem seres semelhantes a ela que sofrem o que ela sofreu, que sentem dores que ela sentiu e outras que deve ter ideia de que também poderá sofrer. De fato, como nos deixaremos comover pela piedade, a não ser saindo de nós mesmos e identificando-nos com o animal que sofre e deixando, por assim dizer, nosso ser para assumir o seu? (ROUSSEAU, 2004, p. 303-304).

Assim, concluímos que o amor-próprio, por um lado, é constituidor da afeição social,

quando confrontado com o sentimento de piedade, mas por outro lado ele é causador

da corrupção social. No projeto da educação moral, a piedade assume um lugar no

desenvolvimento da moralidade do Emílio e, por consequência, influenciará no modo

que o jovem se relacionará com seus semelhantes. Na relação com o outro, o amor de

si se desenvolve em piedade, para que isso ocorra deve haver uma educação que

ajude o jovem a fazer um descentramento, saindo de si mesmo e se identificando com o

ser que sofre.

Nesta quarta etapa da educação do Emílio, o educador tem a tarefa de orientar o amor-

próprio de seu aluno, a sua condução deverá favorecer que o jovem dedique seus

cuidados mais à felicidade dos outros que a de si próprio, desenvolvendo em si os

sentimentos de bondade e humanidade. O projeto de educar moralmente seu aluno

implica em orientá-lo adequadamente as paixões. A intensidade própria da

adolescência poderia ser um obstáculo à educação, mas Rousseau entende que essa

intensidade (paixões) tem papel central no processo educativo nesta fase da vida.

Além da discussão apresentada aqui sobre a educação moral e as paixões humanas, o

livro IV, o maior dos capítulos do Emílio ou da educação, traz ainda um extenso trecho

no qual o tutor introduz Emílio à religião. Embora esta parte represente um pequeno

fragmento em todo o seu trabalho, ela é bastante peculiar e trouxe grandes

consequências para Rousseau após sua publicação, como já abordamos. Este trecho é

denominado Profissão de fé do vigário Saboiano. Nele, encontra-se uma série de

141

argumentos sobre a religião e a sociedade, escritos por um suposto religioso

(personagem também criado por Rousseau), o vigário de Saboia:

Baseado em suas crenças sobre os limites da razão humana, o vigário segue, criticando todas as formas de fanatismo e intolerância, especialmente sobre os cristãos contra os não cristãos [...] muitos comentaristas observaram que a Profissão contém também um tipo de dualismo entre o corpo e a alma, e entre o bem e o mal na natureza humana, o que é característico dos outros trabalhos de Rousseau. Uma outra possibilidade é que Rousseau tenha se escondido no texto, porque as opiniões manifestadas pareciam controversas e, na verdade, elas o eram. A Profissão atacou o dogmatismo, a crença em milagres, a superstição, a divindade de Cristo, a intolerância religiosa e as religiões organizadas (SIMPSON, 2009, p. 172).

O LIVRO V

Com vistas a introduzir Emílio no mundo civilizado, o tutor envia Emílio para o mundo

aberto, o que já ocorre no final do livro IV. O jovem viaja para uma cidade moderna para

se familiarizar com os tipos diferentes de pessoas, como também seus hábitos e

costumes. Graças à cortesia e gentileza natural do bem educado Emílio, ele

rapidamente é aceito na sociedade sofisticada, sem, no entanto ser corrompido por ela.

Um trecho presente ainda neste livro será a tônica da discussão que mais será

evidenciada no livro que apresentaremos aqui:

Emílio não foi feito para permanecer sempre solitário; membro da sociedade, deve cumprir seus deveres. Feito para viver com os homens, deve conhecê-los. Conhece o homem em geral; falta-lhe conhecer os indivíduos. Sabe o que se faz na sociedade; falta-lhe ver como se vive nela. Já é tempo de mostrar-lhe o exterior desse grande teatro cujos jogos secretos já conhece todos. Já não terá por ele a admiração estúpida de um jovem avoado, mas o discernimento de um espírito reto e justo. Suas paixões poderão iludi-lo, sem dúvida, quando é que não iludem os que se entregam a elas? Mas pelo menos não será enganado pelas paixões dos outros. Se as vir, vê-las-á com os olhos do sábio, sem ser arrastado por seus exemplos nem seduzido por seus preconceitos (ROUSSEAU, 2004, p. 470-471).

142

No trecho anterior, percebemos o objetivo de Rousseau na quinta etapa da educação

do Emílio: assumir seus deveres de cidadania. Neste livro, está descrito o final do

programa educacional de Emílio, este é também o momento em que ele escolhe e se

casa com sua companheira, Sofia21.

Ela é, por assim dizer, a porta de entrada para o mundo perigoso do qual Emílio havia sido cuidadosamente protegido. Quando estuda história, religião e os gostos e costumes, seu coração será despertado para a vida social, e é importante que seja adequadamente orientado para o ingresso nessa nova realidade. Sofia será uma espécie de garantia da sobrevivência moral do novo cidadão (STRECK, 2008, p. 47).

Por conta da escolha da companheira de Emílio, Rousseau apresenta neste capítulo

também um programa paralelo para educação das meninas, no qual o processo de

formação de Sofia é refletido pelo autor. Este programa apresenta aspectos comuns à

educação de Emílio, mas possui particularidades, que não nos permitem afirmar com

rapidez se trata de um programa que propaga ou não a sujeição da mulher. Como

afirma Simpson (2009, p. 175):

A situação, portanto, é mais complicada do que parece inicialmente. A subordinação da mulher, que ele recomenda, é de um determinado tipo que exige também que elas sejam altamente educadas. O assunto fica ainda mais confuso diante da ideia de Rousseau de que as melhores mulheres são, na realidade, aquelas que estão em completo controle dos seus homens22.

A relação de Emílio e Sofia é um artifício estreitamente elaborado por seu tutor, desde

quando são apresentados passando por todo percurso que realizam até o casamento,

como percebemos no trecho seguinte:

21

Sobre o simbolismo que há na escolha do nome da companheira do Emílio, Rousseau explica: “Gostaria de chegar

a dar-lhe um nome; rindo, dir-lhe-ia: Chamemos de Sofia tua futura namorada, Sofia é um nome de bom augúrio; se

a mulher que escolheres tiver outro nome, pelo menos será digna de se chamar Sofia; podemos antecipadamente

honrá-la deste modo” (ROUSSEAU, 2004, p. 474). 22

Sobre esta discussão, indicamos ver Streck (2008), que realiza uma reflexão interessante em sua obra sobre o papel

de Sofia na educação e na inserção de no mundo civilizado.

143

Mas não acrediteis que eu tenha esperado para encontrar a mulher de Emílio, que eu o colocasse no dever de procurá-la. Essa busca fingida não passa de um pretexto para fazê-lo conhecer as mulheres, a fim de que ele perceba o valor da que lhe convém. Sofia foi encontrada há muito tempo; talvez Emílio já a tenha visto, mas só a reconhecerá quando chegar a hora (ROUSSEAU, 2004, p. 597).

Antes de casarem, quando Emílio está com vinte anos, o tutor afirma que a educação

de seu aluno ainda não está completa. Embora ele tenha um forte intelecto e um bom

caráter, conhece-se e conhece suas obrigações morais mais básicas para com os

outros, ele ainda é ignorante sobre a política e os seus deveres políticos. Deste modo,

embora Rousseau considere grande parte de sua formação atingida, ele assevera:

Considerai o meu Emílio, com vinte anos completos, bem formado, bem constituído de espírito e de corpo, forte, sadio, disposto, destro, robusto, cheio de juízo, de razão, de bondade, de humanidade, com bons costumes, bom gosto, amante do belo, fazedor do bem, livre do império das paixões cruéis, sem o jugo da opinião, mas submisso à lei da sabedoria e dócil à voz da amizade; dono de todos os talentos úteis e de vários talentos agradáveis, pouco preocupado com as riquezas, carregando seu recurso na ponta dos braços e sem medo de não ter pão, aconteça o que acontecer (ROUSSEAU, 2004, p. 616).

Emílio ainda necessita conhecer os homens, e para Rousseau, este conhecimento não

pode ser apreendido na leitura dos livros: “O abuso dos livros mata a ciência.

Acreditando saber o que lemos, acreditamos estar dispensados de aprendê-lo

(ROUSSEAU, 2004, p. 665). Portanto é necessário que Emílio viaje, para conhecer o

homem por uma perspectiva mais privilegiada:

É útil ao homem conhecer todos os lugares em que se pode viver, para que em seguida escolha aqueles onde pode viver mais comodamente. Se cada um bastasse a si mesmo, só lhe importaria conhecer a extensão do país que pode sustentá-lo. O selvagem não precisa de ninguém e nada ambiciona, não conhece e não procura conhecer outras regiões além da sua. Se é forçado a se propagar para subsistir, evita os lugares habitados pelos homens; só vida aos animais, e só precisa deles

144

para se alimentar. Quanto a nós, para quem a vida civil é necessária e que já não podemos dispensar-nos de comer homens, o interesse de cada um de nós é frequentar os países onde os encontramos em maior número para serem devorados. Eis por que tudo aflui para Roma, para Paris e para Londres. É sempre nas capitais que se vende o sangue humano mais barato (ROUSSEAU, 2004, p. 671).

Diante disso, Rousseau descreve o último objetivo da educação de Emílio:

Ora, depois de ter-se considerado através de suas relações físicas com os outros seres, de suas relações morais com outros homens, resta-lhe considerar-se pelas relações civis com os outros concidadãos. Para isso, ele deve começar por estudar a natureza do governo em geral, as diversas formas de governo e finalmente o governo particular sob o qual nasceu, para saber se lhe convém viver nele; pois, por um direito que ninguém pode ab-rogar, cada homem, ao tornar-se maior e senhor de si, torna-se também senhor da possibilidade de renunciar ao contrato pelo qual se liga à comunidade, deixando o país em que ela se estabeleceu (ROUSSEAU, 2004, p. 673-674).

Por conta disso, Emílio embarca numa longa viagem de dois anos por vários países da

Europa para completar sua formação, ou seja, para ser instruído acerca da vida civil e

decidir os rumos que dará a sua vida, como ser maior e cidadão. Nesta longa viagem,

[...] tudo se passa como se o preceptor estivesse a antecipar o fim das ilusões de Emílio. Reiterando assuntos expostos no Contrato, apresenta máximas, observações e questões a serem discutidas acerca da vida civil e das dificuldades de Emílio, como homem e cidadão, para manter-se fiel aos princípios nos quais foi formado (GARCIA, 2011, p. 175).

Após sua extensa e duradora viagem, Rousseau questiona Emílio: “Muito bem, meu

amigo, lembras-te do principal objetivo de nossas viagens; viste, observaste. Qual é

finalmente, o resultado de tuas observações? O que decides?” (ROUSSEAU, 2004, p.

698). A crítica de Rousseau ao modelo de sociedade de seu tempo fica expressa na

resposta de Emílio:

O que decido? Permanecer tal como me fizeste ser e não acrescentar voluntariamente nenhuma outra corrente à que me dão a natureza e as

145

leis. Quanto mais examino a obra dos homens em suas instituições, mais vejo que, de tanto quererem ser independentes, eles se tornam escravos, e que gastam a própria liberdade em vãos esforços para garanti-la. Para não ceder à torrente das coisas, apegam-se a mil coisas; depois, assim que querem dar um passo, não podem, e ficam espantados por dependerem de tudo. Acho que para nos tornarmos livres nada temos de fazer; basta não querer deixar de sê-lo. Foste tu, ó meu mestre, que me fizeste livre ensinando-me a ceder à necessidade. Venha ela quando quiser, deixar-me-ei levar sem constrangimento, e, como não quero combatê-la, a nada me apego para me segurar. Procurei em nossas viagens saber se encontraria algum cantinho de terra que pudesse ser absolutamente meu; mas em que lugar junto aos homens já não dependemos de suas paixões? Tudo bem examinado, descobri que meu próprio desejo era contraditório, pois, ainda que eu não dependesse de nenhuma outra coisa, dependeria pelo menos da terra em que me tivesse estabelecido; minha vida estaria ligada a essa terra como a das dríades estava ligada às suas árvores; descobri que, sendo domínio e liberdade duas palavras incompatíveis, eu não podia ser dono de uma cabana senão deixando de sê-lo de mim (ROUSSEAU, 2004, p. 698).

Com o retorno da viagem, a paixão de Emílio e Sofia se consolida e eles se casam e

optam por viver a vida no campo. Ao final do livro, Emílio comunica ao seu mestre que

Sofia se encontra grávida e que deseja a sua ajuda na educação de seu futuro filho.

Com vemos, Rousseau apresenta e discute um ideal de formação que, em princípio,

retira a criança da sociedade degenerada para depois a inserir nela de novo

progressivamente, conforme a marcha da natureza, o ritmo de etapas bem marcadas

de desenvolvimento físico, psíquico e moral. Isso propiciaria ao ser humano o trânsito

do estado de inocência para o estado de virtude, sem passar pela queda; portanto, no

seu Emílio, o autor traceja minuciosamente o modo menos abrupto de fazer o homem

atravessar o estágio da natureza para a vida social. Em síntese,

[...] o Emílio é oferecido ao leitor como o caminho da boa socialização numa sociedade histórica, povoada de criaturas boas e más, estas, em maior número do que aquelas, hipócritas muitas vezes, agarradas às aparências, a honrarias, ao poder... afastadas de sua natureza, originalmente íntegra (BARROS, 2000, p. 12 ) .

146

CAPÍTULO 4

UM DIÁLOGO CRÍTICO COM ROUSSEAU

Este capítulo tem o objetivo de lançar luz sob nosso ponto de investigação, qual seja: a

questão do movimentar-se na criança pequena. Deste modo, interessa-nos investigar

como esta temática é tratada no livro Emílio ou da educação.

Como já anunciamos no capítulo I, nos propomos a partir daqui o exercício analítico de

perceber como o movimento humano é abordado na obra com relação às crianças

desde seu nascimento até os seis anos.

