o mito cristão contra guaixará e os outros diabos - versão

245
UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA UNIMEP FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos. Educação e conversão Século XVI e XVII Sady Carnot Piracicaba, SP. 2006

Upload: others

Post on 27-Oct-2021

6 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA UNIMEP

FACULDADE DE CIEcircNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM EDUCACcedilAtildeO

O Mito Cristatildeo contra Guaixaraacute e os outros diabos

Educaccedilatildeo e conversatildeo Seacuteculo XVI e XVII

Sady Carnot

Piracicaba SP

2006

2

O Mito Cristatildeo contra Guaixaraacute e os outros diabos

Educaccedilatildeo e conversatildeo Seacuteculo XVI e XVII

Sady Carnot

Orientador Prof Dr Joseacute Maria de Paiva

Piracicaba SP

2006

Tese apresentada agrave Banca Examinadora do Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo da UNIMEP obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Educaccedilatildeo

Prof Dr Joseacute Maria de Paiva

Prof Dr Luiz Francisco Albuquerque de Miranda

Prof Dr Edivaldo Joseacute Bortoleto

Prof Dr Amarilio Ferreira Junior

Profa Dra Marisa Bittar

3

Agradecimentos

Agrave Ana Claacuteudia a luz que tem iluminado tantos caminhos

Homenagem

Aos meus filhos Gustavo Rodrigo e Leonardo com todo

amor que possa existir neste mundo

Para aqueles que natildeo puderam esperar e se encontram hoje

nos meus mitos e em minhas lembranccedilas Alice minha matildee

e Holmes meu pai

O presente trabalho foi realizado com o apoio da

COORDENACcedilAtildeO APERFEICcedilOAMENTO DE PESSOAL DE

NIacuteVEL SUPERIOR CAPES

BRASIL

4

RESUMO

Por entender que a anaacutelise de uma cultura mais englobante que outra eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual foi buscado neste trabalho entender como

essa espiritualidade leva o olhar para o centro do universo fazendo com que tudo

seja olhado a partir desse prisma Trata-se aqui dos resultados da conversatildeo dos

indiacutegenas durante o periacuteodo jesuiacutetico das coisas boas trazidas aos indiacutegenas

pela educaccedilatildeo portuguesa e do confronto de culturas na busca pela verdade de

um e de outro desse embate de mitos de tabus e pecados de Deus e de

demiurgos

Ao pesquisar como a visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do

viver na Europa quinhentista e seiscentista encontra-se que a feacute em Deus era a

uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou serem levados por ela ao uacutenico

mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural

natildeo era mais a natureza do homem e sim que a palavra de Deus tal qual

transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra conhecida e das terras a

se conhecer

O homem eacute nesse momento histoacuterico ator cultural de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

5

Era gerado entatildeo o grande embate de mitos baseado na saga de dois

heroacuteis de polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo

Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o

Orbis Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico indiacutegena

Eacute tratada aqui a ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas

onde os jesuiacutetas foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena

a Liacutengua Geral de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os

conceitos de sua cultura e de denegrir os conceitos da cultura indiacutegena

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas que as peccedilas que satildeo sempre as

mesmas estatildeo presas numa caixa Claro a educaccedilatildeo tambeacutem se baseia no mito

cultural

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida A educaccedilatildeo eacute exatamente isso

uma maneira de transmitir esse modo herdado e a maneira inata de se viver O

homem eacute o todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias

arquetiacutepicas que todos os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo

individual e possuindo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder essa participaccedilatildeo

arquetiacutepica de seu mundo o homem estaacute morto mesmo que natildeo fisicamente ele

agora eacute um defuncto que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

A didaacutetica da catequese trazia a definiccedilatildeo do democircnio ou do Diabo agraves

mentes indiacutegenas e isso se fazia pela pedagogia do terror que se impunha agraves

6

mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeosNesse embate

cultural uma certa profecia praticamente se confirmava de que haveria uma

transformaccedilatildeo de brancos em iacutendios e de iacutendios em brancos mas isso natildeo foi

possiacutevel pois ao final o mito cristatildeo derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos

os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano

7

RESUMEN

Por entender que la analice de una cultura mucho maacutes englobante que

otra es hecha de una forma mitoloacutegica y espiritual se busco en este trabajo

entender como esa espiritualidad lleva la mirada para el centro del universo

haciendo con que el todo sea mirado a partir de ese prisma Trata-se acaacute de los

resultados de la conversioacuten de los indiacutegenas durante el periacuteodo jesuiacutetico de las

cosas buenas traiacutedas a los indiacutegenas por la educacioacuten portuguesa y del

confronto de culturas en la buacutesqueda por la verdad de uno y de otro en ese

embate de mitos de tabus e pecados de Diacuteos e de demiurgos

Al pesquisar como la visioacuten del Orbis Christianus era la traduccioacuten del

vivir en la Europa quinientista se encuentra que la fe en Diacuteos era la uacutenica verdad

Todos deberiacutean estar en ella o llevados por ella al uacutenico mundo verdadero afora

del cual todo lo maacutes seria incuria e aberracioacuten El natural no era maacutes la

naturaleza Del hombre y si que la palabra de Diacuteos tal cual transmitida por la fe

cristiana llegase a los confines de la tierra conocida y de las tierras a conocer

El hombre es en ese momento histoacuterico actor cultural de una

complicada relacioacuten originaria de una dicotomiacutea entre el representado miacuteticamente

y el vivido en su realidad cotidiana no teniendo permisioacuten para conocer el pensar

el Bien sin antes pensar en el Mal pues sin embargo era tiempo de se reconocer

8

el enemigo para poder combate a ello por la gloria y triunfo del Redentor por

sobre el Tentador

Era generado entonces el embate de mitos con base en la saga de dos

heacuteroes de polaridades contrarias el europeo y el indiacutegena Cristo y el Diablo San

Lorenzo y San Sebastiaacuten de un lado contra Guaixaraacute y Aimberecirc del otro el Orbis

Christianus versus la visioacuten arquetiacutepica y el espiacuteritu cosmogoacutenico indiacutegena

Es tratada acaacute la herramienta de esa educacioacuten imposta a os

indiacutegenas donde los jesuitas fueran de una felicidad sin par al utilizaren la lengua

indiacutegena la Lengua General de Anchieta e sus autos teatrales como forma de

transmitir los conceptos de su cultura y de denegrir los conceptos de la cultura

indiacutegena

La educacioacuten es y siempre fue un caleidoscopio que muestra los maacutes

diversos y bellos dibujos e formas mas que las piezas que son siempre las

mismas estaacuten presas en una caja Claro la educacioacuten tambieacuten hace su base en el

mito cultural

La funcioacuten de los mitos no es denotar una idea recibida pero si un

modo de funcionamiento que corresponde a la manera innata pela cual el hombre

nace e se relaciona en su vida vivida La educacioacuten es exactamente eso una

manera de transmitir ese modo recibido por herencia y la manera innata de se

vivir El hombre es el todo de sus relaciones pues recibe las mismas influencias

arquetiacutepicas que todos los hombres de su grupo social reciben mismo siendo

individual e teniendo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder esa participacioacuten

9

arquetiacutepica de su mundo el hombre esta muerto mismo que no fiacutesicamente ello

ahora es un defuncto que no poseacute maacutes funciones a delante de la vida

La didaacutectica de la catequice tenia en si la definicioacuten del demonio o del

Diablo y la metiacutea en las mentes indiacutegenas y eso se haciacutea por la pedagogiacutea del

terror que se impugna a las mentes desavisadas de la existencia del Bien y del

Mal de los cristianos

En ese embate cultural una cierta profeciacutea praacutecticamente si confirmaba

que habriacutea una transformacioacuten de blancos en indios y de indios en blancos pero

eso no fue posible pues al final el mito cristiano derrotoacute Guaixaraacute Aimbirecirc

Saravaia y todos los otros diablos llevando con ellos hasta Deacutecio e Valeriano

10

SUMAacuteRIO

RESUMO _________________________________________________________ 4

RESUMEN ________________________________________________________ 7

SUMAacuteRIO _______________________________________________________ 10

Introduccedilatildeo _______________________________________________________ 11

Capiacutetulo 1 - A educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura que ensina e altera

costumes________________________________________________________ 36

Capiacutetulo 2 - O Mito ________________________________________________ 46

Capiacutetulo 3 - O mito Cristatildeo___________________________________________ 72

Capiacutetulo 4 - Como o Europeu Cristatildeo compreendia os indiacutegenas e a concepccedilatildeo

que tinham da vida desses brasis _____________________________________ 76

Capiacutetulo 5 - Como os indiacutegenas teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde e as dificuldades

encontradas na missatildeo de converter ___________________________________ 93

Capiacutetulo 6 - O Teatro como ferramenta educacional e de catequese _________ 119

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos_____________ 126

Conclusatildeo - O resultado do embate desses mitos na educaccedilatildeo e na cultura

brasileira________________________________________________________ 145

Apecircndices ______________________________________________________ 151

Apecircndice 1 O Auto de Satildeo Lourenccedilo Joseacute de Anchieta ________________ 152

Apecircndice 2 - A missa e os siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem____ 197

Apecircndice 3 O Mito de Cristo _______________________________________ 208

Apecircndice 4 - Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade 228

Referecircncias Bibliograacuteficas__________________________________________ 238

Outras referecircncias bibliograacuteficas_____________________________________ 239

11

INTRODUCcedilAtildeO

Eu queria ser como a aranha que tira de seu ventre todos

os fios de sua obra A abelha me eacute odiosa e o mel eacute para mim o

produto de um roubo

Papini Un homme fini

Entendendo que concluiacutedo o Mestrado em Histoacuteria e Educaccedilatildeo

trabalhando atraveacutes da teoria de Carl Gustav Jung a relaccedilatildeo jesuiacutetica com os

indiacutegenas no seacuteculo XVI mostrando a destribalizaccedilatildeo da alma indiacutegena atraveacutes da

imposiccedilatildeo cultural deveria continuar no processo de pesquisa sobre o assunto e

sob a mesma lente

Pesquisei teoacutericos filoacutesofos educadores e historiadores que pudessem

comprovar a tese a ser apresentada

Busco no sentido da vida desses homens jesuiacutetas em suas relaccedilotildees

com os indiacutegenas a proacutepria vida desses padres experienciada e tornada viva

atraveacutes de seus mitos e crenccedilas

Entendo que a anaacutelise de uma cultura elaborada por outra muito mais

englobante como no caso da cultura portuguesa em relaccedilatildeo agrave dos indiacutegenas eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual Essa espiritualidade leva o olhar para o

12

centro do universo fazendo com que tudo seja olhado a partir desse prisma

conforme jaacute pude demonstrar em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena objeto de

minha dissertaccedilatildeo de mestrado

Por entender o trabalho jesuiacutetico uma tarefa hercuacutelea composta de

uma saga heroacuteica na luta contra a resistecircncia indiacutegena agrave conversatildeo e agrave

catequese busco a simbologia e a interpretaccedilatildeo dessa saga

Por entender que mesmo sabendo dos resultados dessa conversatildeo no

sentido de destruir a alma indiacutegena houve como resultado desse confronto de

culturas um embate pela busca da verdade de sentido de significaccedilatildeo atraveacutes

dos tempos que alimentavam as mentes ainda eacutebrias de medievalismo e das

experiecircncias da alma do mato busco essa miacutetica esse relato de embates

Embate de mitos Embate de tabus e pecados de Deus e de deuses Enfim da

experiecircncia de vida

Quando utilizo a palavra embate em vaacuterios momentos deste texto

posso estar sendo ateacute mesmo mal compreendido pois muitos leitores poderatildeo

afirmar que as culturas quando se encontram se permeiam se harmonizam

Poderatildeo afirmar que sempre no encontro de duas culturas sobraraacute para os dois

lados aculturaccedilotildees costumes expressotildees linguumliacutesticas lendas antigas e as lendas

que surgiratildeo desse encontro Claro que sim natildeo tenho duacutevidas quanto a isso

Mas natildeo eacute essa a intenccedilatildeo Minha proposta eacute a de deixar claro que em

se tratando dos mitos culturais em se tratando do cristatildeo europeu ainda o

portuguecircs mais ameno que o espanhol houve sim um embate de mitos isto eacute um

choque impetuoso de culturas composta de oposiccedilotildees e resistecircncias (agraves vezes

13

mais passivas ou paciacuteficas poreacutem natildeo menores) poreacutem sempre se forma a

comparar-se com um abalo violento e profundo nas crenccedilas dos indiacutegenas

brasileiros

Por mais que resistissem os brasis o Orbis Christianus era violento

quanto agrave natureza real do homem

A visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do viver na Europa

quinhentista A feacute em Deus era a uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou

serem levados por ela ao uacutenico mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria

injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural natildeo era mais a natureza do homem e sim que a

palavra de Deus tal qual transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra

conhecida e das terras a se conhecer

Atraveacutes dessa visatildeo de mundo pudemos assistir agrave instituiccedilatildeo de novos

conteuacutedos simboacutelicos nas terras receacutem-descobertas articulados de maneira

extremamente eficaz entre a realidade cristatilde e o imaginaacuterio europeu quinhentista

Os guardiotildees do sagrado como foram chamados os cleacuterigos

devotam suas vidas com o uacutenico intuito de uniformizar as consciecircncias e converter

as almas pertencentes a Satatilde e seus ajudantes garantindo a hegemonia das

crenccedilas e a desculturaccedilatildeo de qualquer povo que natildeo vivesse os bons costumes

e natildeo pertencesse ao rebanho de fieacuteis

O seacuteculo XVI denotou na visatildeo cristatilde que o mundo se encontrava

dividido em duas partes bastante distintas

Os que cultivavam o Bem e as virtudes

14

Os que cultivavam o Mal e seus viacutecios

Tal qual na alegoria usada em O diabo no imaginaacuterio cristatildeo

O mundo se orienta como o portal de uma igreja goacutetica no

alto e no meio encontra-se Deus rodeado de um coro de anjos com

os santos e os justos prestando-lhes homenagem abaixo estatildeo os

mortais e na parte inferior ou agrave espreita os espiacuteritos malignos que

possuem formas horriacuteveis ou pelo menos enigmaacuteticas e cocircmicas

(NOGUEIRA 2000 39)

O homem eacute nesse momento histoacuterico personagem de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

Em contra-partida a essa postura miacutetica cristatilde surgem nas relaccedilotildees os

conteuacutedos da psique primitiva dos indiacutegenas brasileiros gerando costumes

padrotildees de comportamentos remexendo as sombras 1 jesuiacuteticas influenciando

1 A Sombra enquanto arqueacutetipo -Conforme nos orienta ML von Franz (JUNG 1964) e citado em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena (CARNOT Sady 2005p55) A Sombra pertence ao nosso mundo interior mais escondido descendo agraves profundezas do nosso proacuteprio mal e tornando o indiviacuteduo capaz de reconhecer em si o instinto e suas mentiras nada inocente nem tolo mas bem protegido contra tudo aquilo que de dentro possa surgirO arqueacutetipo Sombra eacute de todos os conteuacutedos arquetiacutepicos o que fica mais proacuteximo ao Ego cuja essecircncia estaacute mais em contato com a tona mais superficial sendo formada por componentes que jaacute fizeram parte um dia do presente do indiviacuteduo jaacute fizeram parte do seu cotidiano mas que foram reprimidos por natildeo pertencerem ao rol de compatibilidades desejadas pelos valores estabelecidos pelo social ao consciente ou por natildeo terem sido fortes o suficiente para ultrapassarem a consciecircncia e permaneceram em latecircncia dentro do Inconsciente Pessoal

15

com suas resistecircncias de aculturaccedilatildeo todo um conteuacutedo arquetiacutepico europeu que

veio dar origem agrave cultura brasileira

Esses embates culturais podem ser notados em cartas de marinheiros

cartas de jesuiacutetas a seus superiores e irmatildeos da Companhia de Jesus aleacutem da

utilizaccedilatildeo das simbologias miacuteticas de nossos indiacutegenas na elaboraccedilatildeo de taacuteticas

de conversatildeo presentes nos aldeamentos na supremacia dos sacramentos na

pedagogia do dia-a-dia e em especial em Anchieta que os mostra atraveacutes dos

autos como o de S Lourenccedilo e o da Pregaccedilatildeo Universal entre outros

Nesses autos nota-se claramente a noccedilatildeo de bem e mal que era

passada de forma determinista aos indiacutegenas

O Bem representando o fiel o santo o heroacutei o salvador os padres ou

abareacute a personagem Karaibebeacute grande cacique que aliado de Tupatilde e dos abareacute

na defesa das novas leis e dos novos costumes mostram o erro de seguir os

maus costumes das tradiccedilotildees e das falas de Guaixaraacute e Aimbirecirc

O Mal representado tambeacutem por grandes chefes como Guaixaraacute e

Aimbirecirc o diaboacutelico o proacuteprio democircnio bebedor de cauim que gosta de fumar e

defender os costumes da tradiccedilatildeo como danccedilar enfeitar-se tingir o corpo de

vermelho do urucum ou do preto da jemouacutena (una = preto)

Enfim grande embate de mitos baseado na saga de dois heroacuteis de

polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo Lourenccedilo e

16

Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o Orbis

Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico 2 indiacutegena

Muitas vezes em minha tese pretendo utilizar o conceito de experiecircncia

definido como um conhecimento que nos eacute transmitido pelos sentidos como um

conjunto de conhecimentos individuais ou especiacuteficos que constituem aquisiccedilotildees

vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade quer no sentido

metafiacutesico quer no sentido de aculturaccedilatildeo

A cada experiecircncia o indiviacuteduo se expotildee e soma a si o resultado do

ocorrido do fato do resultado Assim experiecircncia eacute a soma das situaccedilotildees que

influenciaram e influenciam a pessoa e as comunidades em toda a histoacuteria da

humanidade

Na imposiccedilatildeo cultural do portuguecircs do seacuteculo XVI sobre o indiacutegena

muitas vezes a renovaccedilatildeo era feita sob pressatildeo sob coerccedilatildeo em que o algo

transformado o indiviacuteduo transformado era sem que a experiecircncia pudesse ser

acumulada e sim imposta natildeo permitindo ao gentio a interaccedilatildeo com sua proacutepria

vida e em relaccedilatildeo ao ambiente do qual dependia visceralmente para sobreviver

Essa soma que Dewey chama de renovaccedilotildees satildeo a extensatildeo da

experiecircncia do indiviacuteduo e da espeacutecie no entanto vida para o ser humano

consiste em costumes crenccedilas instituiccedilotildees vitoacuterias e derrotas isto eacute a

experiecircncia

2 do grego kosmogonia - A origem ou formaccedilatildeo do mundo do universo conhecido Parte de uma cosmologia que trata especificamente da criaccedilatildeo e formaccedilatildeo do mundo Qualquer narrativa doutrina ou teoria a respeito da origem do mundo ou do universo

17

Poderia dizer que o homem vive em comunidade nas relaccedilotildees

pessoais em virtude das coisas que tem em comum e a comunidade eacute o meio

pelo qual se chega a possuir essas coisas comuns No entanto na relaccedilatildeo entre

mitos indiacutegenas total e completamente inserido no que falaremos mais tarde no

mito filosoacutefico e a imposiccedilatildeo do mito cristatildeo considerado numa relaccedilatildeo com a

racionalidade pouco de comum havia entre esses dois povos tatildeo distintos Por um

lado o aguerrido o natural o nu e o livre e do outro dogmas pecados eacutebrios de

medievalidade impondo sua cultura ad majorem Dei gloriam

A educaccedilatildeo como forma de transmissatildeo de cultura suprime a distacircncia

entre as ideacuteias dos mais velhos e a acircnsia de conhecer e modificar dos mais novos

e imaturos No entanto perguntaria a esses indiacutegenas se as ideacuteias dos

considerados mais velhos mais importantes ateacute mesmo com poderes divinos

como se os tivessem os padres jesuiacutetas natildeo tinham uma distacircncia tatildeo grande de

suas proacuteprias ideacuteias a ponto de que essas ideacuteias natildeo pudessem ser entendidas

tal como as noccedilotildees de pecado de ceacuteu e inferno ou mesmo de um deus tatildeo cruel a

ponto de matar toda uma tribo atraveacutes da gripe ou da variacuteola para mostrar que

esse Deus deveria ser louvado

Natildeo eacute por viverem em proximidade material ou por trabalharem pelo

mesmo fim comum que se pode dizer que um indiviacuteduo vive em comunidade eacute

necessaacuterio que se possua o conhecimento desses fins comuns sejam eles seus

deuses seu governo seus costumes e seus anseios Isso sim forma uma

comunidade Uma comunidade eacute aquela que vive no mesmo mito mito esse que

lhe explica a vida natildeo explicaacutevel

18

Toda comunicaccedilatildeo eacute educativa pois receber comunicaccedilatildeo receber

educaccedilatildeo eacute adquirir experiecircncia que viraacute a modificar seu modo de vida Quando o

modus faciendi de um indiviacuteduo modifica o modus vivendi de sua comunidade ele

estaacute fazendo cultura ele estaacute educando Ensinar a caccedilar eacute educar ensinar a

danccedilar eacute educar fazer um indiviacuteduo receber um novo mito eacute educar assim

ensinar a roubar e a matar eacute tambeacutem educar fazer adorar a um novo deus

tambeacutem eacute educar

Quando se fala em educaccedilatildeo formal poreacutem estamos falando de como

examinar se as aptidotildees daquilo que foi passado de um indiviacuteduo para outro para

habilitaacute-lo a participar de forma melhorada de uma vida em comum Eacute na

educaccedilatildeo formal escolar que se verifica se essa habilidade atua realmente nessa

vida comunitaacuteria isto eacute se o indiviacuteduo estaacute adaptado e atuando na vida comum se

estaacute avaliando se os conhecimentos transmitidos foram eficientes e se verifica

ainda a eficaacutecia dessa transmissatildeo

A educaccedilatildeo formal em suma avalia a eficaacutecia daquilo que foi passado

em conteuacutedo programaacutetico e isso existia de alguma forma nas escolas de ler e

contar criada pelos jesuiacutetas no Brasil Colocircnia

No entanto nas sociedades tribais ou grupos sociais menos

desenvolvidos encontramos muito pouco de adestramento formal poreacutem

encontramos vivecircncias de ritos de passagem nos quais os mitos satildeo fortes

ferramentas dessa educaccedilatildeo que considero tambeacutem formal poreacutem natildeo seriada e

programada

19

Como ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas os jesuiacutetas

foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena a Liacutengua Geral

de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os conceitos de sua

cultura e de demonizar os conceitos da cultura indiacutegena

Novamente afirmo ter clara a interpenetraccedilatildeo de valores e as traduccedilotildees

desses valores em ganho e perda para ambos os lados no entanto tento mostrar

aqui a habilidade de Anchieta em utilizar a liacutengua indiacutegena como ferramenta de

catequese como uma forma de acesso e penetraccedilatildeo na educaccedilatildeo indiacutegena e da

possibilidade com isso da imposiccedilatildeo de conceitos da Europa seiscentista

Habilidade houve tambeacutem por parte desse jesuiacuteta quando criou atraveacutes

dos autos a experiecircncia vivida pelo indiacutegena durante os espetaacuteculos teatrais

substituindo ateacute mesmo a liacutengua falada por ideacuteias contidas na gestualiadade

conforme nos mostra os paracircmetros do teatro greco-romano3 base dos autos de

Anchieta O corar o sorrir franzir o cenho os movimentos expressivos eacute que

3 Pelo teatro greco-romano (CALLOIS 1985) a influecircncia aplicada agrave plateacuteia eacute a seguinte Morphos Eacute a relaccedilatildeo do ator com o espaccedilo cecircnico e com a plateacuteia pois Morphos eacute a regra eacute a forma e o teatro eacute o jogo de transformar Mimeacutesis Eacute a relaccedilatildeo do ator e da personagem com o prover a si mesmo pois Mimeacutesis eacute a miacutemica a representaccedilatildeo Define a bandeira o lado pelo qual se defende ou ataca personagem versus plateacuteia ator versus ator personagem versus personagem ator versus plateacuteia e personagem versus plateacuteia Agon Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a agressividade pois eacute o Agon o diaacutelogo a luta o estranhamento entre dois lados novamente personagem versus personagem personagem versus plateacuteia plateacuteia versus personagem Lusus Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o que alimenta pois Lusus eacute a ilusatildeo eacute o sonho Eacute onde se tem a ideacuteia de que quando o meu lado ganha ou perde quem ganha ou perde sou euIlinx Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a loucura onde Ilinx eacute a vertigem o risco o perigo de se ganhar ou perder na conta de personagem versus personagem ou personagem versus plateacuteia etc Aleacutea Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o material com o fiacutesico com os resultados na qual o Aleacutea o aleatoacuterio o randocircmico eacute o que natildeo nos permite saber quem vai ganhar ou perder a contenda Plateacuteia versus personagem personagem versus plateacuteia ou personagem versus personagem etc

20

realmente comunicavam as ideacuteias a serem transmitidas incluindo-se a formaccedilatildeo

espiritual profunda onde o mito e crenccedilas cristatildes tiveram uma grande participaccedilatildeo

na formaccedilatildeo e definiccedilatildeo do rol de atividades da comunidade que se formava a

partir daiacute

Devo considerar que a comunidade o meio social se envolve com o

meio ambiente e digo que educar eacute de certa forma um ato ecoloacutegico pois forccedila os

laccedilos de sangue a perpetuarem os comportamentos que deram certo Quem deu

certo na relaccedilatildeo brasis e portugueses Seria ecologicamente correto seguir os

costumes da Santa Feacute Catoacutelica afinal era tudo uma questatildeo de sobrevivecircncia

para o indiacutegena mesmo com interesses diferenciados daqueles eleitos pelos

colonizadores

Natildeo poderia considerar essa falta de interesse dos indiacutegenas pelas

coisas de Deus ou da Coroa como incapacidade para entender o que era Lei Feacute

ou Rei mas como uma imaturidade como uma capacidade a ser desenvolvida

Sendo a educaccedilatildeo vinda da cultura portuguesa originaacuteria de um

depositum

fechado e definido como correto o seu saber eacute necessaacuterio realmente

que o indiviacuteduo que aprende seja um recipiente dependente e plaacutestico pois aos

moldes da Filosofia escolaacutestica tudo o que se recebe se recebe aos moldes do

recipiente Os indiacutegenas eram esse recipiente

No entanto os indiacutegenas natildeo eram essa argila mole ao menos natildeo

todos pois muitos tensionamentos ocorreram antes da aceitaccedilatildeo dos novos

costumes impostos O homem se acostuma a qualquer situaccedilatildeo e se adapta a

qualquer meio ambiente mas muitas vezes antes que isso ocorra o desconforto

21

e a resistecircncia a aceitaccedilatildeo pura e simples ficam evidentes Essas resistecircncias

ficaratildeo mais claras no capiacutetulo mais adiante em que mostro como os indiacutegenas

teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde

Outro ponto importante a ser mostrado eacute quanto aos aldeamentos

jesuiacuteticos onde o iacutendio foi obrigado a uma adaptaccedilatildeo a essa citada aceitaccedilatildeo de

costumes Os jesuiacutetas concebiam que aquela sociedade deveria ser una pela

concepccedilatildeo de bons propoacutesitos fidelidade de interesses e reciprocidade de

simpatia mas o que ocorria na verdade era a necessidade de sobrevivecircncia

daqueles que jaacute natildeo eram mais iacutendios e natildeo conseguiram pela aculturaccedilatildeo

imposta serem tambeacutem brancos e portugueses onde a homogeneidade cultural

natildeo existiu e natildeo existe ateacute hoje nas tribos de nossa atualidade

Como afirma Dewey (1936 p132) uma sociedade indesejaacutevel eacute a que

interna e externamente cria barreiras para o livre intercacircmbio e comunicaccedilatildeo da

experiecircncia A comunidade dos aldeamentos criava barreiras para a comunicaccedilatildeo

da experiecircncia isto eacute o poder de poucos sobre o conhecimento posto sobre as

coisas e a manutenccedilatildeo desse poder a qualquer custo

Haacute que se entender que enquanto o portuguecircs do seacuteculo XVI trazia a

verdade revelada recebida atraveacutes de leis instaacuteveis isto eacute aquelas que podem ser

mudadas conforme a decisatildeo do grupo social que as criou os gentios seguiam

as leis estaacuteveis as lei naturais que os fazia pensar o conhecimento de forma

distinta de seus protetores A filosofia explica o mundo para o filoacutesofo que a

pensa respondendo agraves suas proacuteprias perguntas As respostas agraves perguntas do

filoacutesofo atendem aos anseios do grupo e da eacutepoca em que ele vive pois eacute a

22

resposta agraves perguntas de uma sociedade de uma cultura e se o conceito

persiste eacute porque persistem as perguntas na consciecircncia dessa sociedade

A verdade revelada era imposta pois era atraveacutes de um novo mito que

se dava o novo conhecimento ao gentio O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria

verdade 4 Essa era a nova experiecircncia em que o indiacutegena do seacuteculo XVI se

encontrava experiecircncia essa que para ter valor real deveria fazer os brasis se

afastarem da dor ou se aproximarem do prazer Soacute essas duas coisas movem um

indiviacuteduo no Universo a que pertence

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertencia em relaccedilatildeo agrave nova natureza apresentada foi necessaacuterio ao indiacutegena

criar uma linguagem que pudesse dar conta de transcrever sua realidade afinada

com seu proacuteprio conhecimento de mundo Um novo mito em que ele deveria

chamar o padre de pai e de salvador Natildeo havia para o indiacutegena a divisatildeo entre o

mundo real e o mundo miacutetico e sim um uacutenico olhar que se espalha em todas as

direccedilotildees de sua existecircncia atraveacutes de sua vida vivida e possiacutevel

Assim viviam suas vidas da forma que lhes foi possiacutevel entre um

arremedo de branco e uma caricatura de iacutendio

No homem o possiacutevel se imprime sobre o real5

4 GUSDORF 1959 p13 5 GUSDORF 1959 p15

23

Natildeo parece que esses homens chamados gentios tivessem o

interesse de descobrir o como do mundo real e sim usar dessa forma esteacutetica

para trabalhar com suas fantasias e esperanccedilas subjetivas isto eacute experienciar

O homem moderno atraveacutes de seu racionalismo sentiu aos poucos o

esfriamento de sua psique primitiva e por consequumlecircncia perdeu muitas de suas

ilusotildees pois natildeo mais entra em contato com suas experiecircncias que satildeo o conjunto

e de conhecimentos individuais ou coletivos especiacuteficos ou natildeo e que constituem

aquisiccedilotildees vantajosas que foram acumuladas historicamente por toda a

humanidade sejam elas miacuteticas ou racionais

Jung nos ensina em suas obras que estamos envolvidos por exemplo

com a experiecircncia de Deus de uma forma tatildeo profunda e universal que por mais

que venhamos a questionar esse mito ou essa crenccedila temos a imagem dessa

experiecircncia dentro de noacutes e por isso natildeo temos como acreditar ou deixar de crer

nessas imagens O mesmo acontecia com o Cristatildeo portuguecircs quinhentista mas eacute

claro e oacutebvio que essa experiecircncia era distinta para os indiacutegenas dessa eacutepoca

Por mais que se quisesse impor uma esteacutetica cultural deveriacuteamos perguntar

Tupatilde era um deus diferente de Deus ou a experiecircncia era a mesma

Mas o portuguecircs do Seacuteculo XVI que trazia em suas caravelas e

bagagens todos os conceitos culturais mitos e crenccedilas impotildeem aos brasis

paracircmetros novos de vida cumprindo a qualquer custo uma missatildeo heroacuteica de

semear a palavra de Deus pela Terra fazendo cumprir uma profecia dentro de

concepccedilotildees mentais riacutegidas inflexiacuteveis racionais e complexas

24

Viraacute o tempo em um futuro longiacutenquo em que o mar

Oceano quebraraacute as suas correntes e uma vasta terra seraacute revelada

aos homens quando um marinheiro audacioso como aquele que se

chamava Tifis e que foi o guia de Jasatildeo descobrir um novo mundo

entatildeo Thule (a Islacircndia) natildeo seraacute a uacuteltima das terras

LUCIUS ANNAEUS SEcircNECA Medeacuteia Seacuteculo I da era cristatilde6

As grandes descobertas trouxeram aos novos mundos anseios e

frustraccedilotildees sobre o imaginaacuterio portuguecircs e espanhol dos seacuteculos XV e XVI mas

tambeacutem a possibilidade de encontrarem o local onde Deus plantou o Paraiacuteso

Terrestre

o lugar onde a Divina Providecircncia havia plantado o

Paraiacuteso Terrestre mito essencial e fundamento doutrinaacuterio dos

mundos judaico-cristatildeo e mulccedilumano lugar inicial onde o Criador

havia decidido criar a espeacutecie humana7

A faccedilanha dessas descobertas tanto teacutecnica como humana carregava

dentro das caravelas a crenccedila de que os atores sociais dos descobrimentos

haviam encontrado o paiacutes das lendas o Paraiacuteso Terrestre o reino das Amazonas

as minas do Rei Salomatildeo as hordas impuras de Gog e Magog8 e o fabuloso

palaacutecio com telhados de ouro de Cipango9

6 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p15 7 idem p34 8 O vocaacutebulo Armagedon eacute composto de duas palavras Ar em hebraico significa Planiacutecie e Megiddo eacute uma localidade ao Norte da Terra Santa proacutexima ao monte Carmel onde antigamente Barrack derrotou os exeacutercitos comandados por Sisara e o profeta Elias e executou mais de quinhentos sacerdotes de Baal (Apo 1616 1714 Juizes 42-16 1 Reis 1840) A luz destes eventos biacuteblicos Armagedon simboliza a derrota das forccedilas anti-religiosas por Cristo Os nomes Gog e Magog no capiacutetulo 20 lembram as profecias de Ezequiel a respeito da invasatildeo de Jerusaleacutem por um nuacutemero indeterminado de regimentos sob o comando de Gog das

25

Acreditava-se entre os portugueses e espanhoacuteis que os mitos dessas

terras se encontravam agora agrave matildeo de quem navegasse de quem ousasse terras

longiacutenquas e enigmaacuteticas desvelar seus misteacuterios e atravessar o mare oceano

innavigabile Dessa forma muitas das histoacuterias fantasiosas que povoavam a

mente do europeu quatrocentista e quinhentista foram transferidas para as terras a

serem conquistadas e vieram juntamente com o mito cristatildeo com o Diabo dentro

das caravelas misturadas ao desejo de expansatildeo do comeacutercio e da busca de

riquezas povoando as sombras desses conquistadores

Apenas como lembranccedila os mitos agem sobre a mente humana de

forma a incitar accedilotildees e desencadear moldes de conduta de pensamento e de

sensibilidade Foi dessa forma portanto que os conquistadores partiram para suas

buscas Uma busca baseada no comeacutercio e expansatildeo sim mas de forma latente

na busca de seus mitos

Assim cada terra descoberta cada povo encontrado cada riqueza

desvelada era considerado de propriedade da natureza e por isso era de quem

encontrasse quer por pirataria quer por ordem de um reino quer passando a ser

propriedade de um rei como descendente direto do divino quer ad majorem Dei

gloriam mesmo que isso significasse um etnociacutedio de nuacutemeros altiacutessimos durante

terras de Magog (sul do mar Caacutespio Ezeq cap 38 e 39 Apo 207-8) Ezequiel atribui esta profecia aos tempos do Messias No Apocalipse o cerco dos regimentos de Gog e Magog ao local dos santos e da cidade eleita (ie da Igreja) e a destruiccedilatildeo destes regimentos pelo fogo Celestial deve ser entendida pela derrota total das forccedilas contraacuterias a Deus humanas e demoniacuteacas pela segunda vinda de Cristo (Obtida em http2112hpyollnetapocalipse2htm em 250405) 9 antigo nome da ilha do Japatildeo antes de conhecido pela Europa cristatilde

26

todo os anos quinhentistas conforme jaacute pude demonstrar em A destribalizaccedilatildeo da

Alma Indiacutegena Brasil Seacuteculo XVI uma visatildeo junguiana10

Obviamente essas faccedilanhas dos descobrimentos trouxeram ao Orbis

Christianus grande avanccedilo tecnoloacutegico no ramo dos transportes da navegaccedilatildeo e

do comeacutercio mas principalmente trouxeram o mais preciso conhecimento

geograacutefico e cartograacutefico do planeta de entatildeo cujos mapas por mais atualizados

que estivessem baseavam-se tatildeo somente na geografia biacuteblica da Idade Meacutedia

Era o Velho Mundo nos seacuteculos XV e XVI aacutevido de modernidade mas

persistia na mente dos portugueses e espanhoacuteis a impregnaccedilatildeo de mitos Existia

como produto social uma turva fronteira entre o real e o imaginaacuterio causada pela

verdade revelada das Escrituras Haacute que se entender que aqueles autores

primeiros que escreveram os primeiros livros sagrados estavam cercados de

desertos e de aacutereas inoacutespitas e tiveram a visatildeo de um local edecircnico como sendo

de feacuterteis terras de aacuteguas abundantes onde tudo nascia e crescia sob a matildeo de

um jardineiro celestial

Entatildeo plantou o Senhor Deus um jardim da banda do

oriente no Eacuteden e pocircs ali o homem que tinha formado E o Senhor

Deus fez brotar da terra toda qualidade de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e boas para comida bem como a aacutervore da vida no meio do jardim e

a aacutervore do conhecimento do bem e do mal

E saiacutea um rio do Eacuteden para regar o jardim e dali se dividia

e se tornava em quatro braccedilos O nome do primeiro eacute Pisom este eacute o

que rodeia toda a terra de Havilaacute onde haacute ouro e o ouro dessa terra eacute

bom ali haacute o bdeacutelio e a pedra de berilo O nome do segundo rio eacute

10 CARNOT 2005

27

Giom este eacute o que rodeia toda a terra de Cuche E o nome do terceiro

rio eacute Tigre este eacute o que corre pelo oriente da Assiacuteria E o quarto rio eacute

o Eufrates11

Mas tambeacutem proibiu apoacutes a expulsatildeo de Adatildeo o homem de encontrar

esse Jardim edecircnico

O Senhor Deus pois o lanccedilou fora do jardim do Eacuteden para

lavrar a terra de que fora tomado E havendo lanccedilado fora o homem

pocircs ao oriente do jardim do Eacuteden os querubins e uma espada

flamejante que se volvia por todos os lados para guardar o caminho

da aacutervore da vida12

Encontraram Vejamos um relato de Cristoacutevatildeo Colombo

Satildeo esses grandes indiacutecios do paraiacuteso terrestre porque

o lugar eacute conforme ao que pensam os santos e os sagrados teoacutelogos

E os sinais satildeo igualmente muito conformes pois jamais li ou ouvi

dizer que tamanha quantidade de aacutegua doce pudesse estar no meio

da aacutegua salgada ou na sua vizinhanccedila vem ainda em apoio a tudo

isso a temperatura extremamente agradaacutevel E se essa aacutegua natildeo vem

do Paraiacuteso seria ainda maior maravilha porque natildeo creio que se

conheccedila no mundo rio tatildeo grande e tatildeo profundo13

Chegaram a um local adacircmico sim com vegetaccedilatildeo abundante com

aacuteguas cristalinas e principalmente com um povo diferente daquele que o europeu

11 (Gecircnesis 2 8-14) 12 (Gecircnesis 3 23-24) 13 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p57

28

conhecia Talvez um arremedo do Jardim mas enfim um jardim bom para a

exploraccedilatildeo e bom para aumentar as almas do Tesouro de Cristo

Corpos diferentes e muitas vezes nus exuberantes como os indiacutegenas

da Ilha de Vera Cruz com miacutesticos costumes com lendas fabulosas poreacutem

distintas daquelas que o imaginaacuterio cristatildeo pudesse relatar Nem cinoceacutefalos14

nem hordas malditas mas guerreiros aguerridos em parte doacuteceis e prontos para

serem convertidos em ovelhas do Senhor em parte bravios e indispostos a serem

conquistados

Natildeo se pode numerar nem compreender a multidatildeo de

baacuterbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil

porque ningueacutem pode pelo sertatildeo dentro caminhar seguro nem

passar por terra onde natildeo ache povoaccedilotildees de iacutendios armados contra

todas as naccedilotildees humanas e assim como satildeo muitos permitiu Deus

que fossem contraacuterios uns dos outros e que houvesse entre eles

grandes oacutedios e discoacuterdias porque se assim natildeo fosse os

portugueses natildeo poderiam viver na terra nem seria possiacutevel

conquistar tamanho poder de gente15

Ou ainda

E satildeo muito inclinados a pelejar e muito valentes e

esforccedilados contra seus adversaacuterios e assim parece coisa entranha

ver dois trecircs mil homens nus de uma parte e de outra com grandes

assobios e grita frechando uns aos outros e enquanto dura esta

14 Homens com cabeccedila de catildeo seguidores dos guerreiros Gog e Magog que viriam no apocalipse acompanhando o Anticristo (citados em Apocalipse 20 7-8) 15 GAcircNDAVO1980p12)

29

peleja nunca estatildeo com os corpos quedos meneando-se de uma parte

para outra com muita ligeireza para que natildeo possam apontar nem

fazer tiro em pessoa certa algumas velhas costumam apanhar-lhes

as frechas pelo chatildeo e servi-los enquanto pelejam Gente eacute esta muito

atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vatildeo agrave guerra

sempre lhes parece que tecircm certa a vitoacuteria e que nenhum de sua

companhia haacute de morrer E quando partem dizem vamos matar sem

mais consideraccedilatildeo e natildeo cuidam que tambeacutem podem ser vencidos 16

Era muito comum poreacutem que o conquistador tivesse a visatildeo de que os

povos dessas terras receacutem descobertas os vissem como sendo de origem divina

Colombo assim contava

Disseram-se muitas outras coisas que natildeo pude

compreender mas pude ver que estava maravilhado com

tudo(diaacuterio 18121492) satildeo creacutedulos sabem que haacute um Deus no

ceacuteu e estatildeo convencidos de que viemos de laacute (diaacuterio

12111492) achavam que todos os cristatildeos vinham do ceacuteu e que o

Reino de Castela ali se encontrava e natildeo neste mundo(diaacuterio

16121492) 17

Ou como escrevia Noacutebrega em suas cartas

Todos querem e desejam ser Cristatildeos mas deixar seus

costumes lhes parece aacutespero Vatildeo contudo pouco a pouco caindo na

verdade18

16 idem p13 17 TODOROV 2003 P57 18 NOacuteBREGA 1988 p 114 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551

30

Os Gentios aqui vecircm de muito longe a ver-nos pela fama e

todos mostram grandes desejos Eacute muito para folgar de os ver na

doutrina e natildeo contentes com a geral sempre nos estatildeo pedindo em

casa que os ensinemos e muitos deles com lagrimas nos olhos19

Estatildeo espantados de ver a majestade com que entramos e

estamos e temem-nos muito o que tambeacutem ajuda 20

Falamos do europeu do portuguecircs e do espanhol poreacutem nosso foco

deve e estaacute voltado para o cristatildeo portuguecircs

Esse portuguecircs que no seacuteculo XVI tinha essa imaginaccedilatildeo fervilhante

cheia de conteuacutedos miacuteticos que possuiacutea um falar livre sem os rebuccedilos dos

letrados enfim o povo portuguecircs quinhentista que seguia leis severas de um

reino corporativo onde como nos diz Capistrano de Abreu (1907) As cominaccedilotildees

penais natildeo conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor

de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo e o

confisco de todos os bens 21

Toda a cultura da sociedade portuguesa quinhentista era estruturada

com referecircncia ao sagrado e aos preceitos da Santa Feacute Catoacutelica onde a presenccedila

ou onipresenccedila divina acontecia em toda e qualquer circunstacircncia em qualquer

situaccedilatildeo

19 NOacuteBREGA 1988 p 115-116 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551 20 NOacuteBREGA 1988 p 75 carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo 21 ABREU 1907-2004p46)

31

Essa organizaccedilatildeo cultural se dava sob a forma de um corpo social

definido como o Reino que se entrelaccedilava com outro corpo formado pela Igreja

onde qualquer mediaccedilatildeo seria feita por esses corpos sociais e em uacuteltima instacircncia

Deus era a referecircncia Paiva22 nos coloca que essa constituiccedilatildeo social se dava

como um corpo em graus superpostos o corpo social o corpo miacutestico de Cristo o

universo

Culturalmente a sociedade portuguesa do seacuteculo XVI se

caracterizava pela cimentaccedilatildeo religiosa de todo o seu fazer A uacuteltima

explicaccedilatildeo do por que as coisas eram tais quais eram estava na

religiatildeo ou seja na sua referecircncia ao sagrado O poder do rei a

organizaccedilatildeo da sociedade as instituiccedilotildees os valores os costumes

as expressotildees tudo enfim tinha sua razatildeo de ser na sacralidade tudo

tinha um caraacuteter religioso 23

Nada era questionado quanto a essa cultura religiosa pois tudo

absolutamente tudo o comeacutercio os estudos as conquistas todos ordenavam

seus esquemas atraveacutes da dogmaacutetica e da apologeacutetica religiosa onde se

chamava de Ciecircncia rainha de todas as rainhas a Teologia

Os valores os costumes a compreensatildeo de vida estava imersa no mito

cristatildeo onde a uacuteltima realizaccedilatildeo se daacute em Deus 24 mito que ao longo da Idade

Meacutedia europeacuteia se elaborou fundado na compreensatildeo de uma ordem uacutenica que

se funda em Deus do qual todas as instacircncias subordinadamente se plenificam

22 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura 23 PAIVA 2002 p 3 24 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura

32

assim se pondo25 garantindo ao Rei o direito a proeminecircncia e conquista e

sujeiccedilatildeo de qualquer povo de qualquer terra conquistada

Ficava assim mais faacutecil se compreender o Poder pois ele estaria

concebido fundado na Vontade de Deus e por consequumlecircncia na do Rei

O Rei era antes de tudo era aquele que dizia a justiccedila e o rei perfeito

era o juiz perfeito Que todo julgamento era pela vontade divina e que a boa

dinastia nunca gerava um mau rei e portanto um bom representante de Deus na

Terra

Poreacutem a necessidade de um bom reinado se fazia presente todo o

tempo dando ateacute mesmo possibilidades de trocas de reis por natildeo se cumprir um

bom reinado Era a forma de garantirem a permanecircncia no reinado ou a

legitimidade do golpe para assumir o reinado de outro principalmente se o anterior

regia sem competecircncia com tirania ou descaso Ao levantar essa situaccedilatildeo de

troca de rei ou de afirmar-se no reinado invocavam o Direito das Gentes 26

Dessa forma o direito tambeacutem sujeitava o Rei agraves leis leis essas que na verdade

ao receber a coroa jurou defender como nas Ordenaccedilotildees Afonsinas por

exemplo

Quando Nosso Senhor Deos fez as criaturas assim

razoaveis como aquellas que carecem de razom non quis que

fossem iguaes mas estabeleceo e hordenou cada hua sua virtude e

poderio de partidos segundo o grao em que as pocircs bem assy os

25 idem 26 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128

33

Reys que em logo de Deos na Terra som postos para reger e

governar o povo nas obras que ham de fazer assy de Justiccedila como

de graccedila ou mercees devem seguir o exemplo daquello que ele fez

e hordenou dando e distribuindo non a todos por hua guisa mais a

cada huu apartadamente segundo o gratildeo e condiccedilon e estado de

que for27

Essas mesmas Ordenaccedilotildees dividiam a sociedade em estratos os

defensores os que defendem o povo os que rogam pelo povo os oradores

dividindo ainda em estados limpos (letrados lavradores e militares) e estados vis

(oficiais mecacircnicos ou artesatildeos) e dos privilegiados (que pela miliacutecia ou pela Arte

se livraram das profissotildees soacuterdidas) 28

Em todo esse universo religioso eacute que estavam os fatos gerados por

seus atores sociais seus costumes seus ritos e siacutembolos suas vestimentas e

linguagem tudo fazendo a cultura do portuguecircs cristatildeo quinhentista

O pensamento social poliacutetico medieval eacute dominado pela

ideacuteia da existecircncia de uma ordem universal (cosmos) abrangendo os

homens e as coisas que orientava todas as criaturas para um objetivo

uacuteltimo que o pensamento cristatildeo identificava como o proacuteprio

Criador29

A sociedade portuguesa para a gloacuteria e satisfaccedilatildeo de um imaginaacuterio

eminentemente cristatildeo estaria no mundo para realizar os planos do Criador

portanto tudo e todos que natildeo pudessem caber na inquestionaacutevel obediecircncia e

27 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128 28 idem p132 29 idem p122

34

pertenccedila ao cristianismo somente poderiam ser avaliados como inferiores como

infieacuteis e hereges tal qual as bruxas os aacuterabes os judeus tatildeo mancomunados

com o Diabo

Chega entatildeo esse Portugal agraves Terras Brasiacutelicas com o espiacuterito avivado

com relaccedilatildeo aos sentimentos de cumprir a missatildeo de propagar a feacute cristatilde com um

intuito exorcista de eliminar os democircnios e fantasmas que atraveacutes de milecircnios

teriam povoado estes mundos remotos onde a forccedila de Deus se batia com as

artimanhas do Diabo e ocupada por seres infieacuteis e de praacuteticas pagatildes mas ligado

ao racionalismo portuguecircs que se desenvolvia prometia ainda essa terra o

fornecimento de material para exploraccedilatildeo e o comeacutercio

A convivecircncia do europeu com os nativos da Aacutefrica Aacutesia e

Ameacuterica significou para esses povos castraccedilatildeo e imposiccedilatildeo cultural

tal o etnocentrismo que a caracterizava tal a racionalidade que

conduzia sua poliacutetica tal sua forccedila militar30

Chegam entatildeo esses portugueses fedentos e escalavrados de feridas

de escorbuto31 com a intenccedilatildeo de transformarem indiacutegenas esplendidos de vigor e

beleza32 em querubins caciques em Guaixaraacute e jovens adolescentes em outros

tantos diabos pois que se defrontam com formas diferentes de amor de mundo

de vida e morte e acreditavam piamente que essa era uma forma diaboacutelica de

30 PAIVA 2002 p 46 31 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 32 idem

35

viver uma ofensa agrave obra de Deus na terra por isso natildeo podia deixar de ser banida

e extirpada como um tumor que ameaccedilava a Gloacuteria do Senhor 33

33 CARNOT 2005 p120

36

CAPIacuteTULO 1 - A EDUCACcedilAtildeO COMO TRANSMISSAtildeO DE CULTURA QUE ENSINA E ALTERA

COSTUMES

Durante o tempo de estudos e pesquisas desde os tempos de

mestrado por ter vindo de uma aacuterea de investigaccedilatildeo como a Psicologia parto do

princiacutepio que a conversatildeo e na educaccedilatildeo transmitida aos indiacutegenas houve

diversas falhas como jaacute pude mostrar em a Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

falhas essas que existiram pelas vivecircncias dos atores sociais em seu tempo e em

resposta a suas ansiedades Tenho constantemente pensado que entre essas

falhas qual a mais importante na educaccedilatildeo na conversatildeo e na catequese

Seria um erro didaacutetico Seria um erro baseado no depositum

da

verdade revelada onde o jesuiacuteta professava suas concepccedilotildees e conceitos

Seraacute que esse erro se encontra no indiacutegena no receptaacuteculo desse

depositum que talvez natildeo estivesse apto a recebecirc-lo

Gostaria de entender o ser humano como um portador de um vaacutecuo

Natildeo como uma tabula rasa mas como um vaacutecuo disponiacutevel a descobertas a

formas e cores a necessidades a curiosidades Seriam a curiosidade e a

necessidade o proacuteprio vaacutecuo

37

Parto desse ponto para afirmar que os vaacutecuos preacute-existem para que as

formas e conteuacutedos possam vir a existir O vaacutecuo eacute a Ideacuteia a Concepccedilatildeo Primeira

a Fecundaccedilatildeo Coacutesmica assim como Primeiro foi o Verbo

CG Jung nos diz que o inconsciente possui todos os materiais

psiacutequicos que existem na consciecircncia de um indiviacuteduo inclusive as percepccedilotildees

sublimais34 e principalmente aqueles materiais que natildeo alcanccedilaram o limiar da

consciecircncia mas que serviratildeo para que o indiviacuteduo receba tudo aquilo que poderaacute

advir com a aculturaccedilatildeo que viraacute a acumular em sua vida

A educaccedilatildeo seja ela a de transmissatildeo de cultura ou a educaccedilatildeo formal

escolar com a funccedilatildeo de nos colocar em focircrmas nos daacute preenchimento desse

vaacutecuo sem que faccedila entender a necessidade ou que nos permita buscar a

curiosidade de desvelar o veacuteu que cobre o universo das coisas as essecircncias O

homem somente aprende algo que sirva para atender sua curiosidade ou uma

necessidade

Assim eacute a educaccedilatildeo nos oferece importantes informaccedilotildees e conceitos

sem que nos provoque a busca

Em Les secrets de la maturiteacute Hans Carossa (Apud Bachelard-1990 p7)

diz o homem eacute a uacutenica criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior

34 sublimais

origem sublimaccedilatildeo = lat sublimatigraveooacutenis accedilatildeo de elevar exaltar pelo fr sublimation (1274) elevaccedilatildeo exaltaccedilatildeo (1856) accedilatildeo de purificar (1904) - modificaccedilatildeo da orientaccedilatildeo originalmente sexual de um impulso ou de sua energia de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade transformaccedilatildeo de um motivo primitivo e sua colocaccedilatildeo a serviccedilo de fins considerados mais elevados [A atividade religiosa artiacutestica e intelectual satildeo exemplos tiacutepicos de sublimaccedilatildeo

38

de outra A palavra vontade usada por Carossa me faz buscar outros conceitos

como desejo curiosidade afatilde tesatildeo necessidade Eacute essa vontade de olhar para

o interior das coisas que torna a visatildeo aguccedilada penetrante pronta para descobrir

uma intenccedilatildeo uma utilidade uma funccedilatildeo Eacute o violar o segredo tal qual uma

crianccedila que abre seu brinquedo para ver o que haacute dentro Noacutes adultos por falta de

memoacuteria de nossa infacircncia queremos atribuir esse abrir o brinquedo como uma

intenccedilatildeo destrutiva Mas a crianccedila o humano em noacutes busca ver aleacutem ver por

dentro em suma escapar a passividade da visatildeo 35

O homem aculturado educado olha para essa estrutura externa e

natildeo vecirc a profundeza do brinquedo mas a crianccedila possuidora de um vaacutecuo ainda

natildeo preenchido pela histoacuteria faz com o brinquedo o que a educaccedilatildeo natildeo sabe

fazer e a imaginaccedilatildeo realiza magistralmente seja como for descobre sua

profundidade sua substacircncia seu oculto

Capta a crianccedila imagens tatildeo numerosas tatildeo variaacuteveis e tatildeo confusas

que despertam cada vez mais as nuanccedilas sentimentais de sua curiosidade Toda

doutrina da imagem eacute acompanhada em espelho por uma psicologia do

imaginante 36

Assim encontro um dos enganos da educaccedilatildeo o natildeo preencher o

vaacutecuo humano com o desejo com a vontade e sim com o que as concepccedilotildees

adultas pensam ser importantes

35 BACHELARD 1990p8 36 idem

39

Mas se procurarmos outras falhas com relaccedilatildeo ao ensinar e ao

aprender esbarramos na filosofia que muitas vezes trabalha com essa busca da

profundidade das coisas de forma dogmaacutetica que tolhe brutalmente toda

curiosidade voltada para o interior das coisas 37 Para esses filoacutesofos da educaccedilatildeo

que assim pensam a profundidade das coisas eacute ilusatildeo que a crianccedila pergunta

mas que natildeo deseja realmente saber e que se lhe explicarem superficialmente

satisfaratildeo sua necessidade

Em verdade essas questotildees natildeo perturbam esses filoacutesofos Nessas

questotildees que a a educaccedilatildeo natildeo sabe fazer amadurecer a filosofia condena o

homem a permanecer como ele diz no plano dos fenocircmenos 38 Tudo natildeo passa

de aparecircncia Inuacutetil ir ver mais inuacutetil ainda imaginar mas se esquece que a

natureza esconde como funccedilatildeo primaacuteria da vida protege abriga guarda

reserva e esse interior tem funccedilotildees de trevas de guardar aquilo que a curiosidade

ou a necessidade necessitam iluminar

Magie uma personagem de Henri Michaux39 em um de seus conselhos

diz ponho uma maccedilatilde sobre a mesa Depois ponho-me dentro dessa maccedila Que

tranquumlilidade Flaubert40 dizia a mesma coisa a forccedila de olhar um seixo um

animal um quadro senti que eu estava neles

Somente o poeta e seus personagens sabem do interior das coisas

Natildeo poderia ser a educaccedilatildeo uma poesia

37 idem p9 38 idem p9 39 BACHELARD 1990 apud p11 40 BACHELARD 1990 apud p11

40

Francis Ponge41 busca o entender das coisas da seguinte forma

Proponho a todos a abertura dos alccedilapotildees interiores uma viagem na espessura

das coisas uma invasatildeo de qualidades uma revoluccedilatildeo ou uma subversatildeo

comparaacutevel agravequela operada pela charrua ou pela paacute quando de repente e pela

primeira vez satildeo trazidos agrave luz milhotildees de fragmentos lamelas raiacutezes vermes e

bichinhos ateacute entatildeo enterrados

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas natildeo me conta que por mais que mude

as peccedilas que satildeo sempre as mesmas estatildeo presas numa caixa A mim agrada

mais o microscoacutepio ou a luneta que satildeo instrumentos da curiosidade

A educaccedilatildeo conserva em si a manutenccedilatildeo da verdade revelada da

Idade Meacutedia onde natildeo se podia buscar o cerne das coisas acredita ainda hoje

que o cisne de esplendorosa brancura eacute todo negrume no interior

Essa

verdade medieval que permanece nos conceitos da escola do ensinar do

aprender teria sido quebrada atraveacutes de um pequeno e simples exame para

saber que o cisne natildeo eacute muito diferente em suas cores do interior do corvo

Se apesar dos fatos a afirmaccedilatildeo do negrume intenso do cisne eacute tatildeo amiuacutede

repetida eacute por satisfazer a uma lei da imaginaccedilatildeo dialeacutetica As imagens que satildeo

forccedilas psiacutequicas primaacuterias satildeo mais fortes que as ideacuteias mais fortes que as

experiecircncias reais 42

41 BACHELARD 1990 apud p10 42 BACHELARD 1990 p17

41

Como disse Jean Paul Sartre eacute preciso inventar o acircmago das coisas

se quisermos um dia descobri-lo

Natildeo sei se estou conseguindo passar ao leitor a total significacircncia da

ideacuteia do preenchimento do vaacutecuo atraveacutes de uma educaccedilatildeo que olhe para dentro

das coisas Quando falo de dentro das coisas natildeo estou com isso falando de

interior tatildeo somente mas da essecircncia do acircmago Veja este exemplo certa vez

caminhando com meu filho que tinha entatildeo quatro anos pelas ruas do bairro

onde resido ruas com terrenos vazios e onde se pode ter contato bastante grande

com a natureza pude brincar de investigar

Andaacutevamos por uma dessas ruas quando eu encontrei pegadas de um

cavalo Conhecendo esse espiacuterito de investigaccedilatildeo e da curiosidade que emana do

meu filho mostrei a ele as pegadas Imediatamente ele disse que legal vocecirc

descobriu essas pegadas do cavalo branco Perguntei como ele poderia saber a

cor do cavalo que havia passado por ali Sua resposta foi simples vamos seguir

as pegadas e a gente pode saber e eu estou certo Aceitei a proposta e saiacutemos

seguindo as pegadas Em alguns pontos onde a terra estava mais firme as

pegadas sumiam mas ele como toda sua curiosidade buscava novas evidecircncias

e encontrava as pegadas seguintes Andamos lentamente e olhando para o chatildeo

das ruas de terra por mais ou menos duas horas sem que ele desistisse ou

mostrasse sinais que natildeo mais se importava com a brincadeira Andamos

precisamente quatro quilocircmetros ateacute chegarmos a um local onde se localizam

algumas baias e laacute estavam alguns cavalos Havia um branco e ele se convenceu

e quase me convenceu tambeacutem de que estava certo

42

Esse vaacutecuo da curiosidade foi preenchido a perspectiva de intimidade

da coisa do evento mostrou um interior maravilhoso um interior esculpido de

fantasias da mesma forma que se abrisse um geodo e um mundo cristalino

houvesse sido revelado

Eacute dessa qualidade de vaacutecuo que falo e que a educaccedilatildeo natildeo eacute capaz de

preencher natildeo por falta de conteuacutedo ou de forma mas da maneira de trabalhar a

curiosidade e a necessidade Natildeo basta a natureza conter formas incriacuteveis na

moleacutecula da aacutegua ou no floco de neve conter eflorescecircncias arborescecircncias e

luminescecircncias se natildeo for possiacutevel dar o desejo dessas descobertas Repito a

educaccedilatildeo natildeo sabe fazer isso mas a imaginaccedilatildeo faz com perfeiccedilatildeo a alquimia

das descobertas

Jung fala da alquimia em seus estudos ligando o sonho da

profundidade das substacircncias43 agrave busca do self atraveacutes do mergulho no

inconsciente Se o alquimista fala do mercuacuterio ele pensa exteriormente no

argento vivo mas ao mesmo tempo acredita estar diante de um espiacuterito escondido

ou prisioneiro da mateacuteria

44

A curiosidade eacute como um sonho de descoberta das virtudes secretas

das substacircncias ao tentar descobrir pela curiosidade ou pela necessidade a

essecircncia das coisas eacute como sonhar como o secreto em noacutes Os maiores

43 No aristotelismo e na escolaacutestica realidade que se manteacutem permanente sob os acidentes muacuteltiplos e mutaacuteveis servindo-lhes de suporte e sustentaacuteculo aquilo que subsiste por si com autonomia e independecircncia em relaccedilatildeo agraves suas qualificaccedilotildees e estados Algo que estaacute aleacutem sob as aparecircncias 44 cf JungPsychologie und Alchemie p399 apud Bachelard p 39

43

segredos de nosso ser estatildeo escondidos de noacutes mesmos estatildeo no segredo de

nossas profundezas 45

Eacute exatamente a partir da curiosidade sobre essas essecircncias sobre

essa alquimia que pesquiso meu trabalho em Educaccedilatildeo Histoacuteria e Cultura Minha

tese vem responder a esse meu anseio entender o mito que fazia com que

homens saiacutessem do conforto de seus lares ou mosteiros para conquistarem terras

novas e imporem seus dogmas a povos cuja explicaccedilatildeo da vida estavam

baseadas em outros mitos

Vejo o mito como um sistema de conhecimento velado poreacutem mesmo

assim exaustivo do inefaacutevel e do divino Eacute o mito a curiosidade aliada agrave

necessidade da explicaccedilatildeo de si e sua relaccedilatildeo individual com o Universo

Acontece poreacutem que a catequese a imposiccedilatildeo de cultura a educaccedilatildeo

negam a individualidade do homem negam seus vaacutecuos e seus mitos gerando

vaacutecuos novos e que natildeo podem ser preenchidos com aquilo que existe na verdade

daquele que foi conquistado O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria verdade

46

Negar essa individualidade eacute um absurdo e a crianccedila sabe disso O

homem por mais que natildeo queira aceitar pois tenta se proteger de sua

incapacidade de buscar as essecircncias tem pleno conhecimento que a consciecircncia

eacute individual que a busca eacute individual que a curiosidade eacute individual e que ela faz

parte da substacircncia e da coisa em si

45 Bachelard p39 46 GUSDORF 1959 p13

44

Mas para o homem quando despido de suas aculturaccedilotildees e carapaccedilas

de defesas contra suas emoccedilotildees a coisa em si precisa ser explicada O que lhe

resta entatildeo eacute estruturar essa explicaccedilatildeo sob a forma de representaccedilatildeo Para

representar colhe do externo e divino e interioriza tal representaccedilatildeo em sua

essecircncia Novamente o mito eacute criado

Em todo o tempo de bancos escolares infelizmente natildeo tive a atenccedilatildeo

que poderia ter em relaccedilatildeo agrave mitologia Tive uma ideacuteia precaacuteria de tal assunto que

natildeo me mostrou quanto essa forccedila criadora que norteou o rejuvenescimento

constante dos mitos na esfera grega assiacuteria egiacutepcia e como essa atividade do

espiacuterito antigo agia de modo essencialmente poeacutetico e artiacutestico da mesma forma

que para o homem moderno tem a ciecircncia contribuiacutedo para nossa evoluccedilatildeo

Assim novamente digo que a questatildeo a ser respondida com esta

pesquisa eacute de como vivia o povo indiacutegena com essa experiecircncia que chamo o

mito de Deus quer fosse o Deus Cristatildeo quer fosse o deus ntildeande ru Pa-Pa

Tenodeacute47

Por isso o objeto a ser trabalhado nesta tese eacute o mito como

instrumento educacional de transmissatildeo de cultura fazendo uma anaacutelise de como

o mito cristatildeo era entendido pelos portugueses e jesuiacutetas no seacuteculo XVI e imposto

violentamente aos indiacutegenas desse mesmo tempo

A pesquisa desta temaacutetica buscaraacute a relaccedilatildeo do mito cristatildeo em uniatildeo

com mitos e lendas do povo aacuterabe invasor da peniacutensula ibeacuterica aleacutem dos mitos e

47 Em liacutengua ancestral Tupi o abantildeeenga significa nosso Pai Primeiro

45

lendas oriundas do oceano inavegabile por ocasiatildeo dos descobrimentos quando

marinheiros narravam histoacuterias fantaacutesticas de Homens-cavalo homens

gigantescos de um uacutenico peacute ciclopes e amazonas e outros mitos do mirabilis no

mundo conhecido do seacuteculo XVI de encontrar as diferenccedilas e semelhanccedilas com

os mitos europeus

Pesquisar ainda o mito como instrumento educacional de transmissatildeo

de cultura atraveacutes da narrativa da educaccedilatildeo falada e contada amplamente

utilizada pela pedagogia jesuiacutetica que utilizou todos os conceitos tanto de mitos

como de pecados e tabus para catequizar e converter os indiacutegenas agrave Santa Feacute

Catoacutelica

Essa eacute minha busca atraveacutes da curiosidade mostrar que a educaccedilatildeo soacute

poderaacute ser eficaz no momento em que trabalhar com os mitos os mitos do

descobrir os mitos de desvelar o mito do vaacutecuo

46

CAPIacuteTULO 2 - O MITO

No atual quadro do desenvolvimento cientiacutefico eacute cada mais comum se

falar em interdisciplinariedade conceito que traduz um modo novo de lidar com

os objetos de estudo com os planos teoacuterico e metodoloacutegico da pesquisa e

especialmente com o papel do cientista diante do universo que busca

compreender eou explicar

Tendo como coadjuvantes conhecimentos que vatildeo da Psicanaacutelise agrave

Antropologia e agrave Arte da Sociologia agrave Filosofia e agrave Histoacuteria os estudos em

Educaccedilatildeo fazem um percurso que recoloca a questatildeo epistemoloacutegica do proacuteprio

estatuto da ciecircncia de transmissatildeo de cultura

Onde buscar respostas

Como opccedilatildeo de caminho busquei as respostas na ontologia claacutessica e

no mito como bases como alicerces do que pretendo construir no que tange agrave

Educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura

O mito foi quase sempre considerado o produto de uma forma de

conhecimento do mundo dos fatos de conhecimento do mundo dos fatos naturais

e sobrenaturais organizada de modo alegoacuterico a ponto de mostrar poeticamente

a relaccedilatildeo entre homem e universo ou um modelo um arqueacutetipo que mesmo

47

mudando de vez em quando de acordo com conteuacutedos histoacutericos e geograacuteficos

peculiares tem sempre a mesma estrutura formal ligada ao mecanismo de

funcionamento da psique humana ou enfim um meacutetodo religioso de aproximaccedilatildeo

da concepccedilatildeo sagrada da existecircncia em que o mito eacute tido como um sistema de

conhecimento velado poreacutem mesmo assim exaustivo do inefaacutevel e do divino

Natildeo importa se o mito define o iniacutecio do mundo ou o mundo define o

iniacutecio do mito O que importa enfim eacute que o mito nasce com o humano pois tudo o

que existe no mundo eacute visto sob o olhar do humano

Tendo esse homem um pecado original como faz parte da nossa cultura

ou uma forma original de ter vindo ao mundo como a partir do caos ou da

escuridatildeo todos os humanos reconhecem sua identidade atraveacutes da natureza e

das coisas humanas

Durante toda sua vida os homens que satildeo igualmente homens

nascem de uma mesma forma e morrem de uma mesma forma no entanto natildeo

soacute com caracteriacutestica fiacutesicas diferentes natildeo soacute com valores diferentes com

definiccedilotildees espirituais diferentes com mitos diferentes mas todos explicam essas

igualdades e diferenccedilas atraveacutes do mito

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida

O ser humano natildeo nasce com papeacuteis em branco como uma tabula rasa

ao contraacuterio estava preparado para as experiecircncias da vida humana do mesmo

48

modo que os paacutessaros estavam de maneira inata prontos para construir ninhos

ou a fecircmea da tartaruga marinha estava preparada para retornar ao local onde

nasceu para laacute botar os proacuteprios ovos Mas algumas muitas das situaccedilotildees tiacutepicas

do homem relativas agrave condiccedilatildeo humana satildeo representadas pelos mitos

apreendidos e esses mitos datildeo ao homem a predisposiccedilatildeo para experimentar os

conceitos de matildee pai filho Deus Grande Matildee velho saacutebio nascimento morte

renascimento separaccedilotildees rituais de cortejo casamento e assim por diante

O mito se forma sob as caracteriacutesticas de imagens primordiais de fatores e

motivos que coordenam os elementos psiacutequicos do homem que soacute podem ser

reconhecidos como formadores do mito apoacutes terem efeito na vida do homem

Dessa forma os conteuacutedos miacuteticos pertencem agrave estrutura psiacutequica dos

indiviacuteduos enquanto possibilidades latentes tanto como fatores bioloacutegicos

como histoacutericos

48

Os mitos natildeo se difundem apenas pela tradiccedilatildeo linguagem ou migraccedilatildeo

Eles podem surgir de forma espontacircnea em qualquer tempo ou lugar sem serem

influenciados por transmissatildeo externa Pode-se considerar portanto que em cada

psique existem verdadeiras prontidotildees vivas ativas que embora inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico Essas imagens de

prontidatildeo satildeo imagens arquetiacutepicas que na mente consciente desenvolvem um

jogo entre as realidades interna e externa do homem que sofre pressatildeo pessoal e

cultural do tempo e do lugar em que estatildeo inseridas

48 JACOBI 1991 paacuteg39

49

Por esse motivo o mito eacute normalmente milenar e universal ao grupo

social em que atua eacute parte do inconsciente coletivo pois satildeo disposiccedilotildees

herdadas pela humanidade Manifesta-se ou produz imagens e pensamentos Os

conteuacutedos do inconsciente pessoal satildeo aquisiccedilotildees da existecircncia individual ao

passo que os conteuacutedos do inconsciente coletivo satildeo arqueacutetipos que existem

sempre e a priori

A definiccedilatildeo de mito eacute basicamente a concepccedilatildeo de homem

plenamente relacionado com tudo o que existe em seu contorno O homem eacute o

todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias arquetiacutepicas que todos

os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo individual e possuindo

caracteriacutesticas uacutenicas

Essa eacute a relaccedilatildeo maacutegica do mito O homem crecirc que vai chover para

molhar sua plantaccedilatildeo e realmente chove Chove por condiccedilotildees climaacuteticas mas

para o homem envolvido no mito chove porque os deuses assim o permitiram

natildeo soacute para ele mas para aqueles que juntamente com ele vivem o mito Dentro

do mito o homem opera sobre o existente e sobre sua consciecircncia de mundo No

mito o homem vive dentro e fazendo parte do todo natildeo como uma soma de

partes mas como uma parte representando o todo

Ontologicamente o mito traz consigo a missatildeo de mostrar em termos

gerais a existecircncia do ser natildeo deste ou daquele ser concreto mas do ser em

geral pois o homem sempre buscou e buscaraacute as respostas de quem eacute de onde

vem para onde vai se eacute que vai para algum lugar ou condiccedilatildeo

50

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertence foi necessaacuterio ao homem criar uma linguagem que pudesse dar

conta de transcrever sua realidade afinada com seu proacuteprio conhecimento de

mundo

No entanto sempre foi tarefa impossiacutevel tanto ao homem primitivo

como ao homem da modernidade definir o que eacute o homem o que eacute o ser ou

mesmo quem ele eacute

Cada vez que tentamos definir o homem como um ser deparamos com

outros conceitos a serem elaborados pois a cada qualidade de homem a cada

origem cultural ou geograacutefica de cada eacutepoca os conceitos se modificam as

definiccedilotildees se tornam mais errocircneas caso se tente colocar o homem dentro de um

soacute conceito

Claro que sabemos o que eacute o homem claro que o homem conhece a si

mesmo poreacutem ao perceber-se diante do outro diante de desejos e anseios tatildeo

diferentes entre si associados a coisas tatildeo distintas se obriga novamente a uma

anaacutelise de si e do todo

Eacute nesse anseio que o homem se pergunta quem eacute natildeo deixando de

perguntar quem eacute o outro na relaccedilatildeo de troca de parceria de mutualidade

O mito do homem necessita demonstrar essa origem e esse fim

escatoloacutegico49

49 Da escatologia doutrina que trata do destino final do homem e do mundo pode apresentar-se em discurso profeacutetico ou em contexto apocaliacuteptico

51

Necessita o homem agregar valor agraves definiccedilotildees quer com objetos que

se agregam dando qualidade agraves coisas quer transformando os objetos ideais em

personificaccedilotildees

A fortaleza do deus sol era construiacuteda sobre esplecircndidas

colunas e brilhava coberta de reluzente ouro e rubis flamejantes O

frontatildeo superior era emoldurado por marfim alvo e brilhante e os

portotildees duplos eram de prata ornamentados com impressionantes

relevos esculpidos por Hefaiacutestos representando a terra o mar e o ceacuteu

com seus habitantes50

Heacutelio vestido com um manto de puacuterpura estava sentado

sobre o seu trono ornamentado com esmeraldas Agrave sua direita e agrave

sua esquerda estava o seu seacutequumlito o Dia o Mecircs o Ano o Seacuteculo e

as Horas Do outro lado a Primavera com sua coroa de flores o

Veratildeo com suas espigas de cereais o Outono com uma cornucoacutepia

cheia de uvas e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve51

Sem que se fique preso a definiccedilotildees religiosas de uma ou outra crenccedila

necessita ainda o homem buscar respostas atraveacutes dos mitos que possam

confirmar sua percepccedilatildeo de mundo Eu existo o mundo existe os deuses

existem e as coisas existem Mas existem sem mim Existem independentes de

minhas representaccedilotildees Ao perceber-se distinto ao olhar o outro ao reconhecer-

se em outro o homem miacutetico percebe existirem definiccedilotildees diferentes para o ser

50 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 51 idem

52

em si mesmo e o ser o outro o que sugere as relaccedilotildees e o obriga a entrar em

contato com o real e suas representaccedilotildees de mundo e suas explicaccedilotildees para

esse mundo

Esses dois significados equivalem a estes outros dois a

existecircncia e a consistecircncia A palavra ser significa tambeacutem consistir

ser isto ser aquilo Quando perguntamos que eacute o homem Que eacute a

aacutegua Que eacute a luz Natildeo queremos perguntar se existe ou natildeo existe

o homem se existe ou natildeo existe a aacutegua ou a luz Queremos dizer

qual eacute a sua essecircncia Em que consiste o homem Em que consiste

a aacutegua Em que consiste a luz 52

Dessa forma para que uma estrutura mental possa ser montada o

homem tentaraacute buscar no mito a essecircncia de sua vida do porquecirc do sol e de

como surgiu do porquecirc das chuvas da boa e da maacute colheita da boa e maacute sorte na

caccedila do existir do dia e da noite e mesmo depois de cientificamente ter certezas

de suas definiccedilotildees guarda dentro de si sob a forma do pensamento da crianccedila o

homem primitivo que crecirc e vive o mito O mito da essecircncia da origem no divino e

da busca de sua existecircncia

Honrado pai na terra todos me ridicularizam e respondem

minha matildee Cliacutemene Afirmam ser falsa a minha origem divina

dizendo que sou filho bastardo de um pai desconhecido Eacute por isso

52 MORENTE 1930 62

53

que estou aqui para pedir-lhe um sinal que prove a todos na terra que

sou seu filho 53

Cria entatildeo o homem um mito para mostrar sua existecircncia pois o mito

eacute a proacutepria representaccedilatildeo do real natildeo estando fora da realidade e sim formulando

um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a accedilatildeo 54 Natildeo se

pode encarar o mito como constituiacutedo de um puro e simples pensar de forma

fabulosa anaacuteloga ao sonho ao devaneio ou agrave poesia

A consciecircncia miacutetica desenha a configuraccedilatildeo do primeiro

universo 55

A imagem do mundo desenhada por essa consciecircncia miacutetica pela

consciecircncia da essecircncia do ser e sua existecircncia se afirma e se reafirma atraveacutes

de uma paisagem do grupo social paisagem esta que natildeo se prende somente a

uma configuraccedilatildeo geograacutefica ou mesmo fiacutesica mas envolvida por uma visatildeo moral

e espiritual do povo

A filosofia ao descobrir no caminhar das estrelas a mesma exigecircncia

do bater do coraccedilatildeo do homem reconhece nos milecircnios da evoluccedilatildeo social e

humana o primeiro desenho dos universos feito pelo homem primitivo sem saber

53 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 54 GUSDORF 1960 22 55 GUSDORF 1960 51

54

que em verdade jaacute sabia a diferenccedila entre a fiacutesica e a metafiacutesica Eacute proacuteprio do

mito pois dar sentido ao universo 56

Poreacutem o homem miacutetico se depara com outra pergunta por que somos

tatildeo distintos Porque os seres possuem qualidades diferentes que os transforma

em outros Se todos tecircm a mesma origem no divino e se os deuses satildeo como

satildeo por que criaram nos seres tantas diferenccedilas

Entende o homem que independente de sua percepccedilatildeo de universo e

as explicaccedilotildees que pode dar sobre deuses sobre as horas e sobre os tempos e

as colheitas ainda havia que tentar evidenciar as diferenccedilas e as qualidades das

coisas chamadas por ele de seres

A carruagem descia cada vez mais e passado um instante

jaacute estava perto de uma montanha O solo entatildeo se abriu por causa do

calor e como todos os liacutequidos secassem subitamente comeccedilou a

arder As pastagens ficaram amarelas e murchas as copas das

aacutervores das florestas incendiaram-se logo o fervor chegou agrave planiacutecie

queimando as colheitas incendiando cidades paiacuteses inteiros ardiam

com sua populaccedilatildeo Picos florestas e montanhas estavam em

chamas e foi entatildeo que os povos da Etioacutepia ficaram negros A Liacutebia

tornou-se um deserto57

Os seres possuem qualidades que agregam valores a esses seres

Definem as diferenccedilas de haacutebitos de raccedilas de culturas de deuses a serem

adorados e democircnios a serem rechaccedilados de bem e mal de batalhas de povos a

56 GUSDORF 196052 57 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005

55

serem dominados ou convertidos de deuses de conquistadores que se

transformam em democircnios para os povos conquistados Que fazem ricos

imperadores serem deuses e pobres escravos mortais

Onde estaratildeo essas explicaccedilotildees No topos ouran s58 Nos mundos

sensiacutevel e inteligiacutevel definidos por Parmecircnides Por Soacutecrates por Platatildeo ou

Aristoacuteteles

O homem miacutetico necessita mostrar que os sentidos o espetaacuteculo

heterogecircneo do mundo com seus variados matizes natildeo eacute o verdadeiro ser mas

antes eacute um ser posto em interrogaccedilatildeo eacute um ser problemaacutetico que necessita

explicaccedilatildeo 59 explicaccedilatildeo sobre as coisas sensiacuteveis e por traacutes delas o intemporal e

o eterno

O mito poderia ser considerado como a arquitetura do universo

desenhado pelo homem Tudo estaacute diante de noacutes todas as coisas estatildeo exposta e

noacutes tambeacutem fazemos parte dessa multiplicidade de coisas que compotildee e

constituem o real

O que se pode afirmar no entanto eacute que atraveacutes do mito o homem se

relaciona com o outro pensa os deuses vive e conhece as relaccedilotildees da

comunidade que habita Define tarefas coletivas e individuais na defesa e na

guarda da comunidade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

58 O mundo dos deuses Tambeacutem chamado de topos noet s o mundo das ideacuteias 59 MORENTE 1930 97

56

A relaccedilatildeo com o coletivo serve agraves necessidades bioloacutegicas de alimento

de si e da prole da procriaccedilatildeo e da guarda do patrimocircnio geneacutetico mas serve

tambeacutem para atender com base numa estrutura psiacutequica ao espiacuterito em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal Para Hollis (1998) Quem

a pessoa eacute define-se em parte por de quem ela eacute

a quem ou com qual

propoacutesito estaacute comprometida

Nas sociedades em que possa haver um colapso de um mito central se

esvai a essecircncia psicoloacutegica preciosa O homem perde o sentido de seus

conteuacutedos miacuteticos e se reativam seus conteuacutedos primitivos onde os valores

diferenciados satildeo substituiacutedos pelos elementos de poder e prazer em uma minoria

e expondo as outras camadas ao vazio e ao desespero

O mito central eacute de tatildeo vital importacircncia que sua perda acarreta uma

situaccedilatildeo apocaliacuteptica quebrando-se o ciacuterculo maacutegico em que o homem estaacute

inserido rompendo-se a relaccedilatildeo do ego com seu criador tendo esse indiviacuteduo que

perguntar novamente e seriamente qual o sentido da vida Natildeo haacute sentido na

vida pois a vida deve ser vivida e natildeo sentida no entanto isso soacute pode ocorrer e

as perguntas serem feitas se o ciacuterculo miacutetico estiver circundando a existecircncia do

homem

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de

nossa anguacutestia individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de

um novo mito central vai resolver o problema para o indiviacuteduo e para

a sociedade60

60 EDINGER 1999 p11

57

Se o mito natildeo eacute a proacutepria ontologia a proacutepria metafiacutesica61 eacute com

certeza a saga do heroacutei chamado ser humano em sua luta ontogocircnica62 Esse

heroacutei miacutetico usa suas armas para viver a vida a ser vivida Usa suas quatro armas

o saber o ousar o querer e o calar para tal qual Faetonte obter a resposta do

deus criador mesmo que tombe em combate na luta contra a finitude humana

Faetonte com os cabelos em chamas caiu como uma

estrela cadente E o rio Poacute recebeu sua carcaccedila carbonizada ante o

olhar estupefato de seu pai As naacuteiades daquela terra depositaram

seu corpo num tuacutemulo e nele gravaram o seguinte epitaacutefio

Aqui jaz Faetonte Na carruagem de Heacutelio ele correu E

se muito fracassou muito mais se atreveu

A finitude humana vem da mesma origem da ideacuteia de universo uma

noccedilatildeo adquirida recebida como heranccedila cultural atraveacutes de sucessivas

descobertas determinaccedilotildees e invenccedilotildees promovidas pelo homem tal qual sua

noccedilatildeo de espaccedilo e de tempo

O homem primitivo natildeo vecirc o espaccedilo como algo simplesmente

continente mas como um lugar absoluto Natildeo eacute o espaccedilo ou o tempo tidos como

61 metagrave tagrave physikaacute

metafiacutesica

aleacutem das coisas fiacutesicas - estudo do ser enquanto ser e especulaccedilatildeo em torno dos primeiros princiacutepios e das causas primeiras do ser 62 ntos ente - Ontogonia Histoacuteria da produccedilatildeo dos seres (entes) organizados sobre a Terra

58

racionais ou funcionais mas como partes estruturais de uma realidade criando a

definiccedilatildeo de um acontecimento de um acircmbito63

Esse contato com o universo com a finitude e com o espaccedilo miacutetico eacute o

proacuteprio princiacutepio da experiecircncia o sentido de realidade envolvida e revestida com

siacutembolos figuras intenccedilotildees humanas sejam agradaacuteveis ou desagradaacuteveis gentis

ou aversivas com o sagrado ou o profano enfim a proacutepria experiecircncia da

realidade humana

Poreacutem o espaccedilo miacutetico primitivo ou mesmo das sociedades claacutessicas

tinham seu espaccedilo vital como o altar o espaccedilo do sagrado onde esse espaccedilo

miacutetico eacute o o verdadeiro ponto de apoio de seu pensamento porque eacute o ponto de

apoio do mundo social e do mundo espacial

64 Por esse motivo o homem miacutetico

organiza seu espaccedilo vital em torno ao redor do espaccedilo sagrado espaccedilo esse

natildeo um marco de uma existecircncia possiacutevel mas sim como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute sentido pois ali moram seus deuses moram seus

mortos seus pensamentos e desejos

Eacute nesse espaccedilo miacutetico o espaccedilo sagrado que o homem realiza seus

rituais para uma boa marcha pelo mundo eacute a aiacute que faz suas suacuteplicas realiza

seus sacrifiacutecios e sua magia propiciatoacuteria onde suas forccedilas vitais se encontram e

se concentram

Dessa forma o homem miacutetico tem deve e precisa estar sempre em

contato com seu espaccedilo tempo e acircmbito onde se encontra o outro e com ele vive

63 GUSDORF 1959 64 GUSDORF 1959 p55

59

o grupo social pois fora dessa relaccedilatildeo tecida com o grupo social o homem

reduzido a si mesmo estaacute aniquilado pois perdeu seu lugar ontoloacutegico e as

referecircncias que lhe outorgavam figura e equiliacutebrio 65 E assim encontra a morte

mesmo que no sentido figurado pois morrer miticamente eacute a cessaccedilatildeo das

relaccedilotildees com o grupo social O morto o defunto eacute aquele que se livrou de suas

obrigaccedilotildees frente agrave comunidade

66 que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

(defuncto)

Vejamos o pensamento de Jung67

Mal terminei o manuscrito quando me dei conta do que

significa viver com um mito e o que significa viver sem ele [O

homem] que pensa que pode viver sem mito ou fora dele como

algueacutem sem raiacutezes natildeo tem nenhum viacutenculo verdadeiro nem com o

passado ou com a vida ancestral que continua dentro dele nem com

a sociedade humana contemporacircnea Esse seu brinquedo racional

nunca capta o lado vital

Nesse espaccedilo miacutetico eacute que se encontra o sagrado e esse sagrado eacute

tudo aquilo que se encontra sob os olhos do homem

Diz Gusdorf

65 Gusdorf1959p92 66 Gusdorf1959p92 67 apud Rollo May 1992p47

60

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao

ser toda sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da

comunidade pelo viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem

vivente a terra as coisas os seres e ainda os mortos que continuam

frequumlentando a morada de sua vida68

Viver no espaccedilo miacutetico eacute viver no sagrado pois o lugar natildeo eacute mais um

lugar e sim onde a vida acontece Ali estatildeo seus deuses suas forccedilas espirituais

os antepassados a vida o alimento etc

Os portugueses do Seacuteculo XVI ao virem para o Brasil trouxeram

consigo seu espaccedilo miacutetico e necessitaram sacralizar o novo territoacuterio construindo

imediatamente apoacutes sua chegada capelas casas ao seu estilo locais de

reuniotildees aleacutem de cristianizar o espaccedilo em que viveriam O espaccedilo eacute uma das

expressotildees da concepccedilatildeo de vida do homem da cultura do homem das relaccedilotildees

sociais Gostaria de afirmar que todos os povos desde o iniacutecio dos tempos tecircm

seu espaccedilo sagrado quando natildeo todo ele

No mundo miacutetico tudo eacute miacutetico natildeo soacute o homem a natureza eacute miacutetica

as pessoas a floresta a chuva o mar e as mareacutes os astros cada qual com sua

funccedilatildeo cada qual com sua participaccedilatildeo mas tudo fazendo parte do universo do

homem miacutetico Se desejarmos por esse motivo ver atraveacutes da razatildeo a loacutegica

disso natildeo conseguiremos pois o sentido do mito ou da vida natildeo existem pois a

vida como nos diz Campbell natildeo tem sentido pois vida natildeo eacute para ser sentida e

68 GUSDORF1959 p55-56

61

sim para ser vivida assim como natildeo eacute justa natildeo eacute certa pois eacute soacute vida e natildeo

justiccedila ou certezas

O mundo eacute um processo daquilo que creio diz o homem miacutetico Pedir

ao homem miacutetico que explique o mundo eacute o mesmo que pedir ao peixe para

explicar a aacutegua em que nada O ser miacutetico talvez tenha uma compreensatildeo mais

profunda da vida sem permitir o questionamento da racionalidade pois explicar o

miacutetico eacute saber que tudo eacute uma presenccedila real

O homem racional atende suas necessidades atraveacutes de possibilidades

conhecidas O homem miacutetico reconhece que o mundo eacute feito de possibilidades e

busca por elas mesmo natildeo as conhecendo as observa as testa e apoacutes tomar

consciecircncia delas as utiliza

O homem miacutetico sabe que natildeo estaacute sozinho pois estaacute conectado a tudo

que o cerca Ele eacute um criador efetivo do mundo infiltrando esse mundo de ideacuteias

e pensamentos Vejamos por exemplo que a Terra eacute um planeta totalmente

dominado por religiotildees Deus eacute uma forma de explicarmos as experiecircncias que

temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e transcendentais Ele eacute a

superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos aos deuses pois temos

que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa vida

Do ponto de vista antropoloacutegico-cultural passou-se de uma visatildeo do

mito como a modalidade mais primitiva que possa ser atribuiacuteda agraves cadeias de

eventos quotidianos (exemplos mito solar mitos da fecundidade da terra) para

uma visatildeo do mito como atividade fundamentalmente criativa do indiviacuteduo

humano tendo por objetivo a interpretaccedilatildeo das realidades que como as religiosas

62

ou as eacuteticas e de valores natildeo satildeo passiacuteveis de serem circunscritas nem

expressas em termos de pura racionalidade

O mito exprime valores e aspiraccedilotildees que caracterizam a vivecircncia de

certo grupo soacutecio-cultural e de qualquer maneira polarizam as suas energias

Assim por exemplo no acircmbito do judaiacutesmo o mito da justiccedila de Deus

concentrava todas as tensotildees eacuteticas e religiosas dos crentes

Essas concepccedilotildees levaram em conta dois fatos psicoloacutegicos a hipoacutetese

de estruturas inconscientes especiacuteficas os arqueacutetipos com a finalidade de captar

realidades natildeo racionais mas emocional e vitalmente importantes e a observaccedilatildeo

de que alguns grandes temas foram vividos e transmitidos sob a forma de mitos

de maneira repetitiva nas vaacuterias culturas e eacutepocas histoacutericas

Dentro da antropologia cultural e da psicologia do fenocircmeno religioso o

mito eacute visto como sendo a resultante de energias inconscientes que satildeo ativadas

por experiecircncias histoacutericas e que tecircm como finalidade a realizaccedilatildeo de um si-

mesmo individual ou de grupo de certo modo imanente a psique A origem da

ativaccedilatildeo dessas forccedilas pode estar ligada ou ser estimulada por eventos naturais

mas eacute depois atraiacuteda por personagens simboacutelicas natildeo histoacutericas (por exemplo as

vaacuterias deidades femininas que presidem os mitos da colheita dos frutos da

fecundidade etc) e que satildeo o resultado justamente das projeccedilotildees inconscientes

individuais e coletivas

Podemos considerar o mito como sendo a preacute-histoacuteria da filosofia onde

a consciecircncia humana se estrutura nas origens do conhecimento

63

A filosofia busca entender o Estado a Lei o Direito a Ciecircncia a

Tecnologia e tantos outros conhecimentos mas a filosofia quando nasce quer

resgatar o saber do mito que se esvaia na cultura grega

Conforme nos explica Joseph Campbell69 o mito vem para servir agraves

necessidades humanas no sentido de conhecer o cosmo a natureza o outro e a

si proacuteprio

Em primeiro lugar no que se refere agrave questatildeo cosmoloacutegica serve o

mito para abordar as questotildees teoloacutegicas o plano da gecircnese e da escatologia70

diz respeito a se a pessoa entende como caos ou um

absurdo o desenrolar de uma lei natural ou percebe a presenccedila de

uma inteligecircncia orientadora e a existecircncia de um plano

compreensiacutevel por traacutes do universo71

Eacute o mito a necessidade do homem de explicar com sua proacutepria visatildeo

de uma paisagem completa o iniacutecio de tudo das divindades e deidades

beneacutevolas ou maleacutevolas e dos misteacuterios insondaacuteveis que datildeo sentido ao cosmo

Onde o homem se relaciona com seus temores e sorve suas belezas

Para o homem miacutetico a vida natildeo tem sentido algum pois a vida eacute a

proacutepria experiecircncia de estar vivo de modo de nossas experiecircncias de vida no

plano puramente fiacutesico tenham ressonacircncia no interior do nosso ser e da nossa

69 apud James Hollis 1998 70 Principalmente no tocante ao tratado sobre os fins uacuteltimos do homem 71 HOLLIS 1998 18

64

realidade mais iacutentimos de modo que realmente sintamos o enlevo de estar

vivos 72

Em segundo lugar continuando o mito a servir agraves necessidades

humanas surge o sentido metafiacutesico no esforccedilo de apresentar a natureza do

mundo agrave nossa volta Qual eacute a nossa relaccedilatildeo com o que eacute arquetipicamente

chamado de A Grande Matildee de cujo ventre viemos e para cujo seio

retornaremos 73 A resposta a essa pergunta eacute a proacutepria formaccedilatildeo do mito tatildeo

numinoso 74 quanto os deuses tatildeo luminoso quanto os astros sobre a cabeccedila do

homem e tatildeo fulgurante quanto os fenocircmenos naturais

Outra alegoria miacutetica eacute a do bosque da vida para mostrar o ventre da

grande matildee do qual nascemos e muitas vezes laacute ficamos aprisionados assim nos

mostra Jung

Outro siacutembolo materno igualmente comum eacute o bosque da

vida ou a aacutervore da vida Primeiramente a aacutervore da vida pode ter

sido uma aacutervore genealoacutegica produtora de frutos consequumlentemente

uma espeacutecie de matildee tribal Inuacutemeros mitos dizem que seres humanos

nasceram de aacutervores e muitos relatam como o heroacutei havia sido

aprisionado no tronco de uma aacutervore materna como Osiacuteris morto

dentro de um cedro Adocircnis dentro do mirto etc Numerosas

divindades femininas eram adoradas sob a forma de aacutervores vindo

daiacute o culto de aacutervores e bosques sagrados Assim quando Aacutetis castra-

se sob um pinheiro ele o faz porque a aacutervore tem um significado

72 CAMPBELL 1990 p 3 73 HOLLIS1998p20 74 do latim numem = maacutegico enfeiticcedilante um efeito dinacircmico ou a existecircncia que domina o ser humano independente de sua vontade

65

materno A Juno de Teacutespia era representada por um galho a de

Samos por um prancha a de Argos por um pilar a Diana de Caacuteria por

um bloco de madeira bruta a Atena de Lindos era uma coluna polida

Tertuliano chamava a Ceres de Paros de `rudis palus et informe

lignum sine efigie (um tronco rude um pau informe sem rosto)

Ateneo informa que a Latona de Delos era um pedaccedilo informe de

madeira Tertuliano tambeacutem descreve uma Palas aacutetica como `crucis

stipes (estaca de uma cruz) Uma viga nua de pau como o proacuteprio

termo indica eacute faacutelica (JUNG 1988 sect 321)

Em terceiro lugar o mito serve ao homem miacutetico na relaccedilatildeo com o

outro para o conhecimento das relaccedilotildees da comunidade da divisatildeo de tarefas e

na defesa da coletividade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

No entanto esse viver de forma muacutetua tambeacutem vem transgredir a lei

natural Assim novamente surge o mito a forma narrada 75 desajustada com a

realidade vivida mas que explica orienta e normatiza as relaccedilotildees que daacute uma

forma ao pensamento ou ainda uma forma de viver

Por fim em quarto lugar Hollis (1998) nos falando do pensamento de

Campbell traz ao homem miacutetico o sentido psicoloacutegico do mito o entendimento do

si-mesmo do quem eacute do de onde vem de qual seu lugar no mundo e de como

encontrar a pessoa para formar um par

75 Do grego mythus = conto palavra

66

A cultura que tiver perdido seu cerne miacutetico ou cujas

mitologias sejam muito fragmentadas e diversas cria pessoas

perdidas e assustadas que mudam de culto para culto de ideologia

para ideologia 76

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Na visatildeo junguiana tanto a histoacuteria quanto a antropologia nos ensinam

que psicologicamente a sociedade humana natildeo poderia ter sobrevivido por muito

tempo a natildeo ser que as pessoas estivessem contidas na relaccedilatildeo psicoloacutegica

dentro de um mito central e vivo

Pode ser percebido que os membros mais competentes da sociedade

mais desenvolvidos e perspicazes possuem respostas miacuteticas que satisfazem

suas perguntas existenciais

Essa minoria criativa intelectual e dominante vive em intensa harmonia

com o mito predominante Jaacute as outras camadas da sociedade seguem a direta

lideranccedila dessa minoria chegando a evitar o confronto com as questotildees miacuteticas

poupando-se da discussatildeo e seguindo diretamente a questatildeo fatiacutedica do sentido

da vida

76 HOLLIS 1998 24

67

Com a perda da consciecircncia de uma realidade

transpessoal (Deus) as anarquias interna e externa dos desejos

pessoais rivais assumem o poder 77

Jung nos formula a questatildeo como sendo o problema do homem

moderno o estado de carecircncia de mitos

Em seus estudos teve um momento em Memoacuterias sonhos e

reflexotildees78 em que coloca a si mesmo como tendo perdido o ciacuterculo maacutegico do

mito

Agora vocecirc tem a chave para a mitologia e estaacute livre para

abrir todos os portotildees da psique inconsciente Alguma coisa em mim

entatildeo sussurrou Porque abrir os portotildees E logo me surgiu a

pergunta sobre o que afinal eu havia realizado Eu tinha explicado os

mitos das pessoas do passado havia escrito um livro sobre o heroacutei o

mito em que o homem sempre viveu Mas em que mito vive o homem

hoje em dia No mito cristatildeo poderia ser a resposta Vocecirc vive nele

Perguntei a mim mesmo Para ser honesto a resposta foi natildeo Para

mim natildeo eacute pautado nele que vivo Entatildeo natildeo temos mais nenhum

mito Natildeo eacute evidente que natildeo temos mais nenhum mito Mas

entatildeo qual eacute o seu mito o mito em que vocecirc efetivamente vive

Nesse ponto o diaacutelogo comigo mesmo ficou desconfortaacutevel e parei de

pensar Eu chegara a um beco sem saiacuteda79

77 EDINGER 1999 10 78 JUNG 1975 79 JUNG 1975 171

68

Disse ainda Jung que o mito leva o homem em uma tendecircncia a priori

ingecircnua a acreditar e levar a seacuterio todas as manifestaccedilotildees miacuteticas do

inconsciente e de acreditar que a natureza do proacuteprio mundo isto eacute as verdades

definitivas estejam encerradas no mito Essa concepccedilatildeo natildeo eacute de todo destituiacuteda

de fundamento visto que as manifestaccedilotildees espontacircneas do inconsciente

exprimem uma psique que nem sempre se identifica com a consciecircncia e muitas

vezes se distancia dela tratando-se de uma atividade psiacutequica natural e natildeo

aprendida que independe de nosso livre arbiacutetrio

As formas arquetiacutepicas que surgem da raiz do pensamento humano satildeo

necessaacuterias para que o homem possa determinar a existecircncia do mundo e

conhececirc-lo Eacute a psique primitiva essa raiz que se pode afirmar natildeo conhecia a si

mesma Essa consciecircncia soacute pode ser formada a partir da evoluccedilatildeo do homem

desde sua origem ateacute os tempos histoacutericos

Ainda hoje conhecemos certas tribos primitivas cuja

consciecircncia se distancia muito pouco do lado tenebroso da psique

primiacutegena e mesmo entre os homens civilizados podemos encontrar

resquiacutecios do estado primordial80

ABRAHAM em Traum und mytus (apud JUNG 1989 21) disse

entender ser o mito uma parte superada da vida espiritual infantil do povo Assim

o mito eacute uma parte preservada da vida espiritual infantil do povo e o sonho o mito

80 JUNG 1988 89

69

do indiviacuteduo Essa citaccedilatildeo se prende ao fato de que muitos teoacutericos acreditam ser

esta a real concepccedilatildeo psicoloacutegica de mito Realmente podemos ver nas crianccedilas

que a tendecircncia na formaccedilatildeo de mitos corre ao lado de suas fantasias

transformadas em realidade fantasias essas revestidas de histoacuterias No entanto

afirmar que o mito procede da vida espiritual infantil do povo chega a parecer

absurdo pois na verdade eacute o mito a produccedilatildeo mais adulta da humanidade

primitiva O homem que pensava e vivia nas cavernas que vivia no mito era uma

realidade adulta pois o mito natildeo eacute uma fantasia pueril mas um dos requisitos

mais importantes da vida primitiva 81

O mito eacute a cultura profana ou sagrada eacute cultura cultura por outro lado

eacute educaccedilatildeo assim a funccedilatildeo dos mitos pode ser vista como uma forma

estruturada de culturalmente se falar dos seres sobrenaturais perante a histoacuteria do

homem essa histoacuteria como se trata da realidade do homem miacutetico se constitui

como absoluta verdade pois se referem agraves realidades sagradas desse homem O

mito cria o mundo estabelece como se iniciou e como terminaraacute contanto

narrativamente escrita ou atraveacutes da tradiccedilatildeo oral como algo surgiu na viva do

homem miacutetico

O mito revela e revelando nos daacute a oportunidade da realizaccedilatildeo

misteriosa de controlar a realidade atraveacutes do rito o qual promove o contato com a

divindade Todos estamos contidos e contemos o mito pois em momentos de

extrema dor ou prazer sacralizamos o que sentimos e por mais ceacuteticos que

81 JUNG 1989 p21

70

possamos ser sentimos a presenccedila do mito e vivenciamos em nossa psique os

resultados do poder criador do mito

Sendo ainda cultura o mito pode ter como poder criador associado ao

tempo a eacutepoca ao produto social de um grupo as vivecircncias que se alteram e se

propagam no inconsciente coletivo determinando as forccedilas que manteacutem o mito

vivo gerando comportamentos religiosos morais sociais e poliacuteticos desde a

coleta da caccedila da construccedilatildeo de um barco de uma habitaccedilatildeo ateacute a postura

preponderante de um chefe de estado perante a naccedilatildeo que governa Eacute algo maior

que a racional inteligecircncia do homem de nosso seacuteculo em detrimento das

especulaccedilotildees metafiacutesicas ou teoloacutegicas

Toda e qualquer tentativa de explicar um mito faz com que uma

barreira inexplicaacutevel surja pois a proacutepria explicaccedilatildeo do mito vive dentro do mito

pois partes de um mito natildeo podem ser explicadas pois ele em si eacute todo

A tentativa de explicar um mito eacute feita com base em leis mutaacuteveis das

ciecircncias enquanto ele eacute baseado em leis estaacuteveis da natureza O animal

reconhece seu cio sem que se necessite ensinaacute-lo desloca-se para copular sem

que necessite de mapas luta por seu patrimocircnio geneacutetico sem aulas de

biodiversidade e as estrelas essas se encontram laacute para o homem miacutetico sem

que ningueacutem possa explicar como laacute chegaram

Por fim o mito eacute o homem e o homem eacute o mito natildeo como parte um do

outro mas ontologicamente na relaccedilatildeo do vir-a-ser Natildeo porque nada vem-a-ser

71

senatildeo o que pode ser mas o vir-a-ser depende de modelos ou formas garantidos

pelo Ser e por sua manifestaccedilatildeo 82 e o mito eacute a manifestaccedilatildeo desse Ser