Neste capítulo, focamos aquele momento que Rousseau (2004, p. 96) considera “[...] o

mais perigoso intervalo da vida humana”, já que se trata de um tempo de

desenvolvimento imprescindível ao longo da vida. Nesse período, o autor afirma que a

educação racional não é o alvo. Deste modo, sua sugestão é que o processo educativo

siga o caminho da natureza, privilegiando uma educação que esteja atenta aos

sentidos:

O mais perigoso intervalo da vida humana é o que vai do nascimento até a idade de doze anos. É o tempo em que germinam os erros e os vícios, sem que tenhamos ainda algum instrumento para destruí-los. E, quando chega o instrumento, as raízes são tão profundas, que já não é tempo de arrancá-las. Se as crianças saltassem de uma vez das tetas para a idade da razão, a educação que lhes damos poderia ser-lhes convenientes. Mas, segundo o progresso natural, precisam de uma educação totalmente contrária (ROUSSEAU, 2004, p. 96).

Em um primeiro momento, apresentamos as prescrições de Rousseau para a infância

e, nesse contexto, as práticas corporais. Contudo, a fim de preservar a análise, nosso

esforço é o de descrever com zelo a posição de Rousseau em relação a essas práticas,

ainda que alguns comentários analíticos já se façam presentes. Em um segundo

momento, a partir das sugestões marxianas, debatemos a formulação de Rousseau do

147

movimentar-se humano tendo em vista a sua formulação ontológica referente ao ser

humano.

O MOVIMENTAR-SE NA IDADE DA NECESSIDADE

Como abordamos no capítulo anterior, o período que compreende o nascimento e se

finaliza aos dois anos de idade é denominado por Rousseau como a idade da

necessidade. Como já mencionado, esta primeira fase da vida humana é marcada pela

tensão dos cuidados necessários à manutenção da vida da criança, que são

sintetizados com os princípios a seguir:

O homem sábio sabe permanecer em seu lugar, mas a criança que não sabe o seu lugar não será capaz de permanecer nele. Junto a nós, existem mil lugares por onde a criança pode sair de seu lugar; cabe aos que a educam mantê-la nele, e esta não é uma tarefa fácil. Ela não deve ser nem um animal, nem um homem, e sim criança. É preciso que ela sinta a sua fraqueza e não que a sofra; é preciso que ela dependa, e não obedeça; é preciso que ela peça, e não mande. A criança só é submetida aos outros em razão de suas necessidades, e porque vêem melhor do que ela o que lhe é útil, o que pode contribuir ou prejudicar a sua conservação (ROUSSEAU, 2004, p. 81-82).

A outra extremidade da tensão está na oportunização de contato com a natureza, para

que a criança desenvolva sua sensibilidade e constitua o subsídio daquilo que será

fundamental mais tarde a sua formação.

Deste modo, esta fase caracteriza-se por ser um período em que a criança mais precisa

do adulto, pois, sem seus cuidados, ela não sobrevive. Em contrapartida, o processo

educacional deve ser guiado segundo os caminhos da natureza, o que significa que a

criança deve ser confrontada com a natureza. Nesta fase, não se deve poupar o

educando de nenhuma dificuldade física, esforço ou privação que sejam impostos pela

natureza. Portanto, a educação natural proposta para a primeira infância indica que a

criança deve se exercitar de modo a conhecer e sentir as dificuldades da vida. Proteger

a criança de tudo aquilo que cedo ou tarde ela terá que de enfrentar não é desejável. A

148

criança precisa conhecer estas dificuldades para crescer na independência da vontade

e do caráter. Assim afirma Rousseau, nas primeiras páginas do livro I:

Dada, porém, a mobilidade das coisas humanas, dado o espírito agitado e inquieto deste século que perturba tudo a cada geração, pode-se conceber um método mais insensato do que educar uma criança como se nunca tivesse que sair do seu quarto, como se tivesse de estar sempre rodeada pelos seus? Se a infeliz der só um passo pela terra, se descer um só degrau, estará perdida. Não se trata de ensiná-la a suportar as dificuldades, mas de exercitá-la para senti-las (ROUSSEAU, 2004, p. 16, grifo nosso).

Quando o autor considera uma insanidade educar uma criança como se a mesma

nunca tivesse que sair de seu quarto, percebemos que ele dialoga com as ideias de

uma educação que prepare para a civilidade, que tenha como pressuposto a

solidariedade, a compaixão e a piedade alheia, mas também uma educação que atenda

aquele que é o primeiro anseio da criança, a liberdade de seu mover-se para

desenvolver algo que é muito caro à educação rousseauniana, a sensibilidade humana.

Portanto, neste capítulo, nos dedicamos a percorrer as prescrições dadas por

Rousseau, sobre os cuidados e procedimentos que o adulto deve dedicar à criança

para que a mesma seja educada de acordo com os princípios da educação natural.

OS CUIDADOS CORPORAIS E A LIBERDADE DO MOVER-SE

A partir da leitura da obra Emílio ou da educação, consideramos que o mote de

Rousseau, ao privilegiar as questões dos cuidados e procedimentos com a criança

recém-nascida, é explicitado na passagem:

Mal a criança saiu do ventre da mãe e mal gozou da liberdade de movimentar e esticar seus membros e já lhe dão novos laços. Põem-lhe fraldas, deitam-na com a cabeça presa e com as pernas esticadas, com os braços pendentes ao lado do corpo; é envolta em panos e bandagens de toda espécie, que não lhe permitem mudar de posição. Feliz da

149

criança se não a apertaram a ponto de impedi-la de respirar, e se tivessem a preocupação de deitá-la de lado, para que as águas que deve devolver pela boca possam cair por si mesmas! Pois ela não teria a liberdade de voltar a cabeça para o lado a fim de facilitar seu escoamento (ROUSSEAU, 2004, p. 17).

De acordo com uma nota do tradutor da obra, neste trecho, o autor utiliza uma citação

do naturalista francês Buffon23, do livro História Natural, publicado em 1749. A partir

daqui, Rousseau discorre uma série de orientações sobre como cuidar da criança

pequena numa perspectiva que favoreça seu crescimento de acordo com os

ensinamentos da natureza.

Deste modo, mais do que uma descrição completa, citaremos exemplos desses

procedimentos indicados por Rousseau, com o objetivo de dar visibilidade às diferentes

prescrições que se relacionam com os cuidados corporais. Para tanto, oferecemos

indícios por meio de prescrições destinadas ao vestuário, a alimentação, ao banho e às

práticas corporais relacionadas ao movimento. No que tange esta última, nosso objeto

de investigação centraremos maior atenção e dedicaremos nosso maior esforço de

análise.

No conjunto de prescrições e cuidados descritos para os primeiros anos do recém-

nascido Emílio, Rousseau demonstra interesse pela alimentação de seu aluno e aborda

a importância da escolha minuciosa daquela que o alimentará em seus primeiros anos

de vida, a ama-de-leite. Deste modo, crítica uma prática corrente de seu tempo e

prescreve à educação de Emílio:

Quando se trata de procurar uma ama-de-leite, fazem com que o parteiro a escolha. Que acontece, então? Que a melhor é sempre a mais cara. Portanto, não irei consultar um parteiro quanto à ama de Emílio, mas procurarei eu mesmo escolhê-la. Talvez eu não tenha a respeito ideias tão claras quanto um cirurgião, mas certamente serei mais honesto e meu zelo me enganará menos do que a avareza dele.

Esta escolha não é um mistério tão grande. Suas regras são conhecidas, mas não sei se não caberia dar um pouco mais de atenção

23

Georges Louis Leclerc, o conde de Buffon, foi precursor de Lamarck e Darwin. Suas concepções filosóficas sobre

a influência do meio na degeneração das espécies e suas considerações sobre as diferenciações das raças humanas

constituíram valiosos subsídios para o progresso da biologia.

150

à idade do leite, assim como a sua qualidade. O leite novo é altamente seroso, deve ser como um aperitivo para purgar o resto do meconium que engrossou nos intestinos da criança recém-nascida. Pouco a pouco o leite toma consistência e fornece um alimento mais sólido à criança que se tornou mais forte para digeri-lo. Certamente não é sem razão que nas fêmeas de todas as espécies a natureza regula a consistência do leite de acordo com a idade do filhote (ROUSSEAU, 2004, p. 39).

Com esta prescrição, Rousseau demonstra atenção com a qualidade da alimentação de

seu aluno, bem como com a qualidade de vida daquela que o alimentará. Portanto,

argumenta que uma ama precisa ser “sadia de coração e de corpo”, pois “[...] a

intempérie das paixões pode, assim como dos humores, alterar seu leite” (ROUSSEAU,

2004, p. 39).

O autor, também, prescreve instruções ao banho do recém-nascido e crê que o

incentivo ao hábito faz com que o mesmo crie condições futuras para a aquisição de um

hábito saudável que perdurará toda a vida, após ter sido adquirido:

Uma vez estabelecido o costume do banho, ele não deve ser mais interrompido e é importante conservá-lo por toda vida. Considero-o não apenas do ponto de vista da limpeza e da saúde atual, mas também como uma precaução salutar para tornar mais flexível a textura das fibras e fazer com que elas cedam sem esforço e sem riscos aos diversos graus de calor e frio. Para tanto, gostaria que ao crescer nos acostumássemos pouco a pouco a nos banharmos às vezes em águas quentes, de todos os graus suportáveis, e outras vezes em águas frias, de todos os graus possíveis. Assim, depois de nos termos habituado a suportar diversas temperaturas da água, que, sendo um fluido mais denso, toca-nos em mais pontos e nos afeta mais, tornaríamo-nos quase insensíveis às do ar (ROUSSEAU, 2004, p. 44).

No conjunto de prescrições relacionadas aos cuidados do corpo, Rousseau faz

indicações também ao que ele considera o modo mais indicado de vestir a criança

recém-nascida:

No momento em que a criança respira ao sair de seus invólucros, não deveis deixar que sejam metidas em outros que a apertem ainda mais. Nada de testeiras e nada de faixas; fraldas soltas e largas que deixem todos os seus membros em liberdade e não sejam nem muito pesadas para atrapalhar seus movimentos, nem quentes demais para

151

impedir que sinta as impressões do ar. Colocai-a num grande berço bem acolchoado, onde ela possa movimentar-se à vontade e sem perigo. Quando começar a ficar mais forte, deixai-a engatinhar pelo quarto; deixai que a criança se desenvolva e estique as perninhas e os bracinhos e vereis que ela se fortalecerá a cada dia. Comparai-a com outra criança bem enfaixada, da mesma idade, e ficareis admirados com a diferença de seus progressos (ROUSSEAU, 2004, p. 45, grifo nosso).

Em outra passagem, já no livro II, Rousseau afirma que “[...] os membros de um corpo

em crescimento devem ficar todos folgados na roupa; nada deve atrapalhar seu

movimento ou seu crescimento, nada de muito justo, nada que cole ao corpo; nada de

ligaduras” (ROUSSEAU, 2004, p. 150).

Esse universo de conselhos e cuidados corporais compõe um duplo aspecto

organicamente articulado em Rousseau. Primeiro, o filósofo critica com severidade a

medicina, qualificada por ele como a “[...] arte mais perniciosa para os homens do que

todos os males que pretende curar” (ROUSSEAU, 2004, p. 34-35), “[...] diversão de

pessoas ociosas e desocupadas” (ROUSSEAU, 2004, p. 35). Para ele, a Medicina

incute “[...] a covardia, a pusilanimidade, a credulidade, o terror da morte; se curam o

corpo, matam a coragem” (ROUSSEAU, 2004, p. 35). Além disso, deve-se avaliar até

que ponto a cura de uma pessoa à custa de cem doentes mortos pelo médico é, de

fato, vantajosa. Assim, conclui: “A ciência que instrui e a medicina que cura são, sem

dúvida, muito boas, mas a ciência que ilude e a medicina que mata são más”

(ROUSSEAU, 2004, p. 35). Segundo, acompanha esse juízo acerca da Medicina o

elogio da Higiene, “[...] única parte útil da medicina” (ROUSSEAU, 2004, p. 37). Nesse

horizonte, a educação de Emílio começa com o seu nascimento e toma a forma de

cuidados higiênicos diversos.

Não podemos perder de vista o pano de fundo histórico que alimenta essa preocupação

de Rousseau:

De fato, nesse fim do século XVIII, o bebê que vem à luz tem pouco mais que 50% de chance de ultrapassar o marco dos dois anos. A falta de cuidados e de higiene, a desnutrição e a deficiência da medicina, os abandonos de crianças quando as condições econômicas se tornam

152

duras demais para as classes populares são alguns dos fatores que favorecem essa pavorosa mortalidade (CHALMEL, 2004, p. 62).

Com essas prescrições, Rousseau já aborda mais de perto a importância do movimento

da criança. Aqui, como em outros trechos, Rousseau (2004, p. 17) enfatiza que “A

criança recém-nascida precisa esticar e mover os membros para tirá-los do

entorpecimento em que, unidos como um novelo, permaneceram por um longo tempo”.

Com isso, a argumentação de Rousseau afirma que à medida que a criança cresce no

ventre materno, o espaço para movimentar-se fica restrito. “Esticar e mover os

membros[...]” aparece, assim, como uma necessidade natural do recém-nascido que

precisa ser respeitada pelo processo educativo. A educação natural propalada por

Rousseau, portanto, inaugura um modo de educar que privilegia uma atenção

diferenciada ao movimento da criança.

Deste modo, é possível reconhecer em diversos trechos do primeiro capítulo do Emílio,

a importância conferida por Rousseau ao movimento humano da criança pequena:

Eis, portanto, uma nova razão, muito importante, para deixar os corpos e os membros das crianças absolutamente livres, com a única precaução de afastá-las dos perigos de queda e de tirar de suas mãos tudo o que possa feri-las. Uma criança cujo corpo e cujos braços estão livres infalivelmente chorará menos do que uma criança enfaixada (ROUSSEAU, 2004, p. 58).

Rousseau afirma que manter a criança no caminho da natureza significa lhe oferecer

oportunidades de movimento, ou seja, toda ação ou objeto que expressem domínio ou

limitação da mesma afastam-na de exercer sua infância com plenitude. Nesta fase da

vida, os obstáculos a serem encontrados pela criança serão apenas os limites impostos

pela natureza. Desse modo,

A infância é a fase na qual se deve ser livre para conhecer a suas forças. O único obstáculo que a criança deve conhecer é aquele advindo da natureza e, notadamente, da suas próprias forças, ou seja, ela deve fazer somente aquilo que as suas forças lhe permitem realizar

153

naturalmente. Assim, a liberdade de uma criança nunca é limitada pela intervenção arbitrária do adulto (MARTINS, 2011, p. 65).

Para Rousseau, a importância do mover-se com liberdade se expressa no fato dele se

relacionar intrinsecamente com existência humana. Ele reconhece o movimento como o

primeiro modo da criança conhecer e se reconhecer no mundo, assim afirma: “É apenas

pelos movimentos que aprendemos que existem coisas que não são nós, e é apenas

por nosso próprio movimento que adquirimos a ideia da extensão” (ROUSSEAU, 2004,

p. 52). Diante disso, vemos que, em Rousseau, a existência da criança confunde-se

com o mover-se. A constituição de sua identidade se dá, em um primeiro momento, por

meio da nossa diferenciação em relação às coisas, ou seja, o “eu” é constituído pelo

“não-eu”.

De acordo com Sahd (2005), a liberdade natural em Rousseau, no âmbito físico, pode

ser entendida como a necessidade natural de movimento, cujos impedimentos à sua

satisfação criam obstáculos ao desenvolvimento normal da criança e engendram efeitos

físicos nefastos. Portanto, a liberdade é um bem e a necessidade de movimento é a sua

primeira manifestação. No entanto, o uso “desnaturado” da mesma representaria um

excesso condenável, pois toda justificação desta prática não passaria de raciocínios

inúteis da nossa falsa sabedoria jamais confirmados por nenhuma experiência. Nessa

perspectiva, pode-se afirmar que uma educação adequada é aquela que respeita a

liberdade física da criança.

Nesta direção, o filósofo genebrino afirma categoricamente que a utilidade dos

trabalhos manuais24 e dos exercícios físicos do corpo para fortalecer o temperamento e

a saúde, é indiscutível. Já que “[...] os exemplos das mais longas vidas são quase todos

tirados de homens que mais fizeram exercícios e mais suportaram a fadiga e o trabalho”

(ROUSSEAU, 2004, p. 38).

24

Deste modo afirma Rousseau: “Ora, de todas as ocupações que podem fornecer o sustento do homem, a que mais o

aproxima do estado de natureza é o trabalho manual; de todas as condições, a mais independente da sorte e dos

homens é a do artesão” (ROUSSEAU, 2004, p. 262).

154

Rousseau inverte um imaginário social no qual o movimento livre seria prejudicial.

Diante dessa orientação, caso a educação de uma criança não respeite o que

anteriormente foi explicado, as consequências são variadas:

A inação, o constrangimento em que se mantêm os membros de uma criança só pode dificultar a circulação do sangue, dos humores, impedir que a criança se torne mais forte, cresça, e alterar sua constituição. Nos lugares em que não se têm essas precauções extravagantes, todos os homens são grandes, fortes, bem proporcionados. Os lugares em que se enfaixam as crianças estão cheios de corcundas, de mancos, de cambaios, de raquíticos, de pessoas deformadas de todo tipo. Temendo que os corpos se deformem com os movimentos livres, apressam-se em deformá-los pondo-os entre prensas. De bom grado os tornariam paralíticos para impedi-los de se estropiarem (ROUSSEAU, 2004, p. 17-18).

O autor põe em xeque o imaginário social de que a liberdade de mover-se pode trazer

riscos ou prejuízos à educação do homem civilizado. Já que o modo de vida em sua

época privava as crianças de viverem de acordo com suas próprias necessidades.

Rousseau não poupa críticas diretas ao tratamento que a infância recebia em razão de

que dela eram retirados os momentos que deveriam estar em consonância com a

natureza.

Ao se contrapor a essa concepção, o autor busca subsídio em experiências de povos

“não-europeus” (ele recorre a Buffon e cita, na página 45, a prática dos “antigos

peruanos”), qualificados, pelo menos neste aspecto, de mais sensatos. Aqui também

ele começa a explicar porque essa liberdade no mover-se é importante: ao assumir uma

posição desconfortável ou perigosa, a dor representa um limite e uma mensagem para

mudanças, para impedir qualquer maior perigo.

Pretende-se que as crianças em liberdade poderiam adotar más posições e fazer movimentos capazes de atrapalhar a boa conformação dos membros. Este é um dos vãos raciocínios de nossa falsa sabedoria, jamais confirmados por nenhuma experiência. Da multidão de crianças que, entre povos mais sensatos do que nós, são criadas com toda a liberdade de seus membros, não se vê uma só que se fira ou se mutile; não dariam a seus movimentos a força que pudesse torná-los perigosos

155

e, quando assumem uma posição violenta, a dor logo as adverte de que devem mudá-la (ROUSSEAU, 2004, p. 19).

Do mesmo modo, podemos perceber que Rousseau afirma que a criança nasce

naturalmente inclinada ao movimento e qualquer tentativa de retirar-lhe esta vocação

significa tentar mudar a rota traçada pela natureza. Por consequência, deve ser-lhe

dada liberdade para viver, sentir livremente sua energia e vigor próprios e condições

para que ela descubra a si mesma. Com isso, ela “[...] adquirirá a experiência em

primeira mão de como funciona o mundo, e aprenderá como ele pode ser usado

vantajosamente, trabalhando com ele, em vez de submetê-lo ao seu comando” (DENT,

1996, p. 117).

Para que a criança goze dessa liberdade, a alternativa de Rousseau é uma educação

natural e negativa, que respeite a sequência na qual as sensações são o primeiro

conhecimento a ser desenvolvido. As sensações são a base para futuro

desenvolvimento do entendimento, deste modo a primeira infância é o tempo de

diversas experiências sensíveis:

[...] as sensações os primeiros materiais de seus conhecimentos, oferecê-las numa ordem conveniente é preparar sua memória para um dia apresentá-la na mesma ordem ao entendimento. Como, porém, a criança só presta atenção às suas sensações, basta inicialmente que lhe mostremos de maneira bem distinta a ligação dessas mesmas sensações com os objetos que as causam (ROUSSEAU, 2004, p. 51).

Portanto, aprender na primeira fase da vida é experienciar por meio dos sentidos. Dito

de outro modo, o aprender resume-se a apreensão das experiências pelos sentidos da

criança. Assim sendo, “[a criança] aprende a sentir calor, o frio, a dureza, a moleza, o

peso, a leveza dos corpos, a julgar sua grandeza, sua figura e todas as qualidades

sensíveis, olhando, apalpando, escutando e principalmente comparando a visão com o

tato, estimando com os olhos a sensação que produziram em seus dedos”

(ROUSSEAU, 2004, p. 51).

156

O MOVIMENTAR-SE NA IDADE DA NATUREZA

O projeto da educação natural tem continuidade no período denominado por Rousseau

de idade da natureza, período que vai dos dois aos doze anos. Deste modo, o objetivo

do projeto educativo do Emílio ainda permanece sendo o desenvolvimento de sua

sensibilidade natural. Para tanto, a intervenção do educador é orientar a criança a

permanecer em contato com a natureza, fortalecendo seu corpo e refinando seus

sentidos por meio da educação das coisas.

Na segunda infância, o processo formativo da criança é formado por três vértices: a

criança, a natureza e o adulto. Rousseau denomina a natureza de ‘professora’, mas

destaca que o adulto é o mediador da relação da criança com as coisas (a natureza).

Deste modo, como ‘professora’, a natureza torna-se normativa, pois possibilita uma

liberdade bem-regrada e ajuda a evitar a desenvolver excessos de desejos, tão

abundantes nessa idade. Ao adulto cabe o papel de possibilitar a experimentação da

criança no contato com a natureza. Sua mediação deverá fazer a criança sentir

plenamente o contato com o meio natural, sem até mesmo poupá-la dos possíveis

frustrações que ela terá nele. Portanto, Rousseau afirma: “Longe de estar atento a

evitar que Emílio se machuque, eu ficaria muito aborrecido se ele nunca se ferisse e

crescesse sem conhecer a dor. Sofrer é a primeira coisa que ele deverá aprender, e a

que ele terá maior necessidade de saber” (ROUSSEAU, 2004, p. 70).

Esse sofrimento vivido pela criança no reconhecimento de suas forças e limitações

diante da força da natureza tem grande importância nos anos subseqüentes no

processo de formação da moral do Emílio, de tal modo diz o autor:

Sim, eu afirmo: para sentir os grandes bens, ele deve conhecer os pequenos males. Assim, é a natureza. Se o físico vai bem demais, o moral corrompe-se. O homem que não conhecesse a dor não conheceria nenhuma ternura da humanidade, nem a doçura da comiseração. Seu coração não se emocionaria com nada, ele não seria sociável, seria um monstro entre seus semelhantes (ROUSSEAU, 2004, p. 85-86).

157

Esses elementos nos ajudam a perceber que o projeto da educação natural favorece

uma grande liberdade de ações da criança e a natureza se encarrega de fornecer os

limites destas ações. Com isso, para Rousseau

[...] Emílio, seu educando imaginário, deve ser ensinado a suportar todo tipo de ‘mal físico’. Rousseau considera a capacidade de suportar privações e necessidades como um princípio pedagógico genuíno para servir como ponto de partida, mas não como ponto de chegada da educação, da vontade contra seu próprio livre arbítrio, isto é, contra a ‘liberdade desregrada’ de uma vontade que pensa o simples querer já é poder tudo. No entanto, quando se trata do ‘mal social’, Emílio deve ser ensinado a não suportá-la com a mesma intensidade em que é preparado a suportar as intempéries naturais (DALBOSCO, 2007, p. 149).

O projeto rousseauniano compreende que, neste estágio da vida, o desejo de mover-se

da criança é instintivo e como tal é tarefa de seu educador conhecer e favorecer esta

vocação: “Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável

instinto. Quem de vós não teve alguma vez saudade dessa época em que o riso está

sempre nos lábios, e a alma está sempre em paz” (ROUSSEAU, 2004, p. 72-73).

Ilustrativamente o autor relata em um dos trechos do livro II uma situação em que o

princípio da liberdade de ações da criança no ambiente natural é novamente defendido

e ainda, o autor ressalta que este princípio expressa um desejo aspirado pela criança:

Não, pois a liberdade que concedo a meu aluno compensa-o amplamente dos leves incômodos a que o deixo exposto. Vejo meninos brincando na neve, roxos, trêmulos, mal podendo mexer os dedos. Só depende deles irem aquecer-se, mas nada fazem; se fossem forçados a isso, sentiriam cem vezes mais os rigores da obrigação do que estão sentindo o frio. De que vos queixas, então? Tornarei miserável vosso filho expondo-o apenas aos incômodos que ele quiser suportar? Ajo para o seu bem no momento presente, deixando-o livre; ajo para o seu bem no futuro, armando-o contra os males entre ser meu aluno ou vosso, achais que ele hesitaria um instante? (ROUSSEAU, 2004, p. 85).

Dentre as características apontadas por Rousseau, ele afirma que a segunda infância é

um período em que o adulto deve estar atento para que as necessidades da criança

158

não ultrapassem seu vigor próprio, suas forças. Neste estágio, a prioridade sugerida

pela natureza é que a criança vivencie seu potencial de mover-se, suas forças.

Portanto, é importante que ela brinque, corra e esteja em movimento, para que não aja

tempo para se estabeleçam vícios e a criança não se torne uma pessoa

permanentemente insatisfeita, tornando-se escrava de si mesma:

Outro progresso torna a queixa menos necessária às crianças: é o de suas forças. Podendo mais por si mesmas, precisam com menos frequência recorrer aos outros. Junto com a força, desenvolve-se o conhecimento, que as põe em condições de dirigi-la. É nesse segundo grau que propriamente começa a vida do indivíduo, é então que ele toma consciência de si mesmo. A memória amplia o sentimento da identidade para todos os momentos de sua existência; ele se torna verdadeiramente uno, o mesmo e, por conseguinte, já capaz de felicidade e de miséria (ROUSSEAU, 2004, p. 71).

Neste trecho, Rousseau desenvolve um argumento muito relevante ao pensarmos o

papel do mover-se na infância. Ao contrário do que poderíamos imaginar, o autor

advoga a ideia que junto com a força/ movimento desenvolve-se o conhecimento, ou

seja, os dois se associam ou se mesclam nesta fase da vida. Assim sendo, afirma

Santos (2011):

É dentro do processo de educação natural que a criança desenvolve os primeiros princípios de racionalidade com o contato com as coisas, pois, ao mesmo tempo em que fortalece o seu corpo, compreende o quanto de força precisa para manusear alguns objetos, adquirindo conhecimento de si mesma (SANTOS, 2011, p. 79, grifo nosso).

No projeto da educação natural, o mover-se se torna, então, fundamental e estruturante

para ação humana racional. Ao reconhecer e apropriar-se de suas forças e de seu

movimento, o terreno para sua racionalidade também se desenvolve:

À medida que o ser sensitivo torna-se ativo, adquire discernimento proporcional às suas forças; e é somente com a força que excede aquela de que precisa para conservar-se que se desenvolve nele a

159

faculdade especulativa própria para empregar esse excesso de força em outros usos. Quereis, então, cultivar a inteligência de vosso aluno; cultivai as forças que ela deve governar. Exercitai de contínuo o seu corpo; tornai-o robusto e sadio, para torná-lo sábio e razoável; que ele trabalhe, aja, corra e grite, esteja sempre em movimento, que seja homem pelo vigor, e logo o será pela razão (ROUSSEAU, 2004, p. 137).