82 CRIPPA1975p183

72

CAPIacuteTULO 3 - O MITO CRISTAtildeO

Para que o leitor tenha uma visatildeo mais profunda sobre o embate de

mitos que ocorreu no seacuteculo XVI com a chegada dos portugueses ao Brasil e

especificamente com a catequese jesuiacutetica vejo como de suma importacircncia que

seja dedicado ao capiacutetulo deste trabalho exclusivamente ao mito cristatildeo

Falei direta e especificamente das visotildees filosoacuteficas antropoloacutegicas e

psicoloacutegicas sobre o conceito de mito

Como natildeo tratar entatildeo o mito que deu origem ao estudo do objeto

desta pesquisa que se trata do embate de mitos durante o periacuteodo quinhentista

Quem eacute o portuguecircs que chega ao Brasil daquele periacuteodo que mitos

abriga em sua alma quais os caminhos direcionados ao mito da divindade como

explica suas impotecircncias suas crenccedilas seus valores religiosos pois satildeo esses

valores trazidos da Santa Feacute Catoacutelica que vatildeo ser impostos aos brasis desde a

chegada de Cabral

Para tal para que possa responder perguntas que satildeo minhas e

acredito sejam do leitor entrei em um campo muito profundo quer no sentido

psicoloacutegico da anaacutelise desse mito quer em levantar polecircmicas sobre os siacutembolos

de transformaccedilatildeo cultural que o mito cristatildeo tem gerado desde os mais remotos

tempos

73

Assim fui muitas vezes pesquisar na Biacuteblia e nos conceitos junguianos

como esse mito participou e participa da vida daqueles que seguem como mito

como arqueacutetipo principal de suas vidas a vida de Cristo

Em primeiro lugar busquei entender um pouco desse homem

anunciado pelo Anjo do Senhor e que no caminho de sua individuaccedilatildeo morre

crucificado apoacutes a aceitaccedilatildeo de seu destino em relaccedilatildeo a Deus83

Em seguida mais perguntas surgiram Ao falar do Homem ao falar do

Filho minha busca vai em direccedilatildeo ao Pai e por consequumlecircncia ao Espiacuterito Santo

onde tento entender e interpretar o mito da Trindade84

Mas o Filho de Deus fez coisas na terra entre elas fazer gerar uma

Igreja e uma Santa Feacute onde seu siacutembolo mais forte eacute a Santa Ceia que deu

origem agrave missa Busco aiacute outros siacutembolos cristatildeos outros mitos outros elementos

que foram gerados por uma cultura de uma eacutepoca e que foram transformados em

Lei85

Busco ainda a concepccedilatildeo natildeo maniqueiacutesta de Bem e Mal na visatildeo do

mito cristatildeo e condensando esses conhecimentos consigo entatildeo falar do cristatildeo

portuguecircs daquele que leva esses mitos esses arqueacutetipos esses siacutembolos de

transformaccedilatildeo esses siacutembolos culturais ao indiacutegena brasileiro que se encontrava

vivendo pelos seus proacuteprios mitos e de suas proacuteprias tradiccedilotildees por seus proacuteprios

83 vide apecircndices 2 3 e 4 84 idem 85 idem

74

arqueacutetipos e simbologias miacuteticas que tal como os portugueses tal como os

jesuiacutetas buscavam suas proacuteprias almas e os sentidos para suas vidas

De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado do proacuteprio Espiacuterito Santo e que traria aos brasis os

bons costumes a feacute em si a cura de todos os males da alma Do outro lado

homens livres que possuiacuteam seus costumes como bons que possuiacuteam feacute em

seus mitos e explicaccedilotildees da finitude de suas vidas sem que entendesse que

possuiacuteam males em suas almas ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao

inimigo do Homem que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a

realidade

O cristianismo do seacuteculo XVI natildeo tinha como entender que a verdade

acabada revelada e imposta natildeo abria o coraccedilatildeo do homem branco ou de pele

dourada para as reais coisas da palavra de Deus Estas palavras nascem

exatamente no coraccedilatildeo do homem pois satildeo elas que explicam e levam o homem

em busca da individuaccedilatildeo do contato direto com seus niacuteveis mais inconscientes

lugares esses em que realmente se ouve a voz da divindade seja ela qual for

O homem ao crer sem questionar natildeo reflete sobre suas duacutevidas natildeo

questiona seus mitos e seus dogmas natildeo muda natildeo altera o que pensa do

inexplicaacutevel mas o homem que pensa suas ideacuteias sempre teraacute a duacutevida como

bem recebida pois eacute ela que permite um conhecimento mais perfeito e mais

seguro de si e daquilo que natildeo consegue explicar

Jung nos coloca em sua obra que como estudioso chega a ver a

religiatildeo como um filho natural do inconsciente humano que vecirc nas vaacuterias e

75

improvaacuteveis afirmaccedilotildees religiosas movimentos psicoloacutegicos do processo universal

de renovaccedilatildeo e amadurecimento humanos mas que para isso a duacutevida o

questionamento sobre as verdades reveladas devem estar sendo pensadas pelo

homem

Mas nos quinhentos o homem portuguecircs natildeo pensava seus mitos

religiosos os vivia e por esse motivo podia de forma impositiva infligir sua feacute

seus bons costumes suas crenccedilas atraveacutes do poder de fogo de canhotildees do

poder dos sacramentos do poder do teatro e da catequese Seu modo miacutetico de

ver o mundo era o correto o uacutenico afinal como dizia Vicente de Lerins86 norma de

feacute eacute aquilo que foi acreditado sempre por todos e em toda parte No entanto natildeo

havia todos para os catoacutelicos senatildeo os catoacutelicos Protestantes eram

considerados tatildeo hereges quanto qualquer outro que natildeo catoacutelico Natildeo havia

parte alguma senatildeo aquela em que os catoacutelicos viviam o restante do mundo era

para ser transformado colonizado submetido e convertido gerando uma

verdadeira doenccedila na alma desses homens miacuteticos que habitavam estas terras no

seacuteculo XVI

86 Vicente de Lerins foi um antigo teoacutelogo citado diversas vezes por Jung em sua obra como sendo seu pensamento sobre a feacute uma das manifestaccedilotildees mais felizes da ortodoxia psicoloacutegica In Dourley 1987 p29

76

CAPIacuteTULO 4 - COMO O EUROPEU CRISTAtildeO COMPREENDIA OS INDIacuteGENAS E A

CONCEPCcedilAtildeO QUE TINHAM DA VIDA DESSES BRASIS

Esta terra poreacutem tinha dono belicoso e baacuterbaro87

Para que pudesse realizar esta parte deste trabalho tive que buscar

informaccedilotildees de distintas formas Em primeiro lugar houve uma preocupaccedilatildeo em

levantar as fontes em que poderia pesquisar fontes essas que soacute poderiam ser

de autores do periacuteodo em que me fixei para levantar as informaccedilotildees

Esses homens autores de alguns documentos me dariam sempre

visotildees cristatildes brancas portuguesas ou espanholas de como os indiacutegenas

concebiam suas vidas

Muitas vezes pude encontrar claros relatos dessas vidas mas em outras

me restava a interpretaccedilatildeo agraves vezes pelo negativo das narrativas de como essas

vidas aconteciam

Claro muitos documentos mostravam com repuacutedio e rechaccedilo os

costumes que busquei entender outros mais romacircnticos mostravam seres

edecircnicos em alguns momentos e bestas feras em outros Bastava que o indiacutegena

87 CALMON 1963 vol 2 p321

77

fosse contra de alguma forma ao contato ao convencimento que lhe tentavam agrave

catequese ou agrave conversatildeo proposta para que passasse de um extremo para outro

de adacircmicos em democircnios como fez Anchieta em seus autos com Guaixaraacute e os

outros diabos88

Percebo em cartas de Noacutebrega de Anchieta ou de Navarro momentos

de pura consternaccedilatildeo do modo de viver dos brasis para em seguida mostrar o

lado demoniacuteaco que carregavam os indiacutegenas obviamente em suas visotildees

europeacuteias e jesuiacuteticas dentro do mito cristatildeo Noacutebrega mais animado em suas

primeiras cartas e mais desgostoso e entristecido com sua missatildeo ao final

Navarro mais intelectual em seus conceitos e descriccedilotildees e em Anchieta um relato

mais duacutebio conforme a tribo da qual escrevia

Busquei Cardim Caminha Frei Vicente do Salvador Calmon

Capistrano de Abreu Gacircndavo e no de gestis Mendi de Saa

de Anchieta e em

todos tive que proceder da mesma forma agraves vezes relatando agraves vezes

interpretando pelo negativo

Pude encontrar ainda a tradiccedilatildeo oral com a qual convivi durante anos e

me senti agrave vontade em ler com isso os relatos de Kakaacute Weraacute Jecupeacute89 e

compreender algumas de suas informaccedilotildees

Por essa com-vivecircncia com tribos como Jivaros (com liacutengua proacutepria e

o espanhol) como Pataxoacutes no Sul da Bahia com Charruas na regiatildeo das missotildees

88 Auto de Satildeo Lourenccedilo o qual seraacute tratado mais adiante neste trabalho 89 Kakaacute Weraacute Jecupeacute

iacutendio txucarramatildee autor dos livros A Terra dos mil povos e Tupatilde Tenondeacute editados pela Editora Fundaccedilatildeo Peiroacutepolis - SP

78

e com verdadeiros iacutendios gauacutechos montados

vestidos em seus quiacutechua xiri

pac 90 dos pampas argentinos e da fronteira do Brasil sentia que podia ler relatos

de indiacutegenas de hoje pois entendia de tradiccedilatildeo oral afinal eu mesmo tive

centenas de ensinamentos atraveacutes dessa forma de educaccedilatildeo

Conheci indiacutegenas de diversos tipos e costumes mas todos mesmo

bastante transmutados por nossa cultura ainda livres ainda aguerridos muitos

ainda indolentes e outros prontos para a guerra mas nenhum deles menos

miacuteticos que noacutes menos inteligentes que noacutes menos carentes de explicaccedilotildees

sobre a finitude da vida humana e guardadores ferrenhos de seus costumes

crenccedilas e tradiccedilotildees

Tento assim neste capiacutetulo descrever daqui a diante todo esse estudo

sobre como os indiacutegenas concebiam suas vidas em meio ao Seacuteculo XVI

No entanto natildeo podendo perder o foco desta proposta o embate de

mitos por mais que nas descriccedilotildees encontradas nas fontes de que os indiacutegenas

viviam suas vidas surgissem termos como liberdade ou feras a serem

amestradas ou natildeo possuem Deus no coraccedilatildeo natildeo posso deixar de entender

que eram esses termos esses conceitos meras interpretaccedilotildees culturais de quem

via e relatava Vou trabalhar com esses termos conceituais

90 Do esp chiripaacute lt quiacutechua xiri pac para o frio S m Bras S Vestimenta sem costura outrora usada pelos gauacutechos habitantes do campo e que consistia num metro e meio de fazenda que passando por entre as pernas era presa agrave cintura por uma cinta de couro ou pelo tirador

79

Vejamos Cardim91 nas primeiras linhas de Princiacutepio e Origem dos iacutendios

do Brasil e seus costumes

Este gentio natildeo tem conhecimento algum de seu creador nem

de cousa do Ceacuteo nem se ha pena nem gloria depois desta vida

e portanto natildeo tem adoraccedilatildeo nenhuma nem cerimonias ou

culto divino mas sabem que tecircm alma e que esta natildeo morre e

depois da morte vatildeo a uns campos onde ha muitas figueiras ao

longo de um formoso rio e todas juntas natildeo fazem outra cousa

senatildeo bailar

Vamos ler agora maino i ypi kue apresentado em Tupan Tenondeacute92

Ntildeande Ru Pa-pa Tenondeacute Gete ratilde ombo-jera Pytuacute yma gui

Nosso Pai Primeiro criou-se por si mesmo na Vazia Noite iniciada

Yvaacutera pypyte Apyka apuia i Pytuacute yma mbyte re oguero-jera

As sagradas plantas dos peacutes O pequeno assento arredondado Do Vazio Inicial Enraizou seu desdobrar (florescer)

Yvaacutera jeckaka mba ekuaaacute Yvaacutera rendupa Yvaacutera popyte yvyra i Yvaacutera popyte rakatilde poty Oguero-jera Ntildeamandui Pytuacute yma mbyte re

Ciacuterculo desdobrado da sabedoria inaudiacutevel Fluiu-se divino Todo Ouvir As divinas palmas das matildeos portando o bastatildeo do poder As divinas palmas das matildeos feito ramas floridas Tramam o Imanifestado na dobra de sua evoluccedilatildeo no meio da primeira noite

Ntildeande Ru Ntildeamandu tenondeacute gua O yva raacute oguero-jera eyacute mboyve i Pytuacute A e ndoechaacutei Kuaray oiko eyacute ramo jepe

Nosso Pai O Grande Misteacuterio o primeiro antes de haver-se criado no curso de sua evoluccedilatildeo sua futura morada sustenta-se no Vazio

91 CARDIM 1980-p87 92 JECUPEacute2001 p25-31

a liacutengua apresentada ao lado do texto traduzido eacute o abantildeeenga considerada como a liacutengua ancestral Tupi de onde saiacuteram os dialetos que hoje existem dos Chiripaacute dos Kaiowaacute e dos Mbyaacute aleacutem do guarani paraguaio

80

O py a jechaka re A e oiko oikovy O yvaacutera py mba ekuaaacute py Antildeembo-kuaray i oiny

Antes que existisse sol Ele existia pelo reflexo de seu proacuteprio coraccedilatildeo E fazia servir-se de sol dentro de sua proacutepria divindade

Como podemos concluir fazendo uma comparaccedilatildeo entre os dois textos

o de Cardim considerado fonte histoacuterica e o outro de Jecupeacute uma traduccedilatildeo de

fonte oral da tradiccedilatildeo guarani tinham sim os indiacutegenas um conhecimento de seu

criador Apenas o mito eacute outro apenas os arqueacutetipos satildeo outros apenas a forma

de explicar o inexplicaacutevel eacute outra

O andarem nus por exemplo Todas fontes nos mostram o quanto eram

esses homens e mulheres livres e inocentes por andarem nus portando muitas

vezes sua arte plumaacuteria que os diferenciava de uma tribo para outra pinturas de

siacutembolos e cores Mas seria essa forma de viver realmente uma questatildeo de

liberdade Natildeo poderiacuteamos considerar a falta de roupa como uma falta de

conhecimento do tecer e da natildeo necessidade de tantas roupas conforme

estabelecido no modo de viver do portuguecircs cristatildeo

Havia pelo que podemos encontrar vaidade entre os indiacutegenas mas

com conceitos outros de mostrarem suas necessidades de guarda de patrimocircnio

geneacutetico que tal qual os paacutessaros seus vizinhos danccedilavam para suas mulheres

emplumados e coloridos mostrando seus dotes suas honras sua forccedila e sua

importacircncia dentro da hierarquia tribal

Poreacutem para saiacuterem galantes usatildeo de vaacuterias invenccedilotildees

tingindo seus corpos com certo sumo de uma aacutervores com que ficam

81

pretos dando muitos riscos pelo corpo braccedilos etc a modo de

imperiaes 93

Ou ainda como Caminha num dos relatos mais afamados

A feiccedilatildeo deles eacute serem pardos maneira de avermelhados

de bons rostos e bons narizes bem-feitos Andam nus sem nenhuma

cobertura Nem estimam em cobrir ou de mostrar suas vergonhas e

nisso tecircm tanta inocecircncia como em mostrar o rosto E um deles

trazia por debaixo da solapa de fonte a fonte para detraacutes uma

espeacutecie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do

comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o

touticcedilo e as orelhas94

Esta eacute uma das visotildees mais neutras da nudez indiacutegena mas vejamos

outra

aqui onde as mulheres andam nuas e natildeo sabem se

negar a ningueacutem mas ateacute elas mesmas cometem e importunam os

homens jogando-se com eles nas redes porque tecircem por honra

dormir com os Cristatildeos 95

93 CARDIM 1980-p90 94 CAMINHA

p3

Carta de pero Vaz de Caminha

A certidatildeo de nascimento do Brasil

Bradesco

Brasil 500 anos- 2000 e tb CALMON 1963- Vol I p67 95 ANCHIETA Cartas 1988 p78 Carta ao Padre Mestre Inaacutecio de Loiola julho 1554

82

Ou ainda na visatildeo de Noacutebrega

Parece-nos que natildeo podemos deixar de dar a roupa que

trouxemos a estes que querem ser christatildeos repartindo-lh a ateacute

ficarmos todos eguaes com elles ao menos por natildeo escandalisar aos

meus Irmatildeos de Coimbra si souberem que por falta de algumas

ceroulas deixa uma alma de ser christatilde e conhecer a seu Creador e

Senhor e dar-lhe gloria96

Ou ainda

Tambeacutem peccedila Vossa Reverendissima algum petitoacuterio de

roupa para entretanto cobrirmos estes novos convertidos ao menos

uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religiatildeo Christatilde

porque vecircm todos a esta cidade aacute missa aos domingos e festas que

fazem muita devoccedilatildeo e vecircm resando as oraccedilotildees que lhes ensinamos

e natildeo paree honesto estarem nuas entreos Christatildeos na egreja e

quando as ensinamos97

Assim somente uma forma de olhar de cima de que concepccedilatildeo se

analisa define de forma diferente o costume do outro

Podemos pegar mais um exemplo de como olhar um costume o

casamento

Entre eles ha casamentos poreacutem ha muita duvida se satildeo

verdadeiros Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar

contrario e preserverava virgem ateacute que o tomasse e matasse

correndo-lhe primeiro suas festas por espaccedilo de dous ou tres annos a

96 NOacuteBREGA 1988 P74 Carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo - 1549 97 NOacuteBREGA 1988 p85 Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549

83

mulher da mesma maneira natildeo conhecia homem ateacute lhe natildeo vir regra

depois da qual lhe faziatildeo grandes festas ao mesmo tempo de lhe

entregarem a mulher faziatildeo grandes vinhos e acabada a festa ficava

o casamento perfeito dando-lhe uma rede lavada e depois de

casados comeccedilavatildeo a beber poque ateacute ali natildeo o consentiatildeo seus

pais ensinando-lhes que bebessem com tento e fossem

considerados e prudentes em seu falar para que o vinho natildeo lhes

fizesse mal nem falassem cousas ruins e entatildeo com uma cuya lhe

davatildeo os velhos antigos o primeiro vinho e lhe tinhatildeo a matildeo na

cabeccedila para que natildeo arrevessassem porque se arrevessava tinhatildeo

para si que natildeo seria valente e vice-versa98

Entendo com este texto de Cardim que existe um tanto de moral de

regras de ensinamentos e de respeito muacutetuo entre as pessoas de uma mesma

tribo inclusive com preocupaccedilatildeo paterna de bons costumes Poreacutem me parece

na proacutexima citaccedilatildeo de autoria de Noacutebrega que natildeo era bem assim que ele via a

relaccedilatildeo de casamento pois os brancos e europeus natildeo seguiam essa mesma

visatildeo de um casamento verdadeiro entre eles proacuteprios como faziam os

indiacutegenas Vejamos

Nesta terra ha um grande peccado que eacute terem os

homens quase todos suas Negras por mancebas e outras livres que

pedem aos Negros por mulheres segundo o costume da terra que eacute

98 CARDIM 1980-p88

84

terem muitas mulheres E estas deixam-n as quando lhes apraz o que

pe grande escandalo para a nova Egreja que o Senhor quer fundar99

Anchieta tambeacutem natildeo vecirc com bons olhos o costume do casamento

indiacutegena mesmo com as regras intriacutensecas daquela cultura pois olhando de cima

de seu mito cristatildeo natildeo pode admitir as relaccedilotildees de casais que se formam nas

tribos Vejamos

contraiacutedo matrimocircnio com os mesmos parentes e

primos se torna dificiacutelimo se por ventura queremos admiiacute-los ao

batismo achar mulher que por causa do parentesco de sangue possa

ser tomada por esposa O que natildeo pequeno embaraccedilo nos traz

porquanto natildeo podemos admitir a receber o batismo aacute que se

conserva manceba pois satildeo de tal foacuterma barbaros e indocircmitos que

parecem aproximar-se mais a natureza das feras do que aacute dos

homens100

Mais um ponto para que possamos entender os costumes dos brasis eacute

o de comer carne humana a antropofagia tatildeo apontada em todos os relatos e

cartas e por todos os historiadores do periacuteodo

Ficou quase que declarado de que os indiacutegenas se alimentavam de

carne de seus contraacuterios como se pudesse falar que comiam carne no sentido

alimentar no sentido de sobrevivecircncia da mesma forma que caccedilavam pescavam

ou colhiam frutos e raiacutezes

99 NOacuteBREGA 1988 p79 - Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549 100 ANCHIETA- Cartas 1988p55 Carta de Piratininga 1554

85

Haacute que se entender a ritualiacutestica que envolvia a antropofagia Para

tanto eacute importante tambeacutem que se fale um pouco do costume de guerrear

Os indiacutegenas mais aguerridos tinham como orientaccedilatildeo alimentar nunca

comerem animais lentos ou fracos pois esses atributos passariam a fazer parte de

suas personalidades atributos esses que consideravam sobremaneira como

negativos101 Comiam para esse fim animais raacutepidos ferozes perigosos

audazes espertos e claro o inimigo aprisionado em uma batalha

A antropofagia natildeo alimentava mas dava de uma forma ritualiacutestica a

possibilidade da aquisiccedilatildeo dos atributos positivos do inimigo Ao comer a carne de

um guerreiro valente honrado capaz dominante em sua tribo acreditava por

seus mitos estar adquirindo esses atributos neste caso considerados positivos

Comer carne humana de um guerreiro vencido e aprisionado tinha portanto um

sentido miacutetico

A documentaccedilatildeo disponiacutevel natildeo deixa nenhuma duacutevida a

respeito do fim do aprisionamento de inimigos ele natildeo estava

subordinado a motivos fisioloacutegicos a necessidade de

aprovisionamento regular de carne humana destinada agrave alimentaccedilatildeo

Os Tupinambaacute praticavam a antropofagia sob a forma ritual (apesar

de alguns cronistas pretenderem insinuar o contraacuterio) de modo que a

ingestatildeo de carne dos inimigos sacrificados possuiacutea um significado

simboacutelico e maacutegico 102

101 Podemos ver uma descriccedilatildeo completa em FERNANDES 1970- p43 102 FERNANDES 1970- p47

86

A morte daquele que iria ou foi comido tambeacutem tinha um valor para o

proacuteprio sacrificado visto que morrer dessa forma tambeacutem significava honra pois

ser enterrado para que os vermes o comessem era ser considerado um fraco e

natildeo um guerreiro

Assim as lutas as guerras eram lutas bioacuteticas e necessaacuterias para a

sobrevivecircncia mas tambeacutem pelos seguintes motivos

A aplicaccedilatildeo e treinamento dos conhecimentos de caccedila utilizando

a cilada e o rastrear e perseguir como forma de ataque

Para a guarda do patrimocircnio geneacutetico roubando mulheres

melhores de outra tribo para que filhos melhores pudessem ser

fecundados em casamentos exogacircmicos

Para a pilhagem de conhecimentos como o da cestaria ou da

ceracircmica

Para garantia ou disputa de um espaccedilo ou territoacuterio

ecologicamente mais pleno de possibilidades de alimento da prole

e da tribo em si

Para a pilhagem de viacuteveres em tempos de escassez de recursos

naturais ou de aprovisionamento de utilidades

Como rito de passagem para os mais jovens tornarem-se homens

no sentido adulto de sua masculinidade (avaacute ou tujuaacutee) o que

poderia tornaacute-lo mais atrativo para as mulheres mais atrativas

onde novamente surge a guarda do patrimocircnio geneacutetico

87

Como forma de aprisionar guerreiros que poderiam ser trocados

por viveres ou territoacuterios mais bioacuteticos

A guerra como forma de vinganccedila

Todo indiacutegena estava pronto para lutar Uns mais agressivos outros

mais paciacuteficos mas todos tinham a necessidade belicosa de se defrontar com

inimigos em seus trajetos por territoacuterios que lhe pertenciam ou em incursotildees por

territoacuterios alheios

Talvez por esse motivo Noacutebrega olhasse as guerras indiacutegenas da

seguinte maneira

Fazem guerra uma tribu a outra a 10 15 e 20 leguas de

modo que estatildeo todos entre si divididos Se acontece aprisionarem

um contraacuterio na guerra conservam-o por algum tempo datildeo-lhe por

mulheres suas filhas para que o sirvam e guardem depois do que o

matam com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram

ali perto e si deles ficam filhos os comem ainda que sejam seus

sobrinhos e irmatildeos declarando aacutes vezes as proacuteprias matildees que soacute os

paes e natildeo a matildee tecircm parte nellesSi matam a um na guerra o

partem em pedaccedilos e depois de moqueados os comem com a

mesma solemnidade e tudo isto fazem com um odio cordial que tecircm

um do outro e nestas duas cousas isto eacute terem muitas mulheres e

matarem os inimigos consiste toda a sua honraNatildeo guerreiam por

avareza porque natildeo possuem de seu mais do que lhes datildeo a pesca

a caccedila e o fructo que a terra daacute a todos mas soacutemente por odio e

88

vinganccedila sendo tatildeo sujeitos a ira que si acaso se encontram em o

caminho logo vatildeo a pau aacute pedra ou dentada103

Muito se pode falar do costume de guerrear e da antropofagia como

magia propiciatoacuteria mas soacute esse assunto daria oportunidade de toda uma nova

tese

Dessa forma continuando com a proposta de mostrar como os brasis

concebiam suas vidas na visatildeo do cristatildeo europeu apresento outros pontos dos

costumes e outras comparaccedilotildees culturais

Falo agora da conceituaccedilatildeo de democircnio

A histoacuteria do Diabo confunde-se com a histoacuteria do proacuteprio

Cristianismo era necessaacuteria para a coletividade cristatilde a existecircncia e

a encarnaccedilatildeo do Mal Era preciso que fosse visto tateado tocado

para que o Bem surgisse como a graccedila suprema

O Belo e o Divino

em oposiccedilatildeo ao Horriacutevel e Demoniacuteaco104

Se pegarmos apenas pela definiccedilatildeo temos que a palavra democircnio que

obviamente natildeo existia no vocabulaacuterio de qualquer tribo indiacutegena do Brasil do

Seacuteculo XVI tem sua origem no grego daimoacutenion

e mais tarde do latim

daemonium termo originaacuterio nas crenccedilas da Antiguidade e no politeiacutesmo que

significaria o gecircnio criador fosse ele bom ou mal e que presidia o caraacuteter e o

destino de cada indiviacuteduo Surge no entanto no judaiacutesmo e por consequumlecircncia no

103 NOacuteBREGA 1988p90-91 carta ao Dr Navarro seu Mestre em Coimbra- 1549 104 NOGUEIRA 2000 P103

89

cristianismo com a definiccedilatildeo de anjo mau o qual apoacutes rebelar-se contra Iahweh

foi precipitado no inferno e busca a perdiccedilatildeo da humanidade

Pela didaacutetica da catequese trazer essa definiccedilatildeo do democircnio ou do

Diabo agraves mentes indiacutegenas se fazia necessaacuterio pela pedagogia do terror que se

impunha agraves mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeos

chegando mesmo a ser considerado no Teatro de Anchieta como um certo prazer

esteacutetico na arte de representaccedilatildeo de seus autos fazendo com que indiacutegenas tal

qual o imaginaacuterio cristatildeo acreditasse na importacircncia grandiosa de Satatilde o

Priacutencipe do Mundo na mente dos religiosos cristatildeos aquele que lutava contra a

verdade e a vida

Claro que o indiacutegena tinha noccedilatildeo do Bem e do Mal Tudo aquilo que era

contra seu prazer era o mal e a favor o bem O homem natural e espontacircneo soacute

se move por prazer ou pela dor e o indiacutegena era o homem espontacircneo no seacuteculo

XVI era o homem natural onde guerrear era prazer comer a carne de seu

inimigo era prazer atacar uma tribo para roubar uma fecircmea de outra tribo era

prazer ser belicoso e baacuterbaro na opiniatildeo dos cristatildeos era prazer portanto era o

bem pois para o homem natural Bem e Mal satildeo apenas pontos de referecircncia

Por outro lado existiam na cultura os espiacuteritos do mal isto eacute aqueles

que lhes levava o prazer a comida a caccedila a aacutegua lhes negava a chuva ou fazia

morrer aqueles a quem amavam Esses espiacuteritos eram o Mal Esses eram

Anhangaacute Anhanguumlera (Anhangaacute velho) Taguaigba o Mboy-tataacute105 Curupira106 ou

105 Mboy-cobra+tataacute- fogo = cobra de fogo tambeacutem conhecido como Baetataacute maetataacute ou boitataacute

90

Caipora107 que lhes impedia a caccedila afastando os animais que lhes dariam de

comer caso matasse animais aleacutem da conta necessaacuteria para sua sobrevivecircncia

Curupira era o Mal Curupira era o Bem O que se sabia eacute que era o

protetor da matas A floresta e todos que nela habitavam estavam sob sua

vigilacircncia constante

Por isso antes das grandes tempestades ouve-se bater

nos troncos das aacutervores Eacute o Curupira verificando se elas podem

resistir ao furacatildeo que se avizinha para em caso contraacuterio avisar os

moradores da mata do perigo 108

Anchieta fala desses democircnios em sua carta datada do fim de maio de

1560109 acreditando neles como acreditava em seus proacuteprios democircnios

Eacute cousa sabida e pela boca de todos corre que ha certos

democircnios a que os Brasis chamam corupira que acometem sos

Indios muitas vezes no mato datildeo-lhes accediloites machucam-os e

matam-os Satildeo testemunhas disto os nossos Irmatildeos que viram

algumas vezes os mortos por elesPor isso costumam os Indios

deixar em certo caminho que por aacutesperas brenhas vai ter ao interior

das terras no cume da mias alta montanha quando por caacute passam

penas de aves abanadores flechas e outras cousas semelhantes

como uma espeacutecie de oblaccedilatildeo rogando fervorosamente aos curupiras

que natildeo lhes faccedilam mal

106 de curu-corruptela de curumim + pira = corpo corpo de menino 107 Caipora do tupi-guarani caaacute mato e pora habitante 108 httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905 109 ANCHIETA- Cartas 1988p138 Carta de S Vicente - 1560

91

Anchieta fala do igpupiaacutera110

Ha tambeacutem nos rios outros fantasmas que chamam

Igpupiaacutera isto eacute que moram n agua que matam do mesmo aos Indios

Natildeo longe de noacutes ha um rio habitado por Cristatildeos e que os Indios

atravessavam outrora em pequenas canocircas que fazem de um soacute

tronco ou de corticcedila onde eram muitas vezes afogados por eles

antes que os Cristatildeos para laacute fossem

Conta ainda sobre o Macuteboy-tataacute111

Ha tambeacutem outros maximegrave nas praias que vivem a maior

parte do tempo junto ao mar e dos rios e satildeo chamados de baetataacute

que quer dizer cousa de fogo o que eacute o mesmo como se dissesse o

que eacute todo fogo Natildeo se vecirc outra cousa senatildeo um facho cintilante

correndo daqui para ali acomete rapidamente os Indios e mata-os

como os curupiras o que seja isto ainda natildeo se sabe com certeza

Haacute tambeacutem outros espectros do mesmo modo pavorosos

que natildeo soacute assaltam os Indios como lhes causam dano o que natildeo

admira quando por ecircstes e outros meios semelhantes que longo fora

enumerar quer o democircnio tornar-se formidaacutevel a ecircstes Brasis que

natildeo conhecem a Deus e exercer contra eles tatildeo cruel tirania

E assim podemos ir comparando os cristatildeos usando os padres como

intermediaacuterios do divino os indiacutegenas usando os pajeacutes como sacerdotes os

cristatildeos com medo do diabo os indiacutegenas com medo do Anhangaacute do Taguaigba

Pigtangua do Avasaly ou do Curupira o sarnento

110 Igpupiaacutera

falam Anchieta e F Cardim conforme nota 165 de ANCHIETA-Cartas 1988- 153 - tambeacutem conhecidos como y-pypiaacutera sendo y= aacutegua e pypiaacutera= de dentro isto eacute um monstro que vivia dentro das aacuteguas dos rios 111 ANCHIETA Cartas 1988 p139 Carta de S Vicente - 1560

92

Eram vaacuterios por todo o territoacuterio conhecido pelos portugueses conforme

nos fala Pedro Calmon112 Aimoreacute ou Tapuia os Tupinambaacute de todo o litoral os

Temiminoacute e os Tamoio que se denominavam velhos Tupi canoeiros e pescadores

os Goytacas dos campos proacuteximos de Cabo Frio e mais os Tucupecuxari

Kmayuraacute Yanomami Kadiweu Kaigang Krahocirc Yawalapiti e tantos e tantos

outros

Por esse motivo Jecupeacute que listou 206 tribos em nossas fronteiras

chama o Brasil de Terra dos Mil Povos

O que sabemos enfim eacute que o indiacutegena vivia e concebia suas vidas

atraveacutes de ritos de passagem de ritos de casamento de ritos de nascimento e

morte de magia propiciatoacuteria de batalhas culturais com outras tribos onde ao

guerrearem trocavam culturas trocavam conhecimentos garantiam seus

patrimocircnios geneacuteticos e realizavam suas mostras de honra e bravura garantindo-

lhes a sobrevivecircncia na terra adacircmica mas indocircmita em que viviam

Viviam como filhos do sol ou da lua apoiados no amor ou na ira da

Grande Matildee usando como siacutembolos em suas vidas a coruja a serpente a onccedila

ou o gaviatildeo dividindo-se em grupos e sub-grupos que geravam dialetos e

costumes de dormir de comer de amar de sofrer de rir de guerrear enfim de

viver

112 CALMON 1963 vol 2 p324-330

93

CAPIacuteTULO 5 - COMO OS INDIacuteGENAS TERIAM RECEBIDO A PREGACcedilAtildeO CRISTAtilde E AS

DIFICULDADES ENCONTRADAS NA MISSAtildeO DE CONVERTER

Entendo que seja necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees sobre o

espaccedilo poreacutem no sentido de acircmbito que ocupavam simultaneamente cristatildeos

principalmente os jesuiacutetas e os indiacutegenas brasileiros Era esse espaccedilo natildeo de

terra mas situacional em que ocorreram os confrontos entre grupos de origens

distintas obrigados a transformar a si proacuteprios muitas vezes a uacutenica possibilidade

de manterem suas vidas

Essa transformaccedilatildeo teve por alicerce uma espeacutecie de amaacutelgama

multifacetada de simbolismos o que significa dizer que nestes espaccedilos dedicados

a salvaccedilatildeo de almas forjaram-se respostas muacuteltiplas aos desafios trazidos pelo

encontro entre universos simboacutelicos tatildeo divergentes De um lado aquelas

orquestradas pelos disciacutepulos de Santo Inaacutecio atraveacutes da doutrina e da imposiccedilatildeo

do evangelho de outro as respostas fruto da apropriaccedilatildeo diversa e inovadora

produzida pela multidatildeo de etnias que compunham as muitas aldeias indiacutegenas

que deveriam ser totalmente subjugadas no bom sentido cristatildeo pela Santa

Madre Igreja

Quem nos definiu esse espaccedilo e tudo que nele ocorreu foram os

jesuiacutetas que atraveacutes de suas cartas suas crocircnicas catecismos e autos teatrais

94

relatavam o que acontecia com relaccedilatildeo a esses confrontos de culturas tatildeo

distintas

Muitos jesuiacutetas foram considerados cronistas perspicazes da realidade

que experimentavam Permitindo o desenho de um panorama complexo e intenso

do universo com o qual conviveram O encontro com o gentio e o escrutiacutenio de sua

natureza por parte desses soldados de cristo no firme propoacutesito de conquistar

almas ficou registrado nas diversas correspondecircncias que produziram no

cotidiano de suas missotildees Algumas circularam para aleacutem dos muros da ordem

como cartas de Noacutebrega de Navarro e de tantos outros Os catecismos e os autos

de Anchieta os sermotildees e os Regulamentos das Missotildees de Vieira

A vasta documentaccedilatildeo produzida pela Companhia de Jesus como fruto

do encontro entre seus missionaacuterios e os brasis corresponde a um conjunto

enorme de informaccedilotildees lapidadas pelo estilo conveniente para serem lidas

para servirem de registro da memoacuteria e como mateacuteria para edificaccedilatildeo dos irmatildeos

de sua ordem espalhados pelo mundo O sistema de comunicaccedilatildeo implantado

pela Ordem pode ser considerado sem precedentes na histoacuteria ocidental

Os Portugueses alcanccedilaram o litoral sul-americano pela

primeira vez em abril de 1500 poreacutem foi apenas no uacuteltimo quartel do

seacuteculo XVI que comeccedilaram a produzir relatos sistemaacuteticos com o

intuito de descrever e classificar as populaccedilotildees indiacutegenas

Excetuando-se a sumaacuteria Histoacuteria da proviacutencia de Santa

Cruz de Pero Magalhatildees Gacircndavo impressa em Lisboa em 1576 e

algumas cartas jesuiacuteticas amplamente disseminadas na Europa em

diversas liacutenguas os textos portugueses mais significativos

95

permaneceram ineacuteditos por seacuteculos bem como os Tratados da Terra

e Gente do Brasil uma compilaccedilatildeo da obra de Cardim proporcionam

claros indiacutecios das percepccedilotildees e imagens acumuladas ao longo do

seacuteculo XVI pelos portugueses no que diz respeito a um universo

indiacutegena que se apresentava tatildeo vasto e variado quanto

incompreensiacutevel 113

Ao mesmo tempo tratar essa documentaccedilatildeo como fonte enseja

algumas questotildees O que revelam sobre o cotidiano das missotildees jesuiacuteticas que

mereceriam destaque Qual a possibilidade de trataacute-los como fonte para a histoacuteria

das populaccedilotildees indiacutegenas e seu processo de conversatildeo Seriam elas confiaacuteveis a

ponto de elaborarmos este trabalho sobre como os indiacutegenas teriam recebido a

pregaccedilatildeo cristatilde

A importacircncia dos relatos jesuiacuteticos como fontes para a histoacuteria eacute

inegaacutevel Jaacute se produziu muito e haacute de se produzir muito mais com base nessas

cartas e relatos os mais variados No entanto esses verdadeiros veiacuteculos de

comunicaccedilatildeo trazem uma complexidade de regras e de formas retoacutericas que natildeo

devem ser menosprezadas Se o forem corre-se o perigo de retirar deles sua

historicidade e a possibilidade de sua inteligibilidade Isso natildeo foi esquecido

durante a pesquisa deste trabalho

Das muitas caracteriacutesticas especiacuteficas da empresa jesuiacutetica uma eacute

essencial a sua unidade Portanto natildeo haacute como desvincular a sua instituiccedilatildeo

epistolar de seus fins poliacuteticos e miacutesticos Tatildeo pouco eacute possiacutevel separar tais

113 MONTEIRO 2001p12

96

relatos dos interesses pragmaacuteticos que impregnavam seus ideais de missatildeo

Assim sendo os relatos jesuiacuteticos se conformaram na fronteira entre por um lado

a necessidade de se submeterem agraves regras retoacutericas tradicionais e de

obedecerem a outras que permitissem tornar seus textos puacuteblicos por outro lado

servirem de suporte para a troca de experiecircncias missionaacuterias essenciais para o

crescimento e manutenccedilatildeo de sua atividade evangelizadora

Mas era necessaacuterio ainda que se pudesse entender o indiacutegena no

sentido daquilo que diziam e como diziam seus significados e a comunicaccedilatildeo

entre brancos europeus e agravequeles a que a missatildeo impunha conversatildeo Afinal

como impor um mito sem uma linguagem em que o mito seja entendido

A linguagem e o mito satildeo espeacutecies proacuteximas Nas etapas

primeiras da cultura humana sua relaccedilatildeo eacute tatildeo estreita e sua

cooperaccedilatildeo tatildeo patente que resulta quase impossiacutevel separar uma da

outra 114

Conforme Monteiro115 em seu trabalho desde o momento que os

inacianos chegaram em 1549 eles se defrontaram com um dos maiores

problemas da conversatildeo o de traduzir a simbologia o conteuacutedo e os sentidos da

doutrina cristatilde para uma liacutengua que atingisse o maior nuacutemero possiacutevel de

catecuacutemenos natildeo soacute pela comunicaccedilatildeo mas pelo mito pois na liacutengua

114 CASSIRER 1945 p166 115 MONTEIRO 2001

97

portuguesa natildeo haveria como fazer com que os conceitos do mito cristatildeo

atingissem a alma daqueles a quem queriam converter

Apesar da enorme diversidade linguiacutestica que se descobria

pouco a pouco agrave medida que a expansatildeo portuguesa avanccedilava para

aleacutem das estreitas faixas litoracircneas estabeleceu-se desde cedo uma

poliacutetica linguiacutestica que tornava a liacutengua mais usada na costa do

Brasil o seu principal instrumento Baseada na verdade num

conjunto de dialetos da famiacutelia linguiacutestica tupi-guarani a primeira

liacutengua geral foi perdendo as suas inflexotildees locais e regionais em

funccedilatildeo da sua adoccedilatildeo sistematizaccedilatildeo e expansatildeo enquanto idioma

colonial 116

O primeiro inteacuterprete oficial foi o colono por conhecer tanto o discurso

cristatildeo como tambeacutem pela sua destreza na liacutengua tupi

Poreacutem natildeo foi muito duradoura essa alianccedila entre colonos e

missionaacuterios pelo fato de que esses colonos entraram em conflito com os jesuiacutetas

pelo controle da matildeo de obra indiacutegena que se tentava escravizar A capacidade e

a competecircncia dos colonos para servirem de interpretes na produccedilatildeo do discurso

religioso passou a ser um grande obstaacuteculo para a missatildeo de conversatildeo

deturpando e usando de persuasatildeo o trabalho de liacutengua para fins e propoacutesitos

proacuteprios Assim com esse conflito de interesses os jesuiacutetas tiveram que tentar

uma nova proposta a de encarregar suas proacuteprias instituiccedilotildees de formar seus

proacuteprios liacutenguas que seriam inclusive capacitados em traduzir aos indiacutegenas os

discursos religiosos e tentar interpretar suas respostas

116 MONTEIRO 2001 p36

98

Inicia-se entatildeo uma formaccedilatildeo de interpretes entre os indiacutegenas que

acompanhavam os missionaacuterios onde a escola de escrever e contar dirigida aos

filhos dos principais pudesse ter a funccedilatildeo de formar interpretes indiacutegenas para os

missionaacuterios Aprendiam entatildeo nas escolas o portuguecircs e o discurso religioso

No entanto a escola tambeacutem natildeo se mostrou como um meio seguro

com o qual se pudesse garantir o controle desse discurso pois dentre esses

indiacutegenas formados muitos se transformaram em verdadeiros opositores dos

discursos religiosos disseminando essa apologia entre os indiacutegenas de outras

regiotildees

Dessa forma a experiecircncia mostrou que tanto os indiacutegenas como os

colonos natildeo eram os inteacuterpretes adequados agraves condiccedilotildees de produccedilatildeo e

circulaccedilatildeo do discurso apologeacutetico religioso da missatildeo jesuiacutetica

Foi entatildeo que a Companhia de Jesus passou a recomendar que a

catequese e a conversatildeo fosse feita sem auxiacutelio de intermediaacuterios o que obrigou

aos jesuiacutetas a iniciar uma proposta de formar os liacutenguas no proacuteprio interior da

hierarquia da Igreja exigindo que todos tivessem que procurar formas de adquirir

o conhecimento da liacutengua indiacutegena Os coleacutegios de toda a colocircnia funcionavam

assim como centro de formaccedilatildeo de interpretes dando-se muitas vezes maior

ecircnfase ao conhecimento da liacutengua brasiacutelica do que agraves questotildees teologicas e

outras disciplinas da formaccedilatildeo eclesiaacutestica substituindo em muito o grego liacutengua

importante par a formaccedilatildeo dos cleacuterigos da eacutepoca preocupando-se muito mais em

transformar os noviccedilos em liacutenguas do que em teoacutelogos

99

Nesse caminho lentamente a Igreja foi adquirindo sua independecircncia

em relaccedilatildeo agraves necessidades de inteacuterpretes onde passo a passo foi elaborando

gramaacuteticas e dicionaacuterios em Tupi Tanto essas gramaacuteticas como esses dicionaacuterios

representavam os meacutetodos formais do aprendizado tupi adequando o jesuiacuteta agrave

aquisiccedilatildeo de uma segunda liacutengua

Desta forma a liacutengua geral para os jesuiacutetas foi o resultado de um longo

trabalho em que por pesquisas e interpretes de vaacuterias origens culminando com a

publicaccedilatildeo da Arte de Grammatica de Joseacute de Anchieta em 1595 e do Catecismo

na Liacutengua Brasiacutelica de Antocircnio de Arauacutejo em 1618 No iniacutecio das atividades no

Brasil os jesuiacutetas Pero Correia Juan de Azpilcueta Navarro e Joseacute de Anchieta

deram os primeiros passos decisivos em direccedilatildeo agrave sistematizaccedilatildeo dessa liacutengua

Monteiro117 nos informa que escrevendo de Satildeo Vicente em 1553 o

irmatildeo Pero Correia pediu ao Provincial Simatildeo Rodrigues o envio de livros como

subsiacutedio a seus trabalhos em tupi citando especificamente algumas obras do

escritor castelhano Constantino Ponce de la Fuente de que pudesse tirar

grandes exemplos com muita doutrina para estes gentios os quais espero antes

de morrer ver todos cristatildeos o que em muito ajudou os padres a verterem

sermotildees do Velho e Novo Testamento mandamentos pecados mortais e obras

de misericoacuterdia

No mesmo ano Azpilcueta Navarro informou aos padres e irmatildeos do

Coleacutegio de Coimbra que havia enviado todas as oraccedilotildees na liacutengua do Brasil com

117 MONTEIRO 2001

100

os mandamentos e pecados mortais etc com uma confissatildeo geral princiacutepio do

mundo encarnaccedilatildeo e do juiacutezo e fim do mundo Natildeo conseguiu no entanto criar

uma arte isto eacute manual de gramaacutetica Anchieta por seu turno achava

precipitado elaborar uma gramaacutetica tupi nesses anos iniciais Quanto agrave liacutengua

natildeo a ponho em arte porque natildeo haacute quem aproveite somente aproveito-me eu

dela e aproveitar-se-atildeo os que de laacute vierem que souberem gramaacutetica Contudo

no ano seguinte o irmatildeo Antocircnio Blaacutezquez relatou que os meninos e os irmatildeos

da casa andam todos com grande fervor de saber a liacutengua [e] para aprendecirc-la

tecircm uma Arte que trouxe o Padre Provincial

Tive grande consolaccedilatildeo em confessar muitos iacutendios e

iacutendias por inteacuterprete satildeo candidiacutessimos e vivem com muito menos

pecados que os Portugueses Dava-lhes sua penitecircncia leve porque

natildeo satildeo capazes de mais e depois da absolviccedilatildeo lhes dizia na

liacutengua xe rair tupatilde toccedilocirc de hirunamo sc filho Deus vaacute contigo 118

Mas voltemos agraves correspondecircncias Mostram essas correspondecircncias

que as aldeias indiacutegenas recebiam constantemente a visita dos padres jesuiacutetas

que para ganharem a confianccedila dos iacutendios a serem convertidos agrave feacute cristatilde

apropriavam-se muitas vezes da funccedilatildeo do pajeacute Tornavam-se portanto

portadores dos remeacutedios contra as mazelas natildeo somente das almas mas tambeacutem

dos corpos

Os jesuiacutetas sabiam da necessidade dessas associaccedilotildees como padre x

pajeacute simbologia cristatilde x cosmogonia indiacutegena mitos dessa cosmogonia e a visatildeo

118 CARDIM 1997 [1583-90] p234

101

do Orbis Christianus desde o iniacutecio de seus trabalhos missionaacuterios desde a

chegada dos primeiros jesuiacutetas e viam nos pajeacutes seus mais fortes adversaacuterios

uma vez que teriam necessariamente de tomar o seu lugar

Os que fazem estas feiticcedilarias que disse satildeo mui

apreciados dos Indios persuadem-lhes que em seu poder estaacute a vida

ou a morte natildeo ousam com tudo isto aparecer deante de noacutes outros

porque descobrimos suas mentiras e maldades 119

ou

Si noacutes abraccedilarmos com alguns costumes deste Gentio os

quaes natildeo satildeo contra nossa feacute catoacutelica nem satildeo ritos dedicados a

iacutedolos como eacute cantar cantigas de Nosso Senhor em sua liacutengua pelo

tom e tanger seus instrumentos de muacutesica que elles usam em suas

festas quando matam contraacuterios e quando andam becircbados e isto

para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais () e assim

o preacutegar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e

batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir

alguma cousa e dizecirc-la com muita efficacia e assim tosquiarem-se os

meninos da terra que em casa temos a seu modo Porque similhanccedila

eacute causa de amor E outros costumes similhantes a estes 120

Muitas vezes usavam a roupagem simboacutelica de seu adversaacuterio de

forma consciente para adentrarem no mundo miacutestico dos gentios outras vezes agrave

sua revelia eram confundidos e enquadrados como payeacute sem sequer disso se

darem conta

119 ANCHIETA - Cartas -1988 p83 Carta de Piratininga - 1555 120 NOacuteBREGA 1988 p142-Carta de Manuel da Noacutebrega a Simatildeo Rodrigues 17 de setembro de 1552

102

Mas era preciso controlar corpo e mente e na mente estavam seus

siacutembolos seus mitos e suas almas Dominar as almas dos gentios implicava ter o

controle sobre seus corpos e disciplinar os corpos e as accedilotildees era tarefa lenta e

metoacutedica O ritmo o tempo e a liberdade precisavam ser regulados O trabalho era

intenso e incansaacutevel

Nas cartas de Anchieta e de Noacutebrega muitas tantas vezes surgem

relatos de visitas repetidamente realizadas a uma tribo ou outra onde se mostrava

a intenccedilatildeo clara da imposiccedilatildeo dessa disciplina ou da repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos

em vaacuterios momentos de uma mesmo dia a fim de que se fixassem os novos

ensinamentos e conceitos

Natildeo bastasse a doutrinaccedilatildeo diaacuteria aos domingos e dias santos era

necessaacuterio dizer missa no momento em que pudessem estar todos juntos Para

ampliar o controle sobre a presenccedila deveria haver lugar certo nas Igrejas para as

casas e famiacutelias desses iacutendios

Caso algum faltasse agrave missa deveria o seu missionaacuterio tomar nota e

admoestar em particular o ausente Reincidindo no erro seria admoestado em

puacuteblico e por fim castigado

A atividade catequeacutetica dominical e festiva parecia ser a mais

importante uma vez que era o momento propiacutecio para a reuniatildeo de toda a

comunidade Portanto os cuidados para com ela tambeacutem eram maiores Deveria

se dizer missa e antes da mesma aleacutem da doutrina de ordem os padres

deveriam abordar dois pontos quais sejam os misteacuterios da feacute ou do evangelho e

outro moral que abordasse um viacutecio de maior incidecircncia no momento

103

A persistecircncia dos novos catecuacutemenos em manter haacutebitos tidos como

perniciosos ou como obra do inimigo por seus mestres jesuiacutetas fez com que

estes uacuteltimos flexibilizassem algumas regras de conduta como ateacute mesmo utilizar

iacutendios jaacute evangelizados nas tarefas de conversatildeo nem que fosse ao menos de

exercer atividades no interior dos templos tornando-se na maioria das vezes

sacristatildeos e coroinhas A inserccedilatildeo desses iacutendios nestas atividades apresenta

nuanccedilas riquiacutessimas do modo com que construiacuteram para si o sentido da religiatildeo e

dos rituais catoacutelicos principalmente se levarmos em conta que muitos deles

considerados hereges e que foram levados ao tribunal do Santo Ofiacutecio

O processo de conversatildeo dos iacutendios cristatildeos comeccedilava com o ritual do

batismo o que para os missionaacuterios significava uma forma de permitir a ida das

almas para o mundo de Deus

No entanto para a populaccedilatildeo indiacutegena o batismo ganhava sentido

mais complexo inclusive o de permissatildeo para adentrarem no mundo dos homens

brancos e cristatildeos mundo esse cheio de novas simbologias de curas para muitos

de seus males fiacutesicos e ateacute de um certo conforto diferenciado daquele que

conheciam ao viverem na proximidade dos jesuiacutetas

Poreacutem para o jesuiacuteta a verdadeira obra da missatildeo soacute se concretizava

com a pescaria das almas e com o seu controle absoluto ateacute a morte fiacutesica Salvar

os outros significava salvar a si mesmo Assim como morriam muitos inocentes

dever-se-ia batizar as crianccedilas prioritariamente ainda que moribundas para que

pudessem lograr ecircxito na batalha contra satanaacutes

104

natildeo podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor

para com eles principalmente porque vecircm que empregamos toda a

diligecircncia no tratamento de suas enfermidades sem nenhuma

esperanccedila de lucro E fazemos isto na intenccedilatildeo de preparar para o

recebimento do batismo caso haja necessidade os seus espiritos em

tais circustancias mais redutiveis e mais brandos por igual motivo eacute

que desejamos assistir agraves parturientes a fim de batizar matildee e filho se

o caso exigir Assim acontece atender-se agrave salvaccedilatildeo do corpo e da

alma 121

Claro poreacutem que batizar jaacute que parecia ser algo que os indiacutegenas

apreciavam ou desejavam para poderem adentrar ao mundo branco era um dos

pontos que os jesuiacutetas usavam como forma de meacuterito isto eacute seja cristatildeo em suas

atitudes e disciplinas e aiacute sim receberaacute o batismo Saiba o catecismo e assim seraacute

batizado Vejamos

Antes do dia do Nascimento do Senhor procuraacutemos que

se confessassem o qual fizeram muitas mulheres e alguns homens

os quais diligentemente examinaacutemos nas cousas da feacute e o que

principalmente pretendemos eacute que saibam o que toca os artigos da feacute

scilicet ao conhecimento da Santiacutessima Trindade e aos misteacuterios da

vida de Cristo que a Igreja celebra e que saibamquando lhes forem

perguntado dar conta destas cousas o qual temos em mais que

saber as oraccedilotildees de memoacuteria ainda que nisto se potildee muito cuidado e

diligecircncia porque duas vezes cada dia se lhes ensina na igreja a

nenhum batizamos senatildeo assim instruidos e ainda depois da

confissatildeo lhes pedimos conta dessas cousas a qual muitos maacutexime

121 ANCHIETA Cartas - 1988 P98 Carta de Piratininga - 1556

105

da mulheres datildeo bem que natildeo ha duacutevida senatildeo que levam

vantagem a muitos nascidos de pais Cristatildeos de maneira que muitos

satildeo assas aptos para receber o Santiacutessimo Sacramento da

Eucaristia

Antes ou mesmo depois do advento da liacutengua geral de Anchieta na

impossibilidade de compreensatildeo das liacutenguas por parte dos missionaacuterios e na falta

de interpretes que se batizasse por aceno e com a ajuda das imagens sacras

pinturas cruzes e outros objetos cristatildeos Vejamos

()O Padre que os tiver agrave sua conta procuraraacute com todo o

cuidado fazer um catecismo breve que contenha os pontos

precisamente necessaacuterios para a Salvaccedilatildeo e deste usaratildeo nos casos

de necessidade e por ele os iratildeo ensinando e instruindo mas em

caso que totalmente natildeo haja inteacuterprete nem outro modo por donde

fazer o dito catecismo seraacute meio muito acomodado o misturar os tais

Iacutendios com os da Liacutengua Geral ou de outra sabida para que ao menos

os seus meninos aprendam com a comunicaccedilatildeo e no entretanto se

lhes mostraratildeo as Imagens e Cruzes e os faratildeo assistir aos ofiacutecios

divinos e administraccedilatildeo dos Sacramentos e as mais accedilotildees dos

Cristatildeos para que possam em caso de necessidade inculcar-lhes o

batismo por acenos pois natildeo haacute meio de receberem a feacute pelos

ouvidos de modo que ao menos sub condicione nenhum morra sem

batismo 122

A confissatildeo tambeacutem natildeo poderia ficar de fora das preocupaccedilotildees dos

missionaacuterios Abrir os recocircnditos mais profundos da alma ao missionaacuterio era de

122 Vieira Regulamento das Missotildees p 199-200

106

vital importacircncia na tarefa de perscrutar a sinceridade da sua ligaccedilatildeo com a

religiatildeo Para tanto essas diretrizes indicavam a necessidade de todo ano

produzir listas daqueles capazes de confissatildeo Nenhum deveria ficar sem se

confessar ainda que fossem muitos os iacutendios e poucos os missionaacuterios

A confissatildeo eacute dos sacramentos aquele em que o caraacuteter

de julgamento eacute mais niacutetido Haacute um diaacutelogo - ou melhor uma

sucessatildeo de monoacutelogos em que o penitente diz seus eventuais

pecados responde a indagaccedilotildees sobre os pecados e sobre a

existecircncia de outras ofensas e o fim da confissatildeo eacute marcado por uma

penalidade 123

Assim batizar confessar casar e ajudar a bem morrer eram tarefas

baacutesicas ao bom missionaacuterio Nos laccedilos sagrados do matrimocircnio por exemplo os

missionaacuterios enfatizam a necessidade de manter registros dos nomes

sobrenomes da data do paacuteroco e das testemunhas do casamento assim como

da aldeia em que foi realizado Nenhum padre deveria realizar matrimocircnio entre

iacutendios de paroacutequias diferentes sem proceder a uma coleta de informaccedilotildees em

ambas as paroacutequias para assim terem certeza de que natildeo haveria um sagrado

matrimocircnio com pessoas que jaacute haviam recebido esse sacramento de outro padre

em outra eacutepoca em outra situaccedilatildeo

Quando da necessidade de ajudar o bem morrer era pelo firme

propoacutesito de guardar as almas desses novos cristatildeos e que tivessem morte

assistida o que garantia um ganho definitivo de seu espiacuterito pois era na morte

123 NEVES 1978 p75

107

que os jesuiacutetas colheriam o fruto do trabalho missionaacuterio pois como pastores de

almas teriam que dar conta daquelas que foram apresentadas aos ceacuteus e

encaminhaacute-las em direccedilatildeo a Deus

Mas controlar as almas natildeo bastava o diabo usava dos corpos e dos

gestos pra sua tarefa e por isso junto ao controle das almas atraveacutes da

evangelizaccedilatildeo dos gentios era necessaacuterio o controle dos gestos e dos corpos

tambeacutem fazia parte da obrigaccedilatildeo dos missionaacuterios Na ocasiatildeo das mortes o

controle sobre os rituais utilizados pelas naccedilotildees no sepultamento de seus mortos

era objeto tambeacutem da preocupaccedilatildeo do missionaacuterio O modo de amortalhar ou de

usarem algumas coisas supersticiosas era proibido pelos padres assim como

tambeacutem eram os excessos com que costumam chorar o defunto Pondera Vieira

que ainda que natildeo fossem demonstraccedilotildees de uso gentiacutelico mas sim de dor

natural deveriam se acomodar a poliacutetica cristatilde

Enfim a tocircnica comum compartilhada pelos jesuiacutetas estava relacionada

agrave necessidade de salvaccedilatildeo das almas Desde o seu princiacutepio a preocupaccedilatildeo com

a sua salvaccedilatildeo foi parte constitutiva da missatildeo da Companhia de Jesus Os iacutendios

considerados infieacuteis deveriam ser salvos de sua gentilidade da barbaacuterie e dos

erros em que viviam Essa gentilidade fazia com que esses iacutendios vivessem no

erro caberia ao missionaacuterio portanto conduzir os iacutendios para a verdade atraveacutes

da conversatildeo

108

Nos mostra Monteiro124 que a salvaccedilatildeo das almas encontrava outra

problemaacutetica a ser enfrentada a morte do gentio

A morte do gentil era constante desde o contato com os jesuiacutetas com

os aldeamentos com os brancos europeus mesticcedilos ou africanos e isso era com

certeza uma grande problemaacutetica para a conversatildeo pois com os primeiros

contatos comeccedilam ocorrer os principais episoacutedios epidecircmicos que destruiacuteram

muito das populaccedilotildees indiacutegenas do litoral

Eacute correto dizer no entanto que seja como for no litoral brasileiro do

seacuteculo XVI o contato direto entre as etnias indiacutegenas e os europeus e africanos jaacute

havia atravessado ao menos cinco deacutecadas antes da eclosatildeo das primeiras

pandemias Longe de constituir um variaacutevel independente no despovoamento do

litoral a mortalidade provocada por doenccedilas contagiosas atingiu seus pontos mais

altos quando conjugada com outras mudanccedilas importantes nas relaccedilotildees entre

colonizadores e iacutendios Afinal de contas foi na esteira das ofensivas beacutelicas

promovidas pelo governador Mem de Saacute e do processo concomitante de

deslocamento das populaccedilotildees indiacutegenas para as aldeias missionaacuterias que

ocorreram as primeiras grandes epidemias com destaque para o alastramento da

variacuteola pelo litoral de Pernambuco a Satildeo Vicente

As doenccedilas letais semearam a desordem entre a populaccedilatildeo nativa

sobretudo naquela subordinada aos missionaacuterios e aos colonos Anchieta

rememorando este grande surto epidecircmico escreveu em 1584

124 MONTEIRO 2001 p60

109

No mesmo ano de 1562 por justos juiacutezos de Deus

sobreveio uma grande doenccedila aos Iacutendios e escravos dos

Portugueses e com isto grande fome em que morreu muita gente e

dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos

Portugueses e se fazer escravos vendendo-se por um prato de

farinha e outros diziam que lhes pusessem ferretes que queriam ser

escravos foi tatildeo grande a morte que deu neste gentio que se dizia

que entre escravos e Iacutendios forros morreriam 30000 no espaccedilo de 2

ou 3 meses 125

Monteiro nos mostra ainda que infelizmente natildeo sabemos muito de

como os indiacutegenas responderam aos surtos epidecircmicos mas as cartas dos

jesuiacutetas no iniacutecio da colonizaccedilatildeo dizem algo sobre a percepccedilatildeo dos iacutendios com

relaccedilatildeo agrave origem das doenccedilas claramente associada agrave presenccedila dos padres

Pouco depois de chegar no Brasil o padre Manuel da Noacutebrega se espantou natildeo

apenas com a frequumlecircncia das doenccedilas entre a populaccedilatildeo batizada pelos jesuiacutetas

mas tambeacutem e sobretudo com a acusaccedilatildeo veiculada pelos feiticeiros de que os

missionaacuterios infligiam a doenccedila com a aacutegua do batismo e causavam a morte com

a doutrina126

A liacutengua Geral mostrava que as epidemias estavam presentes no

vocabulaacuterio indiacutegena ao definir a varicela como catapora o fogo que salta

De toda forma com epidemias ou natildeo com paciecircncia ou natildeo com

liacutengua geral e inteacuterpretes da comunicaccedilatildeo para o jesuiacuteta aqueles baacuterbaros natildeo

125 ANCHIETA Cartas- 1988 p364 Informaccedilotildees dos primeiros aldeamentos da Bahia 126 MONTEIRO 2001 p62

110

tinham afeiccedilatildeo pelas coisas de Deus viviam como brutos apenas para comer

beber e danccedilar Para os indiacutegenas de sua parte os padres natildeo entendiam seus

valores e sempre colocavam seus costumes e tradiccedilotildees como algo pertencente ao

diabo

O que se pode no entanto inferir eacute que houve o fato do processo de

encontro do embate de mitos entre dois universos simboacutelicos e sociais

completamente estranhos um ao outro

De um lado uma profecia que um certo pajeacute fazia com terror que os

iacutendios iriam virar brancos revelava mesmo aos pedaccedilos um pouco do processo

de leitura que essas populaccedilotildees nativas faziam desse encontro De outro lado o

cansaccedilo de Noacutebrega antes de sua morte revelavam um pouco do pessimismo do

jesuiacuteta quanto ao processo de conversatildeo e portanto da leitura que era possiacutevel

para ele missionaacuterio fazer tambeacutem daquele universo simboacutelico

Por um lado os pajeacutes acreditavam na transformaccedilatildeo de brancos em

iacutendios e de iacutendios em brancos por outro para o jesuiacuteta ver o iacutendio revestido

numa vestimenta simboacutelica a vestimenta da conversatildeo o cristatildeo tirado das

trevas De certa forma compactuavam pajeacute e jesuiacuteta com a mesma crenccedila ou

melhor com parte dela os iacutendios virariam brancos mas isso natildeo foi possiacutevel

Vieira em seu sermatildeo do Espiacuterito Santo dizia Natildeo ha gentios no

mundo que menos repugnem agrave doutrina da feacute e mais facilmente a aceitem e

recebam que os Brazis e natildeo porque os Brazis natildeo creiam com muita facilidade

mas porque essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crecircr em certo

modo seja como natildeo crer os Brazis ainda depois de crecircr satildeo increacutedulos em

111

outros gentios a incredulidade eacute increacutedulidade e a feacute eacute feacute nos Brasis a mesma feacute

ou eacute ou parece incredulidade 127

Vieira mostrava ainda em seus sermotildees que a resistecircncia era mais do

que resistecircncia pois outras naccedilotildees eram duras mas mais faacutecil de vencer que os

indiacutegenas do Brasil

haacute umas naccedilotildees naturalmente duras tenazes e

constantes as quaes difficultosamente recebem a feacute e deixam os

erros de seus antepassados resistem com as armas duvidam com o

entendimento repugnam com a vontade cerram-se teimam

argumentam replicam datildeo grande trabalho ateacute se renderem mas

uma vez rendidos uma vez que receberam a feacute ficam n ella firmes e

constante como estatuas de maacutermore natildeo eacute necessario trabalhar

mais com elles128

Jaacute com indiacutegenas do Brasil a tarefa era muito mais dura pois se o

pregador deixasse de estar presente por algum tempo que fosse todo o trabalho

de pregaccedilatildeo estava perdido e teria que ser reiniciado como se nunca tivesse

ouvido a palavra de algum pregador

Haacute outras naccedilotildees pelo contraacuterio ( e estas satildeo as do Brazil)

que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e

facilidade sem argumentar sem replicar sem duvidar sem resistir

mas satildeo estaacutetuas de murta que em levantando a matildeo e tesoura o

jardineiro logo perdem a nova figura e tornam agrave bruteza antiga e

natural e a ser matto como dantes eram Eacute necessario que assista

127 VIEIRA 1951 Sermatildeo do Espiacuterito Santo p410 128 idemp 413

112

sempre a estas estatuas o mestre d ellas uma vez que lhe corte o que

vicejam os olhos para que creiam o que natildeo vecircem outra vez que lhe

cerceie o que vicejam as orelhas para que natildeo decircem ouvidos agraves

fabulas do seus antepassados129

Era necessaacuterio insistir nos catecismo nas pregaccedilotildees na redundacircncia

de informaccedilotildees e conceitos mas mesmo assim os simbolismos continuavam

amalgamados e necessitando de mais imposiccedilatildeo de paciecircncia Veja Anchieta

Dando-lhe pois a primeira liccedilatildeo de ser um uacutenico Deus

todo poderoso que criou todas as coisas etc logo se lhe imprimiu na

memoacuteria dizendo que ele rogava muitas vezes que criasse os

mantimentos para o sustento de todos mas que pensava que os

trovotildees eram este Deus embora agora que sabia existir outro Deus

verdadeiro sobre todas as coisas que rogaria a ele chamando-lhe

Deus Padre e Deus Filho por que dos nomes da Santa Trindade

ecircstes dois sogravemente pocircde tomar porque se lhe podem dizer em sua

liacutengua mas o Espiacuterito Santo para este nunca achamos um vocabulo

proacuteprio nem circunloquio bastante e apesar de que natildeo o sabia

nomear poreacutem sabia crecircr 130

Outro ponto importante a ser citado como forma de conversatildeo era a

utilizaccedilatildeo do imaginaacuterio e do medo para a doutrinaccedilatildeo dos gentios e para

evangelizar aquelas almas

129 idem p 413 130 ANCHIETA- Cartas 1988 p200 Carta de Joseacute de Anchieta a Diego Laynes 16 de abril de 1563

113

A contrapartida da utilizaccedilatildeo consciente do imaginaacuterio indiacutegena para

fins doutrinais era a construccedilatildeo por parte desses gentios da imagem dos jesuiacutetas

que ganhava significados muito diferentes daqueles com que por ventura queriam

ser compreendidos

A perspicaacutecia desses jesuiacutetas natildeo foi suficiente para perceberem que

ao fazerem parte desse imaginaacuterio perdiam o controle e o poder sobre seus

catecuacutemenos pois passavam a pertencer a um mundo que natildeo era o seu

Portanto o medo que foi incutido nos gentios tambeacutem passou a ser compartilhado

pelos jesuiacutetas Na medida em que embora respeitados e temidos por muitos

indiacutegenas passavam a ser odiados com a mesma facilidade

A fronteira entre o temor o respeito e o oacutedio era demasiado tecircnue

Cabia ao jesuiacuteta se para isso talento tivesse traduzir esses limites O erro poderia

significar o fim da missatildeo ou mesmo a morte na ponta de uma flecha

O medo que sentiam os brasis de seus Pay-u-assuacute (como eram

denominados os jesuiacutetas) era compartilhado pelos padres Se os rituais catoacutelicos

estavam sendo resignificados em seus siacutembolos pelos indiacutegenas que os adequava

a sua maneira de perceber o universo da mesma forma os rituais gentiacutelicos mais

puros eram compreendidos pelos jesuiacutetas como sendo ritos demoniacuteacos

orquestrados pelo priacutencipe das trevas na batalha pela conquista das almas Claro

os jesuiacutetas tambeacutem carregavam por mais cultos que fossem seus mitos e suas

crenccedilas em Deus e portanto acreditavam no democircnio da mesma forma que os

indiacutegenas temiam a Deus ou a seus deuses

114

Mesmo assim a relaccedilatildeo do indiacutegena com o jesuiacuteta transformou muitos

desses iacutendios em cristatildeos e esses cristatildeos criados muitas vezes como produto

das missotildees dos jesuiacutetas tornaram-se peccedilas essenciais para a manutenccedilatildeo do

controle sobre a populaccedilatildeo indiacutegena para servirem de mediadores entre os

brancos colonizadores e os indiacutegenas das diversas aldeias que os jesuiacutetas tinham

sob seu comando para ajudarem na traduccedilatildeo dos catecismos e dos sermotildees para

a liacutengua geral para ajudarem na evangelizaccedilatildeo e nas tarefas da igreja Poreacutem a

doutrina por sua vez natildeo evoluiria sem o apoio desses personagens

Esses obscuros personagens quase nos bastidores desse teatro da

conversatildeo realizam de certa forma parte da profecia do pajeacute apavorado segundo

a qual os iacutendios iriam virar brancos e os brancos iriam virar iacutendios

Mas afinal qual o significado em tornar-se branco para esses iacutendios

A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no valor que

uma profusatildeo de objetos pontes entre mundos pudesse representar para esses

cristatildeos Cruzes medalhas bastotildees ferramentas vestidos e espadas tornaram-se

veiacuteculos de comunicaccedilatildeo entre homens de mundos distintos

Assim como o processo de alianccedila com diversas naccedilotildees indiacutegenas que

transformava seus liacutederes poliacuteticos em iacutendios principais de sua povoaccedilatildeo natildeo se

concretizava se o referido novo vassalo natildeo recebesse por parte das autoridades

portuguesas algum siacutembolo de sua grandeza e distinccedilatildeo

A espada e a casaca eram comumente utilizadas pelos principais das

tribos conquistadas assim como seus bastotildees de comando Ser importante

115

perante todos de todas as tribos significava receber honrarias brancas e cristatildes

em troca de ser subjugado pela cultura europeacuteia

Davam importacircncia a tudo que poderia tornaacute-los cristatildeos mas

adoravam receber e participar daquilo que se podia chamar de vida branca A

imagem de Cristo que preservaram com tanto cuidado o fato de terem construiacutedo

igreja e casa para o Jesuiacuteta a importacircncia que davam a ver seus nomes escritos

num papel que iria ateacute o rei e por fim o uso que os jesuiacutetas fizeram da cruz

levada nos ombros pelos escolhidos todas essas situaccedilotildees demonstram um

significado importante e ao mesmo tempo completamente inusitado desses

objetos Os jesuiacutetas pressentiam algo sobre esse significado tanto eacute que

utilizavam a cruz objeto para criar uma distinccedilatildeo entre os iacutendios Mas logo

traduziam esse significado para seu universo cosmoloacutegico inteiramente distinto e

estranho ao daqueles homens da floresta O que afinal poderiam significar esses

siacutembolos aos indiacutegenas

Alcanccedilar o significado desses objetos para os indiacutegenas significaria

obter uma resposta consistente sobre o que significava ser branco para eles

O uso dos objetos e roupas dos brancos distinguia os cristatildeos dos

gentios Havia uma transformaccedilatildeo em curso Natildeo significavam no entanto uma

total submissatildeo agraves regras de domiacutenio dos brancos Indicavam sim um aceite de

certas regras mas natildeo significava no entanto aceitar domiacutenio e desistecircncia de

suas crenccedilas e tradiccedilotildees

Iacutendios escravos poreacutem cristatildeos fincaram cruzes pelo caminho de suas

vidas numa clara tentativa de indicar sua inserccedilatildeo no mundo branco Esse

116

emaranhado de siacutembolos para estabelecer sua identidade cristatilde seria somente

uma estrateacutegia para sobreviverem demonstrando estarem do mesmo lado dos

brancos Por outro lado o uso dos objetos ocidentais no seu cotidiano e a

arquitetura de caiccedilara seriam indiacutecios de que esses homens apenas utilizavam tais

objetos por seu valor pragmaacutetico

Talvez o jesuiacuteta natildeo pudesse ter outra interpretaccedilatildeo desses indiacutecios

que natildeo essa do sentido utilitaacuterio e estrateacutegico No entanto natildeo parecem ter um

significado tatildeo simples Eles permitem conjecturas embora preliminares para

respostas um pouco mais complexas Esses diversos objetos apresentam uma

conexatildeo Sejam as espadas os bastotildees as cruzes ou as medalhas Natildeo podem

simplesmente ser traduzidos como simples recursos praacuteticos ou simboacutelicos

usados por populaccedilotildees indiacutegenas para o seu processo de inserccedilatildeo na sociedade

colonial portuguesa Menos ainda que essa inserccedilatildeo fosse uma estrateacutegia poliacutetica

para a manutenccedilatildeo de privileacutegios e de sobrevivecircncia somente

A imagem de cristo dos Nhengaiba por exemplo provavelmente um

crucifixo pode revelar um significado complexo que surgiu ao ser traduzido para a

liacutengua geral ou Nheengatu

Em liacutengua geral crucifixo eacute traduzido por Tupanarayra-rangaacuteua Para

se poder entender o seu possiacutevel significado para os indiacutegenas eacute necessaacuterio

traduzir cada umas das palavras que compotildee o termo

117

Tupana 131 significa em liacutengua geral matildee do trovatildeo a ela natildeo satildeo

rendidas homenagens ou festas Adaptado pelos jesuiacutetas Tupatilde transformou-se

no Deus cristatildeo O sufiacutexo ana indica que a accedilatildeo expressa no prefixo teve lugar e

continua a acontecer Ou seja Tupana ente desconhecido que troveja e mostra

seu poder pelo raio abate toda a floresta tirando a vida aos seres deixando-os

carbonizados

Rayra rangaacuteua 132 por sua vez significa filho ou afilhado do

homem Rangaacuteua isoladamente significa figura tempo hora medida

Certamente a ideacuteia que os Nhengaiba poderiam ter do crucifixo natildeo parece ser a

que os jesuiacutetas queriam que tivessem Ao traduzirem em liacutengua geral esse objeto

permitiram um cem nuacutemero de significados sobre os quais perderam o controle O

temor e respeito com que essa imagem foi adorada por estes iacutendios para a

surpresa dos jesuiacutetas podem estar ligados ao sentido que lhe deram ao traduzi-la

para o seu universo cosmogocircnico referencial

Embora esse sentido tenha ficado irremediavelmente perdido no tempo

eacute possiacutevel supor a traduccedilatildeo das palavras em Nhengatu uma possibilidade de

significado simboacutelico de que esse ser poderoso e desconhecido que troveja e tem

o poder de extinguir vidas se corporificou em uma figura sua medida em um

afilhado de Deus Se correto tal significado permite compreender o temor e o

respeito que esses catecuacutemenos tinham pelo Deus cristatildeo e seus missionaacuterios

jesuiacutetas Ao mesmo tempo permitem imaginar o oacutedio que possivelmente poderiam

131 Bueno 1998 p303 132 idem p 363

118

guardar por esse ser poderoso e vingativo Cruzes poderiam portanto ter um

poder em si mesmas para proteger e ao mesmo tempo simbolizar uma alianccedila

maacutegica com esse poderoso Deus

Enquanto espadas casacas e bastotildees simbolizavam poder para os

principais transformados em brancos ser cristatildeos atraveacutes do batismo poderia

permitir aliar-se a esse poderoso Deus possibilitando sua introduccedilatildeo num mundo

novo que se constituiacutea a sua revelia mas do qual eram tambeacutem artiacutefices

De certa maneira indicam que o processo de sua transformaccedilatildeo em

brancos estava em curso

Novamente a profecia daquele pajeacute parecia completar-se com a frase

de Vieira essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crer em certo

modo seja como natildeo crer Em outras palavras poderiacuteamos interpretar que esses

iacutendios mesmo facilmente tornando-se brancos e portugueses mesmo assim natildeo

o eram nunca seriam e nunca viriam a ser

119

CAPIacuteTULO 6 - O TEATRO COMO FERRAMENTA EDUCACIONAL E DE CATEQUESE

A religiatildeo indiacutegena eacute tomada desde o princiacutepio dos contatos dos

quinhentos como falsa como realidade diaboacutelica como de origem maldita sobre a

qual o cristianismo era imposto como o oposto superior

Havia uma imposiccedilatildeo eurocecircntrica onde o cristianismo era um dos

mais importantes sentimentos desse momento eurocentrista

Por esse motivo tudo deveria ser feito para que a conversatildeo chegasse

a termo

Mais uma ponte deveria ser construiacuteda para que o jesuiacuteta pudesse

persuadir e convencer os indiacutegenas da necessidade da aceitaccedilatildeo da conversatildeo ao

cristianismo Essa ponte deveria conter representaccedilotildees da realidade tanto do lado

cristatildeo como do lado dos brasis

Poreacutem a conversatildeo e qualquer ponte que levasse a ela natildeo poderia ser

apenas uma questatildeo de salvaccedilatildeo mas um elo essencial de inclusatildeo do Mundo

Novo e seus habitantes na sociedade europeacuteia para a qual naquela eacutepoca

religiatildeo e poliacutetica misturavam-se intrinsecamente

Os jesuiacutetas com as suas dificuldades de comunicaccedilatildeo muitas vezes jaacute

pregavam e doutrinavam usando de eloquumlecircncia levantando a voz mostrando os

120

misteacuterios da feacute atraveacutes de gestos andando em roda batendo as matildeos e os peacutes

sempre realizando um tipo de teatro rudimentar tal qual faziam os indiacutegenas

contando seus feitos fazendo as mesmas pausas quebras de retoacuterica gerando e

mostrando espantos pois sabiam que dessa forma estavam agradando e

persuadindo aquele povo que adorava a gestualiadade

Poreacutem eacute bom que se tenha claro que o teatro depois de consolidado

entre as formas pedagoacutegicas utilizadas pelos jesuiacutetas na conversatildeo serviu

tambeacutem como um espelho destruidor pois neles se mostrava a cosmogonia a

perfeiccedilatildeo do aguerrido a cultura dos brasis como sendo o Mal que se

contrapunha a vontade da Igreja que era o Bem Maior Na semacircntica desse teatro

Deus e os Santos lutavam na vida e na morte contra o Diabo da mesma forma

que os contraacuterios e os pajeacutes lutavam contra os padres e a pregaccedilatildeo

No teatro dos quinhentos o reino do democircnio das dissimulaccedilotildees e da

espreita das curas e dos espiacuteritos cabiam em uma soacute figura a do pajeacute visto que

eram essas coisas que mais davam credibilidade aos feiticeiros a arte de

persuadir de dissimular de espreitar e de falar com os espiacuteritos Luacutecifer aparecia

em lugares e situaccedilotildees sempre agrave espreita e como grande personagem do teatro

era representado de diversas formas por um principal por um beberratildeo por um

pajeacute por um guerreiro que desejasse defender as tradiccedilotildees mas nunca colocava

seu rosto para ser visto pois trabalhava sempre a espreita na calada na

sugestatildeo e na seduccedilatildeo se passando ateacute por bom por favoraacuteveis a causa da

catequese e ateacute como divinos O democircnio era atuante natildeo soacute nos autos mas sim

na vida do padres e dos demais cristatildeos vejamos por exemplo

121

o inimigo da natureza humana (como soe sempre fazer)

em impedir o bom successo da obra e assim determinou que a 7 ou 8

leguas daqui matassem um Christatildeo da armada em que viemos 133

Muitas das caracteriacutesticas do teatro medieval e do teatro europeu se

encontram presentes nos autos anchietanos de forma sempre adaptada agrave

compreensatildeo dos indiacutegenas segundo o que entendiam os jesuiacutetas Eram

mostrados nas peccedilas os misteacuterios os evangelhos as obras de Cristo mas

principalmente a realidade daqueles que assistiam ao teatro principalmente

atraveacutes do sagrado do temeroso do assustador do ruacutestico e do burlesco mas

principalmente a caracterizaccedilatildeo dos atores seus gestos e suas expressotildees e

figurino obedeciam a um simbolismo onde as caracteriacutesticas biacuteblicas por um lado

e por outro aos personagens antagocircnicos ao Bem mostrados pela caricatura

pelo grotesco de modo a ficar clara a desordem do inferno em contrapartida da

simbologia organizada do Bem Os cacircnticos suaves em latim estavam sempre em

contraposiccedilatildeo dos ruidosos personagens oriundos do inferno

Os autos de Anchieta tinham no entanto a caracteriacutestica de ultrapassar

as barreiras de uma peccedila teatral principalmente por fazer com que os

espectadores pudessem se misturar com os atores e de certa forma participarem

interativamente com o narrado mesmo que fossem com risadas e sons de

133 NOacuteBREGA 1988 p94

122

espanto com palma em cena aberta sem no entanto deixar que essa

representaccedilatildeo teatral perdesse seu intuito e seu formato dentro do espaccedilo cecircnico

Por representarem sempre os atores teatrais personagens do

cotidiano e do sagrado Anchieta conseguia utilizar esses mesmos personagens

em situaccedilotildees e contextos de diferentes momentos emprestando tanto

personagens como textos de um auto para outro

Muitas vezes Anchieta utilizava textos em que o aversivo para o

democircnio para o iacutendio perfeito portanto os bons costumes era dito pela boca

destes criando mais forccedila quando estes falavam mal da igreja dos padres de

Deus e dos Santos

Ai tenho andado debalde

agrave procura de um pouso

Irra Sempre me faz sair

Da taba o sacerdote

Expulsando-me para bem longe

Infelizmente ele ensina

A obedecer agraves palavras de Deus

Proclama que a sua linda matildee

Me desgraccedilou

Quebrou minha cabeccedila

Tudo o que Anchieta pretendia exaltar das boas qualidades dos

costumes dos iacutendios seus personagens sempre indiacutegenas mostravam essas

atitudes que vinham sempre acentuadas de forma positiva assim como a muacutesica

e as danccedilas pois no entender dos jesuiacutetas demonstravam a riqueza e a beleza

daquela cultura Jaacute os costumes que eram considerados pelos jesuiacutetas como

123

perniciosos e contraacuterios agrave moral da Santa Igreja apareciam normalmente

representados por personagens que deixavam claro pertencerem agraves hordas

demoniacuteacas ou pelo proacuteprio Diabo

O Auto de Satildeo Lourenccedilo eacute a mais longa e rica peccedila de Anchieta Essa

peccedila foi escrita em trecircs liacutenguas tupi portuguecircs e castelhano agrave semelhanccedila de

muitos autos de Gil Vicente que mostram a situaccedilatildeo de bilinguumlismo vigente em

Portugal no seacuteculo XVI

Do ponto de vista da linguumliacutestica essa peccedila eacute das mais importantes pois

mostra como o Tupi da Costa era efetivamente falado Nesse auto vemos os

diabos Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia a tentar perverter a aldeia no que satildeo

impedidos por Satildeo Lourenccedilo e por Satildeo Sebastiatildeo

Anchieta recorre muito agraves alegorias isto eacute agrave personificaccedilatildeo de nomes

abstratos ou agrave atribuiccedilatildeo de qualidades humanas a seres inanimados recurso

tambeacutem muito empregado por Gil Vicente em seus autos Assim vemos no Auto

de Satildeo Lourenccedilo o Amor e o Temor de Deus como personagens a aconselharem

aos iacutendios a caridade e a confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Essa concretude era

eficiente na transmissatildeo dos conteuacutedos doutrinaacuterios cristatildeos dada a concretude

do pensamento miacutetico no qual o mundo indiacutegena estava mergulhado

Considero o auto de Satildeo Lourenccedilo como sendo um dos melhores

exemplos do embate de mitos de que falamos em todo este trabalho onde

Aimbirecirc um dos democircnios diverte-se com piadas maliciosas enquanto leva os

assassinos de Satildeo Lourenccedilo para o inferno Vejamos por exemplo neste mesmo

auto como os diabos ironizam a confissatildeo

124

Satildeo Lourenccedilo Mas existe a confissatildeo

Bom remeacutedio para cura

Na comunhatildeo se depura

Da mais funda perdiccedilatildeo

A alma que o bem procura

Se depois de arrependidos

os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar

o caminho dos remeacutedios

o padre os vai abenccediloar

Guaixaraacute Como se nenhum pecado

Tivessem fazem a falsa

Confissatildeo e se disfarccedilam

Dos viacutecios abenccediloados

a assim viciados passam

Aimbirecirc Absolvidos

Dizem na hora da morte

Meus viacutecios renegarei

E entregam-se a sua sorte

No auto de Satildeo Lourenccedilo mostrando como essas personagens

aparecem representando o cotidiano e ao mesmo tempo o Bem e o Mal trecircs

diabos satildeo personagens de grande importacircncia Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia

todos nomes dos antigos chefes tamoios derrotados e mortos na campanha de

125

Guanabara que satildeo aproveitados para destacar o inimigo vencido e associaacute-lo

com inimigos de toda a cristandade

Do lado do Bem o Anjo vem acompanhado de Satildeo Lourenccedilo e de Satildeo

Sebastiatildeo que resistem aos diabos para natildeo permitir a destruiccedilatildeo da aldeia pelos

pecados

O Diabo talvez tenha sido uma das personagens mais importantes no

projeto de conversatildeo das almas natildeo soacute no teatro mas como em todas as

representaccedilotildees da catequese pois foi contra ele e seus disciacutepulos e seguidores

que partiram as acusaccedilotildees de perversatildeo de mentira de seduccedilatildeo de luxuria A

luta dos missionaacuterios jesuiacutetas natildeo foi nunca contra os pagatildeos ou contra os

hereges mas principalmente contra o diabo contra os feiticeiros e contra aqueles

que mesmo catequizados voltavam aos costumes antigos e promoviam revoltas

nas aldeias e as conduziam a fugas e ao deslocamento para terras mais distantes

da evangelizaccedilatildeo

126

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos

Nesta parte do capiacutetulo a intenccedilatildeo eacute a de fazer o leitor atentar para as

definiccedilotildees de mito como um todo do mito cristatildeo e de sua comparaccedilatildeo com os

mitos indiacutegenas Mostrar como de fato foi o verdadeiro embate de mitos na

batalha de imposiccedilatildeo do branco europeu portuguecircs e obviamente cristatildeo sobre

as populaccedilotildees indiacutegenas atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de cultura

As peccedilas os autos especificamente o Auto de Satildeo Lourenccedilo pelo

fasciacutenio da imagem representativa era muito mais eficaz do que um sermatildeo por

exemplo Escrito em tupi portuguecircs ou espanhol e mais tarde em latim Nesse

auto os personagens satildeo santos caciques democircnios imperadores e ainda

representam apenas simbolismos como o Amor ou o Temor a Deus

Anchieta o jovem missionaacuterio da Companhia de Jesus o grande

piahy (supremo pajeacute branco) como era chamado pelos iacutendios usava com

maestria neste auto o zelo constante pela conversatildeo e os mandamentos

religiosos atraveacutes de uma audiecircncia amena e agradaacutevel diferente da pregaccedilatildeo

seca e riacutegida de que os escritos catequeacuteticos satildeo cabal documento Some-se a

isso que os indiacutegenas eram sensiacuteveis agrave danccedila agrave muacutesica e a mistura de

personagens que integram a miacutetica cristatilde (diabos anjos santos) fatores esses

127

que atuavam sobre o expectador com vigoroso impacto O iacutendio natildeo era no

entanto apenas expectador desse teatro mas tambeacutem participava dele como ator

danccedilarino e cantor

Outros atores aleacutem dos iacutendios domesticados eram futuros padres

brancos e mamelucos Todos amadores que atuavam de improviso seguindo

textos mas sem trabalhos de interpretaccedilatildeo apresentavam os autos nas Igrejas

nas praccedilas e nos coleacutegios

Considero para esta tarefa o Auto de Satildeo Lourenccedilo como uma das

mais importantes ferramentas da catequese onde iacutendios principais de tribos

Tamoyo vencidos e destruiacutedos pelos portugueses passam a ter suas imagens

incorporadas ao diabo e a democircnios

No Apecircndice 1 coloco o Auto de S Lourenccedilo na iacutentegra para que o

leitor possa ter uma completa visatildeo dos comentaacuterios que apresento a cada passo

dessa peccedila teatral

Quando iniciamos a leitura do texto examinando-se apenas o tema do

auto jaacute se percebe que os portugueses do periacuteodo jesuiacutetico ao virem para o

Brasil trouxeram consigo seu espaccedilo miacutetico e obviamente necessitaram

sacralizar o novo territoacuterio

Inicia-se aqui na representaccedilatildeo do auto logo em seu iniacutecio o embate de

mitos De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado pelo Espiacuterito Santo e que trazia aos gentios os bons

costumes e a cura de todos os seus males Do outro lado homens aguerridos e

128

audaciosos que entendiam seus costumes da forma miacutetica que interpretavam

suas vidas e as explicaccedilotildees da finitude dessas vidas sem que conhecessem os

pecados ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao inimigo do Homem

que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a realidade

Jaacute no primeiro ato Percebe-se que a evocaccedilatildeo de Jesus Salvador

mostra agrave plateacuteia que algo se cria com as palavras de Satildeo Lourenccedilo um clima de

redenccedilatildeo com o sofrimento se implanta naqueles que ouvem e vivenciam a

experiecircncia do auto uma proposta de sentirem algo sagrado

Se a palavra se torna criadora se a partir dela formam-se as

proposiccedilotildees constitutivas o Sagrado se apresenta no dizer criador do Verbo

como a verdade dos entes 134

Na fala de Guaixaraacute que encontramos no iniacutecio do segundo ato nada

mais do que a resistecircncia agrave imposiccedilatildeo da cultura portuguesa ou ainda de

qualquer cultura que pudesse querer destruir o que ateacute aquele momento era

considerado pelos indiacutegenas como tradiccedilatildeo e modo de entender a vida Seu mito

o mito de Guaixaraacute pois a funccedilatildeo de seus mitos natildeo eacute a de mostrar uma ideacuteia

herdada de seus antepassados mas sim de mostrar um modo pelo qual aquela

sociedade funciona e que corresponde agrave maneira inata pela qual o homem nasce

e se relaciona em sua vida vivida

Nesta parte do auto Luacutecifer eacute o pajeacute Guaixaraacute eacute o pajeacute e todos que o

seguem satildeo democircnios Guaixaraacute eacute o diabo esse locutor infernal que eacute preciso

134 CRIPPA 1975 p115

129

calar O feiticeiro eacute algo anormal ele eacute um herege natildeo um pagatildeo Eacute um herege

que se faz passar por pagatildeo 135

O pajeacute eacute algo anormal na medida em que se considera que a cultura

iacutendia eacute pagatilde Considera-se a cultura iacutendia como algo jaacute possuiacutedo pelo Diabo

a figura infernal se flexiona Luacutecifer agora eacute o signo da perversatildeo eacute o liacuteder de

hereges que vecirc nele a siacutentese de suas qualidades malignas 136

No entanto durante boa parte do texto do auto Guaixaraacute sabe da forccedila

da tradiccedilatildeo e da linguagem e entende que mesmo que sejam os indiacutegenas

levados a outro mito eacute o mito primordial da origem da cultura que surge de forma

espontacircnea que permanece e crecirc que mesmo com a influecircncia externa de outra

transmissatildeo miacutetica cada indiviacuteduo da cultura a que pertence possui em cada

psique prontidotildees vivas e ativas e que mesmo que se encontrem inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico

Poreacutem o portuguecircs o jesuiacuteta tenta mostrar o inverso disso quando

pretende provar que ateacute mesmo Aimbirecirc acredita na forccedila do novo mito o mito

cristatildeo e a forccedila dos santos Vejamos

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me

amedronta

135 NEVES 1978 p93 136 NEVES 1978 p94

130

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos

noacutes

AIMBIREcirc

Esse

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te

venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

Pela visatildeo de Anchieta Aimbirecirc crecirc em seu mito mas de alguma forma

percebe que muitos indiacutegenas estatildeo passando para o outro lado porque o novo

mito tambeacutem lhes daacute uma explicaccedilatildeo para a vida que levam pois muitas das

situaccedilotildees tiacutepicas vividas pelos gentios com relaccedilatildeo a condiccedilatildeo humana tambeacutem

satildeo representadas pelos mitos que lhes vem sendo ensinado gerando nesses

indiacutegenas uma predisposiccedilatildeo para experimentar os novos conceitos Deus de

seus nascimentos de suas mortes e de renascimento apoacutes a morte dos novos

rituais dos sacramentos etc

Por outro lado percebe-se tambeacutem que Aimbirecirc junto com outros

diabos continuaraacute tentando o disconversatildeo e a manutenccedilatildeo do mito primordial

131

Haacute no entanto uma anguacutestia demonstrada pelo diabo que Anchieta

criou mostrando que ele mesmo sendo o diabo entende a necessidade dos

gentios em descobrir e refazer seus mitos Havia o vislumbre de que a nova

proposta o novo mito pudesse atender agraves necessidades daqueles que teriam

conhecido um novo tipo de conforto uma nova seguranccedila perante as doenccedilas que

destruiacuteram tribos inteiras um novo alento para suas dificuldades enfrentadas em

suas vidas vividas

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de nossa anguacutestia

individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de um novo mito central vai

resolver o problema para o indiviacuteduo e para a sociedade 137

Vejamos este trecho do auto onde os diabos em conversa com Satildeo

Lourenccedilo tentam mostrar que satildeo apenas indiacutegenas no entanto a fala proposta

por Anchieta no texto perverte essa informaccedilatildeo

(Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar

antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

137 EDINGER 1999 11

132

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio

Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou

luminoso democircnio

Ou estaria dizendo em suas proacuteprias palavras e nas natildeo palavras

colocadas por Anchieta em sua boca de personagem sou iacutendio sou livre sou

aguerrido luto por minha tradiccedilatildeo

Mas Satildeo Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo continuam a tentar convencer

esses diabos de que eles foram criados a imagem e semelhanccedila dos brancos e

por isso tecircm que se tornarem tementes a Deus

Como afirmei anteriormente Deus eacute uma forma de explicarmos as

experiecircncias que temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e

transcendentais Ele eacute a superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos

aos deuses pois temos que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa

vida Mas os gentios possuiacuteam outro mundo outra sublimidade outra

transcendentalidade outras ideacuteias outras abstraccedilotildees A terra eacute a mesma mas

entendida de outra forma a morte eacute a mesma mas o conceito dessa passagem

eacute distinto o espiacuterito de cada ideacuteia eacute formado por concepccedilotildees diferentes da dos

portugueses

Vejamos novamente uma afirmaccedilatildeo de Gusdorf jaacute citada anteriormente

neste trabalho

133

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao ser toda

sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da comunidade pelo

viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem vivente a terra as coisas os

seres e ainda os mortos que continuam frequumlentando a morada de sua vida 138

Os deuses dos indiacutegenas eram por eles conhecidos podiam olhar e ver

o Sol a Lua as estrelas a noite a chuva o vento mas o Deus apresentado pelos

jesuiacutetas era um deus que natildeo se podia ver nem acreditar sem pensar El Dios

verdadero el Dios de la religioacuten cristiana fue siempre un Deus absconditus 139

um Deus escondido um Deus que necessita que se creia sem que se possa ver

Mas Anchieta na voz da personagem Satildeo Sebastiatildeo vecirc a existecircncia de

um povo e seu mito e tenta ainda mudar a concepccedilatildeo de Aimbirecirc impondo o mito

cristatildeo

(Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo

espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

138 GUSDORF1959 p 55-56 139 CASSIRER 1945 p113

134

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas

velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas

palavras amigas

Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute

De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba disso natildeo

os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa

Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos

jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa

Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de

comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas

avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos

aprisionando

135

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando

AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e aos viacutecios bem se

convertem agrave forccedila do nosso mando

Os diabos aqui retratados tentam usar de uma linguagem que permite

estruturar seu conhecimento sobre si e sobre seu povo uma linguagem que

pudesse ser capaz de transcrever sua realidade vivida mas que pertencesse a

seu proacuteprio conhecimento de mundo um mundo indiacutegena um mundo desenhado

pelo mito primordial e pela essecircncia de seu ser e de sua existecircncia humana que

se fixa atraveacutes de uma paisagem desenhada pelo grupo social a que pertence a

tribo de sua origem de seu nome e de sua identidade envolta por uma membrana

relacionada com a moral e com a espiritualidade de seu povo

Eacute atraveacutes do mito que o homem se relaciona com o outro pensa seus

deuses pensa sua vida e vive as relaccedilotildees do povo a que pertence Eacute pelo mito

que satildeo definidas as tarefas coletivas e individuais da comunidade na defesa na

guarda dos indiviacuteduos coletores ou caccediladores guerreiros ou agricultores

partilhando vivecircncias e vivenciando a cooperatividade

136

A cooperatividade e mutualidade servem para garantir o alimento a

cultura e a tradiccedilatildeo as quais tambeacutem alimentam tanto para si como para os que

do indiviacuteduo miacutetico dependem sendo a base psiacutequica para o ser em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal

Mas quer Anchieta que seus personagens entendam o inferno mas o

proacuteprio texto mostra que Aimbirecirc percebe que os brancos tambeacutem cultuam esse

inferno de alguma forma

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a

taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

Inferno um local subterracircneo habitado pelos mortos um lugar em que

as almas pecadoras se entram apoacutes a morte submetidas a penas eternas

Novamente o absconditus soacute que agora natildeo eacute mais Deus quem estaacute escondido e

sim o diabo isto eacute eles mesmos Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos os outros

mesmo que eles mesmos natildeo saibam disso

SAtildeO LOURENCcedilO

Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura

137

Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma

que o bem procura

Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai

abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados

passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios

renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou

eu abandonaacute-los

E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los

Tanto confiaram em mim construindo esta capela

plantando o bem sobre ela

Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso

138

Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs

daqui lhes darei sumiccedilo

Deles nem sombra vereis

Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas

tridentes e alegrar as nossas gentes

Jaacute aqui Anchieta propotildee que os diabos saibam bem quem satildeo qual

sua origem e qual seu destino Mas Guaixaraacute e seus companheiros natildeo tinham

essa concepccedilatildeo de origem e de destino do mito cristatildeo ou mesmo de profano e de

sagrado pois sagrado ou profano eacute tudo aquilo que se encontra sob os olhos do

homem no entanto no iacutendio real natildeo interpretado de um texto apologeacutetico natildeo

havia a clara noccedilatildeo de profano e sagrado nem de pecado pois isso natildeo estava

sob seus olhos existindo sim o tabu que cometido ou invadido natildeo tinha perdatildeo

e soacute poderia receber a morte diferente do pecado que por maior que fosse teria

como ser renegado e obtido o perdatildeo para que se siga em direccedilatildeo aos Ceacuteus

As diversas formas da realidade seguem-se agraves diversas formas que o

sagrado assume ao revelar-se Independentemente dos contrastes e das

oposiccedilotildees que integram o mundo do real sensiacutevel haacute uma coincidecircncia radical no

Ser e no Sagrado O divino garante estas oposiccedilotildees e diversidades

apresentando-se ele mesmo das mais diversas maneira 140

Enfim apoacutes o embate de mitos de um lado Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo e

do outro Aimbirecirc e Saravaia como sempre o considerado Bem vence o

140 CRIPPA 1975 p117

139

considerado Mal onde ateacute os franceses e castelhanos satildeo considerados aliados

do Diabo e nesse embate de mitos o branco portuguecircs cristatildeo e jesuiacuteta vence o

Curupira a Grande Matildee a Matildee dacuteaacutegua o Macuteboy-tataacute

O Anjo Fala com os santos convidando-os a cantar e se

despede)

Cantemos todos cantemos

Que foi derrotado o mal

Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa

alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima

repeticcedilatildeo da cantiga choram)

Conforme se pode perceber no texto que define o terceiro ato e muito

do texto a seguir os anjos de Deus comandam os diabos Aimbirecirc e Saravaia para

que atuem sob seu comando fazendo arder nos infernos outros que podem ser

considerados pecadores Deacutecio e Valeriano imperadores e que representam

possivelmente no auto de Satildeo Lourenccedilo outros chefes tribais que natildeo aceitaram a

pregaccedilatildeo

ANJO

Aimbirecirc

Estou chamando vocecirc

Apressa-te Corre Jaacute

140

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute

Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para

dar-te como presa

De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los

Que para o sol sejam cegos

Ide ao fogo cozinhaacute-los

Castiga com teus vassalos estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto

Sejam tais ordens cumpridas

Reunirei meus democircnios

Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que

temos planos medonhos

(Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana

Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Sus Caborecirc vecirc se te

inflama pra comer estes perus

141

(Acodem todos os quatro com suas armas)

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Anchieta nos mostra neste ponto que tambeacutem os diabos criam seus

conceitos de Bem e Mal a partir de semelhanccedilas tanto com Deus como com o

Diabo pois para aceitarem o mito que altera seus costumes que gera dentro

deles uma perda da consciecircncia de uma realidade transpessoal seus deuses as

anarquias interna e externa dos desejos pessoais rivais assumem o poder e como

os cristatildeos passam a criar deidades agrave sua imagem e semelhanccedila as quais criam

homens agrave suas imagens e semelhanccedilas

Mostra Anchieta quando fala dos romanos no texto do Auto que Deacutecio

e Valeriano satildeo adeptos a ideacuteias contraacuterias ao cristianismo satildeo guerreiros

conquistadores pagatildeos e portanto infieacuteis que deveratildeo ser castigados mas por

quem por aqueles considerados pelo mito cristatildeo iguais a estes isto eacute Aimbirecirc e

Saravaia e outros diabos que os enganaraacute os assaraacute os sangraraacute atendendo agraves

ordens dos anjos e dos santos catoacutelicos Neste momento do texto do auto de Satildeo