Em síntese, Rousseau imprime a máxima que dissolve qualquer incompreensão quanto

complementaridade entre a faculdade da sensibilidade e da razão: “É um erro muito

lamentável imaginar que o exercício do corpo prejudique as operações do espírito,

como se essas duas ações não devessem combinar e uma não devesse sempre dirigir

a outra” (ROUSSEAU, 2004, p. 137). Até porque a sensibilidade é a razão da infância:

Esses exercícios continuados, entregues assim à direção apenas da natureza, ao fortalecerem o corpo, não somente embrutecem o espírito como, pelo contrário, formam em nós a única espécie de razão de que a primeira idade é capaz, e a mais necessária a todas as idades (ROUSSEAU, 2004, p. 147).

Portanto, a razão da infância é uma razão sensitiva, que consiste em formar ideias

simples a partir das experiências e se desenvolve em direção à razão intelectual, que é

um refinamento desta capacidade. Com o desenvolvimento ao longo do processo

educativo e principalmente, a partir do acesso a uma nova fase em seu

desenvolvimento, esta “segunda racionalidade” se elabora permitindo que ideias mais

complexas sejam construídas.

Rousseau nos chama atenção que o refinamento da razão sensitiva não ocorre

somente pelo utilizar-se dos sentidos, mas principalmente pelo aprendizado a bem

julgar por meio deles, a partir desta compreensão ele afirma:

“Exercitar os sentidos não é apenas fazer uso deles, mas aprender a bem julgar através deles é aprender, por assim dizer, a sentir; pois nós não sabemos nem tocar, nem ver, nem ouvir a não ser da maneira como aprendemos” (ROUSSEAU, 2004, p. 160).

160

Assim sendo, Rousseau advoga que o projeto da educação natural prioriza a

constituição de uma razão basilar, que se estabelece na infância, a razão sensitiva ou a

razão pueril:

Supondo, pois, que meu método seja o da natureza e que não me tenha enganado em sua aplicação, levamos nosso aluno pelo país das sensações até as fronteiras da razão pueril; o primeiro passo que daremos adiante deve ser um passo de homem. Mas, antes de entrar nesta nova vertente, contemplemos um pouco o que acabamos de percorrer. Cada idade, cada estado da vida tem sua perfeição conveniente, o tipo de maturidade que lhe é própria (ROUSSEAU, 2004, p. 202).

Se, por um lado, o projeto da educação natural evoca a liberdade, por outro lado esta

liberdade não é desregrada, ela deve favorecer uma vontade educada, que é aquela

que consegue perceber os limites, que racionaliza as necessidades, inclusive as

emocionais e que identifica aquelas necessidades que são supérfluas. Para Rousseau,

educar para liberdade não significa fazer o que se quer, mas desenvolver um projeto

educativo que eduque para autonomia, pois o adulto não deve escravizar a criança e

nem deixar-se escravizar por ela. E ao defender a liberdade de movimento na infância,

Rousseau traça, a partir de um exemplo, os contornos do que seria um mover-se

educado:

Há dois tipos de homens cujos corpos estão em contínuo exercício e certamente pensam muito pouco tanto uns como os outros em cultivar sua alma: os camponeses e os selvagens. Os primeiros são rústicos, grosseiros, desajeitados; os outros, conhecidos por seu grande senso, são-no também pela sutileza de espírito; geralmente, não há nada de mais lento do que um camponês, nem nada de mais fino do que um selvagem. De onde vem essa diferença? É que o primeiro, sempre fazendo o que mandam, ou o que viu seu pai fazer, ou o que ele próprio fez desde a juventude, segue sempre a rotina e, em sua vida quase que automática, ocupado sem cessar com os mesmos trabalhos, o hábito e a obediência ocupam o lugar da razão.

Quanto ao selvagem, é outra coisa: não estando ligado a nenhum lugar, não tendo tarefa prescrita, não obedecendo a ninguém, sem outra lei que não sua vontade, ele é forçado a raciocinar a cada ação de sua vida; não faz um movimento, não dá um passo sem ter antecipadamente

161

considerado as consequências. Assim, quanto mais seu corpo se exercita, mais seu espírito se ilumina: sua força e sua razão crescem juntas e se ampliam uma à outra (ROUSSEAU, 2004, p. 137-138).

Portanto, com a passagem anterior, Rousseau afirma que o mover-se “dos selvagens” é

o mais favorável, que mais conseguem aproximar a sutileza do espírito com a ação de

mover-se. Este movimento tem essa característica por ser um movimento mais

consciente, mas racional, já que um camponês “não faz um movimento, não dá um

passo sem ter antecipadamente considerado as consequências”. Assim, como a

liberdade ansiada pelo projeto de educação natural, o movimento para Rousseau

também deve ser um movimento regrado ou consciente. Voltaremos a esse ponto mais

a frente no contexto da discussão sobre a liberdade natural e a liberdade civil.

Sob esta perspectiva, a indagação sobre a relação entre o mover-se e exercício dos

sentidos pode ser mais bem esclarecida a partir da citação de Rousseau, que indica

que a plenitude da corporeidade humana está localizada entre ambas:

Existe um exercício puramente natural e mecânico que serve para tornar robusto o corpo sem dar nenhuma matéria ao julgamento: nadar, correr, saltar, chicotear o pião, jogar pedras. Tudo isso é muito bom, mas teremos só braços e pernas? Não temos olhos e ouvidos também? E serão esses órgãos supérfluos para o uso dos primeiros? Portanto, não exerciteis apenas as forças, exercitai todos os sentidos que a dirigem; tirai de cada um deles todo o partido possível, e depois verificai a impressão de um pelo outro (ROUSSEAU, 2004, p. 160).

Com alguns pressupostos de sua perspectiva do mover-se humano apontadas,

voltemos então nosso olhar para algumas propostas de práticas corporais são

prescritas pelo autor às crianças:

Quando uma criança joga peteca, exercita a exatidão dos olhos e do braço; quando roda um pião, aumenta sua força, mas sem nada aprender. Algumas vezes perguntei por que não ofereciam às crianças os mesmos jogos de habilidade praticados pelos homens; a péla, a malha, o bilhar, o arco, a bola, os instrumentos musicais. Responderam-me que alguns desses jogos estavam acima de suas forças, e que seus

162

membros e seus órgãos não estavam bastante desenvolvidos para os outros. Acho ruins essas razões; uma criança não tem o porte de um homem, mas nem por isso deixa de usar uma roupa feita como a sua. Não pretendo que ela jogue com nossos tacos num bilhar de três pés de altura; não pretendo que ela vá jogar péla em nossos campos, nem que lhe entreguem nas mãozinhas uma raquete desse jogo, mas que ela jogue num salão cujas janelas estejam protegidas, que no começo só sejam usadas bolas moles, que suas primeiras raquetes sejam de madeira, depois de pergaminho, e finalmente de corda de tripa, de acordo com seu progresso (ROUSSEAU, 2004, p. 183-184).

Com tudo isso, Rousseau deseja afirmar que diferentemente do que indica para outros

aspectos da vida, no que diz respeito ao movimento, a criança deve vivenciar aquelas

práticas corporais que são culturalmente realizadas pelos adultos, mesmo que, para

tanto, algumas adaptações possam ser utilizadas. Explicação que o autor esmiúça no

trecho a seguir:

Todos esses exemplos e cem mil outros provam, ao que me parece, que a incompetência que supomos nas crianças em relação aos nossos exercícios é imaginária, e que, se não as vemos ser bem-sucedidas em alguns deles, é porque nunca foram treinadas para isso.

Dir-me-ão que caio aqui, com relação ao corpo, no erro da cultura prematura que censuro nas crianças no que diz respeito ao espírito. A diferença é enorme, pois um desses programas é só aparente, mas o outro é real. Provei que o espírito que elas pareciam ter, não o tinham, ao passo que tudo o que elas parecem fazer elas o fazem. Além disso, devemos ter em conta que tudo isso é, ou deve ser, apenas a brincadeira, direção fácil e voluntária dos movimentos que a natureza lhe requer, arte de variar suas diversões para torná-las agradáveis, sem que jamais o menor constrangimento as transforme em trabalho, pois, afinal, qual é o seu divertimento do qual eu não possa fazer um objeto de instrução para elas? (ROUSSEAU, 2004, p. 185).

Como se percebe, Rousseau está longe de defender um ensino precoce ou de cair “no

erro da cultura prematura”. A vivência de práticas corporais tem que levar em

consideração as características da criança. Não se trata de vivenciá-las tal como o faz o

adulto, mas de descobrir uma forma “infantil” de ser vivenciada. O sujeito criança está

no centro do processo educativo. Sua forma de vivenciar não é uma forma inferior, mas

igualmente uma oportunidade de instrução devidamente adequada ao sujeito educativo

163

a quem se quer educar. Talvez no tratamento das práticas corporais, encontramos um

exemplo daquilo que Manacorda (1996, p. 242) considerou ser uma revolução na

abordagem da pedagogia empreendida por Rousseau: o privilégio de uma visão mais

antropológica, de focar o sujeito, a criança, o ser humano, em detrimento de uma

abordagem mais epistemológica, “[...] centrada na reclassificação do saber e na sua

transmissão à criança como um todo já pronto” (MANACORDA, 1996, p. 242).

A ONTOLOGIA ROUSSEAUNIANA EM DEBATE

Como desenvolvemos no primeiro capítulo, no que diz respeito à discussão ontológica,

o Iluminismo possui distinções sobre a perspectiva do ser humano em relação à

escolástica medieval. Mesmo que a discussão ontológica não tenha sido priorizada na

filosofia das Luzes entre os séculos XVI e XVIII (LESSA, 1997?, p. 9), as questões

referentes à compreensão sobre o ser – ou que faz os seres serem o que são – passou

por uma profunda transformação e assumiu uma tendência completamente nova. Pois

se antes, no período medieval, o desígnio divino era quem fundava as determinações

essenciais, no Iluminismo, inaugura-se e torna-se predominante uma concepção em

que as leis universais advindas da natureza determinam o real.

Como anunciamos anteriormente, privilegiamos neste momento, a discussão sobre os

traços da ontologia rousseauniana. Como ponto de partida, reconhecemos que, na

compreensão rousseauniana, o estado da natureza do indivíduo é anterior à sua

formação social, caracterizados por traços essenciais que constituem os indivíduos.

Assim como seus antecessores John Locke e Thomas Hobbes, Rousseau defende que

o indivíduo possui características naturais, pré-existentes e determinadas pela natureza

humana. De acordo com Lessa (1997?, p. 10), na filosofia iluminista,

A relação entre o ser humano e a natureza é reconhecida, como uma relação de continuidade. Certamente as diferenças entre os pensadores são aqui marcantes, e não desejamos fazer tábula rasa delas. Se é mais evidente em um Hobbes e em um Leibniz, é mais mediada e sutil em um Locke e um Rousseau. Se a concepção mecanicista dos processos

164

naturais, se a relação direta e simples de causa e efeito a que imaginam se resumir a natureza, em Hobbes é traspassada diretamente para explicar a dinâmica social e a necessidade de um Estado absolutista e, em Leibniz, se expressa na sua concepção monádica da sociedade; em Rousseau e em Locke essa relação já não é mais tão direta, nem é tematizada de forma tão explícita. Para esses pensadores, basta a afirmação da existência de uma natureza humana, verdadeira demiurga dos destinos dos homens.

Se essa particularidade entre os pensadores iluministas é sinalizada por Lessa, ela é

ainda mais esclarecida por Delacampagne (2001). Em Hobbes, os seres humanos são

seres possessivos e autocentrados e se organizariam em sociedade apenas para

melhor garantirem sua segurança pessoal e suas propriedades, ameaçadas no ‘estado

de natureza’. De acordo com o autor, para Hobbes, o estado de natureza é um estado

de guerra permanente e interminável, uma guerra apresentada em sua obra mais

expressiva – Leviatã, publicada em 1651 – como uma guerra de todos contra todos, no

qual o homem é o lobo do homem (homo homini lupus).

Já em Locke, como retratado em sua obra Segundo tratado do governo civil de 1689, o

direito à propriedade privada é um direito natural fundado tanto na razão quanto na

revelação. Em dois pontos essenciais, Locke se opõe ao seu antecessor T. Hobbes.

Por um lado, insiste longamente na necessidade de não confundir “estado de natureza”

e “estado de guerra”. O primeiro deve ser considerado “[...] um estado de paz,

benevolência, assistência e conservação mútua” (DELACAMPAGNE, 2001, p. 97) no

qual nada obriga a sair. Por outro lado, o contrato, segundo Locke, não produz um

“soberano” exterior aos seus mandatários, isento de obrigação. O contrato lockeano

cria, ao contrário, um governo que fica sob o controle ou sob a dependência daqueles

que lhe confiaram à missão de governar (DELACAMPAGNE, 2001). Deste modo,

[...] para a posteridade, Locke surge como o primeiro teórico de um governo ‘parlamentar’, capaz de admitir tanto uma forma monárquica quanto uma forma democrática de governo. Suas ideias inspirarão, na Inglaterra, a Declaração dos direitos (Bill of rights) de 1689, e, um século depois, a Constituição americana (1787), assim como as dez primeiras ‘emendas’ que a acompanham (1791) – sem falar da Declaração francesa dos direitos do homem, de agosto de 1789. Por tudo isso,

165

Locke continua sendo incontestavelmente o pai do liberalismo clássico (DELACAMPAGNE, 2001, p. 98).

Preserva-se, assim, nos dois autores, a concepção que, mesmo vivendo em sociedade,

os indivíduos não perderiam os atributos que tinham em ‘estado de natureza’. Em

contrapartida, para Rousseau – ainda que também marcado pelo jusnaturalismo e,

portanto, tendo como ponto de partida de sua análise um ‘estado de natureza’ que é

anterior à formação da sociedade –, “[...] a possessividade é uma das virtualidades do

indivíduo que pode ou não ser atualizada no processo de socialização” (COUTINHO,

1996, p. 9). Em outras palavras,

Para Rousseau, portanto, o importante é mostrar que esse indivíduo ‘natural’ não é de modo algum o lobo de seu semelhante, não é um ser que se oriente exclusivamente conforme interesses egoístas. ‘É um ser que dispõe – diz-nos ele – de ‘dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação; e o outro que inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível’ (COUTINHO, 1996, p. 9).