Lourenccedilo os diabos chamam de castelhanos os imperadores o que pode servir

para mostrar o juiacutezo que dos castelhanos (ou de sua liacutengua) faziam entatildeo os

lusitanos juiacutezo esse perfilhado mesmo por quem como Anchieta nascera em

terras de Espanha

142

Caos total na cultura indiacutegena O mito cristatildeo eacute imposto sobre a pureza

da indianidade

No quarto o Temor de Deus e o Amor de Deus mandam sua mensagem

de que os iacutendios (puacuteblico-alvo de Joseacute de Anchieta) devem amar e temer a Deus

que por eles tudo sacrificou Neste quarto ato novamente o sagrado cristatildeo

invade o espaccedilo sagrado do mito indiacutegena invade o espaccedilo miacutetico primitivo

substituindo o altar de sacrifiacutecios espaccedilo de magia do pajeacute vital para a

manutenccedilatildeo de seu pensamento e estrutura de sua psique pelo altar a Deus

como um marco de apenas uma existecircncia possiacutevel como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute um novo sentido pois ali natildeo moram mais seus

deuses natildeo moram seus mortos seus pensamentos e desejos e sim um mito

cristatildeo

Reafirma essa imposiccedilatildeo do sagrado cristatildeo sobre o sagrado

indiacutegenas no momento do quinto ato onde na danccedila final de doze meninos

invocando Satildeo Lourenccedilo afirmando em tupi os bons propoacutesitos de seguir os

ensinamentos cristatildeos O fim da apresentaccedilatildeo criava um clima propiacutecio para que o

puacuteblico em verdadeiro coro formulasse idecircnticos votos de viver segundo os

preceitos religiosos

Natildeo haacute mais por esse auto de Anchieta um espaccedilo sagrado onde o

indiacutegena pudesse realizar seus rituais suas suplicas seus sacrifiacutecios fazendo

com percam por completo e em definitivo o local onde suas forccedilas vitais pudessem

se encontrar se concentrar e os fazer existir como satildeo

143

Conforme Cripa141 quando novas simbologias satildeo inseridas no

processo de manifestaccedilatildeo do sagrado elas assumem uma dimensatildeo nova a

sacralidade manifestando um poder transcendente e incontrolaacutevel pelo homem

tornando ao final o indiacutegena em um arremedo de branco e portuguecircs confirmando

assim a profecia do pajeacute que dizia que o iacutendio se transformaria no branco e o

branco em iacutendio Isso natildeo aconteceu o indiacutegena se transformou em algo que

caminha sobre a terra

Com a queda do pano na boca de cena para Anchieta o iacutendio se

converteu Vejamos em que ele acreditava

falamos-lhe que o queriacuteamos batizar para que sua alma

natildeo se perdesse mas que por entatildeo natildeo podiacuteamos ensinar-lhe o que

era necessaacuterio por falta de tempo e que estivesse preparado para

quando voltaacutessemos Folgou ele tanto com esta notiacutecia como vinda

do Ceacuteu e teve-a tanto em memoacuteria que agora quando viemos e lhe

perguntamos se queria ser Cristatildeo respondeu com muita alegria que

sim e que jaacute desde entatildeo o estava esperando [] O que se lhe

imprimiu foi o misteacuterio da Ressurreiccedilatildeo que ele repetia muitas vezes

dizendo Deus verdadeiro eacute Jesus que saiu da sepultura e subiu ao

Ceacuteu e depois haacute de vir muito irado a queimar todas as cousas []

Chegando agrave porta da igreja o assentamos em uma cadeira onde

estavam jaacute seus padrinhos com outros cristatildeos a esperaacute-lo Aiacute lhe

tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria e ele

respondeu com grande fervor que queria ser batizado e que toda

aquela noite estivera pensando na ira de Deus que havia de ter para

141 CRIPPA 1975 p120

144

queimar todo o mundo e destruir todas as cousas e de como

haviacuteamos de ressuscitar todos142

142 ANCHIETA - Cartas- 1988 p 199 - Carta ao Geral Diogo Lainez de Satildeo Vicente a 16 de abril de 1563

145

CONCLUSAtildeO - O RESULTADO DO EMBATE DESSES MITOS NA EDUCACcedilAtildeO E NA CULTURA

BRASILEIRA

Noacutes brancos negros mesticcedilos e cristatildeos ou natildeo pudemos ter nesse

Brasil uma heranccedila que poderia ser considerada magna quer na liacutengua que

falamos quer nas artes nas danccedilas na culinaacuteria que a Cunhatilde matildee da famiacutelia

brasileira nos deixou diria com certeza Gilberto Freire Aprendemos e

incorporamos tantos e tantos itens dessa cultura maravilhosa que veio do

indiacutegena fomos educados pelas Cunhatildes

Mas desde Caminha sempre se repetem pela educaccedilatildeo formal

brasileira as maravilhas deste paiacutes desta terra como se eles os indiacutegenas nunca

tivessem existido esquecendo-se que transmissatildeo cultural eacute educaccedilatildeo

Poreacutem a terra em si eacute de muitos bons ares assim frios e

temperados como os de Entre-Doiro e Miacutenho porque neste tempo

de agora assim os achaacutevamos como os de laacute Aacuteguas satildeo muitas

infindas E em tal maneira eacute graciosa que querendo-a aproveitar dar-

se-aacute nela tudo por bem das aacuteguas que tem 143

143 CAMINHA 2000 p 12

146

Podemos observar no trecho acima que o Brasil eacute descrito como

mundo feacutertil de clima ameno vida promissora Esse relato eacute consequumlecircncia da

visatildeo medieval da natureza na qual a exuberacircncia eacute uma manifestaccedilatildeo divina

Nessa idealizaccedilatildeo cada visatildeo da terra eacute uma liccedilatildeo de Deus e tudo eacute associado

entatildeo ao Eacuteden ao Paraiacuteso Terrestre Discurso elaborado no periacuteodo de

conquista da terra e que se repete ao longo dos seacuteculos

Vejamos por exemplo um trecho proacuteprio do romantismo da Canccedilatildeo do

Exiacutelio de Gonccedilalves Dias (seacuteculo XIX)

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiaacute

As aves que aqui gorjeiam

Natildeo gorjeiam como laacute

Nosso ceacuteu tem mais estrelas

Nossas vaacuterzeas tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida mais amores

Ateacute mesmo canccedilotildees atuais cantam essa terra maravilhosa onde o

Eacuteden repousa como em Paiacutes Tropical de Jorge Ben Jor (seacuteculo XX)

Moro num paiacutes tropical

Abenccediloado por Deus

E bonito por natureza

Mas que beleza

Fevereiro tem carnaval

Tem carnaval

147

O Hino Nacional Brasileiro tambeacutem se rende ao mito do Paraiacuteso

Terrestre ser o Brasil

Se em teu formoso ceacuteu risonho e liacutempido

A imagem do Cruzeiro resplandece

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida no teu seio mais amores

Gigante pela proacutepria natureza

Es belo eacutes forte impaacutevido colosso

E o teu futuro espelha essa grandeza

Terra adorada

Entretanto haacute textos que subvertem ironicamente a histoacuteria oficial do

paiacutes apresentada na Carta de Caminha num processo de desconstruccedilatildeo desse

mito de que o Eacuteden eacute aqui Mostram um Brasil cheio de contrastes tal como este

fragmento da muacutesica Iacutendios do conjunto Legiatildeo Urbana (seacuteculo XXI)

Quem me dera ao menos uma vez

Ter de volta todo o ouro que entreguei

A quem conseguiu me convencer

Que era prova de amizade

Se algueacutem levasse embora ateacute o que eu natildeo tinha

Quem me dera ao menos uma vez

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que natildeo tem o bastante

148

E fala demais por natildeo ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez

Que o mais simples fosse visto como o mais importante

Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez

Entender como um soacute Deus ao mesmo tempo eacute trecircs

E esse mesmo Deus foi morto por vocecircs -

Eacute soacute maldade entatildeo deixar um Deus tatildeo triste

Quem me dera ao menos uma vez

Como a mais bela tribo dos mais belos iacutendios

Natildeo ser atacado por ser inocente

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Tentei chorar e natildeo consegui

Em sua carta aleacutem das primeiras imagens da terra e dos homens

Caminha ressalta que Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que

seraacute salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela

deve lanccedilar Mas o iacutendio apoacutes a conversatildeo apoacutes ter sido educado pelo branco

vestiu maacutescaras de cristandade maacutescaras de algueacutem com pele branca maacutescaras

de civilizaccedilatildeo europeacuteia marca indeleacutevel de sua condiccedilatildeo de escravo do

colonizador europeu quinhentista e seiscentista

O mito cristatildeo nesse embate derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e

todos os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano Elimina o mito de

149

Acircgacircmahsacircpu o Pai maior o mito dos Diroaacute e dos Koaacuteyea e todo o conhecimento

do mito indiacutegena

Entendo que todo o trabalho aqui apresentado eacute uma conclusatildeo de per

si e leva o leitor a uma compreensatildeo do embate de mitos e quem venceu Que

lado se tornou o Bem e que lado se tornou o Mal

Gostaria de encerrar esta proposta voltando a tradiccedilatildeo indiacutegena natildeo

considerada fonte histoacuterica mas real como real eacute ainda alguma sombra tecircnue do

mito indiacutegena trazendo a Histoacuteria de Umukomahsu144

os Desana ficaram divididos em vaacuteria malocas onde

viviam sossegados Trabalhavam e faziam grandes festas como a

festa de oferta de bens (poori) Na maloca do filho de Boreka tambeacutem

chamado Boreka havia um tipo de boneco de que ele era o dono

Chamava-se Gotildeatildemecirc (demiurgo) Ele morava dentro de uma grande

cuia de um metro de altura sustentada sobre um suporte de panela

Durante o dia ele se parecia como uma cobra venenosa Mas ele natildeo

mordia De noite no sonho ele tinha relaccedilatildeo sexual com a mulher de

Boreka Assim a mulher de Boreka contava para as outras mulheres

No sonho ele lhe aparecia como um padre agraves vezes como um

Branco Assim natildeo somente ele tinha vida como tambeacutem ele vivia no

sonho com algumas outras mulheres da maloca de Boreka Mas natildeo

com todas Escolhia a mulher com quem ia viver no sonho Ele natildeo

fazia isso com as solteiras somente com as mulheres que jaacute tinham

marido isto eacute que pertenciam a outra tribo Por isso quando nascia

uma crianccedila da mistura do secircmem de Gotildeatildemecirc e do marido jaacute se sabia

que quando crescesse ele seria inteligente saacutebio e adivinho Gotildeatildemecirc

144 LANA 1995 p58-59

150

tinha relaccedilatildeo sexual no sonho com cinco mulheres da maloca de

Boreka que tinham marido

Ele tinha um grande poder Protegia Boreka livrando-o de

todos os males e de todos os perigos que dele se aproximassem

Enquanto viviam deste modo chegaram os primeiros Brancos na

regiatildeo De acordo coma a histoacuteria do Brasil esses Brancos seriam os

bandeirantes Depois deles chegaram os Brancos que agarraram a

gente Eles cercavam a maloca de Boreka mas natildeo conseguiram

entrar nela Suas pernas ficaram moles Eles natildeo tinham mais forccedila

para andar Voltaram uma segunda vez cercaram a maloca e

aconteceu a mesma coisa Tornaram a voltar e sucedia o mesmo Por

isso eles perguntaram para os iacutendios de outras tribos porque eles

ficavam deste jeito quando tentavam entrar na maloca de Boreka Os

outros contaram que Boreka tinha na sua maloca um tipo de boneco

que o defendia Os Brancos perguntaram em qual lugar ele ficava

guardado Responderam que era bem no meio da porta do quarto de

Boreka A porta chamava-se Imikadihsi (porta dos Paris) Ele estava

sobre essa porta em cima de um suporte de cuia

Os Brancos ouviram tudo direito e foram outra vez para a

maloca de Boreka Quando chegaram a primeira coisa que fizeram foi

derrubar Gotildeatildemecirc com um tiro de espingarda Atiraram sem ver nada

porque sabiam onde ele se encontrava A casa de Gotildeatildemecirc isto eacute a

cuia ficou totalmente despedaccedilada mas ele subiu ao ceacuteu Os

Brancos cercaram entatildeo a maloca e agarraram Boreka O

descendente legiacutetimo da Gente de Transformaccedilatildeo foi assim preso

pelos Brancos O irmatildeo de Boreka conseguiu fugir e tomou o lugar

dele como chefe supremo dos Desana Boreka quando foi levado

pelos Brancos levou consigo a maior parte dos seus poderes Natildeo se

sabe para qual lugar os Brancos o levaram Talvez esteja na Bahia

no Rio de Janeiro ou no Portugal Isso ningueacutem sabe As riquezas

restantes ficaram todas para a sua geraccedilatildeo Elas estatildeo com os

descendentes de Boreka os Borekapotilderatilde Entre outras estatildeo os

pumuribuya os Enfeites de Transformaccedilatildeo e as outras coisas

tiradas da Maloca do Universo

151

APEcircNDICES

Senti durante este trabalho a necessidade de acrescentar estes

apecircndices com o intuito de levar ao leitor uma seacuterie de informaccedilotildees que natildeo

pertencem ao objeto de estudo e a proacutepria tese em si mas que colaboraram para

o entendimento de mito cristatildeo no sentido especialmente cultural e que puderam

influenciar na missatildeo de educaccedilatildeo e catequese jesuiacutetica ao indiacutegena brasileiro

Para tanto apresento a seguir o texto completo do Auto de S Lourenccedilo

e trecircs estudos por mim realizados em forma de apecircndices A missa e os

siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem O mito de Cristo e por fim

Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade

152

APEcircNDICE 1 O AUTO DE SAtildeO LOURENCcedilO JOSEacute DE ANCHIETA

PERSONAGENS

GUAIXARAacute - rei dos diabos AIMBIREcirc SARAVAIA - criados de Guaixaraacute TATAURANA URUBU JAGUARUCcedilU - companheiros dos diabos VALERIANO DEacuteCIO - Imperadores romanos SAtildeO SEBASTIAtildeO - padroeiro do Rio de Janeiro SAtildeO LOURENCcedilO - padroeiro da aldeia de Satildeo Lourenccedilo VELHA ANJO TEMOR DE DEUS AMOR DE DEUS CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA Apoacutes a cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute chama Aimbirecirc e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia Satildeo Lourenccedilo a defende Satildeo Sebastiatildeo prende os democircnios Um anjo manda-os sufocarem Deacutecio e Valeriano Quatro companheiros acorrem para auxiliar os democircnios Os imperadores recordam faccedilanhas quando Aimbirecirc se aproxima O calor que se desprende dele abrasa os imperadores que suplicam a morte O Anjo o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade contriccedilatildeo e confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Faz-se o enterro do santo Meninos iacutendios danccedilam

PRIMEIRO ATO (Cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo) Cantam

Por Jesus meu salvador Que morre por meus pecados Nestas brasas morro assado Com fogo do meu amor Bom Jesus quando te vejo Na cruz por mim flagelado

Eu por ti vivo e queimado Mil vezes morrer desejo Pois teu sangue redentor Lavou minha culpa humana Arda eu pois nesta chama Com fogo do teu amor

153

O fogo do forte amor Ah meu Deus com que me amas Mais me consome que as chamas E brasas com seu calor

Pois teu amor pelo meu Tais prodiacutegios consumou Que eu nas brasas onde estou Morro de amor pelo teu

SEGUNDO ATO (Eram trecircs diabos que querem destruir a aldeia com pecados aos quais resistem Satildeo Lourenccedilo Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo da Guarda livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes satildeo Guaixaraacute que eacute o rei Aimbirecirc e Saravaia seus criados)

GUAIXARAacute

Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira Quem a teria trazido com seus haacutebitos polidos estragando a terra inteira Soacute eu permaneccedilo nesta aldeia como chefe guardiatildeo Minha lei eacute a inspiraccedilatildeo que lhe dou daqui vou longe visitar outro torratildeo Quem eacute forte como eu Como eu conceituado Sou diabo bem assado A fama me precedeu Guaixaraacute sou chamado Meu sistema eacute o bem viver Que natildeo seja constrangido o prazer nem abolido Quero as tabas acender com meu fogo preferido Boa medida eacute beber cauim ateacute vomitar Isto eacute jeito de gozar a vida e se recomenda a quem queira aproveitar A moccedilada beberrona

trago bem conceituada Valente eacute quem se embriaga e todo o cauim entorna e agrave luta entatildeo se consagra Quem bom costume eacute bailar Adornar-se andar pintado tingir pernas empenado fumar e curandeirar andar de negro pintado Andar matando de fuacuteria amancebar-se comer um ao outro e ainda ser espiatildeo prender Tapuia desonesto a honra perder Para isso com os iacutendios convivi Vecircm os tais padres agora com regras fora de hora praacute que duvidem de mim Lei de Deus que natildeo vigora Pois aqui tem meu ajudante-mor diabo bem requeimado meu bom colaborador grande Aimberecirc perversor dos homens regimentado

(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele E ele a ajuda como fazem os iacutendios Depois de chorar achando-se enganada diz a velha)

154

VELHA

O diabo mal cheiroso teu mau cheiro me enfastia Se vivesse o meu esposo meu pobre Piracaecirc isso agora eu lhe diria Natildeo prestas eacutes mau diabo Que bebas natildeo deixarei do cauim que eu mastiguei Beberei tudo sozinha ateacute cair beberei (a velha foge)

GUAIXARAacute (Chama Aimberecirc e diz)

Ei por onde andavas tu Dormias noutro lugar

AIMBIREcirc

Fui as Tabas vigiar nas serras de norte a sul nosso povo visitar Ao me ver regozijaram bebemos dias inteiros Adornaram-se festeiros Me abraccedilaram me hospedaram das leis de deus estrangeiros Enfim confraternizamos Ao ver seu comportamento tranquumlilizei-me Oacute portento Viacutecios de todos os ramos tem seus coraccedilotildees por dentro

GUAIXARAacute

Por isso no teu grande reboliccedilo eu confio que me baste os novos que cativaste os que corrompeste ao viacutecio Diz os nomes que agregaste

155

AIMBIREcirc

Gente de maratuauatilde no que eu disse acreditaram os das ilhas nestas matildeos deram alma e coraccedilatildeo mais os paraibiguaras Eacute certo que algum perdi que os missionaacuterios levaram a Mangueaacute Me irritaram Raivo de ver os tupis que do meu laccedilo escaparam Depois dos muitos que nos ficaram os padres sonsos quiseram com mentiras seduzir Natildeo vecirc que os deixei seguir - ao meu apelo atenderam

GUAIXARAacute

De que recurso usaste para que natildeo nos fugissem

AIMBIREcirc

Trouxe aos tapuias os trastes das velhas que tu instruiacuteste em Mangueaacute Que isto baste Que elas satildeo de fato maacutes fazem feiticcedilo e mandinga e esta lei de Deus natildeo vinga Conosco eacute que buscam a paz no ensino de nossa liacutengua E os tapuias por folgarem nem quiseram vir aqui De danccedila os enlouqueci para a passagem comprarem para o inferno que acendi

GUAIXARAacute

Jaacute chega

156

Que tua fala me alegra teu relatoacuterio me encanta

AIMBIREcirc

Usarei de igual destreza para arrastar outras presas nesta guerra pouco santa O povo Tupinambaacute que em Paraguaccedilu morava e que de Deus se afastava deles hoje um soacute natildeo haacute todos a noacutes se entregaram Tomamos Moccedilupiroca Jequei Gualapitiba

Niteroacutei e Paraiacuteba Guajajoacute Carijoacute-oca Pacucaia Araccedilatiba Todos os tamoios foram Jazer queimando no inferno Mas haacute alguns que ao Padre Eterno fieacuteis nesta aldeia moram livres do nosso caderno Estes maus Temiminoacutes nosso trabalho destroem

GUAIXARAacute

Vem tentaacute-los que se moem a blasfemar contra noacutes Que bebam roubem e esfolem Que provoquem muitas lutas muitos pecados cometam por outro lados se metam longe desta aldeia agrave escuta dos que as nossas leis prometam

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me amedronta

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

157

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos noacutes

AIMBIREcirc

Esse

GUAIXARAacute

Fica descansado Natildeo sou assim tatildeo covarde seraacute logo afugentado Aqui estaacute quem o queimou e ainda vivo o cozeu

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

GUAIXARAacute

O que eu deixei transpassado Natildeo faccedilas broma comigo que sou bem desaforado Ambos fugiratildeo logo aqui me virem chegar

AIMBIREcirc

Olha que vais te enganar

GUAIXARAacute

158

Tem confianccedila te rogo que horror lhes vou inspirar Quem como eu nas terras existe que ateacute Deus desafiou

AIMBIREcirc

Por isso Deus te expulsou e do inferno o fogo triste para sempre te abrasou Eu lembro de outra batalha em que Guaixaraacute entrou Muito povo te apoiou e inda que lhes desses forccedilas na fuga se debandou Natildeo eram muitos cristatildeos Contudo nada ficou da forccedila que te inspirou pois veio Sebastiatildeo na forccedila fogo ateou

GUAIXARAacute

Por certo aqueles cristatildeos tatildeo rebeldes natildeo seriam Mas esses que aqui estatildeo desprezam a devoccedilatildeo e a Deus natildeo reverenciam Vais ver como em nossos laccedilos caem logo estes malvados De nossos dons confiados as almas cederam passo para andar do nosso lado

AIMBIREcirc

Assim mesmo tentarei Um dia obedeceratildeo

GUAIXARAacute

Ao sinal de minha matildeo os iacutendios te entregarei

159

E agrave forccedila sucumbiratildeo

AIMBIREcirc

Preparemos a emboscada Natildeo te afobes Nosso espia veraacute em cada morada que armas nos satildeo preparadas na luta que se inicia

GUAIXARAacute

Muito bem eacutes capaz disso Saravaia meu vigia

SARAVAIA

Sou democircnio da alegria e assumi tal compromisso Vou longe nesta porfia Saravaiaccedilu me chamo Com que tarefa me aprazas

GUAIXARAacute

Ouve as ordens de teu amo quero que espies as casas e voltes quando te chame Hoje vou deixar que leves os iacutendios aprisionados

SARAVAIA

Irei onde me carregues E agradeccedilo que me entregues encargo tatildeo desejado Como Saravaia sou aos iacutendios que me aliei enfim aprisionarei E neste barco me vou De cauim me embriagarei

160

GUAIXARAacute

Anda logo vai ligeiro

SARAVAIA

Como um raio correrei (Sai)

GUAIXARAacute (Passeia com Aimbirecirc e diz)

Demos um curto passeio Quando volte o mensageiro a aldeia destroccedilarei (Volta Saravaia e Aimberecirc diz)

AIMBIREcirc

Danado Voltou voando

GUAIXARAacute

Demorou menos que um raio Foste mesmo Saravaia

SARAVAIA

Fui Jaacute estatildeo comemorando os iacutendios nossa vitoacuteria Alegra-te Transbordava o cauim o prazer regurgitava E a beber as igaccedilabas esgotam ateacute o fim

GUAIXARAacute

E era forte

161

SARAVAIA

Forte estava E os rapazes beberrotildees que pervertem esta aldeia caiam de cara cheia Velhos velhas mocetotildees que o cauim desnorteia

GUAIXARAacute

Jaacute basta Vamos mansinho tomaacute-los todos de assalto Nosso fogo arda bem alto (Vem Satildeo Lourenccedilo com dois companheiros Diz Aimbirecirc)

AIMBIREcirc

Haacute um sujeito no caminho que me ameaccedila de assalto Seraacute Lourenccedilo o queimado

SARAVAIA

Ele mesmo e Sebastiatildeo

AIMBIREcirc

E o outro dos trecircs que satildeo

SARAVAIA

Talvez seja o anjo mandado desta aldeia o guardiatildeo

AIMBIREcirc

Ai Eles me esmagaratildeo Natildeo posso sequer olhaacute-los

162

GUAIXARAacute

Natildeo te entregues assim natildeo ao ataque meu irmatildeo Teremos que amedrontaacute-los As flechas evitaremos fingiremos de atingidos

AIMBIREcirc

Olha eles vecircm decididos a accediloitar-nos Que faremos Penso que estamos perdidos (Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou luminosos democircnio

163

SAtildeO LOURENCcedilO

Dizei-me o que quereis desta minha terra em que nos vemos

GUAIXARAacute

Amando os iacutendios queremos que obediecircncia nos prestem por tanto que lhes fazemos Pois se as coisas satildeo da gente ama-se sinceramente

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Quem foi que insensatamente um dia ou presentemente os iacutendios vos entregou Se o proacuteprio Deus tatildeo potente deste povo em santo ofiacutecio corpo e alma modelou

GUAIXARAacute

Deus Talvez remotamente pois eacute nada edificante a vida que resultou Satildeo pecadores perfeitos repelem o amor de Deus e orgulham-se dos defeitos

AIMBIREcirc Bebem cuim a seu jeito como completos sandeus ao cauim rendem seu preito Esse cauim eacute que tolhe sua graccedila espiritual Perdidos no bacanal seus espiacuteritos se encolhem em nosso laccedilo fatal

164

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo se esforccedilam por orar na luta do dia a dia Isto eacute fraqueza de certo

AIMBIREcirc

Sua boca respira perto do pouco que Deus confia

SARAVAIA

Eacute verdade intimamente resmungam desafiando ao Deus que os estaacute guiando Dizem Seraacute realmente capaz de me ver passando

SAtildeO SEBASTIAtildeO (Para Saravaia)

Seraacutes tu um pobre rato Ou eacutes um gambaacute nojento Ou eacutes a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os iacutendios no mato

SARAVAIA

No anseio de devorar as almas sequer dormi

GUAIXARAacute

Cala-te Fale eu por ti

SARAVAIA

Natildeo vaacutes me denominar pra que natildeo me mate aqui Esconda-me antes dele

165

Eu por ti vigiarei

GUAIXARAacute

Cala-te Te guardarei Que a liacutengua natildeo te revele depois te libertarei

SARAVAIA

Se natildeo me viu safarei Inda posso me esconder

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Cuidado que lanccedilarei o dardo em que o flecharei

GUAIXARAacute

Deixa-o Vem de adormecer

SAtildeO SEBASTIAtildeO

A noite ele natildeo dormiu para os iacutendios perturbar

SARAVAIA

Isso natildeo se haacute de negar (Accediloita-o Guaixaraacute e diz)

GUAIXARAacute

Cala-te Nem mais um pio que ele quer te devorar

SARAVAIA

166

Ai de mim Por que me bates assim pois estou bem escondido (Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas palavras amigas Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba

167

disso natildeo os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos aprisionando

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e ao viacutecios bem se convertem agrave forccedila do nosso mando

GUAIXARAacute

Eu que te ajude a explicar As velhas como serpentes injuriam-se entre dentes maldizendo sem cessar

168

As que mais calam consentem Pecam as inconsequumlentes com intrigas bem tecidas preparam negras bebidas pra serem belas e ardentes no amor na cama e na vida

AIMBIREcirc

E os rapazes cobiccedilosos perseguindo o mulherio para escravas do gentio Assim invadem fogosos dos brancos o casario

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

SAtildeO LOURENCcedilO Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma que o bem procura Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

169

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou eu abandonaacute-los E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los Tanto confiaram em mim construindo esta capela plantando o bem sobre ela Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs daqui lhes darei sumiccedilo Deles nem sombra vereis Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas tridentes e alegrar as nossas gentes

AIMBIREcirc

170

Aqui vou com minhas garras meus longos dedos meus dentes

ANJO

Natildeo julgueis tolos dementes por no fogo esta legiatildeo Aqui estou com Sebastiatildeo e Satildeo Lourenccedilo natildeo tentem levaacute-los agrave danaccedilatildeo Pobres de voacutes que irritastes

de tal forma o bom Jesus Juro que em nome da cruz ao fogo vos condenastes (Aos santos) Prendei-os donos da luz (Os santos prendem os dois diabos)

GUAIXARAacute

Basta

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo Teu cinismo me agasta Destes provas que sobejam de querer destruir a igreja SAtildeO SEBASTIAtildeO (A Aimberecirc)

Grita Lamenta Te arrasta Te prendi

AIMBIREcirc

Maldito Seja (Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido)

ANJO

E tu que estaacute escondido seraacute acaso um morcego Sapo cururu minguaacute ou filhote de gambaacute ou bruxa pedindo arrego Sai daiacute seu fedorendo

171

abelha de asa de vento zorrilho maritaca seu lesma tamarutaca

SARAVAIA

Ai vida que me aprisionam Natildeo vecircs que morro de sono

ANJO

Quem eacutes tu

SARAVAIA

Sou Saravaia Inimigo dos franceses

ANJO

Teus tiacutetulos satildeo soacute estes SARAVAIA

Sou tambeacutem mestre em tocaia porco entre todas as reses

ANJO

Por isso eacutes sujo e enlameias tudo com teu negro rabo Veremos como pateias no fogo que a gente ateia

SARAVAIA

Natildeo Por todos os diabos Eu te dou ovas de peixe farinha de mandioca desde que agora me deixas te dou dinheiro aos feixes

172

ANJO

Natildeo te entendo maccedilaroca As coisas que me prometes em troca de onde roubaste Que morada assaltaste antes que aqui te escondeste Muito coisa tu furtaste

SARAVAIA

Natildeo somente o que falei Da casa dos bons cristatildeos foi bem pouco o que apanhei Tenho o que trago nas matildeos por muito que trabalhei Aqueles outros tecircm mais Para comprar cauim aos iacutendios em boa paz dei o que tinha e demais pois pobre acabei assim

ANJO

Vamos Restitui-lhes tudo o que tiveres roubado

SARAVAIA

Natildeo faccedilas isto estou becircbedo mais do que o demo rabudo da sogra do meu cunhado Tem paciecircncia me perdoa meu irmatildeo estou doente Das minhas almas presente farei a ti praacute que em boa hora as cucas lhes rebentes Leva o nome destes monstros e famoso ficaraacutes

173

ANJO

E onde lhes foste ao encontro

SARAVAIA

Fui pelo sertatildeo a dentro lacei as almas rapaz

ANJO

De que famiacutelias descendem

SARAVAIA

Desse assunto pouco sei Filhos de iacutendios talvez Na corda os enfileirei presos todos de uma vez Passei noites sem dormir nos seus lares espreitei fiz suas casas explodir suas mulheres lacei pra que natildeo possam fugir (Amarra-o o anjo e diz)

ANJO

Quantas maldades fizeste Por isso o fogo te espera Viveraacutes do que tramaste nesta abrasada tapera em que pro fim te pilhaste

SARAVAIA

Aimberecirc

AIMBIREcirc

Oi

174

SARAVAIA

Vem logo dar-me a matildeo Este louco me prendeu

AIMBIREcirc

A mim tambeacutem me venceu o flechado Sebastiatildeo Meu orgulho arrefeceu

SARAVAIA

Ai de mim Guaixaraacute dormes assim sem pensar em me salvar

GUAIXARAacute Estaacutes louco Saravaia Natildeo vecircs que Lourenccedilo ensaia maneira de me queimar

ANJO

Bem junto pois sois comparsas ardereis eternamente Enquanto noacutes Deo Gratias sob a luz da minha guarda viveremos santamente (Faz uma praacutetica aos ouvintes) Alegrai-vos filhos meus na santa graccedila de Deus pois que dos ceacuteus eu desci para junto a voacutes estar e sempre vos amparar dos males que haacute por aqui Iluminado esta aldeia junto de voacutes estarei por nada me afastarei - pois a isto me nomeia Deus Nosso Senhor e Rei

Ele que a cada um de voacutes um anjo seu destinou Que natildeo vos deixe mais soacutes e ao mando de sua voz os democircnios expulsou Tambeacutem Satildeo Lourenccedilo o virtuoso Servo de Nosso Senhor vos livra com muito amor terras e almas extremoso do democircnio enganador Tambeacutem Satildeo Sebastiatildeo valente santo soldado que aos tamoios rebelados deu outrora uma liccedilatildeo hoje estaacute do vosso lado E mais - Paranapucu

175

Jacutinga Moroacutei Sarigueacuteia Guiriri Pindoba Pariguaccedilu Curuccedila Miapei E a tapera do pecado a de Jabebiracica natildeo existe E lado a lado a naccedilatildeo dos derrotados no fundo do rio fica Os franceses seus amigos inutilmente trouxeram armas Por noacutes combateram Lourenccedilo jamais vencido e Satildeo Sebastiatildeo flecheiro Estes santos em verdade das almas se compadecem aparando-as desvanecem (Oacute armas da caridade) Do viacutecio que as envilece Quando o democircnio ameaccedilar vossas almas voacutes vereis com que forccedila hatildeo de zelar Santos e iacutendios sereis pessoas de um mesmo lar Tentai velhos viacutecios extirpar e as maldades caacute da terra evitai bebida e guerra adulteacuterio repudiai tudo o que o instinto encerra Amai vosso Criador cuja lei pura e isenta

Satildeo Lourenccedilo representa Engrandecei ao Senhor que de bens vos acrescenta Este mesmo Satildeo Lourenccedilo que aqui foi queimado vivo pelos maus feito cativo e ao martiacuterio foi infenso sendo o feliz redivivo Fazei-vos amar por ele e amai-o quanto puderdes que em sua lei nada se perde E confiando mais nele mais o ceacuteu se vos concede Vinde agrave direita celestial de Deus Pai ireis gozar junto aos que bem vatildeo guardar no coraccedilatildeo que eacute leal e aos peacutes de Deus repousar

(Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede)

Cantemos todos cantemos Que foi derrotado o mal Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima repeticcedilatildeo da cantiga choram)

CANTIGA

Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado (Voltam os santos)

Alegrai-vos vivei bem vitoriosos do viacutecio aceitai o sacrifiacutecio que ao amor de Deus conveacutem Daiacute fuga ao Demo-ningueacutem Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado

176

TERCEIRO ATO Depois de Satildeo Lourenccedilo morto na grelha o Anjo fica em sua guarda e chama os dois diabos Aimbirecirc e Saravaia que venham sufocar os imperadores Deacutecio e Valeriano que estatildeo sentados em seus tronos

ANJO

Aimbirecirc Estou chamando vocecirc Apressa-te Corre Jaacute

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para dar-te como presa De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

AIMBIREcirc

Boa Me fazes contente Agrave forccedila os castigarei e no fogo os queimarei como diabo eficiente Meu oacutedio satisfarei

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los Que para o sol sejam cegos Ide ao fogo cozinhaacute-los Castiga com teus vassalos

177

estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto Sejam tais ordens cumpridas Reunirei meus democircnios Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que temos planos medonhos

SARAVAIA

Jaacute de nego me pintei oacute meu avocirc jaguaruna e o cauim preparei veraacutes como beberei nesta festa da fortuna Que vejo Um temiminoacute Ou filho de guaianaacute Seraacute esse um guaitacaacute que agrave mesa do jacareacute sozinho vou devorar

(Vecirc o Anjo e espanta-se)

E este paacutessaro azulatildeo quem seraacute que assim me encara Algum parente de arara

AIMBIREcirc

Eacute o anjo que em nossa matildeo potildee duas presas bem raras

SARAVAIA

Meus capangas atenccedilatildeo Tataurana Tamanduaacute vamos com calma por laacute que esses monstros quereratildeo

178

por certo me afogar

AIMBIREcirc

Vamos

SARAVAIA

Ai os mosquitos me mordem Espera ou me comeratildeo Tenho medo quem me acode Sou pequenino e eles podem tragar-me de supetatildeo

AIMBIREcirc

Os iacutendios que natildeo se fiam nesta conversa e se escondem se os mandam executar

SARAVAIA

Tecircm razatildeo se desconfiam vivem sempre a se lograr

AIMBIREcirc

Cala a boca beberratildeo soacute por isso eacutes tatildeo valente moleiratildeo impertinente

SARAVAIA

Ai de mim me prenderatildeo mas vou por te ver contente E a quem vamos devorar

AIMBIREcirc

179

A algozes de Satildeo Lourenccedilo

SARAVAIA

Aqueles cheios de ranccedilo Com isto eu vou mudar meu nome de que me canso Muito bem Suas entranhas sejam hoje o meu quinhatildeo

AIMBIREcirc

Vou morder seu coraccedilatildeo

SARAVAIA

E os que natildeo nos acompanham sua parte comeratildeo (Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Suacutes Caborecirc vecirc se te inflama pra comer estes perus (Acodem todos os quatro com suas armas)

TATAURANA

Aqui estou com a muccedilurana e os braccedilos lhe comerei A Jaguaraccedilu darei o lombo a Urubu o cracircnio e as pernas a Caborecirc URUBU Aqui cheguei As tripas recolherei e com os bofes terei a panela a derramar E esta panela verei

180

minha sogra cozinhar

JAGUARUCcedilU

Com esta ingapema dura as cabeccedilas quebrarei e os miolos comerei Sou guaraacute onccedila criatura e antropoacutefago serei

CABOREcirc

E eu que em demandas andei aos franceses derrotando para um bom nome ir logrando agora contigo irei estes chefes devorando

SARAVAIA

Agora quietos De rastros natildeo nos viram Vou agrave frente Que natildeo escapem da gente Vigiarei No tempo exato ataquemos de repente

(Vatildeo todos agachados em direccedilatildeo a Deacutecio e Valeriano que conversam)

DEacuteCIO

Amigo Valeriano minha vontade venceu Natildeo houve arte no ceacuteu que livrasse do meu plano o servo do Galileu Nem Pompeu e nem Catatildeo nem Cesar nem o Africano nenhum grego nem troiano puderam dar conclusatildeo a um feito tatildeo soberano

181

VALERIANO

O remate gratildeo-Senhor desta tatildeo grande faccedilanha foi mais que vencer Espanha Jamais rei ou imperador logrou coisa tatildeo estranha Mas Senhor esse quem eacute que vejo ali tatildeo armado com espadas e cordel e com gente de tropel vindo tatildeo acompanhado

DEacuteCIO

Eacute o grande deus nosso amigo Juacutepiter sumo senhor que provou grande sabor com o tremendo castigo da morte deste traidor E quer para reforccedilar as penas deste rufiatildeo nosso impeacuterio acrescentar com sua potente matildeo pela terra e pelo mar

VALERIANO

Mais me parece eacute que vem a seus tormentos vingar e a noacutes ambos enforcar Oh que cara feia tem Comeccedilo a me apavorar

DEacuteCIO

Enforcar Quem a mim pode matar ou mover meus fundamentos Nem a exaltaccedilatildeo dos ventos Nem a braveza do mar nem todos os elementos

182

Natildeo temas que meu poder o que os deuses imortais me quiseram conceder natildeo se poderaacute vencer pois natildeo haacute forccedilas iguais De meu cetro imperial pendem reis tremem tiranos Venccedilo a todos os humanos e posso ser quase igual a esses deuses soberanos

VALERIANO

Oh que terriacutevel figura Natildeo posso mais aguardar que jaacute me sinto queimar Vamos que eacute grande loucura tal encontro aqui esperar Ai ai que grandes calores Natildeo tenho nenhum sossego Ai que poderosas dores Ai que feacutervidos ardores que me abrasam como fogo

DEacuteCIO

Oh paixatildeo Ai de mim que eacute o Plutatildeo chegando pelo Aqueronte ardendo como ticcedilatildeo a levar-nos de roldatildeo ao fogo do Flegetonte Oh coitado que me queimo Esse queimado me queima com grande dor

Oh infeliz imperador Todo me vejo cercado de penas e de pavor pois armado o diabo com seu dardo mais as fuacuterias infernais vecircm castigar-nos demais Jaacute nem sei o que hei falado com anguacutestias tatildeo mortais

VALERIANO

O Deacutecio cruel tirano Jaacute pagas e pagaraacute Contigo Valeriano porque Lourenccedilo cristatildeo assado nos assaraacute

183

AIMBIREcirc

Ocirc Castelhano Bom Castelhano parece Estou bem alegre mano que Espanhol seja o profano que no meu fogo padece Vou fingir-me castelhano e usar de diplomacia com Deacutecio e Valeriano porque o espanhol ufano sempre guarda a cortesia Oh mais alta majestade Beijo-vos a matildeo mil vezes por vossa gratilde-crueldade

pois justiccedila nem verdade guardastes sendo juizes Sou mandado por Satildeo Lourenccedilo queimado levaacute-los agrave minha casa onde seja confirmado vosso imperial estado em fogo que sempre abrasa Oh que tronos e que camas eu vos tenho preparadas nessas escuras moradas de vivas e eternas chamas de nunca ser apagadas

VALERIANO

Ai de mim

AIMBIREcirc

Vieste do Paraguai Que falais em Carijoacute Sei todas liacutenguas de cor Avanccedila aqui Saravaia Usa tu golpe maior

VALERIANO

Basta Que assim me assassinas natildeo tenho pecado nada Meu chefe eacute a presa acertada

SARAVAIA

Natildeo eacutes tu que me fascinas oacute presa bem cobiccedilada

184

DEacuteCIO

Oacute miseraacutevel de mim que nem basta ser tirano nem falar em castelhano Que eacute do mando em que me vi e o meu poder soberano

AIMBIREcirc

Jesus Deus grande e potente que tu traidor perseguiste te daraacute sorte mais triste entregando-te em meu dente a que malvado serviste Pois me honraste e sempre me contentaste ofendendo ao Deus eterno

Eacute justo pois que no inferno palaacutecio que tanto amaste natildeo sintas o mal do inverno Porque o oacutedio inveterado do teu duro coraccedilatildeo natildeo pode ser abrandado se natildeo for jaacute martelado com a aacutegua do Flegeton

DEacuteCIO

Olha que consolaccedilatildeo para quem se estaacute queimando Sumos deuses para quando adiais minha salvaccedilatildeo que vivo estou me abrasando Ai ai Que mortal desmaio Esculaacutepio natildeo me acodes Oh Juacutepiter porque dormes Que eacute do vosso raio Por que eacute que natildeo me socorres

AIMBIREcirc

Que dizeis De que mal voacutes padeceis Que pulso mais alterado Eacute grande dor de costado este mal que morreis Haveis de ser bem sangrado Haacute dias que esta sangria se guardava para voacutes

que sangraacuteveis noite e dia com dedicada porfia aos santos servos de Deus Muito desejo eu beber vosso sangue imperial Oh natildeo me leveis a mal que com isso quero ser homem de sangue real

DEacuteCIO

Que dizeis Que disparate e elegante desvario Joguem-me dentro de um rio antes que o fogo me mate oacute deuses em que confio Natildeo quereis socorrer-me ou natildeo podeis Oacute malditos fementidos

ingratos desconhecidos que pouco vos condoeis de quem fostes tatildeo servidos Se agora voar pudesse vos iria derrocar dos vossos tronos celestes feliz se a mim me coubesse no fogo vos projetar

AIMBIREcirc

Parece-me que eacute chegada a hora do frenesi e com chama redobrada a qual seraacute descuidada dos deuses a quem servis Satildeo armas dos audazes cavaleiros que usam palavroacuterio humano E por isso tatildeo ufano hoje vindes acolhecirc-los no romance castelhano

SARAVAIA

Assim eacute Pensava dar de reveacutes golpes de afiados accedilos mas enfim nossos balaccedilos se chocaram atraveacutes com bem poucos canhonaccedilos Mas que boas bofetadas lhes reservo para dar Os tristes sem descansar agrave forccedila de tais pauladas com catildees hatildeo de ladrar

186

VALERIANO

Que ferida Tira-me logo esta vida pois minha alta condiccedilatildeo contra justiccedila e razatildeo veio a ser tatildeo abatida que morro como ladratildeo

SARAVAIA

Natildeo eacute outro o galardatildeo que concedo aos meus criados senatildeo morrer enforcados e depois sem remissatildeo ao fogo ser condenados

DEacuteCIO

Essa eacute a pena redobrada que me causa maior dor que eu universal senhor morra morte desonrada na forca como traidor Ainda se fosse lutando dando golpes e reveses pernas e braccedilos cortando como fiz com os franceses acabaria triunfando

AIMBIREcirc

Parece que estais lembrando poderoso imperador quando com bravo furor matastes traiccedilatildeo armando Felipe vosso senhor Por certo que me alegrais e se cumpre meus anseios ante desabafos tais porque o fogo em que queimais provoca tais devaneios

187

DEacuteCIO

Bem entendo que este fogo em que me acendo merece-me a tirania pois com tatildeo feroz porfia aos cristatildeos martirizando pelo fogo os consumia Mas que em minha monarquia acabe com tal pregatildeo pois morrer como ladratildeo eacute muito triste agonia e dobrada confusatildeo

AIMBIREcirc

Como Pedis confissatildeo Sem asas quereis voar Ide se quereis achar aos vossos atos perdatildeo agrave deusa Pala rogar Ou a Nero esse cruel carniceiro do fiel povo cristatildeo Aqui estaacute Valeriano vosso leal companheiro buscai-o por sua matildeo

DEacuteCIO

Esses amargos chistes e agressotildees me acrescentam em paixotildees e mais dores com tatildeo profundos ardores como de ardentes ticcedilotildees E com isto crescem mais os fogos em que padeccedilo Acaba que me ofereccedilo em tuas matildeos Satanaacutes ao tormento que mereccedilo

188

AIMBIREcirc

Oh quanto vos agradeccedilo por esta boa vontade Eu com liberalidade quero dar-lhe bom refresco para vossa enfermidade Na cova onde o fogo se renova com ardores perenais os vossos males fatais aiacute teratildeo grande prova das agruras imortais

DEacuteCIO

Que fazer Valeriano bom amigo Testemunharaacutes comigo desta pena envolvido na cadeia de fogo deste castigo

VALERIANO

Em maacute hora Jaacute satildeo horas Vamos logo deste fogo ao outro fogo eternal laacute onde a chama imortal nunca nos daraacute sossego Suacutes asinha Vamos agrave nossa cozinha Saravaia

AIMBIREcirc

Aqui deles natildeo me afasto Nas brasas seratildeo bom pasto maldito quem nelas caia

DEacuteCIO

Aqui abrasado estou

189

Assa-me Lourenccedilo assado De soberano que sou vejo que Deus me marcou por ver seu santo vingado

AIMBIREcirc

Com efeito quiseste abrasar a jeito o virtuosos Satildeo Lourenccedilo Hoje te castigo e venccedilo e sobre as brasas te deito para morrer segundo penso (Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins e cada dois levam o seu)

Vinde aqui e aos malditos conduzi para em bom queimarem seus corpos sujos tostarem na festa em que os seduzi para cozidos bailarem

(Ficam ambos os democircnios no terreiros com as coroas dos imperadores na cabeccedila)

SARAVAIA

Sou o grande vencedor o que as maacutes cabeccedilas quebra sou um chefe de valor e hoje me decido por me chamar Cururupeba Como eles mato os que estatildeo em pecado e os arrasto em minhas chamas Velhos moccedilos jovens damas tenho sempre devorado De bom algoz tenho fama

QUARTO ATO Tendo o corpo de Satildeo Lourenccedilo amortalhado e posto na tumba entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus a encerrar a obra e no fim acompanham o santo agrave sepultura

190

ANJO

Vendo nosso Deus benigno vossa grande devoccedilatildeo que tendes e com razatildeo a Lourenccedilo o maacutertir digno de toda a veneraccedilatildeo determinam por seus rogos e martiacuterio singular a todos sempre ajudar para que escapeis dos fogos em que os maus se hatildeo de queimar Dois fogos trazia nalma com que as brasas resfriou a no fogo em que se assou com tatildeo gloriosa palma dos tiranos triunfou Um fogo foi o temor do bravo fogo infernal e como servo leal por honrar a seu Senhor fugiu da culpa mortal

Outro foi o Amor fervente de Jesus que tanto amava que muito mais se abrasava com esse fervor ardente que coo fogo em que se assava Estes o fizeram forte Com estes purificado como ouro refinado padeceu tatildeo crua morte por Jesus seu doce amado Estes vos manda o Senhor a ganhar vossa frieza para que vossa alma acesa de seu fogo gastador fique cheio de pureza Deixai-vos deles queimar como o maacutertir Satildeo Lourenccedilo e sereis um vivo incenso que sempre haveis de cheirar na corte de Deus imenso

TEMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Pecador sorves com grande sabor o pecado e natildeo ficas afogado com teus males E tuas chagas mortais natildeo sentes desventurado O inferno como seu fogo sempiterno Jaacute te espera se natildeo segues a bandeira

da cruz sobre a qual morreu Jesus para que tua morte morra Deus te envia esta mensagem com amor a mim que sou seu Temor me conveacutem declarar o que conteacutem para que temas ao Senhor

(Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Espantado estou de ver pecador teu vatildeo sossego Com tais males a fazer como vives sem temer aquele espantoso fogo Fogo que nunca descansa mas sempre provoca a dor e com seu bravo furor

dissipa toda a esperanccedila ao maldito pecador Pecador como te entregas tatildeo sem freio ao viacutecio extremo Dos viacutecios de que estaacutes cheios engolindo tatildeo agraves cegas a culpa com seu veneno

Veneno de maldiccedilatildeo tragas sem nenhum temor e sem sentir sua dor deleites da carnaccedilatildeo sorves com grande sabor Seraacute o sabor do pecado muito mais doce que o mel mas o inferno cruel depois te daraacute um bocado bem mais amargo que o fel Fel beberaacutes sem medida pecador desatinado tua alma em chamas ardida Esta seraacute a saiacuteda do deleite do pecado Do pecado que tu amas Lourenccedilo tanto escapou que mil penas suportou e queimado pelas chamas por natildeo pecar expirou Ele a morte natildeo temeu Tu natildeo temes o pecado no qual te tem enforcado Lucifer que te afogou

e natildeo ficas afogado Afogado pela matildeo do Diabo pereceu Deacutecio com Valeriano infiel cruel tirano no fogo que mereceu Tua feacute merece a vida mas com pecados mortais quase a tiveste perdida e teu Deus bem sem medida ofendeste com teus males Com teus males e pecados tua alma de Deus alheia da danaccedilatildeo na cadeia haacute de pagar com os danados a culpa que a incendeia Pena sem fim te daratildeo dentre os fogos infernais teus deleites sensuais Teus tormentos dobraratildeo e tuas chagas mortais Que mortais satildeo tuas feridas pecador Porque natildeo choras

Natildeo vecircs que nestas demoras estatildeo todas corrompidas a cada dia pioras Pioras e te confinas mas teu perigoso estado na pressa e grande cuidado com que ao fogo te destinas natildeo sentes desventurado Oh descuido intoleraacutevel de tua vida Tua alma estaacute confundida

no lodo e tu vais rindo de tudo natildeo sentes tua caiacuteda Oh traidor Que negas teu Criador Deus eterno que se fez menino terno por salvar-te E tu queres condenar-te e natildeo temes ao inferno

Ah insensiacutevel Natildeo calculas o terriacutevel espanto que causaraacute o juiz quando viraacute com carranca muito horriacutevel e agrave morte te entregaraacute

E tua alma seraacute sepultada em pleno inferno onde morte natildeo teraacute mas viva se queimaraacute com seu fogo sempre eterno

Oh perdido Ali seraacutes consumido sem nunca te consumir Teraacutes vida sem viver com choro e grande gemido teraacutes morte sem morrer Pranto seraacute teu sorrir sede sem fim te abeberra fome que em comer se gera teu sono nunca dormir tudo isto jaacute te espera Oh morfio Pois tu veras de continuo ao horrendo Lucifer sem nunca chegar a ver aquele molde divino de quem tiras todo o ser Acaba jaacute de temer a Deus que sempre te espera correndo por sua esteira pois natildeo lhes vai pertencer se natildeo lhe segues a bandeira Homem louco Se teu coraccedilatildeo jaacute toco mudar-se-atildeo alegrias em tristezas e agonias Olha que te falta pouco

para fenecer teus dias Natildeo peques mais contra Aquele que te ganhou vida e luz com seu martiacuterio cruel bebendo vinagre e fel no extremo lenho a cruz Oh malvado Ele foi crucificado sendo Deus por te salvar Pois que podes esperar se foste tu o culpado e natildeo cessas de pecar Tu o ofendes ele te ama Cegou-se por dar-te a luz Tu eacutes mau pisas a cruz sobre a qual morreu Jesus Homem cego porque natildeo comeccedilas logo a chorar por teu pecado E tomar por advogado a Lourenccedilo que no fogo por Jesus morreu queimado Teme a Deus juiz tremendo que em maacute hora te socorra em Jesus tatildeo soacute vivendo pois deu sua vida morrendo para que tua morte morra

AMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Ama a Deus que te criou homem de Deus muito amado Ama com todo cuidado a quem primeiro te amou Seu proacuteprio Filho entregou agrave morte por te salvar Que mais te podia dar

se tudo o que tem te dou Por mandado do Senhor te disse o que tens ouvido Abre todo teu sentido porque eu que sou seu Amor seja em ti bem imprimido (Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Todas as coisas criadas conhecem seu Criador Todas lhe guardam amor

pois nele satildeo conservadas cada qual em seu vigor Pois com tanta perfeiccedilatildeo

193

sua ciecircncia te formou homem capaz de razatildeo de todo o teu coraccedilatildeo ama a Deus que te criou Se amas a criatura por se parecer formosa ama a visatildeo graciosa desta mesma formosura por sobre todas as coisas Dessa divina lindeza deves ser enamorado Seja tua alma presa daquela suma beleza homem de Deus muito amado Aborrece todo o mal com despeito e com desdeacutem E pois que eacute racional abraccedila a Deus imortal todo sumo e uacutenico bem Este abismo de fartura

que nunca seraacute esgotado esta fonte viva e pura este rio de doccedilura ama com todo cuidado Antes que criasse nada jaacute a alma majestade te havia a vida gerado e tua alma abrasada com eterna caridade Por fazer-te todo seu com amor te cativou e pois que tudo te deu daacute tu todo o maior que eacute teu a quem primeiro te amou E deu-te alma imortal e digna de um Deus imenso para que fosses suspenso nele esse bem eternal que eacute sem fim e sem comeccedilo

Depois que em morte caiacuteste com vida te levantou Porque sair natildeo conseguiste da culpa em que te fundiste seu proacuteprio filho entregou Entregou-o por escravo deixou que fosse vendido para que tu redimido do poder do leatildeo bravo fosses sempre agradecido Para que natildeo morras morre com amor bem singular Pois quanto deves amar a Deus que entregar-se quer agrave morte por te salvar O Filho que o Padre deu a seu Pai te daacute por pai e sua graccedila te infundiu

e quando na cruz morreu deu-te por matildee sua Matildee Deu-te feacute com esperanccedila e a si mesmo por manjar para em si te transformar pela bem aventuranccedila Que mais te podia dar Em paga de tudo isto oh ditoso pecador pede apenas teu amor Despreza pois todo o resto por ganhar a tal Senhor Daacute tua vida pelos bens que Sua morte te ganhou Eacutes seu nada tens de teu Daacute-lhe tudo quanto tens pois tudo o que tem te deu

194

DESPEDIDA

Levantai os olhos ao ceacuteu meus irmatildeos Vereis a Lourenccedilo reinando com Deus por voacutes implorando junto ao rei dos ceacuteus que louvais seu nome aqui neste chatildeo Daqui por diante tende grande zelo que Deus seja sempre temido e amado e maacutertir tatildeo santo de todos honrado Terei seus favores e doce desvelo Pois que celebrai com tal devoccedilatildeo

seu claro martiacuterio tomai meu conselho sua vida e virtudes tende por espelho chamando-o sempre com grande afeiccedilatildeo Tereis por seus rogos o santo perdatildeo e sobre o inimigo perfeita vitoacuteria E depois da morte voacutes vereis na gloacuteria a cara divina com clara visatildeo

(LAUS DEO)

QUINTO ATO

Danccedila de doze meninos que se fez na procissatildeo de Satildeo Lourenccedilo

1ordm) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando Por teus rogos desejando Deus nos faccedila venturosos nosso coraccedilatildeo guardando

2ordm) Noacutes confiamos em ti Lourenccedilo santificado que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos viacutecios jaacute desligados nos pajeacutes natildeo crendo mais em suas danccedilas rituais nem seus maacutegicos cuidados

3ordm) Como tu que a confianccedila em Deus tatildeo bem resguardaste que o dom de Jesus nos baste pai da suprema esperanccedila

4ordm) Pleno do divino amor

195

foi teu coraccedilatildeo outrora Zela pois por noacutes agora Amemos nosso Criador pai nosso de cada hora

5ordm) Obedeceste ao Senhor cumprindo sua palavra Vem que nossa alma escrava de teu amor neste dia te imita em sabedoria

6ordm) Milagroso tu curaste teus filhos tatildeo santamente Suas almas estatildeo doentes deste mal que abominaste Vem curaacute-los novamente

7ordm) Fiel a Nosso Senhor a morte tu suportaste Que a forccedila disto nos baste para suportar a dor pelo mesmo Deus que amaste

8ordm) Pelo terriacutevel que eacutes Jaacute que os democircnios te temem nas ocas onde se escondem vem calcaacute-los sob os peacutes pra que as almas natildeo nos queimem

9ordm) Hereges que este indefeso corpo no teu assaram e a carne toda queimaram em grelhas de ferro aceso Choremos do alto desejo de Deus Padre contemplar Venha Ele neste ensejo nossas almas inflamar

10ordm) Os teus verdugos extremos treme algozes de Deus Vem leva-nos como teus que ao teu lado ficaremos assustando estes ateus

11ordm) Estes que te deram morte ardem no fogo infernal Tu na gloacuteria celestial

196

gozaraacutes divina sorte E contigo aprenderemos a amar a Deus no mais fundo do nosso ser e no mundo longa vida gozaremos

12ordm) Em tuas matildeos depositamos nosso destino tambeacutem Em teu amor confiamos

e uns aos outros nos amamos para todo o sempre Ameacutem

CAI O PANO

197

APEcircNDICE 2 - A MISSA E OS SIacuteMBOLOS CULTURAIS DE TRANSFORMACcedilAtildeO DO HOMEM

Partindo do princiacutepio de que a missa eacute um ritual miacutetico pertencente aos

preceitos da Igreja Catoacutelica desde os primoacuterdios do cristianismo e portanto

pertencente tambeacutem a Feacute natildeo poderia deixar de ser discutida neste trabalho pois

foi atraveacutes dela aleacutem dos sacramentos da Igreja que a religiatildeo em questatildeo se fixa

na mente miacutetica dos homens ateacute a data de hoje sob a forma de um ritual de

contato com a divindade

Justamente por ter sua origem em um mito talvez um dos maiores

mitos da atualidade eacute claro que nem a psicologia a sociologia a antropologia ou

a histoacuteria teria como dar conta de explicar esse grande misteacuterio da Igreja visto

que a feacute ultrapassa os domiacutenios dessas ciecircncias e possivelmente ateacute a filosofia e

da metafiacutesica mas podemos aqui estudar esses siacutembolos de transformaccedilatildeo do

ponto de vista fenomenoloacutegico e eacute o que faremos atraveacutes da visatildeo de Carl Gustav

Jung

Porque recebi do Senhor o que vos transmiti O Senhor

Jesus na noite em que foi entregue tomou o patildeo e depois de dar

graccedilas partiu-o e disse Isto eacute o meu corpo que se daacute por voacutes fazei

isto em memoacuteria de mim E do mesmo modo depois de cear tomou

198

o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o Novo Testamento do meu sangue

todas as vezes que o beberdes fazei-o em memoacuteria de mim Pois

todas as vezes que comerdes este patildeo e beberdes este caacutelice

anunciarei a morte do Senhor ateacute que Ele venha 145

Foi nessa Ceia que Cristo teria pronunciado as palavras da missa Eu

sou a vida verdadeira Permanecei em mim como eu [permaneccedilo] em voacutes eu sou

a videira voacutes sois os sarmentos146

Como a intenccedilatildeo eacute a de me limitar ao siacutembolo da transformaccedilatildeo na

missa natildeo tenho aqui a proposiccedilatildeo de explicar os aspectos de sua composiccedilatildeo

estrutural mas conforme Jung a missa eacute uma celebraccedilatildeo eucariacutestica muito bem

elaborada e com a seguinte estrutura

145 Citaccedilotildees que se seguem sobre a Biacuteblia foram tiradas do Novo Testamento traduzido pelo PeDr Frei Mateus Hoepers e publicado pela Vozes ( apud JUNG1985p2) 146 lat sartmentumi sarmento ramo ou vara de videira

199

Temos que iniciar essa explicaccedilatildeo e a citaccedilatildeo dos siacutembolos da missa

como uma das ferramentas de manutenccedilatildeo da feacute do sacrifiacutecio e do envolvimento

com o Deus e a comunidade

Quanto ao sacrifiacutecio o mito cristatildeo nos revela duas formas distintas de

representaccedilatildeo o deipnon e a thysia Deipnon traz o significado de ceia

propriamente dito definindo a ceia abenccediloada daqueles que passaram ou

participaram de algum sacrifiacutecio onde se entende que os deuses estejam

presentes Essa comida eacute abenccediloada pois o que passou por um sacrificium

tornou-se sagrado

Thysia por sua vez vem significar o entregar o oferecer o imolar e

tambeacutem o soprar com forccedila o que vem relacionar-se com o alimento usado nas

sociedades antigas e primitivas de enviar aos deuses a fumaccedila que sobe das

oferendas ateacute a morada dos deuses simbolizando o espiacuterito o pneuma como era

concebido nos primoacuterdios do cristianismo e mesmo na Idade Meacutedia

Graccedilas ao conceito de ceia para os cristatildeos a palavra corpo de

Cristo logo foi traduzida por carne

Principalmente para os sacerdotes esses conceitos inseridos nos

siacutembolos da missa levam um peso muito grande como nos mostra Hb 717 Tu

eacutes sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquizedeque Onde o

oferecimento do sacrifiacutecio perene e o sacerdoacutecio eterno constituem partes

integrantes e necessaacuterias do conceito de missa (JUNG1985 p3) As ideacuteias do

sacerdoacutecio eterno e do sacrifiacutecio estatildeo intimamente ligadas ao misteacuterio da missa e

com a transformaccedilatildeo das substacircncias da qual falaremos em seguida

200

O iniacutecio do rito da transformaccedilatildeo do indiviacuteduo cristatildeo quer a do

sacerdote quer a do ouvinte e assistente da missa inicia-se juntamente com o

ofertoacuterio momento em que se preparam as oferendas a Deus

O primeiro dos pontos eacute a oblaccedilatildeo do patildeo onde o sacerdote coloca a

hoacutestia na patena eleva-a em direccedilatildeo agrave cruz do altar faz o sinal da cruz e eleva a

hoacutestia o patildeo o corpo a carne de Cristo e a relaciona com seu sacrificium

atribuindo assim agrave hoacutestia a qualidade de coisa sagrada Ateacute entatildeo a hoacutestia era

apenas patildeo e considerada como corpus imperfectum

Isso tambeacutem ocorre com o vinho mesmo com sua natureza mais

espiritual tambeacutem eacute considerado corpus imperfectum ateacute que nessa mesma

preparaccedilatildeo ao vinho eacute misturada a aacutegua147

Satildeo Cipriano - bispo de Cartago

relaciona o vinho com Cristo e a

aacutegua com a comunidade que participa da missa parte de suma importacircncia de

todo o rito pois sem a comunidade para receber o rito ele natildeo pode existir148

Nesta parte especial da missa como o iniacutecio desse ritual do mito

cristatildeo os corpus imperctum estatildeo sendo transformados no corpus

glorificationis no corpo ressuscitado

147 Originariamente a mistura de aacutegua com vinho estava ligada ao antigo costume cultural de beber apenas vinho misturado com aacutegua Por isso um bebedor isto eacute um alcooacutelatra era chamado de acratopotes beberratildeo de vinho natildeo misturado (Jung 1985 p7-312) 148 Em Ap1715 se lecirc Aquae quas vidisti ubi meretrix sedet populi sunt et gentes et linguae acuteAs aacuteguas que vecircs sobre as quais a prostituta estaacute sentada satildeo os povos e as multidotildees as naccedilotildees e as liacutenguas Na alquimia meretrix prostituta eacute o nome da prima mateacuteria do corpus imperfectum Elevada a aacutegua a condiccedilatildeo de sagrada misturada ao vinho vem significar que somente uma comunidade perfeita pode se juntar a Cristo (idem)

201

O ponto seguinte do rito da missa o sacerdote mostrando agrave

comunidade eleva o caacutelice com a mistura jaacute preparada e invoca o Espiacuterito Santo

Veni espiritus sanctificator que eacute quem produz e transforma esse vinho em

sangue de Cristo perante toda uma plateacuteia que crecirc nessa transformaccedilatildeo

recebendo culturalmente mais informaccedilotildees sobre o mito que se refere a sua feacute

religiosa

A parte seguinte eacute a da incensaccedilatildeo das oferendas e do altar onde com

a fumaccedila do turiacutebulo oferece um sacrifico que eacute um resquiacutecio da thysia de que

falamos anteriormente no intuito de espiritualizar todos os objetos fiacutesicos do altar

e por estar enchendo o ar com perfume do pneuma espantar as eventuais

forccedilas demoniacuteacas que pudessem estar presentes elevando as oraccedilotildees a

Deus149

Em seguida vem a invocaccedilatildeo ou a epiclese onde atraceacutes do

Suspiece sancta Trinitas (Recebei oacute Trindade santa) satildeo iniciadas as oraccedilotildees

propiciatoacuterias em que se garante que as oferendas seratildeo aceitas por Deus A

certeza da aceitaccedilatildeo se prende a se crer que uma coisa chamada atraveacutes de seu

nome tem o poder de tornar presente o que se convoca Assim por meio do

Adesto adesto Jesu boneacute Pontifex in medio nostri sicut fuisti in medio

discopulorum tuorum (Vinde vinde oacute Jesus o Pontiacutefice misericordioso ficai

conosco como estiveste como os vossos disciacutepulos) atraveacutes do chamamento se

149 Eacute dito nesse instante da missa as palavras Dirigatur Domine oratio mea sicut incensum in conspectu tuo (Eleva-se Senhor a minha oraccedilatildeo como o incenso agrave Vossa presenccedila) e Accedat in nobis Dominus ignem sui amoris

(acenda ograve Senhor em noacutes o fogo de seu amor) (idem Jung-1985-p11-320)

202

obteacutem a certeza da presenccedila e da manifestaccedilatildeo do Senhor no momento que eacute

considerado a ponto alto da celebraccedilatildeo da missa

Desse ponto em diante segue a consagraccedilatildeo do patildeo e do caacutelice

momento em que se daacute a transubstanciaccedilatildeo ou a transformaccedilatildeo das substacircncias

do patildeo e do vinho em corpo e sangue do Senhor

Estamos aqui apenas relatando de forma didaacutetica os passos da

celebraccedilatildeo da missa portanto natildeo temos interesse de discutir esses passos

quanto a seu conteuacutedo e sim mais adiante analisarmos psicologicamente esses

siacutembolos No entanto apenas como curiosidade jaacute que vaacuterios termos foram

colocados em latim e posteriormente os traduzimos nos informa Jung (1985-p12)

as palavras ditas pelo sacerdote no momento da consagraccedilatildeo do patildeo e do vinho

natildeo devem ser traduzidas em liacutengua profana devendo ser ditas apenas e tatildeo

somente em latim por serem palavras consideradas sagradas mesmo que alguns

missais possam conter essa traduccedilatildeo dessa forma as citaremos no rodapeacute desta

paacutegina com o texto em latim obtida na fonte acima descrita150

Nesse ponto do ritual encontram-se devidamente consagrados e

purificados tanto o sacerdote como a comunidade as oferendas como o altar

totalmente preparados como uma unidade miacutestica para a epifania do Senhor isto

150 Consagraccedilatildeo do patildeo Qui pridie quam pateretur accepit panem in sanctas ac venerabiles manus suas et elevatis oculis in caelum ad Deum Patrem suum omnipotentem tibi gratias agens benedixit fregit deditque discipulis suis dicens Accipite et manducate ex hoc omnes Hoc est enim Corpus meum

Consagraccedilatildeo do caacutelice Simili modo postquam cenatum est accipiens et hunc praeclarum calicem in sancta ac venerabiles manus suas item tibi gratias agens benedixit deditque discipulis suis dicens Accipite et bibite ex eo omnes Hic est enim Calix Sanguinis mei novi et aeterni testamenti mysterium fidei qui pro vobis et pro multins effundetur in remissionem peccatorum Haec quosticumque faceritis in mei memoriam facietis

203

eacute o momento da manifestaccedilatildeo reveladora de Cristo de forma viva no Corpus

mysticum do sacrifiacutecio divino como se nesse momento se abrisse uma porta

onde do outro lado exista um espaccedilo liberto do tempo e do espaccedilo porta essa

aberta natildeo pelo sacerdote mas por Cristo como agens como agente dessa

transformaccedilatildeo

O sacerdote entatildeo levanta as substacircncias consagradas e as apresenta

agrave comunidade mostrando que o Homem-Deus tornou-se presente na hoacutestia

consagrada Pede entatildeo o sacerdote ao Senhor que receba a hoacutestia imaculada e

que abenccediloe a todos com sua graccedila Faz trecircs sinais da cruz com a hoacutestia sobre o

caacutelice pronunciando per ipsum et cum ipso et in ipso (Por Ele com Ele e Nele)

traccedilando outros trecircs sinais entre ele e o caacutelice para criar a relaccedilatildeo de identidade

entre a hoacutestia o caacutelice e o sacerdote para entatildeo poder incluir nas graccedilas a serem

recebidas a comunidade que aguarda ser livrada de todos os males passados

presentes e futuros Divide a hoacutestia em duas partes significando a morte de Cristo

glorificado do rex gloriae De uma das partes tira uma pequena partiacutecula que

seraacute colocada no vinho dentro do caacutelice durante a consignaacutetio e a commixtio

momento da mistura do patildeo com o vinho do corpo com o sangue onde satildeo ditas

as seguintes palavras Haec commixtrio et consecratio Corporis et Sanguinis

Domini nostri

Dessa forma sacerdote o corpo e o sangue do Senhor unidos agrave

comunidade fazem a unidade miacutetica da missa assim como o patildeo resulta de

muitos gratildeos o vinho de muitos bagos de uva assim tambeacutem o Corpus

204

mysticum a Igreja eacute constituiacutedo pela multidatildeo daqueles que crecircem151 e possuem

em si como visatildeo de mundo o mito cristatildeo

Eacute importante ressaltar aqui que natildeo procuro fazer nenhuma

interpretaccedilatildeo das partes que compotildeem a missa e sim com referecircncia ao mito

cristatildeo analisar psicologicamente esses siacutembolos que contribuem como

transmissatildeo cultural e como forma de propagaccedilatildeo universal do cristianismo

Vejamos o ato de pensar ou de crer expressam uma realidade

psicoloacutegica do indiviacuteduo que crecirc e nesse caso do mito e da crenccedila dos sacrifiacutecios

da missa essa realidade estaacute baseada nos enunciados do rito e da feacute explicados

metafisicamente o que pode ser indicado que exceto pela maneira psiacutequica de

manifestar-se a crenccedila escapa ao entendimento do intelecto e por esse motivo

natildeo pode ser posto em julgamento mas eacute certo que o pressuposto da feacute em si

conteacutem a realidade de um fato psiacutequico152

Cada passo da missa possui uma composiccedilatildeo de dois aspectos claros

um divino com a accedilatildeo do proacuteprio Deus e outro humano num significado

meramente instrumental

O lado humano oferece dons a Deus sobre o altar com a doaccedilatildeo

completa do sacerdote e da comunidade cristatilde celebrando a uacuteltima ceia de Jesus

com seus disciacutepulos mas celebra tambeacutem uma accedilatildeo sagrada onde Cristo se

encarna torna-se homem sub-espeacutecie das substacircncias oferecidas sofre e eacute

151 Jung-1985-p20-338 152 Jung-1985-p46-377

205

morto jaz no sepulcro e por fim quebra o poder do inferno ressuscitando

glorioso153 Embora esse acontecimento seja divino surge o cristatildeo perante o

ritual tal qual como na participaccedilatildeo divina agindo como agens

e patiens na

sua limitada capacidade

Mas no sentido divino onde o momento eacute entendido como uma accedilatildeo

direta de Deus esse mesmo homem se coloca apenas e tatildeo somente como um

instrumento agrave disposiccedilatildeo de um agente eterno que transcende a consciecircncia

humana

Assim como o homem eacute um simples instrumento

(voluntaacuterio) no acontecimento da missa tambeacutem eacute incapaz de

compreender o que quer que seja a respeito da matildeo que se utiliza

dele O martelo natildeo conteacutem em si proacuteprio aquilo que o faz bater Eacute um

ser situado fora dele autocircnomo que dele se apodera e o potildee em

movimento 154

Essa relaccedilatildeo do homem com o divino da oferenda com o recebimento

da graccedila possui a mesma funccedilatildeo psicoloacutegica e portanto cultural da magia

propiciatoacuteria que se encontra em todos os sacrifiacutecios de tribos e sociedades ditas

primitivas onde o humano oferece para receber em troca a matildeo da divindade

colocada sobre seus ombros quer para proteccedilatildeo quer para resolver suas afliccedilotildees

desejos e impossibilidades

153 Jung-1985-p47-379 154 Jung-1985-p49-379

206

Essa magia realizada pelas tribos traacutes consigo o sangue e a carne

verdadeiros sejam de animais ou de pessoas o que apavora me faz com que os

olhos humanos de outra cultura rechacem o acontecimento

Acontece poreacutem que o mito cristatildeo se utiliza nessa magia

propiciatoacuteria de siacutembolos que representam o melhor produto cultural desde muito

tempo que simbolizam a vida e a pessoa humana a produccedilatildeo o trabalho e as

virtudes

O patildeo e o vinho natildeo soacute constituem o alimento comum de grande parte

da humanidade como tambeacutem podem ser encontrados em toda a face da

Terra155

O patildeo e o vinho como importantes siacutembolos da civilizaccedilatildeo expressam o

esforccedilo humano em plantar e colher e ainda produzir com aquilo que foi colhido

Os gratildeos de trigo e os bagos de uva representam a condiccedilatildeo psicoloacutegica que faz

surgir as virtudes do homem e que o torna capaz de produzir cultura

Plantar e colher possui em si o trabalho durante o crescimento das

plantas por ele cultivadas crescimento esse que se desenvolve de acordo com

leis divinas por serem elas leis internas que atual dentro delas como um agens

ou uma forccedila que chegou mesmo a ser comparada ao proacuteprio alento ou espiacuterito

vital156 um espiacuterito que morre e ressuscita a cada estaccedilatildeo do ano tal qual a

manifestaccedilatildeo do manaacute mas que necessita da participaccedilatildeo do homem e de um

155 KRAMP Joseph 1924 Apud Jung-1985-p51-381 156 Jung-1985-p53-385

207

desempenho psicoloacutegico com relaccedilatildeo ao esforccedilo agrave aplicaccedilatildeo agrave paciecircncia e ao

devotamento

Tomar do patildeo e do vinho consagraacute-los e oferececirc-los a Deus queiramos

ou natildeo trata-se de um do ut des no entanto eacute uma forma de doaccedilatildeo em que o

humano se entrega de tal forma a essa oferenda que daacute o que foi entregue como

pedido como um sacrifiacutecio pois caso natildeo receba em troca a graccedila pedida

continua a acreditar que ao menos no reino dos ceacuteus receberaacute tal graccedila e por isso

se entrega o que faz com que o homem possa buscar com esse ritual sua

evoluccedilatildeo do eu conforme crecirc sua individuaccedilatildeo seu si mesmo O eu estaacute pra o

si mesmo assim como o patiens estaacute pra o agens porque as disposiccedilotildees que

emanam do si mesmo satildeo bastante amplas e por isso superiores ao euo si

mesmo eacute o existente a priori do qual proveacutem o euNatildeo sou eu que me crio mas

sou eu que aconteccedilo a mim mesmo 157

Essa conclusatildeo vem de encontro com o entendimento da psicologia sobre

o fenocircmeno religioso e sobre a feacute e Jung como bom exemplo dessa conclusatildeo

cita que o fundador da Companhia de Jesus Inaacutecio de Loyola colocou seu homo

creatus est como fundamentum de seus exerciacutecios espirituais

O Grande Si Mesmo para o cristatildeo eacute o proacuteprio Cristo o homem primordial

o Adam secundus o qual tentar entender fora do mito seria como

psicologizar158 de forma mal sucedida tentando destruir o misteacuterio do rito miacutetico

157 Jung-1985-p59-391 158 como uso pejorativo fazer especulaccedilotildees de cunho psicoloacutegico sem base cientiacutefica

208

APEcircNDICE 3 O MITO DE CRISTO

O drama da vida arquetiacutepica de Cristo descreve em

imagens simboacutelicas os eventos da vida consciente

assim como da

vida que transcende a consciecircncia

de um homem que foi

transformado pelo seu destino superior159

A obra de Jung eacute extremamente vasta com relaccedilatildeo ao estudo das

religiotildees tanta das religiotildees e seitas primitivas como do cristianismo do

protestantismo das religiotildees orientais poreacutem deu ecircnfase principalmente aos

estudos com relaccedilatildeo ao mito cristatildeo e suas caracteriacutesticas

Um dos pontos mais importantes de sua obra sobre o assunto eacute a visatildeo

que apresenta sobre a vida de Cristo o que nos chamou especial atenccedilatildeo para

escrevermos esta parte da pesquisa

Jung nos coloca que a vida de Cristo representa para nossa cultura o

processo de individuaccedilatildeo que pode significar para um indiviacuteduo a salvaccedilatildeo ou a

trageacutedia e quando esse indiviacuteduo eacute parte de uma igreja ou um credo religioso ele

159 Jung A psycological approach to the trynity Psychology and Religion in Edinger1988

209

eacute poupado dos perigos da vida em sua experiecircncia direta pois estaraacute protegido

pelo mito cristatildeo

Tal qual no mito do heroacutei das mil e uma noites ou outros contos do

oriente Cristo passa por uma saga bem definida como o nascimento do heroacutei a

missatildeo avisada a fuga e a negaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo o retorno a realizaccedilatildeo o triunfo

e o precircmio final

Como diz Campbell160 citando uma velha sabedoria romana Os fados

guiam aquele que assim o deseje aquele que natildeo o deseje eles arrastam

O mesmo ocorreu com Cristo foi arrastado por seus fados conforme

podemos ver pois O Filho preexistente e uacutenico de Deus esvazia-se de sua

divindade e se encarna como homem por intermeacutedio do Espiacuterito Santo que

impregna a Virgem Maria Ele nasce num ambiente humilde cercado de perigos

iniciais Quando alcanccedila a idade adulta submete-se ao batismo de Joatildeo Batista e

testemunha a descida do Espiacuterito Santo que indica sua vocaccedilatildeo Ele sobrevive agrave

tentaccedilatildeo do Democircnio e leva a bom termo seu ministeacuterio que proclama a

existecircncia de um Deus benevolente e amoroso Apoacutes passar pela agonia da

incerteza aceita o destino que lhe cabe e deixa-se prender julgar flagelar

escarnecer e crucificar Apoacutes passar trecircs dias no tuacutemulo de acordo com vaacuterias

testemunhas eacute ressuscitado Durante quarenta dias caminha e fala com seus

160 CAMPBELL 1990 pintroduccedilatildeo X

210

disciacutepulos e em seguida sob aos ceacuteus Dez dias depois no Pentecostes o

Espiacuterito Santo o Paraacuteclito prometido desce 161

Para explicar essa sequumlecircncia de fatos Jung nos apresenta o seguinte

graacutefico

A sequumlecircncia de situaccedilotildees passadas por Cristo e que constitui o mito

cristatildeo se repete em forma circular iniciando e encerrando com a mesma

161 EDINGER 1988 p16

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

211

situaccedilatildeo onde o Pentecostes eacute uma segunda Anunciaccedilatildeo pois na primeira nasce

Cristo e na segunda nasce a Igreja

Para o homem miacutetico engajado nesse ciacuterculo essa eacute a descriccedilatildeo do

processo por onde o ego do homem atinge sua consciecircncia pois descreve o que

correu com Deus feito homem e por consequumlecircncia descreve a transformaccedilatildeo de

Deus Assim por meio desse processo mais uma vez o Espiacuterito Santo desce a

terra natildeo para promover uma imitaccedilatildeo de Cristo Homem-Deus feita pelo homem

mas para promover a cristificaccedilatildeo de muitos 162

Vamos iniciar entatildeo pela Anunciaccedilatildeo

26 Ora no sexto mecircs (da gravidez de Isabel) foi o anjo

Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileacuteia chamada Nazareacute

27a uma virgem desposada com um varatildeo cujo nome era Joseacute da

casa de Davi e o nome da virgem era Maria

28 E entrando o anjo onde ela estava disse Salve

agraciada o Senhor eacute contigo

29 Ela poreacutem ao ouvir estas palavras turbou-se muito e

pocircs-se a pensar que saudaccedilatildeo seria essa

30 Disse-lhe entatildeo o anjo Natildeo temas Maria pois achaste

graccedila diante de Deus

31 Eis que conceberaacutes e daraacutes agrave luz um filho ao qual

poraacutes o nome de Jesus

32 Este seraacute grande e seraacute chamado filho do Altiacutessimo o

Senhor Deus lhe daraacute o trono de Davi seu pai

33 e reinaraacute eternamente sobre a casa de Jacoacute e o seu

reino natildeo teraacute fim

162 JUNG 1990 p113 par 758

212

34 Entatildeo Maria perguntou ao anjo Como se faraacute isso uma

vez que natildeo conheccedilo varatildeo

35 Respondeu-lhe o anjo Viraacute sobre ti o Espiacuterito Santo

e o poder do Altiacutessimo te cobriraacute com a sua sombra por isso o

que haacute de nascer seraacute chamado santo Filho de Deus

36 Eis que tambeacutem Isabel tua parenta concebeu um filho

em sua velhice e eacute este o sexto mecircs para aquela que era chamada

esteacuteril37 porque para Deus nada seraacute impossiacutevel

38 Disse entatildeo Maria Eis aqui a serva do Senhor cumpra-

se em mim segundo a tua palavra E o anjo ausentou-se dela

O primeiro ponto a que dei importacircncia estaacute em grifo no texto biacuteblico

onde a expressatildeo te cobriraacute com a sua sombra 163 se refere no Antigo

Testamento em vaacuterias passagens agraves manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de Iahweh o

que mostra aqui o lado sombrio do misteacuterio sagrado do momento em que Deus

atraveacutes do Espiacuterito Santo cobre com uma nuvem o momento em que a

fecundaccedilatildeo do Senhor ocorre isto eacute uma gravidez ilegiacutetima num tempo em que

cometer adulteacuterio era passiacutevel de ser punida com a morte no entanto a obediecircncia

a Deus transforma Maria em uma mulher cheia de graccedila pois carrega em seu

ventre o Homem-Deus

Muitas vezes a Anunciaccedilatildeo coberta pela sombra e a obediecircncia de

Maria foi contrastada agrave desobediecircncia de Eva que culminou com a expulsatildeo do

primeiro casal do paraiacuteso Paulo falando aos Corintos (1Cor 1522) estabelece

esse viacutenculo ao dizer E assim como em Adatildeo morrem todos assim tambeacutem

todos seratildeo vivificados em Cristo

163 te cobriraacute com a sua sombra (episkiaz ) onde skia traduz sombra escuridatildeo EDINGER 1988 p22

213

Essa comparaccedilatildeo surge tambeacutem em um texto apoacutecrifo Protoevangelho

de Tiago164 que ao ouvir falar da gravidez de Maria Joseacute exclama

Quem trouxe esse mal agrave minha casa e a conspurcou (a

virgem) Teraacute a histoacuteria (de Adatildeo) se repetido comigo

Onde se encontra a diferenccedila principal Eacute que enquanto Eva se

submete e obedece agrave serpente Maria se coloca como serva do Senhor e diz Eis

aqui a serva do Senhor cumpra-se em mim segundo a tua palavra o que em

termos da visatildeo miacutetica do significado psicoloacutegico retrata que Maria aceita por sua

alma o encontro como o numinosum165 e como consequumlecircncia o encontro do

arqueacutetipo do mito com a individuaccedilatildeo do homem

Outro ponto a ser considerado como importante siacutembolo formador do

mito cristatildeo eacute a virgindade de Maria que tal qual as Virgens Vestais eram guardiatildes

da chama sagrada Essa relaccedilatildeo com a virgindade parece ser importante como

energia de transmutaccedilatildeo do fogo sagrado pois como em muitas culturas as

virgens sempre possuem uma relaccedilatildeo com o numinoso o que significa ser um

forte siacutembolo arquetiacutepico formador do mito Edinger (1988 p28) diz O ego virgem

tem suficiente consciecircncia para relacionar-se com as energias transpessoais sem

identificar-se com elas

164 EDINGER1988p25 165 Numinosum- numinoso adjetivo - influenciado inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade

214

Seguindo adiante no ciacuterculo do mito de Cristo encontramos o segundo

ponto que se refere agrave natividade

1 Naqueles dias saiu um decreto da parte de Ceacutesar

Augusto para que todo o mundo fosse recenseado

2 Este primeiro recenseamento foi feito quando Quiriacutenio

era governador da Siacuteria

3 E todos iam alistar-se cada um agrave sua proacutepria cidade

4 Subiu tambeacutem Joseacute da Galileacuteia da cidade de Nazareacute agrave

cidade de Davi chamada Beleacutem porque era da casa e famiacutelia de

Davi5 a fim de alistar-se com Maria sua esposa que estava graacutevida

6 Enquanto estavam ali chegou o tempo em que ela havia

de dar agrave luz 7 e teve a seu filho primogecircnito envolveu-o em faixas e o

deitou em uma manjedoura porque natildeo havia lugar para eles na

estalagem

Este eacute o momento em que no mito do heroacutei se iniciam os perigos onde

enquanto se registrava nos Ceacuteus o nascimento de uma crianccedila divina se

recenseava na Terra e se registrava as pessoas nascidas pois naquele momento

histoacuterico e cultural era de suma importacircncia ter o nome escrito e registrado Cristo

disse mais adiante a seus disciacutepulos (Lc 1020) deveis alegrar-vos de que os

vossos nomes estejam escritos no ceacuteu

Em Hebreus (1223) agrave universal assembleacuteia eacute a igreja dos primogecircnitos

inscritos nos ceacuteus e Deus o juiz de todos e aos espiacuteritos dos justos

aperfeiccediloados

215

Mas tambeacutem eacute importante perceber que culturalmente os primogecircnitos

(pr totokos ou primogenitus)166 eram considerados especiais natildeo soacute para os

homens daquela eacutepoca mas tambeacutem para Iahveh vejamos Santifica-me todo

primogecircnito todo o que abrir o uacutetero de sua matildee entre os filhos de Israel assim

de homens como de animais porque meu eacute (Ex132)

Jesus foi o primogecircnito Primogecircnito entre muitos irmatildeos(Rm 829) que

erigiraacute uma igreja dos primogecircnitos inscritos nos ceacuteus (Hb1223)

Novamente a cultura como expressatildeo de uma eacutepoca de um povo gera

o poder criador do mito O heroacutei aqui denominado Jesus Cristo nasce como

primogecircnito e como Salvador Universal

Vamos entatildeo relembrar a saga de um heroacutei miacutetico nas palavras de

Jung167

Este eacute o motivo pelo qual o nascimento de Cristo foi

caracterizado pelas manifestaccedilotildees que acompanham o nascimento do

heroacutei quais sejam o anuacutencio preacutevio deste nascimento a geraccedilatildeo no

seio de uma virgem a coincidecircncia com a triacuteplice coniunctio magna

(juacutepiter marte e saturno) no signo de Pisces que introduziu

precisamente naquela eacutepoca o novo eon ligado ao nascimento de um

rei a perseguiccedilatildeo ao receacutem-nascido sua fuga e ocultaccedilatildeo a

modeacutestia de seu nascimento etc Pode-se ver tambeacutem o tema do

crescimento do heroacutei em sabedoria demonstrada pelo jovem de doze

anos no templo e quanto ao tema da ruptura com a matildee haacute tambeacutem

alguns exemplos

166 o mais velho o primeiro filho homem do homem 167 JUNG 1990

Resposta agrave Jocirc p49-par 644

216

A terceira situaccedilatildeo do nosso ciacuterculo do mito de cristo eacute a Fuga para o

Egito onde o nascimento do heroacutei ou da crianccedila divina como jaacute dito

anteriormente se faz acompanhar costumeiramente de ameaccedilas com relaccedilatildeo a

sua vida o que mais uma vez se confirma Vejamos

13 E havendo eles se retirado eis que um anjo do Senhor

apareceu a Joseacute em sonho dizendo Levanta-te toma o menino e sua

matildee foge para o Egito e ali fica ateacute que eu te fale porque Herodes

haacute de procurar o menino para o matar

14 Levantou-se pois tomou de noite o menino e sua matildee

e partiu para o Egito

15 e laacute ficou ateacute a morte de Herodes para que se

cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta Do Egito

chamei o meu Filho

16 Entatildeo Herodes vendo que fora iludido pelos magos

irou-se grandemente e mandou matar todos os meninos de dois anos

para baixo que havia em Beleacutem e em todos os seus arredores

segundo o tempo que com precisatildeo inquirira dos magos

17 Cumpriu-se entatildeo o que fora dito pelo profeta Jeremias

18 Em Ramaacute se ouviu uma voz lamentaccedilatildeo e grande

pranto Raquel chorando os seus filhos e natildeo querendo ser

consolada porque eles jaacute natildeo existem(Mt 213-18)

A autoridade maior o heroacutei o poder gerador do mito a crianccedila divina

cumpre as profecias pois em Oseacuteias (111) se diz Quando Israel era menino eu o

amei e do Egito chamei a meu filho e no antigo testamento a naccedilatildeo de Israel eacute o

217

filho de Iahweh mostrando assim que Cristo eacute a proacutepria substituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

Israel

Novamente a expressatildeo cultural gera o mito como forma de seguir

explicando o inexplicaacutevel

Na quarta situaccedilatildeo do ciacuterculo do mito identifica-se o Batismo onde

Jesus sai da Galileacuteia para se encontrar com Joatildeo e ser batizado por ele e que

depois de batizado os ceacuteus se abrem uma pomba desce dos ceacuteus e uma voz do

ceacuteu lhes diz Este eacute o meu filho amado em quem me comprazo (Mt 313-17)

Para a Igreja o sacramento do batismo vem significar a morte da antiga

vida da carne e o renascimento da vida eterna em Cristo

O Espiacuterito Santo que desce nas asas de uma pomba branca o fogo

sobre o rio Jordatildeo e a luz vida do ceacuteu e que se abre sobre Cristo e Joatildeo Batista a

purificaccedilatildeo atraveacutes da aacutegua e a voz sugerem que o proacuteprio Senhor se fez batizar

e o homem miacutetico sabe que com esse evento o que habitava de forma demoniacuteaca

no inconsciente foi transformado em terreno sagrado e na morada do numinoso

O homem miacutetico se encontra com seu destino com sua identidade e tambeacutem

pode se considerar como o Filho de Deus um eleito que teraacute seu nome inscrito

nos ceacuteus

Em seguida ocorre a entrada triunfal de Jesus em Jerusaleacutem

1 Quando se aproximaram de Jerusaleacutem e chegaram a

Betfageacute ao Monte das Oliveiras enviou Jesus dois disciacutepulos

dizendo-lhes

218

2 Ide agrave aldeia que estaacute defronte de voacutes e logo encontrareis

uma jumenta presa e um jumentinho com ela desprendei-a e trazei-

mos

3 E se algueacutem vos disser alguma coisa respondei O

Senhor precisa deles e logo os enviaraacute

4 Ora isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito

pelo profeta

5 Dizei agrave filha de Siatildeo Eis que aiacute te vem o teu Rei manso

e montado em um jumento em um jumentinho cria de animal de

carga

6 Indo pois os disciacutepulos e fazendo como Jesus lhes

ordenara

7 trouxeram a jumenta e o jumentinho e sobre eles

puseram os seus mantos e Jesus montou

8 E a maior parte da multidatildeo estendeu os seus mantos

pelo caminho e outros cortavam ramos de aacutervores e os espalhavam

pelo caminho

9 E as multidotildees tanto as que o precediam como as que o

seguiam clamavam dizendo Hosana ao Filho de Davi bendito o que

vem em nome do Senhor Hosana nas alturas

10 Ao entrar ele em Jerusaleacutem agitou-se a cidade toda e

perguntava Quem eacute este

11 E as multidotildees respondiam Este eacute o profeta Jesus de

Nazareacute da Galileacuteia (Mt 21 1-9)

Eacute permitido por Cristo que o aclamem rei Parece que nesse momento

a negaccedilatildeo de seu destino surge justamente quando deixa a humildade e

sucumbe agrave tentaccedilatildeo do poder rapidamente se enche de fuacuteria e expulsa os

vendilhotildees do templo de Deus e amaldiccediloa uma figueira que natildeo lhe fornecia

frutos Como nos propotildee Edinger168 parece neste momento que Cristo pela forma

168 EDINGER1988 p60

219

que entra em Jerusaleacutem identifica a si mesmo como o rei messiacircnico profetizado

em Zc 99

9 Alegra-te muito oacute filha de Siatildeo exulta oacute filha de

Jerusaleacutem eis que vem a ti o teu rei ele eacute justo e traz a salvaccedilatildeo ele eacute

humilde e vem montado sobre um jumento sobre um jumentinho filho de

jumenta

O mito do heroacutei novamente se assemelha ao mito de Cristo pois natildeo haacute

como o heroacutei aceitar seu destino e desenvolver-se sem que antes seu ego

sucumba ao erro necessaacuterio (Felix culpa) pois de acordo com Jung169 o

egocentrismo eacute um atributo necessaacuterio da consciecircncia bem como seu pecado

especiacutefico

Mas continuando em nosso caminho da individuaccedilatildeo de Cristo

encontramos a Uacuteltima Ceia parte que por achar de grande importacircncia para a

construccedilatildeo do mito cristatildeo dedico mais adiante um espaccedilo significativo onde

coloco ao lado da formaccedilatildeo do mito os siacutembolos culturais da missa na

transformaccedilatildeo do homem cristatildeo Eacute a Uacuteltima Ceia a Santa Ceia a primeira missa

realizada no mito cristatildeo o rito central da Igreja Catoacutelica

26 Enquanto comiam Jesus tomou o patildeo e abenccediloando-

o o partiu e o deu aos disciacutepulos dizendo Tomai comei isto eacute o meu

corpo

169 apud EDIGER 1988p61 e JUNG Mysterium Coniunctionis par 364

220

27 E tomando um caacutelice rendeu graccedilas e deu-lho

dizendo Bebei dele todos

28 pois isto eacute o meu sangue o sangue do pacto o qual eacute

derramado por muitos para remissatildeo dos pecados (Mt 26 26-28)

55 Porque a minha carne verdadeiramente eacute comida e o

meu sangue verdadeiramente eacute bebida(Jo 655)

Eacute neste ponto que surge o primeiro sacrifiacutecio de Cristo pois oferece seu

corpo e seu sangue para a alimentaccedilatildeo dos que nele crecircem provando isso mais

adiante quando se deixa prender ser julgado flagelado e crucificado entregando

novamente seu corpo e seu sangue para salvaccedilatildeo de todos que aceitassem viver

esse mito O alimento dado aos disciacutepulos vem representar a natureza paradoxal

do siacutembolo da Eucaristia170 De um lado fornece uma conexatildeo como poder

gerador do mito e do outro a prima mateacuteria que deve ser humanizada e

transformada pelos esforccedilos do ego171 para que o homem possa se transformar e

receber em si o divino o numinoso

Mais adiante Cristo vai ao Gethsemani onde fica clara a aceitaccedilatildeo da

missatildeo de ser o Filho de Deus uma missatildeo de sofrimento e sangue que caminha

pelo ciacuterculo do mito de Cristo atraveacutes dos pontos da Prisatildeo e Julgamento onde

mesmo que natildeo aceitasse ser o Rei dos Judeus dizendo natildeo ser deste mundo

seu reino ainda assim era um reino da Flagelaccedilatildeo e escaacuternio da crucificaccedilatildeo o

170 EDINGER1988 p69 171 idem

221

foco principal do mito cristatildeo em relaccedilatildeo agrave contemplaccedilatildeo do sofrimento e da

entrega do destino a Deus

A crucificaccedilatildeo pode equivaler ao fracasso do heroacutei em sua luta pois ao

dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonastes poderia estar revendo

que sua vida vivida de profunda convicccedilatildeo tinha sido uma terriacutevel ilusatildeo172

Vem a lamentaccedilatildeo e o sepultamento equivalendo agrave descida de Cristo

aos infernos e ao limbo amparado pela Pietaacute sobre o corpo morto do filho

Mas no primeiro dia da semana

1 Mas jaacute no primeiro dia da semana bem de madrugada

foram elas ao sepulcro levando as especiarias que tinham preparado

2 E acharam a pedra revolvida do sepulcro

3 Entrando poreacutem natildeo acharam o corpo do Senhor Jesus

4 E estando elas perplexas a esse respeito eis que lhes

apareceram dois varotildees em vestes resplandecentes

5 e ficando elas atemorizadas e abaixando o rosto para o

chatildeo eles lhes disseram Por que buscais entre os mortos aquele que

vive

6 Ele natildeo estaacute aqui mas ressurgiu Lembrai-vos de como

vos falou estando ainda na Galileacuteia(Lc 24 1-6)

Mas depois da Ressurreiccedilatildeo mesmo com diversas evidecircncias de seu

aparecimento como em Joatildeo 2011-17 como em Lucas e Mateus seus disciacutepulos

natildeo o reconheceram de imediato pois atingindo o Self o Si-mesmo a evoluccedilatildeo

do homem miacutetico ele se transforma de tal ordem que natildeo poderaacute ser reconhecido

172 ideacuteia expressada por Jung durante entrevistas CGJung Entrevistas e Encontrosp103- apud EDINGER 1988 p120

222

mesmo pelos amigos mais iacutentimos pois atingiria o contato pleno com o

numinosum

35Mas algueacutem diraacute Como ressuscitam os mortos e com

que qualidade de corpo vecircm

36 Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se

primeiro natildeo morrer

37 E quando semeias natildeo semeias o corpo que haacute de

nascer mas o simples gratildeo como o de trigo ou o de outra qualquer

semente

38 Mas Deus lhe daacute um corpo como lhe aprouve e a cada

uma das sementes um corpo proacuteprio

39 Nem toda carne eacute uma mesma carne mas uma eacute a

carne dos homens outra a carne dos animais outra a das aves e

outra a dos peixes

40 Tambeacutem haacute corpos celestes e corpos terrestres mas

uma eacute a gloacuteria dos celestes e outra a dos terrestres

41 Uma eacute a gloacuteria do sol outra a gloacuteria da lua e outra a

gloacuteria das estrelas porque uma estrela difere em gloacuteria de outra

estrela

42 Assim tambeacutem eacute a ressurreiccedilatildeo eacute ressuscitado em

incorrupccedilatildeo

43 Semeia-se em ignomiacutenia eacute ressuscitado em gloacuteria

Semeia-se em fraqueza eacute ressuscitado em poder

44 Semeia-se corpo animal eacute ressuscitado corpo

espiritual Se haacute corpo animal haacute tambeacutem corpo espiritual

45 Assim tambeacutem estaacute escrito O primeiro homem Adatildeo

tornou-se alma vivente o uacuteltimo Adatildeo espiacuterito vivificante

46 Mas natildeo eacute primeiro o espiritual senatildeo o animal depois

o espiritual

47 O primeiro homem sendo da terra eacute terreno o segundo

homem eacute do ceacuteu

223

48 Qual o terreno tais tambeacutem os terrenos e qual o

celestial tais tambeacutem os celestiais

49 E assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestial

50 Mas digo isto irmatildeos que carne e sangue natildeo podem

herdar o reino de Deus nem a corrupccedilatildeo herda a incorrupccedilatildeo

51 Eis aqui vos digo um misteacuterio Nem todos dormiremos

mas todos seremos transformados

52 num momento num abrir e fechar de olhos ao som da

uacuteltima trombeta porque a trombeta soaraacute e os mortos seratildeo

ressuscitados incorruptiacuteveis e noacutes seremos transformados (1 Cor

35-52)

O Corpo Celestial que Paulo cita em 1 Cor15 35-52 equivale a dizer

que o homem miacutetico com seu corpo em ressurreiccedilatildeo em Cristo estaacute em contato

direto com o arqueacutetipo Cristatildeo e com o proacuteprio Deus pois a morte e a

ressurreiccedilatildeo de Cristo formam um arqueacutetipo que vive natildeo apenas na psique

individual mas tambeacutem na coletiva 173

Com a Ascensatildeo onde Cristo diz se preparar para a descida sob a

forma do Espiacuterito Santo no Pentecostes Deus que se esvaziou de sua divindade e

desceu a Terra como espiacuterito humano sobe novamente e retorna ao ceacuteu em

ascensatildeo para depois retornar jaacute reconhecido como Deus sob a forma do

Espiacuterito Santo

173 idem

224

Mostra o mito Cristatildeo que natildeo somos seres humanos passando por

uma vida espiritual na Terra mas seres espirituais que passamos tal qual Cristo

por uma experiecircncia humana

8 Mas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito

Santo e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda

a Judeacuteia e Samaacuteria e ateacute os confins da terra

9 Tendo ele dito estas coisas foi levado para cima

enquanto eles olhavam e uma nuvem o recebeu ocultando-o a seus

olhos

10 Estando eles com os olhos fitos no ceacuteu enquanto ele

subia eis que junto deles apareceram dois varotildees vestidos de branco

11 os quais lhes disseram Varotildees galileus por que ficais

aiacute olhando para o ceacuteu Esse Jesus que dentre voacutes foi elevado para o

ceacuteu haacute de vir assim como para o ceacuteu o vistes ir (At 1 8-11)

O homem na visatildeo junguiana possui um Ego174 que se contrapotildee

constantemente ao Si-mesmo (Self) como sendo o Ego o terreno e o Si-mesmo o

celestial onde o Si-mesmo eacute a entidade inconsciente que desenvolve o ego

dizendo eu natildeo me crio a mim mesmo antes eu me aconteccedilo a mim mesmo

No ser humano sempre existiraacute a supremacia do Si-mesmo em

simultaneidade com a liberdade de accedilatildeo do Ego assim como no mundo sempre

haveraacute para o homem miacutetico a liberdade de accedilatildeo ou livre arbiacutetrio do corpo terreno

na relaccedilatildeo direta da supremacia do corpo espitirual O Ego estaacute para o Si-mesmo

174 Ego e Si-mesmo (self) pode ser visto em CARNOT(2005)

225

assim como o patiens

estaacute pra o agens ou como o objeto estaacute pra o

observador ou mesmo como o homem estaacute pra Deus

Jung comenta em seu livro The Spirit Mercurius Alchemical Studies

(par 280)175 que haacute uma correspondecircncia alquiacutemica e simboacutelica a esse evento da

Ascensatildeo e retorno de Cristo com a Taacutebua de Esmeraldas de Hermes a qual

inclui em sua receita pra a produccedilatildeo da Pedra Filosofal as palavras Ele sobe da

terra pra o ceacuteu e desce de novo na terra recebendo a forccedila de cima e de baixo e

comentando essa passagem diz

[Para o alquimista] natildeo haacute uma questatildeo de subida de

matildeo uacutenica pra o ceacuteu mas em contraste com a rota seguida pelo

Redentor Cristatildeo que vem de cima para baixo e depois retorna para

cima o filius macrocosmi comeccedila de baixo sobe agraves alturas e com os

poderes do Acima e do Abaixo unidos em si mesmo volta outra vez a

terra Ele (o alquimista) realiza o movimento inverso e assim

manifesta uma natureza contraacuteria agrave de Cristo e agrave dos Redentores

Gnoacutesticos (me agrada interpretar a palavra alquimista como traduccedilatildeo

de o homem miacutetico )

Chegamos ao ciclo do mito Cristatildeo ao Pentecostes a 13a situaccedilatildeo

colocada por Jung como sendo tambeacutem a primeira apoacutes a Ascensatildeo Com o

Pentecostes o ciclo da encarnaccedilatildeo de Cristo se completa assim como se

completa o ciclo do heroacutei O ciclo se inicia com a descida do Espiacuterito Santo na

175 apud EDINGER (1988 p 122)

226

anunciaccedilatildeo e termina com sua nova descida dos ceacuteus par o iniacutecio de um novo

ciclo

Para didaticamente deixar claro ao leitor repito a figura que

representa esse ciclo

A Igreja como corpo de Cristo teve sua anunciaccedilatildeo e

concepccedilatildeo no Pentecostes 176

176 idem EDINGER1988 p130

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

227

Foi este o momento onde deixam os disciacutepulos de serem um

receptaacuteculo dos ensinamentos do mito de Cristo para nascer a Santa Igreja

Catoacutelica sem tratar aqui os movimentos de sua criaccedilatildeo como o grande

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo

Aqui o homem miacutetico entrega a Igreja o controle do proacuteprio espiacuterito

celestial podendo viver sua vida independente dos desiacutegnios dos ceacuteus podendo

em agindo dentro do mito buscar seu uacuteltimo dia momento em que voltaraacute a ser

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo dando a ideacuteia de uma encarnaccedilatildeo contiacutenua tanto do

homem quanto de Deus

228

APEcircNDICE 4 - UMA PROPOSTA DE INTERPRETAR PSICOLOacuteGICA E MITICAMENTE A

TRINDADE

A Alma eacute o maior dos milagres coacutesmicos CG Jung 177

Como todo o tema deste trabalho desde o nome o objeto de pesquisa

pode parecer estranho tanto a um psicoacutelogo como a um educador como a um

historiador

No entanto faccedilo mais essa anaacutelise de forma plena e consciente de que

entro neste momento em mais uma pesquisa polecircmica e que por mais que me

aprofunde neste momento natildeo deixaraacute de ser superficial

Acontece que em meu entender tal qual os siacutembolos de transformaccedilatildeo

cultural da missa ou a interpretaccedilatildeo da vida de Cristo este tema tambeacutem eacute

necessaacuterio para que se possa ter mais clara a visatildeo do mito cristatildeo e por

consequumlecircncia o Cristatildeo portuguecircs do seacuteculo XVI pois a Trindade nos daraacute mais

algumas informaccedilotildees de como culturalmente esse arqueacutetipo esse mito foi imposto

agrave nossa cultura e imposiccedilatildeo aos brasis

177 JAFFEacute-1995-p5

229

As religiotildees cristatildes estatildeo tatildeo presentes e tatildeo proacuteximas agrave alma humana

que seria impossiacutevel ignoraacute-las do ponto de vista psicoloacutegico educacional e do

ponto de vista cultura

Por mais que a ideacuteia Trindade esteja no campo da Teologia aacuterea que

natildeo me sinto habilitado ou sequer inclinado a pesquisar eacute na histoacuteria e na obra de

CG Jung que busco as informaccedilotildees que necessito para escrever sobre esse

dogma e o simbolismo trinitaacuterio

Que se tenha notiacutecia a Trindade do mito cristatildeo eacute a uacutenica que soacute

existe como trecircs partes de um uno As triacuteades divinas de tantos mitos primitivos

tecircm uma relaccedilatildeo de parentesco entre elas como por exemplo a triacuteade babilocircnica

Anu Bel e Ea onde Ea a personificaccedilatildeo do saber eacute o pai de Bel (o Senhor) que

personifica a atividade praacutetica Numa triacuteade secundaacuteria desse mito da eacutepoca de

Nabucodonosor Sin (a lua) Shamash (o sol) e Adad (a tempestade Senhor do

Ceacuteu e da Terra e filho do altiacutessimo Anu da triacuteade primaacuteria) No tempo de

Hamurabi Marduk filho de Ea substitui Bel e seus poderes levando Bel a um

segundo plano Nisso Hamurabi se considera um novo deus e soacute venerava uma

diacuteade Anu e Bel e por ser Hamurabi considerado um soberano divino

mensageiro de Anu e Bels e associa a eles criando nova triacuteade Anu

Bel

Hamurabi178

Assim como nesse exemplo vaacuterias culturas primitivas se utilizavam em

seus mitos de triacuteades divinas

178 JUNG1988par173-174

230

No entanto no Velho Testamento encontramos por diversas vezes um

Deus quase que uno pois onde surge o Espiacuterito a palavra vem acompanhada de

Espiacuterito de Deus Espiacuterito do Senhor o que se pode confirmar em

Gecircnesis cap 1 e 6

Nuacutemeros cap 24 e 27

Juiacutezes cap 36111314 e 15

I Samuel cap 1011 e 16

II Samuel cap 3

I Reis cap 18 e 22

II Reacuteus cap 2

II Crocircnicas cap151820 e 24

Assim como em Neemias Joacute Salmos Isaias Ezequiel Joel Miqueacuteias

Ageu e Zacarias

Somente no evento do Novo Testamento surge a segunda parte da

diacuteade Espiacuterito Santo

Ateacute esse momento se percebe principalmente em Joacute um Deus uacutenico

onipotente e onisciente poreacutem com caracteriacutesticas de uma dualidade na forma de

agir com o homem Existe aiacute um Deus justo e injusto doce e coleacuterico que cria e

destroacutei que necessitava de aplausos e reverecircncias e dado ao caraacuteter temiacutevel

fazia com que o homem se referisse constantemente a um Temor de Deus

231

De fato Javeacute tudo pode e se permite sem pestanejar um

momento Ele eacute capaz de projetar com impassibilidade feacuterrea o seu

proacuteprio lado sombrio e permanecer inconsciente disto agrave custa do ser

humano Eacute capaz de apelar para o seu poder supremo e promulgar

leis que para ele significam menos que o ar Os assasiacutenios os

morticiacutenios natildeo lhe causam preocupaccedilatildeo e quando lhe daacute na veneta

eacute capaz igualmente de qual um senhor feudal ressarcir

generosamente os danos provocados nos campos de cereais dos

servos Perdeste os teus filhos as tuas filhas e os teus escravos Natildeo

haacute de ser nada eu te darei outros em troca e melhores do que os

primeiros 179

Iahweh natildeo possui origem nem passado comparado com outros

deuses helecircnicos ou natildeo Seu primeiro filho sendo Adatildeo fez com que todos

fossem descendentes desse primeiro pai Mas os povos judeus atraveacutes do que foi

chamado de providentia specialis garante a si a semelhanccedila de Deus e para

aplacar essa ira divina propotildee um pacto Iahweh - Noeacute do qual surge nova alianccedila

de Deus com os homens

Somente no Novo Testamento surge a figura do Espiacuterito Santo e aiacute a

fixaccedilatildeo da imagem da diacuteade divina

No entanto ateacute este momento natildeo havia entendimentos entre Deus

Iahweh e os homens nem entre os homens e Deus Era necessaacuterio um

entendimento mais humano das coisas terrenas Parece que podemos entender

ser a criaccedilatildeo imperfeita e tambeacutem Deus natildeo pode atender plenamente os

179 JUNG 1990 par597

232

requisitos de sua tarefa era necessaacuteria a criaccedilatildeo de um intermediaacuterio que

entendesse das coisas divinas e das coisas humanas Um Deus mais humano e

que entendesse o logos Dei O Uno precisava ser substituiacutedo por outro O mundo

do Pai deveria ser substituiacutedo pelo mundo do Filho

Alguma transmissatildeo cultural deve ter havido advinda da Babilocircnia do

Egito e da Greacutecia pois esses siacutembolos fazem parte dos fundamentos das imagens

miacuteticas e arquetiacutepicas do pensamento humano Aqui discutimos apenas aquilo

que emanou natildeo de pressupostos filosoacuteficos (mesmo os platocircnicos) mas sim

dos pressupostos arquetiacutepicos inconscientes inerentes agrave natureza humana

O Espiacuterito Santo anuncia o nascimento do Filius Dei e se completa

assim a Trindade a qual eacute nossa pesquisa para este tema

A Trindade Cristatilde natildeo tem a mesma origem das triacuteades divinas

babilocircnicas egiacutepcias ou gregas pois elas se diferem na concepccedilatildeo Por exemplo

enquanto a triacuteade platocircnica resulta de uma antiacutetese a Trindade ao contraacuterio eacute

totalmente harmocircnica entre si As denominaccedilotildees Pai Filho e Espiacuterito Santo natildeo

derivam absolutamente do nuacutemero trecircs e sim de um elemento uno

Apoacutes o Pai logicamente segue-se o Filho no entanto o Espiacuterito Santo

natildeo tem sua origem nem no Pai nem no Filho sendo portanto uma realidade

particular e de um pressuposto diferente Conforme se pode obter de Jung180 na

antiga doutrina Cristatilde o Espiacuterito Santo eacute vera persona quae filio et a patre missa

est [verdadeira pessoa enviada pelo pai e pelo Filho] O processio a patre filioque [o

180 JUNG 1988 par 197

233

ato de proceder do pai e do Filho] eacute uma inspiraccedilatildeo e natildeo uma geraccedilatildeo como no

caso do filho

De acordo com sua definiccedilatildeo o Pai eacute a prima causa o

creator o auctor rerum (o criador das coisas) o qual num determinado

estaacutegio cultural incapaz de reflexatildeo pode ser simplesmente o Uno 181

Mas se procurarmos a Matildee natildeo a encontraremos na Trindade e assim

natildeo poderemos entender a geraccedilatildeo do Filho Seria Trindade tambeacutem

transformada e quatro pontos e natildeo mais em trecircs Acontece que desde a Babilocircnia

ou do Egito a relaccedilatildeo pai-filho-vida com a exclusatildeo da matildee ou progenitora divina

constitui a foacutermula patriarcal que fazia parte da cultura desses povos o que vai

influenciar totalmente a mesma relaccedilatildeo patriarcal do periacuteodo do nascimento da

Trindade Cristatilde

No velho Egito e no Cristianismo a Matildee de Deus fica fora da trindade

No templo as coisas ritualiacutesticas eram exclusivas do homem e seus filhos Em

Lucas (2 40-49) Maria vai ao templo onde Jesus com 12 anos estava jaacute haacute trecircs

dias entre os mestres e lhe pergunta onde andava e ele lhe responde Porque me

procuraacuteveis Natildeo sabiacuteeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai

Desde os primoacuterdios os ritos iniciaacuteticos dos primitivos misteacuterios

sempre afastaram os jovens de suas matildees e os transformavam atraveacutes de um

181 idem par199

234

novo nascimento Essa ideacuteia miacutetica e arquetiacutepica continua viva ateacute os tempos de

hoje atraveacutes do celibato sacerdotal Mais uma vez a cultura e sua transmissatildeo de

forma educacional geram as fontes do mito A relaccedilatildeo sublimada pai-filho gera a

concepccedilatildeo de um espiacuterito que representa a encarnaccedilatildeo ideal da vida masculina

Outra possibilidade de transformaccedilatildeo da triacuteade em quatro pontos de

fundamento seria a da inclusatildeo do democircnio nesse grupo No entanto tambeacutem

isso natildeo seria possiacutevel pois o mal o democircnio as disposiccedilotildees morais soacute surgem

com um Cristianismo jaacute fundado em bases soacutelidas com o mito cristatildeo jaacute fazendo

parte e tendo efeito na vida da alma humana e cristatilde

Gostaria de lembrar que o mito se forma com as imagens primordiais

que possuem fatores que coordenam a psique humana e seratildeo reconhecidos

como formadores do mito apoacutes pertencerem e fazerem efeito na vida do homem

Novamente a cultura e a transmissatildeo da tradiccedilatildeo geram as fontes miacuteticas Se as

disposiccedilotildees morais natildeo estavam definidas como definir o mal Como definir o

democircnio

Mas a evoluccedilatildeo continua e a Trindade se fixa nos conceitos do homem

do mundo conhecido de entatildeo A vida do Homem-Deus faz com que seja revelada

a mais importante das revelaccedilotildees coisas que soacute podiam ser explicadas pelo

Filho visto que o Pai em seu estado original de uno natildeo tinha como revelar ao

homem a existecircncia do Espiacuterito Santo que conforme foi visto anteriormente apoacutes

a morte do Filho apoacutes ter abandonado o espaccedilo terreno desce sobre a alma dos

homens e envolve a todos com sua bondade e benevolecircncia para fazer mais

235

pelos homens do que fez o Pai ou o Filho o elemento miacutetico que completa

definitivamente a Trindade e reconstitui a unidade

Assim se lecirc na primeira carta de Clemente 466 Temos

um soacute Deus e um soacute Cristo como tambeacutem um soacute Espiacuterito 182

Ou como pode ser lido no Credo batismal chamado o Symbolum

Apostolicum atestado por documentos a partir do seacuteculo IV

Creio em Deus Pai todo poderoso em Jesus Cristo seu

filho unigecircnito nosso Senhor o qual doacutei concebido pelo Espiacuterito

Santo e nasceu de Maria Virgem foi crucificado sob Pocircncio Pilatos e

sepultado ao terceiro dia ressurgiu dos mortos subiu aos ceacuteus estaacute

sentado agrave direita da Deus Pai de onde haacute de vir a julgar os vivos e os

mortos e no Espiacuterito Santo na santa Igreja na remissatildeo dos

pecados na ressurreiccedilatildeo da carne 183

Por mais que qualquer racionalidade cultural pudesse tentar explicar

esse conceito de Trindade sempre permaneceu incoacutelume principalmente porque

apoacutes um mito ter sido fundado por seu poder criador ele passa a pertencer a um

mundo arquetiacutepico que natildeo pode ser atingido pela racionalidade pois o arqueacutetipo

o mito por residir por emanar do inconsciente humano adquire um caraacuteter

numinoso que torna impossiacutevel enquadraacute-lo no mundo da racionalidade tendo

182 JUNG 1988 par 207 183 JUNG 1988 par 211

236

muitas vezes sim gerado em na histoacuteria discussotildees vazias disputas verbais e

ateacute violecircncia na tentativa de se explicar o dogma da Santiacutessima Trindade

O conceito de santidade indica que uma determinada

coisa ou ideacuteia possui valor supremo cuja presenccedila leva o homem

por assim dizer ao mutismo A santidade eacute reveladora eacute a forccedila

iluminante que dimana da forma arquetiacutepica184

Somente o termo santiacutessima jaacute nos faz entender que o arqueacutetipo se

tornou ativo e que o mito impregnou a alma do homem poacutes cristianismo ou como

denomina a psicologia tambeacutem racionalista de presenccedila psiacutequica extra-

consciente

Para onde entatildeo foi o homem Jesus como poderiacuteamos definir ou contar

sua histoacuteria enquanto homem Natildeo havia mais Jesus o homem foi substituiacutedo

pelo mito mesmo nas palavras de Paulo por exemplo pois nunca uma palavra de

Jesus foi citada em qualquer de seus discursos O que se falava de Jesus se

falava do mito do arqueacutetipo sempre representado pela figuras de O Senhor dos

Democircnios o Salvador Coacutesmico etc Nunca mais surge na histoacuteria o humano de

Jesus Transformou-se o homem em sua expressatildeo miacutetica pois o Homem-Deus

o Deus Eterno natildeo tem histoacuteria do ponto de vista humano somente alegorias da

iconografia da Idade Meacutedia

184 JUNG 1988 par 235

237

Como pastor Ele eacute o condutor e o centro dos rebanhos Eacute

a videira Enquanto os que o seguem satildeo os ramos Seu corpo eacute patildeo

que se come e seu sangue eacute vinho que se bebe Ele eacute tambeacutem

Corpus mysticum formado pela uniatildeo dos crentes Como

manifestaccedilatildeo humana eacute o Heroacutei e o Homem-Deus sem pecado por

isso mais completo e perfeito do que o homem natural que Ele

ultrapassa e abrange e que estaacute pra Ele na mesma relaccedilatildeo de uma

crianccedila para o adulto ou da ovelha pra o homem 185

Ele eacute o Arqueacutetipo da Cristandade ele eacute o mito Cristatildeo

185 JUNG 1988 par 229

238

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Fontes

ANCHIETA Joseacute de Cartas

Informaccedilotildees Fragmentos Histoacutericos e

Sermotildees

1534-1597 Belo Horizonte Itatiaia S Paulo Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1988

__________ Diaacutelogos da Feacute

obras completas 8deg vol

introduccedilatildeo e notas

Pe Armando Cardoso Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988

__________ Feitos de Men de Saacute Paraacute de Minas Virtual Books 2000

__________ Auto de Satildeo Lourenccedilo - Paraacute de Minas Virtual Books 2000

BETTENDORF Joatildeo Felipe Pe 1627-1698

Crocircnica dos padres da

Companhia de Jesus do Estado de Maranhatildeo Beleacutem Fundaccedilatildeo Cultural do

Paraacute Tancredo Neves 1990

CARDIM Fernatildeo

1540-1625

Tratados da terra e gente do Brasil Belo

Horizonte Ed Itatiaia Satildeo Paulo Ed Da Universidade de Satildeo Paulo 1980

COLOacuteNCristoacutebal - Carta a los Reyes Catoacutelicos - 2000 virtualbookscombr -

Editora Virtual Books - Online MampM Editores Ltda

CAMINHA Pero Vaz de

A Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de

Portugal - Ministeacuterio da Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

(Coacutepia obtida via internet) e Carta de Pero

Vaz de Caminha

A certidatildeo de Nascimento da Naccedilatildeo Brasileira

Brasil 500

Anos Bradesco - 2000

NAVARRO Azpicuelta e outros - Cartas Avulsas 1550-1568 Belo Horizonte

ItatiaiaSatildeo Paulo Edusp 1988

NOacuteBREGA Manuel da Cartas do Brasil Belo Horizonte - ItatiaiaSatildeo Paulo

Edusp 1988

SALVADOR Frei Vicente do A Histoacuteria do Brasil

1500-1627 5a Ed Satildeo

Paulo Melhoramentos 1965

239

STADEN Hans Duas Viagens ao Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia Satildeo

Paulo Ed da Universidade de Satildeo Paulo [1557] 1974

VIEIRA Pe Antonio Sermotildees

Obras Completas

vol V- Sermatildeo do

Espiacuterito Santo Lisboa Lelo e irmatildeo Editores 1951

OUTRAS REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREU J Capistrano de

Capiacutetulos da Histoacuteria Colonial - Ministeacuterio da

Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro

versatildeo para e-books [httpwwwbnbrbibvirtualacervo]

1907

obtida em

2004

BACHELARD Gaston

A Terra e os Devaneios do Repouso

Satildeo Paulo

Martins Fontes 1990

BIacuteBLIA ELETROcircNICA 252 RK Soft Desenvolvimento

BIacuteBLIA SAGRADA - Nova traduccedilatildeo na linguagem de hoje

Barueri-SP

Sociedade Biacuteblica do Brasil 2000

BUENO Silveira

Vocabulaacuterio Tupi-Gurani

Portuguecircs

Satildeo Paulo Eacutefeta

Editora 1998

CALMON Pedro

Histoacuteria do Brasil

Seacuteculo XVI

As origens e Seacuteculo

XVII

Formaccedilatildeo Brasileira - Vol 1 e 2

Rio de Janeiro - Livraria Joseacute

Oliacutempio Editora 2a ed 1963

CALLOIS Roger Les jeux et les hommes

le masque et le vertige Paris

Galiimard 1985

CAMPBELL Joseph com Bill Moyers

O Poder do Mito - Satildeo Paulo Ed

Palas Athena 1990

240

CARDOSO Armando (Trad) O Teatro de Anchieta

Obras Completas - 3o

Volume - SPaulo Loyola 1977

CARNOT Sady A destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

Brasil Seacuteculo XVI

uma visatildeo junguiana

Prefaacutecio de Joseacute Maria de Paiva - S Matheus

ES

Memorial 2005

CAROTENUTO Aldo

Eros e Pathos Amor e sofrimento Satildeo Paulo Ed

Paulus 1994

CASSIRER Ernest

Antropologiacutea Filosoacutefica

Meacutexico Fondo de Cultura

Econoacutemica 1945

CHAIN Iza G C

O Encontro de Dois Mundos In O Diabo nos Porotildees das

Caravelas Tese de Mestrado texto obtido atraveacutes da Internet 2003

CRIPPA Adolfo

Mito e Cultura Satildeo Paulo Conviacutevio 1975

DEWEY John

Democracia e educaccedilatildeo Breve tratado de Philosophia de

Educaccedilatildeo Biblioteca Pedagoacutegica Brasileira

Companhia Editora Nacional S

Paulo 1936

DOURLEY John P A doenccedila que somos noacutes

A criacutetica de Jung ao

cristianismo trad Roberto Girola - Satildeo Paulo Paulus 1987

EDINGER Edward F

O Arqueacutetipo Cristatildeo

Um comentaacuterio junguiano

sobre a vida de Cristo Satildeo Paulo Cultrix 1988

__________ - A Criaccedilatildeo da Consciecircncia

O mito de Jung para o Homem

moderno Satildeo Paulo Cultrix 1999

FERNANDES Florestan

A funccedilatildeo social da guerra na sociedade

Tupinambaacute - Satildeo Paulo Livraria Pioneira Editora 1970

FREYRE Gilberto - Casa Grande e Senzala - Rio de Janeiro Livraria Joseacute

Oliacutempio 1984

__________- Casa Grande e SenzalaRio de Janeiro Rio Filmes com apoio

da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco e Fundaccedilatildeo Gilberto Freyre

narrado por

241

Edson Nery da Fonseca amigo pessoal e bioacutegrafo de Gilberto Freyre Capiacutetulo

II A cunha matildee da Famiacutelia Brasileira 2000

GAMBINI Roberto

O espelho iacutendio os jesuiacutetas e a destruiccedilatildeo da alma

indiacutegena - Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo 1988

GAcircNDAVO Pero de Magalhatildees

Tratado da Terra do Brasil

Histoacuteria da

Proviacutencia Santa Cruz - Belo Horizonte Itatiaia 1980

GINZBURG Carlo Mitos Emblemas Sinais - Satildeo Paulo Schwarkz 2002

GODINHO Vitorino Magalhatildees A estrutura social do Antigo Regime In

GODINHO VM A estrutura na Antiga Sociedade portuguesa Lisboa Arcaacutedia

1971

GUSDORF Georges Mito y Metafiacutesica Buenos Aires Editorial Nova 1959

HERNANDES Paulo Romualdo O Teatro de Joseacute de Anchieta Arte e

Pedagogia no Brasil Colocircnia

Campinas Biblioteca de Educaccedilatildeo da

UNICAMP 2001

HOELLER Stephan A A Gnose de Jung e os Sete Sermotildees aos mortos

Satildeo Paulo Cultrix 1991

__________ Jung e os evangelhos perdidos

Uma apreciaccedilatildeo junguiana

sobre os manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi - Satildeo

Paulo CultrixPensamento 1993

HOLLIS James

Rastreando os Deuses

O lugar do mito na vida

moderna Satildeo Paulo Paulus 1998

JAFFEacute Aniela

O Mito do significado na Obra de C Gustav Jung- Satildeo

Paulo Cultrix 1995

JACOBI Jolande Complexo Arqueacutetipo Siacutembolo na Psicologia de CG

Jung Satildeo Paulo Ed Cultrix 1991

JECUPEacute Kakaacute Weraacute A Terra dos mil Povos Satildeo Paulo Editora Fundaccedilatildeo

Peiroacutepolis 1999

242

______Tupatilde Tenondeacute Satildeo Paulo Peiroacutepolis 2001

JUDY Dwight H

Curando a Alma Masculina

O Cristianismo e a

Jornada miacutestica Satildeo Paulo Paulus 1998

JUNG C G A importacircncia dos sonhos In O Homem e seus siacutembolos

CG Jung MLvon Franz Joseph L Henderson Jolande Jacobi e Aniela Jaffeacute

Rio de Janeiro Nova Fronteira 1964

_______ Memoacuterias Sonhos e Reflexotildees Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira

1975

_______ Psicologia e Religiatildeo - Obras Completas

Vol XI1 Petroacutepolis

Vozes 1978

_______ Aion - Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo Petroacutepolis

EdVozes 1982

_______ O Siacutembolo da Transformaccedilatildeo na Missa Obras Completas Vol

XI3 Petroacutepolis Ed Vozes 1985

_______ Mysterium Coniunctionis

Obras Completas- vXIV1 Petroacutepolis

Vozes 1988

_______ A interpretaccedilatildeo Psicoloacutegica do Dogma da Trindade Obras

Completas Vol XI2 Petroacutepolis Vozes 1988

_______ Siacutembolos da Transformaccedilatildeo Obras completas VolV Petroacutepolis

Vozes 1989

_______ Civilizaccedilatildeo em Transiccedilatildeo Petroacutepolis Ed Vozes 1993

_______ Resposta a Jocirc Petroacutepolis Ed Vozes 1990

LACOUTURE Jean Os Jesuiacutetas

A Conquista

vol 1

Lisboa Editorial

Estampa 1993

LANA Firmino Arantes e LANA Luiz Gomes

Antes o mundo natildeo existia

Mitologia dos antigos Desana-Kehiriacutepotilderatilde - Satildeo Gabriel da Cachoeira

AM

FOIRN Federaccedilatildeo das Organizaccedilotildees dos Indiacutegenas do Rio Negro 1995

243

MAGASICH-AIROLA Jorge e BEER Jean-Marc de Ameacuterica Maacutegica

Quando a Europa da Renascenccedila pensou estar conquistando o Paraiacuteso

Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

MAY Rollo A procura do mito Satildeo Paulo Manole1992

MENDES Antoacutenio Rosa A vida Cultural In MATTOSO Joseacute Histoacuteria de

Portugal Lisboa Estampa1992 tIII coord de Joaquim Romero Magalhatildees

MONTEIRO John M Tupis Tapuias e Historiadores- Estudos de Histoacuteria

Indiacutegena e do Indigenismo Tese apresentada pra o concurso de Livre

Docecircncia Aacuterea de Antropologia Campinas IFCH Unicamp 2001

MORENTE Manuel Garcia Fundamentos de filosofia e liccedilotildees preliminares

(metafiacutesica idealismo e positivismo)8a Ed Traduccedilatildeo e proacutelogo de Guilhermo

de la Cruz Coronado Satildeo Paulo Editora Mestre Jou 1930

NEVES Luiz Felipe Baeta

O Combate dos Soldados de Cristo na Terra

dos Papagaios

Colonialismo e Repressatildeo Cultural

Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1978

NOGUEIRA Carlos Roberto F O Diabo no imaginaacuterio cristatildeo Bauru Edusc

2000

PAIVA Joseacute Maria de Histoacuteria da Educaccedilatildeo Colonial

texto natildeo publicado

2002

_______ Religiosidade e Cultura

Brasil Seacuteculo XVI uma chave de

leitura Texto natildeo publicado 2002

_______ Catequese e Colonizaccedilatildeo Satildeo Paulo CortezAutores Associados

1982

PEacuteCORA Alcir Teatro do sacramento A unidade teoloacutegico-retoacuterico-

poliacutetica dos sermotildees de Antocircnio Vieira Satildeo Paulo-Campinas EduspEditora

da Unicamp 1994

RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

244

SEREBURAtilde e outros

Wamrecircmeacute Zaacutera

Mito e Histoacuteria do Povo Chavante

Nossa Palavra Satildeo Paulo SENAC 1998

TAVARES Eduardo e outros

Missotildees Jesuiacutetico- Guarani Satildeo Leopoldo

Unisinos 1999

TODOROV Tzvetan A Conquista da Ameacuterica A questatildeo do outro 3a Ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

WHITMONT Edward A Busca do Siacutembolo Satildeo Paulo Ed Cultrix 1990

WYLY James

A busca Faacutelica

Priapo e a Inflaccedilatildeo Masculina

Satildeo

Paulo Ed Paulus 1994

XAVIER Acircngela Barreto amp HESPANHA Antonio Manuel a Representaccedilatildeo da

Sociedade e do PoderIn MATTOSO Joseacute Histoacuteria de Portugal t IV Coord

de Antocircnio Manuel Hespanha Lisboa Estampa 1992

httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905

This document was created with Win2PDF available at httpwwwwin2pdfcomThe unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only

Page 2: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão

2

O Mito Cristatildeo contra Guaixaraacute e os outros diabos

Educaccedilatildeo e conversatildeo Seacuteculo XVI e XVII

Sady Carnot

Orientador Prof Dr Joseacute Maria de Paiva

Piracicaba SP

2006

Tese apresentada agrave Banca Examinadora do Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo da UNIMEP obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em

Educaccedilatildeo

Prof Dr Joseacute Maria de Paiva

Prof Dr Luiz Francisco Albuquerque de Miranda

Prof Dr Edivaldo Joseacute Bortoleto

Prof Dr Amarilio Ferreira Junior

Profa Dra Marisa Bittar

3

Agradecimentos

Agrave Ana Claacuteudia a luz que tem iluminado tantos caminhos

Homenagem

Aos meus filhos Gustavo Rodrigo e Leonardo com todo

amor que possa existir neste mundo

Para aqueles que natildeo puderam esperar e se encontram hoje

nos meus mitos e em minhas lembranccedilas Alice minha matildee

e Holmes meu pai

O presente trabalho foi realizado com o apoio da

COORDENACcedilAtildeO APERFEICcedilOAMENTO DE PESSOAL DE

NIacuteVEL SUPERIOR CAPES

BRASIL

4

RESUMO

Por entender que a anaacutelise de uma cultura mais englobante que outra eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual foi buscado neste trabalho entender como

essa espiritualidade leva o olhar para o centro do universo fazendo com que tudo

seja olhado a partir desse prisma Trata-se aqui dos resultados da conversatildeo dos

indiacutegenas durante o periacuteodo jesuiacutetico das coisas boas trazidas aos indiacutegenas

pela educaccedilatildeo portuguesa e do confronto de culturas na busca pela verdade de

um e de outro desse embate de mitos de tabus e pecados de Deus e de

demiurgos

Ao pesquisar como a visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do

viver na Europa quinhentista e seiscentista encontra-se que a feacute em Deus era a

uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou serem levados por ela ao uacutenico

mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural

natildeo era mais a natureza do homem e sim que a palavra de Deus tal qual

transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra conhecida e das terras a

se conhecer

O homem eacute nesse momento histoacuterico ator cultural de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

5

Era gerado entatildeo o grande embate de mitos baseado na saga de dois

heroacuteis de polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo

Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o

Orbis Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico indiacutegena

Eacute tratada aqui a ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas

onde os jesuiacutetas foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena

a Liacutengua Geral de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os

conceitos de sua cultura e de denegrir os conceitos da cultura indiacutegena

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas que as peccedilas que satildeo sempre as

mesmas estatildeo presas numa caixa Claro a educaccedilatildeo tambeacutem se baseia no mito

cultural

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida A educaccedilatildeo eacute exatamente isso

uma maneira de transmitir esse modo herdado e a maneira inata de se viver O

homem eacute o todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias

arquetiacutepicas que todos os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo

individual e possuindo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder essa participaccedilatildeo

arquetiacutepica de seu mundo o homem estaacute morto mesmo que natildeo fisicamente ele

agora eacute um defuncto que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

A didaacutetica da catequese trazia a definiccedilatildeo do democircnio ou do Diabo agraves

mentes indiacutegenas e isso se fazia pela pedagogia do terror que se impunha agraves

6

mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeosNesse embate

cultural uma certa profecia praticamente se confirmava de que haveria uma

transformaccedilatildeo de brancos em iacutendios e de iacutendios em brancos mas isso natildeo foi

possiacutevel pois ao final o mito cristatildeo derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos

os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano

7

RESUMEN

Por entender que la analice de una cultura mucho maacutes englobante que

otra es hecha de una forma mitoloacutegica y espiritual se busco en este trabajo

entender como esa espiritualidad lleva la mirada para el centro del universo

haciendo con que el todo sea mirado a partir de ese prisma Trata-se acaacute de los

resultados de la conversioacuten de los indiacutegenas durante el periacuteodo jesuiacutetico de las

cosas buenas traiacutedas a los indiacutegenas por la educacioacuten portuguesa y del

confronto de culturas en la buacutesqueda por la verdad de uno y de otro en ese

embate de mitos de tabus e pecados de Diacuteos e de demiurgos

Al pesquisar como la visioacuten del Orbis Christianus era la traduccioacuten del

vivir en la Europa quinientista se encuentra que la fe en Diacuteos era la uacutenica verdad

Todos deberiacutean estar en ella o llevados por ella al uacutenico mundo verdadero afora

del cual todo lo maacutes seria incuria e aberracioacuten El natural no era maacutes la

naturaleza Del hombre y si que la palabra de Diacuteos tal cual transmitida por la fe

cristiana llegase a los confines de la tierra conocida y de las tierras a conocer

El hombre es en ese momento histoacuterico actor cultural de una

complicada relacioacuten originaria de una dicotomiacutea entre el representado miacuteticamente

y el vivido en su realidad cotidiana no teniendo permisioacuten para conocer el pensar

el Bien sin antes pensar en el Mal pues sin embargo era tiempo de se reconocer

8

el enemigo para poder combate a ello por la gloria y triunfo del Redentor por

sobre el Tentador

Era generado entonces el embate de mitos con base en la saga de dos

heacuteroes de polaridades contrarias el europeo y el indiacutegena Cristo y el Diablo San

Lorenzo y San Sebastiaacuten de un lado contra Guaixaraacute y Aimberecirc del otro el Orbis

Christianus versus la visioacuten arquetiacutepica y el espiacuteritu cosmogoacutenico indiacutegena

Es tratada acaacute la herramienta de esa educacioacuten imposta a os

indiacutegenas donde los jesuitas fueran de una felicidad sin par al utilizaren la lengua

indiacutegena la Lengua General de Anchieta e sus autos teatrales como forma de

transmitir los conceptos de su cultura y de denegrir los conceptos de la cultura

indiacutegena

La educacioacuten es y siempre fue un caleidoscopio que muestra los maacutes

diversos y bellos dibujos e formas mas que las piezas que son siempre las

mismas estaacuten presas en una caja Claro la educacioacuten tambieacuten hace su base en el

mito cultural

La funcioacuten de los mitos no es denotar una idea recibida pero si un

modo de funcionamiento que corresponde a la manera innata pela cual el hombre

nace e se relaciona en su vida vivida La educacioacuten es exactamente eso una

manera de transmitir ese modo recibido por herencia y la manera innata de se

vivir El hombre es el todo de sus relaciones pues recibe las mismas influencias

arquetiacutepicas que todos los hombres de su grupo social reciben mismo siendo

individual e teniendo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder esa participacioacuten

9

arquetiacutepica de su mundo el hombre esta muerto mismo que no fiacutesicamente ello

ahora es un defuncto que no poseacute maacutes funciones a delante de la vida

La didaacutectica de la catequice tenia en si la definicioacuten del demonio o del

Diablo y la metiacutea en las mentes indiacutegenas y eso se haciacutea por la pedagogiacutea del

terror que se impugna a las mentes desavisadas de la existencia del Bien y del

Mal de los cristianos

En ese embate cultural una cierta profeciacutea praacutecticamente si confirmaba

que habriacutea una transformacioacuten de blancos en indios y de indios en blancos pero

eso no fue posible pues al final el mito cristiano derrotoacute Guaixaraacute Aimbirecirc

Saravaia y todos los otros diablos llevando con ellos hasta Deacutecio e Valeriano

10

SUMAacuteRIO

RESUMO _________________________________________________________ 4

RESUMEN ________________________________________________________ 7

SUMAacuteRIO _______________________________________________________ 10

Introduccedilatildeo _______________________________________________________ 11

Capiacutetulo 1 - A educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura que ensina e altera

costumes________________________________________________________ 36

Capiacutetulo 2 - O Mito ________________________________________________ 46

Capiacutetulo 3 - O mito Cristatildeo___________________________________________ 72

Capiacutetulo 4 - Como o Europeu Cristatildeo compreendia os indiacutegenas e a concepccedilatildeo

que tinham da vida desses brasis _____________________________________ 76

Capiacutetulo 5 - Como os indiacutegenas teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde e as dificuldades

encontradas na missatildeo de converter ___________________________________ 93

Capiacutetulo 6 - O Teatro como ferramenta educacional e de catequese _________ 119

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos_____________ 126

Conclusatildeo - O resultado do embate desses mitos na educaccedilatildeo e na cultura

brasileira________________________________________________________ 145

Apecircndices ______________________________________________________ 151

Apecircndice 1 O Auto de Satildeo Lourenccedilo Joseacute de Anchieta ________________ 152

Apecircndice 2 - A missa e os siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem____ 197

Apecircndice 3 O Mito de Cristo _______________________________________ 208

Apecircndice 4 - Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade 228

Referecircncias Bibliograacuteficas__________________________________________ 238

Outras referecircncias bibliograacuteficas_____________________________________ 239

11

INTRODUCcedilAtildeO

Eu queria ser como a aranha que tira de seu ventre todos

os fios de sua obra A abelha me eacute odiosa e o mel eacute para mim o

produto de um roubo

Papini Un homme fini

Entendendo que concluiacutedo o Mestrado em Histoacuteria e Educaccedilatildeo

trabalhando atraveacutes da teoria de Carl Gustav Jung a relaccedilatildeo jesuiacutetica com os

indiacutegenas no seacuteculo XVI mostrando a destribalizaccedilatildeo da alma indiacutegena atraveacutes da

imposiccedilatildeo cultural deveria continuar no processo de pesquisa sobre o assunto e

sob a mesma lente

Pesquisei teoacutericos filoacutesofos educadores e historiadores que pudessem

comprovar a tese a ser apresentada

Busco no sentido da vida desses homens jesuiacutetas em suas relaccedilotildees

com os indiacutegenas a proacutepria vida desses padres experienciada e tornada viva

atraveacutes de seus mitos e crenccedilas

Entendo que a anaacutelise de uma cultura elaborada por outra muito mais

englobante como no caso da cultura portuguesa em relaccedilatildeo agrave dos indiacutegenas eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual Essa espiritualidade leva o olhar para o

12

centro do universo fazendo com que tudo seja olhado a partir desse prisma

conforme jaacute pude demonstrar em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena objeto de

minha dissertaccedilatildeo de mestrado

Por entender o trabalho jesuiacutetico uma tarefa hercuacutelea composta de

uma saga heroacuteica na luta contra a resistecircncia indiacutegena agrave conversatildeo e agrave

catequese busco a simbologia e a interpretaccedilatildeo dessa saga

Por entender que mesmo sabendo dos resultados dessa conversatildeo no

sentido de destruir a alma indiacutegena houve como resultado desse confronto de

culturas um embate pela busca da verdade de sentido de significaccedilatildeo atraveacutes

dos tempos que alimentavam as mentes ainda eacutebrias de medievalismo e das

experiecircncias da alma do mato busco essa miacutetica esse relato de embates

Embate de mitos Embate de tabus e pecados de Deus e de deuses Enfim da

experiecircncia de vida

Quando utilizo a palavra embate em vaacuterios momentos deste texto

posso estar sendo ateacute mesmo mal compreendido pois muitos leitores poderatildeo

afirmar que as culturas quando se encontram se permeiam se harmonizam

Poderatildeo afirmar que sempre no encontro de duas culturas sobraraacute para os dois

lados aculturaccedilotildees costumes expressotildees linguumliacutesticas lendas antigas e as lendas

que surgiratildeo desse encontro Claro que sim natildeo tenho duacutevidas quanto a isso

Mas natildeo eacute essa a intenccedilatildeo Minha proposta eacute a de deixar claro que em

se tratando dos mitos culturais em se tratando do cristatildeo europeu ainda o

portuguecircs mais ameno que o espanhol houve sim um embate de mitos isto eacute um

choque impetuoso de culturas composta de oposiccedilotildees e resistecircncias (agraves vezes

13

mais passivas ou paciacuteficas poreacutem natildeo menores) poreacutem sempre se forma a

comparar-se com um abalo violento e profundo nas crenccedilas dos indiacutegenas

brasileiros

Por mais que resistissem os brasis o Orbis Christianus era violento

quanto agrave natureza real do homem

A visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do viver na Europa

quinhentista A feacute em Deus era a uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou

serem levados por ela ao uacutenico mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria

injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural natildeo era mais a natureza do homem e sim que a

palavra de Deus tal qual transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra

conhecida e das terras a se conhecer

Atraveacutes dessa visatildeo de mundo pudemos assistir agrave instituiccedilatildeo de novos

conteuacutedos simboacutelicos nas terras receacutem-descobertas articulados de maneira

extremamente eficaz entre a realidade cristatilde e o imaginaacuterio europeu quinhentista

Os guardiotildees do sagrado como foram chamados os cleacuterigos

devotam suas vidas com o uacutenico intuito de uniformizar as consciecircncias e converter

as almas pertencentes a Satatilde e seus ajudantes garantindo a hegemonia das

crenccedilas e a desculturaccedilatildeo de qualquer povo que natildeo vivesse os bons costumes

e natildeo pertencesse ao rebanho de fieacuteis

O seacuteculo XVI denotou na visatildeo cristatilde que o mundo se encontrava

dividido em duas partes bastante distintas

Os que cultivavam o Bem e as virtudes

14

Os que cultivavam o Mal e seus viacutecios

Tal qual na alegoria usada em O diabo no imaginaacuterio cristatildeo

O mundo se orienta como o portal de uma igreja goacutetica no

alto e no meio encontra-se Deus rodeado de um coro de anjos com

os santos e os justos prestando-lhes homenagem abaixo estatildeo os

mortais e na parte inferior ou agrave espreita os espiacuteritos malignos que

possuem formas horriacuteveis ou pelo menos enigmaacuteticas e cocircmicas

(NOGUEIRA 2000 39)

O homem eacute nesse momento histoacuterico personagem de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

Em contra-partida a essa postura miacutetica cristatilde surgem nas relaccedilotildees os

conteuacutedos da psique primitiva dos indiacutegenas brasileiros gerando costumes

padrotildees de comportamentos remexendo as sombras 1 jesuiacuteticas influenciando

1 A Sombra enquanto arqueacutetipo -Conforme nos orienta ML von Franz (JUNG 1964) e citado em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena (CARNOT Sady 2005p55) A Sombra pertence ao nosso mundo interior mais escondido descendo agraves profundezas do nosso proacuteprio mal e tornando o indiviacuteduo capaz de reconhecer em si o instinto e suas mentiras nada inocente nem tolo mas bem protegido contra tudo aquilo que de dentro possa surgirO arqueacutetipo Sombra eacute de todos os conteuacutedos arquetiacutepicos o que fica mais proacuteximo ao Ego cuja essecircncia estaacute mais em contato com a tona mais superficial sendo formada por componentes que jaacute fizeram parte um dia do presente do indiviacuteduo jaacute fizeram parte do seu cotidiano mas que foram reprimidos por natildeo pertencerem ao rol de compatibilidades desejadas pelos valores estabelecidos pelo social ao consciente ou por natildeo terem sido fortes o suficiente para ultrapassarem a consciecircncia e permaneceram em latecircncia dentro do Inconsciente Pessoal

15

com suas resistecircncias de aculturaccedilatildeo todo um conteuacutedo arquetiacutepico europeu que

veio dar origem agrave cultura brasileira

Esses embates culturais podem ser notados em cartas de marinheiros

cartas de jesuiacutetas a seus superiores e irmatildeos da Companhia de Jesus aleacutem da

utilizaccedilatildeo das simbologias miacuteticas de nossos indiacutegenas na elaboraccedilatildeo de taacuteticas

de conversatildeo presentes nos aldeamentos na supremacia dos sacramentos na

pedagogia do dia-a-dia e em especial em Anchieta que os mostra atraveacutes dos

autos como o de S Lourenccedilo e o da Pregaccedilatildeo Universal entre outros

Nesses autos nota-se claramente a noccedilatildeo de bem e mal que era

passada de forma determinista aos indiacutegenas

O Bem representando o fiel o santo o heroacutei o salvador os padres ou

abareacute a personagem Karaibebeacute grande cacique que aliado de Tupatilde e dos abareacute

na defesa das novas leis e dos novos costumes mostram o erro de seguir os

maus costumes das tradiccedilotildees e das falas de Guaixaraacute e Aimbirecirc

O Mal representado tambeacutem por grandes chefes como Guaixaraacute e

Aimbirecirc o diaboacutelico o proacuteprio democircnio bebedor de cauim que gosta de fumar e

defender os costumes da tradiccedilatildeo como danccedilar enfeitar-se tingir o corpo de

vermelho do urucum ou do preto da jemouacutena (una = preto)

Enfim grande embate de mitos baseado na saga de dois heroacuteis de

polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo Lourenccedilo e

16

Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o Orbis

Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico 2 indiacutegena

Muitas vezes em minha tese pretendo utilizar o conceito de experiecircncia

definido como um conhecimento que nos eacute transmitido pelos sentidos como um

conjunto de conhecimentos individuais ou especiacuteficos que constituem aquisiccedilotildees

vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade quer no sentido

metafiacutesico quer no sentido de aculturaccedilatildeo

A cada experiecircncia o indiviacuteduo se expotildee e soma a si o resultado do

ocorrido do fato do resultado Assim experiecircncia eacute a soma das situaccedilotildees que

influenciaram e influenciam a pessoa e as comunidades em toda a histoacuteria da

humanidade

Na imposiccedilatildeo cultural do portuguecircs do seacuteculo XVI sobre o indiacutegena

muitas vezes a renovaccedilatildeo era feita sob pressatildeo sob coerccedilatildeo em que o algo

transformado o indiviacuteduo transformado era sem que a experiecircncia pudesse ser

acumulada e sim imposta natildeo permitindo ao gentio a interaccedilatildeo com sua proacutepria

vida e em relaccedilatildeo ao ambiente do qual dependia visceralmente para sobreviver

Essa soma que Dewey chama de renovaccedilotildees satildeo a extensatildeo da

experiecircncia do indiviacuteduo e da espeacutecie no entanto vida para o ser humano

consiste em costumes crenccedilas instituiccedilotildees vitoacuterias e derrotas isto eacute a

experiecircncia

2 do grego kosmogonia - A origem ou formaccedilatildeo do mundo do universo conhecido Parte de uma cosmologia que trata especificamente da criaccedilatildeo e formaccedilatildeo do mundo Qualquer narrativa doutrina ou teoria a respeito da origem do mundo ou do universo

17

Poderia dizer que o homem vive em comunidade nas relaccedilotildees

pessoais em virtude das coisas que tem em comum e a comunidade eacute o meio

pelo qual se chega a possuir essas coisas comuns No entanto na relaccedilatildeo entre

mitos indiacutegenas total e completamente inserido no que falaremos mais tarde no

mito filosoacutefico e a imposiccedilatildeo do mito cristatildeo considerado numa relaccedilatildeo com a

racionalidade pouco de comum havia entre esses dois povos tatildeo distintos Por um

lado o aguerrido o natural o nu e o livre e do outro dogmas pecados eacutebrios de

medievalidade impondo sua cultura ad majorem Dei gloriam

A educaccedilatildeo como forma de transmissatildeo de cultura suprime a distacircncia

entre as ideacuteias dos mais velhos e a acircnsia de conhecer e modificar dos mais novos

e imaturos No entanto perguntaria a esses indiacutegenas se as ideacuteias dos

considerados mais velhos mais importantes ateacute mesmo com poderes divinos

como se os tivessem os padres jesuiacutetas natildeo tinham uma distacircncia tatildeo grande de

suas proacuteprias ideacuteias a ponto de que essas ideacuteias natildeo pudessem ser entendidas

tal como as noccedilotildees de pecado de ceacuteu e inferno ou mesmo de um deus tatildeo cruel a

ponto de matar toda uma tribo atraveacutes da gripe ou da variacuteola para mostrar que

esse Deus deveria ser louvado

Natildeo eacute por viverem em proximidade material ou por trabalharem pelo

mesmo fim comum que se pode dizer que um indiviacuteduo vive em comunidade eacute

necessaacuterio que se possua o conhecimento desses fins comuns sejam eles seus

deuses seu governo seus costumes e seus anseios Isso sim forma uma

comunidade Uma comunidade eacute aquela que vive no mesmo mito mito esse que

lhe explica a vida natildeo explicaacutevel

18

Toda comunicaccedilatildeo eacute educativa pois receber comunicaccedilatildeo receber

educaccedilatildeo eacute adquirir experiecircncia que viraacute a modificar seu modo de vida Quando o

modus faciendi de um indiviacuteduo modifica o modus vivendi de sua comunidade ele

estaacute fazendo cultura ele estaacute educando Ensinar a caccedilar eacute educar ensinar a

danccedilar eacute educar fazer um indiviacuteduo receber um novo mito eacute educar assim

ensinar a roubar e a matar eacute tambeacutem educar fazer adorar a um novo deus

tambeacutem eacute educar

Quando se fala em educaccedilatildeo formal poreacutem estamos falando de como

examinar se as aptidotildees daquilo que foi passado de um indiviacuteduo para outro para

habilitaacute-lo a participar de forma melhorada de uma vida em comum Eacute na

educaccedilatildeo formal escolar que se verifica se essa habilidade atua realmente nessa

vida comunitaacuteria isto eacute se o indiviacuteduo estaacute adaptado e atuando na vida comum se

estaacute avaliando se os conhecimentos transmitidos foram eficientes e se verifica

ainda a eficaacutecia dessa transmissatildeo

A educaccedilatildeo formal em suma avalia a eficaacutecia daquilo que foi passado

em conteuacutedo programaacutetico e isso existia de alguma forma nas escolas de ler e

contar criada pelos jesuiacutetas no Brasil Colocircnia

No entanto nas sociedades tribais ou grupos sociais menos

desenvolvidos encontramos muito pouco de adestramento formal poreacutem

encontramos vivecircncias de ritos de passagem nos quais os mitos satildeo fortes

ferramentas dessa educaccedilatildeo que considero tambeacutem formal poreacutem natildeo seriada e

programada

19

Como ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas os jesuiacutetas

foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena a Liacutengua Geral

de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os conceitos de sua

cultura e de demonizar os conceitos da cultura indiacutegena

Novamente afirmo ter clara a interpenetraccedilatildeo de valores e as traduccedilotildees

desses valores em ganho e perda para ambos os lados no entanto tento mostrar

aqui a habilidade de Anchieta em utilizar a liacutengua indiacutegena como ferramenta de

catequese como uma forma de acesso e penetraccedilatildeo na educaccedilatildeo indiacutegena e da

possibilidade com isso da imposiccedilatildeo de conceitos da Europa seiscentista

Habilidade houve tambeacutem por parte desse jesuiacuteta quando criou atraveacutes

dos autos a experiecircncia vivida pelo indiacutegena durante os espetaacuteculos teatrais

substituindo ateacute mesmo a liacutengua falada por ideacuteias contidas na gestualiadade

conforme nos mostra os paracircmetros do teatro greco-romano3 base dos autos de

Anchieta O corar o sorrir franzir o cenho os movimentos expressivos eacute que

3 Pelo teatro greco-romano (CALLOIS 1985) a influecircncia aplicada agrave plateacuteia eacute a seguinte Morphos Eacute a relaccedilatildeo do ator com o espaccedilo cecircnico e com a plateacuteia pois Morphos eacute a regra eacute a forma e o teatro eacute o jogo de transformar Mimeacutesis Eacute a relaccedilatildeo do ator e da personagem com o prover a si mesmo pois Mimeacutesis eacute a miacutemica a representaccedilatildeo Define a bandeira o lado pelo qual se defende ou ataca personagem versus plateacuteia ator versus ator personagem versus personagem ator versus plateacuteia e personagem versus plateacuteia Agon Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a agressividade pois eacute o Agon o diaacutelogo a luta o estranhamento entre dois lados novamente personagem versus personagem personagem versus plateacuteia plateacuteia versus personagem Lusus Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o que alimenta pois Lusus eacute a ilusatildeo eacute o sonho Eacute onde se tem a ideacuteia de que quando o meu lado ganha ou perde quem ganha ou perde sou euIlinx Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a loucura onde Ilinx eacute a vertigem o risco o perigo de se ganhar ou perder na conta de personagem versus personagem ou personagem versus plateacuteia etc Aleacutea Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o material com o fiacutesico com os resultados na qual o Aleacutea o aleatoacuterio o randocircmico eacute o que natildeo nos permite saber quem vai ganhar ou perder a contenda Plateacuteia versus personagem personagem versus plateacuteia ou personagem versus personagem etc

20

realmente comunicavam as ideacuteias a serem transmitidas incluindo-se a formaccedilatildeo

espiritual profunda onde o mito e crenccedilas cristatildes tiveram uma grande participaccedilatildeo

na formaccedilatildeo e definiccedilatildeo do rol de atividades da comunidade que se formava a

partir daiacute

Devo considerar que a comunidade o meio social se envolve com o

meio ambiente e digo que educar eacute de certa forma um ato ecoloacutegico pois forccedila os

laccedilos de sangue a perpetuarem os comportamentos que deram certo Quem deu

certo na relaccedilatildeo brasis e portugueses Seria ecologicamente correto seguir os

costumes da Santa Feacute Catoacutelica afinal era tudo uma questatildeo de sobrevivecircncia

para o indiacutegena mesmo com interesses diferenciados daqueles eleitos pelos

colonizadores

Natildeo poderia considerar essa falta de interesse dos indiacutegenas pelas

coisas de Deus ou da Coroa como incapacidade para entender o que era Lei Feacute

ou Rei mas como uma imaturidade como uma capacidade a ser desenvolvida

Sendo a educaccedilatildeo vinda da cultura portuguesa originaacuteria de um

depositum

fechado e definido como correto o seu saber eacute necessaacuterio realmente

que o indiviacuteduo que aprende seja um recipiente dependente e plaacutestico pois aos

moldes da Filosofia escolaacutestica tudo o que se recebe se recebe aos moldes do

recipiente Os indiacutegenas eram esse recipiente

No entanto os indiacutegenas natildeo eram essa argila mole ao menos natildeo

todos pois muitos tensionamentos ocorreram antes da aceitaccedilatildeo dos novos

costumes impostos O homem se acostuma a qualquer situaccedilatildeo e se adapta a

qualquer meio ambiente mas muitas vezes antes que isso ocorra o desconforto

21

e a resistecircncia a aceitaccedilatildeo pura e simples ficam evidentes Essas resistecircncias

ficaratildeo mais claras no capiacutetulo mais adiante em que mostro como os indiacutegenas

teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde

Outro ponto importante a ser mostrado eacute quanto aos aldeamentos

jesuiacuteticos onde o iacutendio foi obrigado a uma adaptaccedilatildeo a essa citada aceitaccedilatildeo de

costumes Os jesuiacutetas concebiam que aquela sociedade deveria ser una pela

concepccedilatildeo de bons propoacutesitos fidelidade de interesses e reciprocidade de

simpatia mas o que ocorria na verdade era a necessidade de sobrevivecircncia

daqueles que jaacute natildeo eram mais iacutendios e natildeo conseguiram pela aculturaccedilatildeo

imposta serem tambeacutem brancos e portugueses onde a homogeneidade cultural

natildeo existiu e natildeo existe ateacute hoje nas tribos de nossa atualidade

Como afirma Dewey (1936 p132) uma sociedade indesejaacutevel eacute a que

interna e externamente cria barreiras para o livre intercacircmbio e comunicaccedilatildeo da

experiecircncia A comunidade dos aldeamentos criava barreiras para a comunicaccedilatildeo

da experiecircncia isto eacute o poder de poucos sobre o conhecimento posto sobre as

coisas e a manutenccedilatildeo desse poder a qualquer custo

Haacute que se entender que enquanto o portuguecircs do seacuteculo XVI trazia a

verdade revelada recebida atraveacutes de leis instaacuteveis isto eacute aquelas que podem ser

mudadas conforme a decisatildeo do grupo social que as criou os gentios seguiam

as leis estaacuteveis as lei naturais que os fazia pensar o conhecimento de forma

distinta de seus protetores A filosofia explica o mundo para o filoacutesofo que a

pensa respondendo agraves suas proacuteprias perguntas As respostas agraves perguntas do

filoacutesofo atendem aos anseios do grupo e da eacutepoca em que ele vive pois eacute a

22

resposta agraves perguntas de uma sociedade de uma cultura e se o conceito

persiste eacute porque persistem as perguntas na consciecircncia dessa sociedade

A verdade revelada era imposta pois era atraveacutes de um novo mito que

se dava o novo conhecimento ao gentio O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria

verdade 4 Essa era a nova experiecircncia em que o indiacutegena do seacuteculo XVI se

encontrava experiecircncia essa que para ter valor real deveria fazer os brasis se

afastarem da dor ou se aproximarem do prazer Soacute essas duas coisas movem um

indiviacuteduo no Universo a que pertence

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertencia em relaccedilatildeo agrave nova natureza apresentada foi necessaacuterio ao indiacutegena

criar uma linguagem que pudesse dar conta de transcrever sua realidade afinada

com seu proacuteprio conhecimento de mundo Um novo mito em que ele deveria

chamar o padre de pai e de salvador Natildeo havia para o indiacutegena a divisatildeo entre o

mundo real e o mundo miacutetico e sim um uacutenico olhar que se espalha em todas as

direccedilotildees de sua existecircncia atraveacutes de sua vida vivida e possiacutevel

Assim viviam suas vidas da forma que lhes foi possiacutevel entre um

arremedo de branco e uma caricatura de iacutendio

No homem o possiacutevel se imprime sobre o real5

4 GUSDORF 1959 p13 5 GUSDORF 1959 p15

23

Natildeo parece que esses homens chamados gentios tivessem o

interesse de descobrir o como do mundo real e sim usar dessa forma esteacutetica

para trabalhar com suas fantasias e esperanccedilas subjetivas isto eacute experienciar

O homem moderno atraveacutes de seu racionalismo sentiu aos poucos o

esfriamento de sua psique primitiva e por consequumlecircncia perdeu muitas de suas

ilusotildees pois natildeo mais entra em contato com suas experiecircncias que satildeo o conjunto

e de conhecimentos individuais ou coletivos especiacuteficos ou natildeo e que constituem

aquisiccedilotildees vantajosas que foram acumuladas historicamente por toda a

humanidade sejam elas miacuteticas ou racionais

Jung nos ensina em suas obras que estamos envolvidos por exemplo

com a experiecircncia de Deus de uma forma tatildeo profunda e universal que por mais

que venhamos a questionar esse mito ou essa crenccedila temos a imagem dessa

experiecircncia dentro de noacutes e por isso natildeo temos como acreditar ou deixar de crer

nessas imagens O mesmo acontecia com o Cristatildeo portuguecircs quinhentista mas eacute

claro e oacutebvio que essa experiecircncia era distinta para os indiacutegenas dessa eacutepoca

Por mais que se quisesse impor uma esteacutetica cultural deveriacuteamos perguntar

Tupatilde era um deus diferente de Deus ou a experiecircncia era a mesma

Mas o portuguecircs do Seacuteculo XVI que trazia em suas caravelas e

bagagens todos os conceitos culturais mitos e crenccedilas impotildeem aos brasis

paracircmetros novos de vida cumprindo a qualquer custo uma missatildeo heroacuteica de

semear a palavra de Deus pela Terra fazendo cumprir uma profecia dentro de

concepccedilotildees mentais riacutegidas inflexiacuteveis racionais e complexas

24

Viraacute o tempo em um futuro longiacutenquo em que o mar

Oceano quebraraacute as suas correntes e uma vasta terra seraacute revelada

aos homens quando um marinheiro audacioso como aquele que se

chamava Tifis e que foi o guia de Jasatildeo descobrir um novo mundo

entatildeo Thule (a Islacircndia) natildeo seraacute a uacuteltima das terras

LUCIUS ANNAEUS SEcircNECA Medeacuteia Seacuteculo I da era cristatilde6

As grandes descobertas trouxeram aos novos mundos anseios e

frustraccedilotildees sobre o imaginaacuterio portuguecircs e espanhol dos seacuteculos XV e XVI mas

tambeacutem a possibilidade de encontrarem o local onde Deus plantou o Paraiacuteso

Terrestre

o lugar onde a Divina Providecircncia havia plantado o

Paraiacuteso Terrestre mito essencial e fundamento doutrinaacuterio dos

mundos judaico-cristatildeo e mulccedilumano lugar inicial onde o Criador

havia decidido criar a espeacutecie humana7

A faccedilanha dessas descobertas tanto teacutecnica como humana carregava

dentro das caravelas a crenccedila de que os atores sociais dos descobrimentos

haviam encontrado o paiacutes das lendas o Paraiacuteso Terrestre o reino das Amazonas

as minas do Rei Salomatildeo as hordas impuras de Gog e Magog8 e o fabuloso

palaacutecio com telhados de ouro de Cipango9

6 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p15 7 idem p34 8 O vocaacutebulo Armagedon eacute composto de duas palavras Ar em hebraico significa Planiacutecie e Megiddo eacute uma localidade ao Norte da Terra Santa proacutexima ao monte Carmel onde antigamente Barrack derrotou os exeacutercitos comandados por Sisara e o profeta Elias e executou mais de quinhentos sacerdotes de Baal (Apo 1616 1714 Juizes 42-16 1 Reis 1840) A luz destes eventos biacuteblicos Armagedon simboliza a derrota das forccedilas anti-religiosas por Cristo Os nomes Gog e Magog no capiacutetulo 20 lembram as profecias de Ezequiel a respeito da invasatildeo de Jerusaleacutem por um nuacutemero indeterminado de regimentos sob o comando de Gog das

25

Acreditava-se entre os portugueses e espanhoacuteis que os mitos dessas

terras se encontravam agora agrave matildeo de quem navegasse de quem ousasse terras

longiacutenquas e enigmaacuteticas desvelar seus misteacuterios e atravessar o mare oceano

innavigabile Dessa forma muitas das histoacuterias fantasiosas que povoavam a

mente do europeu quatrocentista e quinhentista foram transferidas para as terras a

serem conquistadas e vieram juntamente com o mito cristatildeo com o Diabo dentro

das caravelas misturadas ao desejo de expansatildeo do comeacutercio e da busca de

riquezas povoando as sombras desses conquistadores

Apenas como lembranccedila os mitos agem sobre a mente humana de

forma a incitar accedilotildees e desencadear moldes de conduta de pensamento e de

sensibilidade Foi dessa forma portanto que os conquistadores partiram para suas

buscas Uma busca baseada no comeacutercio e expansatildeo sim mas de forma latente

na busca de seus mitos

Assim cada terra descoberta cada povo encontrado cada riqueza

desvelada era considerado de propriedade da natureza e por isso era de quem

encontrasse quer por pirataria quer por ordem de um reino quer passando a ser

propriedade de um rei como descendente direto do divino quer ad majorem Dei

gloriam mesmo que isso significasse um etnociacutedio de nuacutemeros altiacutessimos durante

terras de Magog (sul do mar Caacutespio Ezeq cap 38 e 39 Apo 207-8) Ezequiel atribui esta profecia aos tempos do Messias No Apocalipse o cerco dos regimentos de Gog e Magog ao local dos santos e da cidade eleita (ie da Igreja) e a destruiccedilatildeo destes regimentos pelo fogo Celestial deve ser entendida pela derrota total das forccedilas contraacuterias a Deus humanas e demoniacuteacas pela segunda vinda de Cristo (Obtida em http2112hpyollnetapocalipse2htm em 250405) 9 antigo nome da ilha do Japatildeo antes de conhecido pela Europa cristatilde

26

todo os anos quinhentistas conforme jaacute pude demonstrar em A destribalizaccedilatildeo da

Alma Indiacutegena Brasil Seacuteculo XVI uma visatildeo junguiana10

Obviamente essas faccedilanhas dos descobrimentos trouxeram ao Orbis

Christianus grande avanccedilo tecnoloacutegico no ramo dos transportes da navegaccedilatildeo e

do comeacutercio mas principalmente trouxeram o mais preciso conhecimento

geograacutefico e cartograacutefico do planeta de entatildeo cujos mapas por mais atualizados

que estivessem baseavam-se tatildeo somente na geografia biacuteblica da Idade Meacutedia

Era o Velho Mundo nos seacuteculos XV e XVI aacutevido de modernidade mas

persistia na mente dos portugueses e espanhoacuteis a impregnaccedilatildeo de mitos Existia

como produto social uma turva fronteira entre o real e o imaginaacuterio causada pela

verdade revelada das Escrituras Haacute que se entender que aqueles autores

primeiros que escreveram os primeiros livros sagrados estavam cercados de

desertos e de aacutereas inoacutespitas e tiveram a visatildeo de um local edecircnico como sendo

de feacuterteis terras de aacuteguas abundantes onde tudo nascia e crescia sob a matildeo de

um jardineiro celestial

Entatildeo plantou o Senhor Deus um jardim da banda do

oriente no Eacuteden e pocircs ali o homem que tinha formado E o Senhor

Deus fez brotar da terra toda qualidade de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e boas para comida bem como a aacutervore da vida no meio do jardim e

a aacutervore do conhecimento do bem e do mal

E saiacutea um rio do Eacuteden para regar o jardim e dali se dividia

e se tornava em quatro braccedilos O nome do primeiro eacute Pisom este eacute o

que rodeia toda a terra de Havilaacute onde haacute ouro e o ouro dessa terra eacute

bom ali haacute o bdeacutelio e a pedra de berilo O nome do segundo rio eacute

10 CARNOT 2005

27

Giom este eacute o que rodeia toda a terra de Cuche E o nome do terceiro

rio eacute Tigre este eacute o que corre pelo oriente da Assiacuteria E o quarto rio eacute

o Eufrates11

Mas tambeacutem proibiu apoacutes a expulsatildeo de Adatildeo o homem de encontrar

esse Jardim edecircnico

O Senhor Deus pois o lanccedilou fora do jardim do Eacuteden para

lavrar a terra de que fora tomado E havendo lanccedilado fora o homem

pocircs ao oriente do jardim do Eacuteden os querubins e uma espada

flamejante que se volvia por todos os lados para guardar o caminho

da aacutervore da vida12

Encontraram Vejamos um relato de Cristoacutevatildeo Colombo

Satildeo esses grandes indiacutecios do paraiacuteso terrestre porque

o lugar eacute conforme ao que pensam os santos e os sagrados teoacutelogos

E os sinais satildeo igualmente muito conformes pois jamais li ou ouvi

dizer que tamanha quantidade de aacutegua doce pudesse estar no meio

da aacutegua salgada ou na sua vizinhanccedila vem ainda em apoio a tudo

isso a temperatura extremamente agradaacutevel E se essa aacutegua natildeo vem

do Paraiacuteso seria ainda maior maravilha porque natildeo creio que se

conheccedila no mundo rio tatildeo grande e tatildeo profundo13

Chegaram a um local adacircmico sim com vegetaccedilatildeo abundante com

aacuteguas cristalinas e principalmente com um povo diferente daquele que o europeu

11 (Gecircnesis 2 8-14) 12 (Gecircnesis 3 23-24) 13 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p57

28

conhecia Talvez um arremedo do Jardim mas enfim um jardim bom para a

exploraccedilatildeo e bom para aumentar as almas do Tesouro de Cristo

Corpos diferentes e muitas vezes nus exuberantes como os indiacutegenas

da Ilha de Vera Cruz com miacutesticos costumes com lendas fabulosas poreacutem

distintas daquelas que o imaginaacuterio cristatildeo pudesse relatar Nem cinoceacutefalos14

nem hordas malditas mas guerreiros aguerridos em parte doacuteceis e prontos para

serem convertidos em ovelhas do Senhor em parte bravios e indispostos a serem

conquistados

Natildeo se pode numerar nem compreender a multidatildeo de

baacuterbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil

porque ningueacutem pode pelo sertatildeo dentro caminhar seguro nem

passar por terra onde natildeo ache povoaccedilotildees de iacutendios armados contra

todas as naccedilotildees humanas e assim como satildeo muitos permitiu Deus

que fossem contraacuterios uns dos outros e que houvesse entre eles

grandes oacutedios e discoacuterdias porque se assim natildeo fosse os

portugueses natildeo poderiam viver na terra nem seria possiacutevel

conquistar tamanho poder de gente15

Ou ainda

E satildeo muito inclinados a pelejar e muito valentes e

esforccedilados contra seus adversaacuterios e assim parece coisa entranha

ver dois trecircs mil homens nus de uma parte e de outra com grandes

assobios e grita frechando uns aos outros e enquanto dura esta

14 Homens com cabeccedila de catildeo seguidores dos guerreiros Gog e Magog que viriam no apocalipse acompanhando o Anticristo (citados em Apocalipse 20 7-8) 15 GAcircNDAVO1980p12)

29

peleja nunca estatildeo com os corpos quedos meneando-se de uma parte

para outra com muita ligeireza para que natildeo possam apontar nem

fazer tiro em pessoa certa algumas velhas costumam apanhar-lhes

as frechas pelo chatildeo e servi-los enquanto pelejam Gente eacute esta muito

atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vatildeo agrave guerra

sempre lhes parece que tecircm certa a vitoacuteria e que nenhum de sua

companhia haacute de morrer E quando partem dizem vamos matar sem

mais consideraccedilatildeo e natildeo cuidam que tambeacutem podem ser vencidos 16

Era muito comum poreacutem que o conquistador tivesse a visatildeo de que os

povos dessas terras receacutem descobertas os vissem como sendo de origem divina

Colombo assim contava

Disseram-se muitas outras coisas que natildeo pude

compreender mas pude ver que estava maravilhado com

tudo(diaacuterio 18121492) satildeo creacutedulos sabem que haacute um Deus no

ceacuteu e estatildeo convencidos de que viemos de laacute (diaacuterio

12111492) achavam que todos os cristatildeos vinham do ceacuteu e que o

Reino de Castela ali se encontrava e natildeo neste mundo(diaacuterio

16121492) 17

Ou como escrevia Noacutebrega em suas cartas

Todos querem e desejam ser Cristatildeos mas deixar seus

costumes lhes parece aacutespero Vatildeo contudo pouco a pouco caindo na

verdade18

16 idem p13 17 TODOROV 2003 P57 18 NOacuteBREGA 1988 p 114 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551

30

Os Gentios aqui vecircm de muito longe a ver-nos pela fama e

todos mostram grandes desejos Eacute muito para folgar de os ver na

doutrina e natildeo contentes com a geral sempre nos estatildeo pedindo em

casa que os ensinemos e muitos deles com lagrimas nos olhos19

Estatildeo espantados de ver a majestade com que entramos e

estamos e temem-nos muito o que tambeacutem ajuda 20

Falamos do europeu do portuguecircs e do espanhol poreacutem nosso foco

deve e estaacute voltado para o cristatildeo portuguecircs

Esse portuguecircs que no seacuteculo XVI tinha essa imaginaccedilatildeo fervilhante

cheia de conteuacutedos miacuteticos que possuiacutea um falar livre sem os rebuccedilos dos

letrados enfim o povo portuguecircs quinhentista que seguia leis severas de um

reino corporativo onde como nos diz Capistrano de Abreu (1907) As cominaccedilotildees

penais natildeo conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor

de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo e o

confisco de todos os bens 21

Toda a cultura da sociedade portuguesa quinhentista era estruturada

com referecircncia ao sagrado e aos preceitos da Santa Feacute Catoacutelica onde a presenccedila

ou onipresenccedila divina acontecia em toda e qualquer circunstacircncia em qualquer

situaccedilatildeo

19 NOacuteBREGA 1988 p 115-116 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551 20 NOacuteBREGA 1988 p 75 carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo 21 ABREU 1907-2004p46)

31

Essa organizaccedilatildeo cultural se dava sob a forma de um corpo social

definido como o Reino que se entrelaccedilava com outro corpo formado pela Igreja

onde qualquer mediaccedilatildeo seria feita por esses corpos sociais e em uacuteltima instacircncia

Deus era a referecircncia Paiva22 nos coloca que essa constituiccedilatildeo social se dava

como um corpo em graus superpostos o corpo social o corpo miacutestico de Cristo o

universo

Culturalmente a sociedade portuguesa do seacuteculo XVI se

caracterizava pela cimentaccedilatildeo religiosa de todo o seu fazer A uacuteltima

explicaccedilatildeo do por que as coisas eram tais quais eram estava na

religiatildeo ou seja na sua referecircncia ao sagrado O poder do rei a

organizaccedilatildeo da sociedade as instituiccedilotildees os valores os costumes

as expressotildees tudo enfim tinha sua razatildeo de ser na sacralidade tudo

tinha um caraacuteter religioso 23

Nada era questionado quanto a essa cultura religiosa pois tudo

absolutamente tudo o comeacutercio os estudos as conquistas todos ordenavam

seus esquemas atraveacutes da dogmaacutetica e da apologeacutetica religiosa onde se

chamava de Ciecircncia rainha de todas as rainhas a Teologia

Os valores os costumes a compreensatildeo de vida estava imersa no mito

cristatildeo onde a uacuteltima realizaccedilatildeo se daacute em Deus 24 mito que ao longo da Idade

Meacutedia europeacuteia se elaborou fundado na compreensatildeo de uma ordem uacutenica que

se funda em Deus do qual todas as instacircncias subordinadamente se plenificam

22 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura 23 PAIVA 2002 p 3 24 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura

32

assim se pondo25 garantindo ao Rei o direito a proeminecircncia e conquista e

sujeiccedilatildeo de qualquer povo de qualquer terra conquistada

Ficava assim mais faacutecil se compreender o Poder pois ele estaria

concebido fundado na Vontade de Deus e por consequumlecircncia na do Rei

O Rei era antes de tudo era aquele que dizia a justiccedila e o rei perfeito

era o juiz perfeito Que todo julgamento era pela vontade divina e que a boa

dinastia nunca gerava um mau rei e portanto um bom representante de Deus na

Terra

Poreacutem a necessidade de um bom reinado se fazia presente todo o

tempo dando ateacute mesmo possibilidades de trocas de reis por natildeo se cumprir um

bom reinado Era a forma de garantirem a permanecircncia no reinado ou a

legitimidade do golpe para assumir o reinado de outro principalmente se o anterior

regia sem competecircncia com tirania ou descaso Ao levantar essa situaccedilatildeo de

troca de rei ou de afirmar-se no reinado invocavam o Direito das Gentes 26

Dessa forma o direito tambeacutem sujeitava o Rei agraves leis leis essas que na verdade

ao receber a coroa jurou defender como nas Ordenaccedilotildees Afonsinas por

exemplo

Quando Nosso Senhor Deos fez as criaturas assim

razoaveis como aquellas que carecem de razom non quis que

fossem iguaes mas estabeleceo e hordenou cada hua sua virtude e

poderio de partidos segundo o grao em que as pocircs bem assy os

25 idem 26 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128

33

Reys que em logo de Deos na Terra som postos para reger e

governar o povo nas obras que ham de fazer assy de Justiccedila como

de graccedila ou mercees devem seguir o exemplo daquello que ele fez

e hordenou dando e distribuindo non a todos por hua guisa mais a

cada huu apartadamente segundo o gratildeo e condiccedilon e estado de

que for27

Essas mesmas Ordenaccedilotildees dividiam a sociedade em estratos os

defensores os que defendem o povo os que rogam pelo povo os oradores

dividindo ainda em estados limpos (letrados lavradores e militares) e estados vis

(oficiais mecacircnicos ou artesatildeos) e dos privilegiados (que pela miliacutecia ou pela Arte

se livraram das profissotildees soacuterdidas) 28

Em todo esse universo religioso eacute que estavam os fatos gerados por

seus atores sociais seus costumes seus ritos e siacutembolos suas vestimentas e

linguagem tudo fazendo a cultura do portuguecircs cristatildeo quinhentista

O pensamento social poliacutetico medieval eacute dominado pela

ideacuteia da existecircncia de uma ordem universal (cosmos) abrangendo os

homens e as coisas que orientava todas as criaturas para um objetivo

uacuteltimo que o pensamento cristatildeo identificava como o proacuteprio

Criador29

A sociedade portuguesa para a gloacuteria e satisfaccedilatildeo de um imaginaacuterio

eminentemente cristatildeo estaria no mundo para realizar os planos do Criador

portanto tudo e todos que natildeo pudessem caber na inquestionaacutevel obediecircncia e

27 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128 28 idem p132 29 idem p122

34

pertenccedila ao cristianismo somente poderiam ser avaliados como inferiores como

infieacuteis e hereges tal qual as bruxas os aacuterabes os judeus tatildeo mancomunados

com o Diabo

Chega entatildeo esse Portugal agraves Terras Brasiacutelicas com o espiacuterito avivado

com relaccedilatildeo aos sentimentos de cumprir a missatildeo de propagar a feacute cristatilde com um

intuito exorcista de eliminar os democircnios e fantasmas que atraveacutes de milecircnios

teriam povoado estes mundos remotos onde a forccedila de Deus se batia com as

artimanhas do Diabo e ocupada por seres infieacuteis e de praacuteticas pagatildes mas ligado

ao racionalismo portuguecircs que se desenvolvia prometia ainda essa terra o

fornecimento de material para exploraccedilatildeo e o comeacutercio

A convivecircncia do europeu com os nativos da Aacutefrica Aacutesia e

Ameacuterica significou para esses povos castraccedilatildeo e imposiccedilatildeo cultural

tal o etnocentrismo que a caracterizava tal a racionalidade que

conduzia sua poliacutetica tal sua forccedila militar30

Chegam entatildeo esses portugueses fedentos e escalavrados de feridas

de escorbuto31 com a intenccedilatildeo de transformarem indiacutegenas esplendidos de vigor e

beleza32 em querubins caciques em Guaixaraacute e jovens adolescentes em outros

tantos diabos pois que se defrontam com formas diferentes de amor de mundo

de vida e morte e acreditavam piamente que essa era uma forma diaboacutelica de

30 PAIVA 2002 p 46 31 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 32 idem

35

viver uma ofensa agrave obra de Deus na terra por isso natildeo podia deixar de ser banida

e extirpada como um tumor que ameaccedilava a Gloacuteria do Senhor 33

33 CARNOT 2005 p120

36

CAPIacuteTULO 1 - A EDUCACcedilAtildeO COMO TRANSMISSAtildeO DE CULTURA QUE ENSINA E ALTERA

COSTUMES

Durante o tempo de estudos e pesquisas desde os tempos de

mestrado por ter vindo de uma aacuterea de investigaccedilatildeo como a Psicologia parto do

princiacutepio que a conversatildeo e na educaccedilatildeo transmitida aos indiacutegenas houve

diversas falhas como jaacute pude mostrar em a Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

falhas essas que existiram pelas vivecircncias dos atores sociais em seu tempo e em

resposta a suas ansiedades Tenho constantemente pensado que entre essas

falhas qual a mais importante na educaccedilatildeo na conversatildeo e na catequese

Seria um erro didaacutetico Seria um erro baseado no depositum

da

verdade revelada onde o jesuiacuteta professava suas concepccedilotildees e conceitos

Seraacute que esse erro se encontra no indiacutegena no receptaacuteculo desse

depositum que talvez natildeo estivesse apto a recebecirc-lo

Gostaria de entender o ser humano como um portador de um vaacutecuo

Natildeo como uma tabula rasa mas como um vaacutecuo disponiacutevel a descobertas a

formas e cores a necessidades a curiosidades Seriam a curiosidade e a

necessidade o proacuteprio vaacutecuo

37

Parto desse ponto para afirmar que os vaacutecuos preacute-existem para que as

formas e conteuacutedos possam vir a existir O vaacutecuo eacute a Ideacuteia a Concepccedilatildeo Primeira

a Fecundaccedilatildeo Coacutesmica assim como Primeiro foi o Verbo

CG Jung nos diz que o inconsciente possui todos os materiais

psiacutequicos que existem na consciecircncia de um indiviacuteduo inclusive as percepccedilotildees

sublimais34 e principalmente aqueles materiais que natildeo alcanccedilaram o limiar da

consciecircncia mas que serviratildeo para que o indiviacuteduo receba tudo aquilo que poderaacute

advir com a aculturaccedilatildeo que viraacute a acumular em sua vida

A educaccedilatildeo seja ela a de transmissatildeo de cultura ou a educaccedilatildeo formal

escolar com a funccedilatildeo de nos colocar em focircrmas nos daacute preenchimento desse

vaacutecuo sem que faccedila entender a necessidade ou que nos permita buscar a

curiosidade de desvelar o veacuteu que cobre o universo das coisas as essecircncias O

homem somente aprende algo que sirva para atender sua curiosidade ou uma

necessidade

Assim eacute a educaccedilatildeo nos oferece importantes informaccedilotildees e conceitos

sem que nos provoque a busca

Em Les secrets de la maturiteacute Hans Carossa (Apud Bachelard-1990 p7)

diz o homem eacute a uacutenica criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior

34 sublimais

origem sublimaccedilatildeo = lat sublimatigraveooacutenis accedilatildeo de elevar exaltar pelo fr sublimation (1274) elevaccedilatildeo exaltaccedilatildeo (1856) accedilatildeo de purificar (1904) - modificaccedilatildeo da orientaccedilatildeo originalmente sexual de um impulso ou de sua energia de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade transformaccedilatildeo de um motivo primitivo e sua colocaccedilatildeo a serviccedilo de fins considerados mais elevados [A atividade religiosa artiacutestica e intelectual satildeo exemplos tiacutepicos de sublimaccedilatildeo

38

de outra A palavra vontade usada por Carossa me faz buscar outros conceitos

como desejo curiosidade afatilde tesatildeo necessidade Eacute essa vontade de olhar para

o interior das coisas que torna a visatildeo aguccedilada penetrante pronta para descobrir

uma intenccedilatildeo uma utilidade uma funccedilatildeo Eacute o violar o segredo tal qual uma

crianccedila que abre seu brinquedo para ver o que haacute dentro Noacutes adultos por falta de

memoacuteria de nossa infacircncia queremos atribuir esse abrir o brinquedo como uma

intenccedilatildeo destrutiva Mas a crianccedila o humano em noacutes busca ver aleacutem ver por

dentro em suma escapar a passividade da visatildeo 35

O homem aculturado educado olha para essa estrutura externa e

natildeo vecirc a profundeza do brinquedo mas a crianccedila possuidora de um vaacutecuo ainda

natildeo preenchido pela histoacuteria faz com o brinquedo o que a educaccedilatildeo natildeo sabe

fazer e a imaginaccedilatildeo realiza magistralmente seja como for descobre sua

profundidade sua substacircncia seu oculto

Capta a crianccedila imagens tatildeo numerosas tatildeo variaacuteveis e tatildeo confusas

que despertam cada vez mais as nuanccedilas sentimentais de sua curiosidade Toda

doutrina da imagem eacute acompanhada em espelho por uma psicologia do

imaginante 36

Assim encontro um dos enganos da educaccedilatildeo o natildeo preencher o

vaacutecuo humano com o desejo com a vontade e sim com o que as concepccedilotildees

adultas pensam ser importantes

35 BACHELARD 1990p8 36 idem

39

Mas se procurarmos outras falhas com relaccedilatildeo ao ensinar e ao

aprender esbarramos na filosofia que muitas vezes trabalha com essa busca da

profundidade das coisas de forma dogmaacutetica que tolhe brutalmente toda

curiosidade voltada para o interior das coisas 37 Para esses filoacutesofos da educaccedilatildeo

que assim pensam a profundidade das coisas eacute ilusatildeo que a crianccedila pergunta

mas que natildeo deseja realmente saber e que se lhe explicarem superficialmente

satisfaratildeo sua necessidade

Em verdade essas questotildees natildeo perturbam esses filoacutesofos Nessas

questotildees que a a educaccedilatildeo natildeo sabe fazer amadurecer a filosofia condena o

homem a permanecer como ele diz no plano dos fenocircmenos 38 Tudo natildeo passa

de aparecircncia Inuacutetil ir ver mais inuacutetil ainda imaginar mas se esquece que a

natureza esconde como funccedilatildeo primaacuteria da vida protege abriga guarda

reserva e esse interior tem funccedilotildees de trevas de guardar aquilo que a curiosidade

ou a necessidade necessitam iluminar

Magie uma personagem de Henri Michaux39 em um de seus conselhos

diz ponho uma maccedilatilde sobre a mesa Depois ponho-me dentro dessa maccedila Que

tranquumlilidade Flaubert40 dizia a mesma coisa a forccedila de olhar um seixo um

animal um quadro senti que eu estava neles

Somente o poeta e seus personagens sabem do interior das coisas

Natildeo poderia ser a educaccedilatildeo uma poesia

37 idem p9 38 idem p9 39 BACHELARD 1990 apud p11 40 BACHELARD 1990 apud p11

40

Francis Ponge41 busca o entender das coisas da seguinte forma

Proponho a todos a abertura dos alccedilapotildees interiores uma viagem na espessura

das coisas uma invasatildeo de qualidades uma revoluccedilatildeo ou uma subversatildeo

comparaacutevel agravequela operada pela charrua ou pela paacute quando de repente e pela

primeira vez satildeo trazidos agrave luz milhotildees de fragmentos lamelas raiacutezes vermes e

bichinhos ateacute entatildeo enterrados

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas natildeo me conta que por mais que mude

as peccedilas que satildeo sempre as mesmas estatildeo presas numa caixa A mim agrada

mais o microscoacutepio ou a luneta que satildeo instrumentos da curiosidade

A educaccedilatildeo conserva em si a manutenccedilatildeo da verdade revelada da

Idade Meacutedia onde natildeo se podia buscar o cerne das coisas acredita ainda hoje

que o cisne de esplendorosa brancura eacute todo negrume no interior

Essa

verdade medieval que permanece nos conceitos da escola do ensinar do

aprender teria sido quebrada atraveacutes de um pequeno e simples exame para

saber que o cisne natildeo eacute muito diferente em suas cores do interior do corvo

Se apesar dos fatos a afirmaccedilatildeo do negrume intenso do cisne eacute tatildeo amiuacutede

repetida eacute por satisfazer a uma lei da imaginaccedilatildeo dialeacutetica As imagens que satildeo

forccedilas psiacutequicas primaacuterias satildeo mais fortes que as ideacuteias mais fortes que as

experiecircncias reais 42

41 BACHELARD 1990 apud p10 42 BACHELARD 1990 p17

41

Como disse Jean Paul Sartre eacute preciso inventar o acircmago das coisas

se quisermos um dia descobri-lo

Natildeo sei se estou conseguindo passar ao leitor a total significacircncia da

ideacuteia do preenchimento do vaacutecuo atraveacutes de uma educaccedilatildeo que olhe para dentro

das coisas Quando falo de dentro das coisas natildeo estou com isso falando de

interior tatildeo somente mas da essecircncia do acircmago Veja este exemplo certa vez

caminhando com meu filho que tinha entatildeo quatro anos pelas ruas do bairro

onde resido ruas com terrenos vazios e onde se pode ter contato bastante grande

com a natureza pude brincar de investigar

Andaacutevamos por uma dessas ruas quando eu encontrei pegadas de um

cavalo Conhecendo esse espiacuterito de investigaccedilatildeo e da curiosidade que emana do

meu filho mostrei a ele as pegadas Imediatamente ele disse que legal vocecirc

descobriu essas pegadas do cavalo branco Perguntei como ele poderia saber a

cor do cavalo que havia passado por ali Sua resposta foi simples vamos seguir

as pegadas e a gente pode saber e eu estou certo Aceitei a proposta e saiacutemos

seguindo as pegadas Em alguns pontos onde a terra estava mais firme as

pegadas sumiam mas ele como toda sua curiosidade buscava novas evidecircncias

e encontrava as pegadas seguintes Andamos lentamente e olhando para o chatildeo

das ruas de terra por mais ou menos duas horas sem que ele desistisse ou

mostrasse sinais que natildeo mais se importava com a brincadeira Andamos

precisamente quatro quilocircmetros ateacute chegarmos a um local onde se localizam

algumas baias e laacute estavam alguns cavalos Havia um branco e ele se convenceu

e quase me convenceu tambeacutem de que estava certo

42

Esse vaacutecuo da curiosidade foi preenchido a perspectiva de intimidade

da coisa do evento mostrou um interior maravilhoso um interior esculpido de

fantasias da mesma forma que se abrisse um geodo e um mundo cristalino

houvesse sido revelado

Eacute dessa qualidade de vaacutecuo que falo e que a educaccedilatildeo natildeo eacute capaz de

preencher natildeo por falta de conteuacutedo ou de forma mas da maneira de trabalhar a

curiosidade e a necessidade Natildeo basta a natureza conter formas incriacuteveis na

moleacutecula da aacutegua ou no floco de neve conter eflorescecircncias arborescecircncias e

luminescecircncias se natildeo for possiacutevel dar o desejo dessas descobertas Repito a

educaccedilatildeo natildeo sabe fazer isso mas a imaginaccedilatildeo faz com perfeiccedilatildeo a alquimia

das descobertas

Jung fala da alquimia em seus estudos ligando o sonho da

profundidade das substacircncias43 agrave busca do self atraveacutes do mergulho no

inconsciente Se o alquimista fala do mercuacuterio ele pensa exteriormente no

argento vivo mas ao mesmo tempo acredita estar diante de um espiacuterito escondido

ou prisioneiro da mateacuteria

44

A curiosidade eacute como um sonho de descoberta das virtudes secretas

das substacircncias ao tentar descobrir pela curiosidade ou pela necessidade a

essecircncia das coisas eacute como sonhar como o secreto em noacutes Os maiores

43 No aristotelismo e na escolaacutestica realidade que se manteacutem permanente sob os acidentes muacuteltiplos e mutaacuteveis servindo-lhes de suporte e sustentaacuteculo aquilo que subsiste por si com autonomia e independecircncia em relaccedilatildeo agraves suas qualificaccedilotildees e estados Algo que estaacute aleacutem sob as aparecircncias 44 cf JungPsychologie und Alchemie p399 apud Bachelard p 39

43

segredos de nosso ser estatildeo escondidos de noacutes mesmos estatildeo no segredo de

nossas profundezas 45

Eacute exatamente a partir da curiosidade sobre essas essecircncias sobre

essa alquimia que pesquiso meu trabalho em Educaccedilatildeo Histoacuteria e Cultura Minha

tese vem responder a esse meu anseio entender o mito que fazia com que

homens saiacutessem do conforto de seus lares ou mosteiros para conquistarem terras

novas e imporem seus dogmas a povos cuja explicaccedilatildeo da vida estavam

baseadas em outros mitos

Vejo o mito como um sistema de conhecimento velado poreacutem mesmo

assim exaustivo do inefaacutevel e do divino Eacute o mito a curiosidade aliada agrave

necessidade da explicaccedilatildeo de si e sua relaccedilatildeo individual com o Universo

Acontece poreacutem que a catequese a imposiccedilatildeo de cultura a educaccedilatildeo

negam a individualidade do homem negam seus vaacutecuos e seus mitos gerando

vaacutecuos novos e que natildeo podem ser preenchidos com aquilo que existe na verdade

daquele que foi conquistado O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria verdade

46

Negar essa individualidade eacute um absurdo e a crianccedila sabe disso O

homem por mais que natildeo queira aceitar pois tenta se proteger de sua

incapacidade de buscar as essecircncias tem pleno conhecimento que a consciecircncia

eacute individual que a busca eacute individual que a curiosidade eacute individual e que ela faz

parte da substacircncia e da coisa em si

45 Bachelard p39 46 GUSDORF 1959 p13

44

Mas para o homem quando despido de suas aculturaccedilotildees e carapaccedilas

de defesas contra suas emoccedilotildees a coisa em si precisa ser explicada O que lhe

resta entatildeo eacute estruturar essa explicaccedilatildeo sob a forma de representaccedilatildeo Para

representar colhe do externo e divino e interioriza tal representaccedilatildeo em sua

essecircncia Novamente o mito eacute criado

Em todo o tempo de bancos escolares infelizmente natildeo tive a atenccedilatildeo

que poderia ter em relaccedilatildeo agrave mitologia Tive uma ideacuteia precaacuteria de tal assunto que

natildeo me mostrou quanto essa forccedila criadora que norteou o rejuvenescimento

constante dos mitos na esfera grega assiacuteria egiacutepcia e como essa atividade do

espiacuterito antigo agia de modo essencialmente poeacutetico e artiacutestico da mesma forma

que para o homem moderno tem a ciecircncia contribuiacutedo para nossa evoluccedilatildeo

Assim novamente digo que a questatildeo a ser respondida com esta

pesquisa eacute de como vivia o povo indiacutegena com essa experiecircncia que chamo o

mito de Deus quer fosse o Deus Cristatildeo quer fosse o deus ntildeande ru Pa-Pa

Tenodeacute47

Por isso o objeto a ser trabalhado nesta tese eacute o mito como

instrumento educacional de transmissatildeo de cultura fazendo uma anaacutelise de como

o mito cristatildeo era entendido pelos portugueses e jesuiacutetas no seacuteculo XVI e imposto

violentamente aos indiacutegenas desse mesmo tempo

A pesquisa desta temaacutetica buscaraacute a relaccedilatildeo do mito cristatildeo em uniatildeo

com mitos e lendas do povo aacuterabe invasor da peniacutensula ibeacuterica aleacutem dos mitos e

47 Em liacutengua ancestral Tupi o abantildeeenga significa nosso Pai Primeiro

45

lendas oriundas do oceano inavegabile por ocasiatildeo dos descobrimentos quando

marinheiros narravam histoacuterias fantaacutesticas de Homens-cavalo homens

gigantescos de um uacutenico peacute ciclopes e amazonas e outros mitos do mirabilis no

mundo conhecido do seacuteculo XVI de encontrar as diferenccedilas e semelhanccedilas com

os mitos europeus

Pesquisar ainda o mito como instrumento educacional de transmissatildeo

de cultura atraveacutes da narrativa da educaccedilatildeo falada e contada amplamente

utilizada pela pedagogia jesuiacutetica que utilizou todos os conceitos tanto de mitos

como de pecados e tabus para catequizar e converter os indiacutegenas agrave Santa Feacute

Catoacutelica

Essa eacute minha busca atraveacutes da curiosidade mostrar que a educaccedilatildeo soacute

poderaacute ser eficaz no momento em que trabalhar com os mitos os mitos do

descobrir os mitos de desvelar o mito do vaacutecuo

46

CAPIacuteTULO 2 - O MITO

No atual quadro do desenvolvimento cientiacutefico eacute cada mais comum se

falar em interdisciplinariedade conceito que traduz um modo novo de lidar com

os objetos de estudo com os planos teoacuterico e metodoloacutegico da pesquisa e

especialmente com o papel do cientista diante do universo que busca

compreender eou explicar

Tendo como coadjuvantes conhecimentos que vatildeo da Psicanaacutelise agrave

Antropologia e agrave Arte da Sociologia agrave Filosofia e agrave Histoacuteria os estudos em

Educaccedilatildeo fazem um percurso que recoloca a questatildeo epistemoloacutegica do proacuteprio

estatuto da ciecircncia de transmissatildeo de cultura

Onde buscar respostas

Como opccedilatildeo de caminho busquei as respostas na ontologia claacutessica e

no mito como bases como alicerces do que pretendo construir no que tange agrave

Educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura

O mito foi quase sempre considerado o produto de uma forma de

conhecimento do mundo dos fatos de conhecimento do mundo dos fatos naturais

e sobrenaturais organizada de modo alegoacuterico a ponto de mostrar poeticamente

a relaccedilatildeo entre homem e universo ou um modelo um arqueacutetipo que mesmo

47

mudando de vez em quando de acordo com conteuacutedos histoacutericos e geograacuteficos

peculiares tem sempre a mesma estrutura formal ligada ao mecanismo de

funcionamento da psique humana ou enfim um meacutetodo religioso de aproximaccedilatildeo

da concepccedilatildeo sagrada da existecircncia em que o mito eacute tido como um sistema de

conhecimento velado poreacutem mesmo assim exaustivo do inefaacutevel e do divino

Natildeo importa se o mito define o iniacutecio do mundo ou o mundo define o

iniacutecio do mito O que importa enfim eacute que o mito nasce com o humano pois tudo o

que existe no mundo eacute visto sob o olhar do humano

Tendo esse homem um pecado original como faz parte da nossa cultura

ou uma forma original de ter vindo ao mundo como a partir do caos ou da

escuridatildeo todos os humanos reconhecem sua identidade atraveacutes da natureza e

das coisas humanas

Durante toda sua vida os homens que satildeo igualmente homens

nascem de uma mesma forma e morrem de uma mesma forma no entanto natildeo

soacute com caracteriacutestica fiacutesicas diferentes natildeo soacute com valores diferentes com

definiccedilotildees espirituais diferentes com mitos diferentes mas todos explicam essas

igualdades e diferenccedilas atraveacutes do mito

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida

O ser humano natildeo nasce com papeacuteis em branco como uma tabula rasa

ao contraacuterio estava preparado para as experiecircncias da vida humana do mesmo

48

modo que os paacutessaros estavam de maneira inata prontos para construir ninhos

ou a fecircmea da tartaruga marinha estava preparada para retornar ao local onde

nasceu para laacute botar os proacuteprios ovos Mas algumas muitas das situaccedilotildees tiacutepicas

do homem relativas agrave condiccedilatildeo humana satildeo representadas pelos mitos

apreendidos e esses mitos datildeo ao homem a predisposiccedilatildeo para experimentar os

conceitos de matildee pai filho Deus Grande Matildee velho saacutebio nascimento morte

renascimento separaccedilotildees rituais de cortejo casamento e assim por diante

O mito se forma sob as caracteriacutesticas de imagens primordiais de fatores e

motivos que coordenam os elementos psiacutequicos do homem que soacute podem ser

reconhecidos como formadores do mito apoacutes terem efeito na vida do homem

Dessa forma os conteuacutedos miacuteticos pertencem agrave estrutura psiacutequica dos

indiviacuteduos enquanto possibilidades latentes tanto como fatores bioloacutegicos

como histoacutericos

48

Os mitos natildeo se difundem apenas pela tradiccedilatildeo linguagem ou migraccedilatildeo

Eles podem surgir de forma espontacircnea em qualquer tempo ou lugar sem serem

influenciados por transmissatildeo externa Pode-se considerar portanto que em cada

psique existem verdadeiras prontidotildees vivas ativas que embora inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico Essas imagens de

prontidatildeo satildeo imagens arquetiacutepicas que na mente consciente desenvolvem um

jogo entre as realidades interna e externa do homem que sofre pressatildeo pessoal e

cultural do tempo e do lugar em que estatildeo inseridas

48 JACOBI 1991 paacuteg39

49

Por esse motivo o mito eacute normalmente milenar e universal ao grupo

social em que atua eacute parte do inconsciente coletivo pois satildeo disposiccedilotildees

herdadas pela humanidade Manifesta-se ou produz imagens e pensamentos Os

conteuacutedos do inconsciente pessoal satildeo aquisiccedilotildees da existecircncia individual ao

passo que os conteuacutedos do inconsciente coletivo satildeo arqueacutetipos que existem

sempre e a priori

A definiccedilatildeo de mito eacute basicamente a concepccedilatildeo de homem

plenamente relacionado com tudo o que existe em seu contorno O homem eacute o

todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias arquetiacutepicas que todos

os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo individual e possuindo

caracteriacutesticas uacutenicas

Essa eacute a relaccedilatildeo maacutegica do mito O homem crecirc que vai chover para

molhar sua plantaccedilatildeo e realmente chove Chove por condiccedilotildees climaacuteticas mas

para o homem envolvido no mito chove porque os deuses assim o permitiram

natildeo soacute para ele mas para aqueles que juntamente com ele vivem o mito Dentro

do mito o homem opera sobre o existente e sobre sua consciecircncia de mundo No

mito o homem vive dentro e fazendo parte do todo natildeo como uma soma de

partes mas como uma parte representando o todo

Ontologicamente o mito traz consigo a missatildeo de mostrar em termos

gerais a existecircncia do ser natildeo deste ou daquele ser concreto mas do ser em

geral pois o homem sempre buscou e buscaraacute as respostas de quem eacute de onde

vem para onde vai se eacute que vai para algum lugar ou condiccedilatildeo

50

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertence foi necessaacuterio ao homem criar uma linguagem que pudesse dar

conta de transcrever sua realidade afinada com seu proacuteprio conhecimento de

mundo

No entanto sempre foi tarefa impossiacutevel tanto ao homem primitivo

como ao homem da modernidade definir o que eacute o homem o que eacute o ser ou

mesmo quem ele eacute

Cada vez que tentamos definir o homem como um ser deparamos com

outros conceitos a serem elaborados pois a cada qualidade de homem a cada

origem cultural ou geograacutefica de cada eacutepoca os conceitos se modificam as

definiccedilotildees se tornam mais errocircneas caso se tente colocar o homem dentro de um

soacute conceito

Claro que sabemos o que eacute o homem claro que o homem conhece a si

mesmo poreacutem ao perceber-se diante do outro diante de desejos e anseios tatildeo

diferentes entre si associados a coisas tatildeo distintas se obriga novamente a uma

anaacutelise de si e do todo

Eacute nesse anseio que o homem se pergunta quem eacute natildeo deixando de

perguntar quem eacute o outro na relaccedilatildeo de troca de parceria de mutualidade

O mito do homem necessita demonstrar essa origem e esse fim

escatoloacutegico49

49 Da escatologia doutrina que trata do destino final do homem e do mundo pode apresentar-se em discurso profeacutetico ou em contexto apocaliacuteptico

51

Necessita o homem agregar valor agraves definiccedilotildees quer com objetos que

se agregam dando qualidade agraves coisas quer transformando os objetos ideais em

personificaccedilotildees

A fortaleza do deus sol era construiacuteda sobre esplecircndidas

colunas e brilhava coberta de reluzente ouro e rubis flamejantes O

frontatildeo superior era emoldurado por marfim alvo e brilhante e os

portotildees duplos eram de prata ornamentados com impressionantes

relevos esculpidos por Hefaiacutestos representando a terra o mar e o ceacuteu

com seus habitantes50

Heacutelio vestido com um manto de puacuterpura estava sentado

sobre o seu trono ornamentado com esmeraldas Agrave sua direita e agrave

sua esquerda estava o seu seacutequumlito o Dia o Mecircs o Ano o Seacuteculo e

as Horas Do outro lado a Primavera com sua coroa de flores o

Veratildeo com suas espigas de cereais o Outono com uma cornucoacutepia

cheia de uvas e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve51

Sem que se fique preso a definiccedilotildees religiosas de uma ou outra crenccedila

necessita ainda o homem buscar respostas atraveacutes dos mitos que possam

confirmar sua percepccedilatildeo de mundo Eu existo o mundo existe os deuses

existem e as coisas existem Mas existem sem mim Existem independentes de

minhas representaccedilotildees Ao perceber-se distinto ao olhar o outro ao reconhecer-

se em outro o homem miacutetico percebe existirem definiccedilotildees diferentes para o ser

50 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 51 idem

52

em si mesmo e o ser o outro o que sugere as relaccedilotildees e o obriga a entrar em

contato com o real e suas representaccedilotildees de mundo e suas explicaccedilotildees para

esse mundo

Esses dois significados equivalem a estes outros dois a

existecircncia e a consistecircncia A palavra ser significa tambeacutem consistir

ser isto ser aquilo Quando perguntamos que eacute o homem Que eacute a

aacutegua Que eacute a luz Natildeo queremos perguntar se existe ou natildeo existe

o homem se existe ou natildeo existe a aacutegua ou a luz Queremos dizer

qual eacute a sua essecircncia Em que consiste o homem Em que consiste

a aacutegua Em que consiste a luz 52

Dessa forma para que uma estrutura mental possa ser montada o

homem tentaraacute buscar no mito a essecircncia de sua vida do porquecirc do sol e de

como surgiu do porquecirc das chuvas da boa e da maacute colheita da boa e maacute sorte na

caccedila do existir do dia e da noite e mesmo depois de cientificamente ter certezas

de suas definiccedilotildees guarda dentro de si sob a forma do pensamento da crianccedila o

homem primitivo que crecirc e vive o mito O mito da essecircncia da origem no divino e

da busca de sua existecircncia

Honrado pai na terra todos me ridicularizam e respondem

minha matildee Cliacutemene Afirmam ser falsa a minha origem divina

dizendo que sou filho bastardo de um pai desconhecido Eacute por isso

52 MORENTE 1930 62

53

que estou aqui para pedir-lhe um sinal que prove a todos na terra que

sou seu filho 53

Cria entatildeo o homem um mito para mostrar sua existecircncia pois o mito

eacute a proacutepria representaccedilatildeo do real natildeo estando fora da realidade e sim formulando

um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a accedilatildeo 54 Natildeo se

pode encarar o mito como constituiacutedo de um puro e simples pensar de forma

fabulosa anaacuteloga ao sonho ao devaneio ou agrave poesia

A consciecircncia miacutetica desenha a configuraccedilatildeo do primeiro

universo 55

A imagem do mundo desenhada por essa consciecircncia miacutetica pela

consciecircncia da essecircncia do ser e sua existecircncia se afirma e se reafirma atraveacutes

de uma paisagem do grupo social paisagem esta que natildeo se prende somente a

uma configuraccedilatildeo geograacutefica ou mesmo fiacutesica mas envolvida por uma visatildeo moral

e espiritual do povo

A filosofia ao descobrir no caminhar das estrelas a mesma exigecircncia

do bater do coraccedilatildeo do homem reconhece nos milecircnios da evoluccedilatildeo social e

humana o primeiro desenho dos universos feito pelo homem primitivo sem saber

53 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 54 GUSDORF 1960 22 55 GUSDORF 1960 51