Ao refutar as concepções de Hobbes e Locke, Rousseau também desenvolve o

argumento do ‘estado da natureza’ ainda que, sob uma perspectiva distinta. Para ele, o

“estado de natureza” é uma abstração que elimina todas as determinações que advêm

do processo de socialização, produzindo, então, uma imagem restituída do que seria o

indivíduo pré-social. Esse estado é refletido

[...] não só nas características do seu meio-ambiente mas também, de um modo bem significativo, no caráter do próprio homem. Esse meio ambiente inclui a natureza selvática, da qual os humanos são largamente dependentes para alimento, abrigo e segurança. Rousseau sugere que aqueles que chegaram aos ásperos climas setentrionais, ou neles nasceram, são impelidos a abandonar mais rapidamente o estado de natureza do que os que vivem onde o clima é temperado e o alimento naturalmente abundante. São as agruras da vida que forçam as pessoas a juntar-se à outras em alguma forma de sociedade ou vida coletiva, a fim de suprir as necessidades materiais que assegurem a sobrevivência (DENT, 1996, p. 130).

166

A passagem do estado natural para a esfera de convívio coletivo se dá a partir das

intempéries postas pelo ambiente, ou seja, o ser humano se retira do isolamento inicial,

característico do estado natural, e torna-se dependente dos outros indivíduos,

atualizando sua essência, o que anteriormente, existia apenas em potência. Coutinho

(1996) afirma ainda que, para Rousseau, o processo de formação exerce grande

importância na atualização da essência humana:

Tanto no Contrato como no Emílio, Rousseau afirma sua crença na possibilidade de transformação do homem como resultado dessa sua plasticidade, transformação que ele coloca explicitamente como condição para o êxito da sociedade livre e igualitária proposta no Contrato (COUTINHO, 1996, p. 10).

Esta crença de Rousseau na atualização da essência humana – possibilitada pelo

processo de formação – aponta uma novidade importante no pensamento deste autor,

conforme sinaliza Coutinho (1996): a dimensão de historicidade do contrato

rousseauniano e da construção social do sujeito:

[...] depois do estado natural e antes do contrato, ocorre um longo processo histórico de socialização, através do qual o desenvolvimento das forças produtivas gera várias formações sociais, preparando assim as condições de possibilidade para dois diferentes tipos alternativos de contrato, um que perpetua a sociedade injusta, outro que geral uma sociedade livre e igualitária (COUTINHO, 1996, p. 10).

Dent (1996) também aponta elementos que contribuem para compreendermos como a

historicidade no processo de constituição do indivíduo social se manifesta em

Rousseau:

[...] embora os processos de socialização frequentemente corrompam e pervertam, de fato, os seres humanos, mesmo quando estão adquirindo suas capacidades e atributos propriamente humanos, é possível, em sua opinião, que o desenvolvimento humano permaneça fiel aos poderes e disposições do homem, mesmo quando as suas circunstâncias originais já ficaram para trás.

167

Quando Rousseau traça o contraste entre os estados ‘natural’ e ‘civilizado’ do homem, ele está, de fato, contrastando esses poderes e disposições do homem que não envolvem relações com outros com aqueles que a têm, assim mostrando quanto nos seres humanos depende e deriva do intercurso com outros. Fazer essa distinção é importante para Rousseau, inclusive porque ele acredita que, desde que possamos determinar o que é que em nós deriva do caráter de nossas relações com outros, poderemos, em princípio, mudar-nos a nós mesmos através da mudança da natureza de nossas relações com os outros, em todos os níveis – individual, social e civil. E fazer essa distinção de maneira nenhuma implica que as relações sociais do homem não são uma parte integrante e característica de sua natureza, tanto quanto são aqueles de seus poderes e disposições que conduzem à sua sobrevivência e bem-estar como se fosse uma criatura totalmente independente, separada e auto-suficiente (DENT, 1996, p. 132).

Portanto, Rousseau confere ao indivíduo natural traços diversos daqueles atribuídos

por Locke e Hobbes, assim como confere ao homem um dinamismo histórico,

potencialidade de transformação, que não se encontram nos outros dois. E essa

historicidade rousseauniana não envolve apenas as formações sociais e os regimes

políticos, que se transformam ao longo do processo de socialização, mas se refere

também ao próprio homem, que modifica seus atributos no curso da evolução histórica.

Desse modo, enfatiza Coutinho que

[...] as reflexões filosóficas de Rousseau antecipam em muitos pontos a ontologia do ser social de Hegel e, sobretudo, de Marx: o homem enquanto tal (enquanto ser que raciocina, dispõe de linguagem e age moralmente) é produto de seu próprio trabalho, de sua história, de sua práxis social (COUTINHO, 1996, p. 11).

A partir das considerações até aqui desenvolvidas, é possível perceber a relação

contraditória da passagem da natureza para sociedade presente na filosofia de

Rousseau: ser humano como produtor de si e da história, sem deixar de ser natureza. O

autor reconhece que o processo de socialização tem um inegável papel ontológico na

construção do ser humano, tanto no nível do indivíduo como no plano da espécie. Com

o fim do isolamento do indivíduo natural, as necessidades humanas se multiplicam,

gerando assim, a faculdade de satisfazê-las. Com isso, amplia-se a produtividade da

168

ação humana por meio da crescente divisão e especialização das tarefas, portanto a

socialização é a causa material que faz o homem passar de potência ao ato

(COUTINHO, 1996). O argumento de Coutinho (1996) prossegue ao afirmar que o

status ontológico do homem em Rousseau é permeado por uma contradição: se o

homem natural é independente, a partir do processo de socialização, esta

independência é cindida:

Quebrando a independência do homem natural e ampliando a dependência recíproca entre os indivíduos socializados, no quadro de um regime baseado na propriedade privada, a divisão do trabalho criou conflitos e rivalidades entre os seres humanos, tornando o egoísmo desenfreado (o amour propre) a motivação básica da vida social (COUTINHO, 1996, p. 14).

Na filosofia rousseauniana, ainda que se reconheça a dependência dos indivíduos

socializados, preserva-se uma característica que é essencial humana: o atributo da

liberdade. De acordo com o filósofo, a liberdade é um atributo do indivíduo natural e,

portanto, parte de uma determinação essencial do homem. Com isso, a liberdade não

deriva, segundo Rousseau, do processo de socialização, mas é atributo da natureza;

deste modo, verifica-se que em sua filosofia há uma concepção não social da gênese

da liberdade. Mesmo assim, o tratamento dado não se iguala à liberdade individualista

de Hobbes e Locke:

Para os liberais em geral, liberdade é a capacidade de satisfazer os próprios interesses individuais dos outros (é, terminologia consagrada em Berlin, uma ‘liberdade negativa’). Em Rousseau, ao contrário, a liberdade adquire uma dimensão nitidamente social e histórica: não é só entendida como ‘autonomia’ (como a ação conforme leis que o próprio homem cria enquanto parte do todo social) – e, nesse sentido é ‘liberdade positiva’ -, mas também é algo que se articula ontologicamente com o caráter dinâmico do homem, com sua plasticidade histórica [...]. Em outras palavras, a liberdade rousseauniana – ainda que tenha uma gênese ‘natural’ – atualiza-se através da práxis social, manifestando-se mais como um processo do que como um estado (COUTINHO, 1996, p. 12).

Apesar de sua gênese natural, a liberdade se atualiza por meio da práxis social como

um processo e não como estado vinculado a pacto social legítimo. Resulta assim que

169

Rousseau não critica o processo de socialização, ele entende que a liberdade pode

existir ainda que em sociedade. Assim como Todorov (2008), Coutinho (1996) aponta

que Rousseau não é um crítico do progresso, ou da socialização em si, mas um dos

primeiros a indicar o caráter contraditório do progresso tal como até hoje o

conhecemos. Até porque ele aposta na perfectibilidade, aperfeiçoamento de virtudes

sociais e faculdades naturais. Ele chega a se perguntar (muito próximo da tradição

marxista) – em seu Segundo Discurso – como o aperfeiçoamento da razão descambou

na deterioração de espécie: “O paradoxo se dissolve se compreendermos que não

estamos diante de uma contradição lógica do pensamento de Rousseau, mas sim da

elevação a conceito de uma contradição objetiva (histórico-ontológica) do processo de

socialização por ele examinado” (COUTINHO, 1996, p. 13).

Para Coutinho (1996), o objeto da crítica de Rousseau não é a sociedade em geral,

mas sim a sociedade concreta de seu tempo, que pode ser definida – embora Jean-

Jacques não se valha da expressão – como uma sociedade capitalista, ou, mais

precisamente, como o estágio dessa sociedade na qual a rápida e intensa

generalização das relações mercantis impunha, de modo cada vez mais abrangente, a

dominação do capital.

Portanto, é um equívoco ver nas reflexões de Rousseau – como fazem muitos marxistas – somente uma crítica ao Ancien regime feudal-absolutista em nome da nascente ‘democracia burguesa’, ainda que se admita que essa crítica é feita de um ponto de vista ‘plebeu’ ou pequeno-burguês. Rousseau, na verdade, é um implacável crítico da própria sociedade burguesa, talvez o primeiro grande crítico dessa sociedade a apoiar sua oposição não numa tentativa de retorno (ou conservação) da ordem feudal historicamente ultrapassada, mas na utopia de uma sociedade democrática e igualitária, que ele identifica, no Contrato, com uma república autogovernada fundada na vontade geral. [...] Rousseau não se apoia – nem podia fazê-lo, dado seu contexto histórico – no ponto de vista da classe trabalhadora moderna, do proletariado; ele adota o ângulo de visão do pequeno camponês e do artesão, os quais, na época, tinham suas condições de vida rapidamente destroçadas pelo avanço do capitalismo. Por isso, as bases econômicas da sociedade democrática que defende não se fundam na socialização da propriedade, mas sim em sua distribuição igualitária: é como se Jean-Jacques pretendesse conservar o modo de produção mercantil simples, mas impedindo-o de se converter em modo de produção capitalista (COUTINHO, 1996, p. 17).

170

Esta distribuição igualitária baseada na vocação humana naturalmente boa configura a

utopia da filosofia de Rousseau. O autor oscila, no Segundo Discurso, entre um estado

intermediário, pré-mercantil, e o pessimismo em face da potencialização do egoísmo.

Sua utopia democrática delineia-se sob ponto de vista do indivíduo, ele propõe a

construção de um tipo de homem que, colocando o amour de soi temperado pela pitié

acima do amour propre, seja capaz de tornar-se efetivamente virtuoso, orientando-se

não mais pelo egoísmo (pelo interesse privado), mas sim pela ‘vontade geral’ (pelo

interesse comum) (COUTINHO, 1996).

A contradição fundamental do pensamento de Rousseau é entre, de um lado, sua percepção, incomensuravelmente aguda, dos fenómenos da alienação, e, de outro, a glorificação de sua causa final. É isso que transforma sua filosofia, finalmente, num sermão moral monumental, que reconcilia todas as contradições na idealidade da esfera moral. (Na realidade, quanto mais drástica a separação entre a idealidade e a realidade, mais evidente se torna ao filósofo que o "dever" moral é a única maneira de enfrentá-la. Sob esse aspecto — como em muitos outros — Rousseau exerce a maior influência sobre Kant, antecipando, não em palavras, mas na concepção geral, o princípio kantiano do "primado da Razão Prática") (MÉSZÁROS, 1981, p. 22).

Nesse sentido, a igualdade natural dos homens tem a chance de ser atualizada por

meio de um pacto social legítimo e de uma educação que prolongue esse desígnio;

nesse caso, ela se transforma em uma igualdade formal, por convenção e direito

político, na qual há a defesa abstrata e “[...] uma vaga referência à conveniência de um

sistema no qual ‘todos têm alguma coisa e ninguém tem demais’” (MÉSZÁROS, 1981,

p. 26). Por isso, ganha relevância o projeto de educação moral proposto por Rousseau:

É por isso que tudo deve ser deixado ao poder das ideias, à "educação" — acima de tudo, à "educação moral" — e à defesa de um sistema jurídico que pressupõe, na verdade, a difusão efetiva dos ideais morais de Rousseau. [...] Por mais inflexível que seja o radicalismo moral de Rousseau, o fato de ser o seu conceito da igualdade, basicamente, um conceito moral-jurídico, sem referência a um sistema claramente identificável de relações sociais como sua contrapartida material, a visão de um sistema no qual "todos têm alguma coisa e ninguém tem demais" não só é desesperadamente vaga como também está longe de ser

171

igualitária e tem o mesmo caráter abstrato, e com frequência retórico, de sua denúncia da alienação. Podemos ver assim que, embora sua compreensão da necessidade de igualdade lhe permita abrir muitas portas que permaneciam fechadas antes dele as limitações de seu conceito de igualdade impedem que leve a investigação a uma conclusão capaz de encerrar a mais radical negação social de todo o sistema de desigualdades e alienações desumanizadoras, em lugar do radicalismo moral abstrato expresso em seus postulados (MÉSZÁROS, 1981, p. 24).

Diante do exposto até o momento, sugerimos uma pausa para recuperar algumas de

nossas considerações e indicar novas. Para a filosofia rousseauniana, em termos

ontológicos, ser e não ser natureza é a marca do humano. O que isso significa? Para

esse filósofo, dizer que o ser humano é natureza aponta uma essência naturalista com

a qual todo ser humano nasce. Assim, por exemplo, ao contrário de Platão que definia a

essência humana de acordo com o tipo de alma, Rousseau defende que o ser humano

é portador de traços essenciais que lhe são conferidos pela natureza. A natureza é,

para ele, boa. Sendo originariamente natureza, portanto, o ser humano é a priori bom.

De outro modo, o ser humano não é natureza e, dessa maneira, constrói processos de

socialização que o conduzem do estado natural à constituição social. Com o processo

de socialização, o ser humano pode ou não atualizar a sua essência natural. Isso

ocorre porque, dependendo de suas ações, esse processo pode assumir rumos

distintos. Pode, por exemplo, ser decadente e corrompido. Neste caso, a igualdade que

a natureza nos destinou é violentada; a injustiça se torna um produto da socialização.