54

que em verdade jaacute sabia a diferenccedila entre a fiacutesica e a metafiacutesica Eacute proacuteprio do

mito pois dar sentido ao universo 56

Poreacutem o homem miacutetico se depara com outra pergunta por que somos

tatildeo distintos Porque os seres possuem qualidades diferentes que os transforma

em outros Se todos tecircm a mesma origem no divino e se os deuses satildeo como

satildeo por que criaram nos seres tantas diferenccedilas

Entende o homem que independente de sua percepccedilatildeo de universo e

as explicaccedilotildees que pode dar sobre deuses sobre as horas e sobre os tempos e

as colheitas ainda havia que tentar evidenciar as diferenccedilas e as qualidades das

coisas chamadas por ele de seres

A carruagem descia cada vez mais e passado um instante

jaacute estava perto de uma montanha O solo entatildeo se abriu por causa do

calor e como todos os liacutequidos secassem subitamente comeccedilou a

arder As pastagens ficaram amarelas e murchas as copas das

aacutervores das florestas incendiaram-se logo o fervor chegou agrave planiacutecie

queimando as colheitas incendiando cidades paiacuteses inteiros ardiam

com sua populaccedilatildeo Picos florestas e montanhas estavam em

chamas e foi entatildeo que os povos da Etioacutepia ficaram negros A Liacutebia

tornou-se um deserto57

Os seres possuem qualidades que agregam valores a esses seres

Definem as diferenccedilas de haacutebitos de raccedilas de culturas de deuses a serem

adorados e democircnios a serem rechaccedilados de bem e mal de batalhas de povos a

56 GUSDORF 196052 57 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005

55

serem dominados ou convertidos de deuses de conquistadores que se

transformam em democircnios para os povos conquistados Que fazem ricos

imperadores serem deuses e pobres escravos mortais

Onde estaratildeo essas explicaccedilotildees No topos ouran s58 Nos mundos

sensiacutevel e inteligiacutevel definidos por Parmecircnides Por Soacutecrates por Platatildeo ou

Aristoacuteteles

O homem miacutetico necessita mostrar que os sentidos o espetaacuteculo

heterogecircneo do mundo com seus variados matizes natildeo eacute o verdadeiro ser mas

antes eacute um ser posto em interrogaccedilatildeo eacute um ser problemaacutetico que necessita

explicaccedilatildeo 59 explicaccedilatildeo sobre as coisas sensiacuteveis e por traacutes delas o intemporal e

o eterno

O mito poderia ser considerado como a arquitetura do universo

desenhado pelo homem Tudo estaacute diante de noacutes todas as coisas estatildeo exposta e

noacutes tambeacutem fazemos parte dessa multiplicidade de coisas que compotildee e

constituem o real

O que se pode afirmar no entanto eacute que atraveacutes do mito o homem se

relaciona com o outro pensa os deuses vive e conhece as relaccedilotildees da

comunidade que habita Define tarefas coletivas e individuais na defesa e na

guarda da comunidade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

58 O mundo dos deuses Tambeacutem chamado de topos noet s o mundo das ideacuteias 59 MORENTE 1930 97

56

A relaccedilatildeo com o coletivo serve agraves necessidades bioloacutegicas de alimento

de si e da prole da procriaccedilatildeo e da guarda do patrimocircnio geneacutetico mas serve

tambeacutem para atender com base numa estrutura psiacutequica ao espiacuterito em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal Para Hollis (1998) Quem

a pessoa eacute define-se em parte por de quem ela eacute

a quem ou com qual

propoacutesito estaacute comprometida

Nas sociedades em que possa haver um colapso de um mito central se

esvai a essecircncia psicoloacutegica preciosa O homem perde o sentido de seus

conteuacutedos miacuteticos e se reativam seus conteuacutedos primitivos onde os valores

diferenciados satildeo substituiacutedos pelos elementos de poder e prazer em uma minoria

e expondo as outras camadas ao vazio e ao desespero

O mito central eacute de tatildeo vital importacircncia que sua perda acarreta uma

situaccedilatildeo apocaliacuteptica quebrando-se o ciacuterculo maacutegico em que o homem estaacute

inserido rompendo-se a relaccedilatildeo do ego com seu criador tendo esse indiviacuteduo que

perguntar novamente e seriamente qual o sentido da vida Natildeo haacute sentido na

vida pois a vida deve ser vivida e natildeo sentida no entanto isso soacute pode ocorrer e

as perguntas serem feitas se o ciacuterculo miacutetico estiver circundando a existecircncia do

homem

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de

nossa anguacutestia individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de

um novo mito central vai resolver o problema para o indiviacuteduo e para

a sociedade60

60 EDINGER 1999 p11

57

Se o mito natildeo eacute a proacutepria ontologia a proacutepria metafiacutesica61 eacute com

certeza a saga do heroacutei chamado ser humano em sua luta ontogocircnica62 Esse

heroacutei miacutetico usa suas armas para viver a vida a ser vivida Usa suas quatro armas

o saber o ousar o querer e o calar para tal qual Faetonte obter a resposta do

deus criador mesmo que tombe em combate na luta contra a finitude humana

Faetonte com os cabelos em chamas caiu como uma

estrela cadente E o rio Poacute recebeu sua carcaccedila carbonizada ante o

olhar estupefato de seu pai As naacuteiades daquela terra depositaram

seu corpo num tuacutemulo e nele gravaram o seguinte epitaacutefio

Aqui jaz Faetonte Na carruagem de Heacutelio ele correu E

se muito fracassou muito mais se atreveu

A finitude humana vem da mesma origem da ideacuteia de universo uma

noccedilatildeo adquirida recebida como heranccedila cultural atraveacutes de sucessivas

descobertas determinaccedilotildees e invenccedilotildees promovidas pelo homem tal qual sua

noccedilatildeo de espaccedilo e de tempo

O homem primitivo natildeo vecirc o espaccedilo como algo simplesmente

continente mas como um lugar absoluto Natildeo eacute o espaccedilo ou o tempo tidos como

61 metagrave tagrave physikaacute

metafiacutesica

aleacutem das coisas fiacutesicas - estudo do ser enquanto ser e especulaccedilatildeo em torno dos primeiros princiacutepios e das causas primeiras do ser 62 ntos ente - Ontogonia Histoacuteria da produccedilatildeo dos seres (entes) organizados sobre a Terra

58

racionais ou funcionais mas como partes estruturais de uma realidade criando a

definiccedilatildeo de um acontecimento de um acircmbito63

Esse contato com o universo com a finitude e com o espaccedilo miacutetico eacute o

proacuteprio princiacutepio da experiecircncia o sentido de realidade envolvida e revestida com

siacutembolos figuras intenccedilotildees humanas sejam agradaacuteveis ou desagradaacuteveis gentis

ou aversivas com o sagrado ou o profano enfim a proacutepria experiecircncia da

realidade humana

Poreacutem o espaccedilo miacutetico primitivo ou mesmo das sociedades claacutessicas

tinham seu espaccedilo vital como o altar o espaccedilo do sagrado onde esse espaccedilo

miacutetico eacute o o verdadeiro ponto de apoio de seu pensamento porque eacute o ponto de

apoio do mundo social e do mundo espacial

64 Por esse motivo o homem miacutetico

organiza seu espaccedilo vital em torno ao redor do espaccedilo sagrado espaccedilo esse

natildeo um marco de uma existecircncia possiacutevel mas sim como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute sentido pois ali moram seus deuses moram seus

mortos seus pensamentos e desejos

Eacute nesse espaccedilo miacutetico o espaccedilo sagrado que o homem realiza seus

rituais para uma boa marcha pelo mundo eacute a aiacute que faz suas suacuteplicas realiza

seus sacrifiacutecios e sua magia propiciatoacuteria onde suas forccedilas vitais se encontram e

se concentram

Dessa forma o homem miacutetico tem deve e precisa estar sempre em

contato com seu espaccedilo tempo e acircmbito onde se encontra o outro e com ele vive

63 GUSDORF 1959 64 GUSDORF 1959 p55

59

o grupo social pois fora dessa relaccedilatildeo tecida com o grupo social o homem

reduzido a si mesmo estaacute aniquilado pois perdeu seu lugar ontoloacutegico e as

referecircncias que lhe outorgavam figura e equiliacutebrio 65 E assim encontra a morte

mesmo que no sentido figurado pois morrer miticamente eacute a cessaccedilatildeo das

relaccedilotildees com o grupo social O morto o defunto eacute aquele que se livrou de suas

obrigaccedilotildees frente agrave comunidade

66 que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

(defuncto)

Vejamos o pensamento de Jung67

Mal terminei o manuscrito quando me dei conta do que

significa viver com um mito e o que significa viver sem ele [O

homem] que pensa que pode viver sem mito ou fora dele como

algueacutem sem raiacutezes natildeo tem nenhum viacutenculo verdadeiro nem com o

passado ou com a vida ancestral que continua dentro dele nem com

a sociedade humana contemporacircnea Esse seu brinquedo racional

nunca capta o lado vital

Nesse espaccedilo miacutetico eacute que se encontra o sagrado e esse sagrado eacute

tudo aquilo que se encontra sob os olhos do homem

Diz Gusdorf

65 Gusdorf1959p92 66 Gusdorf1959p92 67 apud Rollo May 1992p47

60

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao

ser toda sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da

comunidade pelo viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem

vivente a terra as coisas os seres e ainda os mortos que continuam

frequumlentando a morada de sua vida68

Viver no espaccedilo miacutetico eacute viver no sagrado pois o lugar natildeo eacute mais um

lugar e sim onde a vida acontece Ali estatildeo seus deuses suas forccedilas espirituais

os antepassados a vida o alimento etc

Os portugueses do Seacuteculo XVI ao virem para o Brasil trouxeram

consigo seu espaccedilo miacutetico e necessitaram sacralizar o novo territoacuterio construindo

imediatamente apoacutes sua chegada capelas casas ao seu estilo locais de

reuniotildees aleacutem de cristianizar o espaccedilo em que viveriam O espaccedilo eacute uma das

expressotildees da concepccedilatildeo de vida do homem da cultura do homem das relaccedilotildees

sociais Gostaria de afirmar que todos os povos desde o iniacutecio dos tempos tecircm

seu espaccedilo sagrado quando natildeo todo ele

No mundo miacutetico tudo eacute miacutetico natildeo soacute o homem a natureza eacute miacutetica

as pessoas a floresta a chuva o mar e as mareacutes os astros cada qual com sua

funccedilatildeo cada qual com sua participaccedilatildeo mas tudo fazendo parte do universo do

homem miacutetico Se desejarmos por esse motivo ver atraveacutes da razatildeo a loacutegica

disso natildeo conseguiremos pois o sentido do mito ou da vida natildeo existem pois a

vida como nos diz Campbell natildeo tem sentido pois vida natildeo eacute para ser sentida e

68 GUSDORF1959 p55-56

61

sim para ser vivida assim como natildeo eacute justa natildeo eacute certa pois eacute soacute vida e natildeo

justiccedila ou certezas

O mundo eacute um processo daquilo que creio diz o homem miacutetico Pedir

ao homem miacutetico que explique o mundo eacute o mesmo que pedir ao peixe para

explicar a aacutegua em que nada O ser miacutetico talvez tenha uma compreensatildeo mais

profunda da vida sem permitir o questionamento da racionalidade pois explicar o

miacutetico eacute saber que tudo eacute uma presenccedila real

O homem racional atende suas necessidades atraveacutes de possibilidades

conhecidas O homem miacutetico reconhece que o mundo eacute feito de possibilidades e

busca por elas mesmo natildeo as conhecendo as observa as testa e apoacutes tomar

consciecircncia delas as utiliza

O homem miacutetico sabe que natildeo estaacute sozinho pois estaacute conectado a tudo

que o cerca Ele eacute um criador efetivo do mundo infiltrando esse mundo de ideacuteias

e pensamentos Vejamos por exemplo que a Terra eacute um planeta totalmente

dominado por religiotildees Deus eacute uma forma de explicarmos as experiecircncias que

temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e transcendentais Ele eacute a

superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos aos deuses pois temos

que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa vida

Do ponto de vista antropoloacutegico-cultural passou-se de uma visatildeo do

mito como a modalidade mais primitiva que possa ser atribuiacuteda agraves cadeias de

eventos quotidianos (exemplos mito solar mitos da fecundidade da terra) para

uma visatildeo do mito como atividade fundamentalmente criativa do indiviacuteduo

humano tendo por objetivo a interpretaccedilatildeo das realidades que como as religiosas

62

ou as eacuteticas e de valores natildeo satildeo passiacuteveis de serem circunscritas nem

expressas em termos de pura racionalidade

O mito exprime valores e aspiraccedilotildees que caracterizam a vivecircncia de

certo grupo soacutecio-cultural e de qualquer maneira polarizam as suas energias

Assim por exemplo no acircmbito do judaiacutesmo o mito da justiccedila de Deus

concentrava todas as tensotildees eacuteticas e religiosas dos crentes

Essas concepccedilotildees levaram em conta dois fatos psicoloacutegicos a hipoacutetese

de estruturas inconscientes especiacuteficas os arqueacutetipos com a finalidade de captar

realidades natildeo racionais mas emocional e vitalmente importantes e a observaccedilatildeo

de que alguns grandes temas foram vividos e transmitidos sob a forma de mitos

de maneira repetitiva nas vaacuterias culturas e eacutepocas histoacutericas

Dentro da antropologia cultural e da psicologia do fenocircmeno religioso o

mito eacute visto como sendo a resultante de energias inconscientes que satildeo ativadas

por experiecircncias histoacutericas e que tecircm como finalidade a realizaccedilatildeo de um si-

mesmo individual ou de grupo de certo modo imanente a psique A origem da

ativaccedilatildeo dessas forccedilas pode estar ligada ou ser estimulada por eventos naturais

mas eacute depois atraiacuteda por personagens simboacutelicas natildeo histoacutericas (por exemplo as

vaacuterias deidades femininas que presidem os mitos da colheita dos frutos da

fecundidade etc) e que satildeo o resultado justamente das projeccedilotildees inconscientes

individuais e coletivas

Podemos considerar o mito como sendo a preacute-histoacuteria da filosofia onde

a consciecircncia humana se estrutura nas origens do conhecimento

63

A filosofia busca entender o Estado a Lei o Direito a Ciecircncia a

Tecnologia e tantos outros conhecimentos mas a filosofia quando nasce quer

resgatar o saber do mito que se esvaia na cultura grega

Conforme nos explica Joseph Campbell69 o mito vem para servir agraves

necessidades humanas no sentido de conhecer o cosmo a natureza o outro e a

si proacuteprio

Em primeiro lugar no que se refere agrave questatildeo cosmoloacutegica serve o

mito para abordar as questotildees teoloacutegicas o plano da gecircnese e da escatologia70

diz respeito a se a pessoa entende como caos ou um

absurdo o desenrolar de uma lei natural ou percebe a presenccedila de

uma inteligecircncia orientadora e a existecircncia de um plano

compreensiacutevel por traacutes do universo71

Eacute o mito a necessidade do homem de explicar com sua proacutepria visatildeo

de uma paisagem completa o iniacutecio de tudo das divindades e deidades

beneacutevolas ou maleacutevolas e dos misteacuterios insondaacuteveis que datildeo sentido ao cosmo

Onde o homem se relaciona com seus temores e sorve suas belezas

Para o homem miacutetico a vida natildeo tem sentido algum pois a vida eacute a

proacutepria experiecircncia de estar vivo de modo de nossas experiecircncias de vida no

plano puramente fiacutesico tenham ressonacircncia no interior do nosso ser e da nossa

69 apud James Hollis 1998 70 Principalmente no tocante ao tratado sobre os fins uacuteltimos do homem 71 HOLLIS 1998 18

64

realidade mais iacutentimos de modo que realmente sintamos o enlevo de estar

vivos 72

Em segundo lugar continuando o mito a servir agraves necessidades

humanas surge o sentido metafiacutesico no esforccedilo de apresentar a natureza do

mundo agrave nossa volta Qual eacute a nossa relaccedilatildeo com o que eacute arquetipicamente

chamado de A Grande Matildee de cujo ventre viemos e para cujo seio

retornaremos 73 A resposta a essa pergunta eacute a proacutepria formaccedilatildeo do mito tatildeo

numinoso 74 quanto os deuses tatildeo luminoso quanto os astros sobre a cabeccedila do

homem e tatildeo fulgurante quanto os fenocircmenos naturais

Outra alegoria miacutetica eacute a do bosque da vida para mostrar o ventre da

grande matildee do qual nascemos e muitas vezes laacute ficamos aprisionados assim nos

mostra Jung

Outro siacutembolo materno igualmente comum eacute o bosque da

vida ou a aacutervore da vida Primeiramente a aacutervore da vida pode ter

sido uma aacutervore genealoacutegica produtora de frutos consequumlentemente

uma espeacutecie de matildee tribal Inuacutemeros mitos dizem que seres humanos

nasceram de aacutervores e muitos relatam como o heroacutei havia sido

aprisionado no tronco de uma aacutervore materna como Osiacuteris morto

dentro de um cedro Adocircnis dentro do mirto etc Numerosas

divindades femininas eram adoradas sob a forma de aacutervores vindo

daiacute o culto de aacutervores e bosques sagrados Assim quando Aacutetis castra-

se sob um pinheiro ele o faz porque a aacutervore tem um significado

72 CAMPBELL 1990 p 3 73 HOLLIS1998p20 74 do latim numem = maacutegico enfeiticcedilante um efeito dinacircmico ou a existecircncia que domina o ser humano independente de sua vontade

65

materno A Juno de Teacutespia era representada por um galho a de

Samos por um prancha a de Argos por um pilar a Diana de Caacuteria por

um bloco de madeira bruta a Atena de Lindos era uma coluna polida

Tertuliano chamava a Ceres de Paros de `rudis palus et informe

lignum sine efigie (um tronco rude um pau informe sem rosto)

Ateneo informa que a Latona de Delos era um pedaccedilo informe de

madeira Tertuliano tambeacutem descreve uma Palas aacutetica como `crucis

stipes (estaca de uma cruz) Uma viga nua de pau como o proacuteprio

termo indica eacute faacutelica (JUNG 1988 sect 321)

Em terceiro lugar o mito serve ao homem miacutetico na relaccedilatildeo com o

outro para o conhecimento das relaccedilotildees da comunidade da divisatildeo de tarefas e

na defesa da coletividade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

No entanto esse viver de forma muacutetua tambeacutem vem transgredir a lei

natural Assim novamente surge o mito a forma narrada 75 desajustada com a

realidade vivida mas que explica orienta e normatiza as relaccedilotildees que daacute uma

forma ao pensamento ou ainda uma forma de viver

Por fim em quarto lugar Hollis (1998) nos falando do pensamento de

Campbell traz ao homem miacutetico o sentido psicoloacutegico do mito o entendimento do

si-mesmo do quem eacute do de onde vem de qual seu lugar no mundo e de como

encontrar a pessoa para formar um par

75 Do grego mythus = conto palavra

66

A cultura que tiver perdido seu cerne miacutetico ou cujas

mitologias sejam muito fragmentadas e diversas cria pessoas

perdidas e assustadas que mudam de culto para culto de ideologia

para ideologia 76

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Na visatildeo junguiana tanto a histoacuteria quanto a antropologia nos ensinam

que psicologicamente a sociedade humana natildeo poderia ter sobrevivido por muito

tempo a natildeo ser que as pessoas estivessem contidas na relaccedilatildeo psicoloacutegica

dentro de um mito central e vivo

Pode ser percebido que os membros mais competentes da sociedade

mais desenvolvidos e perspicazes possuem respostas miacuteticas que satisfazem

suas perguntas existenciais

Essa minoria criativa intelectual e dominante vive em intensa harmonia

com o mito predominante Jaacute as outras camadas da sociedade seguem a direta

lideranccedila dessa minoria chegando a evitar o confronto com as questotildees miacuteticas

poupando-se da discussatildeo e seguindo diretamente a questatildeo fatiacutedica do sentido

da vida

76 HOLLIS 1998 24

67

Com a perda da consciecircncia de uma realidade

transpessoal (Deus) as anarquias interna e externa dos desejos

pessoais rivais assumem o poder 77

Jung nos formula a questatildeo como sendo o problema do homem

moderno o estado de carecircncia de mitos

Em seus estudos teve um momento em Memoacuterias sonhos e

reflexotildees78 em que coloca a si mesmo como tendo perdido o ciacuterculo maacutegico do

mito

Agora vocecirc tem a chave para a mitologia e estaacute livre para

abrir todos os portotildees da psique inconsciente Alguma coisa em mim

entatildeo sussurrou Porque abrir os portotildees E logo me surgiu a

pergunta sobre o que afinal eu havia realizado Eu tinha explicado os

mitos das pessoas do passado havia escrito um livro sobre o heroacutei o

mito em que o homem sempre viveu Mas em que mito vive o homem

hoje em dia No mito cristatildeo poderia ser a resposta Vocecirc vive nele

Perguntei a mim mesmo Para ser honesto a resposta foi natildeo Para

mim natildeo eacute pautado nele que vivo Entatildeo natildeo temos mais nenhum

mito Natildeo eacute evidente que natildeo temos mais nenhum mito Mas

entatildeo qual eacute o seu mito o mito em que vocecirc efetivamente vive

Nesse ponto o diaacutelogo comigo mesmo ficou desconfortaacutevel e parei de

pensar Eu chegara a um beco sem saiacuteda79

77 EDINGER 1999 10 78 JUNG 1975 79 JUNG 1975 171

68

Disse ainda Jung que o mito leva o homem em uma tendecircncia a priori

ingecircnua a acreditar e levar a seacuterio todas as manifestaccedilotildees miacuteticas do

inconsciente e de acreditar que a natureza do proacuteprio mundo isto eacute as verdades

definitivas estejam encerradas no mito Essa concepccedilatildeo natildeo eacute de todo destituiacuteda

de fundamento visto que as manifestaccedilotildees espontacircneas do inconsciente

exprimem uma psique que nem sempre se identifica com a consciecircncia e muitas

vezes se distancia dela tratando-se de uma atividade psiacutequica natural e natildeo

aprendida que independe de nosso livre arbiacutetrio

As formas arquetiacutepicas que surgem da raiz do pensamento humano satildeo

necessaacuterias para que o homem possa determinar a existecircncia do mundo e

conhececirc-lo Eacute a psique primitiva essa raiz que se pode afirmar natildeo conhecia a si

mesma Essa consciecircncia soacute pode ser formada a partir da evoluccedilatildeo do homem

desde sua origem ateacute os tempos histoacutericos

Ainda hoje conhecemos certas tribos primitivas cuja

consciecircncia se distancia muito pouco do lado tenebroso da psique

primiacutegena e mesmo entre os homens civilizados podemos encontrar

resquiacutecios do estado primordial80

ABRAHAM em Traum und mytus (apud JUNG 1989 21) disse

entender ser o mito uma parte superada da vida espiritual infantil do povo Assim

o mito eacute uma parte preservada da vida espiritual infantil do povo e o sonho o mito

80 JUNG 1988 89

69

do indiviacuteduo Essa citaccedilatildeo se prende ao fato de que muitos teoacutericos acreditam ser

esta a real concepccedilatildeo psicoloacutegica de mito Realmente podemos ver nas crianccedilas

que a tendecircncia na formaccedilatildeo de mitos corre ao lado de suas fantasias

transformadas em realidade fantasias essas revestidas de histoacuterias No entanto

afirmar que o mito procede da vida espiritual infantil do povo chega a parecer

absurdo pois na verdade eacute o mito a produccedilatildeo mais adulta da humanidade

primitiva O homem que pensava e vivia nas cavernas que vivia no mito era uma

realidade adulta pois o mito natildeo eacute uma fantasia pueril mas um dos requisitos

mais importantes da vida primitiva 81

O mito eacute a cultura profana ou sagrada eacute cultura cultura por outro lado

eacute educaccedilatildeo assim a funccedilatildeo dos mitos pode ser vista como uma forma

estruturada de culturalmente se falar dos seres sobrenaturais perante a histoacuteria do

homem essa histoacuteria como se trata da realidade do homem miacutetico se constitui

como absoluta verdade pois se referem agraves realidades sagradas desse homem O

mito cria o mundo estabelece como se iniciou e como terminaraacute contanto

narrativamente escrita ou atraveacutes da tradiccedilatildeo oral como algo surgiu na viva do

homem miacutetico

O mito revela e revelando nos daacute a oportunidade da realizaccedilatildeo

misteriosa de controlar a realidade atraveacutes do rito o qual promove o contato com a

divindade Todos estamos contidos e contemos o mito pois em momentos de

extrema dor ou prazer sacralizamos o que sentimos e por mais ceacuteticos que

81 JUNG 1989 p21

70

possamos ser sentimos a presenccedila do mito e vivenciamos em nossa psique os

resultados do poder criador do mito

Sendo ainda cultura o mito pode ter como poder criador associado ao

tempo a eacutepoca ao produto social de um grupo as vivecircncias que se alteram e se

propagam no inconsciente coletivo determinando as forccedilas que manteacutem o mito

vivo gerando comportamentos religiosos morais sociais e poliacuteticos desde a

coleta da caccedila da construccedilatildeo de um barco de uma habitaccedilatildeo ateacute a postura

preponderante de um chefe de estado perante a naccedilatildeo que governa Eacute algo maior

que a racional inteligecircncia do homem de nosso seacuteculo em detrimento das

especulaccedilotildees metafiacutesicas ou teoloacutegicas

Toda e qualquer tentativa de explicar um mito faz com que uma

barreira inexplicaacutevel surja pois a proacutepria explicaccedilatildeo do mito vive dentro do mito

pois partes de um mito natildeo podem ser explicadas pois ele em si eacute todo

A tentativa de explicar um mito eacute feita com base em leis mutaacuteveis das

ciecircncias enquanto ele eacute baseado em leis estaacuteveis da natureza O animal

reconhece seu cio sem que se necessite ensinaacute-lo desloca-se para copular sem

que necessite de mapas luta por seu patrimocircnio geneacutetico sem aulas de

biodiversidade e as estrelas essas se encontram laacute para o homem miacutetico sem

que ningueacutem possa explicar como laacute chegaram

Por fim o mito eacute o homem e o homem eacute o mito natildeo como parte um do

outro mas ontologicamente na relaccedilatildeo do vir-a-ser Natildeo porque nada vem-a-ser

71

senatildeo o que pode ser mas o vir-a-ser depende de modelos ou formas garantidos

pelo Ser e por sua manifestaccedilatildeo 82 e o mito eacute a manifestaccedilatildeo desse Ser

82 CRIPPA1975p183

72

CAPIacuteTULO 3 - O MITO CRISTAtildeO

Para que o leitor tenha uma visatildeo mais profunda sobre o embate de

mitos que ocorreu no seacuteculo XVI com a chegada dos portugueses ao Brasil e

especificamente com a catequese jesuiacutetica vejo como de suma importacircncia que

seja dedicado ao capiacutetulo deste trabalho exclusivamente ao mito cristatildeo

Falei direta e especificamente das visotildees filosoacuteficas antropoloacutegicas e

psicoloacutegicas sobre o conceito de mito

Como natildeo tratar entatildeo o mito que deu origem ao estudo do objeto

desta pesquisa que se trata do embate de mitos durante o periacuteodo quinhentista

Quem eacute o portuguecircs que chega ao Brasil daquele periacuteodo que mitos

abriga em sua alma quais os caminhos direcionados ao mito da divindade como

explica suas impotecircncias suas crenccedilas seus valores religiosos pois satildeo esses

valores trazidos da Santa Feacute Catoacutelica que vatildeo ser impostos aos brasis desde a

chegada de Cabral

Para tal para que possa responder perguntas que satildeo minhas e

acredito sejam do leitor entrei em um campo muito profundo quer no sentido

psicoloacutegico da anaacutelise desse mito quer em levantar polecircmicas sobre os siacutembolos

de transformaccedilatildeo cultural que o mito cristatildeo tem gerado desde os mais remotos

tempos

73

Assim fui muitas vezes pesquisar na Biacuteblia e nos conceitos junguianos

como esse mito participou e participa da vida daqueles que seguem como mito

como arqueacutetipo principal de suas vidas a vida de Cristo

Em primeiro lugar busquei entender um pouco desse homem

anunciado pelo Anjo do Senhor e que no caminho de sua individuaccedilatildeo morre

crucificado apoacutes a aceitaccedilatildeo de seu destino em relaccedilatildeo a Deus83

Em seguida mais perguntas surgiram Ao falar do Homem ao falar do

Filho minha busca vai em direccedilatildeo ao Pai e por consequumlecircncia ao Espiacuterito Santo

onde tento entender e interpretar o mito da Trindade84

Mas o Filho de Deus fez coisas na terra entre elas fazer gerar uma

Igreja e uma Santa Feacute onde seu siacutembolo mais forte eacute a Santa Ceia que deu

origem agrave missa Busco aiacute outros siacutembolos cristatildeos outros mitos outros elementos

que foram gerados por uma cultura de uma eacutepoca e que foram transformados em

Lei85

Busco ainda a concepccedilatildeo natildeo maniqueiacutesta de Bem e Mal na visatildeo do

mito cristatildeo e condensando esses conhecimentos consigo entatildeo falar do cristatildeo

portuguecircs daquele que leva esses mitos esses arqueacutetipos esses siacutembolos de

transformaccedilatildeo esses siacutembolos culturais ao indiacutegena brasileiro que se encontrava

vivendo pelos seus proacuteprios mitos e de suas proacuteprias tradiccedilotildees por seus proacuteprios

83 vide apecircndices 2 3 e 4 84 idem 85 idem

74

arqueacutetipos e simbologias miacuteticas que tal como os portugueses tal como os

jesuiacutetas buscavam suas proacuteprias almas e os sentidos para suas vidas

De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado do proacuteprio Espiacuterito Santo e que traria aos brasis os

bons costumes a feacute em si a cura de todos os males da alma Do outro lado

homens livres que possuiacuteam seus costumes como bons que possuiacuteam feacute em

seus mitos e explicaccedilotildees da finitude de suas vidas sem que entendesse que

possuiacuteam males em suas almas ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao

inimigo do Homem que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a

realidade

O cristianismo do seacuteculo XVI natildeo tinha como entender que a verdade

acabada revelada e imposta natildeo abria o coraccedilatildeo do homem branco ou de pele

dourada para as reais coisas da palavra de Deus Estas palavras nascem

exatamente no coraccedilatildeo do homem pois satildeo elas que explicam e levam o homem

em busca da individuaccedilatildeo do contato direto com seus niacuteveis mais inconscientes

lugares esses em que realmente se ouve a voz da divindade seja ela qual for

O homem ao crer sem questionar natildeo reflete sobre suas duacutevidas natildeo

questiona seus mitos e seus dogmas natildeo muda natildeo altera o que pensa do

inexplicaacutevel mas o homem que pensa suas ideacuteias sempre teraacute a duacutevida como

bem recebida pois eacute ela que permite um conhecimento mais perfeito e mais

seguro de si e daquilo que natildeo consegue explicar

Jung nos coloca em sua obra que como estudioso chega a ver a

religiatildeo como um filho natural do inconsciente humano que vecirc nas vaacuterias e

75

improvaacuteveis afirmaccedilotildees religiosas movimentos psicoloacutegicos do processo universal

de renovaccedilatildeo e amadurecimento humanos mas que para isso a duacutevida o

questionamento sobre as verdades reveladas devem estar sendo pensadas pelo

homem

Mas nos quinhentos o homem portuguecircs natildeo pensava seus mitos

religiosos os vivia e por esse motivo podia de forma impositiva infligir sua feacute

seus bons costumes suas crenccedilas atraveacutes do poder de fogo de canhotildees do

poder dos sacramentos do poder do teatro e da catequese Seu modo miacutetico de

ver o mundo era o correto o uacutenico afinal como dizia Vicente de Lerins86 norma de

feacute eacute aquilo que foi acreditado sempre por todos e em toda parte No entanto natildeo

havia todos para os catoacutelicos senatildeo os catoacutelicos Protestantes eram

considerados tatildeo hereges quanto qualquer outro que natildeo catoacutelico Natildeo havia

parte alguma senatildeo aquela em que os catoacutelicos viviam o restante do mundo era

para ser transformado colonizado submetido e convertido gerando uma

verdadeira doenccedila na alma desses homens miacuteticos que habitavam estas terras no

seacuteculo XVI

86 Vicente de Lerins foi um antigo teoacutelogo citado diversas vezes por Jung em sua obra como sendo seu pensamento sobre a feacute uma das manifestaccedilotildees mais felizes da ortodoxia psicoloacutegica In Dourley 1987 p29

76

CAPIacuteTULO 4 - COMO O EUROPEU CRISTAtildeO COMPREENDIA OS INDIacuteGENAS E A

CONCEPCcedilAtildeO QUE TINHAM DA VIDA DESSES BRASIS

Esta terra poreacutem tinha dono belicoso e baacuterbaro87

Para que pudesse realizar esta parte deste trabalho tive que buscar

informaccedilotildees de distintas formas Em primeiro lugar houve uma preocupaccedilatildeo em

levantar as fontes em que poderia pesquisar fontes essas que soacute poderiam ser

de autores do periacuteodo em que me fixei para levantar as informaccedilotildees

Esses homens autores de alguns documentos me dariam sempre

visotildees cristatildes brancas portuguesas ou espanholas de como os indiacutegenas

concebiam suas vidas

Muitas vezes pude encontrar claros relatos dessas vidas mas em outras

me restava a interpretaccedilatildeo agraves vezes pelo negativo das narrativas de como essas

vidas aconteciam

Claro muitos documentos mostravam com repuacutedio e rechaccedilo os

costumes que busquei entender outros mais romacircnticos mostravam seres

edecircnicos em alguns momentos e bestas feras em outros Bastava que o indiacutegena

87 CALMON 1963 vol 2 p321

77

fosse contra de alguma forma ao contato ao convencimento que lhe tentavam agrave

catequese ou agrave conversatildeo proposta para que passasse de um extremo para outro

de adacircmicos em democircnios como fez Anchieta em seus autos com Guaixaraacute e os

outros diabos88

Percebo em cartas de Noacutebrega de Anchieta ou de Navarro momentos

de pura consternaccedilatildeo do modo de viver dos brasis para em seguida mostrar o

lado demoniacuteaco que carregavam os indiacutegenas obviamente em suas visotildees

europeacuteias e jesuiacuteticas dentro do mito cristatildeo Noacutebrega mais animado em suas

primeiras cartas e mais desgostoso e entristecido com sua missatildeo ao final

Navarro mais intelectual em seus conceitos e descriccedilotildees e em Anchieta um relato

mais duacutebio conforme a tribo da qual escrevia

Busquei Cardim Caminha Frei Vicente do Salvador Calmon

Capistrano de Abreu Gacircndavo e no de gestis Mendi de Saa

de Anchieta e em

todos tive que proceder da mesma forma agraves vezes relatando agraves vezes

interpretando pelo negativo

Pude encontrar ainda a tradiccedilatildeo oral com a qual convivi durante anos e

me senti agrave vontade em ler com isso os relatos de Kakaacute Weraacute Jecupeacute89 e

compreender algumas de suas informaccedilotildees

Por essa com-vivecircncia com tribos como Jivaros (com liacutengua proacutepria e

o espanhol) como Pataxoacutes no Sul da Bahia com Charruas na regiatildeo das missotildees

88 Auto de Satildeo Lourenccedilo o qual seraacute tratado mais adiante neste trabalho 89 Kakaacute Weraacute Jecupeacute

iacutendio txucarramatildee autor dos livros A Terra dos mil povos e Tupatilde Tenondeacute editados pela Editora Fundaccedilatildeo Peiroacutepolis - SP

78

e com verdadeiros iacutendios gauacutechos montados

vestidos em seus quiacutechua xiri

pac 90 dos pampas argentinos e da fronteira do Brasil sentia que podia ler relatos

de indiacutegenas de hoje pois entendia de tradiccedilatildeo oral afinal eu mesmo tive

centenas de ensinamentos atraveacutes dessa forma de educaccedilatildeo

Conheci indiacutegenas de diversos tipos e costumes mas todos mesmo

bastante transmutados por nossa cultura ainda livres ainda aguerridos muitos

ainda indolentes e outros prontos para a guerra mas nenhum deles menos

miacuteticos que noacutes menos inteligentes que noacutes menos carentes de explicaccedilotildees

sobre a finitude da vida humana e guardadores ferrenhos de seus costumes

crenccedilas e tradiccedilotildees

Tento assim neste capiacutetulo descrever daqui a diante todo esse estudo

sobre como os indiacutegenas concebiam suas vidas em meio ao Seacuteculo XVI

No entanto natildeo podendo perder o foco desta proposta o embate de

mitos por mais que nas descriccedilotildees encontradas nas fontes de que os indiacutegenas

viviam suas vidas surgissem termos como liberdade ou feras a serem

amestradas ou natildeo possuem Deus no coraccedilatildeo natildeo posso deixar de entender

que eram esses termos esses conceitos meras interpretaccedilotildees culturais de quem

via e relatava Vou trabalhar com esses termos conceituais

90 Do esp chiripaacute lt quiacutechua xiri pac para o frio S m Bras S Vestimenta sem costura outrora usada pelos gauacutechos habitantes do campo e que consistia num metro e meio de fazenda que passando por entre as pernas era presa agrave cintura por uma cinta de couro ou pelo tirador

79

Vejamos Cardim91 nas primeiras linhas de Princiacutepio e Origem dos iacutendios

do Brasil e seus costumes

Este gentio natildeo tem conhecimento algum de seu creador nem

de cousa do Ceacuteo nem se ha pena nem gloria depois desta vida

e portanto natildeo tem adoraccedilatildeo nenhuma nem cerimonias ou

culto divino mas sabem que tecircm alma e que esta natildeo morre e

depois da morte vatildeo a uns campos onde ha muitas figueiras ao

longo de um formoso rio e todas juntas natildeo fazem outra cousa

senatildeo bailar

Vamos ler agora maino i ypi kue apresentado em Tupan Tenondeacute92

Ntildeande Ru Pa-pa Tenondeacute Gete ratilde ombo-jera Pytuacute yma gui

Nosso Pai Primeiro criou-se por si mesmo na Vazia Noite iniciada

Yvaacutera pypyte Apyka apuia i Pytuacute yma mbyte re oguero-jera

As sagradas plantas dos peacutes O pequeno assento arredondado Do Vazio Inicial Enraizou seu desdobrar (florescer)

Yvaacutera jeckaka mba ekuaaacute Yvaacutera rendupa Yvaacutera popyte yvyra i Yvaacutera popyte rakatilde poty Oguero-jera Ntildeamandui Pytuacute yma mbyte re

Ciacuterculo desdobrado da sabedoria inaudiacutevel Fluiu-se divino Todo Ouvir As divinas palmas das matildeos portando o bastatildeo do poder As divinas palmas das matildeos feito ramas floridas Tramam o Imanifestado na dobra de sua evoluccedilatildeo no meio da primeira noite

Ntildeande Ru Ntildeamandu tenondeacute gua O yva raacute oguero-jera eyacute mboyve i Pytuacute A e ndoechaacutei Kuaray oiko eyacute ramo jepe

Nosso Pai O Grande Misteacuterio o primeiro antes de haver-se criado no curso de sua evoluccedilatildeo sua futura morada sustenta-se no Vazio

91 CARDIM 1980-p87 92 JECUPEacute2001 p25-31

a liacutengua apresentada ao lado do texto traduzido eacute o abantildeeenga considerada como a liacutengua ancestral Tupi de onde saiacuteram os dialetos que hoje existem dos Chiripaacute dos Kaiowaacute e dos Mbyaacute aleacutem do guarani paraguaio

80

O py a jechaka re A e oiko oikovy O yvaacutera py mba ekuaaacute py Antildeembo-kuaray i oiny

Antes que existisse sol Ele existia pelo reflexo de seu proacuteprio coraccedilatildeo E fazia servir-se de sol dentro de sua proacutepria divindade

Como podemos concluir fazendo uma comparaccedilatildeo entre os dois textos

o de Cardim considerado fonte histoacuterica e o outro de Jecupeacute uma traduccedilatildeo de

fonte oral da tradiccedilatildeo guarani tinham sim os indiacutegenas um conhecimento de seu

criador Apenas o mito eacute outro apenas os arqueacutetipos satildeo outros apenas a forma

de explicar o inexplicaacutevel eacute outra

O andarem nus por exemplo Todas fontes nos mostram o quanto eram

esses homens e mulheres livres e inocentes por andarem nus portando muitas

vezes sua arte plumaacuteria que os diferenciava de uma tribo para outra pinturas de

siacutembolos e cores Mas seria essa forma de viver realmente uma questatildeo de

liberdade Natildeo poderiacuteamos considerar a falta de roupa como uma falta de

conhecimento do tecer e da natildeo necessidade de tantas roupas conforme

estabelecido no modo de viver do portuguecircs cristatildeo

Havia pelo que podemos encontrar vaidade entre os indiacutegenas mas

com conceitos outros de mostrarem suas necessidades de guarda de patrimocircnio

geneacutetico que tal qual os paacutessaros seus vizinhos danccedilavam para suas mulheres

emplumados e coloridos mostrando seus dotes suas honras sua forccedila e sua

importacircncia dentro da hierarquia tribal

Poreacutem para saiacuterem galantes usatildeo de vaacuterias invenccedilotildees

tingindo seus corpos com certo sumo de uma aacutervores com que ficam

81

pretos dando muitos riscos pelo corpo braccedilos etc a modo de

imperiaes 93

Ou ainda como Caminha num dos relatos mais afamados

A feiccedilatildeo deles eacute serem pardos maneira de avermelhados

de bons rostos e bons narizes bem-feitos Andam nus sem nenhuma

cobertura Nem estimam em cobrir ou de mostrar suas vergonhas e

nisso tecircm tanta inocecircncia como em mostrar o rosto E um deles

trazia por debaixo da solapa de fonte a fonte para detraacutes uma

espeacutecie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do

comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o

touticcedilo e as orelhas94

Esta eacute uma das visotildees mais neutras da nudez indiacutegena mas vejamos

outra

aqui onde as mulheres andam nuas e natildeo sabem se

negar a ningueacutem mas ateacute elas mesmas cometem e importunam os

homens jogando-se com eles nas redes porque tecircem por honra

dormir com os Cristatildeos 95

93 CARDIM 1980-p90 94 CAMINHA

p3

Carta de pero Vaz de Caminha

A certidatildeo de nascimento do Brasil

Bradesco

Brasil 500 anos- 2000 e tb CALMON 1963- Vol I p67 95 ANCHIETA Cartas 1988 p78 Carta ao Padre Mestre Inaacutecio de Loiola julho 1554

82

Ou ainda na visatildeo de Noacutebrega

Parece-nos que natildeo podemos deixar de dar a roupa que

trouxemos a estes que querem ser christatildeos repartindo-lh a ateacute

ficarmos todos eguaes com elles ao menos por natildeo escandalisar aos

meus Irmatildeos de Coimbra si souberem que por falta de algumas

ceroulas deixa uma alma de ser christatilde e conhecer a seu Creador e

Senhor e dar-lhe gloria96

Ou ainda

Tambeacutem peccedila Vossa Reverendissima algum petitoacuterio de

roupa para entretanto cobrirmos estes novos convertidos ao menos

uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religiatildeo Christatilde

porque vecircm todos a esta cidade aacute missa aos domingos e festas que

fazem muita devoccedilatildeo e vecircm resando as oraccedilotildees que lhes ensinamos

e natildeo paree honesto estarem nuas entreos Christatildeos na egreja e

quando as ensinamos97

Assim somente uma forma de olhar de cima de que concepccedilatildeo se

analisa define de forma diferente o costume do outro

Podemos pegar mais um exemplo de como olhar um costume o

casamento

Entre eles ha casamentos poreacutem ha muita duvida se satildeo

verdadeiros Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar

contrario e preserverava virgem ateacute que o tomasse e matasse

correndo-lhe primeiro suas festas por espaccedilo de dous ou tres annos a

96 NOacuteBREGA 1988 P74 Carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo - 1549 97 NOacuteBREGA 1988 p85 Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549

83

mulher da mesma maneira natildeo conhecia homem ateacute lhe natildeo vir regra

depois da qual lhe faziatildeo grandes festas ao mesmo tempo de lhe

entregarem a mulher faziatildeo grandes vinhos e acabada a festa ficava

o casamento perfeito dando-lhe uma rede lavada e depois de

casados comeccedilavatildeo a beber poque ateacute ali natildeo o consentiatildeo seus

pais ensinando-lhes que bebessem com tento e fossem

considerados e prudentes em seu falar para que o vinho natildeo lhes

fizesse mal nem falassem cousas ruins e entatildeo com uma cuya lhe

davatildeo os velhos antigos o primeiro vinho e lhe tinhatildeo a matildeo na

cabeccedila para que natildeo arrevessassem porque se arrevessava tinhatildeo

para si que natildeo seria valente e vice-versa98

Entendo com este texto de Cardim que existe um tanto de moral de

regras de ensinamentos e de respeito muacutetuo entre as pessoas de uma mesma

tribo inclusive com preocupaccedilatildeo paterna de bons costumes Poreacutem me parece

na proacutexima citaccedilatildeo de autoria de Noacutebrega que natildeo era bem assim que ele via a

relaccedilatildeo de casamento pois os brancos e europeus natildeo seguiam essa mesma

visatildeo de um casamento verdadeiro entre eles proacuteprios como faziam os

indiacutegenas Vejamos

Nesta terra ha um grande peccado que eacute terem os

homens quase todos suas Negras por mancebas e outras livres que

pedem aos Negros por mulheres segundo o costume da terra que eacute

98 CARDIM 1980-p88

84

terem muitas mulheres E estas deixam-n as quando lhes apraz o que

pe grande escandalo para a nova Egreja que o Senhor quer fundar99

Anchieta tambeacutem natildeo vecirc com bons olhos o costume do casamento

indiacutegena mesmo com as regras intriacutensecas daquela cultura pois olhando de cima

de seu mito cristatildeo natildeo pode admitir as relaccedilotildees de casais que se formam nas

tribos Vejamos

contraiacutedo matrimocircnio com os mesmos parentes e

primos se torna dificiacutelimo se por ventura queremos admiiacute-los ao

batismo achar mulher que por causa do parentesco de sangue possa

ser tomada por esposa O que natildeo pequeno embaraccedilo nos traz

porquanto natildeo podemos admitir a receber o batismo aacute que se

conserva manceba pois satildeo de tal foacuterma barbaros e indocircmitos que

parecem aproximar-se mais a natureza das feras do que aacute dos

homens100

Mais um ponto para que possamos entender os costumes dos brasis eacute

o de comer carne humana a antropofagia tatildeo apontada em todos os relatos e

cartas e por todos os historiadores do periacuteodo

Ficou quase que declarado de que os indiacutegenas se alimentavam de

carne de seus contraacuterios como se pudesse falar que comiam carne no sentido

alimentar no sentido de sobrevivecircncia da mesma forma que caccedilavam pescavam

ou colhiam frutos e raiacutezes

99 NOacuteBREGA 1988 p79 - Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549 100 ANCHIETA- Cartas 1988p55 Carta de Piratininga 1554

85

Haacute que se entender a ritualiacutestica que envolvia a antropofagia Para

tanto eacute importante tambeacutem que se fale um pouco do costume de guerrear

Os indiacutegenas mais aguerridos tinham como orientaccedilatildeo alimentar nunca

comerem animais lentos ou fracos pois esses atributos passariam a fazer parte de

suas personalidades atributos esses que consideravam sobremaneira como

negativos101 Comiam para esse fim animais raacutepidos ferozes perigosos

audazes espertos e claro o inimigo aprisionado em uma batalha

A antropofagia natildeo alimentava mas dava de uma forma ritualiacutestica a

possibilidade da aquisiccedilatildeo dos atributos positivos do inimigo Ao comer a carne de

um guerreiro valente honrado capaz dominante em sua tribo acreditava por

seus mitos estar adquirindo esses atributos neste caso considerados positivos

Comer carne humana de um guerreiro vencido e aprisionado tinha portanto um

sentido miacutetico

A documentaccedilatildeo disponiacutevel natildeo deixa nenhuma duacutevida a

respeito do fim do aprisionamento de inimigos ele natildeo estava

subordinado a motivos fisioloacutegicos a necessidade de

aprovisionamento regular de carne humana destinada agrave alimentaccedilatildeo

Os Tupinambaacute praticavam a antropofagia sob a forma ritual (apesar

de alguns cronistas pretenderem insinuar o contraacuterio) de modo que a

ingestatildeo de carne dos inimigos sacrificados possuiacutea um significado

simboacutelico e maacutegico 102

101 Podemos ver uma descriccedilatildeo completa em FERNANDES 1970- p43 102 FERNANDES 1970- p47

86

A morte daquele que iria ou foi comido tambeacutem tinha um valor para o

proacuteprio sacrificado visto que morrer dessa forma tambeacutem significava honra pois

ser enterrado para que os vermes o comessem era ser considerado um fraco e

natildeo um guerreiro

Assim as lutas as guerras eram lutas bioacuteticas e necessaacuterias para a

sobrevivecircncia mas tambeacutem pelos seguintes motivos

A aplicaccedilatildeo e treinamento dos conhecimentos de caccedila utilizando

a cilada e o rastrear e perseguir como forma de ataque

Para a guarda do patrimocircnio geneacutetico roubando mulheres

melhores de outra tribo para que filhos melhores pudessem ser

fecundados em casamentos exogacircmicos

Para a pilhagem de conhecimentos como o da cestaria ou da

ceracircmica

Para garantia ou disputa de um espaccedilo ou territoacuterio

ecologicamente mais pleno de possibilidades de alimento da prole

e da tribo em si

Para a pilhagem de viacuteveres em tempos de escassez de recursos

naturais ou de aprovisionamento de utilidades

Como rito de passagem para os mais jovens tornarem-se homens

no sentido adulto de sua masculinidade (avaacute ou tujuaacutee) o que

poderia tornaacute-lo mais atrativo para as mulheres mais atrativas

onde novamente surge a guarda do patrimocircnio geneacutetico

87

Como forma de aprisionar guerreiros que poderiam ser trocados

por viveres ou territoacuterios mais bioacuteticos

A guerra como forma de vinganccedila

Todo indiacutegena estava pronto para lutar Uns mais agressivos outros

mais paciacuteficos mas todos tinham a necessidade belicosa de se defrontar com

inimigos em seus trajetos por territoacuterios que lhe pertenciam ou em incursotildees por

territoacuterios alheios

Talvez por esse motivo Noacutebrega olhasse as guerras indiacutegenas da

seguinte maneira

Fazem guerra uma tribu a outra a 10 15 e 20 leguas de

modo que estatildeo todos entre si divididos Se acontece aprisionarem

um contraacuterio na guerra conservam-o por algum tempo datildeo-lhe por

mulheres suas filhas para que o sirvam e guardem depois do que o

matam com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram

ali perto e si deles ficam filhos os comem ainda que sejam seus

sobrinhos e irmatildeos declarando aacutes vezes as proacuteprias matildees que soacute os

paes e natildeo a matildee tecircm parte nellesSi matam a um na guerra o

partem em pedaccedilos e depois de moqueados os comem com a

mesma solemnidade e tudo isto fazem com um odio cordial que tecircm

um do outro e nestas duas cousas isto eacute terem muitas mulheres e

matarem os inimigos consiste toda a sua honraNatildeo guerreiam por

avareza porque natildeo possuem de seu mais do que lhes datildeo a pesca

a caccedila e o fructo que a terra daacute a todos mas soacutemente por odio e

88

vinganccedila sendo tatildeo sujeitos a ira que si acaso se encontram em o

caminho logo vatildeo a pau aacute pedra ou dentada103

Muito se pode falar do costume de guerrear e da antropofagia como

magia propiciatoacuteria mas soacute esse assunto daria oportunidade de toda uma nova

tese

Dessa forma continuando com a proposta de mostrar como os brasis

concebiam suas vidas na visatildeo do cristatildeo europeu apresento outros pontos dos

costumes e outras comparaccedilotildees culturais

Falo agora da conceituaccedilatildeo de democircnio

A histoacuteria do Diabo confunde-se com a histoacuteria do proacuteprio

Cristianismo era necessaacuteria para a coletividade cristatilde a existecircncia e

a encarnaccedilatildeo do Mal Era preciso que fosse visto tateado tocado

para que o Bem surgisse como a graccedila suprema

O Belo e o Divino

em oposiccedilatildeo ao Horriacutevel e Demoniacuteaco104

Se pegarmos apenas pela definiccedilatildeo temos que a palavra democircnio que

obviamente natildeo existia no vocabulaacuterio de qualquer tribo indiacutegena do Brasil do

Seacuteculo XVI tem sua origem no grego daimoacutenion

e mais tarde do latim

daemonium termo originaacuterio nas crenccedilas da Antiguidade e no politeiacutesmo que

significaria o gecircnio criador fosse ele bom ou mal e que presidia o caraacuteter e o

destino de cada indiviacuteduo Surge no entanto no judaiacutesmo e por consequumlecircncia no

103 NOacuteBREGA 1988p90-91 carta ao Dr Navarro seu Mestre em Coimbra- 1549 104 NOGUEIRA 2000 P103

89

cristianismo com a definiccedilatildeo de anjo mau o qual apoacutes rebelar-se contra Iahweh

foi precipitado no inferno e busca a perdiccedilatildeo da humanidade

Pela didaacutetica da catequese trazer essa definiccedilatildeo do democircnio ou do

Diabo agraves mentes indiacutegenas se fazia necessaacuterio pela pedagogia do terror que se

impunha agraves mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeos

chegando mesmo a ser considerado no Teatro de Anchieta como um certo prazer

esteacutetico na arte de representaccedilatildeo de seus autos fazendo com que indiacutegenas tal

qual o imaginaacuterio cristatildeo acreditasse na importacircncia grandiosa de Satatilde o

Priacutencipe do Mundo na mente dos religiosos cristatildeos aquele que lutava contra a

verdade e a vida

Claro que o indiacutegena tinha noccedilatildeo do Bem e do Mal Tudo aquilo que era

contra seu prazer era o mal e a favor o bem O homem natural e espontacircneo soacute

se move por prazer ou pela dor e o indiacutegena era o homem espontacircneo no seacuteculo

XVI era o homem natural onde guerrear era prazer comer a carne de seu

inimigo era prazer atacar uma tribo para roubar uma fecircmea de outra tribo era

prazer ser belicoso e baacuterbaro na opiniatildeo dos cristatildeos era prazer portanto era o

bem pois para o homem natural Bem e Mal satildeo apenas pontos de referecircncia

Por outro lado existiam na cultura os espiacuteritos do mal isto eacute aqueles

que lhes levava o prazer a comida a caccedila a aacutegua lhes negava a chuva ou fazia

morrer aqueles a quem amavam Esses espiacuteritos eram o Mal Esses eram

Anhangaacute Anhanguumlera (Anhangaacute velho) Taguaigba o Mboy-tataacute105 Curupira106 ou

105 Mboy-cobra+tataacute- fogo = cobra de fogo tambeacutem conhecido como Baetataacute maetataacute ou boitataacute

90

Caipora107 que lhes impedia a caccedila afastando os animais que lhes dariam de

comer caso matasse animais aleacutem da conta necessaacuteria para sua sobrevivecircncia

Curupira era o Mal Curupira era o Bem O que se sabia eacute que era o

protetor da matas A floresta e todos que nela habitavam estavam sob sua

vigilacircncia constante

Por isso antes das grandes tempestades ouve-se bater

nos troncos das aacutervores Eacute o Curupira verificando se elas podem

resistir ao furacatildeo que se avizinha para em caso contraacuterio avisar os

moradores da mata do perigo 108

Anchieta fala desses democircnios em sua carta datada do fim de maio de

1560109 acreditando neles como acreditava em seus proacuteprios democircnios

Eacute cousa sabida e pela boca de todos corre que ha certos

democircnios a que os Brasis chamam corupira que acometem sos

Indios muitas vezes no mato datildeo-lhes accediloites machucam-os e

matam-os Satildeo testemunhas disto os nossos Irmatildeos que viram

algumas vezes os mortos por elesPor isso costumam os Indios

deixar em certo caminho que por aacutesperas brenhas vai ter ao interior

das terras no cume da mias alta montanha quando por caacute passam

penas de aves abanadores flechas e outras cousas semelhantes

como uma espeacutecie de oblaccedilatildeo rogando fervorosamente aos curupiras

que natildeo lhes faccedilam mal

106 de curu-corruptela de curumim + pira = corpo corpo de menino 107 Caipora do tupi-guarani caaacute mato e pora habitante 108 httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905 109 ANCHIETA- Cartas 1988p138 Carta de S Vicente - 1560

91

Anchieta fala do igpupiaacutera110

Ha tambeacutem nos rios outros fantasmas que chamam

Igpupiaacutera isto eacute que moram n agua que matam do mesmo aos Indios

Natildeo longe de noacutes ha um rio habitado por Cristatildeos e que os Indios

atravessavam outrora em pequenas canocircas que fazem de um soacute

tronco ou de corticcedila onde eram muitas vezes afogados por eles

antes que os Cristatildeos para laacute fossem

Conta ainda sobre o Macuteboy-tataacute111

Ha tambeacutem outros maximegrave nas praias que vivem a maior

parte do tempo junto ao mar e dos rios e satildeo chamados de baetataacute

que quer dizer cousa de fogo o que eacute o mesmo como se dissesse o

que eacute todo fogo Natildeo se vecirc outra cousa senatildeo um facho cintilante

correndo daqui para ali acomete rapidamente os Indios e mata-os

como os curupiras o que seja isto ainda natildeo se sabe com certeza

Haacute tambeacutem outros espectros do mesmo modo pavorosos

que natildeo soacute assaltam os Indios como lhes causam dano o que natildeo

admira quando por ecircstes e outros meios semelhantes que longo fora

enumerar quer o democircnio tornar-se formidaacutevel a ecircstes Brasis que

natildeo conhecem a Deus e exercer contra eles tatildeo cruel tirania

E assim podemos ir comparando os cristatildeos usando os padres como

intermediaacuterios do divino os indiacutegenas usando os pajeacutes como sacerdotes os

cristatildeos com medo do diabo os indiacutegenas com medo do Anhangaacute do Taguaigba

Pigtangua do Avasaly ou do Curupira o sarnento

110 Igpupiaacutera

falam Anchieta e F Cardim conforme nota 165 de ANCHIETA-Cartas 1988- 153 - tambeacutem conhecidos como y-pypiaacutera sendo y= aacutegua e pypiaacutera= de dentro isto eacute um monstro que vivia dentro das aacuteguas dos rios 111 ANCHIETA Cartas 1988 p139 Carta de S Vicente - 1560

92

Eram vaacuterios por todo o territoacuterio conhecido pelos portugueses conforme

nos fala Pedro Calmon112 Aimoreacute ou Tapuia os Tupinambaacute de todo o litoral os

Temiminoacute e os Tamoio que se denominavam velhos Tupi canoeiros e pescadores

os Goytacas dos campos proacuteximos de Cabo Frio e mais os Tucupecuxari

Kmayuraacute Yanomami Kadiweu Kaigang Krahocirc Yawalapiti e tantos e tantos

outros

Por esse motivo Jecupeacute que listou 206 tribos em nossas fronteiras

chama o Brasil de Terra dos Mil Povos

O que sabemos enfim eacute que o indiacutegena vivia e concebia suas vidas

atraveacutes de ritos de passagem de ritos de casamento de ritos de nascimento e

morte de magia propiciatoacuteria de batalhas culturais com outras tribos onde ao

guerrearem trocavam culturas trocavam conhecimentos garantiam seus

patrimocircnios geneacuteticos e realizavam suas mostras de honra e bravura garantindo-

lhes a sobrevivecircncia na terra adacircmica mas indocircmita em que viviam

Viviam como filhos do sol ou da lua apoiados no amor ou na ira da

Grande Matildee usando como siacutembolos em suas vidas a coruja a serpente a onccedila

ou o gaviatildeo dividindo-se em grupos e sub-grupos que geravam dialetos e

costumes de dormir de comer de amar de sofrer de rir de guerrear enfim de

viver

112 CALMON 1963 vol 2 p324-330

93

CAPIacuteTULO 5 - COMO OS INDIacuteGENAS TERIAM RECEBIDO A PREGACcedilAtildeO CRISTAtilde E AS

DIFICULDADES ENCONTRADAS NA MISSAtildeO DE CONVERTER

Entendo que seja necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees sobre o

espaccedilo poreacutem no sentido de acircmbito que ocupavam simultaneamente cristatildeos

principalmente os jesuiacutetas e os indiacutegenas brasileiros Era esse espaccedilo natildeo de

terra mas situacional em que ocorreram os confrontos entre grupos de origens

distintas obrigados a transformar a si proacuteprios muitas vezes a uacutenica possibilidade

de manterem suas vidas

Essa transformaccedilatildeo teve por alicerce uma espeacutecie de amaacutelgama

multifacetada de simbolismos o que significa dizer que nestes espaccedilos dedicados

a salvaccedilatildeo de almas forjaram-se respostas muacuteltiplas aos desafios trazidos pelo

encontro entre universos simboacutelicos tatildeo divergentes De um lado aquelas

orquestradas pelos disciacutepulos de Santo Inaacutecio atraveacutes da doutrina e da imposiccedilatildeo

do evangelho de outro as respostas fruto da apropriaccedilatildeo diversa e inovadora

produzida pela multidatildeo de etnias que compunham as muitas aldeias indiacutegenas

que deveriam ser totalmente subjugadas no bom sentido cristatildeo pela Santa

Madre Igreja

Quem nos definiu esse espaccedilo e tudo que nele ocorreu foram os

jesuiacutetas que atraveacutes de suas cartas suas crocircnicas catecismos e autos teatrais

94

relatavam o que acontecia com relaccedilatildeo a esses confrontos de culturas tatildeo

distintas

Muitos jesuiacutetas foram considerados cronistas perspicazes da realidade

que experimentavam Permitindo o desenho de um panorama complexo e intenso

do universo com o qual conviveram O encontro com o gentio e o escrutiacutenio de sua

natureza por parte desses soldados de cristo no firme propoacutesito de conquistar

almas ficou registrado nas diversas correspondecircncias que produziram no

cotidiano de suas missotildees Algumas circularam para aleacutem dos muros da ordem

como cartas de Noacutebrega de Navarro e de tantos outros Os catecismos e os autos

de Anchieta os sermotildees e os Regulamentos das Missotildees de Vieira

A vasta documentaccedilatildeo produzida pela Companhia de Jesus como fruto

do encontro entre seus missionaacuterios e os brasis corresponde a um conjunto

enorme de informaccedilotildees lapidadas pelo estilo conveniente para serem lidas

para servirem de registro da memoacuteria e como mateacuteria para edificaccedilatildeo dos irmatildeos

de sua ordem espalhados pelo mundo O sistema de comunicaccedilatildeo implantado

pela Ordem pode ser considerado sem precedentes na histoacuteria ocidental

Os Portugueses alcanccedilaram o litoral sul-americano pela

primeira vez em abril de 1500 poreacutem foi apenas no uacuteltimo quartel do

seacuteculo XVI que comeccedilaram a produzir relatos sistemaacuteticos com o

intuito de descrever e classificar as populaccedilotildees indiacutegenas

Excetuando-se a sumaacuteria Histoacuteria da proviacutencia de Santa

Cruz de Pero Magalhatildees Gacircndavo impressa em Lisboa em 1576 e

algumas cartas jesuiacuteticas amplamente disseminadas na Europa em

diversas liacutenguas os textos portugueses mais significativos

95

permaneceram ineacuteditos por seacuteculos bem como os Tratados da Terra

e Gente do Brasil uma compilaccedilatildeo da obra de Cardim proporcionam

claros indiacutecios das percepccedilotildees e imagens acumuladas ao longo do

seacuteculo XVI pelos portugueses no que diz respeito a um universo

indiacutegena que se apresentava tatildeo vasto e variado quanto

incompreensiacutevel 113

Ao mesmo tempo tratar essa documentaccedilatildeo como fonte enseja

algumas questotildees O que revelam sobre o cotidiano das missotildees jesuiacuteticas que

mereceriam destaque Qual a possibilidade de trataacute-los como fonte para a histoacuteria

das populaccedilotildees indiacutegenas e seu processo de conversatildeo Seriam elas confiaacuteveis a

ponto de elaborarmos este trabalho sobre como os indiacutegenas teriam recebido a

pregaccedilatildeo cristatilde

A importacircncia dos relatos jesuiacuteticos como fontes para a histoacuteria eacute

inegaacutevel Jaacute se produziu muito e haacute de se produzir muito mais com base nessas

cartas e relatos os mais variados No entanto esses verdadeiros veiacuteculos de

comunicaccedilatildeo trazem uma complexidade de regras e de formas retoacutericas que natildeo

devem ser menosprezadas Se o forem corre-se o perigo de retirar deles sua

historicidade e a possibilidade de sua inteligibilidade Isso natildeo foi esquecido

durante a pesquisa deste trabalho

Das muitas caracteriacutesticas especiacuteficas da empresa jesuiacutetica uma eacute

essencial a sua unidade Portanto natildeo haacute como desvincular a sua instituiccedilatildeo

epistolar de seus fins poliacuteticos e miacutesticos Tatildeo pouco eacute possiacutevel separar tais

113 MONTEIRO 2001p12

96

relatos dos interesses pragmaacuteticos que impregnavam seus ideais de missatildeo

Assim sendo os relatos jesuiacuteticos se conformaram na fronteira entre por um lado

a necessidade de se submeterem agraves regras retoacutericas tradicionais e de

obedecerem a outras que permitissem tornar seus textos puacuteblicos por outro lado

servirem de suporte para a troca de experiecircncias missionaacuterias essenciais para o

crescimento e manutenccedilatildeo de sua atividade evangelizadora

Mas era necessaacuterio ainda que se pudesse entender o indiacutegena no

sentido daquilo que diziam e como diziam seus significados e a comunicaccedilatildeo

entre brancos europeus e agravequeles a que a missatildeo impunha conversatildeo Afinal

como impor um mito sem uma linguagem em que o mito seja entendido

A linguagem e o mito satildeo espeacutecies proacuteximas Nas etapas

primeiras da cultura humana sua relaccedilatildeo eacute tatildeo estreita e sua

cooperaccedilatildeo tatildeo patente que resulta quase impossiacutevel separar uma da

outra 114

Conforme Monteiro115 em seu trabalho desde o momento que os

inacianos chegaram em 1549 eles se defrontaram com um dos maiores

problemas da conversatildeo o de traduzir a simbologia o conteuacutedo e os sentidos da

doutrina cristatilde para uma liacutengua que atingisse o maior nuacutemero possiacutevel de

catecuacutemenos natildeo soacute pela comunicaccedilatildeo mas pelo mito pois na liacutengua

114 CASSIRER 1945 p166 115 MONTEIRO 2001

97

portuguesa natildeo haveria como fazer com que os conceitos do mito cristatildeo

atingissem a alma daqueles a quem queriam converter

Apesar da enorme diversidade linguiacutestica que se descobria

pouco a pouco agrave medida que a expansatildeo portuguesa avanccedilava para

aleacutem das estreitas faixas litoracircneas estabeleceu-se desde cedo uma

poliacutetica linguiacutestica que tornava a liacutengua mais usada na costa do

Brasil o seu principal instrumento Baseada na verdade num

conjunto de dialetos da famiacutelia linguiacutestica tupi-guarani a primeira

liacutengua geral foi perdendo as suas inflexotildees locais e regionais em

funccedilatildeo da sua adoccedilatildeo sistematizaccedilatildeo e expansatildeo enquanto idioma

colonial 116

O primeiro inteacuterprete oficial foi o colono por conhecer tanto o discurso

cristatildeo como tambeacutem pela sua destreza na liacutengua tupi

Poreacutem natildeo foi muito duradoura essa alianccedila entre colonos e

missionaacuterios pelo fato de que esses colonos entraram em conflito com os jesuiacutetas

pelo controle da matildeo de obra indiacutegena que se tentava escravizar A capacidade e

a competecircncia dos colonos para servirem de interpretes na produccedilatildeo do discurso

religioso passou a ser um grande obstaacuteculo para a missatildeo de conversatildeo

deturpando e usando de persuasatildeo o trabalho de liacutengua para fins e propoacutesitos

proacuteprios Assim com esse conflito de interesses os jesuiacutetas tiveram que tentar

uma nova proposta a de encarregar suas proacuteprias instituiccedilotildees de formar seus

proacuteprios liacutenguas que seriam inclusive capacitados em traduzir aos indiacutegenas os

discursos religiosos e tentar interpretar suas respostas

116 MONTEIRO 2001 p36

98

Inicia-se entatildeo uma formaccedilatildeo de interpretes entre os indiacutegenas que

acompanhavam os missionaacuterios onde a escola de escrever e contar dirigida aos

filhos dos principais pudesse ter a funccedilatildeo de formar interpretes indiacutegenas para os

missionaacuterios Aprendiam entatildeo nas escolas o portuguecircs e o discurso religioso

No entanto a escola tambeacutem natildeo se mostrou como um meio seguro

com o qual se pudesse garantir o controle desse discurso pois dentre esses

indiacutegenas formados muitos se transformaram em verdadeiros opositores dos

discursos religiosos disseminando essa apologia entre os indiacutegenas de outras

regiotildees

Dessa forma a experiecircncia mostrou que tanto os indiacutegenas como os

colonos natildeo eram os inteacuterpretes adequados agraves condiccedilotildees de produccedilatildeo e

circulaccedilatildeo do discurso apologeacutetico religioso da missatildeo jesuiacutetica

Foi entatildeo que a Companhia de Jesus passou a recomendar que a

catequese e a conversatildeo fosse feita sem auxiacutelio de intermediaacuterios o que obrigou

aos jesuiacutetas a iniciar uma proposta de formar os liacutenguas no proacuteprio interior da

hierarquia da Igreja exigindo que todos tivessem que procurar formas de adquirir

o conhecimento da liacutengua indiacutegena Os coleacutegios de toda a colocircnia funcionavam

assim como centro de formaccedilatildeo de interpretes dando-se muitas vezes maior

ecircnfase ao conhecimento da liacutengua brasiacutelica do que agraves questotildees teologicas e

outras disciplinas da formaccedilatildeo eclesiaacutestica substituindo em muito o grego liacutengua

importante par a formaccedilatildeo dos cleacuterigos da eacutepoca preocupando-se muito mais em

transformar os noviccedilos em liacutenguas do que em teoacutelogos

99

Nesse caminho lentamente a Igreja foi adquirindo sua independecircncia

em relaccedilatildeo agraves necessidades de inteacuterpretes onde passo a passo foi elaborando

gramaacuteticas e dicionaacuterios em Tupi Tanto essas gramaacuteticas como esses dicionaacuterios

representavam os meacutetodos formais do aprendizado tupi adequando o jesuiacuteta agrave

aquisiccedilatildeo de uma segunda liacutengua

Desta forma a liacutengua geral para os jesuiacutetas foi o resultado de um longo

trabalho em que por pesquisas e interpretes de vaacuterias origens culminando com a

publicaccedilatildeo da Arte de Grammatica de Joseacute de Anchieta em 1595 e do Catecismo

na Liacutengua Brasiacutelica de Antocircnio de Arauacutejo em 1618 No iniacutecio das atividades no

Brasil os jesuiacutetas Pero Correia Juan de Azpilcueta Navarro e Joseacute de Anchieta

deram os primeiros passos decisivos em direccedilatildeo agrave sistematizaccedilatildeo dessa liacutengua

Monteiro117 nos informa que escrevendo de Satildeo Vicente em 1553 o

irmatildeo Pero Correia pediu ao Provincial Simatildeo Rodrigues o envio de livros como

subsiacutedio a seus trabalhos em tupi citando especificamente algumas obras do

escritor castelhano Constantino Ponce de la Fuente de que pudesse tirar

grandes exemplos com muita doutrina para estes gentios os quais espero antes

de morrer ver todos cristatildeos o que em muito ajudou os padres a verterem

sermotildees do Velho e Novo Testamento mandamentos pecados mortais e obras

de misericoacuterdia

No mesmo ano Azpilcueta Navarro informou aos padres e irmatildeos do

Coleacutegio de Coimbra que havia enviado todas as oraccedilotildees na liacutengua do Brasil com

117 MONTEIRO 2001

100

os mandamentos e pecados mortais etc com uma confissatildeo geral princiacutepio do

mundo encarnaccedilatildeo e do juiacutezo e fim do mundo Natildeo conseguiu no entanto criar

uma arte isto eacute manual de gramaacutetica Anchieta por seu turno achava

precipitado elaborar uma gramaacutetica tupi nesses anos iniciais Quanto agrave liacutengua

natildeo a ponho em arte porque natildeo haacute quem aproveite somente aproveito-me eu

dela e aproveitar-se-atildeo os que de laacute vierem que souberem gramaacutetica Contudo

no ano seguinte o irmatildeo Antocircnio Blaacutezquez relatou que os meninos e os irmatildeos

da casa andam todos com grande fervor de saber a liacutengua [e] para aprendecirc-la

tecircm uma Arte que trouxe o Padre Provincial

Tive grande consolaccedilatildeo em confessar muitos iacutendios e

iacutendias por inteacuterprete satildeo candidiacutessimos e vivem com muito menos

pecados que os Portugueses Dava-lhes sua penitecircncia leve porque

natildeo satildeo capazes de mais e depois da absolviccedilatildeo lhes dizia na

liacutengua xe rair tupatilde toccedilocirc de hirunamo sc filho Deus vaacute contigo 118

Mas voltemos agraves correspondecircncias Mostram essas correspondecircncias

que as aldeias indiacutegenas recebiam constantemente a visita dos padres jesuiacutetas

que para ganharem a confianccedila dos iacutendios a serem convertidos agrave feacute cristatilde

apropriavam-se muitas vezes da funccedilatildeo do pajeacute Tornavam-se portanto

portadores dos remeacutedios contra as mazelas natildeo somente das almas mas tambeacutem

dos corpos

Os jesuiacutetas sabiam da necessidade dessas associaccedilotildees como padre x

pajeacute simbologia cristatilde x cosmogonia indiacutegena mitos dessa cosmogonia e a visatildeo

118 CARDIM 1997 [1583-90] p234

101

do Orbis Christianus desde o iniacutecio de seus trabalhos missionaacuterios desde a

chegada dos primeiros jesuiacutetas e viam nos pajeacutes seus mais fortes adversaacuterios

uma vez que teriam necessariamente de tomar o seu lugar

Os que fazem estas feiticcedilarias que disse satildeo mui

apreciados dos Indios persuadem-lhes que em seu poder estaacute a vida

ou a morte natildeo ousam com tudo isto aparecer deante de noacutes outros

porque descobrimos suas mentiras e maldades 119

ou

Si noacutes abraccedilarmos com alguns costumes deste Gentio os

quaes natildeo satildeo contra nossa feacute catoacutelica nem satildeo ritos dedicados a

iacutedolos como eacute cantar cantigas de Nosso Senhor em sua liacutengua pelo

tom e tanger seus instrumentos de muacutesica que elles usam em suas

festas quando matam contraacuterios e quando andam becircbados e isto

para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais () e assim

o preacutegar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e

batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir

alguma cousa e dizecirc-la com muita efficacia e assim tosquiarem-se os

meninos da terra que em casa temos a seu modo Porque similhanccedila

eacute causa de amor E outros costumes similhantes a estes 120

Muitas vezes usavam a roupagem simboacutelica de seu adversaacuterio de

forma consciente para adentrarem no mundo miacutestico dos gentios outras vezes agrave

sua revelia eram confundidos e enquadrados como payeacute sem sequer disso se

darem conta

119 ANCHIETA - Cartas -1988 p83 Carta de Piratininga - 1555 120 NOacuteBREGA 1988 p142-Carta de Manuel da Noacutebrega a Simatildeo Rodrigues 17 de setembro de 1552

102

Mas era preciso controlar corpo e mente e na mente estavam seus

siacutembolos seus mitos e suas almas Dominar as almas dos gentios implicava ter o

controle sobre seus corpos e disciplinar os corpos e as accedilotildees era tarefa lenta e

metoacutedica O ritmo o tempo e a liberdade precisavam ser regulados O trabalho era

intenso e incansaacutevel

Nas cartas de Anchieta e de Noacutebrega muitas tantas vezes surgem

relatos de visitas repetidamente realizadas a uma tribo ou outra onde se mostrava

a intenccedilatildeo clara da imposiccedilatildeo dessa disciplina ou da repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos

em vaacuterios momentos de uma mesmo dia a fim de que se fixassem os novos

ensinamentos e conceitos

Natildeo bastasse a doutrinaccedilatildeo diaacuteria aos domingos e dias santos era

necessaacuterio dizer missa no momento em que pudessem estar todos juntos Para

ampliar o controle sobre a presenccedila deveria haver lugar certo nas Igrejas para as

casas e famiacutelias desses iacutendios

Caso algum faltasse agrave missa deveria o seu missionaacuterio tomar nota e

admoestar em particular o ausente Reincidindo no erro seria admoestado em

puacuteblico e por fim castigado

A atividade catequeacutetica dominical e festiva parecia ser a mais

importante uma vez que era o momento propiacutecio para a reuniatildeo de toda a

comunidade Portanto os cuidados para com ela tambeacutem eram maiores Deveria

se dizer missa e antes da mesma aleacutem da doutrina de ordem os padres

deveriam abordar dois pontos quais sejam os misteacuterios da feacute ou do evangelho e

outro moral que abordasse um viacutecio de maior incidecircncia no momento

103

A persistecircncia dos novos catecuacutemenos em manter haacutebitos tidos como

perniciosos ou como obra do inimigo por seus mestres jesuiacutetas fez com que

estes uacuteltimos flexibilizassem algumas regras de conduta como ateacute mesmo utilizar

iacutendios jaacute evangelizados nas tarefas de conversatildeo nem que fosse ao menos de

exercer atividades no interior dos templos tornando-se na maioria das vezes

sacristatildeos e coroinhas A inserccedilatildeo desses iacutendios nestas atividades apresenta

nuanccedilas riquiacutessimas do modo com que construiacuteram para si o sentido da religiatildeo e

dos rituais catoacutelicos principalmente se levarmos em conta que muitos deles

considerados hereges e que foram levados ao tribunal do Santo Ofiacutecio

O processo de conversatildeo dos iacutendios cristatildeos comeccedilava com o ritual do

batismo o que para os missionaacuterios significava uma forma de permitir a ida das

almas para o mundo de Deus

No entanto para a populaccedilatildeo indiacutegena o batismo ganhava sentido

mais complexo inclusive o de permissatildeo para adentrarem no mundo dos homens

brancos e cristatildeos mundo esse cheio de novas simbologias de curas para muitos

de seus males fiacutesicos e ateacute de um certo conforto diferenciado daquele que

conheciam ao viverem na proximidade dos jesuiacutetas

Poreacutem para o jesuiacuteta a verdadeira obra da missatildeo soacute se concretizava

com a pescaria das almas e com o seu controle absoluto ateacute a morte fiacutesica Salvar

os outros significava salvar a si mesmo Assim como morriam muitos inocentes

dever-se-ia batizar as crianccedilas prioritariamente ainda que moribundas para que

pudessem lograr ecircxito na batalha contra satanaacutes

104

natildeo podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor

para com eles principalmente porque vecircm que empregamos toda a

diligecircncia no tratamento de suas enfermidades sem nenhuma

esperanccedila de lucro E fazemos isto na intenccedilatildeo de preparar para o

recebimento do batismo caso haja necessidade os seus espiritos em

tais circustancias mais redutiveis e mais brandos por igual motivo eacute

que desejamos assistir agraves parturientes a fim de batizar matildee e filho se

o caso exigir Assim acontece atender-se agrave salvaccedilatildeo do corpo e da

alma 121

Claro poreacutem que batizar jaacute que parecia ser algo que os indiacutegenas

apreciavam ou desejavam para poderem adentrar ao mundo branco era um dos

pontos que os jesuiacutetas usavam como forma de meacuterito isto eacute seja cristatildeo em suas

atitudes e disciplinas e aiacute sim receberaacute o batismo Saiba o catecismo e assim seraacute

batizado Vejamos

Antes do dia do Nascimento do Senhor procuraacutemos que

se confessassem o qual fizeram muitas mulheres e alguns homens

os quais diligentemente examinaacutemos nas cousas da feacute e o que

principalmente pretendemos eacute que saibam o que toca os artigos da feacute

scilicet ao conhecimento da Santiacutessima Trindade e aos misteacuterios da

vida de Cristo que a Igreja celebra e que saibamquando lhes forem

perguntado dar conta destas cousas o qual temos em mais que

saber as oraccedilotildees de memoacuteria ainda que nisto se potildee muito cuidado e

diligecircncia porque duas vezes cada dia se lhes ensina na igreja a

nenhum batizamos senatildeo assim instruidos e ainda depois da

confissatildeo lhes pedimos conta dessas cousas a qual muitos maacutexime

121 ANCHIETA Cartas - 1988 P98 Carta de Piratininga - 1556

105

da mulheres datildeo bem que natildeo ha duacutevida senatildeo que levam

vantagem a muitos nascidos de pais Cristatildeos de maneira que muitos

satildeo assas aptos para receber o Santiacutessimo Sacramento da

Eucaristia

Antes ou mesmo depois do advento da liacutengua geral de Anchieta na

impossibilidade de compreensatildeo das liacutenguas por parte dos missionaacuterios e na falta

de interpretes que se batizasse por aceno e com a ajuda das imagens sacras

pinturas cruzes e outros objetos cristatildeos Vejamos

()O Padre que os tiver agrave sua conta procuraraacute com todo o

cuidado fazer um catecismo breve que contenha os pontos

precisamente necessaacuterios para a Salvaccedilatildeo e deste usaratildeo nos casos

de necessidade e por ele os iratildeo ensinando e instruindo mas em

caso que totalmente natildeo haja inteacuterprete nem outro modo por donde

fazer o dito catecismo seraacute meio muito acomodado o misturar os tais

Iacutendios com os da Liacutengua Geral ou de outra sabida para que ao menos

os seus meninos aprendam com a comunicaccedilatildeo e no entretanto se

lhes mostraratildeo as Imagens e Cruzes e os faratildeo assistir aos ofiacutecios

divinos e administraccedilatildeo dos Sacramentos e as mais accedilotildees dos

Cristatildeos para que possam em caso de necessidade inculcar-lhes o

batismo por acenos pois natildeo haacute meio de receberem a feacute pelos

ouvidos de modo que ao menos sub condicione nenhum morra sem

batismo 122

A confissatildeo tambeacutem natildeo poderia ficar de fora das preocupaccedilotildees dos

missionaacuterios Abrir os recocircnditos mais profundos da alma ao missionaacuterio era de

122 Vieira Regulamento das Missotildees p 199-200

106

vital importacircncia na tarefa de perscrutar a sinceridade da sua ligaccedilatildeo com a

religiatildeo Para tanto essas diretrizes indicavam a necessidade de todo ano

produzir listas daqueles capazes de confissatildeo Nenhum deveria ficar sem se

confessar ainda que fossem muitos os iacutendios e poucos os missionaacuterios

A confissatildeo eacute dos sacramentos aquele em que o caraacuteter

de julgamento eacute mais niacutetido Haacute um diaacutelogo - ou melhor uma

sucessatildeo de monoacutelogos em que o penitente diz seus eventuais

pecados responde a indagaccedilotildees sobre os pecados e sobre a

existecircncia de outras ofensas e o fim da confissatildeo eacute marcado por uma

penalidade 123

Assim batizar confessar casar e ajudar a bem morrer eram tarefas

baacutesicas ao bom missionaacuterio Nos laccedilos sagrados do matrimocircnio por exemplo os

missionaacuterios enfatizam a necessidade de manter registros dos nomes

sobrenomes da data do paacuteroco e das testemunhas do casamento assim como

da aldeia em que foi realizado Nenhum padre deveria realizar matrimocircnio entre

iacutendios de paroacutequias diferentes sem proceder a uma coleta de informaccedilotildees em

ambas as paroacutequias para assim terem certeza de que natildeo haveria um sagrado

matrimocircnio com pessoas que jaacute haviam recebido esse sacramento de outro padre

em outra eacutepoca em outra situaccedilatildeo

Quando da necessidade de ajudar o bem morrer era pelo firme

propoacutesito de guardar as almas desses novos cristatildeos e que tivessem morte

assistida o que garantia um ganho definitivo de seu espiacuterito pois era na morte

123 NEVES 1978 p75

107

que os jesuiacutetas colheriam o fruto do trabalho missionaacuterio pois como pastores de

almas teriam que dar conta daquelas que foram apresentadas aos ceacuteus e

encaminhaacute-las em direccedilatildeo a Deus

Mas controlar as almas natildeo bastava o diabo usava dos corpos e dos

gestos pra sua tarefa e por isso junto ao controle das almas atraveacutes da

evangelizaccedilatildeo dos gentios era necessaacuterio o controle dos gestos e dos corpos

tambeacutem fazia parte da obrigaccedilatildeo dos missionaacuterios Na ocasiatildeo das mortes o

controle sobre os rituais utilizados pelas naccedilotildees no sepultamento de seus mortos

era objeto tambeacutem da preocupaccedilatildeo do missionaacuterio O modo de amortalhar ou de

usarem algumas coisas supersticiosas era proibido pelos padres assim como

tambeacutem eram os excessos com que costumam chorar o defunto Pondera Vieira

que ainda que natildeo fossem demonstraccedilotildees de uso gentiacutelico mas sim de dor

natural deveriam se acomodar a poliacutetica cristatilde

Enfim a tocircnica comum compartilhada pelos jesuiacutetas estava relacionada

agrave necessidade de salvaccedilatildeo das almas Desde o seu princiacutepio a preocupaccedilatildeo com

a sua salvaccedilatildeo foi parte constitutiva da missatildeo da Companhia de Jesus Os iacutendios

considerados infieacuteis deveriam ser salvos de sua gentilidade da barbaacuterie e dos

erros em que viviam Essa gentilidade fazia com que esses iacutendios vivessem no

erro caberia ao missionaacuterio portanto conduzir os iacutendios para a verdade atraveacutes

da conversatildeo

108

Nos mostra Monteiro124 que a salvaccedilatildeo das almas encontrava outra

problemaacutetica a ser enfrentada a morte do gentio

A morte do gentil era constante desde o contato com os jesuiacutetas com

os aldeamentos com os brancos europeus mesticcedilos ou africanos e isso era com

certeza uma grande problemaacutetica para a conversatildeo pois com os primeiros

contatos comeccedilam ocorrer os principais episoacutedios epidecircmicos que destruiacuteram

muito das populaccedilotildees indiacutegenas do litoral

Eacute correto dizer no entanto que seja como for no litoral brasileiro do

seacuteculo XVI o contato direto entre as etnias indiacutegenas e os europeus e africanos jaacute

havia atravessado ao menos cinco deacutecadas antes da eclosatildeo das primeiras

pandemias Longe de constituir um variaacutevel independente no despovoamento do

litoral a mortalidade provocada por doenccedilas contagiosas atingiu seus pontos mais

altos quando conjugada com outras mudanccedilas importantes nas relaccedilotildees entre

colonizadores e iacutendios Afinal de contas foi na esteira das ofensivas beacutelicas

promovidas pelo governador Mem de Saacute e do processo concomitante de

deslocamento das populaccedilotildees indiacutegenas para as aldeias missionaacuterias que

ocorreram as primeiras grandes epidemias com destaque para o alastramento da

variacuteola pelo litoral de Pernambuco a Satildeo Vicente

As doenccedilas letais semearam a desordem entre a populaccedilatildeo nativa

sobretudo naquela subordinada aos missionaacuterios e aos colonos Anchieta

rememorando este grande surto epidecircmico escreveu em 1584

124 MONTEIRO 2001 p60

109

No mesmo ano de 1562 por justos juiacutezos de Deus

sobreveio uma grande doenccedila aos Iacutendios e escravos dos

Portugueses e com isto grande fome em que morreu muita gente e

dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos

Portugueses e se fazer escravos vendendo-se por um prato de

farinha e outros diziam que lhes pusessem ferretes que queriam ser

escravos foi tatildeo grande a morte que deu neste gentio que se dizia

que entre escravos e Iacutendios forros morreriam 30000 no espaccedilo de 2

ou 3 meses 125

Monteiro nos mostra ainda que infelizmente natildeo sabemos muito de

como os indiacutegenas responderam aos surtos epidecircmicos mas as cartas dos

jesuiacutetas no iniacutecio da colonizaccedilatildeo dizem algo sobre a percepccedilatildeo dos iacutendios com

relaccedilatildeo agrave origem das doenccedilas claramente associada agrave presenccedila dos padres

Pouco depois de chegar no Brasil o padre Manuel da Noacutebrega se espantou natildeo

apenas com a frequumlecircncia das doenccedilas entre a populaccedilatildeo batizada pelos jesuiacutetas

mas tambeacutem e sobretudo com a acusaccedilatildeo veiculada pelos feiticeiros de que os

missionaacuterios infligiam a doenccedila com a aacutegua do batismo e causavam a morte com

a doutrina126

A liacutengua Geral mostrava que as epidemias estavam presentes no

vocabulaacuterio indiacutegena ao definir a varicela como catapora o fogo que salta

De toda forma com epidemias ou natildeo com paciecircncia ou natildeo com

liacutengua geral e inteacuterpretes da comunicaccedilatildeo para o jesuiacuteta aqueles baacuterbaros natildeo

125 ANCHIETA Cartas- 1988 p364 Informaccedilotildees dos primeiros aldeamentos da Bahia 126 MONTEIRO 2001 p62

110

tinham afeiccedilatildeo pelas coisas de Deus viviam como brutos apenas para comer

beber e danccedilar Para os indiacutegenas de sua parte os padres natildeo entendiam seus

valores e sempre colocavam seus costumes e tradiccedilotildees como algo pertencente ao

diabo

O que se pode no entanto inferir eacute que houve o fato do processo de

encontro do embate de mitos entre dois universos simboacutelicos e sociais

completamente estranhos um ao outro

De um lado uma profecia que um certo pajeacute fazia com terror que os

iacutendios iriam virar brancos revelava mesmo aos pedaccedilos um pouco do processo

de leitura que essas populaccedilotildees nativas faziam desse encontro De outro lado o

cansaccedilo de Noacutebrega antes de sua morte revelavam um pouco do pessimismo do

jesuiacuteta quanto ao processo de conversatildeo e portanto da leitura que era possiacutevel

para ele missionaacuterio fazer tambeacutem daquele universo simboacutelico

Por um lado os pajeacutes acreditavam na transformaccedilatildeo de brancos em

iacutendios e de iacutendios em brancos por outro para o jesuiacuteta ver o iacutendio revestido

numa vestimenta simboacutelica a vestimenta da conversatildeo o cristatildeo tirado das

trevas De certa forma compactuavam pajeacute e jesuiacuteta com a mesma crenccedila ou

melhor com parte dela os iacutendios virariam brancos mas isso natildeo foi possiacutevel

Vieira em seu sermatildeo do Espiacuterito Santo dizia Natildeo ha gentios no

mundo que menos repugnem agrave doutrina da feacute e mais facilmente a aceitem e

recebam que os Brazis e natildeo porque os Brazis natildeo creiam com muita facilidade

mas porque essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crecircr em certo

modo seja como natildeo crer os Brazis ainda depois de crecircr satildeo increacutedulos em

111

outros gentios a incredulidade eacute increacutedulidade e a feacute eacute feacute nos Brasis a mesma feacute

ou eacute ou parece incredulidade 127

Vieira mostrava ainda em seus sermotildees que a resistecircncia era mais do

que resistecircncia pois outras naccedilotildees eram duras mas mais faacutecil de vencer que os

indiacutegenas do Brasil

haacute umas naccedilotildees naturalmente duras tenazes e

constantes as quaes difficultosamente recebem a feacute e deixam os

erros de seus antepassados resistem com as armas duvidam com o

entendimento repugnam com a vontade cerram-se teimam

argumentam replicam datildeo grande trabalho ateacute se renderem mas

uma vez rendidos uma vez que receberam a feacute ficam n ella firmes e

constante como estatuas de maacutermore natildeo eacute necessario trabalhar

mais com elles128

Jaacute com indiacutegenas do Brasil a tarefa era muito mais dura pois se o

pregador deixasse de estar presente por algum tempo que fosse todo o trabalho

de pregaccedilatildeo estava perdido e teria que ser reiniciado como se nunca tivesse

ouvido a palavra de algum pregador

Haacute outras naccedilotildees pelo contraacuterio ( e estas satildeo as do Brazil)

que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e

facilidade sem argumentar sem replicar sem duvidar sem resistir

mas satildeo estaacutetuas de murta que em levantando a matildeo e tesoura o

jardineiro logo perdem a nova figura e tornam agrave bruteza antiga e

natural e a ser matto como dantes eram Eacute necessario que assista

127 VIEIRA 1951 Sermatildeo do Espiacuterito Santo p410 128 idemp 413

112

sempre a estas estatuas o mestre d ellas uma vez que lhe corte o que

vicejam os olhos para que creiam o que natildeo vecircem outra vez que lhe

cerceie o que vicejam as orelhas para que natildeo decircem ouvidos agraves

fabulas do seus antepassados129

Era necessaacuterio insistir nos catecismo nas pregaccedilotildees na redundacircncia

de informaccedilotildees e conceitos mas mesmo assim os simbolismos continuavam

amalgamados e necessitando de mais imposiccedilatildeo de paciecircncia Veja Anchieta

Dando-lhe pois a primeira liccedilatildeo de ser um uacutenico Deus

todo poderoso que criou todas as coisas etc logo se lhe imprimiu na

memoacuteria dizendo que ele rogava muitas vezes que criasse os

mantimentos para o sustento de todos mas que pensava que os

trovotildees eram este Deus embora agora que sabia existir outro Deus

verdadeiro sobre todas as coisas que rogaria a ele chamando-lhe

Deus Padre e Deus Filho por que dos nomes da Santa Trindade

ecircstes dois sogravemente pocircde tomar porque se lhe podem dizer em sua

liacutengua mas o Espiacuterito Santo para este nunca achamos um vocabulo

proacuteprio nem circunloquio bastante e apesar de que natildeo o sabia

nomear poreacutem sabia crecircr 130

Outro ponto importante a ser citado como forma de conversatildeo era a

utilizaccedilatildeo do imaginaacuterio e do medo para a doutrinaccedilatildeo dos gentios e para

evangelizar aquelas almas

129 idem p 413 130 ANCHIETA- Cartas 1988 p200 Carta de Joseacute de Anchieta a Diego Laynes 16 de abril de 1563

113

A contrapartida da utilizaccedilatildeo consciente do imaginaacuterio indiacutegena para

fins doutrinais era a construccedilatildeo por parte desses gentios da imagem dos jesuiacutetas

que ganhava significados muito diferentes daqueles com que por ventura queriam

ser compreendidos

A perspicaacutecia desses jesuiacutetas natildeo foi suficiente para perceberem que

ao fazerem parte desse imaginaacuterio perdiam o controle e o poder sobre seus

catecuacutemenos pois passavam a pertencer a um mundo que natildeo era o seu

Portanto o medo que foi incutido nos gentios tambeacutem passou a ser compartilhado

pelos jesuiacutetas Na medida em que embora respeitados e temidos por muitos

indiacutegenas passavam a ser odiados com a mesma facilidade

A fronteira entre o temor o respeito e o oacutedio era demasiado tecircnue

Cabia ao jesuiacuteta se para isso talento tivesse traduzir esses limites O erro poderia

significar o fim da missatildeo ou mesmo a morte na ponta de uma flecha

O medo que sentiam os brasis de seus Pay-u-assuacute (como eram

denominados os jesuiacutetas) era compartilhado pelos padres Se os rituais catoacutelicos

estavam sendo resignificados em seus siacutembolos pelos indiacutegenas que os adequava

a sua maneira de perceber o universo da mesma forma os rituais gentiacutelicos mais

puros eram compreendidos pelos jesuiacutetas como sendo ritos demoniacuteacos

orquestrados pelo priacutencipe das trevas na batalha pela conquista das almas Claro

os jesuiacutetas tambeacutem carregavam por mais cultos que fossem seus mitos e suas

crenccedilas em Deus e portanto acreditavam no democircnio da mesma forma que os

indiacutegenas temiam a Deus ou a seus deuses

114

Mesmo assim a relaccedilatildeo do indiacutegena com o jesuiacuteta transformou muitos

desses iacutendios em cristatildeos e esses cristatildeos criados muitas vezes como produto

das missotildees dos jesuiacutetas tornaram-se peccedilas essenciais para a manutenccedilatildeo do

controle sobre a populaccedilatildeo indiacutegena para servirem de mediadores entre os

brancos colonizadores e os indiacutegenas das diversas aldeias que os jesuiacutetas tinham

sob seu comando para ajudarem na traduccedilatildeo dos catecismos e dos sermotildees para

a liacutengua geral para ajudarem na evangelizaccedilatildeo e nas tarefas da igreja Poreacutem a

doutrina por sua vez natildeo evoluiria sem o apoio desses personagens

Esses obscuros personagens quase nos bastidores desse teatro da

conversatildeo realizam de certa forma parte da profecia do pajeacute apavorado segundo

a qual os iacutendios iriam virar brancos e os brancos iriam virar iacutendios

Mas afinal qual o significado em tornar-se branco para esses iacutendios

A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no valor que

uma profusatildeo de objetos pontes entre mundos pudesse representar para esses

cristatildeos Cruzes medalhas bastotildees ferramentas vestidos e espadas tornaram-se

veiacuteculos de comunicaccedilatildeo entre homens de mundos distintos

Assim como o processo de alianccedila com diversas naccedilotildees indiacutegenas que

transformava seus liacutederes poliacuteticos em iacutendios principais de sua povoaccedilatildeo natildeo se

concretizava se o referido novo vassalo natildeo recebesse por parte das autoridades

portuguesas algum siacutembolo de sua grandeza e distinccedilatildeo

A espada e a casaca eram comumente utilizadas pelos principais das

tribos conquistadas assim como seus bastotildees de comando Ser importante

115

perante todos de todas as tribos significava receber honrarias brancas e cristatildes

em troca de ser subjugado pela cultura europeacuteia

Davam importacircncia a tudo que poderia tornaacute-los cristatildeos mas

adoravam receber e participar daquilo que se podia chamar de vida branca A

imagem de Cristo que preservaram com tanto cuidado o fato de terem construiacutedo

igreja e casa para o Jesuiacuteta a importacircncia que davam a ver seus nomes escritos

num papel que iria ateacute o rei e por fim o uso que os jesuiacutetas fizeram da cruz

levada nos ombros pelos escolhidos todas essas situaccedilotildees demonstram um

significado importante e ao mesmo tempo completamente inusitado desses

objetos Os jesuiacutetas pressentiam algo sobre esse significado tanto eacute que

utilizavam a cruz objeto para criar uma distinccedilatildeo entre os iacutendios Mas logo

traduziam esse significado para seu universo cosmoloacutegico inteiramente distinto e

estranho ao daqueles homens da floresta O que afinal poderiam significar esses

siacutembolos aos indiacutegenas

Alcanccedilar o significado desses objetos para os indiacutegenas significaria

obter uma resposta consistente sobre o que significava ser branco para eles

O uso dos objetos e roupas dos brancos distinguia os cristatildeos dos

gentios Havia uma transformaccedilatildeo em curso Natildeo significavam no entanto uma

total submissatildeo agraves regras de domiacutenio dos brancos Indicavam sim um aceite de

certas regras mas natildeo significava no entanto aceitar domiacutenio e desistecircncia de

suas crenccedilas e tradiccedilotildees

Iacutendios escravos poreacutem cristatildeos fincaram cruzes pelo caminho de suas

vidas numa clara tentativa de indicar sua inserccedilatildeo no mundo branco Esse

116

emaranhado de siacutembolos para estabelecer sua identidade cristatilde seria somente

uma estrateacutegia para sobreviverem demonstrando estarem do mesmo lado dos

brancos Por outro lado o uso dos objetos ocidentais no seu cotidiano e a

arquitetura de caiccedilara seriam indiacutecios de que esses homens apenas utilizavam tais

objetos por seu valor pragmaacutetico

Talvez o jesuiacuteta natildeo pudesse ter outra interpretaccedilatildeo desses indiacutecios

que natildeo essa do sentido utilitaacuterio e estrateacutegico No entanto natildeo parecem ter um

significado tatildeo simples Eles permitem conjecturas embora preliminares para

respostas um pouco mais complexas Esses diversos objetos apresentam uma

conexatildeo Sejam as espadas os bastotildees as cruzes ou as medalhas Natildeo podem

simplesmente ser traduzidos como simples recursos praacuteticos ou simboacutelicos

usados por populaccedilotildees indiacutegenas para o seu processo de inserccedilatildeo na sociedade

colonial portuguesa Menos ainda que essa inserccedilatildeo fosse uma estrateacutegia poliacutetica

para a manutenccedilatildeo de privileacutegios e de sobrevivecircncia somente

A imagem de cristo dos Nhengaiba por exemplo provavelmente um

crucifixo pode revelar um significado complexo que surgiu ao ser traduzido para a

liacutengua geral ou Nheengatu

Em liacutengua geral crucifixo eacute traduzido por Tupanarayra-rangaacuteua Para

se poder entender o seu possiacutevel significado para os indiacutegenas eacute necessaacuterio

traduzir cada umas das palavras que compotildee o termo

117

Tupana 131 significa em liacutengua geral matildee do trovatildeo a ela natildeo satildeo

rendidas homenagens ou festas Adaptado pelos jesuiacutetas Tupatilde transformou-se

no Deus cristatildeo O sufiacutexo ana indica que a accedilatildeo expressa no prefixo teve lugar e

continua a acontecer Ou seja Tupana ente desconhecido que troveja e mostra

seu poder pelo raio abate toda a floresta tirando a vida aos seres deixando-os

carbonizados

Rayra rangaacuteua 132 por sua vez significa filho ou afilhado do

homem Rangaacuteua isoladamente significa figura tempo hora medida

Certamente a ideacuteia que os Nhengaiba poderiam ter do crucifixo natildeo parece ser a

que os jesuiacutetas queriam que tivessem Ao traduzirem em liacutengua geral esse objeto

permitiram um cem nuacutemero de significados sobre os quais perderam o controle O

temor e respeito com que essa imagem foi adorada por estes iacutendios para a

surpresa dos jesuiacutetas podem estar ligados ao sentido que lhe deram ao traduzi-la

para o seu universo cosmogocircnico referencial

Embora esse sentido tenha ficado irremediavelmente perdido no tempo

eacute possiacutevel supor a traduccedilatildeo das palavras em Nhengatu uma possibilidade de

significado simboacutelico de que esse ser poderoso e desconhecido que troveja e tem

o poder de extinguir vidas se corporificou em uma figura sua medida em um

afilhado de Deus Se correto tal significado permite compreender o temor e o

respeito que esses catecuacutemenos tinham pelo Deus cristatildeo e seus missionaacuterios

jesuiacutetas Ao mesmo tempo permitem imaginar o oacutedio que possivelmente poderiam

131 Bueno 1998 p303 132 idem p 363

118

guardar por esse ser poderoso e vingativo Cruzes poderiam portanto ter um

poder em si mesmas para proteger e ao mesmo tempo simbolizar uma alianccedila

maacutegica com esse poderoso Deus

Enquanto espadas casacas e bastotildees simbolizavam poder para os

principais transformados em brancos ser cristatildeos atraveacutes do batismo poderia

permitir aliar-se a esse poderoso Deus possibilitando sua introduccedilatildeo num mundo

novo que se constituiacutea a sua revelia mas do qual eram tambeacutem artiacutefices

De certa maneira indicam que o processo de sua transformaccedilatildeo em

brancos estava em curso

Novamente a profecia daquele pajeacute parecia completar-se com a frase

de Vieira essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crer em certo

modo seja como natildeo crer Em outras palavras poderiacuteamos interpretar que esses

iacutendios mesmo facilmente tornando-se brancos e portugueses mesmo assim natildeo

o eram nunca seriam e nunca viriam a ser

119

CAPIacuteTULO 6 - O TEATRO COMO FERRAMENTA EDUCACIONAL E DE CATEQUESE

A religiatildeo indiacutegena eacute tomada desde o princiacutepio dos contatos dos

quinhentos como falsa como realidade diaboacutelica como de origem maldita sobre a

qual o cristianismo era imposto como o oposto superior

Havia uma imposiccedilatildeo eurocecircntrica onde o cristianismo era um dos

mais importantes sentimentos desse momento eurocentrista

Por esse motivo tudo deveria ser feito para que a conversatildeo chegasse

a termo

Mais uma ponte deveria ser construiacuteda para que o jesuiacuteta pudesse

persuadir e convencer os indiacutegenas da necessidade da aceitaccedilatildeo da conversatildeo ao

cristianismo Essa ponte deveria conter representaccedilotildees da realidade tanto do lado

cristatildeo como do lado dos brasis

Poreacutem a conversatildeo e qualquer ponte que levasse a ela natildeo poderia ser

apenas uma questatildeo de salvaccedilatildeo mas um elo essencial de inclusatildeo do Mundo

Novo e seus habitantes na sociedade europeacuteia para a qual naquela eacutepoca

religiatildeo e poliacutetica misturavam-se intrinsecamente

Os jesuiacutetas com as suas dificuldades de comunicaccedilatildeo muitas vezes jaacute

pregavam e doutrinavam usando de eloquumlecircncia levantando a voz mostrando os

120

misteacuterios da feacute atraveacutes de gestos andando em roda batendo as matildeos e os peacutes

sempre realizando um tipo de teatro rudimentar tal qual faziam os indiacutegenas

contando seus feitos fazendo as mesmas pausas quebras de retoacuterica gerando e

mostrando espantos pois sabiam que dessa forma estavam agradando e

persuadindo aquele povo que adorava a gestualiadade

Poreacutem eacute bom que se tenha claro que o teatro depois de consolidado

entre as formas pedagoacutegicas utilizadas pelos jesuiacutetas na conversatildeo serviu

tambeacutem como um espelho destruidor pois neles se mostrava a cosmogonia a

perfeiccedilatildeo do aguerrido a cultura dos brasis como sendo o Mal que se

contrapunha a vontade da Igreja que era o Bem Maior Na semacircntica desse teatro

Deus e os Santos lutavam na vida e na morte contra o Diabo da mesma forma

que os contraacuterios e os pajeacutes lutavam contra os padres e a pregaccedilatildeo

No teatro dos quinhentos o reino do democircnio das dissimulaccedilotildees e da

espreita das curas e dos espiacuteritos cabiam em uma soacute figura a do pajeacute visto que

eram essas coisas que mais davam credibilidade aos feiticeiros a arte de

persuadir de dissimular de espreitar e de falar com os espiacuteritos Luacutecifer aparecia

em lugares e situaccedilotildees sempre agrave espreita e como grande personagem do teatro

era representado de diversas formas por um principal por um beberratildeo por um

pajeacute por um guerreiro que desejasse defender as tradiccedilotildees mas nunca colocava

seu rosto para ser visto pois trabalhava sempre a espreita na calada na

sugestatildeo e na seduccedilatildeo se passando ateacute por bom por favoraacuteveis a causa da

catequese e ateacute como divinos O democircnio era atuante natildeo soacute nos autos mas sim

na vida do padres e dos demais cristatildeos vejamos por exemplo

121

o inimigo da natureza humana (como soe sempre fazer)

em impedir o bom successo da obra e assim determinou que a 7 ou 8

leguas daqui matassem um Christatildeo da armada em que viemos 133

Muitas das caracteriacutesticas do teatro medieval e do teatro europeu se

encontram presentes nos autos anchietanos de forma sempre adaptada agrave

compreensatildeo dos indiacutegenas segundo o que entendiam os jesuiacutetas Eram

mostrados nas peccedilas os misteacuterios os evangelhos as obras de Cristo mas

principalmente a realidade daqueles que assistiam ao teatro principalmente

atraveacutes do sagrado do temeroso do assustador do ruacutestico e do burlesco mas

principalmente a caracterizaccedilatildeo dos atores seus gestos e suas expressotildees e

figurino obedeciam a um simbolismo onde as caracteriacutesticas biacuteblicas por um lado

e por outro aos personagens antagocircnicos ao Bem mostrados pela caricatura

pelo grotesco de modo a ficar clara a desordem do inferno em contrapartida da

simbologia organizada do Bem Os cacircnticos suaves em latim estavam sempre em

contraposiccedilatildeo dos ruidosos personagens oriundos do inferno

Os autos de Anchieta tinham no entanto a caracteriacutestica de ultrapassar

as barreiras de uma peccedila teatral principalmente por fazer com que os

espectadores pudessem se misturar com os atores e de certa forma participarem

interativamente com o narrado mesmo que fossem com risadas e sons de

133 NOacuteBREGA 1988 p94

122

espanto com palma em cena aberta sem no entanto deixar que essa

representaccedilatildeo teatral perdesse seu intuito e seu formato dentro do espaccedilo cecircnico

Por representarem sempre os atores teatrais personagens do

cotidiano e do sagrado Anchieta conseguia utilizar esses mesmos personagens

em situaccedilotildees e contextos de diferentes momentos emprestando tanto

personagens como textos de um auto para outro

Muitas vezes Anchieta utilizava textos em que o aversivo para o

democircnio para o iacutendio perfeito portanto os bons costumes era dito pela boca

destes criando mais forccedila quando estes falavam mal da igreja dos padres de

Deus e dos Santos

Ai tenho andado debalde

agrave procura de um pouso

Irra Sempre me faz sair

Da taba o sacerdote

Expulsando-me para bem longe

Infelizmente ele ensina

A obedecer agraves palavras de Deus

Proclama que a sua linda matildee

Me desgraccedilou

Quebrou minha cabeccedila

Tudo o que Anchieta pretendia exaltar das boas qualidades dos

costumes dos iacutendios seus personagens sempre indiacutegenas mostravam essas

atitudes que vinham sempre acentuadas de forma positiva assim como a muacutesica

e as danccedilas pois no entender dos jesuiacutetas demonstravam a riqueza e a beleza

daquela cultura Jaacute os costumes que eram considerados pelos jesuiacutetas como

123

perniciosos e contraacuterios agrave moral da Santa Igreja apareciam normalmente

representados por personagens que deixavam claro pertencerem agraves hordas

demoniacuteacas ou pelo proacuteprio Diabo

O Auto de Satildeo Lourenccedilo eacute a mais longa e rica peccedila de Anchieta Essa

peccedila foi escrita em trecircs liacutenguas tupi portuguecircs e castelhano agrave semelhanccedila de

muitos autos de Gil Vicente que mostram a situaccedilatildeo de bilinguumlismo vigente em

Portugal no seacuteculo XVI

Do ponto de vista da linguumliacutestica essa peccedila eacute das mais importantes pois

mostra como o Tupi da Costa era efetivamente falado Nesse auto vemos os

diabos Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia a tentar perverter a aldeia no que satildeo

impedidos por Satildeo Lourenccedilo e por Satildeo Sebastiatildeo

Anchieta recorre muito agraves alegorias isto eacute agrave personificaccedilatildeo de nomes

abstratos ou agrave atribuiccedilatildeo de qualidades humanas a seres inanimados recurso

tambeacutem muito empregado por Gil Vicente em seus autos Assim vemos no Auto

de Satildeo Lourenccedilo o Amor e o Temor de Deus como personagens a aconselharem

aos iacutendios a caridade e a confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Essa concretude era

eficiente na transmissatildeo dos conteuacutedos doutrinaacuterios cristatildeos dada a concretude

do pensamento miacutetico no qual o mundo indiacutegena estava mergulhado

Considero o auto de Satildeo Lourenccedilo como sendo um dos melhores

exemplos do embate de mitos de que falamos em todo este trabalho onde

Aimbirecirc um dos democircnios diverte-se com piadas maliciosas enquanto leva os

assassinos de Satildeo Lourenccedilo para o inferno Vejamos por exemplo neste mesmo

auto como os diabos ironizam a confissatildeo

124

Satildeo Lourenccedilo Mas existe a confissatildeo

Bom remeacutedio para cura

Na comunhatildeo se depura

Da mais funda perdiccedilatildeo

A alma que o bem procura

Se depois de arrependidos

os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar

o caminho dos remeacutedios

o padre os vai abenccediloar

Guaixaraacute Como se nenhum pecado

Tivessem fazem a falsa

Confissatildeo e se disfarccedilam

Dos viacutecios abenccediloados

a assim viciados passam

Aimbirecirc Absolvidos

Dizem na hora da morte

Meus viacutecios renegarei

E entregam-se a sua sorte

No auto de Satildeo Lourenccedilo mostrando como essas personagens

aparecem representando o cotidiano e ao mesmo tempo o Bem e o Mal trecircs

diabos satildeo personagens de grande importacircncia Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia

todos nomes dos antigos chefes tamoios derrotados e mortos na campanha de

125

Guanabara que satildeo aproveitados para destacar o inimigo vencido e associaacute-lo

com inimigos de toda a cristandade

Do lado do Bem o Anjo vem acompanhado de Satildeo Lourenccedilo e de Satildeo

Sebastiatildeo que resistem aos diabos para natildeo permitir a destruiccedilatildeo da aldeia pelos

pecados

O Diabo talvez tenha sido uma das personagens mais importantes no

projeto de conversatildeo das almas natildeo soacute no teatro mas como em todas as

representaccedilotildees da catequese pois foi contra ele e seus disciacutepulos e seguidores

que partiram as acusaccedilotildees de perversatildeo de mentira de seduccedilatildeo de luxuria A

luta dos missionaacuterios jesuiacutetas natildeo foi nunca contra os pagatildeos ou contra os

hereges mas principalmente contra o diabo contra os feiticeiros e contra aqueles

que mesmo catequizados voltavam aos costumes antigos e promoviam revoltas

nas aldeias e as conduziam a fugas e ao deslocamento para terras mais distantes

da evangelizaccedilatildeo

126

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos

Nesta parte do capiacutetulo a intenccedilatildeo eacute a de fazer o leitor atentar para as

definiccedilotildees de mito como um todo do mito cristatildeo e de sua comparaccedilatildeo com os

mitos indiacutegenas Mostrar como de fato foi o verdadeiro embate de mitos na

batalha de imposiccedilatildeo do branco europeu portuguecircs e obviamente cristatildeo sobre

as populaccedilotildees indiacutegenas atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de cultura

As peccedilas os autos especificamente o Auto de Satildeo Lourenccedilo pelo

fasciacutenio da imagem representativa era muito mais eficaz do que um sermatildeo por

exemplo Escrito em tupi portuguecircs ou espanhol e mais tarde em latim Nesse

auto os personagens satildeo santos caciques democircnios imperadores e ainda

representam apenas simbolismos como o Amor ou o Temor a Deus

Anchieta o jovem missionaacuterio da Companhia de Jesus o grande

piahy (supremo pajeacute branco) como era chamado pelos iacutendios usava com

maestria neste auto o zelo constante pela conversatildeo e os mandamentos

religiosos atraveacutes de uma audiecircncia amena e agradaacutevel diferente da pregaccedilatildeo

seca e riacutegida de que os escritos catequeacuteticos satildeo cabal documento Some-se a

isso que os indiacutegenas eram sensiacuteveis agrave danccedila agrave muacutesica e a mistura de

personagens que integram a miacutetica cristatilde (diabos anjos santos) fatores esses

127

que atuavam sobre o expectador com vigoroso impacto O iacutendio natildeo era no

entanto apenas expectador desse teatro mas tambeacutem participava dele como ator

danccedilarino e cantor

Outros atores aleacutem dos iacutendios domesticados eram futuros padres

brancos e mamelucos Todos amadores que atuavam de improviso seguindo

textos mas sem trabalhos de interpretaccedilatildeo apresentavam os autos nas Igrejas

nas praccedilas e nos coleacutegios

Considero para esta tarefa o Auto de Satildeo Lourenccedilo como uma das

mais importantes ferramentas da catequese onde iacutendios principais de tribos

Tamoyo vencidos e destruiacutedos pelos portugueses passam a ter suas imagens

incorporadas ao diabo e a democircnios

No Apecircndice 1 coloco o Auto de S Lourenccedilo na iacutentegra para que o

leitor possa ter uma completa visatildeo dos comentaacuterios que apresento a cada passo

dessa peccedila teatral

Quando iniciamos a leitura do texto examinando-se apenas o tema do

auto jaacute se percebe que os portugueses do periacuteodo jesuiacutetico ao virem para o

Brasil trouxeram consigo seu espaccedilo miacutetico e obviamente necessitaram

sacralizar o novo territoacuterio

Inicia-se aqui na representaccedilatildeo do auto logo em seu iniacutecio o embate de

mitos De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado pelo Espiacuterito Santo e que trazia aos gentios os bons

costumes e a cura de todos os seus males Do outro lado homens aguerridos e

128

audaciosos que entendiam seus costumes da forma miacutetica que interpretavam

suas vidas e as explicaccedilotildees da finitude dessas vidas sem que conhecessem os

pecados ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao inimigo do Homem

que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a realidade

Jaacute no primeiro ato Percebe-se que a evocaccedilatildeo de Jesus Salvador

mostra agrave plateacuteia que algo se cria com as palavras de Satildeo Lourenccedilo um clima de

redenccedilatildeo com o sofrimento se implanta naqueles que ouvem e vivenciam a

experiecircncia do auto uma proposta de sentirem algo sagrado

Se a palavra se torna criadora se a partir dela formam-se as

proposiccedilotildees constitutivas o Sagrado se apresenta no dizer criador do Verbo

como a verdade dos entes 134

Na fala de Guaixaraacute que encontramos no iniacutecio do segundo ato nada

mais do que a resistecircncia agrave imposiccedilatildeo da cultura portuguesa ou ainda de

qualquer cultura que pudesse querer destruir o que ateacute aquele momento era

considerado pelos indiacutegenas como tradiccedilatildeo e modo de entender a vida Seu mito

o mito de Guaixaraacute pois a funccedilatildeo de seus mitos natildeo eacute a de mostrar uma ideacuteia

herdada de seus antepassados mas sim de mostrar um modo pelo qual aquela

sociedade funciona e que corresponde agrave maneira inata pela qual o homem nasce

e se relaciona em sua vida vivida

Nesta parte do auto Luacutecifer eacute o pajeacute Guaixaraacute eacute o pajeacute e todos que o

seguem satildeo democircnios Guaixaraacute eacute o diabo esse locutor infernal que eacute preciso

134 CRIPPA 1975 p115

129

calar O feiticeiro eacute algo anormal ele eacute um herege natildeo um pagatildeo Eacute um herege

que se faz passar por pagatildeo 135

O pajeacute eacute algo anormal na medida em que se considera que a cultura

iacutendia eacute pagatilde Considera-se a cultura iacutendia como algo jaacute possuiacutedo pelo Diabo

a figura infernal se flexiona Luacutecifer agora eacute o signo da perversatildeo eacute o liacuteder de

hereges que vecirc nele a siacutentese de suas qualidades malignas 136

No entanto durante boa parte do texto do auto Guaixaraacute sabe da forccedila

da tradiccedilatildeo e da linguagem e entende que mesmo que sejam os indiacutegenas

levados a outro mito eacute o mito primordial da origem da cultura que surge de forma

espontacircnea que permanece e crecirc que mesmo com a influecircncia externa de outra

transmissatildeo miacutetica cada indiviacuteduo da cultura a que pertence possui em cada

psique prontidotildees vivas e ativas e que mesmo que se encontrem inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico

Poreacutem o portuguecircs o jesuiacuteta tenta mostrar o inverso disso quando

pretende provar que ateacute mesmo Aimbirecirc acredita na forccedila do novo mito o mito

cristatildeo e a forccedila dos santos Vejamos

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me

amedronta

135 NEVES 1978 p93 136 NEVES 1978 p94

130

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos

noacutes

AIMBIREcirc

Esse

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te

venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

Pela visatildeo de Anchieta Aimbirecirc crecirc em seu mito mas de alguma forma

percebe que muitos indiacutegenas estatildeo passando para o outro lado porque o novo

mito tambeacutem lhes daacute uma explicaccedilatildeo para a vida que levam pois muitas das

situaccedilotildees tiacutepicas vividas pelos gentios com relaccedilatildeo a condiccedilatildeo humana tambeacutem

satildeo representadas pelos mitos que lhes vem sendo ensinado gerando nesses

indiacutegenas uma predisposiccedilatildeo para experimentar os novos conceitos Deus de

seus nascimentos de suas mortes e de renascimento apoacutes a morte dos novos

rituais dos sacramentos etc

Por outro lado percebe-se tambeacutem que Aimbirecirc junto com outros

diabos continuaraacute tentando o disconversatildeo e a manutenccedilatildeo do mito primordial

131

Haacute no entanto uma anguacutestia demonstrada pelo diabo que Anchieta

criou mostrando que ele mesmo sendo o diabo entende a necessidade dos

gentios em descobrir e refazer seus mitos Havia o vislumbre de que a nova

proposta o novo mito pudesse atender agraves necessidades daqueles que teriam

conhecido um novo tipo de conforto uma nova seguranccedila perante as doenccedilas que

destruiacuteram tribos inteiras um novo alento para suas dificuldades enfrentadas em

suas vidas vividas

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de nossa anguacutestia

individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de um novo mito central vai

resolver o problema para o indiviacuteduo e para a sociedade 137

Vejamos este trecho do auto onde os diabos em conversa com Satildeo

Lourenccedilo tentam mostrar que satildeo apenas indiacutegenas no entanto a fala proposta

por Anchieta no texto perverte essa informaccedilatildeo

(Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar

antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

137 EDINGER 1999 11

132

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio

Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou

luminoso democircnio

Ou estaria dizendo em suas proacuteprias palavras e nas natildeo palavras

colocadas por Anchieta em sua boca de personagem sou iacutendio sou livre sou

aguerrido luto por minha tradiccedilatildeo

Mas Satildeo Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo continuam a tentar convencer

esses diabos de que eles foram criados a imagem e semelhanccedila dos brancos e

por isso tecircm que se tornarem tementes a Deus

Como afirmei anteriormente Deus eacute uma forma de explicarmos as

experiecircncias que temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e

transcendentais Ele eacute a superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos

aos deuses pois temos que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa

vida Mas os gentios possuiacuteam outro mundo outra sublimidade outra

transcendentalidade outras ideacuteias outras abstraccedilotildees A terra eacute a mesma mas

entendida de outra forma a morte eacute a mesma mas o conceito dessa passagem

eacute distinto o espiacuterito de cada ideacuteia eacute formado por concepccedilotildees diferentes da dos

portugueses

Vejamos novamente uma afirmaccedilatildeo de Gusdorf jaacute citada anteriormente

neste trabalho

133

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao ser toda

sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da comunidade pelo

viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem vivente a terra as coisas os

seres e ainda os mortos que continuam frequumlentando a morada de sua vida 138

Os deuses dos indiacutegenas eram por eles conhecidos podiam olhar e ver

o Sol a Lua as estrelas a noite a chuva o vento mas o Deus apresentado pelos

jesuiacutetas era um deus que natildeo se podia ver nem acreditar sem pensar El Dios

verdadero el Dios de la religioacuten cristiana fue siempre un Deus absconditus 139

um Deus escondido um Deus que necessita que se creia sem que se possa ver

Mas Anchieta na voz da personagem Satildeo Sebastiatildeo vecirc a existecircncia de

um povo e seu mito e tenta ainda mudar a concepccedilatildeo de Aimbirecirc impondo o mito

cristatildeo

(Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo

espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

138 GUSDORF1959 p 55-56 139 CASSIRER 1945 p113

134

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas

velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas

palavras amigas

Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute

De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba disso natildeo

os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa

Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos

jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa

Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de

comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas

avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos

aprisionando

135

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando

AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e aos viacutecios bem se

convertem agrave forccedila do nosso mando

Os diabos aqui retratados tentam usar de uma linguagem que permite

estruturar seu conhecimento sobre si e sobre seu povo uma linguagem que

pudesse ser capaz de transcrever sua realidade vivida mas que pertencesse a

seu proacuteprio conhecimento de mundo um mundo indiacutegena um mundo desenhado

pelo mito primordial e pela essecircncia de seu ser e de sua existecircncia humana que

se fixa atraveacutes de uma paisagem desenhada pelo grupo social a que pertence a

tribo de sua origem de seu nome e de sua identidade envolta por uma membrana

relacionada com a moral e com a espiritualidade de seu povo

Eacute atraveacutes do mito que o homem se relaciona com o outro pensa seus

deuses pensa sua vida e vive as relaccedilotildees do povo a que pertence Eacute pelo mito

que satildeo definidas as tarefas coletivas e individuais da comunidade na defesa na

guarda dos indiviacuteduos coletores ou caccediladores guerreiros ou agricultores

partilhando vivecircncias e vivenciando a cooperatividade

136

A cooperatividade e mutualidade servem para garantir o alimento a

cultura e a tradiccedilatildeo as quais tambeacutem alimentam tanto para si como para os que

do indiviacuteduo miacutetico dependem sendo a base psiacutequica para o ser em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal

Mas quer Anchieta que seus personagens entendam o inferno mas o

proacuteprio texto mostra que Aimbirecirc percebe que os brancos tambeacutem cultuam esse

inferno de alguma forma

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a

taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

Inferno um local subterracircneo habitado pelos mortos um lugar em que

as almas pecadoras se entram apoacutes a morte submetidas a penas eternas

Novamente o absconditus soacute que agora natildeo eacute mais Deus quem estaacute escondido e

sim o diabo isto eacute eles mesmos Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos os outros

mesmo que eles mesmos natildeo saibam disso

SAtildeO LOURENCcedilO

Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura

137

Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma

que o bem procura

Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai

abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados

passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios

renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou

eu abandonaacute-los

E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los

Tanto confiaram em mim construindo esta capela

plantando o bem sobre ela

Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso

138

Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs

daqui lhes darei sumiccedilo

Deles nem sombra vereis

Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas

tridentes e alegrar as nossas gentes

Jaacute aqui Anchieta propotildee que os diabos saibam bem quem satildeo qual

sua origem e qual seu destino Mas Guaixaraacute e seus companheiros natildeo tinham

essa concepccedilatildeo de origem e de destino do mito cristatildeo ou mesmo de profano e de

sagrado pois sagrado ou profano eacute tudo aquilo que se encontra sob os olhos do

homem no entanto no iacutendio real natildeo interpretado de um texto apologeacutetico natildeo

havia a clara noccedilatildeo de profano e sagrado nem de pecado pois isso natildeo estava

sob seus olhos existindo sim o tabu que cometido ou invadido natildeo tinha perdatildeo

e soacute poderia receber a morte diferente do pecado que por maior que fosse teria

como ser renegado e obtido o perdatildeo para que se siga em direccedilatildeo aos Ceacuteus

As diversas formas da realidade seguem-se agraves diversas formas que o

sagrado assume ao revelar-se Independentemente dos contrastes e das

oposiccedilotildees que integram o mundo do real sensiacutevel haacute uma coincidecircncia radical no

Ser e no Sagrado O divino garante estas oposiccedilotildees e diversidades

apresentando-se ele mesmo das mais diversas maneira 140

Enfim apoacutes o embate de mitos de um lado Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo e

do outro Aimbirecirc e Saravaia como sempre o considerado Bem vence o

140 CRIPPA 1975 p117

139

considerado Mal onde ateacute os franceses e castelhanos satildeo considerados aliados

do Diabo e nesse embate de mitos o branco portuguecircs cristatildeo e jesuiacuteta vence o

Curupira a Grande Matildee a Matildee dacuteaacutegua o Macuteboy-tataacute

O Anjo Fala com os santos convidando-os a cantar e se

despede)

Cantemos todos cantemos

Que foi derrotado o mal

Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa

alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima

repeticcedilatildeo da cantiga choram)

Conforme se pode perceber no texto que define o terceiro ato e muito

do texto a seguir os anjos de Deus comandam os diabos Aimbirecirc e Saravaia para

que atuem sob seu comando fazendo arder nos infernos outros que podem ser

considerados pecadores Deacutecio e Valeriano imperadores e que representam

possivelmente no auto de Satildeo Lourenccedilo outros chefes tribais que natildeo aceitaram a

pregaccedilatildeo

ANJO

Aimbirecirc

Estou chamando vocecirc

Apressa-te Corre Jaacute

140

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute

Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para

dar-te como presa

De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los

Que para o sol sejam cegos

Ide ao fogo cozinhaacute-los

Castiga com teus vassalos estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto

Sejam tais ordens cumpridas

Reunirei meus democircnios

Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que

temos planos medonhos

(Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana

Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Sus Caborecirc vecirc se te

inflama pra comer estes perus

141

(Acodem todos os quatro com suas armas)

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Anchieta nos mostra neste ponto que tambeacutem os diabos criam seus

conceitos de Bem e Mal a partir de semelhanccedilas tanto com Deus como com o

Diabo pois para aceitarem o mito que altera seus costumes que gera dentro

deles uma perda da consciecircncia de uma realidade transpessoal seus deuses as

anarquias interna e externa dos desejos pessoais rivais assumem o poder e como

os cristatildeos passam a criar deidades agrave sua imagem e semelhanccedila as quais criam

homens agrave suas imagens e semelhanccedilas

Mostra Anchieta quando fala dos romanos no texto do Auto que Deacutecio

e Valeriano satildeo adeptos a ideacuteias contraacuterias ao cristianismo satildeo guerreiros

conquistadores pagatildeos e portanto infieacuteis que deveratildeo ser castigados mas por

quem por aqueles considerados pelo mito cristatildeo iguais a estes isto eacute Aimbirecirc e

Saravaia e outros diabos que os enganaraacute os assaraacute os sangraraacute atendendo agraves

ordens dos anjos e dos santos catoacutelicos Neste momento do texto do auto de Satildeo

Lourenccedilo os diabos chamam de castelhanos os imperadores o que pode servir

para mostrar o juiacutezo que dos castelhanos (ou de sua liacutengua) faziam entatildeo os

lusitanos juiacutezo esse perfilhado mesmo por quem como Anchieta nascera em

terras de Espanha

142

Caos total na cultura indiacutegena O mito cristatildeo eacute imposto sobre a pureza

da indianidade

No quarto o Temor de Deus e o Amor de Deus mandam sua mensagem

de que os iacutendios (puacuteblico-alvo de Joseacute de Anchieta) devem amar e temer a Deus

que por eles tudo sacrificou Neste quarto ato novamente o sagrado cristatildeo

invade o espaccedilo sagrado do mito indiacutegena invade o espaccedilo miacutetico primitivo

substituindo o altar de sacrifiacutecios espaccedilo de magia do pajeacute vital para a

manutenccedilatildeo de seu pensamento e estrutura de sua psique pelo altar a Deus

como um marco de apenas uma existecircncia possiacutevel como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute um novo sentido pois ali natildeo moram mais seus

deuses natildeo moram seus mortos seus pensamentos e desejos e sim um mito

cristatildeo

Reafirma essa imposiccedilatildeo do sagrado cristatildeo sobre o sagrado

indiacutegenas no momento do quinto ato onde na danccedila final de doze meninos

invocando Satildeo Lourenccedilo afirmando em tupi os bons propoacutesitos de seguir os

ensinamentos cristatildeos O fim da apresentaccedilatildeo criava um clima propiacutecio para que o

puacuteblico em verdadeiro coro formulasse idecircnticos votos de viver segundo os

preceitos religiosos

Natildeo haacute mais por esse auto de Anchieta um espaccedilo sagrado onde o

indiacutegena pudesse realizar seus rituais suas suplicas seus sacrifiacutecios fazendo

com percam por completo e em definitivo o local onde suas forccedilas vitais pudessem

se encontrar se concentrar e os fazer existir como satildeo

143

Conforme Cripa141 quando novas simbologias satildeo inseridas no

processo de manifestaccedilatildeo do sagrado elas assumem uma dimensatildeo nova a

sacralidade manifestando um poder transcendente e incontrolaacutevel pelo homem

tornando ao final o indiacutegena em um arremedo de branco e portuguecircs confirmando

assim a profecia do pajeacute que dizia que o iacutendio se transformaria no branco e o

branco em iacutendio Isso natildeo aconteceu o indiacutegena se transformou em algo que

caminha sobre a terra

Com a queda do pano na boca de cena para Anchieta o iacutendio se

converteu Vejamos em que ele acreditava

falamos-lhe que o queriacuteamos batizar para que sua alma

natildeo se perdesse mas que por entatildeo natildeo podiacuteamos ensinar-lhe o que

era necessaacuterio por falta de tempo e que estivesse preparado para

quando voltaacutessemos Folgou ele tanto com esta notiacutecia como vinda

do Ceacuteu e teve-a tanto em memoacuteria que agora quando viemos e lhe

perguntamos se queria ser Cristatildeo respondeu com muita alegria que

sim e que jaacute desde entatildeo o estava esperando [] O que se lhe

imprimiu foi o misteacuterio da Ressurreiccedilatildeo que ele repetia muitas vezes

dizendo Deus verdadeiro eacute Jesus que saiu da sepultura e subiu ao

Ceacuteu e depois haacute de vir muito irado a queimar todas as cousas []

Chegando agrave porta da igreja o assentamos em uma cadeira onde

estavam jaacute seus padrinhos com outros cristatildeos a esperaacute-lo Aiacute lhe

tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria e ele

respondeu com grande fervor que queria ser batizado e que toda

aquela noite estivera pensando na ira de Deus que havia de ter para

141 CRIPPA 1975 p120

144

queimar todo o mundo e destruir todas as cousas e de como

haviacuteamos de ressuscitar todos142

142 ANCHIETA - Cartas- 1988 p 199 - Carta ao Geral Diogo Lainez de Satildeo Vicente a 16 de abril de 1563

145

CONCLUSAtildeO - O RESULTADO DO EMBATE DESSES MITOS NA EDUCACcedilAtildeO E NA CULTURA

BRASILEIRA

Noacutes brancos negros mesticcedilos e cristatildeos ou natildeo pudemos ter nesse

Brasil uma heranccedila que poderia ser considerada magna quer na liacutengua que

falamos quer nas artes nas danccedilas na culinaacuteria que a Cunhatilde matildee da famiacutelia

brasileira nos deixou diria com certeza Gilberto Freire Aprendemos e

incorporamos tantos e tantos itens dessa cultura maravilhosa que veio do

indiacutegena fomos educados pelas Cunhatildes

Mas desde Caminha sempre se repetem pela educaccedilatildeo formal

brasileira as maravilhas deste paiacutes desta terra como se eles os indiacutegenas nunca

tivessem existido esquecendo-se que transmissatildeo cultural eacute educaccedilatildeo

Poreacutem a terra em si eacute de muitos bons ares assim frios e

temperados como os de Entre-Doiro e Miacutenho porque neste tempo

de agora assim os achaacutevamos como os de laacute Aacuteguas satildeo muitas

infindas E em tal maneira eacute graciosa que querendo-a aproveitar dar-

se-aacute nela tudo por bem das aacuteguas que tem 143

143 CAMINHA 2000 p 12

146

Podemos observar no trecho acima que o Brasil eacute descrito como

mundo feacutertil de clima ameno vida promissora Esse relato eacute consequumlecircncia da

visatildeo medieval da natureza na qual a exuberacircncia eacute uma manifestaccedilatildeo divina

Nessa idealizaccedilatildeo cada visatildeo da terra eacute uma liccedilatildeo de Deus e tudo eacute associado

entatildeo ao Eacuteden ao Paraiacuteso Terrestre Discurso elaborado no periacuteodo de

conquista da terra e que se repete ao longo dos seacuteculos

Vejamos por exemplo um trecho proacuteprio do romantismo da Canccedilatildeo do

Exiacutelio de Gonccedilalves Dias (seacuteculo XIX)

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiaacute

As aves que aqui gorjeiam

Natildeo gorjeiam como laacute

Nosso ceacuteu tem mais estrelas

Nossas vaacuterzeas tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida mais amores

Ateacute mesmo canccedilotildees atuais cantam essa terra maravilhosa onde o

Eacuteden repousa como em Paiacutes Tropical de Jorge Ben Jor (seacuteculo XX)

Moro num paiacutes tropical

Abenccediloado por Deus

E bonito por natureza

Mas que beleza

Fevereiro tem carnaval

Tem carnaval

147

O Hino Nacional Brasileiro tambeacutem se rende ao mito do Paraiacuteso

Terrestre ser o Brasil

Se em teu formoso ceacuteu risonho e liacutempido

A imagem do Cruzeiro resplandece

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida no teu seio mais amores

Gigante pela proacutepria natureza

Es belo eacutes forte impaacutevido colosso

E o teu futuro espelha essa grandeza

Terra adorada

Entretanto haacute textos que subvertem ironicamente a histoacuteria oficial do

paiacutes apresentada na Carta de Caminha num processo de desconstruccedilatildeo desse

mito de que o Eacuteden eacute aqui Mostram um Brasil cheio de contrastes tal como este

fragmento da muacutesica Iacutendios do conjunto Legiatildeo Urbana (seacuteculo XXI)

Quem me dera ao menos uma vez

Ter de volta todo o ouro que entreguei

A quem conseguiu me convencer

Que era prova de amizade

Se algueacutem levasse embora ateacute o que eu natildeo tinha

Quem me dera ao menos uma vez

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que natildeo tem o bastante

148

E fala demais por natildeo ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez

Que o mais simples fosse visto como o mais importante

Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez

Entender como um soacute Deus ao mesmo tempo eacute trecircs

E esse mesmo Deus foi morto por vocecircs -

Eacute soacute maldade entatildeo deixar um Deus tatildeo triste

Quem me dera ao menos uma vez

Como a mais bela tribo dos mais belos iacutendios

Natildeo ser atacado por ser inocente

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Tentei chorar e natildeo consegui

Em sua carta aleacutem das primeiras imagens da terra e dos homens

Caminha ressalta que Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que

seraacute salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela

deve lanccedilar Mas o iacutendio apoacutes a conversatildeo apoacutes ter sido educado pelo branco

vestiu maacutescaras de cristandade maacutescaras de algueacutem com pele branca maacutescaras

de civilizaccedilatildeo europeacuteia marca indeleacutevel de sua condiccedilatildeo de escravo do

colonizador europeu quinhentista e seiscentista

O mito cristatildeo nesse embate derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e

todos os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano Elimina o mito de

149

Acircgacircmahsacircpu o Pai maior o mito dos Diroaacute e dos Koaacuteyea e todo o conhecimento

do mito indiacutegena

Entendo que todo o trabalho aqui apresentado eacute uma conclusatildeo de per

si e leva o leitor a uma compreensatildeo do embate de mitos e quem venceu Que

lado se tornou o Bem e que lado se tornou o Mal

Gostaria de encerrar esta proposta voltando a tradiccedilatildeo indiacutegena natildeo

considerada fonte histoacuterica mas real como real eacute ainda alguma sombra tecircnue do

mito indiacutegena trazendo a Histoacuteria de Umukomahsu144

os Desana ficaram divididos em vaacuteria malocas onde

viviam sossegados Trabalhavam e faziam grandes festas como a

festa de oferta de bens (poori) Na maloca do filho de Boreka tambeacutem

chamado Boreka havia um tipo de boneco de que ele era o dono

Chamava-se Gotildeatildemecirc (demiurgo) Ele morava dentro de uma grande

cuia de um metro de altura sustentada sobre um suporte de panela

Durante o dia ele se parecia como uma cobra venenosa Mas ele natildeo

mordia De noite no sonho ele tinha relaccedilatildeo sexual com a mulher de

Boreka Assim a mulher de Boreka contava para as outras mulheres

No sonho ele lhe aparecia como um padre agraves vezes como um

Branco Assim natildeo somente ele tinha vida como tambeacutem ele vivia no

sonho com algumas outras mulheres da maloca de Boreka Mas natildeo

com todas Escolhia a mulher com quem ia viver no sonho Ele natildeo

fazia isso com as solteiras somente com as mulheres que jaacute tinham

marido isto eacute que pertenciam a outra tribo Por isso quando nascia

uma crianccedila da mistura do secircmem de Gotildeatildemecirc e do marido jaacute se sabia

que quando crescesse ele seria inteligente saacutebio e adivinho Gotildeatildemecirc

144 LANA 1995 p58-59

150

tinha relaccedilatildeo sexual no sonho com cinco mulheres da maloca de

Boreka que tinham marido

Ele tinha um grande poder Protegia Boreka livrando-o de

todos os males e de todos os perigos que dele se aproximassem

Enquanto viviam deste modo chegaram os primeiros Brancos na

regiatildeo De acordo coma a histoacuteria do Brasil esses Brancos seriam os

bandeirantes Depois deles chegaram os Brancos que agarraram a

gente Eles cercavam a maloca de Boreka mas natildeo conseguiram

entrar nela Suas pernas ficaram moles Eles natildeo tinham mais forccedila

para andar Voltaram uma segunda vez cercaram a maloca e

aconteceu a mesma coisa Tornaram a voltar e sucedia o mesmo Por

isso eles perguntaram para os iacutendios de outras tribos porque eles

ficavam deste jeito quando tentavam entrar na maloca de Boreka Os

outros contaram que Boreka tinha na sua maloca um tipo de boneco

que o defendia Os Brancos perguntaram em qual lugar ele ficava

guardado Responderam que era bem no meio da porta do quarto de

Boreka A porta chamava-se Imikadihsi (porta dos Paris) Ele estava

sobre essa porta em cima de um suporte de cuia

Os Brancos ouviram tudo direito e foram outra vez para a

maloca de Boreka Quando chegaram a primeira coisa que fizeram foi

derrubar Gotildeatildemecirc com um tiro de espingarda Atiraram sem ver nada

porque sabiam onde ele se encontrava A casa de Gotildeatildemecirc isto eacute a

cuia ficou totalmente despedaccedilada mas ele subiu ao ceacuteu Os

Brancos cercaram entatildeo a maloca e agarraram Boreka O

descendente legiacutetimo da Gente de Transformaccedilatildeo foi assim preso

pelos Brancos O irmatildeo de Boreka conseguiu fugir e tomou o lugar

dele como chefe supremo dos Desana Boreka quando foi levado

pelos Brancos levou consigo a maior parte dos seus poderes Natildeo se

sabe para qual lugar os Brancos o levaram Talvez esteja na Bahia

no Rio de Janeiro ou no Portugal Isso ningueacutem sabe As riquezas

restantes ficaram todas para a sua geraccedilatildeo Elas estatildeo com os

descendentes de Boreka os Borekapotilderatilde Entre outras estatildeo os

pumuribuya os Enfeites de Transformaccedilatildeo e as outras coisas

tiradas da Maloca do Universo

151

APEcircNDICES

Senti durante este trabalho a necessidade de acrescentar estes

apecircndices com o intuito de levar ao leitor uma seacuterie de informaccedilotildees que natildeo

pertencem ao objeto de estudo e a proacutepria tese em si mas que colaboraram para

o entendimento de mito cristatildeo no sentido especialmente cultural e que puderam

influenciar na missatildeo de educaccedilatildeo e catequese jesuiacutetica ao indiacutegena brasileiro

Para tanto apresento a seguir o texto completo do Auto de S Lourenccedilo

e trecircs estudos por mim realizados em forma de apecircndices A missa e os

siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem O mito de Cristo e por fim

Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade

152

APEcircNDICE 1 O AUTO DE SAtildeO LOURENCcedilO JOSEacute DE ANCHIETA

PERSONAGENS

GUAIXARAacute - rei dos diabos AIMBIREcirc SARAVAIA - criados de Guaixaraacute TATAURANA URUBU JAGUARUCcedilU - companheiros dos diabos VALERIANO DEacuteCIO - Imperadores romanos SAtildeO SEBASTIAtildeO - padroeiro do Rio de Janeiro SAtildeO LOURENCcedilO - padroeiro da aldeia de Satildeo Lourenccedilo VELHA ANJO TEMOR DE DEUS AMOR DE DEUS CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA Apoacutes a cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute chama Aimbirecirc e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia Satildeo Lourenccedilo a defende Satildeo Sebastiatildeo prende os democircnios Um anjo manda-os sufocarem Deacutecio e Valeriano Quatro companheiros acorrem para auxiliar os democircnios Os imperadores recordam faccedilanhas quando Aimbirecirc se aproxima O calor que se desprende dele abrasa os imperadores que suplicam a morte O Anjo o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade contriccedilatildeo e confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Faz-se o enterro do santo Meninos iacutendios danccedilam

PRIMEIRO ATO (Cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo) Cantam

Por Jesus meu salvador Que morre por meus pecados Nestas brasas morro assado Com fogo do meu amor Bom Jesus quando te vejo Na cruz por mim flagelado

Eu por ti vivo e queimado Mil vezes morrer desejo Pois teu sangue redentor Lavou minha culpa humana Arda eu pois nesta chama Com fogo do teu amor

153

O fogo do forte amor Ah meu Deus com que me amas Mais me consome que as chamas E brasas com seu calor

Pois teu amor pelo meu Tais prodiacutegios consumou Que eu nas brasas onde estou Morro de amor pelo teu

SEGUNDO ATO (Eram trecircs diabos que querem destruir a aldeia com pecados aos quais resistem Satildeo Lourenccedilo Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo da Guarda livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes satildeo Guaixaraacute que eacute o rei Aimbirecirc e Saravaia seus criados)

GUAIXARAacute

Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira Quem a teria trazido com seus haacutebitos polidos estragando a terra inteira Soacute eu permaneccedilo nesta aldeia como chefe guardiatildeo Minha lei eacute a inspiraccedilatildeo que lhe dou daqui vou longe visitar outro torratildeo Quem eacute forte como eu Como eu conceituado Sou diabo bem assado A fama me precedeu Guaixaraacute sou chamado Meu sistema eacute o bem viver Que natildeo seja constrangido o prazer nem abolido Quero as tabas acender com meu fogo preferido Boa medida eacute beber cauim ateacute vomitar Isto eacute jeito de gozar a vida e se recomenda a quem queira aproveitar A moccedilada beberrona

trago bem conceituada Valente eacute quem se embriaga e todo o cauim entorna e agrave luta entatildeo se consagra Quem bom costume eacute bailar Adornar-se andar pintado tingir pernas empenado fumar e curandeirar andar de negro pintado Andar matando de fuacuteria amancebar-se comer um ao outro e ainda ser espiatildeo prender Tapuia desonesto a honra perder Para isso com os iacutendios convivi Vecircm os tais padres agora com regras fora de hora praacute que duvidem de mim Lei de Deus que natildeo vigora Pois aqui tem meu ajudante-mor diabo bem requeimado meu bom colaborador grande Aimberecirc perversor dos homens regimentado

(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele E ele a ajuda como fazem os iacutendios Depois de chorar achando-se enganada diz a velha)

154

VELHA

O diabo mal cheiroso teu mau cheiro me enfastia Se vivesse o meu esposo meu pobre Piracaecirc isso agora eu lhe diria Natildeo prestas eacutes mau diabo Que bebas natildeo deixarei do cauim que eu mastiguei Beberei tudo sozinha ateacute cair beberei (a velha foge)

GUAIXARAacute (Chama Aimberecirc e diz)

Ei por onde andavas tu Dormias noutro lugar

AIMBIREcirc

Fui as Tabas vigiar nas serras de norte a sul nosso povo visitar Ao me ver regozijaram bebemos dias inteiros Adornaram-se festeiros Me abraccedilaram me hospedaram das leis de deus estrangeiros Enfim confraternizamos Ao ver seu comportamento tranquumlilizei-me Oacute portento Viacutecios de todos os ramos tem seus coraccedilotildees por dentro

GUAIXARAacute

Por isso no teu grande reboliccedilo eu confio que me baste os novos que cativaste os que corrompeste ao viacutecio Diz os nomes que agregaste

155

AIMBIREcirc

Gente de maratuauatilde no que eu disse acreditaram os das ilhas nestas matildeos deram alma e coraccedilatildeo mais os paraibiguaras Eacute certo que algum perdi que os missionaacuterios levaram a Mangueaacute Me irritaram Raivo de ver os tupis que do meu laccedilo escaparam Depois dos muitos que nos ficaram os padres sonsos quiseram com mentiras seduzir Natildeo vecirc que os deixei seguir - ao meu apelo atenderam

GUAIXARAacute

De que recurso usaste para que natildeo nos fugissem

AIMBIREcirc

Trouxe aos tapuias os trastes das velhas que tu instruiacuteste em Mangueaacute Que isto baste Que elas satildeo de fato maacutes fazem feiticcedilo e mandinga e esta lei de Deus natildeo vinga Conosco eacute que buscam a paz no ensino de nossa liacutengua E os tapuias por folgarem nem quiseram vir aqui De danccedila os enlouqueci para a passagem comprarem para o inferno que acendi

GUAIXARAacute

Jaacute chega

156

Que tua fala me alegra teu relatoacuterio me encanta

AIMBIREcirc

Usarei de igual destreza para arrastar outras presas nesta guerra pouco santa O povo Tupinambaacute que em Paraguaccedilu morava e que de Deus se afastava deles hoje um soacute natildeo haacute todos a noacutes se entregaram Tomamos Moccedilupiroca Jequei Gualapitiba

Niteroacutei e Paraiacuteba Guajajoacute Carijoacute-oca Pacucaia Araccedilatiba Todos os tamoios foram Jazer queimando no inferno Mas haacute alguns que ao Padre Eterno fieacuteis nesta aldeia moram livres do nosso caderno Estes maus Temiminoacutes nosso trabalho destroem

GUAIXARAacute

Vem tentaacute-los que se moem a blasfemar contra noacutes Que bebam roubem e esfolem Que provoquem muitas lutas muitos pecados cometam por outro lados se metam longe desta aldeia agrave escuta dos que as nossas leis prometam

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me amedronta

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

157

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos noacutes

AIMBIREcirc

Esse

GUAIXARAacute

Fica descansado Natildeo sou assim tatildeo covarde seraacute logo afugentado Aqui estaacute quem o queimou e ainda vivo o cozeu

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

GUAIXARAacute

O que eu deixei transpassado Natildeo faccedilas broma comigo que sou bem desaforado Ambos fugiratildeo logo aqui me virem chegar

AIMBIREcirc

Olha que vais te enganar

GUAIXARAacute

158

Tem confianccedila te rogo que horror lhes vou inspirar Quem como eu nas terras existe que ateacute Deus desafiou

AIMBIREcirc

Por isso Deus te expulsou e do inferno o fogo triste para sempre te abrasou Eu lembro de outra batalha em que Guaixaraacute entrou Muito povo te apoiou e inda que lhes desses forccedilas na fuga se debandou Natildeo eram muitos cristatildeos Contudo nada ficou da forccedila que te inspirou pois veio Sebastiatildeo na forccedila fogo ateou

GUAIXARAacute

Por certo aqueles cristatildeos tatildeo rebeldes natildeo seriam Mas esses que aqui estatildeo desprezam a devoccedilatildeo e a Deus natildeo reverenciam Vais ver como em nossos laccedilos caem logo estes malvados De nossos dons confiados as almas cederam passo para andar do nosso lado

AIMBIREcirc

Assim mesmo tentarei Um dia obedeceratildeo

GUAIXARAacute

Ao sinal de minha matildeo os iacutendios te entregarei

159

E agrave forccedila sucumbiratildeo

AIMBIREcirc

Preparemos a emboscada Natildeo te afobes Nosso espia veraacute em cada morada que armas nos satildeo preparadas na luta que se inicia

GUAIXARAacute

Muito bem eacutes capaz disso Saravaia meu vigia

SARAVAIA

Sou democircnio da alegria e assumi tal compromisso Vou longe nesta porfia Saravaiaccedilu me chamo Com que tarefa me aprazas

GUAIXARAacute

Ouve as ordens de teu amo quero que espies as casas e voltes quando te chame Hoje vou deixar que leves os iacutendios aprisionados

SARAVAIA

Irei onde me carregues E agradeccedilo que me entregues encargo tatildeo desejado Como Saravaia sou aos iacutendios que me aliei enfim aprisionarei E neste barco me vou De cauim me embriagarei

160

GUAIXARAacute

Anda logo vai ligeiro

SARAVAIA

Como um raio correrei (Sai)

GUAIXARAacute (Passeia com Aimbirecirc e diz)

Demos um curto passeio Quando volte o mensageiro a aldeia destroccedilarei (Volta Saravaia e Aimberecirc diz)

AIMBIREcirc

Danado Voltou voando

GUAIXARAacute

Demorou menos que um raio Foste mesmo Saravaia

SARAVAIA

Fui Jaacute estatildeo comemorando os iacutendios nossa vitoacuteria Alegra-te Transbordava o cauim o prazer regurgitava E a beber as igaccedilabas esgotam ateacute o fim

GUAIXARAacute

E era forte

161

SARAVAIA

Forte estava E os rapazes beberrotildees que pervertem esta aldeia caiam de cara cheia Velhos velhas mocetotildees que o cauim desnorteia

GUAIXARAacute

Jaacute basta Vamos mansinho tomaacute-los todos de assalto Nosso fogo arda bem alto (Vem Satildeo Lourenccedilo com dois companheiros Diz Aimbirecirc)

AIMBIREcirc

Haacute um sujeito no caminho que me ameaccedila de assalto Seraacute Lourenccedilo o queimado

SARAVAIA

Ele mesmo e Sebastiatildeo

AIMBIREcirc

E o outro dos trecircs que satildeo

SARAVAIA

Talvez seja o anjo mandado desta aldeia o guardiatildeo

AIMBIREcirc

Ai Eles me esmagaratildeo Natildeo posso sequer olhaacute-los

162

GUAIXARAacute

Natildeo te entregues assim natildeo ao ataque meu irmatildeo Teremos que amedrontaacute-los As flechas evitaremos fingiremos de atingidos

AIMBIREcirc

Olha eles vecircm decididos a accediloitar-nos Que faremos Penso que estamos perdidos (Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou luminosos democircnio

163

SAtildeO LOURENCcedilO

Dizei-me o que quereis desta minha terra em que nos vemos

GUAIXARAacute

Amando os iacutendios queremos que obediecircncia nos prestem por tanto que lhes fazemos Pois se as coisas satildeo da gente ama-se sinceramente

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Quem foi que insensatamente um dia ou presentemente os iacutendios vos entregou Se o proacuteprio Deus tatildeo potente deste povo em santo ofiacutecio corpo e alma modelou

GUAIXARAacute

Deus Talvez remotamente pois eacute nada edificante a vida que resultou Satildeo pecadores perfeitos repelem o amor de Deus e orgulham-se dos defeitos

AIMBIREcirc Bebem cuim a seu jeito como completos sandeus ao cauim rendem seu preito Esse cauim eacute que tolhe sua graccedila espiritual Perdidos no bacanal seus espiacuteritos se encolhem em nosso laccedilo fatal

164

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo se esforccedilam por orar na luta do dia a dia Isto eacute fraqueza de certo

AIMBIREcirc

Sua boca respira perto do pouco que Deus confia

SARAVAIA

Eacute verdade intimamente resmungam desafiando ao Deus que os estaacute guiando Dizem Seraacute realmente capaz de me ver passando

SAtildeO SEBASTIAtildeO (Para Saravaia)

Seraacutes tu um pobre rato Ou eacutes um gambaacute nojento Ou eacutes a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os iacutendios no mato

SARAVAIA

No anseio de devorar as almas sequer dormi

GUAIXARAacute

Cala-te Fale eu por ti

SARAVAIA

Natildeo vaacutes me denominar pra que natildeo me mate aqui Esconda-me antes dele

165

Eu por ti vigiarei

GUAIXARAacute

Cala-te Te guardarei Que a liacutengua natildeo te revele depois te libertarei

SARAVAIA

Se natildeo me viu safarei Inda posso me esconder

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Cuidado que lanccedilarei o dardo em que o flecharei

GUAIXARAacute

Deixa-o Vem de adormecer

SAtildeO SEBASTIAtildeO

A noite ele natildeo dormiu para os iacutendios perturbar

SARAVAIA

Isso natildeo se haacute de negar (Accediloita-o Guaixaraacute e diz)

GUAIXARAacute

Cala-te Nem mais um pio que ele quer te devorar

SARAVAIA

166

Ai de mim Por que me bates assim pois estou bem escondido (Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas palavras amigas Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba

167

disso natildeo os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos aprisionando

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e ao viacutecios bem se convertem agrave forccedila do nosso mando

GUAIXARAacute

Eu que te ajude a explicar As velhas como serpentes injuriam-se entre dentes maldizendo sem cessar

168

As que mais calam consentem Pecam as inconsequumlentes com intrigas bem tecidas preparam negras bebidas pra serem belas e ardentes no amor na cama e na vida

AIMBIREcirc

E os rapazes cobiccedilosos perseguindo o mulherio para escravas do gentio Assim invadem fogosos dos brancos o casario

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

SAtildeO LOURENCcedilO Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma que o bem procura Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

169

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou eu abandonaacute-los E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los Tanto confiaram em mim construindo esta capela plantando o bem sobre ela Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs daqui lhes darei sumiccedilo Deles nem sombra vereis Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas tridentes e alegrar as nossas gentes

AIMBIREcirc

170

Aqui vou com minhas garras meus longos dedos meus dentes

ANJO

Natildeo julgueis tolos dementes por no fogo esta legiatildeo Aqui estou com Sebastiatildeo e Satildeo Lourenccedilo natildeo tentem levaacute-los agrave danaccedilatildeo Pobres de voacutes que irritastes

de tal forma o bom Jesus Juro que em nome da cruz ao fogo vos condenastes (Aos santos) Prendei-os donos da luz (Os santos prendem os dois diabos)

GUAIXARAacute

Basta

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo Teu cinismo me agasta Destes provas que sobejam de querer destruir a igreja SAtildeO SEBASTIAtildeO (A Aimberecirc)

Grita Lamenta Te arrasta Te prendi

AIMBIREcirc

Maldito Seja (Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido)

ANJO

E tu que estaacute escondido seraacute acaso um morcego Sapo cururu minguaacute ou filhote de gambaacute ou bruxa pedindo arrego Sai daiacute seu fedorendo

171

abelha de asa de vento zorrilho maritaca seu lesma tamarutaca

SARAVAIA

Ai vida que me aprisionam Natildeo vecircs que morro de sono

ANJO

Quem eacutes tu

SARAVAIA

Sou Saravaia Inimigo dos franceses

ANJO

Teus tiacutetulos satildeo soacute estes SARAVAIA

Sou tambeacutem mestre em tocaia porco entre todas as reses

ANJO

Por isso eacutes sujo e enlameias tudo com teu negro rabo Veremos como pateias no fogo que a gente ateia

SARAVAIA

Natildeo Por todos os diabos Eu te dou ovas de peixe farinha de mandioca desde que agora me deixas te dou dinheiro aos feixes

172

ANJO

Natildeo te entendo maccedilaroca As coisas que me prometes em troca de onde roubaste Que morada assaltaste antes que aqui te escondeste Muito coisa tu furtaste

SARAVAIA

Natildeo somente o que falei Da casa dos bons cristatildeos foi bem pouco o que apanhei Tenho o que trago nas matildeos por muito que trabalhei Aqueles outros tecircm mais Para comprar cauim aos iacutendios em boa paz dei o que tinha e demais pois pobre acabei assim

ANJO

Vamos Restitui-lhes tudo o que tiveres roubado

SARAVAIA

Natildeo faccedilas isto estou becircbedo mais do que o demo rabudo da sogra do meu cunhado Tem paciecircncia me perdoa meu irmatildeo estou doente Das minhas almas presente farei a ti praacute que em boa hora as cucas lhes rebentes Leva o nome destes monstros e famoso ficaraacutes

173

ANJO

E onde lhes foste ao encontro

SARAVAIA

Fui pelo sertatildeo a dentro lacei as almas rapaz

ANJO

De que famiacutelias descendem

SARAVAIA

Desse assunto pouco sei Filhos de iacutendios talvez Na corda os enfileirei presos todos de uma vez Passei noites sem dormir nos seus lares espreitei fiz suas casas explodir suas mulheres lacei pra que natildeo possam fugir (Amarra-o o anjo e diz)

ANJO

Quantas maldades fizeste Por isso o fogo te espera Viveraacutes do que tramaste nesta abrasada tapera em que pro fim te pilhaste

SARAVAIA

Aimberecirc

AIMBIREcirc

Oi

174

SARAVAIA

Vem logo dar-me a matildeo Este louco me prendeu

AIMBIREcirc

A mim tambeacutem me venceu o flechado Sebastiatildeo Meu orgulho arrefeceu

SARAVAIA

Ai de mim Guaixaraacute dormes assim sem pensar em me salvar

GUAIXARAacute Estaacutes louco Saravaia Natildeo vecircs que Lourenccedilo ensaia maneira de me queimar

ANJO

Bem junto pois sois comparsas ardereis eternamente Enquanto noacutes Deo Gratias sob a luz da minha guarda viveremos santamente (Faz uma praacutetica aos ouvintes) Alegrai-vos filhos meus na santa graccedila de Deus pois que dos ceacuteus eu desci para junto a voacutes estar e sempre vos amparar dos males que haacute por aqui Iluminado esta aldeia junto de voacutes estarei por nada me afastarei - pois a isto me nomeia Deus Nosso Senhor e Rei

Ele que a cada um de voacutes um anjo seu destinou Que natildeo vos deixe mais soacutes e ao mando de sua voz os democircnios expulsou Tambeacutem Satildeo Lourenccedilo o virtuoso Servo de Nosso Senhor vos livra com muito amor terras e almas extremoso do democircnio enganador Tambeacutem Satildeo Sebastiatildeo valente santo soldado que aos tamoios rebelados deu outrora uma liccedilatildeo hoje estaacute do vosso lado E mais - Paranapucu

175

Jacutinga Moroacutei Sarigueacuteia Guiriri Pindoba Pariguaccedilu Curuccedila Miapei E a tapera do pecado a de Jabebiracica natildeo existe E lado a lado a naccedilatildeo dos derrotados no fundo do rio fica Os franceses seus amigos inutilmente trouxeram armas Por noacutes combateram Lourenccedilo jamais vencido e Satildeo Sebastiatildeo flecheiro Estes santos em verdade das almas se compadecem aparando-as desvanecem (Oacute armas da caridade) Do viacutecio que as envilece Quando o democircnio ameaccedilar vossas almas voacutes vereis com que forccedila hatildeo de zelar Santos e iacutendios sereis pessoas de um mesmo lar Tentai velhos viacutecios extirpar e as maldades caacute da terra evitai bebida e guerra adulteacuterio repudiai tudo o que o instinto encerra Amai vosso Criador cuja lei pura e isenta

Satildeo Lourenccedilo representa Engrandecei ao Senhor que de bens vos acrescenta Este mesmo Satildeo Lourenccedilo que aqui foi queimado vivo pelos maus feito cativo e ao martiacuterio foi infenso sendo o feliz redivivo Fazei-vos amar por ele e amai-o quanto puderdes que em sua lei nada se perde E confiando mais nele mais o ceacuteu se vos concede Vinde agrave direita celestial de Deus Pai ireis gozar junto aos que bem vatildeo guardar no coraccedilatildeo que eacute leal e aos peacutes de Deus repousar

(Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede)

Cantemos todos cantemos Que foi derrotado o mal Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima repeticcedilatildeo da cantiga choram)

CANTIGA

Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado (Voltam os santos)

Alegrai-vos vivei bem vitoriosos do viacutecio aceitai o sacrifiacutecio que ao amor de Deus conveacutem Daiacute fuga ao Demo-ningueacutem Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado

176

TERCEIRO ATO Depois de Satildeo Lourenccedilo morto na grelha o Anjo fica em sua guarda e chama os dois diabos Aimbirecirc e Saravaia que venham sufocar os imperadores Deacutecio e Valeriano que estatildeo sentados em seus tronos

ANJO

Aimbirecirc Estou chamando vocecirc Apressa-te Corre Jaacute

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para dar-te como presa De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

AIMBIREcirc

Boa Me fazes contente Agrave forccedila os castigarei e no fogo os queimarei como diabo eficiente Meu oacutedio satisfarei

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los Que para o sol sejam cegos Ide ao fogo cozinhaacute-los Castiga com teus vassalos

177

estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto Sejam tais ordens cumpridas Reunirei meus democircnios Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que temos planos medonhos

SARAVAIA

Jaacute de nego me pintei oacute meu avocirc jaguaruna e o cauim preparei veraacutes como beberei nesta festa da fortuna Que vejo Um temiminoacute Ou filho de guaianaacute Seraacute esse um guaitacaacute que agrave mesa do jacareacute sozinho vou devorar

(Vecirc o Anjo e espanta-se)

E este paacutessaro azulatildeo quem seraacute que assim me encara Algum parente de arara

AIMBIREcirc

Eacute o anjo que em nossa matildeo potildee duas presas bem raras

SARAVAIA

Meus capangas atenccedilatildeo Tataurana Tamanduaacute vamos com calma por laacute que esses monstros quereratildeo

178

por certo me afogar

AIMBIREcirc

Vamos

SARAVAIA

Ai os mosquitos me mordem Espera ou me comeratildeo Tenho medo quem me acode Sou pequenino e eles podem tragar-me de supetatildeo

AIMBIREcirc

Os iacutendios que natildeo se fiam nesta conversa e se escondem se os mandam executar

SARAVAIA

Tecircm razatildeo se desconfiam vivem sempre a se lograr

AIMBIREcirc

Cala a boca beberratildeo soacute por isso eacutes tatildeo valente moleiratildeo impertinente

SARAVAIA

Ai de mim me prenderatildeo mas vou por te ver contente E a quem vamos devorar

AIMBIREcirc

179

A algozes de Satildeo Lourenccedilo

SARAVAIA

Aqueles cheios de ranccedilo Com isto eu vou mudar meu nome de que me canso Muito bem Suas entranhas sejam hoje o meu quinhatildeo

AIMBIREcirc

Vou morder seu coraccedilatildeo

SARAVAIA

E os que natildeo nos acompanham sua parte comeratildeo (Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Suacutes Caborecirc vecirc se te inflama pra comer estes perus (Acodem todos os quatro com suas armas)

TATAURANA

Aqui estou com a muccedilurana e os braccedilos lhe comerei A Jaguaraccedilu darei o lombo a Urubu o cracircnio e as pernas a Caborecirc URUBU Aqui cheguei As tripas recolherei e com os bofes terei a panela a derramar E esta panela verei

180

minha sogra cozinhar

JAGUARUCcedilU

Com esta ingapema dura as cabeccedilas quebrarei e os miolos comerei Sou guaraacute onccedila criatura e antropoacutefago serei

CABOREcirc

E eu que em demandas andei aos franceses derrotando para um bom nome ir logrando agora contigo irei estes chefes devorando

SARAVAIA

Agora quietos De rastros natildeo nos viram Vou agrave frente Que natildeo escapem da gente Vigiarei No tempo exato ataquemos de repente

(Vatildeo todos agachados em direccedilatildeo a Deacutecio e Valeriano que conversam)

DEacuteCIO

Amigo Valeriano minha vontade venceu Natildeo houve arte no ceacuteu que livrasse do meu plano o servo do Galileu Nem Pompeu e nem Catatildeo nem Cesar nem o Africano nenhum grego nem troiano puderam dar conclusatildeo a um feito tatildeo soberano

181

VALERIANO

O remate gratildeo-Senhor desta tatildeo grande faccedilanha foi mais que vencer Espanha Jamais rei ou imperador logrou coisa tatildeo estranha Mas Senhor esse quem eacute que vejo ali tatildeo armado com espadas e cordel e com gente de tropel vindo tatildeo acompanhado

DEacuteCIO

Eacute o grande deus nosso amigo Juacutepiter sumo senhor que provou grande sabor com o tremendo castigo da morte deste traidor E quer para reforccedilar as penas deste rufiatildeo nosso impeacuterio acrescentar com sua potente matildeo pela terra e pelo mar

VALERIANO

Mais me parece eacute que vem a seus tormentos vingar e a noacutes ambos enforcar Oh que cara feia tem Comeccedilo a me apavorar

DEacuteCIO

Enforcar Quem a mim pode matar ou mover meus fundamentos Nem a exaltaccedilatildeo dos ventos Nem a braveza do mar nem todos os elementos

182

Natildeo temas que meu poder o que os deuses imortais me quiseram conceder natildeo se poderaacute vencer pois natildeo haacute forccedilas iguais De meu cetro imperial pendem reis tremem tiranos Venccedilo a todos os humanos e posso ser quase igual a esses deuses soberanos

VALERIANO

Oh que terriacutevel figura Natildeo posso mais aguardar que jaacute me sinto queimar Vamos que eacute grande loucura tal encontro aqui esperar Ai ai que grandes calores Natildeo tenho nenhum sossego Ai que poderosas dores Ai que feacutervidos ardores que me abrasam como fogo

DEacuteCIO

Oh paixatildeo Ai de mim que eacute o Plutatildeo chegando pelo Aqueronte ardendo como ticcedilatildeo a levar-nos de roldatildeo ao fogo do Flegetonte Oh coitado que me queimo Esse queimado me queima com grande dor

Oh infeliz imperador Todo me vejo cercado de penas e de pavor pois armado o diabo com seu dardo mais as fuacuterias infernais vecircm castigar-nos demais Jaacute nem sei o que hei falado com anguacutestias tatildeo mortais

VALERIANO

O Deacutecio cruel tirano Jaacute pagas e pagaraacute Contigo Valeriano porque Lourenccedilo cristatildeo assado nos assaraacute

183

AIMBIREcirc

Ocirc Castelhano Bom Castelhano parece Estou bem alegre mano que Espanhol seja o profano que no meu fogo padece Vou fingir-me castelhano e usar de diplomacia com Deacutecio e Valeriano porque o espanhol ufano sempre guarda a cortesia Oh mais alta majestade Beijo-vos a matildeo mil vezes por vossa gratilde-crueldade

pois justiccedila nem verdade guardastes sendo juizes Sou mandado por Satildeo Lourenccedilo queimado levaacute-los agrave minha casa onde seja confirmado vosso imperial estado em fogo que sempre abrasa Oh que tronos e que camas eu vos tenho preparadas nessas escuras moradas de vivas e eternas chamas de nunca ser apagadas

VALERIANO

Ai de mim

AIMBIREcirc

Vieste do Paraguai Que falais em Carijoacute Sei todas liacutenguas de cor Avanccedila aqui Saravaia Usa tu golpe maior

VALERIANO

Basta Que assim me assassinas natildeo tenho pecado nada Meu chefe eacute a presa acertada

SARAVAIA

Natildeo eacutes tu que me fascinas oacute presa bem cobiccedilada

184

DEacuteCIO

Oacute miseraacutevel de mim que nem basta ser tirano nem falar em castelhano Que eacute do mando em que me vi e o meu poder soberano

AIMBIREcirc

Jesus Deus grande e potente que tu traidor perseguiste te daraacute sorte mais triste entregando-te em meu dente a que malvado serviste Pois me honraste e sempre me contentaste ofendendo ao Deus eterno

Eacute justo pois que no inferno palaacutecio que tanto amaste natildeo sintas o mal do inverno Porque o oacutedio inveterado do teu duro coraccedilatildeo natildeo pode ser abrandado se natildeo for jaacute martelado com a aacutegua do Flegeton

DEacuteCIO

Olha que consolaccedilatildeo para quem se estaacute queimando Sumos deuses para quando adiais minha salvaccedilatildeo que vivo estou me abrasando Ai ai Que mortal desmaio Esculaacutepio natildeo me acodes Oh Juacutepiter porque dormes Que eacute do vosso raio Por que eacute que natildeo me socorres

AIMBIREcirc

Que dizeis De que mal voacutes padeceis Que pulso mais alterado Eacute grande dor de costado este mal que morreis Haveis de ser bem sangrado Haacute dias que esta sangria se guardava para voacutes

que sangraacuteveis noite e dia com dedicada porfia aos santos servos de Deus Muito desejo eu beber vosso sangue imperial Oh natildeo me leveis a mal que com isso quero ser homem de sangue real

DEacuteCIO

Que dizeis Que disparate e elegante desvario Joguem-me dentro de um rio antes que o fogo me mate oacute deuses em que confio Natildeo quereis socorrer-me ou natildeo podeis Oacute malditos fementidos

ingratos desconhecidos que pouco vos condoeis de quem fostes tatildeo servidos Se agora voar pudesse vos iria derrocar dos vossos tronos celestes feliz se a mim me coubesse no fogo vos projetar

AIMBIREcirc

Parece-me que eacute chegada a hora do frenesi e com chama redobrada a qual seraacute descuidada dos deuses a quem servis Satildeo armas dos audazes cavaleiros que usam palavroacuterio humano E por isso tatildeo ufano hoje vindes acolhecirc-los no romance castelhano

SARAVAIA

Assim eacute Pensava dar de reveacutes golpes de afiados accedilos mas enfim nossos balaccedilos se chocaram atraveacutes com bem poucos canhonaccedilos Mas que boas bofetadas lhes reservo para dar Os tristes sem descansar agrave forccedila de tais pauladas com catildees hatildeo de ladrar

186

VALERIANO

Que ferida Tira-me logo esta vida pois minha alta condiccedilatildeo contra justiccedila e razatildeo veio a ser tatildeo abatida que morro como ladratildeo

SARAVAIA

Natildeo eacute outro o galardatildeo que concedo aos meus criados senatildeo morrer enforcados e depois sem remissatildeo ao fogo ser condenados

DEacuteCIO

Essa eacute a pena redobrada que me causa maior dor que eu universal senhor morra morte desonrada na forca como traidor Ainda se fosse lutando dando golpes e reveses pernas e braccedilos cortando como fiz com os franceses acabaria triunfando

AIMBIREcirc

Parece que estais lembrando poderoso imperador quando com bravo furor matastes traiccedilatildeo armando Felipe vosso senhor Por certo que me alegrais e se cumpre meus anseios ante desabafos tais porque o fogo em que queimais provoca tais devaneios

187

DEacuteCIO

Bem entendo que este fogo em que me acendo merece-me a tirania pois com tatildeo feroz porfia aos cristatildeos martirizando pelo fogo os consumia Mas que em minha monarquia acabe com tal pregatildeo pois morrer como ladratildeo eacute muito triste agonia e dobrada confusatildeo

AIMBIREcirc

Como Pedis confissatildeo Sem asas quereis voar Ide se quereis achar aos vossos atos perdatildeo agrave deusa Pala rogar Ou a Nero esse cruel carniceiro do fiel povo cristatildeo Aqui estaacute Valeriano vosso leal companheiro buscai-o por sua matildeo

DEacuteCIO

Esses amargos chistes e agressotildees me acrescentam em paixotildees e mais dores com tatildeo profundos ardores como de ardentes ticcedilotildees E com isto crescem mais os fogos em que padeccedilo Acaba que me ofereccedilo em tuas matildeos Satanaacutes ao tormento que mereccedilo

188

AIMBIREcirc

Oh quanto vos agradeccedilo por esta boa vontade Eu com liberalidade quero dar-lhe bom refresco para vossa enfermidade Na cova onde o fogo se renova com ardores perenais os vossos males fatais aiacute teratildeo grande prova das agruras imortais

DEacuteCIO

Que fazer Valeriano bom amigo Testemunharaacutes comigo desta pena envolvido na cadeia de fogo deste castigo

VALERIANO

Em maacute hora Jaacute satildeo horas Vamos logo deste fogo ao outro fogo eternal laacute onde a chama imortal nunca nos daraacute sossego Suacutes asinha Vamos agrave nossa cozinha Saravaia

AIMBIREcirc

Aqui deles natildeo me afasto Nas brasas seratildeo bom pasto maldito quem nelas caia

DEacuteCIO

Aqui abrasado estou

189

Assa-me Lourenccedilo assado De soberano que sou vejo que Deus me marcou por ver seu santo vingado

AIMBIREcirc

Com efeito quiseste abrasar a jeito o virtuosos Satildeo Lourenccedilo Hoje te castigo e venccedilo e sobre as brasas te deito para morrer segundo penso (Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins e cada dois levam o seu)

Vinde aqui e aos malditos conduzi para em bom queimarem seus corpos sujos tostarem na festa em que os seduzi para cozidos bailarem

(Ficam ambos os democircnios no terreiros com as coroas dos imperadores na cabeccedila)

SARAVAIA

Sou o grande vencedor o que as maacutes cabeccedilas quebra sou um chefe de valor e hoje me decido por me chamar Cururupeba Como eles mato os que estatildeo em pecado e os arrasto em minhas chamas Velhos moccedilos jovens damas tenho sempre devorado De bom algoz tenho fama

QUARTO ATO Tendo o corpo de Satildeo Lourenccedilo amortalhado e posto na tumba entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus a encerrar a obra e no fim acompanham o santo agrave sepultura

190

ANJO

Vendo nosso Deus benigno vossa grande devoccedilatildeo que tendes e com razatildeo a Lourenccedilo o maacutertir digno de toda a veneraccedilatildeo determinam por seus rogos e martiacuterio singular a todos sempre ajudar para que escapeis dos fogos em que os maus se hatildeo de queimar Dois fogos trazia nalma com que as brasas resfriou a no fogo em que se assou com tatildeo gloriosa palma dos tiranos triunfou Um fogo foi o temor do bravo fogo infernal e como servo leal por honrar a seu Senhor fugiu da culpa mortal

Outro foi o Amor fervente de Jesus que tanto amava que muito mais se abrasava com esse fervor ardente que coo fogo em que se assava Estes o fizeram forte Com estes purificado como ouro refinado padeceu tatildeo crua morte por Jesus seu doce amado Estes vos manda o Senhor a ganhar vossa frieza para que vossa alma acesa de seu fogo gastador fique cheio de pureza Deixai-vos deles queimar como o maacutertir Satildeo Lourenccedilo e sereis um vivo incenso que sempre haveis de cheirar na corte de Deus imenso

TEMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Pecador sorves com grande sabor o pecado e natildeo ficas afogado com teus males E tuas chagas mortais natildeo sentes desventurado O inferno como seu fogo sempiterno Jaacute te espera se natildeo segues a bandeira

da cruz sobre a qual morreu Jesus para que tua morte morra Deus te envia esta mensagem com amor a mim que sou seu Temor me conveacutem declarar o que conteacutem para que temas ao Senhor

(Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Espantado estou de ver pecador teu vatildeo sossego Com tais males a fazer como vives sem temer aquele espantoso fogo Fogo que nunca descansa mas sempre provoca a dor e com seu bravo furor

dissipa toda a esperanccedila ao maldito pecador Pecador como te entregas tatildeo sem freio ao viacutecio extremo Dos viacutecios de que estaacutes cheios engolindo tatildeo agraves cegas a culpa com seu veneno

Veneno de maldiccedilatildeo tragas sem nenhum temor e sem sentir sua dor deleites da carnaccedilatildeo sorves com grande sabor Seraacute o sabor do pecado muito mais doce que o mel mas o inferno cruel depois te daraacute um bocado bem mais amargo que o fel Fel beberaacutes sem medida pecador desatinado tua alma em chamas ardida Esta seraacute a saiacuteda do deleite do pecado Do pecado que tu amas Lourenccedilo tanto escapou que mil penas suportou e queimado pelas chamas por natildeo pecar expirou Ele a morte natildeo temeu Tu natildeo temes o pecado no qual te tem enforcado Lucifer que te afogou

e natildeo ficas afogado Afogado pela matildeo do Diabo pereceu Deacutecio com Valeriano infiel cruel tirano no fogo que mereceu Tua feacute merece a vida mas com pecados mortais quase a tiveste perdida e teu Deus bem sem medida ofendeste com teus males Com teus males e pecados tua alma de Deus alheia da danaccedilatildeo na cadeia haacute de pagar com os danados a culpa que a incendeia Pena sem fim te daratildeo dentre os fogos infernais teus deleites sensuais Teus tormentos dobraratildeo e tuas chagas mortais Que mortais satildeo tuas feridas pecador Porque natildeo choras

Natildeo vecircs que nestas demoras estatildeo todas corrompidas a cada dia pioras Pioras e te confinas mas teu perigoso estado na pressa e grande cuidado com que ao fogo te destinas natildeo sentes desventurado Oh descuido intoleraacutevel de tua vida Tua alma estaacute confundida

no lodo e tu vais rindo de tudo natildeo sentes tua caiacuteda Oh traidor Que negas teu Criador Deus eterno que se fez menino terno por salvar-te E tu queres condenar-te e natildeo temes ao inferno

Ah insensiacutevel Natildeo calculas o terriacutevel espanto que causaraacute o juiz quando viraacute com carranca muito horriacutevel e agrave morte te entregaraacute

E tua alma seraacute sepultada em pleno inferno onde morte natildeo teraacute mas viva se queimaraacute com seu fogo sempre eterno

Oh perdido Ali seraacutes consumido sem nunca te consumir Teraacutes vida sem viver com choro e grande gemido teraacutes morte sem morrer Pranto seraacute teu sorrir sede sem fim te abeberra fome que em comer se gera teu sono nunca dormir tudo isto jaacute te espera Oh morfio Pois tu veras de continuo ao horrendo Lucifer sem nunca chegar a ver aquele molde divino de quem tiras todo o ser Acaba jaacute de temer a Deus que sempre te espera correndo por sua esteira pois natildeo lhes vai pertencer se natildeo lhe segues a bandeira Homem louco Se teu coraccedilatildeo jaacute toco mudar-se-atildeo alegrias em tristezas e agonias Olha que te falta pouco

para fenecer teus dias Natildeo peques mais contra Aquele que te ganhou vida e luz com seu martiacuterio cruel bebendo vinagre e fel no extremo lenho a cruz Oh malvado Ele foi crucificado sendo Deus por te salvar Pois que podes esperar se foste tu o culpado e natildeo cessas de pecar Tu o ofendes ele te ama Cegou-se por dar-te a luz Tu eacutes mau pisas a cruz sobre a qual morreu Jesus Homem cego porque natildeo comeccedilas logo a chorar por teu pecado E tomar por advogado a Lourenccedilo que no fogo por Jesus morreu queimado Teme a Deus juiz tremendo que em maacute hora te socorra em Jesus tatildeo soacute vivendo pois deu sua vida morrendo para que tua morte morra

AMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Ama a Deus que te criou homem de Deus muito amado Ama com todo cuidado a quem primeiro te amou Seu proacuteprio Filho entregou agrave morte por te salvar Que mais te podia dar

se tudo o que tem te dou Por mandado do Senhor te disse o que tens ouvido Abre todo teu sentido porque eu que sou seu Amor seja em ti bem imprimido (Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Todas as coisas criadas conhecem seu Criador Todas lhe guardam amor

pois nele satildeo conservadas cada qual em seu vigor Pois com tanta perfeiccedilatildeo

193

sua ciecircncia te formou homem capaz de razatildeo de todo o teu coraccedilatildeo ama a Deus que te criou Se amas a criatura por se parecer formosa ama a visatildeo graciosa desta mesma formosura por sobre todas as coisas Dessa divina lindeza deves ser enamorado Seja tua alma presa daquela suma beleza homem de Deus muito amado Aborrece todo o mal com despeito e com desdeacutem E pois que eacute racional abraccedila a Deus imortal todo sumo e uacutenico bem Este abismo de fartura

que nunca seraacute esgotado esta fonte viva e pura este rio de doccedilura ama com todo cuidado Antes que criasse nada jaacute a alma majestade te havia a vida gerado e tua alma abrasada com eterna caridade Por fazer-te todo seu com amor te cativou e pois que tudo te deu daacute tu todo o maior que eacute teu a quem primeiro te amou E deu-te alma imortal e digna de um Deus imenso para que fosses suspenso nele esse bem eternal que eacute sem fim e sem comeccedilo

Depois que em morte caiacuteste com vida te levantou Porque sair natildeo conseguiste da culpa em que te fundiste seu proacuteprio filho entregou Entregou-o por escravo deixou que fosse vendido para que tu redimido do poder do leatildeo bravo fosses sempre agradecido Para que natildeo morras morre com amor bem singular Pois quanto deves amar a Deus que entregar-se quer agrave morte por te salvar O Filho que o Padre deu a seu Pai te daacute por pai e sua graccedila te infundiu

e quando na cruz morreu deu-te por matildee sua Matildee Deu-te feacute com esperanccedila e a si mesmo por manjar para em si te transformar pela bem aventuranccedila Que mais te podia dar Em paga de tudo isto oh ditoso pecador pede apenas teu amor Despreza pois todo o resto por ganhar a tal Senhor Daacute tua vida pelos bens que Sua morte te ganhou Eacutes seu nada tens de teu Daacute-lhe tudo quanto tens pois tudo o que tem te deu

194

DESPEDIDA

Levantai os olhos ao ceacuteu meus irmatildeos Vereis a Lourenccedilo reinando com Deus por voacutes implorando junto ao rei dos ceacuteus que louvais seu nome aqui neste chatildeo Daqui por diante tende grande zelo que Deus seja sempre temido e amado e maacutertir tatildeo santo de todos honrado Terei seus favores e doce desvelo Pois que celebrai com tal devoccedilatildeo

seu claro martiacuterio tomai meu conselho sua vida e virtudes tende por espelho chamando-o sempre com grande afeiccedilatildeo Tereis por seus rogos o santo perdatildeo e sobre o inimigo perfeita vitoacuteria E depois da morte voacutes vereis na gloacuteria a cara divina com clara visatildeo

(LAUS DEO)

QUINTO ATO

Danccedila de doze meninos que se fez na procissatildeo de Satildeo Lourenccedilo

1ordm) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando Por teus rogos desejando Deus nos faccedila venturosos nosso coraccedilatildeo guardando

2ordm) Noacutes confiamos em ti Lourenccedilo santificado que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos viacutecios jaacute desligados nos pajeacutes natildeo crendo mais em suas danccedilas rituais nem seus maacutegicos cuidados

3ordm) Como tu que a confianccedila em Deus tatildeo bem resguardaste que o dom de Jesus nos baste pai da suprema esperanccedila

4ordm) Pleno do divino amor

195

foi teu coraccedilatildeo outrora Zela pois por noacutes agora Amemos nosso Criador pai nosso de cada hora

5ordm) Obedeceste ao Senhor cumprindo sua palavra Vem que nossa alma escrava de teu amor neste dia te imita em sabedoria

6ordm) Milagroso tu curaste teus filhos tatildeo santamente Suas almas estatildeo doentes deste mal que abominaste Vem curaacute-los novamente

7ordm) Fiel a Nosso Senhor a morte tu suportaste Que a forccedila disto nos baste para suportar a dor pelo mesmo Deus que amaste

8ordm) Pelo terriacutevel que eacutes Jaacute que os democircnios te temem nas ocas onde se escondem vem calcaacute-los sob os peacutes pra que as almas natildeo nos queimem

9ordm) Hereges que este indefeso corpo no teu assaram e a carne toda queimaram em grelhas de ferro aceso Choremos do alto desejo de Deus Padre contemplar Venha Ele neste ensejo nossas almas inflamar

10ordm) Os teus verdugos extremos treme algozes de Deus Vem leva-nos como teus que ao teu lado ficaremos assustando estes ateus

11ordm) Estes que te deram morte ardem no fogo infernal Tu na gloacuteria celestial

196

gozaraacutes divina sorte E contigo aprenderemos a amar a Deus no mais fundo do nosso ser e no mundo longa vida gozaremos

12ordm) Em tuas matildeos depositamos nosso destino tambeacutem Em teu amor confiamos

e uns aos outros nos amamos para todo o sempre Ameacutem

CAI O PANO

197

APEcircNDICE 2 - A MISSA E OS SIacuteMBOLOS CULTURAIS DE TRANSFORMACcedilAtildeO DO HOMEM

Partindo do princiacutepio de que a missa eacute um ritual miacutetico pertencente aos

preceitos da Igreja Catoacutelica desde os primoacuterdios do cristianismo e portanto

pertencente tambeacutem a Feacute natildeo poderia deixar de ser discutida neste trabalho pois

foi atraveacutes dela aleacutem dos sacramentos da Igreja que a religiatildeo em questatildeo se fixa

na mente miacutetica dos homens ateacute a data de hoje sob a forma de um ritual de

contato com a divindade

Justamente por ter sua origem em um mito talvez um dos maiores

mitos da atualidade eacute claro que nem a psicologia a sociologia a antropologia ou

a histoacuteria teria como dar conta de explicar esse grande misteacuterio da Igreja visto

que a feacute ultrapassa os domiacutenios dessas ciecircncias e possivelmente ateacute a filosofia e

da metafiacutesica mas podemos aqui estudar esses siacutembolos de transformaccedilatildeo do

ponto de vista fenomenoloacutegico e eacute o que faremos atraveacutes da visatildeo de Carl Gustav

Jung

Porque recebi do Senhor o que vos transmiti O Senhor

Jesus na noite em que foi entregue tomou o patildeo e depois de dar

graccedilas partiu-o e disse Isto eacute o meu corpo que se daacute por voacutes fazei

isto em memoacuteria de mim E do mesmo modo depois de cear tomou

198

o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o Novo Testamento do meu sangue

todas as vezes que o beberdes fazei-o em memoacuteria de mim Pois

todas as vezes que comerdes este patildeo e beberdes este caacutelice

anunciarei a morte do Senhor ateacute que Ele venha 145

Foi nessa Ceia que Cristo teria pronunciado as palavras da missa Eu

sou a vida verdadeira Permanecei em mim como eu [permaneccedilo] em voacutes eu sou

a videira voacutes sois os sarmentos146

Como a intenccedilatildeo eacute a de me limitar ao siacutembolo da transformaccedilatildeo na

missa natildeo tenho aqui a proposiccedilatildeo de explicar os aspectos de sua composiccedilatildeo

estrutural mas conforme Jung a missa eacute uma celebraccedilatildeo eucariacutestica muito bem

elaborada e com a seguinte estrutura

145 Citaccedilotildees que se seguem sobre a Biacuteblia foram tiradas do Novo Testamento traduzido pelo PeDr Frei Mateus Hoepers e publicado pela Vozes ( apud JUNG1985p2) 146 lat sartmentumi sarmento ramo ou vara de videira

199

Temos que iniciar essa explicaccedilatildeo e a citaccedilatildeo dos siacutembolos da missa

como uma das ferramentas de manutenccedilatildeo da feacute do sacrifiacutecio e do envolvimento

com o Deus e a comunidade

Quanto ao sacrifiacutecio o mito cristatildeo nos revela duas formas distintas de

representaccedilatildeo o deipnon e a thysia Deipnon traz o significado de ceia

propriamente dito definindo a ceia abenccediloada daqueles que passaram ou

participaram de algum sacrifiacutecio onde se entende que os deuses estejam

presentes Essa comida eacute abenccediloada pois o que passou por um sacrificium

tornou-se sagrado

Thysia por sua vez vem significar o entregar o oferecer o imolar e

tambeacutem o soprar com forccedila o que vem relacionar-se com o alimento usado nas

sociedades antigas e primitivas de enviar aos deuses a fumaccedila que sobe das

oferendas ateacute a morada dos deuses simbolizando o espiacuterito o pneuma como era

concebido nos primoacuterdios do cristianismo e mesmo na Idade Meacutedia

Graccedilas ao conceito de ceia para os cristatildeos a palavra corpo de

Cristo logo foi traduzida por carne

Principalmente para os sacerdotes esses conceitos inseridos nos

siacutembolos da missa levam um peso muito grande como nos mostra Hb 717 Tu

eacutes sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquizedeque Onde o

oferecimento do sacrifiacutecio perene e o sacerdoacutecio eterno constituem partes

integrantes e necessaacuterias do conceito de missa (JUNG1985 p3) As ideacuteias do

sacerdoacutecio eterno e do sacrifiacutecio estatildeo intimamente ligadas ao misteacuterio da missa e

com a transformaccedilatildeo das substacircncias da qual falaremos em seguida

200

O iniacutecio do rito da transformaccedilatildeo do indiviacuteduo cristatildeo quer a do

sacerdote quer a do ouvinte e assistente da missa inicia-se juntamente com o

ofertoacuterio momento em que se preparam as oferendas a Deus

O primeiro dos pontos eacute a oblaccedilatildeo do patildeo onde o sacerdote coloca a

hoacutestia na patena eleva-a em direccedilatildeo agrave cruz do altar faz o sinal da cruz e eleva a

hoacutestia o patildeo o corpo a carne de Cristo e a relaciona com seu sacrificium

atribuindo assim agrave hoacutestia a qualidade de coisa sagrada Ateacute entatildeo a hoacutestia era

apenas patildeo e considerada como corpus imperfectum

Isso tambeacutem ocorre com o vinho mesmo com sua natureza mais

espiritual tambeacutem eacute considerado corpus imperfectum ateacute que nessa mesma

preparaccedilatildeo ao vinho eacute misturada a aacutegua147

Satildeo Cipriano - bispo de Cartago

relaciona o vinho com Cristo e a

aacutegua com a comunidade que participa da missa parte de suma importacircncia de

todo o rito pois sem a comunidade para receber o rito ele natildeo pode existir148

Nesta parte especial da missa como o iniacutecio desse ritual do mito

cristatildeo os corpus imperctum estatildeo sendo transformados no corpus

glorificationis no corpo ressuscitado

147 Originariamente a mistura de aacutegua com vinho estava ligada ao antigo costume cultural de beber apenas vinho misturado com aacutegua Por isso um bebedor isto eacute um alcooacutelatra era chamado de acratopotes beberratildeo de vinho natildeo misturado (Jung 1985 p7-312) 148 Em Ap1715 se lecirc Aquae quas vidisti ubi meretrix sedet populi sunt et gentes et linguae acuteAs aacuteguas que vecircs sobre as quais a prostituta estaacute sentada satildeo os povos e as multidotildees as naccedilotildees e as liacutenguas Na alquimia meretrix prostituta eacute o nome da prima mateacuteria do corpus imperfectum Elevada a aacutegua a condiccedilatildeo de sagrada misturada ao vinho vem significar que somente uma comunidade perfeita pode se juntar a Cristo (idem)

201

O ponto seguinte do rito da missa o sacerdote mostrando agrave

comunidade eleva o caacutelice com a mistura jaacute preparada e invoca o Espiacuterito Santo

Veni espiritus sanctificator que eacute quem produz e transforma esse vinho em

sangue de Cristo perante toda uma plateacuteia que crecirc nessa transformaccedilatildeo

recebendo culturalmente mais informaccedilotildees sobre o mito que se refere a sua feacute

religiosa

A parte seguinte eacute a da incensaccedilatildeo das oferendas e do altar onde com

a fumaccedila do turiacutebulo oferece um sacrifico que eacute um resquiacutecio da thysia de que

falamos anteriormente no intuito de espiritualizar todos os objetos fiacutesicos do altar

e por estar enchendo o ar com perfume do pneuma espantar as eventuais

forccedilas demoniacuteacas que pudessem estar presentes elevando as oraccedilotildees a

Deus149

Em seguida vem a invocaccedilatildeo ou a epiclese onde atraceacutes do

Suspiece sancta Trinitas (Recebei oacute Trindade santa) satildeo iniciadas as oraccedilotildees

propiciatoacuterias em que se garante que as oferendas seratildeo aceitas por Deus A

certeza da aceitaccedilatildeo se prende a se crer que uma coisa chamada atraveacutes de seu

nome tem o poder de tornar presente o que se convoca Assim por meio do

Adesto adesto Jesu boneacute Pontifex in medio nostri sicut fuisti in medio

discopulorum tuorum (Vinde vinde oacute Jesus o Pontiacutefice misericordioso ficai

conosco como estiveste como os vossos disciacutepulos) atraveacutes do chamamento se

149 Eacute dito nesse instante da missa as palavras Dirigatur Domine oratio mea sicut incensum in conspectu tuo (Eleva-se Senhor a minha oraccedilatildeo como o incenso agrave Vossa presenccedila) e Accedat in nobis Dominus ignem sui amoris

(acenda ograve Senhor em noacutes o fogo de seu amor) (idem Jung-1985-p11-320)

202

obteacutem a certeza da presenccedila e da manifestaccedilatildeo do Senhor no momento que eacute

considerado a ponto alto da celebraccedilatildeo da missa

Desse ponto em diante segue a consagraccedilatildeo do patildeo e do caacutelice

momento em que se daacute a transubstanciaccedilatildeo ou a transformaccedilatildeo das substacircncias

do patildeo e do vinho em corpo e sangue do Senhor

Estamos aqui apenas relatando de forma didaacutetica os passos da

celebraccedilatildeo da missa portanto natildeo temos interesse de discutir esses passos

quanto a seu conteuacutedo e sim mais adiante analisarmos psicologicamente esses

siacutembolos No entanto apenas como curiosidade jaacute que vaacuterios termos foram

colocados em latim e posteriormente os traduzimos nos informa Jung (1985-p12)

as palavras ditas pelo sacerdote no momento da consagraccedilatildeo do patildeo e do vinho

natildeo devem ser traduzidas em liacutengua profana devendo ser ditas apenas e tatildeo

somente em latim por serem palavras consideradas sagradas mesmo que alguns

missais possam conter essa traduccedilatildeo dessa forma as citaremos no rodapeacute desta

paacutegina com o texto em latim obtida na fonte acima descrita150

Nesse ponto do ritual encontram-se devidamente consagrados e

purificados tanto o sacerdote como a comunidade as oferendas como o altar

totalmente preparados como uma unidade miacutestica para a epifania do Senhor isto

150 Consagraccedilatildeo do patildeo Qui pridie quam pateretur accepit panem in sanctas ac venerabiles manus suas et elevatis oculis in caelum ad Deum Patrem suum omnipotentem tibi gratias agens benedixit fregit deditque discipulis suis dicens Accipite et manducate ex hoc omnes Hoc est enim Corpus meum

Consagraccedilatildeo do caacutelice Simili modo postquam cenatum est accipiens et hunc praeclarum calicem in sancta ac venerabiles manus suas item tibi gratias agens benedixit deditque discipulis suis dicens Accipite et bibite ex eo omnes Hic est enim Calix Sanguinis mei novi et aeterni testamenti mysterium fidei qui pro vobis et pro multins effundetur in remissionem peccatorum Haec quosticumque faceritis in mei memoriam facietis

203

eacute o momento da manifestaccedilatildeo reveladora de Cristo de forma viva no Corpus

mysticum do sacrifiacutecio divino como se nesse momento se abrisse uma porta

onde do outro lado exista um espaccedilo liberto do tempo e do espaccedilo porta essa

aberta natildeo pelo sacerdote mas por Cristo como agens como agente dessa

transformaccedilatildeo

O sacerdote entatildeo levanta as substacircncias consagradas e as apresenta

agrave comunidade mostrando que o Homem-Deus tornou-se presente na hoacutestia

consagrada Pede entatildeo o sacerdote ao Senhor que receba a hoacutestia imaculada e

que abenccediloe a todos com sua graccedila Faz trecircs sinais da cruz com a hoacutestia sobre o

caacutelice pronunciando per ipsum et cum ipso et in ipso (Por Ele com Ele e Nele)

traccedilando outros trecircs sinais entre ele e o caacutelice para criar a relaccedilatildeo de identidade

entre a hoacutestia o caacutelice e o sacerdote para entatildeo poder incluir nas graccedilas a serem

recebidas a comunidade que aguarda ser livrada de todos os males passados

presentes e futuros Divide a hoacutestia em duas partes significando a morte de Cristo

glorificado do rex gloriae De uma das partes tira uma pequena partiacutecula que

seraacute colocada no vinho dentro do caacutelice durante a consignaacutetio e a commixtio

momento da mistura do patildeo com o vinho do corpo com o sangue onde satildeo ditas

as seguintes palavras Haec commixtrio et consecratio Corporis et Sanguinis

Domini nostri

Dessa forma sacerdote o corpo e o sangue do Senhor unidos agrave

comunidade fazem a unidade miacutetica da missa assim como o patildeo resulta de

muitos gratildeos o vinho de muitos bagos de uva assim tambeacutem o Corpus

204

mysticum a Igreja eacute constituiacutedo pela multidatildeo daqueles que crecircem151 e possuem

em si como visatildeo de mundo o mito cristatildeo

Eacute importante ressaltar aqui que natildeo procuro fazer nenhuma

interpretaccedilatildeo das partes que compotildeem a missa e sim com referecircncia ao mito

cristatildeo analisar psicologicamente esses siacutembolos que contribuem como

transmissatildeo cultural e como forma de propagaccedilatildeo universal do cristianismo

Vejamos o ato de pensar ou de crer expressam uma realidade

psicoloacutegica do indiviacuteduo que crecirc e nesse caso do mito e da crenccedila dos sacrifiacutecios

da missa essa realidade estaacute baseada nos enunciados do rito e da feacute explicados

metafisicamente o que pode ser indicado que exceto pela maneira psiacutequica de

manifestar-se a crenccedila escapa ao entendimento do intelecto e por esse motivo

natildeo pode ser posto em julgamento mas eacute certo que o pressuposto da feacute em si

conteacutem a realidade de um fato psiacutequico152

Cada passo da missa possui uma composiccedilatildeo de dois aspectos claros

um divino com a accedilatildeo do proacuteprio Deus e outro humano num significado

meramente instrumental

O lado humano oferece dons a Deus sobre o altar com a doaccedilatildeo

completa do sacerdote e da comunidade cristatilde celebrando a uacuteltima ceia de Jesus

com seus disciacutepulos mas celebra tambeacutem uma accedilatildeo sagrada onde Cristo se

encarna torna-se homem sub-espeacutecie das substacircncias oferecidas sofre e eacute

151 Jung-1985-p20-338 152 Jung-1985-p46-377

205

morto jaz no sepulcro e por fim quebra o poder do inferno ressuscitando

glorioso153 Embora esse acontecimento seja divino surge o cristatildeo perante o

ritual tal qual como na participaccedilatildeo divina agindo como agens

e patiens na

sua limitada capacidade

Mas no sentido divino onde o momento eacute entendido como uma accedilatildeo

direta de Deus esse mesmo homem se coloca apenas e tatildeo somente como um

instrumento agrave disposiccedilatildeo de um agente eterno que transcende a consciecircncia

humana

Assim como o homem eacute um simples instrumento

(voluntaacuterio) no acontecimento da missa tambeacutem eacute incapaz de

compreender o que quer que seja a respeito da matildeo que se utiliza

dele O martelo natildeo conteacutem em si proacuteprio aquilo que o faz bater Eacute um

ser situado fora dele autocircnomo que dele se apodera e o potildee em

movimento 154

Essa relaccedilatildeo do homem com o divino da oferenda com o recebimento

da graccedila possui a mesma funccedilatildeo psicoloacutegica e portanto cultural da magia

propiciatoacuteria que se encontra em todos os sacrifiacutecios de tribos e sociedades ditas

primitivas onde o humano oferece para receber em troca a matildeo da divindade

colocada sobre seus ombros quer para proteccedilatildeo quer para resolver suas afliccedilotildees

desejos e impossibilidades

153 Jung-1985-p47-379 154 Jung-1985-p49-379

206

Essa magia realizada pelas tribos traacutes consigo o sangue e a carne

verdadeiros sejam de animais ou de pessoas o que apavora me faz com que os

olhos humanos de outra cultura rechacem o acontecimento

Acontece poreacutem que o mito cristatildeo se utiliza nessa magia

propiciatoacuteria de siacutembolos que representam o melhor produto cultural desde muito

tempo que simbolizam a vida e a pessoa humana a produccedilatildeo o trabalho e as

virtudes

O patildeo e o vinho natildeo soacute constituem o alimento comum de grande parte

da humanidade como tambeacutem podem ser encontrados em toda a face da

Terra155

O patildeo e o vinho como importantes siacutembolos da civilizaccedilatildeo expressam o

esforccedilo humano em plantar e colher e ainda produzir com aquilo que foi colhido

Os gratildeos de trigo e os bagos de uva representam a condiccedilatildeo psicoloacutegica que faz

surgir as virtudes do homem e que o torna capaz de produzir cultura

Plantar e colher possui em si o trabalho durante o crescimento das

plantas por ele cultivadas crescimento esse que se desenvolve de acordo com

leis divinas por serem elas leis internas que atual dentro delas como um agens

ou uma forccedila que chegou mesmo a ser comparada ao proacuteprio alento ou espiacuterito

vital156 um espiacuterito que morre e ressuscita a cada estaccedilatildeo do ano tal qual a

manifestaccedilatildeo do manaacute mas que necessita da participaccedilatildeo do homem e de um

155 KRAMP Joseph 1924 Apud Jung-1985-p51-381 156 Jung-1985-p53-385

207

desempenho psicoloacutegico com relaccedilatildeo ao esforccedilo agrave aplicaccedilatildeo agrave paciecircncia e ao

devotamento

Tomar do patildeo e do vinho consagraacute-los e oferececirc-los a Deus queiramos

ou natildeo trata-se de um do ut des no entanto eacute uma forma de doaccedilatildeo em que o

humano se entrega de tal forma a essa oferenda que daacute o que foi entregue como

pedido como um sacrifiacutecio pois caso natildeo receba em troca a graccedila pedida

continua a acreditar que ao menos no reino dos ceacuteus receberaacute tal graccedila e por isso

se entrega o que faz com que o homem possa buscar com esse ritual sua

evoluccedilatildeo do eu conforme crecirc sua individuaccedilatildeo seu si mesmo O eu estaacute pra o

si mesmo assim como o patiens estaacute pra o agens porque as disposiccedilotildees que

emanam do si mesmo satildeo bastante amplas e por isso superiores ao euo si

mesmo eacute o existente a priori do qual proveacutem o euNatildeo sou eu que me crio mas

sou eu que aconteccedilo a mim mesmo 157

Essa conclusatildeo vem de encontro com o entendimento da psicologia sobre

o fenocircmeno religioso e sobre a feacute e Jung como bom exemplo dessa conclusatildeo

cita que o fundador da Companhia de Jesus Inaacutecio de Loyola colocou seu homo

creatus est como fundamentum de seus exerciacutecios espirituais

O Grande Si Mesmo para o cristatildeo eacute o proacuteprio Cristo o homem primordial

o Adam secundus o qual tentar entender fora do mito seria como

psicologizar158 de forma mal sucedida tentando destruir o misteacuterio do rito miacutetico

157 Jung-1985-p59-391 158 como uso pejorativo fazer especulaccedilotildees de cunho psicoloacutegico sem base cientiacutefica

208

APEcircNDICE 3 O MITO DE CRISTO

O drama da vida arquetiacutepica de Cristo descreve em

imagens simboacutelicas os eventos da vida consciente

assim como da

vida que transcende a consciecircncia

de um homem que foi

transformado pelo seu destino superior159

A obra de Jung eacute extremamente vasta com relaccedilatildeo ao estudo das

religiotildees tanta das religiotildees e seitas primitivas como do cristianismo do

protestantismo das religiotildees orientais poreacutem deu ecircnfase principalmente aos

estudos com relaccedilatildeo ao mito cristatildeo e suas caracteriacutesticas

Um dos pontos mais importantes de sua obra sobre o assunto eacute a visatildeo

que apresenta sobre a vida de Cristo o que nos chamou especial atenccedilatildeo para

escrevermos esta parte da pesquisa

Jung nos coloca que a vida de Cristo representa para nossa cultura o

processo de individuaccedilatildeo que pode significar para um indiviacuteduo a salvaccedilatildeo ou a

trageacutedia e quando esse indiviacuteduo eacute parte de uma igreja ou um credo religioso ele