No entanto, mediante um pacto social legítimo, o ser humano constrói a alternativa de

desenvolver à sua potência natural e preservar a igualdade, só que agora em outro

plano: moral e jurídico. Como se percebe, há, em Rousseau, uma mescla entre um

essencialismo natural e um reconhecimento da ação humana na constituição social.

Essa natureza contraditória do ser humano se mostra muito próxima das formulações

marxianas – o ser humano é uma parte da natureza e, ao mesmo tempo, dela se

distancia ao constituir o mundo social. Contudo, o essencialismo da natureza advogado

por Rousseau que se mostrou relevante e dissonante em sua época, distancia-se da

172

ontologia social de Marx e torna-se um problema em termos de legado filosófico: afinal,

afirmar que o ser humano é bom ou mal por natureza, de alguma maneira, concede

qualidades anteriores à construção propriamente do humano. O caráter revolucionário

desse essencialismo se perde se imaginarmos, pela mesma lógica da argumentação,

que o ser humano é, por natureza, pobre ou rico, hábil ou inábil, inteligente ou não etc.

Além disso, a igualdade em Rousseau assume um caráter formal porque sua gênese é

natural e não é baseada, de fato, nas condições sociais de existência. Por isso, o

conteúdo social da condição de igualdade humana é abstraído/prescindido em favor de

uma convenção universal da natureza. Esse formalismo colocou a injustiça, por um

lado, como um problema histórico e, por outro, demarcou a igualdade formal sobre a

qual se assenta a sociedade burguesa:

Os homens são essencialmente livres; essa liberdade se funda na igualdade natural, ou melhor, essencial dos homens, e se eles são livres, então podem dispor de sua liberdade, e na relação com os outros homens, mediante contrato, fazer ou não concessões. É sobre essa base da sociedade contratual que as relações de produção vão se alterar: do trabalhador servo, vinculado à terra, para o trabalhador não mais vinculado à terra, mas livre para vender a sua força de trabalho, e ele a vende mediante contrato. Então, quem possui a propriedade é livre para aceitar ou não a oferta de mão-de-obra, e vice-versa, quem possui a força de trabalho é livre de vendê-la ou não, de vendê-la a este ou aquele, de vender, então, a quem quiser. Esse é o fundamento jurídico da sociedade burguesa (SAVIANI, 2008, p. 32-33).

Outro aspecto a se ressaltar é que o essencialismo natural proposto por Rousseau

oferece subsídios à compreensão que o desenvolvimento humano ocorre por etapas

que também estão naturalmente postas. Se, por um lado, isso nos permite caracterizar

momentos desse desenvolvimento, suas peculiaridades, por outro, há a chance de se

imaginar que o desenvolvimento precede a aprendizagem – legado caro assumido

posteriormente pelas proposições pedagógicas da Escola Nova.

Como já vimos, no projeto educacional proposto por Rousseau, as atividades

pedagógicas propostas devem estar sempre em consonância com as fases/ períodos

de desenvolvimento do aluno. Essas etapas percorridas pelo processo de formação são

173

como a rota que a natureza traça para o desenvolvimento humano; elas não podem ser

adiantadas ou desconsideradas, já que elas possuem uma sequência ordenada. Deste

modo, a aprendizagem fica dependente da etapa de desenvolvimento que o aluno se

encontra, da sequência que a natureza determina25.

Sob inspiração marxista, alguns estudiosos do século XX confrontaram, em termos

teóricos, aspectos que podemos identificar na proposição rousseauniana sobre os

estágios de desenvolvimento. Elkonin (1994), por exemplo, relembra que, nos anos

trinta do século XX, a questão dos estágios de desenvolvimento recebeu grande

atenção de psicólogos da escola soviética, como Blonskii e Vigotski. De acordo com o

autor, Blonskii apontou para o fato que os processos de desenvolvimento mental estão

sujeitos à mudança histórica e, portanto, novos estágios da infância emergiram no

curso da história. Nesta direção, de acordo com Elkonin (1994), Vigotski também

apresentou críticas a ideia de organização do desenvolvimento em estágios bem

distintos ou fixos. Longe de pretender levantar aqui as argumentações detalhadas que

esses autores elaboraram no campo da psicologia, interessa enfatizar a discussão

filosófica que se tornou basilar para as suas pesquisas. A perspectiva de compreender

o desenvolvimento humano como uma progressão de etapas ordenadas e fixas carrega

em si o sentido que o desenvolvimento humano é natural, logo, universal ou válido para

todos. Ora, as reflexões marxianas nos alertam que o desenvolvimento humano é um

produto social e, nesse sentido, o “social” não é posto como o ativador daquilo que o

ser humano possui em termos de essência natural. O contexto histórico-social não

influencia o desenvolvimento, mas o engendra.

Como insiste Marx (1987), a essência humana não é uma abstração, mas remete para

o conjunto das relações sociais. Portanto, não há identificação entre o desenvolvimento

25

Para Elkonin (1994, p. 7), as teorias de Jean Piaget ofereceram o conceito mais completo acerca de como cada

estágio individual precede o desenvolvimento. De acordo com ele, em Piaget o “[...] desenvolvimento cognitivo,

emerge diretamente do estágio precedente (em algum grau, esta visão do desenvolvimento intelectual da criança é

característica de quase todas as teorias intelectualistas da cognição). O principal problema desta visão encontra-se na

sua incapacidade de explicar as transições de um estágio de desenvolvimento intelectual para o próximo. Por que a

criança prossegue do estágio pré-operacional ao estágio operacional concreto e, depois, para o estágio operacional

formal (expressões de Piaget)? Por que a criança avança do pensamento por complexos ao pensamento pré-

conceitual e, finalmente para o pensamento conceitual (expressões de Vigotski)? Por que há uma transição do estágio

da atividade prática para o estágio de imagens e, depois, para os estágios discursivo-verbais (usando a terminologia

atual)? Não há uma resposta clara para estas questões. E, na ausência de tal resposta, o caminho mais fácil é atribuir

à maturação ou a outras forças que se encontram fora do processo real de desenvolvimento mental”.

174

de crianças de diferentes tempos: “[...] uma criança europeia de família culta de hoje e

uma criança de alguma tribo primitiva, [...] da criança da Idade da Pedra, da Idade

Média ou do século XX [...]” (VIGOTSKI apud PASQUALINI, 2006, p. 77). Do mesmo

modo, não há necessariamente identificação no desenvolvimento de crianças de um

mesmo período histórico, mas que ocupam lugares sociais distintos na produção e

apropriação da riqueza humana. Logo,

“Nessa perspectiva historicizadora [...], não é possível estabelecer estágios do desenvolvimento psicológico que se sucedam em uma ordem fixa e universal, válida para toda e qualquer criança em todo e qualquer contexto e a qualquer tempo” (PASQUALINI, 2006, p. 117).

A reflexão de Marx nos faz pensar em uma consequência específica dessa

argumentação: o que é universal e necessário no desenvolvimento humano não remete

à rota, ao itinerário que a natureza traçou, mas ao ensino, entendido como processo de

transmissão e assimilação ativa das objetivações humanas, do patrimônio histórico-

social. Desse modo, “[...] o ensino constitui um elemento necessário e universal no

desenvolvimento, na criança, das características humanas formadas historicamente”

(PASQUALINI, 2006, p. 138). Isso inverte a lógica rousseauniana: a aprendizagem não

é subalterna ao desenvolvimento (naturalizado), mas é o seu produtor.

Vimos, ainda, em Rousseau, que, além da proposição de diferentes estágios de

desenvolvimento ou das diferentes idades (idade da necessidade, idade da natureza,

idade da força...), o autor também propõe que a educação seja dividida de três modos.

Retomemos uma citação já feita no capítulo 3:

Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação. Essa educação vem-nos da natureza ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e a aquisição de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas (ROUSSEAU, 2004, p. 9).

175

Assim, a eminência da educação da natureza ocorre nos primeiros anos de vida, com o

desenvolvimento das estruturas orgânicas e sensitivas. Já a educação das coisas é

aquela que deve acontecer num período que, no desenvolvimento da criança, a

autonomia ainda está ausente. Portanto, nessa fase, a educação argumentativa não

tem o mesmo poder de esclarecimento e convencimento como tem os exemplos

extraídos da simples funcionalidade das coisas, com seus respectivos riscos,

possibilidades e proibições. Com o decorrer do processo formativo, quanto mais à

socialização da criança avançar, mais a educação pelas coisas cederá lugar à

educação discursiva, baseada no diálogo, na negociação e no contrato, ganhando

espaço assim a educação dos homens. Como se percebe, esta aponta para o conjunto

das regras sociais e convenções que o aluno aprenderá e o auxiliarão na preparação

para o convívio social.

A criança nasce como pura natureza e precisa ser socializada. Não há, por parte de

Rousseau, nenhum romantismo em mantê-la tal como nasce. O desafio assumido é

como fazer a transição do estado da natureza para o estado social. Aqui caberia uma

questão: trata-se de manter ou superar a natureza? Responderíamos: manter e, ao

mesmo tempo, superar, porque, a despeito de todo avanço histórico-social, nunca

deixaremos de ser natureza. Esse parece ser um ponto de convergência entre

Rousseau e Marx, ainda que, em Rousseau, uma boa sociedade conserva e, portanto,

continua e aperfeiçoa a destinação a priori da natureza.

Contudo, há, em Rousseau, aquilo que Elkonin denomina desarticulação entre “mundo

das coisas” e “mundo das pessoas”. O que seriam as coisas para Rousseau? Seus

exemplos mostram que podem ser objetos naturais e aqueles construídos pelo ser

humano.

A distinção entre educação das coisas e dos homens feita pelo filósofo genebrino não

plenifica um aspecto específico que está latente na sua proposta: a presença do adulto

no processo educativo. A exploração da criança desse ambiente com distintos objetos

é sempre realizado pela mediação do adulto. Portanto, mesmo que lidando e

explorando objetos naturais, a funcionalidade dessa coisa natural possui um conteúdo

176

social; sua funcionalidade é dada socialmente e só pode ser apropriada pela mediação

social do adulto.

Além do objeto natural, há ainda o objeto construído pelo ser humano – objeto

propriamente humano. Ter contato com ele, manipulá-lo, é apreender a história humana

que ele condensa. Novamente, esse contato não é puro, direto, entre uma criança

abstrata e um objeto igualmente abstrato. Há mediação social do adulto na apreensão

de um objeto humano:

O sistema ‘criança-coisa’ é, na realidade, o sistema ‘criança – objeto social’. Os modos de ação socialmente evoluídos com esses objetos não decorrem imediatamente das propriedades físicas dos objetos. Não está inscrito no objeto onde e como ele originou-se, como podemos operar com ele, como podemos reproduzi-lo. Portanto, aquele objeto não pode ser dominado através da adaptação, através de uma mera ‘acomodação’ às suas propriedades físicas. Isto deve ocorrer internamente; a criança precisa passar por um processo especial de aprendizagem dos modos sociais de ação dos objetos. [...]. Na medida em que a criança aprende os modos de ação socialmente evoluídos com objetos, ela está constituindo-se um membro da sociedade por um processo que inclui suas forças intelectuais, cognitivas e físicas (ELKONIN, 1994, p. 9).

A crítica marxiana ao materialismo mecanicista de Feuerbach em Teses sobre

Feuerbach nos permite compreender o fio dessa argumentação. Conforme Marx (1987,

p. 161), “A falha capital de todo materialismo até agora (incluso o de Feuerbach) é

captar objeto, a efetividade, a sensibilidade apenas sob a forma de objeto ou de

intuição, e não como atividade humana sensível, práxis”. Ele acrescenta: “Feuerbach,

descontente com o pensamento abstrato, recorre à intuição; mas não capta a

sensibilidade como atividade prática, humana e sensível” (MARX, 1987, p. 162). Ao não

tomar o mundo sensível como atividade humana sensível prática, Feuerbach considera

o ser humano submisso aos objetos, quando os manipula. Diferentemente em Marx, a

atividade humana é o elo prático que permite o contato ativo entre o sujeito e o mundo

exterior.

Ao desconsiderar a relação social que medeia o contato entre o ser humano e os

objetos e o conteúdo social dos próprios objetos, cai-se em uma espécie de “fetichismo

177

objetal” (ELKONIN, 1994).26 Esse “fetichismo objetal” pode ser exemplificado quando,

no processo de aprendizagem da criança, têm-se a expectativa que os objetos e suas

propriedades “ensinem”, prescindindo da intervenção do adulto. Poderiam os objetos

educar por si só, sem a intervenção humana? Marx nos responde que não. A

argumentação geral rousseauniana e sua defesa da mediação do adulto também

parece apontar para tal resposta. Contudo, não é possível se desviar do fato de que

sua distinção entre educação da natureza, dos objetos e dos homens resvala nessa

forma de fetichismo.

Um elemento que consideramos primordial para este estudo e que se desdobra após as

análises até aqui desenvolvidas diz respeito às proposições sobre o movimento na

educação do Emílio. Nos primeiros anos de sua educação, o preceptor atua na direção

do favorecimento da liberdade do mover de seu aluno. Este direcionamento

compreende alguns aspectos da filosofia rousseauniana: o primeiro deles dialoga com a

ideia de que liberdade tem gênese natural; nesse sentido, a liberdade do mover-se

efetiva a vocação essencialmente natural do ser humano de ser livre. Como já

afirmamos, o projeto de educação do Emílio convergirá para sua inserção na sociedade

civil. Deste modo, sua liberdade natural é atualizada em nível superior numa liberdade

regrada ou socialmente combinada. A liberdade regrada não se apresenta como um

obstáculo, um cerceamento a uma suposta liberdade natural da criança.