159 Jung A psycological approach to the trynity Psychology and Religion in Edinger1988

209

eacute poupado dos perigos da vida em sua experiecircncia direta pois estaraacute protegido

pelo mito cristatildeo

Tal qual no mito do heroacutei das mil e uma noites ou outros contos do

oriente Cristo passa por uma saga bem definida como o nascimento do heroacutei a

missatildeo avisada a fuga e a negaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo o retorno a realizaccedilatildeo o triunfo

e o precircmio final

Como diz Campbell160 citando uma velha sabedoria romana Os fados

guiam aquele que assim o deseje aquele que natildeo o deseje eles arrastam

O mesmo ocorreu com Cristo foi arrastado por seus fados conforme

podemos ver pois O Filho preexistente e uacutenico de Deus esvazia-se de sua

divindade e se encarna como homem por intermeacutedio do Espiacuterito Santo que

impregna a Virgem Maria Ele nasce num ambiente humilde cercado de perigos

iniciais Quando alcanccedila a idade adulta submete-se ao batismo de Joatildeo Batista e

testemunha a descida do Espiacuterito Santo que indica sua vocaccedilatildeo Ele sobrevive agrave

tentaccedilatildeo do Democircnio e leva a bom termo seu ministeacuterio que proclama a

existecircncia de um Deus benevolente e amoroso Apoacutes passar pela agonia da

incerteza aceita o destino que lhe cabe e deixa-se prender julgar flagelar

escarnecer e crucificar Apoacutes passar trecircs dias no tuacutemulo de acordo com vaacuterias

testemunhas eacute ressuscitado Durante quarenta dias caminha e fala com seus

160 CAMPBELL 1990 pintroduccedilatildeo X

210

disciacutepulos e em seguida sob aos ceacuteus Dez dias depois no Pentecostes o

Espiacuterito Santo o Paraacuteclito prometido desce 161

Para explicar essa sequumlecircncia de fatos Jung nos apresenta o seguinte

graacutefico

A sequumlecircncia de situaccedilotildees passadas por Cristo e que constitui o mito

cristatildeo se repete em forma circular iniciando e encerrando com a mesma

161 EDINGER 1988 p16

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

211

situaccedilatildeo onde o Pentecostes eacute uma segunda Anunciaccedilatildeo pois na primeira nasce

Cristo e na segunda nasce a Igreja

Para o homem miacutetico engajado nesse ciacuterculo essa eacute a descriccedilatildeo do

processo por onde o ego do homem atinge sua consciecircncia pois descreve o que

correu com Deus feito homem e por consequumlecircncia descreve a transformaccedilatildeo de

Deus Assim por meio desse processo mais uma vez o Espiacuterito Santo desce a

terra natildeo para promover uma imitaccedilatildeo de Cristo Homem-Deus feita pelo homem

mas para promover a cristificaccedilatildeo de muitos 162

Vamos iniciar entatildeo pela Anunciaccedilatildeo

26 Ora no sexto mecircs (da gravidez de Isabel) foi o anjo

Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileacuteia chamada Nazareacute

27a uma virgem desposada com um varatildeo cujo nome era Joseacute da

casa de Davi e o nome da virgem era Maria

28 E entrando o anjo onde ela estava disse Salve

agraciada o Senhor eacute contigo

29 Ela poreacutem ao ouvir estas palavras turbou-se muito e

pocircs-se a pensar que saudaccedilatildeo seria essa

30 Disse-lhe entatildeo o anjo Natildeo temas Maria pois achaste

graccedila diante de Deus

31 Eis que conceberaacutes e daraacutes agrave luz um filho ao qual

poraacutes o nome de Jesus

32 Este seraacute grande e seraacute chamado filho do Altiacutessimo o

Senhor Deus lhe daraacute o trono de Davi seu pai

33 e reinaraacute eternamente sobre a casa de Jacoacute e o seu

reino natildeo teraacute fim

162 JUNG 1990 p113 par 758

212

34 Entatildeo Maria perguntou ao anjo Como se faraacute isso uma

vez que natildeo conheccedilo varatildeo

35 Respondeu-lhe o anjo Viraacute sobre ti o Espiacuterito Santo

e o poder do Altiacutessimo te cobriraacute com a sua sombra por isso o

que haacute de nascer seraacute chamado santo Filho de Deus

36 Eis que tambeacutem Isabel tua parenta concebeu um filho

em sua velhice e eacute este o sexto mecircs para aquela que era chamada

esteacuteril37 porque para Deus nada seraacute impossiacutevel

38 Disse entatildeo Maria Eis aqui a serva do Senhor cumpra-

se em mim segundo a tua palavra E o anjo ausentou-se dela

O primeiro ponto a que dei importacircncia estaacute em grifo no texto biacuteblico

onde a expressatildeo te cobriraacute com a sua sombra 163 se refere no Antigo

Testamento em vaacuterias passagens agraves manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de Iahweh o

que mostra aqui o lado sombrio do misteacuterio sagrado do momento em que Deus

atraveacutes do Espiacuterito Santo cobre com uma nuvem o momento em que a

fecundaccedilatildeo do Senhor ocorre isto eacute uma gravidez ilegiacutetima num tempo em que

cometer adulteacuterio era passiacutevel de ser punida com a morte no entanto a obediecircncia

a Deus transforma Maria em uma mulher cheia de graccedila pois carrega em seu

ventre o Homem-Deus

Muitas vezes a Anunciaccedilatildeo coberta pela sombra e a obediecircncia de

Maria foi contrastada agrave desobediecircncia de Eva que culminou com a expulsatildeo do

primeiro casal do paraiacuteso Paulo falando aos Corintos (1Cor 1522) estabelece

esse viacutenculo ao dizer E assim como em Adatildeo morrem todos assim tambeacutem

todos seratildeo vivificados em Cristo

163 te cobriraacute com a sua sombra (episkiaz ) onde skia traduz sombra escuridatildeo EDINGER 1988 p22

213

Essa comparaccedilatildeo surge tambeacutem em um texto apoacutecrifo Protoevangelho

de Tiago164 que ao ouvir falar da gravidez de Maria Joseacute exclama

Quem trouxe esse mal agrave minha casa e a conspurcou (a

virgem) Teraacute a histoacuteria (de Adatildeo) se repetido comigo

Onde se encontra a diferenccedila principal Eacute que enquanto Eva se

submete e obedece agrave serpente Maria se coloca como serva do Senhor e diz Eis

aqui a serva do Senhor cumpra-se em mim segundo a tua palavra o que em

termos da visatildeo miacutetica do significado psicoloacutegico retrata que Maria aceita por sua

alma o encontro como o numinosum165 e como consequumlecircncia o encontro do

arqueacutetipo do mito com a individuaccedilatildeo do homem

Outro ponto a ser considerado como importante siacutembolo formador do

mito cristatildeo eacute a virgindade de Maria que tal qual as Virgens Vestais eram guardiatildes

da chama sagrada Essa relaccedilatildeo com a virgindade parece ser importante como

energia de transmutaccedilatildeo do fogo sagrado pois como em muitas culturas as

virgens sempre possuem uma relaccedilatildeo com o numinoso o que significa ser um

forte siacutembolo arquetiacutepico formador do mito Edinger (1988 p28) diz O ego virgem

tem suficiente consciecircncia para relacionar-se com as energias transpessoais sem

identificar-se com elas

164 EDINGER1988p25 165 Numinosum- numinoso adjetivo - influenciado inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade

214

Seguindo adiante no ciacuterculo do mito de Cristo encontramos o segundo

ponto que se refere agrave natividade

1 Naqueles dias saiu um decreto da parte de Ceacutesar

Augusto para que todo o mundo fosse recenseado

2 Este primeiro recenseamento foi feito quando Quiriacutenio

era governador da Siacuteria

3 E todos iam alistar-se cada um agrave sua proacutepria cidade

4 Subiu tambeacutem Joseacute da Galileacuteia da cidade de Nazareacute agrave

cidade de Davi chamada Beleacutem porque era da casa e famiacutelia de

Davi5 a fim de alistar-se com Maria sua esposa que estava graacutevida

6 Enquanto estavam ali chegou o tempo em que ela havia

de dar agrave luz 7 e teve a seu filho primogecircnito envolveu-o em faixas e o

deitou em uma manjedoura porque natildeo havia lugar para eles na

estalagem

Este eacute o momento em que no mito do heroacutei se iniciam os perigos onde

enquanto se registrava nos Ceacuteus o nascimento de uma crianccedila divina se

recenseava na Terra e se registrava as pessoas nascidas pois naquele momento

histoacuterico e cultural era de suma importacircncia ter o nome escrito e registrado Cristo

disse mais adiante a seus disciacutepulos (Lc 1020) deveis alegrar-vos de que os

vossos nomes estejam escritos no ceacuteu

Em Hebreus (1223) agrave universal assembleacuteia eacute a igreja dos primogecircnitos

inscritos nos ceacuteus e Deus o juiz de todos e aos espiacuteritos dos justos

aperfeiccediloados

215

Mas tambeacutem eacute importante perceber que culturalmente os primogecircnitos

(pr totokos ou primogenitus)166 eram considerados especiais natildeo soacute para os

homens daquela eacutepoca mas tambeacutem para Iahveh vejamos Santifica-me todo

primogecircnito todo o que abrir o uacutetero de sua matildee entre os filhos de Israel assim

de homens como de animais porque meu eacute (Ex132)

Jesus foi o primogecircnito Primogecircnito entre muitos irmatildeos(Rm 829) que

erigiraacute uma igreja dos primogecircnitos inscritos nos ceacuteus (Hb1223)

Novamente a cultura como expressatildeo de uma eacutepoca de um povo gera

o poder criador do mito O heroacutei aqui denominado Jesus Cristo nasce como

primogecircnito e como Salvador Universal

Vamos entatildeo relembrar a saga de um heroacutei miacutetico nas palavras de

Jung167

Este eacute o motivo pelo qual o nascimento de Cristo foi

caracterizado pelas manifestaccedilotildees que acompanham o nascimento do

heroacutei quais sejam o anuacutencio preacutevio deste nascimento a geraccedilatildeo no

seio de uma virgem a coincidecircncia com a triacuteplice coniunctio magna

(juacutepiter marte e saturno) no signo de Pisces que introduziu

precisamente naquela eacutepoca o novo eon ligado ao nascimento de um

rei a perseguiccedilatildeo ao receacutem-nascido sua fuga e ocultaccedilatildeo a

modeacutestia de seu nascimento etc Pode-se ver tambeacutem o tema do

crescimento do heroacutei em sabedoria demonstrada pelo jovem de doze

anos no templo e quanto ao tema da ruptura com a matildee haacute tambeacutem

alguns exemplos

166 o mais velho o primeiro filho homem do homem 167 JUNG 1990

Resposta agrave Jocirc p49-par 644

216

A terceira situaccedilatildeo do nosso ciacuterculo do mito de cristo eacute a Fuga para o

Egito onde o nascimento do heroacutei ou da crianccedila divina como jaacute dito

anteriormente se faz acompanhar costumeiramente de ameaccedilas com relaccedilatildeo a

sua vida o que mais uma vez se confirma Vejamos

13 E havendo eles se retirado eis que um anjo do Senhor

apareceu a Joseacute em sonho dizendo Levanta-te toma o menino e sua

matildee foge para o Egito e ali fica ateacute que eu te fale porque Herodes

haacute de procurar o menino para o matar

14 Levantou-se pois tomou de noite o menino e sua matildee

e partiu para o Egito

15 e laacute ficou ateacute a morte de Herodes para que se

cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta Do Egito

chamei o meu Filho

16 Entatildeo Herodes vendo que fora iludido pelos magos

irou-se grandemente e mandou matar todos os meninos de dois anos

para baixo que havia em Beleacutem e em todos os seus arredores

segundo o tempo que com precisatildeo inquirira dos magos

17 Cumpriu-se entatildeo o que fora dito pelo profeta Jeremias

18 Em Ramaacute se ouviu uma voz lamentaccedilatildeo e grande

pranto Raquel chorando os seus filhos e natildeo querendo ser

consolada porque eles jaacute natildeo existem(Mt 213-18)

A autoridade maior o heroacutei o poder gerador do mito a crianccedila divina

cumpre as profecias pois em Oseacuteias (111) se diz Quando Israel era menino eu o

amei e do Egito chamei a meu filho e no antigo testamento a naccedilatildeo de Israel eacute o

217

filho de Iahweh mostrando assim que Cristo eacute a proacutepria substituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

Israel

Novamente a expressatildeo cultural gera o mito como forma de seguir

explicando o inexplicaacutevel

Na quarta situaccedilatildeo do ciacuterculo do mito identifica-se o Batismo onde

Jesus sai da Galileacuteia para se encontrar com Joatildeo e ser batizado por ele e que

depois de batizado os ceacuteus se abrem uma pomba desce dos ceacuteus e uma voz do

ceacuteu lhes diz Este eacute o meu filho amado em quem me comprazo (Mt 313-17)

Para a Igreja o sacramento do batismo vem significar a morte da antiga

vida da carne e o renascimento da vida eterna em Cristo

O Espiacuterito Santo que desce nas asas de uma pomba branca o fogo

sobre o rio Jordatildeo e a luz vida do ceacuteu e que se abre sobre Cristo e Joatildeo Batista a

purificaccedilatildeo atraveacutes da aacutegua e a voz sugerem que o proacuteprio Senhor se fez batizar

e o homem miacutetico sabe que com esse evento o que habitava de forma demoniacuteaca

no inconsciente foi transformado em terreno sagrado e na morada do numinoso

O homem miacutetico se encontra com seu destino com sua identidade e tambeacutem

pode se considerar como o Filho de Deus um eleito que teraacute seu nome inscrito

nos ceacuteus

Em seguida ocorre a entrada triunfal de Jesus em Jerusaleacutem

1 Quando se aproximaram de Jerusaleacutem e chegaram a

Betfageacute ao Monte das Oliveiras enviou Jesus dois disciacutepulos

dizendo-lhes

218

2 Ide agrave aldeia que estaacute defronte de voacutes e logo encontrareis

uma jumenta presa e um jumentinho com ela desprendei-a e trazei-

mos

3 E se algueacutem vos disser alguma coisa respondei O

Senhor precisa deles e logo os enviaraacute

4 Ora isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito

pelo profeta

5 Dizei agrave filha de Siatildeo Eis que aiacute te vem o teu Rei manso

e montado em um jumento em um jumentinho cria de animal de

carga

6 Indo pois os disciacutepulos e fazendo como Jesus lhes

ordenara

7 trouxeram a jumenta e o jumentinho e sobre eles

puseram os seus mantos e Jesus montou

8 E a maior parte da multidatildeo estendeu os seus mantos

pelo caminho e outros cortavam ramos de aacutervores e os espalhavam

pelo caminho

9 E as multidotildees tanto as que o precediam como as que o

seguiam clamavam dizendo Hosana ao Filho de Davi bendito o que

vem em nome do Senhor Hosana nas alturas

10 Ao entrar ele em Jerusaleacutem agitou-se a cidade toda e

perguntava Quem eacute este

11 E as multidotildees respondiam Este eacute o profeta Jesus de

Nazareacute da Galileacuteia (Mt 21 1-9)

Eacute permitido por Cristo que o aclamem rei Parece que nesse momento

a negaccedilatildeo de seu destino surge justamente quando deixa a humildade e

sucumbe agrave tentaccedilatildeo do poder rapidamente se enche de fuacuteria e expulsa os

vendilhotildees do templo de Deus e amaldiccediloa uma figueira que natildeo lhe fornecia

frutos Como nos propotildee Edinger168 parece neste momento que Cristo pela forma

168 EDINGER1988 p60

219

que entra em Jerusaleacutem identifica a si mesmo como o rei messiacircnico profetizado

em Zc 99

9 Alegra-te muito oacute filha de Siatildeo exulta oacute filha de

Jerusaleacutem eis que vem a ti o teu rei ele eacute justo e traz a salvaccedilatildeo ele eacute

humilde e vem montado sobre um jumento sobre um jumentinho filho de

jumenta

O mito do heroacutei novamente se assemelha ao mito de Cristo pois natildeo haacute

como o heroacutei aceitar seu destino e desenvolver-se sem que antes seu ego

sucumba ao erro necessaacuterio (Felix culpa) pois de acordo com Jung169 o

egocentrismo eacute um atributo necessaacuterio da consciecircncia bem como seu pecado

especiacutefico

Mas continuando em nosso caminho da individuaccedilatildeo de Cristo

encontramos a Uacuteltima Ceia parte que por achar de grande importacircncia para a

construccedilatildeo do mito cristatildeo dedico mais adiante um espaccedilo significativo onde

coloco ao lado da formaccedilatildeo do mito os siacutembolos culturais da missa na

transformaccedilatildeo do homem cristatildeo Eacute a Uacuteltima Ceia a Santa Ceia a primeira missa

realizada no mito cristatildeo o rito central da Igreja Catoacutelica

26 Enquanto comiam Jesus tomou o patildeo e abenccediloando-

o o partiu e o deu aos disciacutepulos dizendo Tomai comei isto eacute o meu

corpo

169 apud EDIGER 1988p61 e JUNG Mysterium Coniunctionis par 364

220

27 E tomando um caacutelice rendeu graccedilas e deu-lho

dizendo Bebei dele todos

28 pois isto eacute o meu sangue o sangue do pacto o qual eacute

derramado por muitos para remissatildeo dos pecados (Mt 26 26-28)

55 Porque a minha carne verdadeiramente eacute comida e o

meu sangue verdadeiramente eacute bebida(Jo 655)

Eacute neste ponto que surge o primeiro sacrifiacutecio de Cristo pois oferece seu

corpo e seu sangue para a alimentaccedilatildeo dos que nele crecircem provando isso mais

adiante quando se deixa prender ser julgado flagelado e crucificado entregando

novamente seu corpo e seu sangue para salvaccedilatildeo de todos que aceitassem viver

esse mito O alimento dado aos disciacutepulos vem representar a natureza paradoxal

do siacutembolo da Eucaristia170 De um lado fornece uma conexatildeo como poder

gerador do mito e do outro a prima mateacuteria que deve ser humanizada e

transformada pelos esforccedilos do ego171 para que o homem possa se transformar e

receber em si o divino o numinoso

Mais adiante Cristo vai ao Gethsemani onde fica clara a aceitaccedilatildeo da

missatildeo de ser o Filho de Deus uma missatildeo de sofrimento e sangue que caminha

pelo ciacuterculo do mito de Cristo atraveacutes dos pontos da Prisatildeo e Julgamento onde

mesmo que natildeo aceitasse ser o Rei dos Judeus dizendo natildeo ser deste mundo

seu reino ainda assim era um reino da Flagelaccedilatildeo e escaacuternio da crucificaccedilatildeo o

170 EDINGER1988 p69 171 idem

221

foco principal do mito cristatildeo em relaccedilatildeo agrave contemplaccedilatildeo do sofrimento e da

entrega do destino a Deus

A crucificaccedilatildeo pode equivaler ao fracasso do heroacutei em sua luta pois ao

dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonastes poderia estar revendo

que sua vida vivida de profunda convicccedilatildeo tinha sido uma terriacutevel ilusatildeo172

Vem a lamentaccedilatildeo e o sepultamento equivalendo agrave descida de Cristo

aos infernos e ao limbo amparado pela Pietaacute sobre o corpo morto do filho

Mas no primeiro dia da semana

1 Mas jaacute no primeiro dia da semana bem de madrugada

foram elas ao sepulcro levando as especiarias que tinham preparado

2 E acharam a pedra revolvida do sepulcro

3 Entrando poreacutem natildeo acharam o corpo do Senhor Jesus

4 E estando elas perplexas a esse respeito eis que lhes

apareceram dois varotildees em vestes resplandecentes

5 e ficando elas atemorizadas e abaixando o rosto para o

chatildeo eles lhes disseram Por que buscais entre os mortos aquele que

vive

6 Ele natildeo estaacute aqui mas ressurgiu Lembrai-vos de como

vos falou estando ainda na Galileacuteia(Lc 24 1-6)

Mas depois da Ressurreiccedilatildeo mesmo com diversas evidecircncias de seu

aparecimento como em Joatildeo 2011-17 como em Lucas e Mateus seus disciacutepulos

natildeo o reconheceram de imediato pois atingindo o Self o Si-mesmo a evoluccedilatildeo

do homem miacutetico ele se transforma de tal ordem que natildeo poderaacute ser reconhecido

172 ideacuteia expressada por Jung durante entrevistas CGJung Entrevistas e Encontrosp103- apud EDINGER 1988 p120

222

mesmo pelos amigos mais iacutentimos pois atingiria o contato pleno com o

numinosum

35Mas algueacutem diraacute Como ressuscitam os mortos e com

que qualidade de corpo vecircm

36 Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se

primeiro natildeo morrer

37 E quando semeias natildeo semeias o corpo que haacute de

nascer mas o simples gratildeo como o de trigo ou o de outra qualquer

semente

38 Mas Deus lhe daacute um corpo como lhe aprouve e a cada

uma das sementes um corpo proacuteprio

39 Nem toda carne eacute uma mesma carne mas uma eacute a

carne dos homens outra a carne dos animais outra a das aves e

outra a dos peixes

40 Tambeacutem haacute corpos celestes e corpos terrestres mas

uma eacute a gloacuteria dos celestes e outra a dos terrestres

41 Uma eacute a gloacuteria do sol outra a gloacuteria da lua e outra a

gloacuteria das estrelas porque uma estrela difere em gloacuteria de outra

estrela

42 Assim tambeacutem eacute a ressurreiccedilatildeo eacute ressuscitado em

incorrupccedilatildeo

43 Semeia-se em ignomiacutenia eacute ressuscitado em gloacuteria

Semeia-se em fraqueza eacute ressuscitado em poder

44 Semeia-se corpo animal eacute ressuscitado corpo

espiritual Se haacute corpo animal haacute tambeacutem corpo espiritual

45 Assim tambeacutem estaacute escrito O primeiro homem Adatildeo

tornou-se alma vivente o uacuteltimo Adatildeo espiacuterito vivificante

46 Mas natildeo eacute primeiro o espiritual senatildeo o animal depois

o espiritual

47 O primeiro homem sendo da terra eacute terreno o segundo

homem eacute do ceacuteu

223

48 Qual o terreno tais tambeacutem os terrenos e qual o

celestial tais tambeacutem os celestiais

49 E assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestial

50 Mas digo isto irmatildeos que carne e sangue natildeo podem

herdar o reino de Deus nem a corrupccedilatildeo herda a incorrupccedilatildeo

51 Eis aqui vos digo um misteacuterio Nem todos dormiremos

mas todos seremos transformados

52 num momento num abrir e fechar de olhos ao som da

uacuteltima trombeta porque a trombeta soaraacute e os mortos seratildeo

ressuscitados incorruptiacuteveis e noacutes seremos transformados (1 Cor

35-52)

O Corpo Celestial que Paulo cita em 1 Cor15 35-52 equivale a dizer

que o homem miacutetico com seu corpo em ressurreiccedilatildeo em Cristo estaacute em contato

direto com o arqueacutetipo Cristatildeo e com o proacuteprio Deus pois a morte e a

ressurreiccedilatildeo de Cristo formam um arqueacutetipo que vive natildeo apenas na psique

individual mas tambeacutem na coletiva 173

Com a Ascensatildeo onde Cristo diz se preparar para a descida sob a

forma do Espiacuterito Santo no Pentecostes Deus que se esvaziou de sua divindade e

desceu a Terra como espiacuterito humano sobe novamente e retorna ao ceacuteu em

ascensatildeo para depois retornar jaacute reconhecido como Deus sob a forma do

Espiacuterito Santo

173 idem

224

Mostra o mito Cristatildeo que natildeo somos seres humanos passando por

uma vida espiritual na Terra mas seres espirituais que passamos tal qual Cristo

por uma experiecircncia humana

8 Mas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito

Santo e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda

a Judeacuteia e Samaacuteria e ateacute os confins da terra

9 Tendo ele dito estas coisas foi levado para cima

enquanto eles olhavam e uma nuvem o recebeu ocultando-o a seus

olhos

10 Estando eles com os olhos fitos no ceacuteu enquanto ele

subia eis que junto deles apareceram dois varotildees vestidos de branco

11 os quais lhes disseram Varotildees galileus por que ficais

aiacute olhando para o ceacuteu Esse Jesus que dentre voacutes foi elevado para o

ceacuteu haacute de vir assim como para o ceacuteu o vistes ir (At 1 8-11)

O homem na visatildeo junguiana possui um Ego174 que se contrapotildee

constantemente ao Si-mesmo (Self) como sendo o Ego o terreno e o Si-mesmo o

celestial onde o Si-mesmo eacute a entidade inconsciente que desenvolve o ego

dizendo eu natildeo me crio a mim mesmo antes eu me aconteccedilo a mim mesmo

No ser humano sempre existiraacute a supremacia do Si-mesmo em

simultaneidade com a liberdade de accedilatildeo do Ego assim como no mundo sempre

haveraacute para o homem miacutetico a liberdade de accedilatildeo ou livre arbiacutetrio do corpo terreno

na relaccedilatildeo direta da supremacia do corpo espitirual O Ego estaacute para o Si-mesmo

174 Ego e Si-mesmo (self) pode ser visto em CARNOT(2005)

225

assim como o patiens

estaacute pra o agens ou como o objeto estaacute pra o

observador ou mesmo como o homem estaacute pra Deus

Jung comenta em seu livro The Spirit Mercurius Alchemical Studies

(par 280)175 que haacute uma correspondecircncia alquiacutemica e simboacutelica a esse evento da

Ascensatildeo e retorno de Cristo com a Taacutebua de Esmeraldas de Hermes a qual

inclui em sua receita pra a produccedilatildeo da Pedra Filosofal as palavras Ele sobe da

terra pra o ceacuteu e desce de novo na terra recebendo a forccedila de cima e de baixo e

comentando essa passagem diz

[Para o alquimista] natildeo haacute uma questatildeo de subida de

matildeo uacutenica pra o ceacuteu mas em contraste com a rota seguida pelo

Redentor Cristatildeo que vem de cima para baixo e depois retorna para

cima o filius macrocosmi comeccedila de baixo sobe agraves alturas e com os

poderes do Acima e do Abaixo unidos em si mesmo volta outra vez a

terra Ele (o alquimista) realiza o movimento inverso e assim

manifesta uma natureza contraacuteria agrave de Cristo e agrave dos Redentores

Gnoacutesticos (me agrada interpretar a palavra alquimista como traduccedilatildeo

de o homem miacutetico )

Chegamos ao ciclo do mito Cristatildeo ao Pentecostes a 13a situaccedilatildeo

colocada por Jung como sendo tambeacutem a primeira apoacutes a Ascensatildeo Com o

Pentecostes o ciclo da encarnaccedilatildeo de Cristo se completa assim como se

completa o ciclo do heroacutei O ciclo se inicia com a descida do Espiacuterito Santo na

175 apud EDINGER (1988 p 122)

226

anunciaccedilatildeo e termina com sua nova descida dos ceacuteus par o iniacutecio de um novo

ciclo

Para didaticamente deixar claro ao leitor repito a figura que

representa esse ciclo

A Igreja como corpo de Cristo teve sua anunciaccedilatildeo e

concepccedilatildeo no Pentecostes 176

176 idem EDINGER1988 p130

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

227

Foi este o momento onde deixam os disciacutepulos de serem um

receptaacuteculo dos ensinamentos do mito de Cristo para nascer a Santa Igreja

Catoacutelica sem tratar aqui os movimentos de sua criaccedilatildeo como o grande

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo

Aqui o homem miacutetico entrega a Igreja o controle do proacuteprio espiacuterito

celestial podendo viver sua vida independente dos desiacutegnios dos ceacuteus podendo

em agindo dentro do mito buscar seu uacuteltimo dia momento em que voltaraacute a ser

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo dando a ideacuteia de uma encarnaccedilatildeo contiacutenua tanto do

homem quanto de Deus

228

APEcircNDICE 4 - UMA PROPOSTA DE INTERPRETAR PSICOLOacuteGICA E MITICAMENTE A

TRINDADE

A Alma eacute o maior dos milagres coacutesmicos CG Jung 177

Como todo o tema deste trabalho desde o nome o objeto de pesquisa

pode parecer estranho tanto a um psicoacutelogo como a um educador como a um

historiador

No entanto faccedilo mais essa anaacutelise de forma plena e consciente de que

entro neste momento em mais uma pesquisa polecircmica e que por mais que me

aprofunde neste momento natildeo deixaraacute de ser superficial

Acontece que em meu entender tal qual os siacutembolos de transformaccedilatildeo

cultural da missa ou a interpretaccedilatildeo da vida de Cristo este tema tambeacutem eacute

necessaacuterio para que se possa ter mais clara a visatildeo do mito cristatildeo e por

consequumlecircncia o Cristatildeo portuguecircs do seacuteculo XVI pois a Trindade nos daraacute mais

algumas informaccedilotildees de como culturalmente esse arqueacutetipo esse mito foi imposto

agrave nossa cultura e imposiccedilatildeo aos brasis

177 JAFFEacute-1995-p5

229

As religiotildees cristatildes estatildeo tatildeo presentes e tatildeo proacuteximas agrave alma humana

que seria impossiacutevel ignoraacute-las do ponto de vista psicoloacutegico educacional e do

ponto de vista cultura

Por mais que a ideacuteia Trindade esteja no campo da Teologia aacuterea que

natildeo me sinto habilitado ou sequer inclinado a pesquisar eacute na histoacuteria e na obra de

CG Jung que busco as informaccedilotildees que necessito para escrever sobre esse

dogma e o simbolismo trinitaacuterio

Que se tenha notiacutecia a Trindade do mito cristatildeo eacute a uacutenica que soacute

existe como trecircs partes de um uno As triacuteades divinas de tantos mitos primitivos

tecircm uma relaccedilatildeo de parentesco entre elas como por exemplo a triacuteade babilocircnica

Anu Bel e Ea onde Ea a personificaccedilatildeo do saber eacute o pai de Bel (o Senhor) que

personifica a atividade praacutetica Numa triacuteade secundaacuteria desse mito da eacutepoca de

Nabucodonosor Sin (a lua) Shamash (o sol) e Adad (a tempestade Senhor do

Ceacuteu e da Terra e filho do altiacutessimo Anu da triacuteade primaacuteria) No tempo de

Hamurabi Marduk filho de Ea substitui Bel e seus poderes levando Bel a um

segundo plano Nisso Hamurabi se considera um novo deus e soacute venerava uma

diacuteade Anu e Bel e por ser Hamurabi considerado um soberano divino

mensageiro de Anu e Bels e associa a eles criando nova triacuteade Anu

Bel

Hamurabi178

Assim como nesse exemplo vaacuterias culturas primitivas se utilizavam em

seus mitos de triacuteades divinas

178 JUNG1988par173-174

230

No entanto no Velho Testamento encontramos por diversas vezes um

Deus quase que uno pois onde surge o Espiacuterito a palavra vem acompanhada de

Espiacuterito de Deus Espiacuterito do Senhor o que se pode confirmar em

Gecircnesis cap 1 e 6

Nuacutemeros cap 24 e 27

Juiacutezes cap 36111314 e 15

I Samuel cap 1011 e 16

II Samuel cap 3

I Reis cap 18 e 22

II Reacuteus cap 2

II Crocircnicas cap151820 e 24

Assim como em Neemias Joacute Salmos Isaias Ezequiel Joel Miqueacuteias

Ageu e Zacarias

Somente no evento do Novo Testamento surge a segunda parte da

diacuteade Espiacuterito Santo

Ateacute esse momento se percebe principalmente em Joacute um Deus uacutenico

onipotente e onisciente poreacutem com caracteriacutesticas de uma dualidade na forma de

agir com o homem Existe aiacute um Deus justo e injusto doce e coleacuterico que cria e

destroacutei que necessitava de aplausos e reverecircncias e dado ao caraacuteter temiacutevel

fazia com que o homem se referisse constantemente a um Temor de Deus

231

De fato Javeacute tudo pode e se permite sem pestanejar um

momento Ele eacute capaz de projetar com impassibilidade feacuterrea o seu

proacuteprio lado sombrio e permanecer inconsciente disto agrave custa do ser

humano Eacute capaz de apelar para o seu poder supremo e promulgar

leis que para ele significam menos que o ar Os assasiacutenios os

morticiacutenios natildeo lhe causam preocupaccedilatildeo e quando lhe daacute na veneta

eacute capaz igualmente de qual um senhor feudal ressarcir

generosamente os danos provocados nos campos de cereais dos

servos Perdeste os teus filhos as tuas filhas e os teus escravos Natildeo

haacute de ser nada eu te darei outros em troca e melhores do que os

primeiros 179

Iahweh natildeo possui origem nem passado comparado com outros

deuses helecircnicos ou natildeo Seu primeiro filho sendo Adatildeo fez com que todos

fossem descendentes desse primeiro pai Mas os povos judeus atraveacutes do que foi

chamado de providentia specialis garante a si a semelhanccedila de Deus e para

aplacar essa ira divina propotildee um pacto Iahweh - Noeacute do qual surge nova alianccedila

de Deus com os homens

Somente no Novo Testamento surge a figura do Espiacuterito Santo e aiacute a

fixaccedilatildeo da imagem da diacuteade divina

No entanto ateacute este momento natildeo havia entendimentos entre Deus

Iahweh e os homens nem entre os homens e Deus Era necessaacuterio um

entendimento mais humano das coisas terrenas Parece que podemos entender

ser a criaccedilatildeo imperfeita e tambeacutem Deus natildeo pode atender plenamente os

179 JUNG 1990 par597

232

requisitos de sua tarefa era necessaacuteria a criaccedilatildeo de um intermediaacuterio que

entendesse das coisas divinas e das coisas humanas Um Deus mais humano e

que entendesse o logos Dei O Uno precisava ser substituiacutedo por outro O mundo

do Pai deveria ser substituiacutedo pelo mundo do Filho

Alguma transmissatildeo cultural deve ter havido advinda da Babilocircnia do

Egito e da Greacutecia pois esses siacutembolos fazem parte dos fundamentos das imagens

miacuteticas e arquetiacutepicas do pensamento humano Aqui discutimos apenas aquilo

que emanou natildeo de pressupostos filosoacuteficos (mesmo os platocircnicos) mas sim

dos pressupostos arquetiacutepicos inconscientes inerentes agrave natureza humana

O Espiacuterito Santo anuncia o nascimento do Filius Dei e se completa

assim a Trindade a qual eacute nossa pesquisa para este tema

A Trindade Cristatilde natildeo tem a mesma origem das triacuteades divinas

babilocircnicas egiacutepcias ou gregas pois elas se diferem na concepccedilatildeo Por exemplo

enquanto a triacuteade platocircnica resulta de uma antiacutetese a Trindade ao contraacuterio eacute

totalmente harmocircnica entre si As denominaccedilotildees Pai Filho e Espiacuterito Santo natildeo

derivam absolutamente do nuacutemero trecircs e sim de um elemento uno

Apoacutes o Pai logicamente segue-se o Filho no entanto o Espiacuterito Santo

natildeo tem sua origem nem no Pai nem no Filho sendo portanto uma realidade

particular e de um pressuposto diferente Conforme se pode obter de Jung180 na

antiga doutrina Cristatilde o Espiacuterito Santo eacute vera persona quae filio et a patre missa

est [verdadeira pessoa enviada pelo pai e pelo Filho] O processio a patre filioque [o

180 JUNG 1988 par 197

233

ato de proceder do pai e do Filho] eacute uma inspiraccedilatildeo e natildeo uma geraccedilatildeo como no

caso do filho

De acordo com sua definiccedilatildeo o Pai eacute a prima causa o

creator o auctor rerum (o criador das coisas) o qual num determinado

estaacutegio cultural incapaz de reflexatildeo pode ser simplesmente o Uno 181

Mas se procurarmos a Matildee natildeo a encontraremos na Trindade e assim

natildeo poderemos entender a geraccedilatildeo do Filho Seria Trindade tambeacutem

transformada e quatro pontos e natildeo mais em trecircs Acontece que desde a Babilocircnia

ou do Egito a relaccedilatildeo pai-filho-vida com a exclusatildeo da matildee ou progenitora divina

constitui a foacutermula patriarcal que fazia parte da cultura desses povos o que vai

influenciar totalmente a mesma relaccedilatildeo patriarcal do periacuteodo do nascimento da

Trindade Cristatilde

No velho Egito e no Cristianismo a Matildee de Deus fica fora da trindade

No templo as coisas ritualiacutesticas eram exclusivas do homem e seus filhos Em

Lucas (2 40-49) Maria vai ao templo onde Jesus com 12 anos estava jaacute haacute trecircs

dias entre os mestres e lhe pergunta onde andava e ele lhe responde Porque me

procuraacuteveis Natildeo sabiacuteeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai

Desde os primoacuterdios os ritos iniciaacuteticos dos primitivos misteacuterios

sempre afastaram os jovens de suas matildees e os transformavam atraveacutes de um

181 idem par199

234

novo nascimento Essa ideacuteia miacutetica e arquetiacutepica continua viva ateacute os tempos de

hoje atraveacutes do celibato sacerdotal Mais uma vez a cultura e sua transmissatildeo de

forma educacional geram as fontes do mito A relaccedilatildeo sublimada pai-filho gera a

concepccedilatildeo de um espiacuterito que representa a encarnaccedilatildeo ideal da vida masculina

Outra possibilidade de transformaccedilatildeo da triacuteade em quatro pontos de

fundamento seria a da inclusatildeo do democircnio nesse grupo No entanto tambeacutem

isso natildeo seria possiacutevel pois o mal o democircnio as disposiccedilotildees morais soacute surgem

com um Cristianismo jaacute fundado em bases soacutelidas com o mito cristatildeo jaacute fazendo

parte e tendo efeito na vida da alma humana e cristatilde

Gostaria de lembrar que o mito se forma com as imagens primordiais

que possuem fatores que coordenam a psique humana e seratildeo reconhecidos

como formadores do mito apoacutes pertencerem e fazerem efeito na vida do homem

Novamente a cultura e a transmissatildeo da tradiccedilatildeo geram as fontes miacuteticas Se as

disposiccedilotildees morais natildeo estavam definidas como definir o mal Como definir o

democircnio

Mas a evoluccedilatildeo continua e a Trindade se fixa nos conceitos do homem

do mundo conhecido de entatildeo A vida do Homem-Deus faz com que seja revelada

a mais importante das revelaccedilotildees coisas que soacute podiam ser explicadas pelo

Filho visto que o Pai em seu estado original de uno natildeo tinha como revelar ao

homem a existecircncia do Espiacuterito Santo que conforme foi visto anteriormente apoacutes

a morte do Filho apoacutes ter abandonado o espaccedilo terreno desce sobre a alma dos

homens e envolve a todos com sua bondade e benevolecircncia para fazer mais

235

pelos homens do que fez o Pai ou o Filho o elemento miacutetico que completa

definitivamente a Trindade e reconstitui a unidade

Assim se lecirc na primeira carta de Clemente 466 Temos

um soacute Deus e um soacute Cristo como tambeacutem um soacute Espiacuterito 182

Ou como pode ser lido no Credo batismal chamado o Symbolum

Apostolicum atestado por documentos a partir do seacuteculo IV

Creio em Deus Pai todo poderoso em Jesus Cristo seu

filho unigecircnito nosso Senhor o qual doacutei concebido pelo Espiacuterito

Santo e nasceu de Maria Virgem foi crucificado sob Pocircncio Pilatos e

sepultado ao terceiro dia ressurgiu dos mortos subiu aos ceacuteus estaacute

sentado agrave direita da Deus Pai de onde haacute de vir a julgar os vivos e os

mortos e no Espiacuterito Santo na santa Igreja na remissatildeo dos

pecados na ressurreiccedilatildeo da carne 183

Por mais que qualquer racionalidade cultural pudesse tentar explicar

esse conceito de Trindade sempre permaneceu incoacutelume principalmente porque

apoacutes um mito ter sido fundado por seu poder criador ele passa a pertencer a um

mundo arquetiacutepico que natildeo pode ser atingido pela racionalidade pois o arqueacutetipo

o mito por residir por emanar do inconsciente humano adquire um caraacuteter

numinoso que torna impossiacutevel enquadraacute-lo no mundo da racionalidade tendo

182 JUNG 1988 par 207 183 JUNG 1988 par 211

236

muitas vezes sim gerado em na histoacuteria discussotildees vazias disputas verbais e

ateacute violecircncia na tentativa de se explicar o dogma da Santiacutessima Trindade

O conceito de santidade indica que uma determinada

coisa ou ideacuteia possui valor supremo cuja presenccedila leva o homem

por assim dizer ao mutismo A santidade eacute reveladora eacute a forccedila

iluminante que dimana da forma arquetiacutepica184

Somente o termo santiacutessima jaacute nos faz entender que o arqueacutetipo se

tornou ativo e que o mito impregnou a alma do homem poacutes cristianismo ou como

denomina a psicologia tambeacutem racionalista de presenccedila psiacutequica extra-

consciente

Para onde entatildeo foi o homem Jesus como poderiacuteamos definir ou contar

sua histoacuteria enquanto homem Natildeo havia mais Jesus o homem foi substituiacutedo

pelo mito mesmo nas palavras de Paulo por exemplo pois nunca uma palavra de

Jesus foi citada em qualquer de seus discursos O que se falava de Jesus se

falava do mito do arqueacutetipo sempre representado pela figuras de O Senhor dos

Democircnios o Salvador Coacutesmico etc Nunca mais surge na histoacuteria o humano de

Jesus Transformou-se o homem em sua expressatildeo miacutetica pois o Homem-Deus

o Deus Eterno natildeo tem histoacuteria do ponto de vista humano somente alegorias da

iconografia da Idade Meacutedia

184 JUNG 1988 par 235

237

Como pastor Ele eacute o condutor e o centro dos rebanhos Eacute

a videira Enquanto os que o seguem satildeo os ramos Seu corpo eacute patildeo

que se come e seu sangue eacute vinho que se bebe Ele eacute tambeacutem

Corpus mysticum formado pela uniatildeo dos crentes Como

manifestaccedilatildeo humana eacute o Heroacutei e o Homem-Deus sem pecado por

isso mais completo e perfeito do que o homem natural que Ele

ultrapassa e abrange e que estaacute pra Ele na mesma relaccedilatildeo de uma

crianccedila para o adulto ou da ovelha pra o homem 185

Ele eacute o Arqueacutetipo da Cristandade ele eacute o mito Cristatildeo

185 JUNG 1988 par 229

238

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Fontes

ANCHIETA Joseacute de Cartas

Informaccedilotildees Fragmentos Histoacutericos e

Sermotildees

1534-1597 Belo Horizonte Itatiaia S Paulo Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1988

__________ Diaacutelogos da Feacute

obras completas 8deg vol

introduccedilatildeo e notas

Pe Armando Cardoso Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988

__________ Feitos de Men de Saacute Paraacute de Minas Virtual Books 2000

__________ Auto de Satildeo Lourenccedilo - Paraacute de Minas Virtual Books 2000

BETTENDORF Joatildeo Felipe Pe 1627-1698

Crocircnica dos padres da

Companhia de Jesus do Estado de Maranhatildeo Beleacutem Fundaccedilatildeo Cultural do

Paraacute Tancredo Neves 1990

CARDIM Fernatildeo

1540-1625

Tratados da terra e gente do Brasil Belo

Horizonte Ed Itatiaia Satildeo Paulo Ed Da Universidade de Satildeo Paulo 1980

COLOacuteNCristoacutebal - Carta a los Reyes Catoacutelicos - 2000 virtualbookscombr -

Editora Virtual Books - Online MampM Editores Ltda

CAMINHA Pero Vaz de

A Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de

Portugal - Ministeacuterio da Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

(Coacutepia obtida via internet) e Carta de Pero

Vaz de Caminha

A certidatildeo de Nascimento da Naccedilatildeo Brasileira

Brasil 500

Anos Bradesco - 2000

NAVARRO Azpicuelta e outros - Cartas Avulsas 1550-1568 Belo Horizonte

ItatiaiaSatildeo Paulo Edusp 1988

NOacuteBREGA Manuel da Cartas do Brasil Belo Horizonte - ItatiaiaSatildeo Paulo

Edusp 1988

SALVADOR Frei Vicente do A Histoacuteria do Brasil

1500-1627 5a Ed Satildeo

Paulo Melhoramentos 1965

239

STADEN Hans Duas Viagens ao Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia Satildeo

Paulo Ed da Universidade de Satildeo Paulo [1557] 1974

VIEIRA Pe Antonio Sermotildees

Obras Completas

vol V- Sermatildeo do

Espiacuterito Santo Lisboa Lelo e irmatildeo Editores 1951

OUTRAS REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREU J Capistrano de

Capiacutetulos da Histoacuteria Colonial - Ministeacuterio da

Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro

versatildeo para e-books [httpwwwbnbrbibvirtualacervo]

1907

obtida em

2004

BACHELARD Gaston

A Terra e os Devaneios do Repouso

Satildeo Paulo

Martins Fontes 1990

BIacuteBLIA ELETROcircNICA 252 RK Soft Desenvolvimento

BIacuteBLIA SAGRADA - Nova traduccedilatildeo na linguagem de hoje

Barueri-SP

Sociedade Biacuteblica do Brasil 2000

BUENO Silveira

Vocabulaacuterio Tupi-Gurani

Portuguecircs

Satildeo Paulo Eacutefeta

Editora 1998

CALMON Pedro

Histoacuteria do Brasil

Seacuteculo XVI

As origens e Seacuteculo

XVII

Formaccedilatildeo Brasileira - Vol 1 e 2

Rio de Janeiro - Livraria Joseacute

Oliacutempio Editora 2a ed 1963

CALLOIS Roger Les jeux et les hommes

le masque et le vertige Paris

Galiimard 1985

CAMPBELL Joseph com Bill Moyers

O Poder do Mito - Satildeo Paulo Ed

Palas Athena 1990

240

CARDOSO Armando (Trad) O Teatro de Anchieta

Obras Completas - 3o

Volume - SPaulo Loyola 1977

CARNOT Sady A destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

Brasil Seacuteculo XVI

uma visatildeo junguiana

Prefaacutecio de Joseacute Maria de Paiva - S Matheus

ES

Memorial 2005

CAROTENUTO Aldo

Eros e Pathos Amor e sofrimento Satildeo Paulo Ed

Paulus 1994

CASSIRER Ernest

Antropologiacutea Filosoacutefica

Meacutexico Fondo de Cultura

Econoacutemica 1945

CHAIN Iza G C

O Encontro de Dois Mundos In O Diabo nos Porotildees das

Caravelas Tese de Mestrado texto obtido atraveacutes da Internet 2003

CRIPPA Adolfo

Mito e Cultura Satildeo Paulo Conviacutevio 1975

DEWEY John

Democracia e educaccedilatildeo Breve tratado de Philosophia de

Educaccedilatildeo Biblioteca Pedagoacutegica Brasileira

Companhia Editora Nacional S

Paulo 1936

DOURLEY John P A doenccedila que somos noacutes

A criacutetica de Jung ao

cristianismo trad Roberto Girola - Satildeo Paulo Paulus 1987

EDINGER Edward F

O Arqueacutetipo Cristatildeo

Um comentaacuterio junguiano

sobre a vida de Cristo Satildeo Paulo Cultrix 1988

__________ - A Criaccedilatildeo da Consciecircncia

O mito de Jung para o Homem

moderno Satildeo Paulo Cultrix 1999

FERNANDES Florestan

A funccedilatildeo social da guerra na sociedade

Tupinambaacute - Satildeo Paulo Livraria Pioneira Editora 1970

FREYRE Gilberto - Casa Grande e Senzala - Rio de Janeiro Livraria Joseacute

Oliacutempio 1984

__________- Casa Grande e SenzalaRio de Janeiro Rio Filmes com apoio

da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco e Fundaccedilatildeo Gilberto Freyre

narrado por

241

Edson Nery da Fonseca amigo pessoal e bioacutegrafo de Gilberto Freyre Capiacutetulo

II A cunha matildee da Famiacutelia Brasileira 2000

GAMBINI Roberto

O espelho iacutendio os jesuiacutetas e a destruiccedilatildeo da alma

indiacutegena - Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo 1988

GAcircNDAVO Pero de Magalhatildees

Tratado da Terra do Brasil

Histoacuteria da

Proviacutencia Santa Cruz - Belo Horizonte Itatiaia 1980

GINZBURG Carlo Mitos Emblemas Sinais - Satildeo Paulo Schwarkz 2002

GODINHO Vitorino Magalhatildees A estrutura social do Antigo Regime In

GODINHO VM A estrutura na Antiga Sociedade portuguesa Lisboa Arcaacutedia

1971

GUSDORF Georges Mito y Metafiacutesica Buenos Aires Editorial Nova 1959

HERNANDES Paulo Romualdo O Teatro de Joseacute de Anchieta Arte e

Pedagogia no Brasil Colocircnia

Campinas Biblioteca de Educaccedilatildeo da

UNICAMP 2001

HOELLER Stephan A A Gnose de Jung e os Sete Sermotildees aos mortos

Satildeo Paulo Cultrix 1991

__________ Jung e os evangelhos perdidos

Uma apreciaccedilatildeo junguiana

sobre os manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi - Satildeo

Paulo CultrixPensamento 1993

HOLLIS James

Rastreando os Deuses

O lugar do mito na vida

moderna Satildeo Paulo Paulus 1998

JAFFEacute Aniela

O Mito do significado na Obra de C Gustav Jung- Satildeo

Paulo Cultrix 1995

JACOBI Jolande Complexo Arqueacutetipo Siacutembolo na Psicologia de CG

Jung Satildeo Paulo Ed Cultrix 1991

JECUPEacute Kakaacute Weraacute A Terra dos mil Povos Satildeo Paulo Editora Fundaccedilatildeo

Peiroacutepolis 1999

242

______Tupatilde Tenondeacute Satildeo Paulo Peiroacutepolis 2001

JUDY Dwight H

Curando a Alma Masculina

O Cristianismo e a

Jornada miacutestica Satildeo Paulo Paulus 1998

JUNG C G A importacircncia dos sonhos In O Homem e seus siacutembolos

CG Jung MLvon Franz Joseph L Henderson Jolande Jacobi e Aniela Jaffeacute

Rio de Janeiro Nova Fronteira 1964

_______ Memoacuterias Sonhos e Reflexotildees Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira

1975

_______ Psicologia e Religiatildeo - Obras Completas

Vol XI1 Petroacutepolis

Vozes 1978

_______ Aion - Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo Petroacutepolis

EdVozes 1982

_______ O Siacutembolo da Transformaccedilatildeo na Missa Obras Completas Vol

XI3 Petroacutepolis Ed Vozes 1985

_______ Mysterium Coniunctionis

Obras Completas- vXIV1 Petroacutepolis

Vozes 1988

_______ A interpretaccedilatildeo Psicoloacutegica do Dogma da Trindade Obras

Completas Vol XI2 Petroacutepolis Vozes 1988

_______ Siacutembolos da Transformaccedilatildeo Obras completas VolV Petroacutepolis

Vozes 1989

_______ Civilizaccedilatildeo em Transiccedilatildeo Petroacutepolis Ed Vozes 1993

_______ Resposta a Jocirc Petroacutepolis Ed Vozes 1990

LACOUTURE Jean Os Jesuiacutetas

A Conquista

vol 1

Lisboa Editorial

Estampa 1993

LANA Firmino Arantes e LANA Luiz Gomes

Antes o mundo natildeo existia

Mitologia dos antigos Desana-Kehiriacutepotilderatilde - Satildeo Gabriel da Cachoeira

AM

FOIRN Federaccedilatildeo das Organizaccedilotildees dos Indiacutegenas do Rio Negro 1995

243

MAGASICH-AIROLA Jorge e BEER Jean-Marc de Ameacuterica Maacutegica

Quando a Europa da Renascenccedila pensou estar conquistando o Paraiacuteso

Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

MAY Rollo A procura do mito Satildeo Paulo Manole1992

MENDES Antoacutenio Rosa A vida Cultural In MATTOSO Joseacute Histoacuteria de

Portugal Lisboa Estampa1992 tIII coord de Joaquim Romero Magalhatildees

MONTEIRO John M Tupis Tapuias e Historiadores- Estudos de Histoacuteria

Indiacutegena e do Indigenismo Tese apresentada pra o concurso de Livre

Docecircncia Aacuterea de Antropologia Campinas IFCH Unicamp 2001

MORENTE Manuel Garcia Fundamentos de filosofia e liccedilotildees preliminares

(metafiacutesica idealismo e positivismo)8a Ed Traduccedilatildeo e proacutelogo de Guilhermo

de la Cruz Coronado Satildeo Paulo Editora Mestre Jou 1930

NEVES Luiz Felipe Baeta

O Combate dos Soldados de Cristo na Terra

dos Papagaios

Colonialismo e Repressatildeo Cultural

Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1978

NOGUEIRA Carlos Roberto F O Diabo no imaginaacuterio cristatildeo Bauru Edusc

2000

PAIVA Joseacute Maria de Histoacuteria da Educaccedilatildeo Colonial

texto natildeo publicado

2002

_______ Religiosidade e Cultura

Brasil Seacuteculo XVI uma chave de

leitura Texto natildeo publicado 2002

_______ Catequese e Colonizaccedilatildeo Satildeo Paulo CortezAutores Associados

1982

PEacuteCORA Alcir Teatro do sacramento A unidade teoloacutegico-retoacuterico-

poliacutetica dos sermotildees de Antocircnio Vieira Satildeo Paulo-Campinas EduspEditora

da Unicamp 1994

RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

244

SEREBURAtilde e outros

Wamrecircmeacute Zaacutera

Mito e Histoacuteria do Povo Chavante

Nossa Palavra Satildeo Paulo SENAC 1998

TAVARES Eduardo e outros

Missotildees Jesuiacutetico- Guarani Satildeo Leopoldo

Unisinos 1999

TODOROV Tzvetan A Conquista da Ameacuterica A questatildeo do outro 3a Ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

WHITMONT Edward A Busca do Siacutembolo Satildeo Paulo Ed Cultrix 1990

WYLY James

A busca Faacutelica

Priapo e a Inflaccedilatildeo Masculina

Satildeo

Paulo Ed Paulus 1994

XAVIER Acircngela Barreto amp HESPANHA Antonio Manuel a Representaccedilatildeo da

Sociedade e do PoderIn MATTOSO Joseacute Histoacuteria de Portugal t IV Coord

de Antocircnio Manuel Hespanha Lisboa Estampa 1992

httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905

This document was created with Win2PDF available at httpwwwwin2pdfcomThe unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only

Page 3: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão

3

Agradecimentos

Agrave Ana Claacuteudia a luz que tem iluminado tantos caminhos

Homenagem

Aos meus filhos Gustavo Rodrigo e Leonardo com todo

amor que possa existir neste mundo

Para aqueles que natildeo puderam esperar e se encontram hoje

nos meus mitos e em minhas lembranccedilas Alice minha matildee

e Holmes meu pai

O presente trabalho foi realizado com o apoio da

COORDENACcedilAtildeO APERFEICcedilOAMENTO DE PESSOAL DE

NIacuteVEL SUPERIOR CAPES

BRASIL

4

RESUMO

Por entender que a anaacutelise de uma cultura mais englobante que outra eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual foi buscado neste trabalho entender como

essa espiritualidade leva o olhar para o centro do universo fazendo com que tudo

seja olhado a partir desse prisma Trata-se aqui dos resultados da conversatildeo dos

indiacutegenas durante o periacuteodo jesuiacutetico das coisas boas trazidas aos indiacutegenas

pela educaccedilatildeo portuguesa e do confronto de culturas na busca pela verdade de

um e de outro desse embate de mitos de tabus e pecados de Deus e de

demiurgos

Ao pesquisar como a visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do

viver na Europa quinhentista e seiscentista encontra-se que a feacute em Deus era a

uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou serem levados por ela ao uacutenico

mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural

natildeo era mais a natureza do homem e sim que a palavra de Deus tal qual

transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra conhecida e das terras a

se conhecer

O homem eacute nesse momento histoacuterico ator cultural de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

5

Era gerado entatildeo o grande embate de mitos baseado na saga de dois

heroacuteis de polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo

Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o

Orbis Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico indiacutegena

Eacute tratada aqui a ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas

onde os jesuiacutetas foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena

a Liacutengua Geral de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os

conceitos de sua cultura e de denegrir os conceitos da cultura indiacutegena

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas que as peccedilas que satildeo sempre as

mesmas estatildeo presas numa caixa Claro a educaccedilatildeo tambeacutem se baseia no mito

cultural

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida A educaccedilatildeo eacute exatamente isso

uma maneira de transmitir esse modo herdado e a maneira inata de se viver O

homem eacute o todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias

arquetiacutepicas que todos os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo

individual e possuindo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder essa participaccedilatildeo

arquetiacutepica de seu mundo o homem estaacute morto mesmo que natildeo fisicamente ele

agora eacute um defuncto que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

A didaacutetica da catequese trazia a definiccedilatildeo do democircnio ou do Diabo agraves

mentes indiacutegenas e isso se fazia pela pedagogia do terror que se impunha agraves

6

mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeosNesse embate

cultural uma certa profecia praticamente se confirmava de que haveria uma

transformaccedilatildeo de brancos em iacutendios e de iacutendios em brancos mas isso natildeo foi

possiacutevel pois ao final o mito cristatildeo derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos

os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano

7

RESUMEN

Por entender que la analice de una cultura mucho maacutes englobante que

otra es hecha de una forma mitoloacutegica y espiritual se busco en este trabajo

entender como esa espiritualidad lleva la mirada para el centro del universo

haciendo con que el todo sea mirado a partir de ese prisma Trata-se acaacute de los

resultados de la conversioacuten de los indiacutegenas durante el periacuteodo jesuiacutetico de las

cosas buenas traiacutedas a los indiacutegenas por la educacioacuten portuguesa y del

confronto de culturas en la buacutesqueda por la verdad de uno y de otro en ese

embate de mitos de tabus e pecados de Diacuteos e de demiurgos

Al pesquisar como la visioacuten del Orbis Christianus era la traduccioacuten del

vivir en la Europa quinientista se encuentra que la fe en Diacuteos era la uacutenica verdad

Todos deberiacutean estar en ella o llevados por ella al uacutenico mundo verdadero afora

del cual todo lo maacutes seria incuria e aberracioacuten El natural no era maacutes la

naturaleza Del hombre y si que la palabra de Diacuteos tal cual transmitida por la fe

cristiana llegase a los confines de la tierra conocida y de las tierras a conocer

El hombre es en ese momento histoacuterico actor cultural de una

complicada relacioacuten originaria de una dicotomiacutea entre el representado miacuteticamente

y el vivido en su realidad cotidiana no teniendo permisioacuten para conocer el pensar

el Bien sin antes pensar en el Mal pues sin embargo era tiempo de se reconocer

8

el enemigo para poder combate a ello por la gloria y triunfo del Redentor por

sobre el Tentador

Era generado entonces el embate de mitos con base en la saga de dos

heacuteroes de polaridades contrarias el europeo y el indiacutegena Cristo y el Diablo San

Lorenzo y San Sebastiaacuten de un lado contra Guaixaraacute y Aimberecirc del otro el Orbis

Christianus versus la visioacuten arquetiacutepica y el espiacuteritu cosmogoacutenico indiacutegena

Es tratada acaacute la herramienta de esa educacioacuten imposta a os

indiacutegenas donde los jesuitas fueran de una felicidad sin par al utilizaren la lengua

indiacutegena la Lengua General de Anchieta e sus autos teatrales como forma de

transmitir los conceptos de su cultura y de denegrir los conceptos de la cultura

indiacutegena

La educacioacuten es y siempre fue un caleidoscopio que muestra los maacutes

diversos y bellos dibujos e formas mas que las piezas que son siempre las

mismas estaacuten presas en una caja Claro la educacioacuten tambieacuten hace su base en el

mito cultural

La funcioacuten de los mitos no es denotar una idea recibida pero si un

modo de funcionamiento que corresponde a la manera innata pela cual el hombre

nace e se relaciona en su vida vivida La educacioacuten es exactamente eso una

manera de transmitir ese modo recibido por herencia y la manera innata de se

vivir El hombre es el todo de sus relaciones pues recibe las mismas influencias

arquetiacutepicas que todos los hombres de su grupo social reciben mismo siendo

individual e teniendo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder esa participacioacuten

9

arquetiacutepica de su mundo el hombre esta muerto mismo que no fiacutesicamente ello

ahora es un defuncto que no poseacute maacutes funciones a delante de la vida

La didaacutectica de la catequice tenia en si la definicioacuten del demonio o del

Diablo y la metiacutea en las mentes indiacutegenas y eso se haciacutea por la pedagogiacutea del

terror que se impugna a las mentes desavisadas de la existencia del Bien y del

Mal de los cristianos

En ese embate cultural una cierta profeciacutea praacutecticamente si confirmaba

que habriacutea una transformacioacuten de blancos en indios y de indios en blancos pero

eso no fue posible pues al final el mito cristiano derrotoacute Guaixaraacute Aimbirecirc

Saravaia y todos los otros diablos llevando con ellos hasta Deacutecio e Valeriano

10

SUMAacuteRIO

RESUMO _________________________________________________________ 4

RESUMEN ________________________________________________________ 7

SUMAacuteRIO _______________________________________________________ 10

Introduccedilatildeo _______________________________________________________ 11

Capiacutetulo 1 - A educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura que ensina e altera

costumes________________________________________________________ 36

Capiacutetulo 2 - O Mito ________________________________________________ 46

Capiacutetulo 3 - O mito Cristatildeo___________________________________________ 72

Capiacutetulo 4 - Como o Europeu Cristatildeo compreendia os indiacutegenas e a concepccedilatildeo

que tinham da vida desses brasis _____________________________________ 76

Capiacutetulo 5 - Como os indiacutegenas teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde e as dificuldades

encontradas na missatildeo de converter ___________________________________ 93

Capiacutetulo 6 - O Teatro como ferramenta educacional e de catequese _________ 119

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos_____________ 126

Conclusatildeo - O resultado do embate desses mitos na educaccedilatildeo e na cultura

brasileira________________________________________________________ 145

Apecircndices ______________________________________________________ 151

Apecircndice 1 O Auto de Satildeo Lourenccedilo Joseacute de Anchieta ________________ 152

Apecircndice 2 - A missa e os siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem____ 197

Apecircndice 3 O Mito de Cristo _______________________________________ 208

Apecircndice 4 - Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade 228

Referecircncias Bibliograacuteficas__________________________________________ 238

Outras referecircncias bibliograacuteficas_____________________________________ 239

11

INTRODUCcedilAtildeO

Eu queria ser como a aranha que tira de seu ventre todos

os fios de sua obra A abelha me eacute odiosa e o mel eacute para mim o

produto de um roubo

Papini Un homme fini

Entendendo que concluiacutedo o Mestrado em Histoacuteria e Educaccedilatildeo

trabalhando atraveacutes da teoria de Carl Gustav Jung a relaccedilatildeo jesuiacutetica com os

indiacutegenas no seacuteculo XVI mostrando a destribalizaccedilatildeo da alma indiacutegena atraveacutes da

imposiccedilatildeo cultural deveria continuar no processo de pesquisa sobre o assunto e

sob a mesma lente

Pesquisei teoacutericos filoacutesofos educadores e historiadores que pudessem

comprovar a tese a ser apresentada

Busco no sentido da vida desses homens jesuiacutetas em suas relaccedilotildees

com os indiacutegenas a proacutepria vida desses padres experienciada e tornada viva

atraveacutes de seus mitos e crenccedilas

Entendo que a anaacutelise de uma cultura elaborada por outra muito mais

englobante como no caso da cultura portuguesa em relaccedilatildeo agrave dos indiacutegenas eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual Essa espiritualidade leva o olhar para o

12

centro do universo fazendo com que tudo seja olhado a partir desse prisma

conforme jaacute pude demonstrar em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena objeto de

minha dissertaccedilatildeo de mestrado

Por entender o trabalho jesuiacutetico uma tarefa hercuacutelea composta de

uma saga heroacuteica na luta contra a resistecircncia indiacutegena agrave conversatildeo e agrave

catequese busco a simbologia e a interpretaccedilatildeo dessa saga

Por entender que mesmo sabendo dos resultados dessa conversatildeo no

sentido de destruir a alma indiacutegena houve como resultado desse confronto de

culturas um embate pela busca da verdade de sentido de significaccedilatildeo atraveacutes

dos tempos que alimentavam as mentes ainda eacutebrias de medievalismo e das

experiecircncias da alma do mato busco essa miacutetica esse relato de embates

Embate de mitos Embate de tabus e pecados de Deus e de deuses Enfim da

experiecircncia de vida

Quando utilizo a palavra embate em vaacuterios momentos deste texto

posso estar sendo ateacute mesmo mal compreendido pois muitos leitores poderatildeo

afirmar que as culturas quando se encontram se permeiam se harmonizam

Poderatildeo afirmar que sempre no encontro de duas culturas sobraraacute para os dois

lados aculturaccedilotildees costumes expressotildees linguumliacutesticas lendas antigas e as lendas

que surgiratildeo desse encontro Claro que sim natildeo tenho duacutevidas quanto a isso

Mas natildeo eacute essa a intenccedilatildeo Minha proposta eacute a de deixar claro que em

se tratando dos mitos culturais em se tratando do cristatildeo europeu ainda o

portuguecircs mais ameno que o espanhol houve sim um embate de mitos isto eacute um

choque impetuoso de culturas composta de oposiccedilotildees e resistecircncias (agraves vezes

13

mais passivas ou paciacuteficas poreacutem natildeo menores) poreacutem sempre se forma a

comparar-se com um abalo violento e profundo nas crenccedilas dos indiacutegenas

brasileiros

Por mais que resistissem os brasis o Orbis Christianus era violento

quanto agrave natureza real do homem

A visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do viver na Europa

quinhentista A feacute em Deus era a uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou

serem levados por ela ao uacutenico mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria

injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural natildeo era mais a natureza do homem e sim que a

palavra de Deus tal qual transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra

conhecida e das terras a se conhecer

Atraveacutes dessa visatildeo de mundo pudemos assistir agrave instituiccedilatildeo de novos

conteuacutedos simboacutelicos nas terras receacutem-descobertas articulados de maneira

extremamente eficaz entre a realidade cristatilde e o imaginaacuterio europeu quinhentista

Os guardiotildees do sagrado como foram chamados os cleacuterigos

devotam suas vidas com o uacutenico intuito de uniformizar as consciecircncias e converter

as almas pertencentes a Satatilde e seus ajudantes garantindo a hegemonia das

crenccedilas e a desculturaccedilatildeo de qualquer povo que natildeo vivesse os bons costumes

e natildeo pertencesse ao rebanho de fieacuteis

O seacuteculo XVI denotou na visatildeo cristatilde que o mundo se encontrava

dividido em duas partes bastante distintas

Os que cultivavam o Bem e as virtudes

14

Os que cultivavam o Mal e seus viacutecios

Tal qual na alegoria usada em O diabo no imaginaacuterio cristatildeo

O mundo se orienta como o portal de uma igreja goacutetica no

alto e no meio encontra-se Deus rodeado de um coro de anjos com

os santos e os justos prestando-lhes homenagem abaixo estatildeo os

mortais e na parte inferior ou agrave espreita os espiacuteritos malignos que

possuem formas horriacuteveis ou pelo menos enigmaacuteticas e cocircmicas

(NOGUEIRA 2000 39)

O homem eacute nesse momento histoacuterico personagem de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

Em contra-partida a essa postura miacutetica cristatilde surgem nas relaccedilotildees os

conteuacutedos da psique primitiva dos indiacutegenas brasileiros gerando costumes

padrotildees de comportamentos remexendo as sombras 1 jesuiacuteticas influenciando

1 A Sombra enquanto arqueacutetipo -Conforme nos orienta ML von Franz (JUNG 1964) e citado em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena (CARNOT Sady 2005p55) A Sombra pertence ao nosso mundo interior mais escondido descendo agraves profundezas do nosso proacuteprio mal e tornando o indiviacuteduo capaz de reconhecer em si o instinto e suas mentiras nada inocente nem tolo mas bem protegido contra tudo aquilo que de dentro possa surgirO arqueacutetipo Sombra eacute de todos os conteuacutedos arquetiacutepicos o que fica mais proacuteximo ao Ego cuja essecircncia estaacute mais em contato com a tona mais superficial sendo formada por componentes que jaacute fizeram parte um dia do presente do indiviacuteduo jaacute fizeram parte do seu cotidiano mas que foram reprimidos por natildeo pertencerem ao rol de compatibilidades desejadas pelos valores estabelecidos pelo social ao consciente ou por natildeo terem sido fortes o suficiente para ultrapassarem a consciecircncia e permaneceram em latecircncia dentro do Inconsciente Pessoal

15

com suas resistecircncias de aculturaccedilatildeo todo um conteuacutedo arquetiacutepico europeu que

veio dar origem agrave cultura brasileira

Esses embates culturais podem ser notados em cartas de marinheiros

cartas de jesuiacutetas a seus superiores e irmatildeos da Companhia de Jesus aleacutem da

utilizaccedilatildeo das simbologias miacuteticas de nossos indiacutegenas na elaboraccedilatildeo de taacuteticas

de conversatildeo presentes nos aldeamentos na supremacia dos sacramentos na

pedagogia do dia-a-dia e em especial em Anchieta que os mostra atraveacutes dos

autos como o de S Lourenccedilo e o da Pregaccedilatildeo Universal entre outros

Nesses autos nota-se claramente a noccedilatildeo de bem e mal que era

passada de forma determinista aos indiacutegenas

O Bem representando o fiel o santo o heroacutei o salvador os padres ou

abareacute a personagem Karaibebeacute grande cacique que aliado de Tupatilde e dos abareacute

na defesa das novas leis e dos novos costumes mostram o erro de seguir os

maus costumes das tradiccedilotildees e das falas de Guaixaraacute e Aimbirecirc

O Mal representado tambeacutem por grandes chefes como Guaixaraacute e

Aimbirecirc o diaboacutelico o proacuteprio democircnio bebedor de cauim que gosta de fumar e

defender os costumes da tradiccedilatildeo como danccedilar enfeitar-se tingir o corpo de

vermelho do urucum ou do preto da jemouacutena (una = preto)

Enfim grande embate de mitos baseado na saga de dois heroacuteis de

polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo Lourenccedilo e

16

Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o Orbis

Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico 2 indiacutegena

Muitas vezes em minha tese pretendo utilizar o conceito de experiecircncia

definido como um conhecimento que nos eacute transmitido pelos sentidos como um

conjunto de conhecimentos individuais ou especiacuteficos que constituem aquisiccedilotildees

vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade quer no sentido

metafiacutesico quer no sentido de aculturaccedilatildeo

A cada experiecircncia o indiviacuteduo se expotildee e soma a si o resultado do

ocorrido do fato do resultado Assim experiecircncia eacute a soma das situaccedilotildees que

influenciaram e influenciam a pessoa e as comunidades em toda a histoacuteria da

humanidade

Na imposiccedilatildeo cultural do portuguecircs do seacuteculo XVI sobre o indiacutegena

muitas vezes a renovaccedilatildeo era feita sob pressatildeo sob coerccedilatildeo em que o algo

transformado o indiviacuteduo transformado era sem que a experiecircncia pudesse ser

acumulada e sim imposta natildeo permitindo ao gentio a interaccedilatildeo com sua proacutepria

vida e em relaccedilatildeo ao ambiente do qual dependia visceralmente para sobreviver

Essa soma que Dewey chama de renovaccedilotildees satildeo a extensatildeo da

experiecircncia do indiviacuteduo e da espeacutecie no entanto vida para o ser humano

consiste em costumes crenccedilas instituiccedilotildees vitoacuterias e derrotas isto eacute a

experiecircncia

2 do grego kosmogonia - A origem ou formaccedilatildeo do mundo do universo conhecido Parte de uma cosmologia que trata especificamente da criaccedilatildeo e formaccedilatildeo do mundo Qualquer narrativa doutrina ou teoria a respeito da origem do mundo ou do universo

17

Poderia dizer que o homem vive em comunidade nas relaccedilotildees

pessoais em virtude das coisas que tem em comum e a comunidade eacute o meio

pelo qual se chega a possuir essas coisas comuns No entanto na relaccedilatildeo entre

mitos indiacutegenas total e completamente inserido no que falaremos mais tarde no

mito filosoacutefico e a imposiccedilatildeo do mito cristatildeo considerado numa relaccedilatildeo com a

racionalidade pouco de comum havia entre esses dois povos tatildeo distintos Por um

lado o aguerrido o natural o nu e o livre e do outro dogmas pecados eacutebrios de

medievalidade impondo sua cultura ad majorem Dei gloriam

A educaccedilatildeo como forma de transmissatildeo de cultura suprime a distacircncia

entre as ideacuteias dos mais velhos e a acircnsia de conhecer e modificar dos mais novos

e imaturos No entanto perguntaria a esses indiacutegenas se as ideacuteias dos

considerados mais velhos mais importantes ateacute mesmo com poderes divinos

como se os tivessem os padres jesuiacutetas natildeo tinham uma distacircncia tatildeo grande de

suas proacuteprias ideacuteias a ponto de que essas ideacuteias natildeo pudessem ser entendidas

tal como as noccedilotildees de pecado de ceacuteu e inferno ou mesmo de um deus tatildeo cruel a

ponto de matar toda uma tribo atraveacutes da gripe ou da variacuteola para mostrar que

esse Deus deveria ser louvado

Natildeo eacute por viverem em proximidade material ou por trabalharem pelo

mesmo fim comum que se pode dizer que um indiviacuteduo vive em comunidade eacute

necessaacuterio que se possua o conhecimento desses fins comuns sejam eles seus

deuses seu governo seus costumes e seus anseios Isso sim forma uma

comunidade Uma comunidade eacute aquela que vive no mesmo mito mito esse que

lhe explica a vida natildeo explicaacutevel

18

Toda comunicaccedilatildeo eacute educativa pois receber comunicaccedilatildeo receber

educaccedilatildeo eacute adquirir experiecircncia que viraacute a modificar seu modo de vida Quando o

modus faciendi de um indiviacuteduo modifica o modus vivendi de sua comunidade ele

estaacute fazendo cultura ele estaacute educando Ensinar a caccedilar eacute educar ensinar a

danccedilar eacute educar fazer um indiviacuteduo receber um novo mito eacute educar assim

ensinar a roubar e a matar eacute tambeacutem educar fazer adorar a um novo deus

tambeacutem eacute educar

Quando se fala em educaccedilatildeo formal poreacutem estamos falando de como

examinar se as aptidotildees daquilo que foi passado de um indiviacuteduo para outro para

habilitaacute-lo a participar de forma melhorada de uma vida em comum Eacute na

educaccedilatildeo formal escolar que se verifica se essa habilidade atua realmente nessa

vida comunitaacuteria isto eacute se o indiviacuteduo estaacute adaptado e atuando na vida comum se

estaacute avaliando se os conhecimentos transmitidos foram eficientes e se verifica

ainda a eficaacutecia dessa transmissatildeo

A educaccedilatildeo formal em suma avalia a eficaacutecia daquilo que foi passado

em conteuacutedo programaacutetico e isso existia de alguma forma nas escolas de ler e

contar criada pelos jesuiacutetas no Brasil Colocircnia

No entanto nas sociedades tribais ou grupos sociais menos

desenvolvidos encontramos muito pouco de adestramento formal poreacutem

encontramos vivecircncias de ritos de passagem nos quais os mitos satildeo fortes

ferramentas dessa educaccedilatildeo que considero tambeacutem formal poreacutem natildeo seriada e

programada

19

Como ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas os jesuiacutetas

foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena a Liacutengua Geral

de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os conceitos de sua

cultura e de demonizar os conceitos da cultura indiacutegena

Novamente afirmo ter clara a interpenetraccedilatildeo de valores e as traduccedilotildees

desses valores em ganho e perda para ambos os lados no entanto tento mostrar

aqui a habilidade de Anchieta em utilizar a liacutengua indiacutegena como ferramenta de

catequese como uma forma de acesso e penetraccedilatildeo na educaccedilatildeo indiacutegena e da

possibilidade com isso da imposiccedilatildeo de conceitos da Europa seiscentista

Habilidade houve tambeacutem por parte desse jesuiacuteta quando criou atraveacutes

dos autos a experiecircncia vivida pelo indiacutegena durante os espetaacuteculos teatrais

substituindo ateacute mesmo a liacutengua falada por ideacuteias contidas na gestualiadade

conforme nos mostra os paracircmetros do teatro greco-romano3 base dos autos de

Anchieta O corar o sorrir franzir o cenho os movimentos expressivos eacute que

3 Pelo teatro greco-romano (CALLOIS 1985) a influecircncia aplicada agrave plateacuteia eacute a seguinte Morphos Eacute a relaccedilatildeo do ator com o espaccedilo cecircnico e com a plateacuteia pois Morphos eacute a regra eacute a forma e o teatro eacute o jogo de transformar Mimeacutesis Eacute a relaccedilatildeo do ator e da personagem com o prover a si mesmo pois Mimeacutesis eacute a miacutemica a representaccedilatildeo Define a bandeira o lado pelo qual se defende ou ataca personagem versus plateacuteia ator versus ator personagem versus personagem ator versus plateacuteia e personagem versus plateacuteia Agon Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a agressividade pois eacute o Agon o diaacutelogo a luta o estranhamento entre dois lados novamente personagem versus personagem personagem versus plateacuteia plateacuteia versus personagem Lusus Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o que alimenta pois Lusus eacute a ilusatildeo eacute o sonho Eacute onde se tem a ideacuteia de que quando o meu lado ganha ou perde quem ganha ou perde sou euIlinx Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a loucura onde Ilinx eacute a vertigem o risco o perigo de se ganhar ou perder na conta de personagem versus personagem ou personagem versus plateacuteia etc Aleacutea Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o material com o fiacutesico com os resultados na qual o Aleacutea o aleatoacuterio o randocircmico eacute o que natildeo nos permite saber quem vai ganhar ou perder a contenda Plateacuteia versus personagem personagem versus plateacuteia ou personagem versus personagem etc

20

realmente comunicavam as ideacuteias a serem transmitidas incluindo-se a formaccedilatildeo

espiritual profunda onde o mito e crenccedilas cristatildes tiveram uma grande participaccedilatildeo

na formaccedilatildeo e definiccedilatildeo do rol de atividades da comunidade que se formava a

partir daiacute

Devo considerar que a comunidade o meio social se envolve com o

meio ambiente e digo que educar eacute de certa forma um ato ecoloacutegico pois forccedila os

laccedilos de sangue a perpetuarem os comportamentos que deram certo Quem deu

certo na relaccedilatildeo brasis e portugueses Seria ecologicamente correto seguir os

costumes da Santa Feacute Catoacutelica afinal era tudo uma questatildeo de sobrevivecircncia

para o indiacutegena mesmo com interesses diferenciados daqueles eleitos pelos

colonizadores

Natildeo poderia considerar essa falta de interesse dos indiacutegenas pelas

coisas de Deus ou da Coroa como incapacidade para entender o que era Lei Feacute

ou Rei mas como uma imaturidade como uma capacidade a ser desenvolvida

Sendo a educaccedilatildeo vinda da cultura portuguesa originaacuteria de um

depositum

fechado e definido como correto o seu saber eacute necessaacuterio realmente

que o indiviacuteduo que aprende seja um recipiente dependente e plaacutestico pois aos

moldes da Filosofia escolaacutestica tudo o que se recebe se recebe aos moldes do

recipiente Os indiacutegenas eram esse recipiente

No entanto os indiacutegenas natildeo eram essa argila mole ao menos natildeo

todos pois muitos tensionamentos ocorreram antes da aceitaccedilatildeo dos novos

costumes impostos O homem se acostuma a qualquer situaccedilatildeo e se adapta a

qualquer meio ambiente mas muitas vezes antes que isso ocorra o desconforto

21

e a resistecircncia a aceitaccedilatildeo pura e simples ficam evidentes Essas resistecircncias

ficaratildeo mais claras no capiacutetulo mais adiante em que mostro como os indiacutegenas

teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde

Outro ponto importante a ser mostrado eacute quanto aos aldeamentos

jesuiacuteticos onde o iacutendio foi obrigado a uma adaptaccedilatildeo a essa citada aceitaccedilatildeo de

costumes Os jesuiacutetas concebiam que aquela sociedade deveria ser una pela

concepccedilatildeo de bons propoacutesitos fidelidade de interesses e reciprocidade de

simpatia mas o que ocorria na verdade era a necessidade de sobrevivecircncia

daqueles que jaacute natildeo eram mais iacutendios e natildeo conseguiram pela aculturaccedilatildeo

imposta serem tambeacutem brancos e portugueses onde a homogeneidade cultural

natildeo existiu e natildeo existe ateacute hoje nas tribos de nossa atualidade

Como afirma Dewey (1936 p132) uma sociedade indesejaacutevel eacute a que

interna e externamente cria barreiras para o livre intercacircmbio e comunicaccedilatildeo da

experiecircncia A comunidade dos aldeamentos criava barreiras para a comunicaccedilatildeo

da experiecircncia isto eacute o poder de poucos sobre o conhecimento posto sobre as

coisas e a manutenccedilatildeo desse poder a qualquer custo

Haacute que se entender que enquanto o portuguecircs do seacuteculo XVI trazia a

verdade revelada recebida atraveacutes de leis instaacuteveis isto eacute aquelas que podem ser

mudadas conforme a decisatildeo do grupo social que as criou os gentios seguiam

as leis estaacuteveis as lei naturais que os fazia pensar o conhecimento de forma

distinta de seus protetores A filosofia explica o mundo para o filoacutesofo que a

pensa respondendo agraves suas proacuteprias perguntas As respostas agraves perguntas do

filoacutesofo atendem aos anseios do grupo e da eacutepoca em que ele vive pois eacute a

22

resposta agraves perguntas de uma sociedade de uma cultura e se o conceito

persiste eacute porque persistem as perguntas na consciecircncia dessa sociedade

A verdade revelada era imposta pois era atraveacutes de um novo mito que

se dava o novo conhecimento ao gentio O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria

verdade 4 Essa era a nova experiecircncia em que o indiacutegena do seacuteculo XVI se

encontrava experiecircncia essa que para ter valor real deveria fazer os brasis se

afastarem da dor ou se aproximarem do prazer Soacute essas duas coisas movem um

indiviacuteduo no Universo a que pertence

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertencia em relaccedilatildeo agrave nova natureza apresentada foi necessaacuterio ao indiacutegena

criar uma linguagem que pudesse dar conta de transcrever sua realidade afinada

com seu proacuteprio conhecimento de mundo Um novo mito em que ele deveria

chamar o padre de pai e de salvador Natildeo havia para o indiacutegena a divisatildeo entre o

mundo real e o mundo miacutetico e sim um uacutenico olhar que se espalha em todas as

direccedilotildees de sua existecircncia atraveacutes de sua vida vivida e possiacutevel

Assim viviam suas vidas da forma que lhes foi possiacutevel entre um

arremedo de branco e uma caricatura de iacutendio

No homem o possiacutevel se imprime sobre o real5

4 GUSDORF 1959 p13 5 GUSDORF 1959 p15

23

Natildeo parece que esses homens chamados gentios tivessem o

interesse de descobrir o como do mundo real e sim usar dessa forma esteacutetica

para trabalhar com suas fantasias e esperanccedilas subjetivas isto eacute experienciar

O homem moderno atraveacutes de seu racionalismo sentiu aos poucos o

esfriamento de sua psique primitiva e por consequumlecircncia perdeu muitas de suas

ilusotildees pois natildeo mais entra em contato com suas experiecircncias que satildeo o conjunto

e de conhecimentos individuais ou coletivos especiacuteficos ou natildeo e que constituem

aquisiccedilotildees vantajosas que foram acumuladas historicamente por toda a

humanidade sejam elas miacuteticas ou racionais

Jung nos ensina em suas obras que estamos envolvidos por exemplo

com a experiecircncia de Deus de uma forma tatildeo profunda e universal que por mais

que venhamos a questionar esse mito ou essa crenccedila temos a imagem dessa

experiecircncia dentro de noacutes e por isso natildeo temos como acreditar ou deixar de crer

nessas imagens O mesmo acontecia com o Cristatildeo portuguecircs quinhentista mas eacute

claro e oacutebvio que essa experiecircncia era distinta para os indiacutegenas dessa eacutepoca

Por mais que se quisesse impor uma esteacutetica cultural deveriacuteamos perguntar

Tupatilde era um deus diferente de Deus ou a experiecircncia era a mesma

Mas o portuguecircs do Seacuteculo XVI que trazia em suas caravelas e

bagagens todos os conceitos culturais mitos e crenccedilas impotildeem aos brasis

paracircmetros novos de vida cumprindo a qualquer custo uma missatildeo heroacuteica de

semear a palavra de Deus pela Terra fazendo cumprir uma profecia dentro de

concepccedilotildees mentais riacutegidas inflexiacuteveis racionais e complexas

24

Viraacute o tempo em um futuro longiacutenquo em que o mar

Oceano quebraraacute as suas correntes e uma vasta terra seraacute revelada

aos homens quando um marinheiro audacioso como aquele que se

chamava Tifis e que foi o guia de Jasatildeo descobrir um novo mundo

entatildeo Thule (a Islacircndia) natildeo seraacute a uacuteltima das terras

LUCIUS ANNAEUS SEcircNECA Medeacuteia Seacuteculo I da era cristatilde6

As grandes descobertas trouxeram aos novos mundos anseios e

frustraccedilotildees sobre o imaginaacuterio portuguecircs e espanhol dos seacuteculos XV e XVI mas

tambeacutem a possibilidade de encontrarem o local onde Deus plantou o Paraiacuteso

Terrestre

o lugar onde a Divina Providecircncia havia plantado o

Paraiacuteso Terrestre mito essencial e fundamento doutrinaacuterio dos

mundos judaico-cristatildeo e mulccedilumano lugar inicial onde o Criador

havia decidido criar a espeacutecie humana7

A faccedilanha dessas descobertas tanto teacutecnica como humana carregava

dentro das caravelas a crenccedila de que os atores sociais dos descobrimentos

haviam encontrado o paiacutes das lendas o Paraiacuteso Terrestre o reino das Amazonas

as minas do Rei Salomatildeo as hordas impuras de Gog e Magog8 e o fabuloso

palaacutecio com telhados de ouro de Cipango9

6 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p15 7 idem p34 8 O vocaacutebulo Armagedon eacute composto de duas palavras Ar em hebraico significa Planiacutecie e Megiddo eacute uma localidade ao Norte da Terra Santa proacutexima ao monte Carmel onde antigamente Barrack derrotou os exeacutercitos comandados por Sisara e o profeta Elias e executou mais de quinhentos sacerdotes de Baal (Apo 1616 1714 Juizes 42-16 1 Reis 1840) A luz destes eventos biacuteblicos Armagedon simboliza a derrota das forccedilas anti-religiosas por Cristo Os nomes Gog e Magog no capiacutetulo 20 lembram as profecias de Ezequiel a respeito da invasatildeo de Jerusaleacutem por um nuacutemero indeterminado de regimentos sob o comando de Gog das

25

Acreditava-se entre os portugueses e espanhoacuteis que os mitos dessas

terras se encontravam agora agrave matildeo de quem navegasse de quem ousasse terras

longiacutenquas e enigmaacuteticas desvelar seus misteacuterios e atravessar o mare oceano

innavigabile Dessa forma muitas das histoacuterias fantasiosas que povoavam a

mente do europeu quatrocentista e quinhentista foram transferidas para as terras a

serem conquistadas e vieram juntamente com o mito cristatildeo com o Diabo dentro

das caravelas misturadas ao desejo de expansatildeo do comeacutercio e da busca de

riquezas povoando as sombras desses conquistadores

Apenas como lembranccedila os mitos agem sobre a mente humana de

forma a incitar accedilotildees e desencadear moldes de conduta de pensamento e de

sensibilidade Foi dessa forma portanto que os conquistadores partiram para suas

buscas Uma busca baseada no comeacutercio e expansatildeo sim mas de forma latente

na busca de seus mitos

Assim cada terra descoberta cada povo encontrado cada riqueza

desvelada era considerado de propriedade da natureza e por isso era de quem

encontrasse quer por pirataria quer por ordem de um reino quer passando a ser

propriedade de um rei como descendente direto do divino quer ad majorem Dei

gloriam mesmo que isso significasse um etnociacutedio de nuacutemeros altiacutessimos durante

terras de Magog (sul do mar Caacutespio Ezeq cap 38 e 39 Apo 207-8) Ezequiel atribui esta profecia aos tempos do Messias No Apocalipse o cerco dos regimentos de Gog e Magog ao local dos santos e da cidade eleita (ie da Igreja) e a destruiccedilatildeo destes regimentos pelo fogo Celestial deve ser entendida pela derrota total das forccedilas contraacuterias a Deus humanas e demoniacuteacas pela segunda vinda de Cristo (Obtida em http2112hpyollnetapocalipse2htm em 250405) 9 antigo nome da ilha do Japatildeo antes de conhecido pela Europa cristatilde

26

todo os anos quinhentistas conforme jaacute pude demonstrar em A destribalizaccedilatildeo da

Alma Indiacutegena Brasil Seacuteculo XVI uma visatildeo junguiana10

Obviamente essas faccedilanhas dos descobrimentos trouxeram ao Orbis

Christianus grande avanccedilo tecnoloacutegico no ramo dos transportes da navegaccedilatildeo e

do comeacutercio mas principalmente trouxeram o mais preciso conhecimento

geograacutefico e cartograacutefico do planeta de entatildeo cujos mapas por mais atualizados

que estivessem baseavam-se tatildeo somente na geografia biacuteblica da Idade Meacutedia

Era o Velho Mundo nos seacuteculos XV e XVI aacutevido de modernidade mas

persistia na mente dos portugueses e espanhoacuteis a impregnaccedilatildeo de mitos Existia

como produto social uma turva fronteira entre o real e o imaginaacuterio causada pela

verdade revelada das Escrituras Haacute que se entender que aqueles autores

primeiros que escreveram os primeiros livros sagrados estavam cercados de

desertos e de aacutereas inoacutespitas e tiveram a visatildeo de um local edecircnico como sendo

de feacuterteis terras de aacuteguas abundantes onde tudo nascia e crescia sob a matildeo de

um jardineiro celestial

Entatildeo plantou o Senhor Deus um jardim da banda do

oriente no Eacuteden e pocircs ali o homem que tinha formado E o Senhor

Deus fez brotar da terra toda qualidade de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e boas para comida bem como a aacutervore da vida no meio do jardim e

a aacutervore do conhecimento do bem e do mal

E saiacutea um rio do Eacuteden para regar o jardim e dali se dividia

e se tornava em quatro braccedilos O nome do primeiro eacute Pisom este eacute o

que rodeia toda a terra de Havilaacute onde haacute ouro e o ouro dessa terra eacute

bom ali haacute o bdeacutelio e a pedra de berilo O nome do segundo rio eacute

10 CARNOT 2005

27

Giom este eacute o que rodeia toda a terra de Cuche E o nome do terceiro

rio eacute Tigre este eacute o que corre pelo oriente da Assiacuteria E o quarto rio eacute

o Eufrates11

Mas tambeacutem proibiu apoacutes a expulsatildeo de Adatildeo o homem de encontrar

esse Jardim edecircnico

O Senhor Deus pois o lanccedilou fora do jardim do Eacuteden para

lavrar a terra de que fora tomado E havendo lanccedilado fora o homem

pocircs ao oriente do jardim do Eacuteden os querubins e uma espada

flamejante que se volvia por todos os lados para guardar o caminho

da aacutervore da vida12

Encontraram Vejamos um relato de Cristoacutevatildeo Colombo

Satildeo esses grandes indiacutecios do paraiacuteso terrestre porque

o lugar eacute conforme ao que pensam os santos e os sagrados teoacutelogos

E os sinais satildeo igualmente muito conformes pois jamais li ou ouvi

dizer que tamanha quantidade de aacutegua doce pudesse estar no meio

da aacutegua salgada ou na sua vizinhanccedila vem ainda em apoio a tudo

isso a temperatura extremamente agradaacutevel E se essa aacutegua natildeo vem

do Paraiacuteso seria ainda maior maravilha porque natildeo creio que se

conheccedila no mundo rio tatildeo grande e tatildeo profundo13

Chegaram a um local adacircmico sim com vegetaccedilatildeo abundante com

aacuteguas cristalinas e principalmente com um povo diferente daquele que o europeu

11 (Gecircnesis 2 8-14) 12 (Gecircnesis 3 23-24) 13 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p57

28

conhecia Talvez um arremedo do Jardim mas enfim um jardim bom para a

exploraccedilatildeo e bom para aumentar as almas do Tesouro de Cristo

Corpos diferentes e muitas vezes nus exuberantes como os indiacutegenas

da Ilha de Vera Cruz com miacutesticos costumes com lendas fabulosas poreacutem

distintas daquelas que o imaginaacuterio cristatildeo pudesse relatar Nem cinoceacutefalos14

nem hordas malditas mas guerreiros aguerridos em parte doacuteceis e prontos para

serem convertidos em ovelhas do Senhor em parte bravios e indispostos a serem

conquistados

Natildeo se pode numerar nem compreender a multidatildeo de

baacuterbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil

porque ningueacutem pode pelo sertatildeo dentro caminhar seguro nem

passar por terra onde natildeo ache povoaccedilotildees de iacutendios armados contra

todas as naccedilotildees humanas e assim como satildeo muitos permitiu Deus

que fossem contraacuterios uns dos outros e que houvesse entre eles

grandes oacutedios e discoacuterdias porque se assim natildeo fosse os

portugueses natildeo poderiam viver na terra nem seria possiacutevel

conquistar tamanho poder de gente15

Ou ainda

E satildeo muito inclinados a pelejar e muito valentes e

esforccedilados contra seus adversaacuterios e assim parece coisa entranha

ver dois trecircs mil homens nus de uma parte e de outra com grandes

assobios e grita frechando uns aos outros e enquanto dura esta

14 Homens com cabeccedila de catildeo seguidores dos guerreiros Gog e Magog que viriam no apocalipse acompanhando o Anticristo (citados em Apocalipse 20 7-8) 15 GAcircNDAVO1980p12)

29

peleja nunca estatildeo com os corpos quedos meneando-se de uma parte

para outra com muita ligeireza para que natildeo possam apontar nem

fazer tiro em pessoa certa algumas velhas costumam apanhar-lhes

as frechas pelo chatildeo e servi-los enquanto pelejam Gente eacute esta muito

atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vatildeo agrave guerra

sempre lhes parece que tecircm certa a vitoacuteria e que nenhum de sua

companhia haacute de morrer E quando partem dizem vamos matar sem

mais consideraccedilatildeo e natildeo cuidam que tambeacutem podem ser vencidos 16

Era muito comum poreacutem que o conquistador tivesse a visatildeo de que os

povos dessas terras receacutem descobertas os vissem como sendo de origem divina

Colombo assim contava

Disseram-se muitas outras coisas que natildeo pude

compreender mas pude ver que estava maravilhado com

tudo(diaacuterio 18121492) satildeo creacutedulos sabem que haacute um Deus no

ceacuteu e estatildeo convencidos de que viemos de laacute (diaacuterio

12111492) achavam que todos os cristatildeos vinham do ceacuteu e que o

Reino de Castela ali se encontrava e natildeo neste mundo(diaacuterio

16121492) 17

Ou como escrevia Noacutebrega em suas cartas

Todos querem e desejam ser Cristatildeos mas deixar seus

costumes lhes parece aacutespero Vatildeo contudo pouco a pouco caindo na

verdade18

16 idem p13 17 TODOROV 2003 P57 18 NOacuteBREGA 1988 p 114 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551

30

Os Gentios aqui vecircm de muito longe a ver-nos pela fama e

todos mostram grandes desejos Eacute muito para folgar de os ver na

doutrina e natildeo contentes com a geral sempre nos estatildeo pedindo em

casa que os ensinemos e muitos deles com lagrimas nos olhos19

Estatildeo espantados de ver a majestade com que entramos e

estamos e temem-nos muito o que tambeacutem ajuda 20

Falamos do europeu do portuguecircs e do espanhol poreacutem nosso foco

deve e estaacute voltado para o cristatildeo portuguecircs

Esse portuguecircs que no seacuteculo XVI tinha essa imaginaccedilatildeo fervilhante

cheia de conteuacutedos miacuteticos que possuiacutea um falar livre sem os rebuccedilos dos

letrados enfim o povo portuguecircs quinhentista que seguia leis severas de um

reino corporativo onde como nos diz Capistrano de Abreu (1907) As cominaccedilotildees

penais natildeo conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor

de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo e o

confisco de todos os bens 21

Toda a cultura da sociedade portuguesa quinhentista era estruturada

com referecircncia ao sagrado e aos preceitos da Santa Feacute Catoacutelica onde a presenccedila

ou onipresenccedila divina acontecia em toda e qualquer circunstacircncia em qualquer

situaccedilatildeo

19 NOacuteBREGA 1988 p 115-116 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551 20 NOacuteBREGA 1988 p 75 carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo 21 ABREU 1907-2004p46)

31

Essa organizaccedilatildeo cultural se dava sob a forma de um corpo social

definido como o Reino que se entrelaccedilava com outro corpo formado pela Igreja

onde qualquer mediaccedilatildeo seria feita por esses corpos sociais e em uacuteltima instacircncia

Deus era a referecircncia Paiva22 nos coloca que essa constituiccedilatildeo social se dava

como um corpo em graus superpostos o corpo social o corpo miacutestico de Cristo o

universo

Culturalmente a sociedade portuguesa do seacuteculo XVI se

caracterizava pela cimentaccedilatildeo religiosa de todo o seu fazer A uacuteltima

explicaccedilatildeo do por que as coisas eram tais quais eram estava na

religiatildeo ou seja na sua referecircncia ao sagrado O poder do rei a

organizaccedilatildeo da sociedade as instituiccedilotildees os valores os costumes

as expressotildees tudo enfim tinha sua razatildeo de ser na sacralidade tudo

tinha um caraacuteter religioso 23

Nada era questionado quanto a essa cultura religiosa pois tudo

absolutamente tudo o comeacutercio os estudos as conquistas todos ordenavam

seus esquemas atraveacutes da dogmaacutetica e da apologeacutetica religiosa onde se

chamava de Ciecircncia rainha de todas as rainhas a Teologia

Os valores os costumes a compreensatildeo de vida estava imersa no mito

cristatildeo onde a uacuteltima realizaccedilatildeo se daacute em Deus 24 mito que ao longo da Idade

Meacutedia europeacuteia se elaborou fundado na compreensatildeo de uma ordem uacutenica que

se funda em Deus do qual todas as instacircncias subordinadamente se plenificam

22 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura 23 PAIVA 2002 p 3 24 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura

32

assim se pondo25 garantindo ao Rei o direito a proeminecircncia e conquista e

sujeiccedilatildeo de qualquer povo de qualquer terra conquistada

Ficava assim mais faacutecil se compreender o Poder pois ele estaria

concebido fundado na Vontade de Deus e por consequumlecircncia na do Rei

O Rei era antes de tudo era aquele que dizia a justiccedila e o rei perfeito

era o juiz perfeito Que todo julgamento era pela vontade divina e que a boa

dinastia nunca gerava um mau rei e portanto um bom representante de Deus na

Terra

Poreacutem a necessidade de um bom reinado se fazia presente todo o

tempo dando ateacute mesmo possibilidades de trocas de reis por natildeo se cumprir um

bom reinado Era a forma de garantirem a permanecircncia no reinado ou a

legitimidade do golpe para assumir o reinado de outro principalmente se o anterior

regia sem competecircncia com tirania ou descaso Ao levantar essa situaccedilatildeo de

troca de rei ou de afirmar-se no reinado invocavam o Direito das Gentes 26

Dessa forma o direito tambeacutem sujeitava o Rei agraves leis leis essas que na verdade

ao receber a coroa jurou defender como nas Ordenaccedilotildees Afonsinas por

exemplo

Quando Nosso Senhor Deos fez as criaturas assim

razoaveis como aquellas que carecem de razom non quis que

fossem iguaes mas estabeleceo e hordenou cada hua sua virtude e

poderio de partidos segundo o grao em que as pocircs bem assy os

25 idem 26 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128

33

Reys que em logo de Deos na Terra som postos para reger e

governar o povo nas obras que ham de fazer assy de Justiccedila como

de graccedila ou mercees devem seguir o exemplo daquello que ele fez

e hordenou dando e distribuindo non a todos por hua guisa mais a

cada huu apartadamente segundo o gratildeo e condiccedilon e estado de

que for27

Essas mesmas Ordenaccedilotildees dividiam a sociedade em estratos os

defensores os que defendem o povo os que rogam pelo povo os oradores

dividindo ainda em estados limpos (letrados lavradores e militares) e estados vis

(oficiais mecacircnicos ou artesatildeos) e dos privilegiados (que pela miliacutecia ou pela Arte

se livraram das profissotildees soacuterdidas) 28

Em todo esse universo religioso eacute que estavam os fatos gerados por

seus atores sociais seus costumes seus ritos e siacutembolos suas vestimentas e

linguagem tudo fazendo a cultura do portuguecircs cristatildeo quinhentista

O pensamento social poliacutetico medieval eacute dominado pela

ideacuteia da existecircncia de uma ordem universal (cosmos) abrangendo os

homens e as coisas que orientava todas as criaturas para um objetivo

uacuteltimo que o pensamento cristatildeo identificava como o proacuteprio

Criador29

A sociedade portuguesa para a gloacuteria e satisfaccedilatildeo de um imaginaacuterio

eminentemente cristatildeo estaria no mundo para realizar os planos do Criador

portanto tudo e todos que natildeo pudessem caber na inquestionaacutevel obediecircncia e

27 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128 28 idem p132 29 idem p122

34

pertenccedila ao cristianismo somente poderiam ser avaliados como inferiores como

infieacuteis e hereges tal qual as bruxas os aacuterabes os judeus tatildeo mancomunados

com o Diabo

Chega entatildeo esse Portugal agraves Terras Brasiacutelicas com o espiacuterito avivado

com relaccedilatildeo aos sentimentos de cumprir a missatildeo de propagar a feacute cristatilde com um

intuito exorcista de eliminar os democircnios e fantasmas que atraveacutes de milecircnios

teriam povoado estes mundos remotos onde a forccedila de Deus se batia com as

artimanhas do Diabo e ocupada por seres infieacuteis e de praacuteticas pagatildes mas ligado

ao racionalismo portuguecircs que se desenvolvia prometia ainda essa terra o

fornecimento de material para exploraccedilatildeo e o comeacutercio

A convivecircncia do europeu com os nativos da Aacutefrica Aacutesia e

Ameacuterica significou para esses povos castraccedilatildeo e imposiccedilatildeo cultural

tal o etnocentrismo que a caracterizava tal a racionalidade que

conduzia sua poliacutetica tal sua forccedila militar30

Chegam entatildeo esses portugueses fedentos e escalavrados de feridas

de escorbuto31 com a intenccedilatildeo de transformarem indiacutegenas esplendidos de vigor e

beleza32 em querubins caciques em Guaixaraacute e jovens adolescentes em outros

tantos diabos pois que se defrontam com formas diferentes de amor de mundo

de vida e morte e acreditavam piamente que essa era uma forma diaboacutelica de

30 PAIVA 2002 p 46 31 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 32 idem

35

viver uma ofensa agrave obra de Deus na terra por isso natildeo podia deixar de ser banida

e extirpada como um tumor que ameaccedilava a Gloacuteria do Senhor 33

33 CARNOT 2005 p120

36

CAPIacuteTULO 1 - A EDUCACcedilAtildeO COMO TRANSMISSAtildeO DE CULTURA QUE ENSINA E ALTERA

COSTUMES

Durante o tempo de estudos e pesquisas desde os tempos de

mestrado por ter vindo de uma aacuterea de investigaccedilatildeo como a Psicologia parto do

princiacutepio que a conversatildeo e na educaccedilatildeo transmitida aos indiacutegenas houve

diversas falhas como jaacute pude mostrar em a Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

falhas essas que existiram pelas vivecircncias dos atores sociais em seu tempo e em

resposta a suas ansiedades Tenho constantemente pensado que entre essas

falhas qual a mais importante na educaccedilatildeo na conversatildeo e na catequese

Seria um erro didaacutetico Seria um erro baseado no depositum

da

verdade revelada onde o jesuiacuteta professava suas concepccedilotildees e conceitos