Rousseau preconiza que a liberdade do mover-se implica não ser tolhido, atado

desnecessariamente, ter a chance de explorar o ambiente e os objetos que ali se

encontram, sempre sob o olhar cuidadoso e intencional do adulto. Nesse processo, há

uma sutileza que as distinções das educações propostas não tenham permitido

Rousseau perceber. Nesse mover-se de pura liberdade natural, já se insere uma

liberdade socialmente regrada. Podemos ilustrar assim: as reações que o adulto

estabelece com os choros, as manhas, as necessidades de uma criança na idade da

natureza já são iniciativas que a inserem no mundo social. A criança é levada a

26

O termo “fetichismo objetal” é elaborado por Elkonin tendo como referência a análise de Marx do fetichismo da

mercadoria segundo a qual o produto humano parece ganhar vida própria em relação ao seu produtor e ter o poder de

determinar a vida deste.

178

incorporar que seu mover-se natural, suas manifestações instintivas, ganham

significado social.

Por sua vez, na predominância da educação das coisas, a criança na idade natureza

também é desafiada a transformar o seu mover-se em ação com significado social.

Afinal, a apreensão da funcionalidade social do objeto ocorre, ao mesmo tempo, que o

seu mover-se – a manipulação das coisas – se torna social.

Assim como Rousseau, também advogamos a liberdade do mover-se como crucial para

criança pequena, nesse mover-se a criança manifesta a potência de vida que

caracteriza todos os seres existentes. Contudo, longe de ser um respeito à vocação

desta liberdade natural, Marx nos permitiria pensar que esta liberdade do mover-se

amplia a possibilidade de apreensão do mundo social. Portanto, possibilitar a liberdade

das experiências de movimento envolve tanto um reconhecimento das necessidades

orgânicas da criança, mas também representa um convite para sua participação no

mundo humano. Enquanto em alguns grupos sociais, isto não seja uma experiência de

aprendizagem sistematizada, a presença do preceptor na educação do Emílio nos

alerta que a “escolarização” se orienta de modo sistemático e intencional27.

Com tudo isso, cabe-nos ainda uma questão, diante da análise do projeto educacional

do Emílio: por que o desenvolvimento das fases sensitiva e racional é proposto em

etapas? Este questionamento remete-nos a relação razão e sensibilidade em

Rousseau. Para o autor, o âmbito sensível, longe de ser tratado como inferior e

secundário, é colocado como condição fundamental para a educação moral e racional,

ou seja, o abreviamento da educação estética compromete o desenvolvimento pleno da

moralidade e da razão. Rousseau se coloca em princípio a contrapelo de uma tradição

filosófica que enaltece unilateralmente a razão, a dimensão intelectual, como se as

questões afetas ao corpo fossem um obstáculo, um empecilho para o desenvolvimento

do conhecimento racional. Seu projeto de aperfeiçoamento da razão implica a

sensibilidade. Basta lembrar também que, para ele, a formação das ideias depende da

experiência sensitiva. Esse é um tema que não foi detalhado, porque representa uma

27

Esse é um tema delicado, porque se de um lado a educação do Emílio não é feita no espaço escolar, e o preceptor

está completamente submetido ao tempo de vida da criança, por outro seu projeto educacional não coincide

simplesmente com uma educação doméstica.

179

conquista alcançada com o fim do terceiro período de desenvolvimento. Mas, de modo

geral, apresentamos a defesa de Rousseau. Nos primeiros estágios do

desenvolvimento, Emílio só tinha sensações; com o término da terceira fase (a partir de

12 anos), tem ideias. Trata-se de ideias simples que surgem como comparação de

sensações: são sensações comparadas ou, nas palavras de Rousseau (2004, p. 275),

“sensação mista ou complexa”. A atividade de raciocinar, de julgar, começa com essa

ação de correlacionar, confrontar, complementar sensações. Além disso, acrescenta

Rousseau, a sensação não erra, não engana; o erro vem do juízo que se faz dela.

Essa dignidade que ele confere a dimensão sensitiva talvez possa ser explicada pelo

lugar social a partir do qual ele critica e expressa sua utopia, conforme anuncia

Coutinho (1996, p. 24):

No caso concreto de Jean-Jacques, parece haver identidade entre sua classe de origem e aquela cujo ponto de vista ele adota em sua obra teórica. Essa classe (ou conjunto de classes) é formada pelos pequenos camponeses e artesãos independentes, cujas condições materiais de vida – fundadas no modo de produção mercantil simples – estavam sendo destruídos pelo desenvolvimento capitalista.

Nesse contexto, podemos compreender a valorização rousseauniana do trabalho

manual e da diversificação das experiências de movimento no campo e ao ar livre28.

Entretanto, postergando o desenvolvimento racional e moral para uma “fase posterior”,

esse rico entrelaçamento entre razão e sensibilidade perde sua potência, pois acaba

por ser etapista. Talvez aqui se preservem resíduos de uma visão dicotômica, como

indicada na análise de Goellner (2002). Não se trata aqui de validar a posição da autora

de que a educação dos sentidos em Rousseau é envolta por fins meramente utilitários.

A relação entre razão e sensibilidade proposta por esse filósofo é colocada em termos

distintos da tradição filosófica iniciada por Platão. Contudo, não podemos nos desviar

do fato de que, junto a isso, sobrevivem nas proposições rousseaunianas a separação

e a hierarquia entre corpo e alma:

28

Sobre o projeto de educação do Emílio afirma Rousseau: “Vivendo no campo, a criança terá tido alguma noção

dos trabalhos campestres; para isso, só é preciso lazer e olhos, e ela terá essas coisas. Em todas as idades, e,

sobretudo na sua, a criança quer criar, imitar, produzir, dar mostras de potência e de atividade. Não terá visto duas

vezes lavrarem um jardim, semearem, germinarem e crescerem os legumes, e quererá também cultivar o jardim”

(ROUSSEAU, 2004, p. 104).

180

É preciso que o corpo tenha vigor para obedecer à alma: um bom servidor deve ser robusto. Sei que a intemperância excita as paixões; mas, com a continuação, também extenua o corpo; as macerações, os jejuns, produzem muitas vezes o mesmo efeito através de uma coisa oposta. Quanto mais fraco é o corpo, mais ele comenda; quanto mais forte ele é, mais obedece. [...] Um corpo fraco debilita a alma (ROUSSEAU, 2004, p. 34).

Diante disso, Goellner coloca em dúvida a visão de que Rousseau tenha “[...] sido um

revolucionário visto que inaugurou uma proposta pedagógica que levou em conta a

educação do corpo buscando autonomia, a liberdade e a formação do ‘homem integral’,

isto é, integrado de corpo e mente” (GOELLNER, 2002, p. 1). Essa observação tem o

seu mérito e, a partir dela, poderíamos indagar até que ponto Rousseau reproduz essa

dicotomia na sequência de desenvolvimento ao afirmar que o ápice do desenvolvimento

humano esteja na formação do cidadão civil, racional e moralmente constituído. Isso

parece se confirmar quando ele afirma: “[...] a infância é o sono da razão” (ROUSSEAU,

2004, p. 119). Tal assertiva reforça uma noção de um desenvolvimento etapista

segundo o qual a formação sensitiva (a que ocorre até os 12 anos) expurga elementos

racionais. Para Rousseau, isso não assume nenhuma conotação negativa; apenas

sinaliza que a formação estética e a saúde do corpo são pré-requisitos para o

desenvolvimento da razão. Uma boa educação seguiria essa determinação natural.

No entanto, não podemos reduzir a contribuição desse filósofo à mera continuidade do

dualismo corpo e alma nos mesmos termos de filósofos antecedentes. Rousseau

apresenta (sem muito desenvolver) uma noção que nos parece bastante profícua e que

coloca em xeque o etapismo entre razão e sensibilidade:

Esses exercícios continuados, entregues assim à direção apenas da natureza, ao fortalecerem o corpo, não somente não embrutecem o espírito como, pelo contrário, formam em nós a única espécie de razão de que a primeira idade é capaz, e a mais necessária a todas as idades. Eles nos ensinam a conhecer bem o emprego de nossas forças, as relações entre os nossos corpos e os corpos circunstantes, o emprego dos instrumentos naturais que estão ao nosso alcance e que

181

se adaptam aos nossos membros (ROUSSEAU, 2004, p. 147, grifo nosso).

Como se percebe, de modo um tanto peculiar, Rousseau sugere a existência e a

valorização de uma “razão sensitiva”, dando indícios de que, por mais que o

desenvolvimento racional ganhe proeminência após a adolescência e a despeito de sua

insistência em abolir debates abstratos até os doze anos, a constituição da razão já se

inicia, de certo modo, nesse fazer prático de contato com o mundo humano.

Seguindo Marx, podemos concordar com Rousseau que a atividade prática sensorial

está na origem do desenvolvimento humano. O pensar não é ontologicamente primário

na constituição do humano. Tanto a linguagem como a consciência decorrem da

instauração da sociabilidade por meio da atividade vital do homem – o trabalho.

Portanto, a razão se forma a partir da atividade, que é inicialmente uma atividade

prática sensível. Por isso, Marx e Engels afirmam, em A ideologia alemã, que a

consciência começa como consciência acerca do ambiente sensível imediato. Nesse

sentido, insistem: “A consciência não pode ser coisa diversa do ser consciente e o ser

dos homens é o seu processo de vida real” (MARX; ENGELS, 1989, p. 193).

A partir dessa prioridade ontológica, a atividade sensitiva e a racional passam a se

relacionar dialeticamente, isto é, a se determinar reciprocamente.

É obviamente indiscutível que, tendo a linguagem e o pensamento conceptual surgido para as necessidades do trabalho, seu desenvolvimento se apresenta como uma ininterrupta e ineliminável ação recíproca e o fato de que o trabalho continue a ser o momento predominante não só não suprime estas interações, mas, ao contrário, as reforça e as intensifica (LUKÁCS, 1997?, p. 25).

Falar de um desenvolvimento unitário ou omnilateral implica reconhecer que a atividade

sensível e a razão humana possuem uma intercondicionalidade, ainda que haja uma

prioridade ontológica da atividade humana vital, o trabalho. O conteúdo sensível é o

tecido material da consciência, a referência objetiva inicial. Portanto, o desenvolvimento

da consciência, da razão já começa com as experiências sensíveis. Parece que

182

Rousseau, em seus escritos, já tinha esse pressuposto como referência, mesmo que

convivendo com aspectos que também desdiziam essa indicação.

183

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa dissertação teve como foco a temática da educação de crianças pequenas e,

dentro deste espectro, investigou, na obra Emílio ou da Educação de Jean-Jacques

Rousseau, o lugar que o movimentar-se ocupa no processo de inserção da criança no

mundo humano.

A hipótese inicial deste estudo foi que, em Rousseau, o movimentar-se é um dos

centros da educação estética da primeira infância, base sob a qual se erige toda a

educação moral e racional. Com base na análise e na discussão dos resultados deste

estudo, esta hipótese se enriqueceu e ganhou contornos importantes.

Nossa análise se desenvolveu de acordo com a organização proposta por Rousseau

que estabelece diferentes estágios à infância. O pressuposto inicial do autor é que a

educação de Emílio começa com o seu nascimento e, nesta fase inicial da vida, toma a

forma de cuidados diversos. Dentre os cuidados prescritos por Rousseau, encontra-se a

necessidade de movimento da criança pequena. Movimentar-se é, para ele, uma

necessidade natural.

Ele reconhece o movimento como o primeiro modo da criança conhecer e se

reconhecer no mundo. Para Rousseau, a importância do mover-se com liberdade se

expressa no fato dele se relacionar intrinsecamente com existência humana. A

constituição de sua identidade se dá, em um primeiro momento, por meio da sua

diferenciação em relação ao mundo.

Para o filósofo genebrino, além de confundir-se com a própria existência, com o

decorrer do desenvolvimento da criança, o movimento ganha utilidade por meio dos

trabalhos manuais e dos exercícios físicos que auxiliam a fortalecer o temperamento e a

saúde.

Deste modo, o autor problematiza o imaginário social de seu tempo que considerava

que a liberdade de mover-se poderia trazer riscos ou prejuízos à educação do homem

civilizado. Neste contexto, Rousseau não poupa críticas ao tratamento restritivo que as

184

crianças recebiam, quando em nome de um projeto de civilidade, eram delas retirados

os momentos que deveriam estar em contato com a natureza.

A educação natural projetada para a primeira fase do desenvolvimento (idade da

necessidade) parte do pressuposto que a criança nasce naturalmente inclinada ao

movimento e qualquer tentativa de retirar-lhe esta vocação significa tentar mudar a rota

traçada pela natureza. Assim sendo, para que a criança goze dessa liberdade, a

alternativa de Rousseau é uma educação natural e negativa, que respeite uma

sequência na qual as sensações são o primeiro conhecimento a ser desenvolvido.

Neste projeto, as sensações são a base para futuro desenvolvimento do entendimento.

Assim, a primeira infância é o tempo de diversas experiências sensíveis. Aprender, na

primeira fase da vida, é experienciar o mundo por meio dos sentidos.

O projeto da educação natural tem continuidade no segundo período da infância

denominado por Rousseau como idade da natureza, período que vai dos dois aos doze

anos. Neste bojo, o objetivo do projeto educativo do Emílio ainda permanece sendo o

desenvolvimento de sua sensibilidade natural. Para tanto, a intervenção do educador é

orientar a criança a permanecer em contato com a natureza, fortalecendo seu corpo e

refinando seus sentidos por meio da educação das coisas.

O projeto rousseauniano compreende que, neste estágio da vida, o desejo de mover-se

da criança é instintivo e, como tal, é tarefa de seu educador conhecer e favorecer esta

vocação. Nesta fase, o papel do preceptor torna-se ainda mais expressivo, ele é o

mediador entre o educando e o meio natural.

O argumento que o filósofo desenvolve é muito relevante ao pensarmos a função do

mover-se na infância. Ao contrário do que poderíamos imaginar, o autor advoga a ideia

que junto com a força/ movimento, desenvolve-se o conhecimento, ou seja, os dois se

associam ou se mesclam nesta fase da vida.

No projeto da educação natural, o mover-se se torna, então, fundamental e estruturante

para ação humana racional que desenvolverá em momento posterior. Ao reconhecer e

apropriar-se de suas forças e de seu movimento, o terreno para sua racionalidade

também se desenvolve. Assim, a razão da infância é uma razão sensitiva. Com o

desenvolvimento ao longo do processo educativo e principalmente, a partir do acesso a

185

uma nova fase em seu desenvolvimento, a comparação de sensações permite o

surgimento de ideias.

No que se refere ao aspecto do movimento, o projeto da educação natural evoca a

liberdade, ainda que não seja uma liberdade desregrada; ela deve favorecer uma

vontade educada, que é aquela que consegue perceber os limites, que racionaliza as

necessidades, inclusive as emocionais, e que identifica aquelas necessidades que são

supérfluas. Para Rousseau, educar para liberdade não significa fazer o que se quer,

mas educar para autonomia, pois o adulto não deve escravizar a criança e nem deixar-

se escravizar por ela.

Com tudo isso, Rousseau deseja afirmar que diferentemente do que indica para outros

aspectos da vida, no que diz respeito ao movimento, a criança deve vivenciar aquelas

práticas corporais que são culturalmente realizadas pelos adultos, mesmo que algumas

adaptações sejam necessárias. O filósofo não se posiciona a favor de um ensino

precoce ou prematuro na infância. Para ele, as vivências de práticas corporais têm que

levar em conta as características da criança. Deste modo, a novidade proposta pelo

autor é que as práticas corporais sejam vivenciadas de acordo com as necessidades e

possibilidades deste sujeito. Esta perspectiva retrata aquilo que foi bastante abordado

no decorrer do texto: o aluno está no centro do processo educativo; portanto, sua forma

de vivenciar o movimento não é uma forma inferior, mas uma forma adequada ao seu

período.

A posição de Rousseau sobre o lugar que o mover-se ocupa no processo de

constituição social do ser humano se sustenta em um arcabouço muito complexo no

qual “convivem” inovações e aspectos problemáticos.

Como discorremos neste estudo, a filosofia de Rousseau é uma filosofia essencialista

que parte do pressuposto que o ser humano possui uma essência natural que precisa

ser atualizada pela inserção do indivíduo na vida social. Isso só pode acontecer por

meio de um pacto social legítimo. A natureza é, para ele, boa; por ser natureza, o ser

humano é a priori bom. Essa condição confere a todos os seres humanos uma

igualdade natural.

186

Ao defender isso, o autor contrariava uma tradição baseada na predestinação divina

que definia o lugar social de cada um e concedia a algumas pessoas a autoridade para

dizer a outras o que elas deviam fazer. Para Rousseau, uma pessoa só teria o direito

de dizer a outra pessoa o que deve ou não fazer, se a primeira pessoa tivesse

concedido este poder à outra. De acordo com o autor, o ser humano possui uma

vocação natural para liberdade e, portanto,

Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da Humanidade, inclusive aos seus deveres. Não há nenhuma compensação possível para quem quer que renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana, e é arrebatar toda moralidade a suas ações, bem como subtrair toda liberdade à sua vontade. Enfim, não passa de vã e contraditória convenção estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites (ROUSSEAU, 1965, p. 26).

Fica evidente que Rousseau privilegiou a discussão sobre a origem da desigualdade.

Ora, se todos os seres humanos nascem iguais, a desigualdade social não resulta de

uma determinação natural ou divina, mas é um produto da ação humana e, portanto,

uma construção social: “Nossos maiores males vêm-nos de nós mesmos”

(ROUSSEAU, 2004, p. 25). Contribuições filosóficas como essas foram incorporadas

por uma determinada perspectiva de pedagogia e, como aponta Saviani (1999),

tiveram, nesse momento, os seus méritos:

Nesse contexto, a pedagogia da essência não deixa de ter um papel revolucionário, pois, ao defender a igualdade essencial entre os homens, continua sendo uma bandeira que caminha na direção da eliminação daqueles privilégios que impedem a realização de parcela considerável dos homens (SAVIANI, 1999, p. 45-46).

Reside, na argumentação de Rousseau, algo que foi crucial nas formulações marxianas

do século XIX: a condição contraditória do humano de ser, ao mesmo tempo, natureza

e sociedade. Em Rousseau, a nossa condição natural remete para os traços de

igualdade e bondade que a natureza nos concede. Contudo, a construção do mundo

187

social pode respeitar essa vocação natural ou pode contrariá-la. Portanto, esses

atributos naturais estão sujeitos a mudanças. Há, em Rousseau, um dinamismo

histórico que passa a conviver com essa ontologia natural essencialista.

Marx nos permite perceber que, a despeito do avanço da argumentação de

compreender a desigualdade como um produto social, definir a igualdade e a bondade

humana a partir de um viver “pré-humano” pode enfraquecer o próprio dinamismo

histórico no qual insistiu Rousseau. Ser e não ser natureza é, na acepção marxiana,

estatuto ontológico permanente do humano. A passagem do mundo da natureza para o

social é sui generis, porque não representa um abandono da nossa condição natural.

Nesse sentido, mesmo com todas as mudanças e avanços sociais, nunca deixaremos

de compartilhar com os outros seres da natureza os mais primários instintos, assim

como agir à revelia, por exemplo, de conquistas éticas e morais, ou mesmo de ser

tomado, em vários momentos, por impulsos incontroláveis. Assumir de modo consciente

o nosso estatuto ontológico não nos permite apenas reconhecer na natureza, fora de

nós, uma existência que nos prolonga; também temos a chance de enxergar em nós

próprios a tensão e a complementariedade de forças contraditórias. Por certo, o mundo

social nos dá chances de lidar com a nossas faculdades naturais de modos diversos,

mas isso não significa que o mundo social simplesmente faz desaparecer a natureza

que somos.

[...] não reinamos sobre a Natureza, como um conquistador reina sobre um povo estrangeiro, ou seja, como alguém que estivesse fora da Natureza, mas que pertencemos a ela com o nosso corpo, como nosso cérebro, que estamos no seu seio e que todo nosso domínio sobre ela reside na vantagem que possuímos, sobre o conjunto das outras criaturas, de conhecermos as suas leis e de podermos usar esse conhecimento judiciosamente (COGGIOLA, 2004, p. 42-43).

Outro aspecto a se ressaltar é que o essencialismo natural proposto por Rousseau

oferece subsídios à compreensão que o desenvolvimento humano ocorre por etapas

que também estão naturalmente postas. Não há, em suas proposições, nenhuma

relação entre estudos sistemáticos e empíricos e a definição dessa sequência de

desenvolvimento. A base da posição de Rousseau acerca desta questão é de caráter

188

especulativo. Como já anunciado na introdução desta dissertação, esse foi um dos

motivos que nos levou a fazer uma abordagem filosófica do nosso problema e não, por

exemplo, um estudo a partir da psicologia. Por isso, o referencial teórico assumiu um

viés ontológico.

A caracterização dos momentos do desenvolvimento humano traçados pela natureza

permitiu a Rousseau evidenciar peculiaridades de cada fase, em especial contribuiu

para uma nova compreensão da infância. Entretanto, com essa mesma abordagem,

Rousseau abriu caminho para definir a precedência do desenvolvimento em relação à

aprendizagem. No bojo desse arcabouço, está a postulação de que o desenvolvimento

humano é uma progressão natural de etapas ordenadas, fixas e universais. O social

aparece como aquele que pode propiciar um bom desenvolvimento à medida que

respeita a rota natural ou pode se colocar como empecilho para a atualização da

essência natural do ser humano. O social é aquilo que se acrescenta ao

desenvolvimento humano.

Ao centrar nossa preocupação no movimentar-se da criança, também percebemos que

Rousseau compreende que sua atividade prática, o seu conhecer sensível, é a base

que constitui a razão humana. Esta compreensão coloca em xeque certos aspectos da

tradição filosófica de desvalorização do corpo, do trabalho manual e das práticas

corporais em geral. No entanto, ao enfatizar a atividade sensível nas fases iniciais, por

vezes, Rousseau expurga o trabalho intelectual do desenvolvimento infantil. Esse tema

é delicado, tendo em vista que, no mesmo momento em que caracteriza a infância

como sono da razão e ainda sustenta a dicotomia e a hierarquia entre alma e corpo, ele

menciona a existência, na infância, de uma razão complexa, uma razão sensitiva.

Quando assim o faz, Rousseau abre a possibilidade de captar o entrelaçamento entre

sensibilidade e razão no tornar-se humano; no caso das crianças, as próprias

experiências sensíveis já implicam o desenvolvimento da consciência, ainda que de

forma inicial, sob a forma de contato direto com o mundo.

Rousseau também possui uma complexidade porque parece se situar justamente na

passagem de uma ontologia natural essencialista e uma ontologia de valorização da

existência. Por isso, ganha proeminência em sua filosofia não só o dinamismo histórico

189

mencionado, mas a ênfase na experiência, isto é, na educação que vem do contato e

da manipulação dos objetos. A distinção entre educação da natureza, educação dos

homens e educação dos objetos descamba em um “fetichismo objetal” que acaba por

contrariar uma defesa constante de Rousseau ao longo de seu livro: a importância da

mediação do adulto no processo educativo.

Ao término desta pesquisa, novos interesses e novas indagações surgem. Talvez a

principal remeta para os desdobramentos que um estudo como este traz para a teoria

educacional, em especial, para a Educação Infantil e para a Educação Física escolar na

Educação Infantil. Tal esforço contempla diversas frentes. Por exemplo, a valorização

de uma “razão sensitiva” ou de uma consciência sensível na caracterização da infância

pode contribuir na contraposição de posturas meramente cognitivistas na Educação

Infantil. Ao mesmo tempo, tem-se a chance de perguntar se essa ênfase pode sustentar

a afirmação do brincar como a atividade quase natural de definição da infância.

Outro aspecto diz respeito ao binômio educar e cuidar que tem sido compreendido

hodiernamente como o eixo específico da educação endereçada a crianças de 0 a 6

anos. A noção rousseauniana de cuidar vincula-se eminentemente a noções higiênicas,

o que pode parecer um limite diante da discussão contemporânea (cf. TIRIBA, 2005).

Contudo, longe de uma posição dicotômica, Rousseau sugere que o cuidar é uma

faceta do educar e, nesse sentido, serve de inspiração para a discussão atual que

critica o cuidar e o educar como o eixo que confere especificidade à educação infantil

(cf. TIRIBA, 2005; PASQUALINI; MARTINS, 2008; PASQUALINI, 2010).

Destacamos, também, o próprio tema da escolarização da educação infantil. As

formulações filosóficas e pedagógicas de Rousseau ganham uma efetivação muito

peculiar, pois faz coincidir o tempo educativo com o tempo da vida. Não se trata, como

observamos, de uma mera educação doméstica, mas também não assume o formato

escolar. Seria, então, Rousseau um dos inspiradores filosóficos das atuais tendências

que são contra a escolarização da Educação Infantil (cf. ROCHA, 1997)?

Durante este estudo, dialogamos amplamente com as pesquisas de Dalbosco (2007,

2008, 2011), por este ser um estudioso das obras de Rousseau, mais precisamente, da

190

obra Emílio ou da Educação, a partir da temática da formação humana e da herança

iluminista em nossos dias. Em um de seus textos, Dalbosco afirma:

Com a preocupação pedagógica de que o adulto não deve projetar verticalmente sua postura no mundo da criança, Rousseau pretende evitar a intromissão excessiva do adulto e atribuir papel importante aos pais e à família, no sentido de proteger a criança contra a invasão precoce e prejudicial da agressividade social no mundo da criança. Ele pretende evitar aí, na verdade, a ‘colonização adulta’ do mundo da criança e, com isso, evitar que esta se transforme apenas na província ou apêndice do mundo adulto. Mas por outro lado, considerando que não pode e não se deve isolar completamente a criança do mundo adulto e nem do convívio social mínimo, a questão é como protegê-la desta colonização sem isolá-la. Justamente aí reside uma das tarefas centrais da educação natural, a saber, a de pensar e preparar o ingresso progressivo da criança na sociedade, evitando que tal ingresso signifique, ao mesmo tempo, a desfiguração do mundo infantil. A sutileza desta tarefa consiste no fato de que ela deve ser preparada pedagogicamente, de tal forma que possa proteger socializando a criança, evitando com isso que ela seja tratada desde o início só como um pequeno adulto (DALBOSCO, 2009, p. 177, grifo nosso).

Por fim, no contexto de possíveis pesquisas futuras, também indagamos até que ponto

é pertinente atribuir a Rousseau termos como “mundo da criança” ou “mundo do

adulto”. O filósofo genebrino não utiliza esses termos em sua obra. Porém, o fato de

caracterizar etapas do desenvolvimento humano daria o aval para se definir cada etapa

como um mundo diferente como o faz Dalbosco?

Esses são apenas alguns exemplos de novas investigações com as quais nos

deparamos. Qualquer caminho que seja assumido, não pode deixar de considerar

aquilo que sabiamente registra Manacorda em relação a Rousseau:

O direito à felicidade, o direito à ignorância das coisas inadequadas à infância, a rejeição do método catequético, a exclusão dos estudos especulativos, a necessidade de ensinar não muitas coisas, mas coisas úteis, não as ciências, mas o gosto de cultivá-las; a condenação dos livros, ‘triste bagagem’ da idade infantil, cujo abuso mata a ciência; a evocação constante da natureza como mestre de Emílio e do seu pedagogo; o adiamento dos estudos de história, de filosofia, de moral e o saber perder tempo são os principais aspectos que negam a educação

191

tradicional. Entre os aspectos positivos merecem ser mencionados a redescoberta da educação dos sentidos, a valorização do jogo, do trabalho manual, do exercício físico e da higiene, a sugestão de usar não a memória, mas a experiência direta das coisas, e de não utilizar subsídios didáticos já prontos mas construí-los pessoalmente, e, sobretudo, o plano progressivo da passagem da educação dos sentidos (dos dois ao doze anos) à educação da inteligência (até aos quinze anos) e da consciência (até aos vinte e cinco anos). Estas e outras observações críticas e construtivas constituem um conjunto, não isento de incongruências e contradições, mas que delineia o plano de uma pedagogia inovadora e libertadora (MANACORDA, 2006, p. 243, grifo nosso).

192

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