Seraacute que esse erro se encontra no indiacutegena no receptaacuteculo desse

depositum que talvez natildeo estivesse apto a recebecirc-lo

Gostaria de entender o ser humano como um portador de um vaacutecuo

Natildeo como uma tabula rasa mas como um vaacutecuo disponiacutevel a descobertas a

formas e cores a necessidades a curiosidades Seriam a curiosidade e a

necessidade o proacuteprio vaacutecuo

37

Parto desse ponto para afirmar que os vaacutecuos preacute-existem para que as

formas e conteuacutedos possam vir a existir O vaacutecuo eacute a Ideacuteia a Concepccedilatildeo Primeira

a Fecundaccedilatildeo Coacutesmica assim como Primeiro foi o Verbo

CG Jung nos diz que o inconsciente possui todos os materiais

psiacutequicos que existem na consciecircncia de um indiviacuteduo inclusive as percepccedilotildees

sublimais34 e principalmente aqueles materiais que natildeo alcanccedilaram o limiar da

consciecircncia mas que serviratildeo para que o indiviacuteduo receba tudo aquilo que poderaacute

advir com a aculturaccedilatildeo que viraacute a acumular em sua vida

A educaccedilatildeo seja ela a de transmissatildeo de cultura ou a educaccedilatildeo formal

escolar com a funccedilatildeo de nos colocar em focircrmas nos daacute preenchimento desse

vaacutecuo sem que faccedila entender a necessidade ou que nos permita buscar a

curiosidade de desvelar o veacuteu que cobre o universo das coisas as essecircncias O

homem somente aprende algo que sirva para atender sua curiosidade ou uma

necessidade

Assim eacute a educaccedilatildeo nos oferece importantes informaccedilotildees e conceitos

sem que nos provoque a busca

Em Les secrets de la maturiteacute Hans Carossa (Apud Bachelard-1990 p7)

diz o homem eacute a uacutenica criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior

34 sublimais

origem sublimaccedilatildeo = lat sublimatigraveooacutenis accedilatildeo de elevar exaltar pelo fr sublimation (1274) elevaccedilatildeo exaltaccedilatildeo (1856) accedilatildeo de purificar (1904) - modificaccedilatildeo da orientaccedilatildeo originalmente sexual de um impulso ou de sua energia de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade transformaccedilatildeo de um motivo primitivo e sua colocaccedilatildeo a serviccedilo de fins considerados mais elevados [A atividade religiosa artiacutestica e intelectual satildeo exemplos tiacutepicos de sublimaccedilatildeo

38

de outra A palavra vontade usada por Carossa me faz buscar outros conceitos

como desejo curiosidade afatilde tesatildeo necessidade Eacute essa vontade de olhar para

o interior das coisas que torna a visatildeo aguccedilada penetrante pronta para descobrir

uma intenccedilatildeo uma utilidade uma funccedilatildeo Eacute o violar o segredo tal qual uma

crianccedila que abre seu brinquedo para ver o que haacute dentro Noacutes adultos por falta de

memoacuteria de nossa infacircncia queremos atribuir esse abrir o brinquedo como uma

intenccedilatildeo destrutiva Mas a crianccedila o humano em noacutes busca ver aleacutem ver por

dentro em suma escapar a passividade da visatildeo 35

O homem aculturado educado olha para essa estrutura externa e

natildeo vecirc a profundeza do brinquedo mas a crianccedila possuidora de um vaacutecuo ainda

natildeo preenchido pela histoacuteria faz com o brinquedo o que a educaccedilatildeo natildeo sabe

fazer e a imaginaccedilatildeo realiza magistralmente seja como for descobre sua

profundidade sua substacircncia seu oculto

Capta a crianccedila imagens tatildeo numerosas tatildeo variaacuteveis e tatildeo confusas

que despertam cada vez mais as nuanccedilas sentimentais de sua curiosidade Toda

doutrina da imagem eacute acompanhada em espelho por uma psicologia do

imaginante 36

Assim encontro um dos enganos da educaccedilatildeo o natildeo preencher o

vaacutecuo humano com o desejo com a vontade e sim com o que as concepccedilotildees

adultas pensam ser importantes

35 BACHELARD 1990p8 36 idem

39

Mas se procurarmos outras falhas com relaccedilatildeo ao ensinar e ao

aprender esbarramos na filosofia que muitas vezes trabalha com essa busca da

profundidade das coisas de forma dogmaacutetica que tolhe brutalmente toda

curiosidade voltada para o interior das coisas 37 Para esses filoacutesofos da educaccedilatildeo

que assim pensam a profundidade das coisas eacute ilusatildeo que a crianccedila pergunta

mas que natildeo deseja realmente saber e que se lhe explicarem superficialmente

satisfaratildeo sua necessidade

Em verdade essas questotildees natildeo perturbam esses filoacutesofos Nessas

questotildees que a a educaccedilatildeo natildeo sabe fazer amadurecer a filosofia condena o

homem a permanecer como ele diz no plano dos fenocircmenos 38 Tudo natildeo passa

de aparecircncia Inuacutetil ir ver mais inuacutetil ainda imaginar mas se esquece que a

natureza esconde como funccedilatildeo primaacuteria da vida protege abriga guarda

reserva e esse interior tem funccedilotildees de trevas de guardar aquilo que a curiosidade

ou a necessidade necessitam iluminar

Magie uma personagem de Henri Michaux39 em um de seus conselhos

diz ponho uma maccedilatilde sobre a mesa Depois ponho-me dentro dessa maccedila Que

tranquumlilidade Flaubert40 dizia a mesma coisa a forccedila de olhar um seixo um

animal um quadro senti que eu estava neles

Somente o poeta e seus personagens sabem do interior das coisas

Natildeo poderia ser a educaccedilatildeo uma poesia

37 idem p9 38 idem p9 39 BACHELARD 1990 apud p11 40 BACHELARD 1990 apud p11

40

Francis Ponge41 busca o entender das coisas da seguinte forma

Proponho a todos a abertura dos alccedilapotildees interiores uma viagem na espessura

das coisas uma invasatildeo de qualidades uma revoluccedilatildeo ou uma subversatildeo

comparaacutevel agravequela operada pela charrua ou pela paacute quando de repente e pela

primeira vez satildeo trazidos agrave luz milhotildees de fragmentos lamelas raiacutezes vermes e

bichinhos ateacute entatildeo enterrados

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas natildeo me conta que por mais que mude

as peccedilas que satildeo sempre as mesmas estatildeo presas numa caixa A mim agrada

mais o microscoacutepio ou a luneta que satildeo instrumentos da curiosidade

A educaccedilatildeo conserva em si a manutenccedilatildeo da verdade revelada da

Idade Meacutedia onde natildeo se podia buscar o cerne das coisas acredita ainda hoje

que o cisne de esplendorosa brancura eacute todo negrume no interior

Essa

verdade medieval que permanece nos conceitos da escola do ensinar do

aprender teria sido quebrada atraveacutes de um pequeno e simples exame para

saber que o cisne natildeo eacute muito diferente em suas cores do interior do corvo

Se apesar dos fatos a afirmaccedilatildeo do negrume intenso do cisne eacute tatildeo amiuacutede

repetida eacute por satisfazer a uma lei da imaginaccedilatildeo dialeacutetica As imagens que satildeo

forccedilas psiacutequicas primaacuterias satildeo mais fortes que as ideacuteias mais fortes que as

experiecircncias reais 42

41 BACHELARD 1990 apud p10 42 BACHELARD 1990 p17

41

Como disse Jean Paul Sartre eacute preciso inventar o acircmago das coisas

se quisermos um dia descobri-lo

Natildeo sei se estou conseguindo passar ao leitor a total significacircncia da

ideacuteia do preenchimento do vaacutecuo atraveacutes de uma educaccedilatildeo que olhe para dentro

das coisas Quando falo de dentro das coisas natildeo estou com isso falando de

interior tatildeo somente mas da essecircncia do acircmago Veja este exemplo certa vez

caminhando com meu filho que tinha entatildeo quatro anos pelas ruas do bairro

onde resido ruas com terrenos vazios e onde se pode ter contato bastante grande

com a natureza pude brincar de investigar

Andaacutevamos por uma dessas ruas quando eu encontrei pegadas de um

cavalo Conhecendo esse espiacuterito de investigaccedilatildeo e da curiosidade que emana do

meu filho mostrei a ele as pegadas Imediatamente ele disse que legal vocecirc

descobriu essas pegadas do cavalo branco Perguntei como ele poderia saber a

cor do cavalo que havia passado por ali Sua resposta foi simples vamos seguir

as pegadas e a gente pode saber e eu estou certo Aceitei a proposta e saiacutemos

seguindo as pegadas Em alguns pontos onde a terra estava mais firme as

pegadas sumiam mas ele como toda sua curiosidade buscava novas evidecircncias

e encontrava as pegadas seguintes Andamos lentamente e olhando para o chatildeo

das ruas de terra por mais ou menos duas horas sem que ele desistisse ou

mostrasse sinais que natildeo mais se importava com a brincadeira Andamos

precisamente quatro quilocircmetros ateacute chegarmos a um local onde se localizam

algumas baias e laacute estavam alguns cavalos Havia um branco e ele se convenceu

e quase me convenceu tambeacutem de que estava certo

42

Esse vaacutecuo da curiosidade foi preenchido a perspectiva de intimidade

da coisa do evento mostrou um interior maravilhoso um interior esculpido de

fantasias da mesma forma que se abrisse um geodo e um mundo cristalino

houvesse sido revelado

Eacute dessa qualidade de vaacutecuo que falo e que a educaccedilatildeo natildeo eacute capaz de

preencher natildeo por falta de conteuacutedo ou de forma mas da maneira de trabalhar a

curiosidade e a necessidade Natildeo basta a natureza conter formas incriacuteveis na

moleacutecula da aacutegua ou no floco de neve conter eflorescecircncias arborescecircncias e

luminescecircncias se natildeo for possiacutevel dar o desejo dessas descobertas Repito a

educaccedilatildeo natildeo sabe fazer isso mas a imaginaccedilatildeo faz com perfeiccedilatildeo a alquimia

das descobertas

Jung fala da alquimia em seus estudos ligando o sonho da

profundidade das substacircncias43 agrave busca do self atraveacutes do mergulho no

inconsciente Se o alquimista fala do mercuacuterio ele pensa exteriormente no

argento vivo mas ao mesmo tempo acredita estar diante de um espiacuterito escondido

ou prisioneiro da mateacuteria

44

A curiosidade eacute como um sonho de descoberta das virtudes secretas

das substacircncias ao tentar descobrir pela curiosidade ou pela necessidade a

essecircncia das coisas eacute como sonhar como o secreto em noacutes Os maiores

43 No aristotelismo e na escolaacutestica realidade que se manteacutem permanente sob os acidentes muacuteltiplos e mutaacuteveis servindo-lhes de suporte e sustentaacuteculo aquilo que subsiste por si com autonomia e independecircncia em relaccedilatildeo agraves suas qualificaccedilotildees e estados Algo que estaacute aleacutem sob as aparecircncias 44 cf JungPsychologie und Alchemie p399 apud Bachelard p 39

43

segredos de nosso ser estatildeo escondidos de noacutes mesmos estatildeo no segredo de

nossas profundezas 45

Eacute exatamente a partir da curiosidade sobre essas essecircncias sobre

essa alquimia que pesquiso meu trabalho em Educaccedilatildeo Histoacuteria e Cultura Minha

tese vem responder a esse meu anseio entender o mito que fazia com que

homens saiacutessem do conforto de seus lares ou mosteiros para conquistarem terras

novas e imporem seus dogmas a povos cuja explicaccedilatildeo da vida estavam

baseadas em outros mitos

Vejo o mito como um sistema de conhecimento velado poreacutem mesmo

assim exaustivo do inefaacutevel e do divino Eacute o mito a curiosidade aliada agrave

necessidade da explicaccedilatildeo de si e sua relaccedilatildeo individual com o Universo

Acontece poreacutem que a catequese a imposiccedilatildeo de cultura a educaccedilatildeo

negam a individualidade do homem negam seus vaacutecuos e seus mitos gerando

vaacutecuos novos e que natildeo podem ser preenchidos com aquilo que existe na verdade

daquele que foi conquistado O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria verdade

46

Negar essa individualidade eacute um absurdo e a crianccedila sabe disso O

homem por mais que natildeo queira aceitar pois tenta se proteger de sua

incapacidade de buscar as essecircncias tem pleno conhecimento que a consciecircncia

eacute individual que a busca eacute individual que a curiosidade eacute individual e que ela faz

parte da substacircncia e da coisa em si

45 Bachelard p39 46 GUSDORF 1959 p13

44

Mas para o homem quando despido de suas aculturaccedilotildees e carapaccedilas

de defesas contra suas emoccedilotildees a coisa em si precisa ser explicada O que lhe

resta entatildeo eacute estruturar essa explicaccedilatildeo sob a forma de representaccedilatildeo Para

representar colhe do externo e divino e interioriza tal representaccedilatildeo em sua

essecircncia Novamente o mito eacute criado

Em todo o tempo de bancos escolares infelizmente natildeo tive a atenccedilatildeo

que poderia ter em relaccedilatildeo agrave mitologia Tive uma ideacuteia precaacuteria de tal assunto que

natildeo me mostrou quanto essa forccedila criadora que norteou o rejuvenescimento

constante dos mitos na esfera grega assiacuteria egiacutepcia e como essa atividade do

espiacuterito antigo agia de modo essencialmente poeacutetico e artiacutestico da mesma forma

que para o homem moderno tem a ciecircncia contribuiacutedo para nossa evoluccedilatildeo

Assim novamente digo que a questatildeo a ser respondida com esta

pesquisa eacute de como vivia o povo indiacutegena com essa experiecircncia que chamo o

mito de Deus quer fosse o Deus Cristatildeo quer fosse o deus ntildeande ru Pa-Pa

Tenodeacute47

Por isso o objeto a ser trabalhado nesta tese eacute o mito como

instrumento educacional de transmissatildeo de cultura fazendo uma anaacutelise de como

o mito cristatildeo era entendido pelos portugueses e jesuiacutetas no seacuteculo XVI e imposto

violentamente aos indiacutegenas desse mesmo tempo

A pesquisa desta temaacutetica buscaraacute a relaccedilatildeo do mito cristatildeo em uniatildeo

com mitos e lendas do povo aacuterabe invasor da peniacutensula ibeacuterica aleacutem dos mitos e

47 Em liacutengua ancestral Tupi o abantildeeenga significa nosso Pai Primeiro

45

lendas oriundas do oceano inavegabile por ocasiatildeo dos descobrimentos quando

marinheiros narravam histoacuterias fantaacutesticas de Homens-cavalo homens

gigantescos de um uacutenico peacute ciclopes e amazonas e outros mitos do mirabilis no

mundo conhecido do seacuteculo XVI de encontrar as diferenccedilas e semelhanccedilas com

os mitos europeus

Pesquisar ainda o mito como instrumento educacional de transmissatildeo

de cultura atraveacutes da narrativa da educaccedilatildeo falada e contada amplamente

utilizada pela pedagogia jesuiacutetica que utilizou todos os conceitos tanto de mitos

como de pecados e tabus para catequizar e converter os indiacutegenas agrave Santa Feacute

Catoacutelica

Essa eacute minha busca atraveacutes da curiosidade mostrar que a educaccedilatildeo soacute

poderaacute ser eficaz no momento em que trabalhar com os mitos os mitos do

descobrir os mitos de desvelar o mito do vaacutecuo

46

CAPIacuteTULO 2 - O MITO

No atual quadro do desenvolvimento cientiacutefico eacute cada mais comum se

falar em interdisciplinariedade conceito que traduz um modo novo de lidar com

os objetos de estudo com os planos teoacuterico e metodoloacutegico da pesquisa e

especialmente com o papel do cientista diante do universo que busca

compreender eou explicar

Tendo como coadjuvantes conhecimentos que vatildeo da Psicanaacutelise agrave

Antropologia e agrave Arte da Sociologia agrave Filosofia e agrave Histoacuteria os estudos em

Educaccedilatildeo fazem um percurso que recoloca a questatildeo epistemoloacutegica do proacuteprio

estatuto da ciecircncia de transmissatildeo de cultura

Onde buscar respostas

Como opccedilatildeo de caminho busquei as respostas na ontologia claacutessica e

no mito como bases como alicerces do que pretendo construir no que tange agrave

Educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura

O mito foi quase sempre considerado o produto de uma forma de

conhecimento do mundo dos fatos de conhecimento do mundo dos fatos naturais

e sobrenaturais organizada de modo alegoacuterico a ponto de mostrar poeticamente

a relaccedilatildeo entre homem e universo ou um modelo um arqueacutetipo que mesmo

47

mudando de vez em quando de acordo com conteuacutedos histoacutericos e geograacuteficos

peculiares tem sempre a mesma estrutura formal ligada ao mecanismo de

funcionamento da psique humana ou enfim um meacutetodo religioso de aproximaccedilatildeo

da concepccedilatildeo sagrada da existecircncia em que o mito eacute tido como um sistema de

conhecimento velado poreacutem mesmo assim exaustivo do inefaacutevel e do divino

Natildeo importa se o mito define o iniacutecio do mundo ou o mundo define o

iniacutecio do mito O que importa enfim eacute que o mito nasce com o humano pois tudo o

que existe no mundo eacute visto sob o olhar do humano

Tendo esse homem um pecado original como faz parte da nossa cultura

ou uma forma original de ter vindo ao mundo como a partir do caos ou da

escuridatildeo todos os humanos reconhecem sua identidade atraveacutes da natureza e

das coisas humanas

Durante toda sua vida os homens que satildeo igualmente homens

nascem de uma mesma forma e morrem de uma mesma forma no entanto natildeo

soacute com caracteriacutestica fiacutesicas diferentes natildeo soacute com valores diferentes com

definiccedilotildees espirituais diferentes com mitos diferentes mas todos explicam essas

igualdades e diferenccedilas atraveacutes do mito

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida

O ser humano natildeo nasce com papeacuteis em branco como uma tabula rasa

ao contraacuterio estava preparado para as experiecircncias da vida humana do mesmo

48

modo que os paacutessaros estavam de maneira inata prontos para construir ninhos

ou a fecircmea da tartaruga marinha estava preparada para retornar ao local onde

nasceu para laacute botar os proacuteprios ovos Mas algumas muitas das situaccedilotildees tiacutepicas

do homem relativas agrave condiccedilatildeo humana satildeo representadas pelos mitos

apreendidos e esses mitos datildeo ao homem a predisposiccedilatildeo para experimentar os

conceitos de matildee pai filho Deus Grande Matildee velho saacutebio nascimento morte

renascimento separaccedilotildees rituais de cortejo casamento e assim por diante

O mito se forma sob as caracteriacutesticas de imagens primordiais de fatores e

motivos que coordenam os elementos psiacutequicos do homem que soacute podem ser

reconhecidos como formadores do mito apoacutes terem efeito na vida do homem

Dessa forma os conteuacutedos miacuteticos pertencem agrave estrutura psiacutequica dos

indiviacuteduos enquanto possibilidades latentes tanto como fatores bioloacutegicos

como histoacutericos

48

Os mitos natildeo se difundem apenas pela tradiccedilatildeo linguagem ou migraccedilatildeo

Eles podem surgir de forma espontacircnea em qualquer tempo ou lugar sem serem

influenciados por transmissatildeo externa Pode-se considerar portanto que em cada

psique existem verdadeiras prontidotildees vivas ativas que embora inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico Essas imagens de

prontidatildeo satildeo imagens arquetiacutepicas que na mente consciente desenvolvem um

jogo entre as realidades interna e externa do homem que sofre pressatildeo pessoal e

cultural do tempo e do lugar em que estatildeo inseridas

48 JACOBI 1991 paacuteg39

49

Por esse motivo o mito eacute normalmente milenar e universal ao grupo

social em que atua eacute parte do inconsciente coletivo pois satildeo disposiccedilotildees

herdadas pela humanidade Manifesta-se ou produz imagens e pensamentos Os

conteuacutedos do inconsciente pessoal satildeo aquisiccedilotildees da existecircncia individual ao

passo que os conteuacutedos do inconsciente coletivo satildeo arqueacutetipos que existem

sempre e a priori

A definiccedilatildeo de mito eacute basicamente a concepccedilatildeo de homem

plenamente relacionado com tudo o que existe em seu contorno O homem eacute o

todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias arquetiacutepicas que todos

os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo individual e possuindo

caracteriacutesticas uacutenicas

Essa eacute a relaccedilatildeo maacutegica do mito O homem crecirc que vai chover para

molhar sua plantaccedilatildeo e realmente chove Chove por condiccedilotildees climaacuteticas mas

para o homem envolvido no mito chove porque os deuses assim o permitiram

natildeo soacute para ele mas para aqueles que juntamente com ele vivem o mito Dentro

do mito o homem opera sobre o existente e sobre sua consciecircncia de mundo No

mito o homem vive dentro e fazendo parte do todo natildeo como uma soma de

partes mas como uma parte representando o todo

Ontologicamente o mito traz consigo a missatildeo de mostrar em termos

gerais a existecircncia do ser natildeo deste ou daquele ser concreto mas do ser em

geral pois o homem sempre buscou e buscaraacute as respostas de quem eacute de onde

vem para onde vai se eacute que vai para algum lugar ou condiccedilatildeo

50

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertence foi necessaacuterio ao homem criar uma linguagem que pudesse dar

conta de transcrever sua realidade afinada com seu proacuteprio conhecimento de

mundo

No entanto sempre foi tarefa impossiacutevel tanto ao homem primitivo

como ao homem da modernidade definir o que eacute o homem o que eacute o ser ou

mesmo quem ele eacute

Cada vez que tentamos definir o homem como um ser deparamos com

outros conceitos a serem elaborados pois a cada qualidade de homem a cada

origem cultural ou geograacutefica de cada eacutepoca os conceitos se modificam as

definiccedilotildees se tornam mais errocircneas caso se tente colocar o homem dentro de um

soacute conceito

Claro que sabemos o que eacute o homem claro que o homem conhece a si

mesmo poreacutem ao perceber-se diante do outro diante de desejos e anseios tatildeo

diferentes entre si associados a coisas tatildeo distintas se obriga novamente a uma

anaacutelise de si e do todo

Eacute nesse anseio que o homem se pergunta quem eacute natildeo deixando de

perguntar quem eacute o outro na relaccedilatildeo de troca de parceria de mutualidade

O mito do homem necessita demonstrar essa origem e esse fim

escatoloacutegico49

49 Da escatologia doutrina que trata do destino final do homem e do mundo pode apresentar-se em discurso profeacutetico ou em contexto apocaliacuteptico

51

Necessita o homem agregar valor agraves definiccedilotildees quer com objetos que

se agregam dando qualidade agraves coisas quer transformando os objetos ideais em

personificaccedilotildees

A fortaleza do deus sol era construiacuteda sobre esplecircndidas

colunas e brilhava coberta de reluzente ouro e rubis flamejantes O

frontatildeo superior era emoldurado por marfim alvo e brilhante e os

portotildees duplos eram de prata ornamentados com impressionantes

relevos esculpidos por Hefaiacutestos representando a terra o mar e o ceacuteu

com seus habitantes50

Heacutelio vestido com um manto de puacuterpura estava sentado

sobre o seu trono ornamentado com esmeraldas Agrave sua direita e agrave

sua esquerda estava o seu seacutequumlito o Dia o Mecircs o Ano o Seacuteculo e

as Horas Do outro lado a Primavera com sua coroa de flores o

Veratildeo com suas espigas de cereais o Outono com uma cornucoacutepia

cheia de uvas e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve51

Sem que se fique preso a definiccedilotildees religiosas de uma ou outra crenccedila

necessita ainda o homem buscar respostas atraveacutes dos mitos que possam

confirmar sua percepccedilatildeo de mundo Eu existo o mundo existe os deuses

existem e as coisas existem Mas existem sem mim Existem independentes de

minhas representaccedilotildees Ao perceber-se distinto ao olhar o outro ao reconhecer-

se em outro o homem miacutetico percebe existirem definiccedilotildees diferentes para o ser

50 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 51 idem

52

em si mesmo e o ser o outro o que sugere as relaccedilotildees e o obriga a entrar em

contato com o real e suas representaccedilotildees de mundo e suas explicaccedilotildees para

esse mundo

Esses dois significados equivalem a estes outros dois a

existecircncia e a consistecircncia A palavra ser significa tambeacutem consistir

ser isto ser aquilo Quando perguntamos que eacute o homem Que eacute a

aacutegua Que eacute a luz Natildeo queremos perguntar se existe ou natildeo existe

o homem se existe ou natildeo existe a aacutegua ou a luz Queremos dizer

qual eacute a sua essecircncia Em que consiste o homem Em que consiste

a aacutegua Em que consiste a luz 52

Dessa forma para que uma estrutura mental possa ser montada o

homem tentaraacute buscar no mito a essecircncia de sua vida do porquecirc do sol e de

como surgiu do porquecirc das chuvas da boa e da maacute colheita da boa e maacute sorte na

caccedila do existir do dia e da noite e mesmo depois de cientificamente ter certezas

de suas definiccedilotildees guarda dentro de si sob a forma do pensamento da crianccedila o

homem primitivo que crecirc e vive o mito O mito da essecircncia da origem no divino e

da busca de sua existecircncia

Honrado pai na terra todos me ridicularizam e respondem

minha matildee Cliacutemene Afirmam ser falsa a minha origem divina

dizendo que sou filho bastardo de um pai desconhecido Eacute por isso

52 MORENTE 1930 62

53

que estou aqui para pedir-lhe um sinal que prove a todos na terra que

sou seu filho 53

Cria entatildeo o homem um mito para mostrar sua existecircncia pois o mito

eacute a proacutepria representaccedilatildeo do real natildeo estando fora da realidade e sim formulando

um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a accedilatildeo 54 Natildeo se

pode encarar o mito como constituiacutedo de um puro e simples pensar de forma

fabulosa anaacuteloga ao sonho ao devaneio ou agrave poesia

A consciecircncia miacutetica desenha a configuraccedilatildeo do primeiro

universo 55

A imagem do mundo desenhada por essa consciecircncia miacutetica pela

consciecircncia da essecircncia do ser e sua existecircncia se afirma e se reafirma atraveacutes

de uma paisagem do grupo social paisagem esta que natildeo se prende somente a

uma configuraccedilatildeo geograacutefica ou mesmo fiacutesica mas envolvida por uma visatildeo moral

e espiritual do povo

A filosofia ao descobrir no caminhar das estrelas a mesma exigecircncia

do bater do coraccedilatildeo do homem reconhece nos milecircnios da evoluccedilatildeo social e

humana o primeiro desenho dos universos feito pelo homem primitivo sem saber

53 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 54 GUSDORF 1960 22 55 GUSDORF 1960 51

54

que em verdade jaacute sabia a diferenccedila entre a fiacutesica e a metafiacutesica Eacute proacuteprio do

mito pois dar sentido ao universo 56

Poreacutem o homem miacutetico se depara com outra pergunta por que somos

tatildeo distintos Porque os seres possuem qualidades diferentes que os transforma

em outros Se todos tecircm a mesma origem no divino e se os deuses satildeo como

satildeo por que criaram nos seres tantas diferenccedilas

Entende o homem que independente de sua percepccedilatildeo de universo e

as explicaccedilotildees que pode dar sobre deuses sobre as horas e sobre os tempos e

as colheitas ainda havia que tentar evidenciar as diferenccedilas e as qualidades das

coisas chamadas por ele de seres

A carruagem descia cada vez mais e passado um instante

jaacute estava perto de uma montanha O solo entatildeo se abriu por causa do

calor e como todos os liacutequidos secassem subitamente comeccedilou a

arder As pastagens ficaram amarelas e murchas as copas das

aacutervores das florestas incendiaram-se logo o fervor chegou agrave planiacutecie

queimando as colheitas incendiando cidades paiacuteses inteiros ardiam

com sua populaccedilatildeo Picos florestas e montanhas estavam em

chamas e foi entatildeo que os povos da Etioacutepia ficaram negros A Liacutebia

tornou-se um deserto57

Os seres possuem qualidades que agregam valores a esses seres

Definem as diferenccedilas de haacutebitos de raccedilas de culturas de deuses a serem

adorados e democircnios a serem rechaccedilados de bem e mal de batalhas de povos a

56 GUSDORF 196052 57 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005

55

serem dominados ou convertidos de deuses de conquistadores que se

transformam em democircnios para os povos conquistados Que fazem ricos

imperadores serem deuses e pobres escravos mortais

Onde estaratildeo essas explicaccedilotildees No topos ouran s58 Nos mundos

sensiacutevel e inteligiacutevel definidos por Parmecircnides Por Soacutecrates por Platatildeo ou

Aristoacuteteles

O homem miacutetico necessita mostrar que os sentidos o espetaacuteculo

heterogecircneo do mundo com seus variados matizes natildeo eacute o verdadeiro ser mas

antes eacute um ser posto em interrogaccedilatildeo eacute um ser problemaacutetico que necessita

explicaccedilatildeo 59 explicaccedilatildeo sobre as coisas sensiacuteveis e por traacutes delas o intemporal e

o eterno

O mito poderia ser considerado como a arquitetura do universo

desenhado pelo homem Tudo estaacute diante de noacutes todas as coisas estatildeo exposta e

noacutes tambeacutem fazemos parte dessa multiplicidade de coisas que compotildee e

constituem o real

O que se pode afirmar no entanto eacute que atraveacutes do mito o homem se

relaciona com o outro pensa os deuses vive e conhece as relaccedilotildees da

comunidade que habita Define tarefas coletivas e individuais na defesa e na

guarda da comunidade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

58 O mundo dos deuses Tambeacutem chamado de topos noet s o mundo das ideacuteias 59 MORENTE 1930 97

56

A relaccedilatildeo com o coletivo serve agraves necessidades bioloacutegicas de alimento

de si e da prole da procriaccedilatildeo e da guarda do patrimocircnio geneacutetico mas serve

tambeacutem para atender com base numa estrutura psiacutequica ao espiacuterito em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal Para Hollis (1998) Quem

a pessoa eacute define-se em parte por de quem ela eacute

a quem ou com qual

propoacutesito estaacute comprometida

Nas sociedades em que possa haver um colapso de um mito central se

esvai a essecircncia psicoloacutegica preciosa O homem perde o sentido de seus

conteuacutedos miacuteticos e se reativam seus conteuacutedos primitivos onde os valores

diferenciados satildeo substituiacutedos pelos elementos de poder e prazer em uma minoria

e expondo as outras camadas ao vazio e ao desespero

O mito central eacute de tatildeo vital importacircncia que sua perda acarreta uma

situaccedilatildeo apocaliacuteptica quebrando-se o ciacuterculo maacutegico em que o homem estaacute

inserido rompendo-se a relaccedilatildeo do ego com seu criador tendo esse indiviacuteduo que

perguntar novamente e seriamente qual o sentido da vida Natildeo haacute sentido na

vida pois a vida deve ser vivida e natildeo sentida no entanto isso soacute pode ocorrer e

as perguntas serem feitas se o ciacuterculo miacutetico estiver circundando a existecircncia do

homem

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de

nossa anguacutestia individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de

um novo mito central vai resolver o problema para o indiviacuteduo e para

a sociedade60

60 EDINGER 1999 p11

57

Se o mito natildeo eacute a proacutepria ontologia a proacutepria metafiacutesica61 eacute com

certeza a saga do heroacutei chamado ser humano em sua luta ontogocircnica62 Esse

heroacutei miacutetico usa suas armas para viver a vida a ser vivida Usa suas quatro armas

o saber o ousar o querer e o calar para tal qual Faetonte obter a resposta do

deus criador mesmo que tombe em combate na luta contra a finitude humana

Faetonte com os cabelos em chamas caiu como uma

estrela cadente E o rio Poacute recebeu sua carcaccedila carbonizada ante o

olhar estupefato de seu pai As naacuteiades daquela terra depositaram

seu corpo num tuacutemulo e nele gravaram o seguinte epitaacutefio

Aqui jaz Faetonte Na carruagem de Heacutelio ele correu E

se muito fracassou muito mais se atreveu

A finitude humana vem da mesma origem da ideacuteia de universo uma

noccedilatildeo adquirida recebida como heranccedila cultural atraveacutes de sucessivas

descobertas determinaccedilotildees e invenccedilotildees promovidas pelo homem tal qual sua

noccedilatildeo de espaccedilo e de tempo

O homem primitivo natildeo vecirc o espaccedilo como algo simplesmente

continente mas como um lugar absoluto Natildeo eacute o espaccedilo ou o tempo tidos como

61 metagrave tagrave physikaacute

metafiacutesica

aleacutem das coisas fiacutesicas - estudo do ser enquanto ser e especulaccedilatildeo em torno dos primeiros princiacutepios e das causas primeiras do ser 62 ntos ente - Ontogonia Histoacuteria da produccedilatildeo dos seres (entes) organizados sobre a Terra

58

racionais ou funcionais mas como partes estruturais de uma realidade criando a

definiccedilatildeo de um acontecimento de um acircmbito63

Esse contato com o universo com a finitude e com o espaccedilo miacutetico eacute o

proacuteprio princiacutepio da experiecircncia o sentido de realidade envolvida e revestida com

siacutembolos figuras intenccedilotildees humanas sejam agradaacuteveis ou desagradaacuteveis gentis

ou aversivas com o sagrado ou o profano enfim a proacutepria experiecircncia da

realidade humana

Poreacutem o espaccedilo miacutetico primitivo ou mesmo das sociedades claacutessicas

tinham seu espaccedilo vital como o altar o espaccedilo do sagrado onde esse espaccedilo

miacutetico eacute o o verdadeiro ponto de apoio de seu pensamento porque eacute o ponto de

apoio do mundo social e do mundo espacial

64 Por esse motivo o homem miacutetico

organiza seu espaccedilo vital em torno ao redor do espaccedilo sagrado espaccedilo esse

natildeo um marco de uma existecircncia possiacutevel mas sim como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute sentido pois ali moram seus deuses moram seus

mortos seus pensamentos e desejos

Eacute nesse espaccedilo miacutetico o espaccedilo sagrado que o homem realiza seus

rituais para uma boa marcha pelo mundo eacute a aiacute que faz suas suacuteplicas realiza

seus sacrifiacutecios e sua magia propiciatoacuteria onde suas forccedilas vitais se encontram e

se concentram

Dessa forma o homem miacutetico tem deve e precisa estar sempre em

contato com seu espaccedilo tempo e acircmbito onde se encontra o outro e com ele vive

63 GUSDORF 1959 64 GUSDORF 1959 p55

59

o grupo social pois fora dessa relaccedilatildeo tecida com o grupo social o homem

reduzido a si mesmo estaacute aniquilado pois perdeu seu lugar ontoloacutegico e as

referecircncias que lhe outorgavam figura e equiliacutebrio 65 E assim encontra a morte

mesmo que no sentido figurado pois morrer miticamente eacute a cessaccedilatildeo das

relaccedilotildees com o grupo social O morto o defunto eacute aquele que se livrou de suas

obrigaccedilotildees frente agrave comunidade

66 que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

(defuncto)

Vejamos o pensamento de Jung67

Mal terminei o manuscrito quando me dei conta do que

significa viver com um mito e o que significa viver sem ele [O

homem] que pensa que pode viver sem mito ou fora dele como

algueacutem sem raiacutezes natildeo tem nenhum viacutenculo verdadeiro nem com o

passado ou com a vida ancestral que continua dentro dele nem com

a sociedade humana contemporacircnea Esse seu brinquedo racional

nunca capta o lado vital

Nesse espaccedilo miacutetico eacute que se encontra o sagrado e esse sagrado eacute

tudo aquilo que se encontra sob os olhos do homem

Diz Gusdorf

65 Gusdorf1959p92 66 Gusdorf1959p92 67 apud Rollo May 1992p47

60

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao

ser toda sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da

comunidade pelo viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem

vivente a terra as coisas os seres e ainda os mortos que continuam

frequumlentando a morada de sua vida68

Viver no espaccedilo miacutetico eacute viver no sagrado pois o lugar natildeo eacute mais um

lugar e sim onde a vida acontece Ali estatildeo seus deuses suas forccedilas espirituais

os antepassados a vida o alimento etc

Os portugueses do Seacuteculo XVI ao virem para o Brasil trouxeram

consigo seu espaccedilo miacutetico e necessitaram sacralizar o novo territoacuterio construindo

imediatamente apoacutes sua chegada capelas casas ao seu estilo locais de

reuniotildees aleacutem de cristianizar o espaccedilo em que viveriam O espaccedilo eacute uma das

expressotildees da concepccedilatildeo de vida do homem da cultura do homem das relaccedilotildees

sociais Gostaria de afirmar que todos os povos desde o iniacutecio dos tempos tecircm

seu espaccedilo sagrado quando natildeo todo ele

No mundo miacutetico tudo eacute miacutetico natildeo soacute o homem a natureza eacute miacutetica

as pessoas a floresta a chuva o mar e as mareacutes os astros cada qual com sua

funccedilatildeo cada qual com sua participaccedilatildeo mas tudo fazendo parte do universo do

homem miacutetico Se desejarmos por esse motivo ver atraveacutes da razatildeo a loacutegica

disso natildeo conseguiremos pois o sentido do mito ou da vida natildeo existem pois a

vida como nos diz Campbell natildeo tem sentido pois vida natildeo eacute para ser sentida e

68 GUSDORF1959 p55-56

61

sim para ser vivida assim como natildeo eacute justa natildeo eacute certa pois eacute soacute vida e natildeo

justiccedila ou certezas

O mundo eacute um processo daquilo que creio diz o homem miacutetico Pedir

ao homem miacutetico que explique o mundo eacute o mesmo que pedir ao peixe para

explicar a aacutegua em que nada O ser miacutetico talvez tenha uma compreensatildeo mais

profunda da vida sem permitir o questionamento da racionalidade pois explicar o

miacutetico eacute saber que tudo eacute uma presenccedila real

O homem racional atende suas necessidades atraveacutes de possibilidades

conhecidas O homem miacutetico reconhece que o mundo eacute feito de possibilidades e

busca por elas mesmo natildeo as conhecendo as observa as testa e apoacutes tomar

consciecircncia delas as utiliza

O homem miacutetico sabe que natildeo estaacute sozinho pois estaacute conectado a tudo

que o cerca Ele eacute um criador efetivo do mundo infiltrando esse mundo de ideacuteias

e pensamentos Vejamos por exemplo que a Terra eacute um planeta totalmente

dominado por religiotildees Deus eacute uma forma de explicarmos as experiecircncias que

temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e transcendentais Ele eacute a

superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos aos deuses pois temos

que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa vida

Do ponto de vista antropoloacutegico-cultural passou-se de uma visatildeo do

mito como a modalidade mais primitiva que possa ser atribuiacuteda agraves cadeias de

eventos quotidianos (exemplos mito solar mitos da fecundidade da terra) para

uma visatildeo do mito como atividade fundamentalmente criativa do indiviacuteduo

humano tendo por objetivo a interpretaccedilatildeo das realidades que como as religiosas

62

ou as eacuteticas e de valores natildeo satildeo passiacuteveis de serem circunscritas nem

expressas em termos de pura racionalidade

O mito exprime valores e aspiraccedilotildees que caracterizam a vivecircncia de

certo grupo soacutecio-cultural e de qualquer maneira polarizam as suas energias

Assim por exemplo no acircmbito do judaiacutesmo o mito da justiccedila de Deus

concentrava todas as tensotildees eacuteticas e religiosas dos crentes

Essas concepccedilotildees levaram em conta dois fatos psicoloacutegicos a hipoacutetese

de estruturas inconscientes especiacuteficas os arqueacutetipos com a finalidade de captar

realidades natildeo racionais mas emocional e vitalmente importantes e a observaccedilatildeo

de que alguns grandes temas foram vividos e transmitidos sob a forma de mitos

de maneira repetitiva nas vaacuterias culturas e eacutepocas histoacutericas

Dentro da antropologia cultural e da psicologia do fenocircmeno religioso o

mito eacute visto como sendo a resultante de energias inconscientes que satildeo ativadas

por experiecircncias histoacutericas e que tecircm como finalidade a realizaccedilatildeo de um si-

mesmo individual ou de grupo de certo modo imanente a psique A origem da

ativaccedilatildeo dessas forccedilas pode estar ligada ou ser estimulada por eventos naturais

mas eacute depois atraiacuteda por personagens simboacutelicas natildeo histoacutericas (por exemplo as

vaacuterias deidades femininas que presidem os mitos da colheita dos frutos da

fecundidade etc) e que satildeo o resultado justamente das projeccedilotildees inconscientes

individuais e coletivas

Podemos considerar o mito como sendo a preacute-histoacuteria da filosofia onde

a consciecircncia humana se estrutura nas origens do conhecimento

63

A filosofia busca entender o Estado a Lei o Direito a Ciecircncia a

Tecnologia e tantos outros conhecimentos mas a filosofia quando nasce quer

resgatar o saber do mito que se esvaia na cultura grega

Conforme nos explica Joseph Campbell69 o mito vem para servir agraves

necessidades humanas no sentido de conhecer o cosmo a natureza o outro e a

si proacuteprio

Em primeiro lugar no que se refere agrave questatildeo cosmoloacutegica serve o

mito para abordar as questotildees teoloacutegicas o plano da gecircnese e da escatologia70

diz respeito a se a pessoa entende como caos ou um

absurdo o desenrolar de uma lei natural ou percebe a presenccedila de

uma inteligecircncia orientadora e a existecircncia de um plano

compreensiacutevel por traacutes do universo71

Eacute o mito a necessidade do homem de explicar com sua proacutepria visatildeo

de uma paisagem completa o iniacutecio de tudo das divindades e deidades

beneacutevolas ou maleacutevolas e dos misteacuterios insondaacuteveis que datildeo sentido ao cosmo

Onde o homem se relaciona com seus temores e sorve suas belezas

Para o homem miacutetico a vida natildeo tem sentido algum pois a vida eacute a

proacutepria experiecircncia de estar vivo de modo de nossas experiecircncias de vida no

plano puramente fiacutesico tenham ressonacircncia no interior do nosso ser e da nossa

69 apud James Hollis 1998 70 Principalmente no tocante ao tratado sobre os fins uacuteltimos do homem 71 HOLLIS 1998 18

64

realidade mais iacutentimos de modo que realmente sintamos o enlevo de estar

vivos 72

Em segundo lugar continuando o mito a servir agraves necessidades

humanas surge o sentido metafiacutesico no esforccedilo de apresentar a natureza do

mundo agrave nossa volta Qual eacute a nossa relaccedilatildeo com o que eacute arquetipicamente

chamado de A Grande Matildee de cujo ventre viemos e para cujo seio

retornaremos 73 A resposta a essa pergunta eacute a proacutepria formaccedilatildeo do mito tatildeo

numinoso 74 quanto os deuses tatildeo luminoso quanto os astros sobre a cabeccedila do

homem e tatildeo fulgurante quanto os fenocircmenos naturais

Outra alegoria miacutetica eacute a do bosque da vida para mostrar o ventre da

grande matildee do qual nascemos e muitas vezes laacute ficamos aprisionados assim nos

mostra Jung

Outro siacutembolo materno igualmente comum eacute o bosque da

vida ou a aacutervore da vida Primeiramente a aacutervore da vida pode ter

sido uma aacutervore genealoacutegica produtora de frutos consequumlentemente

uma espeacutecie de matildee tribal Inuacutemeros mitos dizem que seres humanos

nasceram de aacutervores e muitos relatam como o heroacutei havia sido

aprisionado no tronco de uma aacutervore materna como Osiacuteris morto

dentro de um cedro Adocircnis dentro do mirto etc Numerosas

divindades femininas eram adoradas sob a forma de aacutervores vindo

daiacute o culto de aacutervores e bosques sagrados Assim quando Aacutetis castra-

se sob um pinheiro ele o faz porque a aacutervore tem um significado

72 CAMPBELL 1990 p 3 73 HOLLIS1998p20 74 do latim numem = maacutegico enfeiticcedilante um efeito dinacircmico ou a existecircncia que domina o ser humano independente de sua vontade

65

materno A Juno de Teacutespia era representada por um galho a de

Samos por um prancha a de Argos por um pilar a Diana de Caacuteria por

um bloco de madeira bruta a Atena de Lindos era uma coluna polida

Tertuliano chamava a Ceres de Paros de `rudis palus et informe

lignum sine efigie (um tronco rude um pau informe sem rosto)

Ateneo informa que a Latona de Delos era um pedaccedilo informe de

madeira Tertuliano tambeacutem descreve uma Palas aacutetica como `crucis

stipes (estaca de uma cruz) Uma viga nua de pau como o proacuteprio

termo indica eacute faacutelica (JUNG 1988 sect 321)

Em terceiro lugar o mito serve ao homem miacutetico na relaccedilatildeo com o

outro para o conhecimento das relaccedilotildees da comunidade da divisatildeo de tarefas e

na defesa da coletividade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

No entanto esse viver de forma muacutetua tambeacutem vem transgredir a lei

natural Assim novamente surge o mito a forma narrada 75 desajustada com a

realidade vivida mas que explica orienta e normatiza as relaccedilotildees que daacute uma

forma ao pensamento ou ainda uma forma de viver

Por fim em quarto lugar Hollis (1998) nos falando do pensamento de

Campbell traz ao homem miacutetico o sentido psicoloacutegico do mito o entendimento do

si-mesmo do quem eacute do de onde vem de qual seu lugar no mundo e de como

encontrar a pessoa para formar um par

75 Do grego mythus = conto palavra

66

A cultura que tiver perdido seu cerne miacutetico ou cujas

mitologias sejam muito fragmentadas e diversas cria pessoas

perdidas e assustadas que mudam de culto para culto de ideologia

para ideologia 76

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Na visatildeo junguiana tanto a histoacuteria quanto a antropologia nos ensinam

que psicologicamente a sociedade humana natildeo poderia ter sobrevivido por muito

tempo a natildeo ser que as pessoas estivessem contidas na relaccedilatildeo psicoloacutegica

dentro de um mito central e vivo

Pode ser percebido que os membros mais competentes da sociedade

mais desenvolvidos e perspicazes possuem respostas miacuteticas que satisfazem

suas perguntas existenciais

Essa minoria criativa intelectual e dominante vive em intensa harmonia

com o mito predominante Jaacute as outras camadas da sociedade seguem a direta

lideranccedila dessa minoria chegando a evitar o confronto com as questotildees miacuteticas

poupando-se da discussatildeo e seguindo diretamente a questatildeo fatiacutedica do sentido

da vida

76 HOLLIS 1998 24

67

Com a perda da consciecircncia de uma realidade

transpessoal (Deus) as anarquias interna e externa dos desejos

pessoais rivais assumem o poder 77

Jung nos formula a questatildeo como sendo o problema do homem

moderno o estado de carecircncia de mitos

Em seus estudos teve um momento em Memoacuterias sonhos e

reflexotildees78 em que coloca a si mesmo como tendo perdido o ciacuterculo maacutegico do

mito

Agora vocecirc tem a chave para a mitologia e estaacute livre para

abrir todos os portotildees da psique inconsciente Alguma coisa em mim

entatildeo sussurrou Porque abrir os portotildees E logo me surgiu a

pergunta sobre o que afinal eu havia realizado Eu tinha explicado os

mitos das pessoas do passado havia escrito um livro sobre o heroacutei o

mito em que o homem sempre viveu Mas em que mito vive o homem

hoje em dia No mito cristatildeo poderia ser a resposta Vocecirc vive nele

Perguntei a mim mesmo Para ser honesto a resposta foi natildeo Para

mim natildeo eacute pautado nele que vivo Entatildeo natildeo temos mais nenhum

mito Natildeo eacute evidente que natildeo temos mais nenhum mito Mas

entatildeo qual eacute o seu mito o mito em que vocecirc efetivamente vive

Nesse ponto o diaacutelogo comigo mesmo ficou desconfortaacutevel e parei de

pensar Eu chegara a um beco sem saiacuteda79

77 EDINGER 1999 10 78 JUNG 1975 79 JUNG 1975 171

68

Disse ainda Jung que o mito leva o homem em uma tendecircncia a priori

ingecircnua a acreditar e levar a seacuterio todas as manifestaccedilotildees miacuteticas do

inconsciente e de acreditar que a natureza do proacuteprio mundo isto eacute as verdades

definitivas estejam encerradas no mito Essa concepccedilatildeo natildeo eacute de todo destituiacuteda

de fundamento visto que as manifestaccedilotildees espontacircneas do inconsciente

exprimem uma psique que nem sempre se identifica com a consciecircncia e muitas

vezes se distancia dela tratando-se de uma atividade psiacutequica natural e natildeo

aprendida que independe de nosso livre arbiacutetrio

As formas arquetiacutepicas que surgem da raiz do pensamento humano satildeo

necessaacuterias para que o homem possa determinar a existecircncia do mundo e

conhececirc-lo Eacute a psique primitiva essa raiz que se pode afirmar natildeo conhecia a si

mesma Essa consciecircncia soacute pode ser formada a partir da evoluccedilatildeo do homem

desde sua origem ateacute os tempos histoacutericos

Ainda hoje conhecemos certas tribos primitivas cuja

consciecircncia se distancia muito pouco do lado tenebroso da psique

primiacutegena e mesmo entre os homens civilizados podemos encontrar

resquiacutecios do estado primordial80

ABRAHAM em Traum und mytus (apud JUNG 1989 21) disse

entender ser o mito uma parte superada da vida espiritual infantil do povo Assim

o mito eacute uma parte preservada da vida espiritual infantil do povo e o sonho o mito

80 JUNG 1988 89

69

do indiviacuteduo Essa citaccedilatildeo se prende ao fato de que muitos teoacutericos acreditam ser

esta a real concepccedilatildeo psicoloacutegica de mito Realmente podemos ver nas crianccedilas

que a tendecircncia na formaccedilatildeo de mitos corre ao lado de suas fantasias

transformadas em realidade fantasias essas revestidas de histoacuterias No entanto

afirmar que o mito procede da vida espiritual infantil do povo chega a parecer

absurdo pois na verdade eacute o mito a produccedilatildeo mais adulta da humanidade

primitiva O homem que pensava e vivia nas cavernas que vivia no mito era uma

realidade adulta pois o mito natildeo eacute uma fantasia pueril mas um dos requisitos

mais importantes da vida primitiva 81

O mito eacute a cultura profana ou sagrada eacute cultura cultura por outro lado

eacute educaccedilatildeo assim a funccedilatildeo dos mitos pode ser vista como uma forma

estruturada de culturalmente se falar dos seres sobrenaturais perante a histoacuteria do

homem essa histoacuteria como se trata da realidade do homem miacutetico se constitui

como absoluta verdade pois se referem agraves realidades sagradas desse homem O

mito cria o mundo estabelece como se iniciou e como terminaraacute contanto

narrativamente escrita ou atraveacutes da tradiccedilatildeo oral como algo surgiu na viva do

homem miacutetico

O mito revela e revelando nos daacute a oportunidade da realizaccedilatildeo

misteriosa de controlar a realidade atraveacutes do rito o qual promove o contato com a

divindade Todos estamos contidos e contemos o mito pois em momentos de

extrema dor ou prazer sacralizamos o que sentimos e por mais ceacuteticos que

81 JUNG 1989 p21

70

possamos ser sentimos a presenccedila do mito e vivenciamos em nossa psique os

resultados do poder criador do mito

Sendo ainda cultura o mito pode ter como poder criador associado ao

tempo a eacutepoca ao produto social de um grupo as vivecircncias que se alteram e se

propagam no inconsciente coletivo determinando as forccedilas que manteacutem o mito

vivo gerando comportamentos religiosos morais sociais e poliacuteticos desde a

coleta da caccedila da construccedilatildeo de um barco de uma habitaccedilatildeo ateacute a postura

preponderante de um chefe de estado perante a naccedilatildeo que governa Eacute algo maior

que a racional inteligecircncia do homem de nosso seacuteculo em detrimento das

especulaccedilotildees metafiacutesicas ou teoloacutegicas

Toda e qualquer tentativa de explicar um mito faz com que uma

barreira inexplicaacutevel surja pois a proacutepria explicaccedilatildeo do mito vive dentro do mito

pois partes de um mito natildeo podem ser explicadas pois ele em si eacute todo

A tentativa de explicar um mito eacute feita com base em leis mutaacuteveis das

ciecircncias enquanto ele eacute baseado em leis estaacuteveis da natureza O animal

reconhece seu cio sem que se necessite ensinaacute-lo desloca-se para copular sem

que necessite de mapas luta por seu patrimocircnio geneacutetico sem aulas de

biodiversidade e as estrelas essas se encontram laacute para o homem miacutetico sem

que ningueacutem possa explicar como laacute chegaram

Por fim o mito eacute o homem e o homem eacute o mito natildeo como parte um do

outro mas ontologicamente na relaccedilatildeo do vir-a-ser Natildeo porque nada vem-a-ser

71

senatildeo o que pode ser mas o vir-a-ser depende de modelos ou formas garantidos

pelo Ser e por sua manifestaccedilatildeo 82 e o mito eacute a manifestaccedilatildeo desse Ser

82 CRIPPA1975p183

72

CAPIacuteTULO 3 - O MITO CRISTAtildeO

Para que o leitor tenha uma visatildeo mais profunda sobre o embate de

mitos que ocorreu no seacuteculo XVI com a chegada dos portugueses ao Brasil e

especificamente com a catequese jesuiacutetica vejo como de suma importacircncia que

seja dedicado ao capiacutetulo deste trabalho exclusivamente ao mito cristatildeo

Falei direta e especificamente das visotildees filosoacuteficas antropoloacutegicas e

psicoloacutegicas sobre o conceito de mito

Como natildeo tratar entatildeo o mito que deu origem ao estudo do objeto

desta pesquisa que se trata do embate de mitos durante o periacuteodo quinhentista

Quem eacute o portuguecircs que chega ao Brasil daquele periacuteodo que mitos

abriga em sua alma quais os caminhos direcionados ao mito da divindade como

explica suas impotecircncias suas crenccedilas seus valores religiosos pois satildeo esses

valores trazidos da Santa Feacute Catoacutelica que vatildeo ser impostos aos brasis desde a

chegada de Cabral

Para tal para que possa responder perguntas que satildeo minhas e

acredito sejam do leitor entrei em um campo muito profundo quer no sentido

psicoloacutegico da anaacutelise desse mito quer em levantar polecircmicas sobre os siacutembolos

de transformaccedilatildeo cultural que o mito cristatildeo tem gerado desde os mais remotos

tempos

73

Assim fui muitas vezes pesquisar na Biacuteblia e nos conceitos junguianos

como esse mito participou e participa da vida daqueles que seguem como mito

como arqueacutetipo principal de suas vidas a vida de Cristo

Em primeiro lugar busquei entender um pouco desse homem

anunciado pelo Anjo do Senhor e que no caminho de sua individuaccedilatildeo morre

crucificado apoacutes a aceitaccedilatildeo de seu destino em relaccedilatildeo a Deus83

Em seguida mais perguntas surgiram Ao falar do Homem ao falar do

Filho minha busca vai em direccedilatildeo ao Pai e por consequumlecircncia ao Espiacuterito Santo

onde tento entender e interpretar o mito da Trindade84

Mas o Filho de Deus fez coisas na terra entre elas fazer gerar uma

Igreja e uma Santa Feacute onde seu siacutembolo mais forte eacute a Santa Ceia que deu

origem agrave missa Busco aiacute outros siacutembolos cristatildeos outros mitos outros elementos

que foram gerados por uma cultura de uma eacutepoca e que foram transformados em

Lei85

Busco ainda a concepccedilatildeo natildeo maniqueiacutesta de Bem e Mal na visatildeo do

mito cristatildeo e condensando esses conhecimentos consigo entatildeo falar do cristatildeo

portuguecircs daquele que leva esses mitos esses arqueacutetipos esses siacutembolos de

transformaccedilatildeo esses siacutembolos culturais ao indiacutegena brasileiro que se encontrava

vivendo pelos seus proacuteprios mitos e de suas proacuteprias tradiccedilotildees por seus proacuteprios

83 vide apecircndices 2 3 e 4 84 idem 85 idem

74

arqueacutetipos e simbologias miacuteticas que tal como os portugueses tal como os

jesuiacutetas buscavam suas proacuteprias almas e os sentidos para suas vidas

De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado do proacuteprio Espiacuterito Santo e que traria aos brasis os

bons costumes a feacute em si a cura de todos os males da alma Do outro lado

homens livres que possuiacuteam seus costumes como bons que possuiacuteam feacute em

seus mitos e explicaccedilotildees da finitude de suas vidas sem que entendesse que

possuiacuteam males em suas almas ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao

inimigo do Homem que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a

realidade

O cristianismo do seacuteculo XVI natildeo tinha como entender que a verdade

acabada revelada e imposta natildeo abria o coraccedilatildeo do homem branco ou de pele

dourada para as reais coisas da palavra de Deus Estas palavras nascem

exatamente no coraccedilatildeo do homem pois satildeo elas que explicam e levam o homem

em busca da individuaccedilatildeo do contato direto com seus niacuteveis mais inconscientes

lugares esses em que realmente se ouve a voz da divindade seja ela qual for

O homem ao crer sem questionar natildeo reflete sobre suas duacutevidas natildeo

questiona seus mitos e seus dogmas natildeo muda natildeo altera o que pensa do

inexplicaacutevel mas o homem que pensa suas ideacuteias sempre teraacute a duacutevida como

bem recebida pois eacute ela que permite um conhecimento mais perfeito e mais

seguro de si e daquilo que natildeo consegue explicar

Jung nos coloca em sua obra que como estudioso chega a ver a

religiatildeo como um filho natural do inconsciente humano que vecirc nas vaacuterias e

75

improvaacuteveis afirmaccedilotildees religiosas movimentos psicoloacutegicos do processo universal

de renovaccedilatildeo e amadurecimento humanos mas que para isso a duacutevida o

questionamento sobre as verdades reveladas devem estar sendo pensadas pelo

homem

Mas nos quinhentos o homem portuguecircs natildeo pensava seus mitos

religiosos os vivia e por esse motivo podia de forma impositiva infligir sua feacute

seus bons costumes suas crenccedilas atraveacutes do poder de fogo de canhotildees do

poder dos sacramentos do poder do teatro e da catequese Seu modo miacutetico de

ver o mundo era o correto o uacutenico afinal como dizia Vicente de Lerins86 norma de

feacute eacute aquilo que foi acreditado sempre por todos e em toda parte No entanto natildeo

havia todos para os catoacutelicos senatildeo os catoacutelicos Protestantes eram

considerados tatildeo hereges quanto qualquer outro que natildeo catoacutelico Natildeo havia

parte alguma senatildeo aquela em que os catoacutelicos viviam o restante do mundo era

para ser transformado colonizado submetido e convertido gerando uma

verdadeira doenccedila na alma desses homens miacuteticos que habitavam estas terras no

seacuteculo XVI

86 Vicente de Lerins foi um antigo teoacutelogo citado diversas vezes por Jung em sua obra como sendo seu pensamento sobre a feacute uma das manifestaccedilotildees mais felizes da ortodoxia psicoloacutegica In Dourley 1987 p29

76

CAPIacuteTULO 4 - COMO O EUROPEU CRISTAtildeO COMPREENDIA OS INDIacuteGENAS E A

CONCEPCcedilAtildeO QUE TINHAM DA VIDA DESSES BRASIS

Esta terra poreacutem tinha dono belicoso e baacuterbaro87

Para que pudesse realizar esta parte deste trabalho tive que buscar

informaccedilotildees de distintas formas Em primeiro lugar houve uma preocupaccedilatildeo em

levantar as fontes em que poderia pesquisar fontes essas que soacute poderiam ser

de autores do periacuteodo em que me fixei para levantar as informaccedilotildees

Esses homens autores de alguns documentos me dariam sempre

visotildees cristatildes brancas portuguesas ou espanholas de como os indiacutegenas

concebiam suas vidas

Muitas vezes pude encontrar claros relatos dessas vidas mas em outras

me restava a interpretaccedilatildeo agraves vezes pelo negativo das narrativas de como essas

vidas aconteciam

Claro muitos documentos mostravam com repuacutedio e rechaccedilo os

costumes que busquei entender outros mais romacircnticos mostravam seres

edecircnicos em alguns momentos e bestas feras em outros Bastava que o indiacutegena

87 CALMON 1963 vol 2 p321

77

fosse contra de alguma forma ao contato ao convencimento que lhe tentavam agrave

catequese ou agrave conversatildeo proposta para que passasse de um extremo para outro

de adacircmicos em democircnios como fez Anchieta em seus autos com Guaixaraacute e os

outros diabos88

Percebo em cartas de Noacutebrega de Anchieta ou de Navarro momentos

de pura consternaccedilatildeo do modo de viver dos brasis para em seguida mostrar o

lado demoniacuteaco que carregavam os indiacutegenas obviamente em suas visotildees

europeacuteias e jesuiacuteticas dentro do mito cristatildeo Noacutebrega mais animado em suas

primeiras cartas e mais desgostoso e entristecido com sua missatildeo ao final

Navarro mais intelectual em seus conceitos e descriccedilotildees e em Anchieta um relato

mais duacutebio conforme a tribo da qual escrevia

Busquei Cardim Caminha Frei Vicente do Salvador Calmon

Capistrano de Abreu Gacircndavo e no de gestis Mendi de Saa

de Anchieta e em

todos tive que proceder da mesma forma agraves vezes relatando agraves vezes

interpretando pelo negativo

Pude encontrar ainda a tradiccedilatildeo oral com a qual convivi durante anos e

me senti agrave vontade em ler com isso os relatos de Kakaacute Weraacute Jecupeacute89 e

compreender algumas de suas informaccedilotildees

Por essa com-vivecircncia com tribos como Jivaros (com liacutengua proacutepria e

o espanhol) como Pataxoacutes no Sul da Bahia com Charruas na regiatildeo das missotildees

88 Auto de Satildeo Lourenccedilo o qual seraacute tratado mais adiante neste trabalho 89 Kakaacute Weraacute Jecupeacute

iacutendio txucarramatildee autor dos livros A Terra dos mil povos e Tupatilde Tenondeacute editados pela Editora Fundaccedilatildeo Peiroacutepolis - SP

78

e com verdadeiros iacutendios gauacutechos montados

vestidos em seus quiacutechua xiri

pac 90 dos pampas argentinos e da fronteira do Brasil sentia que podia ler relatos

de indiacutegenas de hoje pois entendia de tradiccedilatildeo oral afinal eu mesmo tive

centenas de ensinamentos atraveacutes dessa forma de educaccedilatildeo

Conheci indiacutegenas de diversos tipos e costumes mas todos mesmo

bastante transmutados por nossa cultura ainda livres ainda aguerridos muitos

ainda indolentes e outros prontos para a guerra mas nenhum deles menos

miacuteticos que noacutes menos inteligentes que noacutes menos carentes de explicaccedilotildees

sobre a finitude da vida humana e guardadores ferrenhos de seus costumes

crenccedilas e tradiccedilotildees

Tento assim neste capiacutetulo descrever daqui a diante todo esse estudo

sobre como os indiacutegenas concebiam suas vidas em meio ao Seacuteculo XVI

No entanto natildeo podendo perder o foco desta proposta o embate de

mitos por mais que nas descriccedilotildees encontradas nas fontes de que os indiacutegenas

viviam suas vidas surgissem termos como liberdade ou feras a serem

amestradas ou natildeo possuem Deus no coraccedilatildeo natildeo posso deixar de entender

que eram esses termos esses conceitos meras interpretaccedilotildees culturais de quem

via e relatava Vou trabalhar com esses termos conceituais

90 Do esp chiripaacute lt quiacutechua xiri pac para o frio S m Bras S Vestimenta sem costura outrora usada pelos gauacutechos habitantes do campo e que consistia num metro e meio de fazenda que passando por entre as pernas era presa agrave cintura por uma cinta de couro ou pelo tirador

79

Vejamos Cardim91 nas primeiras linhas de Princiacutepio e Origem dos iacutendios

do Brasil e seus costumes

Este gentio natildeo tem conhecimento algum de seu creador nem

de cousa do Ceacuteo nem se ha pena nem gloria depois desta vida

e portanto natildeo tem adoraccedilatildeo nenhuma nem cerimonias ou

culto divino mas sabem que tecircm alma e que esta natildeo morre e

depois da morte vatildeo a uns campos onde ha muitas figueiras ao

longo de um formoso rio e todas juntas natildeo fazem outra cousa

senatildeo bailar

Vamos ler agora maino i ypi kue apresentado em Tupan Tenondeacute92

Ntildeande Ru Pa-pa Tenondeacute Gete ratilde ombo-jera Pytuacute yma gui

Nosso Pai Primeiro criou-se por si mesmo na Vazia Noite iniciada

Yvaacutera pypyte Apyka apuia i Pytuacute yma mbyte re oguero-jera

As sagradas plantas dos peacutes O pequeno assento arredondado Do Vazio Inicial Enraizou seu desdobrar (florescer)

Yvaacutera jeckaka mba ekuaaacute Yvaacutera rendupa Yvaacutera popyte yvyra i Yvaacutera popyte rakatilde poty Oguero-jera Ntildeamandui Pytuacute yma mbyte re

Ciacuterculo desdobrado da sabedoria inaudiacutevel Fluiu-se divino Todo Ouvir As divinas palmas das matildeos portando o bastatildeo do poder As divinas palmas das matildeos feito ramas floridas Tramam o Imanifestado na dobra de sua evoluccedilatildeo no meio da primeira noite

Ntildeande Ru Ntildeamandu tenondeacute gua O yva raacute oguero-jera eyacute mboyve i Pytuacute A e ndoechaacutei Kuaray oiko eyacute ramo jepe

Nosso Pai O Grande Misteacuterio o primeiro antes de haver-se criado no curso de sua evoluccedilatildeo sua futura morada sustenta-se no Vazio

91 CARDIM 1980-p87 92 JECUPEacute2001 p25-31

a liacutengua apresentada ao lado do texto traduzido eacute o abantildeeenga considerada como a liacutengua ancestral Tupi de onde saiacuteram os dialetos que hoje existem dos Chiripaacute dos Kaiowaacute e dos Mbyaacute aleacutem do guarani paraguaio

80

O py a jechaka re A e oiko oikovy O yvaacutera py mba ekuaaacute py Antildeembo-kuaray i oiny

Antes que existisse sol Ele existia pelo reflexo de seu proacuteprio coraccedilatildeo E fazia servir-se de sol dentro de sua proacutepria divindade

Como podemos concluir fazendo uma comparaccedilatildeo entre os dois textos

o de Cardim considerado fonte histoacuterica e o outro de Jecupeacute uma traduccedilatildeo de

fonte oral da tradiccedilatildeo guarani tinham sim os indiacutegenas um conhecimento de seu

criador Apenas o mito eacute outro apenas os arqueacutetipos satildeo outros apenas a forma

de explicar o inexplicaacutevel eacute outra

O andarem nus por exemplo Todas fontes nos mostram o quanto eram

esses homens e mulheres livres e inocentes por andarem nus portando muitas

vezes sua arte plumaacuteria que os diferenciava de uma tribo para outra pinturas de

siacutembolos e cores Mas seria essa forma de viver realmente uma questatildeo de

liberdade Natildeo poderiacuteamos considerar a falta de roupa como uma falta de

conhecimento do tecer e da natildeo necessidade de tantas roupas conforme

estabelecido no modo de viver do portuguecircs cristatildeo

Havia pelo que podemos encontrar vaidade entre os indiacutegenas mas

com conceitos outros de mostrarem suas necessidades de guarda de patrimocircnio

geneacutetico que tal qual os paacutessaros seus vizinhos danccedilavam para suas mulheres

emplumados e coloridos mostrando seus dotes suas honras sua forccedila e sua

importacircncia dentro da hierarquia tribal

Poreacutem para saiacuterem galantes usatildeo de vaacuterias invenccedilotildees

tingindo seus corpos com certo sumo de uma aacutervores com que ficam

81

pretos dando muitos riscos pelo corpo braccedilos etc a modo de

imperiaes 93

Ou ainda como Caminha num dos relatos mais afamados

A feiccedilatildeo deles eacute serem pardos maneira de avermelhados

de bons rostos e bons narizes bem-feitos Andam nus sem nenhuma

cobertura Nem estimam em cobrir ou de mostrar suas vergonhas e

nisso tecircm tanta inocecircncia como em mostrar o rosto E um deles

trazia por debaixo da solapa de fonte a fonte para detraacutes uma

espeacutecie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do

comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o

touticcedilo e as orelhas94

Esta eacute uma das visotildees mais neutras da nudez indiacutegena mas vejamos

outra

aqui onde as mulheres andam nuas e natildeo sabem se

negar a ningueacutem mas ateacute elas mesmas cometem e importunam os

homens jogando-se com eles nas redes porque tecircem por honra

dormir com os Cristatildeos 95

93 CARDIM 1980-p90 94 CAMINHA

p3

Carta de pero Vaz de Caminha

A certidatildeo de nascimento do Brasil

Bradesco

Brasil 500 anos- 2000 e tb CALMON 1963- Vol I p67 95 ANCHIETA Cartas 1988 p78 Carta ao Padre Mestre Inaacutecio de Loiola julho 1554

82

Ou ainda na visatildeo de Noacutebrega

Parece-nos que natildeo podemos deixar de dar a roupa que

trouxemos a estes que querem ser christatildeos repartindo-lh a ateacute

ficarmos todos eguaes com elles ao menos por natildeo escandalisar aos

meus Irmatildeos de Coimbra si souberem que por falta de algumas

ceroulas deixa uma alma de ser christatilde e conhecer a seu Creador e

Senhor e dar-lhe gloria96

Ou ainda

Tambeacutem peccedila Vossa Reverendissima algum petitoacuterio de

roupa para entretanto cobrirmos estes novos convertidos ao menos

uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religiatildeo Christatilde

porque vecircm todos a esta cidade aacute missa aos domingos e festas que

fazem muita devoccedilatildeo e vecircm resando as oraccedilotildees que lhes ensinamos

e natildeo paree honesto estarem nuas entreos Christatildeos na egreja e

quando as ensinamos97

Assim somente uma forma de olhar de cima de que concepccedilatildeo se

analisa define de forma diferente o costume do outro

Podemos pegar mais um exemplo de como olhar um costume o

casamento

Entre eles ha casamentos poreacutem ha muita duvida se satildeo

verdadeiros Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar

contrario e preserverava virgem ateacute que o tomasse e matasse

correndo-lhe primeiro suas festas por espaccedilo de dous ou tres annos a

96 NOacuteBREGA 1988 P74 Carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo - 1549 97 NOacuteBREGA 1988 p85 Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549

83

mulher da mesma maneira natildeo conhecia homem ateacute lhe natildeo vir regra

depois da qual lhe faziatildeo grandes festas ao mesmo tempo de lhe

entregarem a mulher faziatildeo grandes vinhos e acabada a festa ficava

o casamento perfeito dando-lhe uma rede lavada e depois de

casados comeccedilavatildeo a beber poque ateacute ali natildeo o consentiatildeo seus

pais ensinando-lhes que bebessem com tento e fossem

considerados e prudentes em seu falar para que o vinho natildeo lhes

fizesse mal nem falassem cousas ruins e entatildeo com uma cuya lhe

davatildeo os velhos antigos o primeiro vinho e lhe tinhatildeo a matildeo na

cabeccedila para que natildeo arrevessassem porque se arrevessava tinhatildeo

para si que natildeo seria valente e vice-versa98

Entendo com este texto de Cardim que existe um tanto de moral de

regras de ensinamentos e de respeito muacutetuo entre as pessoas de uma mesma

tribo inclusive com preocupaccedilatildeo paterna de bons costumes Poreacutem me parece

na proacutexima citaccedilatildeo de autoria de Noacutebrega que natildeo era bem assim que ele via a

relaccedilatildeo de casamento pois os brancos e europeus natildeo seguiam essa mesma

visatildeo de um casamento verdadeiro entre eles proacuteprios como faziam os

indiacutegenas Vejamos

Nesta terra ha um grande peccado que eacute terem os

homens quase todos suas Negras por mancebas e outras livres que

pedem aos Negros por mulheres segundo o costume da terra que eacute

98 CARDIM 1980-p88

84

terem muitas mulheres E estas deixam-n as quando lhes apraz o que

pe grande escandalo para a nova Egreja que o Senhor quer fundar99

Anchieta tambeacutem natildeo vecirc com bons olhos o costume do casamento

indiacutegena mesmo com as regras intriacutensecas daquela cultura pois olhando de cima

de seu mito cristatildeo natildeo pode admitir as relaccedilotildees de casais que se formam nas

tribos Vejamos

contraiacutedo matrimocircnio com os mesmos parentes e

primos se torna dificiacutelimo se por ventura queremos admiiacute-los ao

batismo achar mulher que por causa do parentesco de sangue possa

ser tomada por esposa O que natildeo pequeno embaraccedilo nos traz

porquanto natildeo podemos admitir a receber o batismo aacute que se

conserva manceba pois satildeo de tal foacuterma barbaros e indocircmitos que

parecem aproximar-se mais a natureza das feras do que aacute dos

homens100

Mais um ponto para que possamos entender os costumes dos brasis eacute

o de comer carne humana a antropofagia tatildeo apontada em todos os relatos e

cartas e por todos os historiadores do periacuteodo

Ficou quase que declarado de que os indiacutegenas se alimentavam de

carne de seus contraacuterios como se pudesse falar que comiam carne no sentido

alimentar no sentido de sobrevivecircncia da mesma forma que caccedilavam pescavam

ou colhiam frutos e raiacutezes

99 NOacuteBREGA 1988 p79 - Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549 100 ANCHIETA- Cartas 1988p55 Carta de Piratininga 1554

85

Haacute que se entender a ritualiacutestica que envolvia a antropofagia Para

tanto eacute importante tambeacutem que se fale um pouco do costume de guerrear

Os indiacutegenas mais aguerridos tinham como orientaccedilatildeo alimentar nunca

comerem animais lentos ou fracos pois esses atributos passariam a fazer parte de

suas personalidades atributos esses que consideravam sobremaneira como

negativos101 Comiam para esse fim animais raacutepidos ferozes perigosos

audazes espertos e claro o inimigo aprisionado em uma batalha

A antropofagia natildeo alimentava mas dava de uma forma ritualiacutestica a

possibilidade da aquisiccedilatildeo dos atributos positivos do inimigo Ao comer a carne de

um guerreiro valente honrado capaz dominante em sua tribo acreditava por

seus mitos estar adquirindo esses atributos neste caso considerados positivos

Comer carne humana de um guerreiro vencido e aprisionado tinha portanto um

sentido miacutetico

A documentaccedilatildeo disponiacutevel natildeo deixa nenhuma duacutevida a

respeito do fim do aprisionamento de inimigos ele natildeo estava

subordinado a motivos fisioloacutegicos a necessidade de

aprovisionamento regular de carne humana destinada agrave alimentaccedilatildeo

Os Tupinambaacute praticavam a antropofagia sob a forma ritual (apesar

de alguns cronistas pretenderem insinuar o contraacuterio) de modo que a

ingestatildeo de carne dos inimigos sacrificados possuiacutea um significado

simboacutelico e maacutegico 102

101 Podemos ver uma descriccedilatildeo completa em FERNANDES 1970- p43 102 FERNANDES 1970- p47

86

A morte daquele que iria ou foi comido tambeacutem tinha um valor para o

proacuteprio sacrificado visto que morrer dessa forma tambeacutem significava honra pois

ser enterrado para que os vermes o comessem era ser considerado um fraco e

natildeo um guerreiro

Assim as lutas as guerras eram lutas bioacuteticas e necessaacuterias para a

sobrevivecircncia mas tambeacutem pelos seguintes motivos

A aplicaccedilatildeo e treinamento dos conhecimentos de caccedila utilizando

a cilada e o rastrear e perseguir como forma de ataque

Para a guarda do patrimocircnio geneacutetico roubando mulheres

melhores de outra tribo para que filhos melhores pudessem ser

fecundados em casamentos exogacircmicos

Para a pilhagem de conhecimentos como o da cestaria ou da

ceracircmica

Para garantia ou disputa de um espaccedilo ou territoacuterio

ecologicamente mais pleno de possibilidades de alimento da prole

e da tribo em si

Para a pilhagem de viacuteveres em tempos de escassez de recursos

naturais ou de aprovisionamento de utilidades

Como rito de passagem para os mais jovens tornarem-se homens

no sentido adulto de sua masculinidade (avaacute ou tujuaacutee) o que

poderia tornaacute-lo mais atrativo para as mulheres mais atrativas

onde novamente surge a guarda do patrimocircnio geneacutetico

87

Como forma de aprisionar guerreiros que poderiam ser trocados

por viveres ou territoacuterios mais bioacuteticos

A guerra como forma de vinganccedila

Todo indiacutegena estava pronto para lutar Uns mais agressivos outros

mais paciacuteficos mas todos tinham a necessidade belicosa de se defrontar com

inimigos em seus trajetos por territoacuterios que lhe pertenciam ou em incursotildees por

territoacuterios alheios

Talvez por esse motivo Noacutebrega olhasse as guerras indiacutegenas da

seguinte maneira

Fazem guerra uma tribu a outra a 10 15 e 20 leguas de

modo que estatildeo todos entre si divididos Se acontece aprisionarem

um contraacuterio na guerra conservam-o por algum tempo datildeo-lhe por

mulheres suas filhas para que o sirvam e guardem depois do que o

matam com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram

ali perto e si deles ficam filhos os comem ainda que sejam seus

sobrinhos e irmatildeos declarando aacutes vezes as proacuteprias matildees que soacute os

paes e natildeo a matildee tecircm parte nellesSi matam a um na guerra o

partem em pedaccedilos e depois de moqueados os comem com a

mesma solemnidade e tudo isto fazem com um odio cordial que tecircm

um do outro e nestas duas cousas isto eacute terem muitas mulheres e

matarem os inimigos consiste toda a sua honraNatildeo guerreiam por

avareza porque natildeo possuem de seu mais do que lhes datildeo a pesca

a caccedila e o fructo que a terra daacute a todos mas soacutemente por odio e

88

vinganccedila sendo tatildeo sujeitos a ira que si acaso se encontram em o

caminho logo vatildeo a pau aacute pedra ou dentada103

Muito se pode falar do costume de guerrear e da antropofagia como

magia propiciatoacuteria mas soacute esse assunto daria oportunidade de toda uma nova

tese

Dessa forma continuando com a proposta de mostrar como os brasis

concebiam suas vidas na visatildeo do cristatildeo europeu apresento outros pontos dos

costumes e outras comparaccedilotildees culturais

Falo agora da conceituaccedilatildeo de democircnio

A histoacuteria do Diabo confunde-se com a histoacuteria do proacuteprio

Cristianismo era necessaacuteria para a coletividade cristatilde a existecircncia e

a encarnaccedilatildeo do Mal Era preciso que fosse visto tateado tocado

para que o Bem surgisse como a graccedila suprema

O Belo e o Divino

em oposiccedilatildeo ao Horriacutevel e Demoniacuteaco104

Se pegarmos apenas pela definiccedilatildeo temos que a palavra democircnio que

obviamente natildeo existia no vocabulaacuterio de qualquer tribo indiacutegena do Brasil do

Seacuteculo XVI tem sua origem no grego daimoacutenion

e mais tarde do latim

daemonium termo originaacuterio nas crenccedilas da Antiguidade e no politeiacutesmo que

significaria o gecircnio criador fosse ele bom ou mal e que presidia o caraacuteter e o

destino de cada indiviacuteduo Surge no entanto no judaiacutesmo e por consequumlecircncia no

103 NOacuteBREGA 1988p90-91 carta ao Dr Navarro seu Mestre em Coimbra- 1549 104 NOGUEIRA 2000 P103

89

cristianismo com a definiccedilatildeo de anjo mau o qual apoacutes rebelar-se contra Iahweh

foi precipitado no inferno e busca a perdiccedilatildeo da humanidade

Pela didaacutetica da catequese trazer essa definiccedilatildeo do democircnio ou do

Diabo agraves mentes indiacutegenas se fazia necessaacuterio pela pedagogia do terror que se

impunha agraves mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeos

chegando mesmo a ser considerado no Teatro de Anchieta como um certo prazer

esteacutetico na arte de representaccedilatildeo de seus autos fazendo com que indiacutegenas tal

qual o imaginaacuterio cristatildeo acreditasse na importacircncia grandiosa de Satatilde o

Priacutencipe do Mundo na mente dos religiosos cristatildeos aquele que lutava contra a

verdade e a vida

Claro que o indiacutegena tinha noccedilatildeo do Bem e do Mal Tudo aquilo que era

contra seu prazer era o mal e a favor o bem O homem natural e espontacircneo soacute

se move por prazer ou pela dor e o indiacutegena era o homem espontacircneo no seacuteculo

XVI era o homem natural onde guerrear era prazer comer a carne de seu

inimigo era prazer atacar uma tribo para roubar uma fecircmea de outra tribo era

prazer ser belicoso e baacuterbaro na opiniatildeo dos cristatildeos era prazer portanto era o

bem pois para o homem natural Bem e Mal satildeo apenas pontos de referecircncia

Por outro lado existiam na cultura os espiacuteritos do mal isto eacute aqueles

que lhes levava o prazer a comida a caccedila a aacutegua lhes negava a chuva ou fazia

morrer aqueles a quem amavam Esses espiacuteritos eram o Mal Esses eram

Anhangaacute Anhanguumlera (Anhangaacute velho) Taguaigba o Mboy-tataacute105 Curupira106 ou

105 Mboy-cobra+tataacute- fogo = cobra de fogo tambeacutem conhecido como Baetataacute maetataacute ou boitataacute

90

Caipora107 que lhes impedia a caccedila afastando os animais que lhes dariam de

comer caso matasse animais aleacutem da conta necessaacuteria para sua sobrevivecircncia

Curupira era o Mal Curupira era o Bem O que se sabia eacute que era o

protetor da matas A floresta e todos que nela habitavam estavam sob sua

vigilacircncia constante

Por isso antes das grandes tempestades ouve-se bater

nos troncos das aacutervores Eacute o Curupira verificando se elas podem

resistir ao furacatildeo que se avizinha para em caso contraacuterio avisar os

moradores da mata do perigo 108

Anchieta fala desses democircnios em sua carta datada do fim de maio de

1560109 acreditando neles como acreditava em seus proacuteprios democircnios

Eacute cousa sabida e pela boca de todos corre que ha certos

democircnios a que os Brasis chamam corupira que acometem sos

Indios muitas vezes no mato datildeo-lhes accediloites machucam-os e

matam-os Satildeo testemunhas disto os nossos Irmatildeos que viram

algumas vezes os mortos por elesPor isso costumam os Indios

deixar em certo caminho que por aacutesperas brenhas vai ter ao interior

das terras no cume da mias alta montanha quando por caacute passam

penas de aves abanadores flechas e outras cousas semelhantes

como uma espeacutecie de oblaccedilatildeo rogando fervorosamente aos curupiras

que natildeo lhes faccedilam mal

106 de curu-corruptela de curumim + pira = corpo corpo de menino 107 Caipora do tupi-guarani caaacute mato e pora habitante 108 httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905 109 ANCHIETA- Cartas 1988p138 Carta de S Vicente - 1560

91

Anchieta fala do igpupiaacutera110

Ha tambeacutem nos rios outros fantasmas que chamam

Igpupiaacutera isto eacute que moram n agua que matam do mesmo aos Indios

Natildeo longe de noacutes ha um rio habitado por Cristatildeos e que os Indios

atravessavam outrora em pequenas canocircas que fazem de um soacute

tronco ou de corticcedila onde eram muitas vezes afogados por eles

antes que os Cristatildeos para laacute fossem

Conta ainda sobre o Macuteboy-tataacute111

Ha tambeacutem outros maximegrave nas praias que vivem a maior

parte do tempo junto ao mar e dos rios e satildeo chamados de baetataacute

que quer dizer cousa de fogo o que eacute o mesmo como se dissesse o

que eacute todo fogo Natildeo se vecirc outra cousa senatildeo um facho cintilante

correndo daqui para ali acomete rapidamente os Indios e mata-os

como os curupiras o que seja isto ainda natildeo se sabe com certeza

Haacute tambeacutem outros espectros do mesmo modo pavorosos

que natildeo soacute assaltam os Indios como lhes causam dano o que natildeo

admira quando por ecircstes e outros meios semelhantes que longo fora

enumerar quer o democircnio tornar-se formidaacutevel a ecircstes Brasis que

natildeo conhecem a Deus e exercer contra eles tatildeo cruel tirania

E assim podemos ir comparando os cristatildeos usando os padres como

intermediaacuterios do divino os indiacutegenas usando os pajeacutes como sacerdotes os

cristatildeos com medo do diabo os indiacutegenas com medo do Anhangaacute do Taguaigba

Pigtangua do Avasaly ou do Curupira o sarnento

110 Igpupiaacutera

falam Anchieta e F Cardim conforme nota 165 de ANCHIETA-Cartas 1988- 153 - tambeacutem conhecidos como y-pypiaacutera sendo y= aacutegua e pypiaacutera= de dentro isto eacute um monstro que vivia dentro das aacuteguas dos rios 111 ANCHIETA Cartas 1988 p139 Carta de S Vicente - 1560

92

Eram vaacuterios por todo o territoacuterio conhecido pelos portugueses conforme

nos fala Pedro Calmon112 Aimoreacute ou Tapuia os Tupinambaacute de todo o litoral os

Temiminoacute e os Tamoio que se denominavam velhos Tupi canoeiros e pescadores

os Goytacas dos campos proacuteximos de Cabo Frio e mais os Tucupecuxari

Kmayuraacute Yanomami Kadiweu Kaigang Krahocirc Yawalapiti e tantos e tantos

outros

Por esse motivo Jecupeacute que listou 206 tribos em nossas fronteiras

chama o Brasil de Terra dos Mil Povos

O que sabemos enfim eacute que o indiacutegena vivia e concebia suas vidas

atraveacutes de ritos de passagem de ritos de casamento de ritos de nascimento e

morte de magia propiciatoacuteria de batalhas culturais com outras tribos onde ao

guerrearem trocavam culturas trocavam conhecimentos garantiam seus

patrimocircnios geneacuteticos e realizavam suas mostras de honra e bravura garantindo-

lhes a sobrevivecircncia na terra adacircmica mas indocircmita em que viviam

Viviam como filhos do sol ou da lua apoiados no amor ou na ira da

Grande Matildee usando como siacutembolos em suas vidas a coruja a serpente a onccedila

ou o gaviatildeo dividindo-se em grupos e sub-grupos que geravam dialetos e

costumes de dormir de comer de amar de sofrer de rir de guerrear enfim de

viver

112 CALMON 1963 vol 2 p324-330

93

CAPIacuteTULO 5 - COMO OS INDIacuteGENAS TERIAM RECEBIDO A PREGACcedilAtildeO CRISTAtilde E AS

DIFICULDADES ENCONTRADAS NA MISSAtildeO DE CONVERTER

Entendo que seja necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees sobre o

espaccedilo poreacutem no sentido de acircmbito que ocupavam simultaneamente cristatildeos

principalmente os jesuiacutetas e os indiacutegenas brasileiros Era esse espaccedilo natildeo de

terra mas situacional em que ocorreram os confrontos entre grupos de origens

distintas obrigados a transformar a si proacuteprios muitas vezes a uacutenica possibilidade

de manterem suas vidas

Essa transformaccedilatildeo teve por alicerce uma espeacutecie de amaacutelgama

multifacetada de simbolismos o que significa dizer que nestes espaccedilos dedicados

a salvaccedilatildeo de almas forjaram-se respostas muacuteltiplas aos desafios trazidos pelo

encontro entre universos simboacutelicos tatildeo divergentes De um lado aquelas

orquestradas pelos disciacutepulos de Santo Inaacutecio atraveacutes da doutrina e da imposiccedilatildeo

do evangelho de outro as respostas fruto da apropriaccedilatildeo diversa e inovadora

produzida pela multidatildeo de etnias que compunham as muitas aldeias indiacutegenas

que deveriam ser totalmente subjugadas no bom sentido cristatildeo pela Santa

Madre Igreja

Quem nos definiu esse espaccedilo e tudo que nele ocorreu foram os

jesuiacutetas que atraveacutes de suas cartas suas crocircnicas catecismos e autos teatrais

94

relatavam o que acontecia com relaccedilatildeo a esses confrontos de culturas tatildeo

distintas

Muitos jesuiacutetas foram considerados cronistas perspicazes da realidade

que experimentavam Permitindo o desenho de um panorama complexo e intenso

do universo com o qual conviveram O encontro com o gentio e o escrutiacutenio de sua

natureza por parte desses soldados de cristo no firme propoacutesito de conquistar

almas ficou registrado nas diversas correspondecircncias que produziram no

cotidiano de suas missotildees Algumas circularam para aleacutem dos muros da ordem

como cartas de Noacutebrega de Navarro e de tantos outros Os catecismos e os autos

de Anchieta os sermotildees e os Regulamentos das Missotildees de Vieira

A vasta documentaccedilatildeo produzida pela Companhia de Jesus como fruto

do encontro entre seus missionaacuterios e os brasis corresponde a um conjunto

enorme de informaccedilotildees lapidadas pelo estilo conveniente para serem lidas

para servirem de registro da memoacuteria e como mateacuteria para edificaccedilatildeo dos irmatildeos

de sua ordem espalhados pelo mundo O sistema de comunicaccedilatildeo implantado

pela Ordem pode ser considerado sem precedentes na histoacuteria ocidental

Os Portugueses alcanccedilaram o litoral sul-americano pela

primeira vez em abril de 1500 poreacutem foi apenas no uacuteltimo quartel do

seacuteculo XVI que comeccedilaram a produzir relatos sistemaacuteticos com o

intuito de descrever e classificar as populaccedilotildees indiacutegenas

Excetuando-se a sumaacuteria Histoacuteria da proviacutencia de Santa

Cruz de Pero Magalhatildees Gacircndavo impressa em Lisboa em 1576 e

algumas cartas jesuiacuteticas amplamente disseminadas na Europa em

diversas liacutenguas os textos portugueses mais significativos

95

permaneceram ineacuteditos por seacuteculos bem como os Tratados da Terra

e Gente do Brasil uma compilaccedilatildeo da obra de Cardim proporcionam

claros indiacutecios das percepccedilotildees e imagens acumuladas ao longo do

seacuteculo XVI pelos portugueses no que diz respeito a um universo

indiacutegena que se apresentava tatildeo vasto e variado quanto

incompreensiacutevel 113

Ao mesmo tempo tratar essa documentaccedilatildeo como fonte enseja

algumas questotildees O que revelam sobre o cotidiano das missotildees jesuiacuteticas que

mereceriam destaque Qual a possibilidade de trataacute-los como fonte para a histoacuteria

das populaccedilotildees indiacutegenas e seu processo de conversatildeo Seriam elas confiaacuteveis a

ponto de elaborarmos este trabalho sobre como os indiacutegenas teriam recebido a

pregaccedilatildeo cristatilde

A importacircncia dos relatos jesuiacuteticos como fontes para a histoacuteria eacute

inegaacutevel Jaacute se produziu muito e haacute de se produzir muito mais com base nessas

cartas e relatos os mais variados No entanto esses verdadeiros veiacuteculos de

comunicaccedilatildeo trazem uma complexidade de regras e de formas retoacutericas que natildeo

devem ser menosprezadas Se o forem corre-se o perigo de retirar deles sua

historicidade e a possibilidade de sua inteligibilidade Isso natildeo foi esquecido

durante a pesquisa deste trabalho

Das muitas caracteriacutesticas especiacuteficas da empresa jesuiacutetica uma eacute

essencial a sua unidade Portanto natildeo haacute como desvincular a sua instituiccedilatildeo

epistolar de seus fins poliacuteticos e miacutesticos Tatildeo pouco eacute possiacutevel separar tais

113 MONTEIRO 2001p12

96

relatos dos interesses pragmaacuteticos que impregnavam seus ideais de missatildeo

Assim sendo os relatos jesuiacuteticos se conformaram na fronteira entre por um lado

a necessidade de se submeterem agraves regras retoacutericas tradicionais e de

obedecerem a outras que permitissem tornar seus textos puacuteblicos por outro lado

servirem de suporte para a troca de experiecircncias missionaacuterias essenciais para o

crescimento e manutenccedilatildeo de sua atividade evangelizadora

Mas era necessaacuterio ainda que se pudesse entender o indiacutegena no

sentido daquilo que diziam e como diziam seus significados e a comunicaccedilatildeo

entre brancos europeus e agravequeles a que a missatildeo impunha conversatildeo Afinal

como impor um mito sem uma linguagem em que o mito seja entendido

A linguagem e o mito satildeo espeacutecies proacuteximas Nas etapas

primeiras da cultura humana sua relaccedilatildeo eacute tatildeo estreita e sua

cooperaccedilatildeo tatildeo patente que resulta quase impossiacutevel separar uma da

outra 114

Conforme Monteiro115 em seu trabalho desde o momento que os

inacianos chegaram em 1549 eles se defrontaram com um dos maiores

problemas da conversatildeo o de traduzir a simbologia o conteuacutedo e os sentidos da

doutrina cristatilde para uma liacutengua que atingisse o maior nuacutemero possiacutevel de

catecuacutemenos natildeo soacute pela comunicaccedilatildeo mas pelo mito pois na liacutengua

114 CASSIRER 1945 p166 115 MONTEIRO 2001

97

portuguesa natildeo haveria como fazer com que os conceitos do mito cristatildeo

atingissem a alma daqueles a quem queriam converter

Apesar da enorme diversidade linguiacutestica que se descobria

pouco a pouco agrave medida que a expansatildeo portuguesa avanccedilava para

aleacutem das estreitas faixas litoracircneas estabeleceu-se desde cedo uma

poliacutetica linguiacutestica que tornava a liacutengua mais usada na costa do

Brasil o seu principal instrumento Baseada na verdade num

conjunto de dialetos da famiacutelia linguiacutestica tupi-guarani a primeira

liacutengua geral foi perdendo as suas inflexotildees locais e regionais em

funccedilatildeo da sua adoccedilatildeo sistematizaccedilatildeo e expansatildeo enquanto idioma

colonial 116

O primeiro inteacuterprete oficial foi o colono por conhecer tanto o discurso

cristatildeo como tambeacutem pela sua destreza na liacutengua tupi

Poreacutem natildeo foi muito duradoura essa alianccedila entre colonos e

missionaacuterios pelo fato de que esses colonos entraram em conflito com os jesuiacutetas

pelo controle da matildeo de obra indiacutegena que se tentava escravizar A capacidade e

a competecircncia dos colonos para servirem de interpretes na produccedilatildeo do discurso

religioso passou a ser um grande obstaacuteculo para a missatildeo de conversatildeo

deturpando e usando de persuasatildeo o trabalho de liacutengua para fins e propoacutesitos

proacuteprios Assim com esse conflito de interesses os jesuiacutetas tiveram que tentar

uma nova proposta a de encarregar suas proacuteprias instituiccedilotildees de formar seus

proacuteprios liacutenguas que seriam inclusive capacitados em traduzir aos indiacutegenas os

discursos religiosos e tentar interpretar suas respostas

116 MONTEIRO 2001 p36

98

Inicia-se entatildeo uma formaccedilatildeo de interpretes entre os indiacutegenas que

acompanhavam os missionaacuterios onde a escola de escrever e contar dirigida aos

filhos dos principais pudesse ter a funccedilatildeo de formar interpretes indiacutegenas para os

missionaacuterios Aprendiam entatildeo nas escolas o portuguecircs e o discurso religioso

No entanto a escola tambeacutem natildeo se mostrou como um meio seguro

com o qual se pudesse garantir o controle desse discurso pois dentre esses

indiacutegenas formados muitos se transformaram em verdadeiros opositores dos

discursos religiosos disseminando essa apologia entre os indiacutegenas de outras

regiotildees

Dessa forma a experiecircncia mostrou que tanto os indiacutegenas como os

colonos natildeo eram os inteacuterpretes adequados agraves condiccedilotildees de produccedilatildeo e

circulaccedilatildeo do discurso apologeacutetico religioso da missatildeo jesuiacutetica

Foi entatildeo que a Companhia de Jesus passou a recomendar que a

catequese e a conversatildeo fosse feita sem auxiacutelio de intermediaacuterios o que obrigou

aos jesuiacutetas a iniciar uma proposta de formar os liacutenguas no proacuteprio interior da

hierarquia da Igreja exigindo que todos tivessem que procurar formas de adquirir

o conhecimento da liacutengua indiacutegena Os coleacutegios de toda a colocircnia funcionavam

assim como centro de formaccedilatildeo de interpretes dando-se muitas vezes maior

ecircnfase ao conhecimento da liacutengua brasiacutelica do que agraves questotildees teologicas e

outras disciplinas da formaccedilatildeo eclesiaacutestica substituindo em muito o grego liacutengua

importante par a formaccedilatildeo dos cleacuterigos da eacutepoca preocupando-se muito mais em

transformar os noviccedilos em liacutenguas do que em teoacutelogos

99

Nesse caminho lentamente a Igreja foi adquirindo sua independecircncia

em relaccedilatildeo agraves necessidades de inteacuterpretes onde passo a passo foi elaborando

gramaacuteticas e dicionaacuterios em Tupi Tanto essas gramaacuteticas como esses dicionaacuterios

representavam os meacutetodos formais do aprendizado tupi adequando o jesuiacuteta agrave

aquisiccedilatildeo de uma segunda liacutengua

Desta forma a liacutengua geral para os jesuiacutetas foi o resultado de um longo

trabalho em que por pesquisas e interpretes de vaacuterias origens culminando com a

publicaccedilatildeo da Arte de Grammatica de Joseacute de Anchieta em 1595 e do Catecismo

na Liacutengua Brasiacutelica de Antocircnio de Arauacutejo em 1618 No iniacutecio das atividades no

Brasil os jesuiacutetas Pero Correia Juan de Azpilcueta Navarro e Joseacute de Anchieta

deram os primeiros passos decisivos em direccedilatildeo agrave sistematizaccedilatildeo dessa liacutengua

Monteiro117 nos informa que escrevendo de Satildeo Vicente em 1553 o

irmatildeo Pero Correia pediu ao Provincial Simatildeo Rodrigues o envio de livros como

subsiacutedio a seus trabalhos em tupi citando especificamente algumas obras do

escritor castelhano Constantino Ponce de la Fuente de que pudesse tirar

grandes exemplos com muita doutrina para estes gentios os quais espero antes

de morrer ver todos cristatildeos o que em muito ajudou os padres a verterem

sermotildees do Velho e Novo Testamento mandamentos pecados mortais e obras

de misericoacuterdia

No mesmo ano Azpilcueta Navarro informou aos padres e irmatildeos do

Coleacutegio de Coimbra que havia enviado todas as oraccedilotildees na liacutengua do Brasil com

117 MONTEIRO 2001

100

os mandamentos e pecados mortais etc com uma confissatildeo geral princiacutepio do

mundo encarnaccedilatildeo e do juiacutezo e fim do mundo Natildeo conseguiu no entanto criar

uma arte isto eacute manual de gramaacutetica Anchieta por seu turno achava

precipitado elaborar uma gramaacutetica tupi nesses anos iniciais Quanto agrave liacutengua

natildeo a ponho em arte porque natildeo haacute quem aproveite somente aproveito-me eu

dela e aproveitar-se-atildeo os que de laacute vierem que souberem gramaacutetica Contudo

no ano seguinte o irmatildeo Antocircnio Blaacutezquez relatou que os meninos e os irmatildeos

da casa andam todos com grande fervor de saber a liacutengua [e] para aprendecirc-la

tecircm uma Arte que trouxe o Padre Provincial

Tive grande consolaccedilatildeo em confessar muitos iacutendios e

iacutendias por inteacuterprete satildeo candidiacutessimos e vivem com muito menos

pecados que os Portugueses Dava-lhes sua penitecircncia leve porque

natildeo satildeo capazes de mais e depois da absolviccedilatildeo lhes dizia na

liacutengua xe rair tupatilde toccedilocirc de hirunamo sc filho Deus vaacute contigo 118

Mas voltemos agraves correspondecircncias Mostram essas correspondecircncias

que as aldeias indiacutegenas recebiam constantemente a visita dos padres jesuiacutetas

que para ganharem a confianccedila dos iacutendios a serem convertidos agrave feacute cristatilde

apropriavam-se muitas vezes da funccedilatildeo do pajeacute Tornavam-se portanto

portadores dos remeacutedios contra as mazelas natildeo somente das almas mas tambeacutem

dos corpos

Os jesuiacutetas sabiam da necessidade dessas associaccedilotildees como padre x

pajeacute simbologia cristatilde x cosmogonia indiacutegena mitos dessa cosmogonia e a visatildeo

118 CARDIM 1997 [1583-90] p234

101

do Orbis Christianus desde o iniacutecio de seus trabalhos missionaacuterios desde a

chegada dos primeiros jesuiacutetas e viam nos pajeacutes seus mais fortes adversaacuterios

uma vez que teriam necessariamente de tomar o seu lugar

Os que fazem estas feiticcedilarias que disse satildeo mui

apreciados dos Indios persuadem-lhes que em seu poder estaacute a vida

ou a morte natildeo ousam com tudo isto aparecer deante de noacutes outros

porque descobrimos suas mentiras e maldades 119

ou

Si noacutes abraccedilarmos com alguns costumes deste Gentio os

quaes natildeo satildeo contra nossa feacute catoacutelica nem satildeo ritos dedicados a

iacutedolos como eacute cantar cantigas de Nosso Senhor em sua liacutengua pelo

tom e tanger seus instrumentos de muacutesica que elles usam em suas

festas quando matam contraacuterios e quando andam becircbados e isto

para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais () e assim

o preacutegar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e

batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir

alguma cousa e dizecirc-la com muita efficacia e assim tosquiarem-se os

meninos da terra que em casa temos a seu modo Porque similhanccedila

eacute causa de amor E outros costumes similhantes a estes 120

Muitas vezes usavam a roupagem simboacutelica de seu adversaacuterio de

forma consciente para adentrarem no mundo miacutestico dos gentios outras vezes agrave

sua revelia eram confundidos e enquadrados como payeacute sem sequer disso se

darem conta

119 ANCHIETA - Cartas -1988 p83 Carta de Piratininga - 1555 120 NOacuteBREGA 1988 p142-Carta de Manuel da Noacutebrega a Simatildeo Rodrigues 17 de setembro de 1552

102

Mas era preciso controlar corpo e mente e na mente estavam seus

siacutembolos seus mitos e suas almas Dominar as almas dos gentios implicava ter o

controle sobre seus corpos e disciplinar os corpos e as accedilotildees era tarefa lenta e

metoacutedica O ritmo o tempo e a liberdade precisavam ser regulados O trabalho era

intenso e incansaacutevel

Nas cartas de Anchieta e de Noacutebrega muitas tantas vezes surgem

relatos de visitas repetidamente realizadas a uma tribo ou outra onde se mostrava

a intenccedilatildeo clara da imposiccedilatildeo dessa disciplina ou da repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos

em vaacuterios momentos de uma mesmo dia a fim de que se fixassem os novos

ensinamentos e conceitos

Natildeo bastasse a doutrinaccedilatildeo diaacuteria aos domingos e dias santos era

necessaacuterio dizer missa no momento em que pudessem estar todos juntos Para

ampliar o controle sobre a presenccedila deveria haver lugar certo nas Igrejas para as

casas e famiacutelias desses iacutendios

Caso algum faltasse agrave missa deveria o seu missionaacuterio tomar nota e

admoestar em particular o ausente Reincidindo no erro seria admoestado em

puacuteblico e por fim castigado

A atividade catequeacutetica dominical e festiva parecia ser a mais

importante uma vez que era o momento propiacutecio para a reuniatildeo de toda a

comunidade Portanto os cuidados para com ela tambeacutem eram maiores Deveria

se dizer missa e antes da mesma aleacutem da doutrina de ordem os padres

deveriam abordar dois pontos quais sejam os misteacuterios da feacute ou do evangelho e

outro moral que abordasse um viacutecio de maior incidecircncia no momento

103

A persistecircncia dos novos catecuacutemenos em manter haacutebitos tidos como

perniciosos ou como obra do inimigo por seus mestres jesuiacutetas fez com que

estes uacuteltimos flexibilizassem algumas regras de conduta como ateacute mesmo utilizar

iacutendios jaacute evangelizados nas tarefas de conversatildeo nem que fosse ao menos de

exercer atividades no interior dos templos tornando-se na maioria das vezes

sacristatildeos e coroinhas A inserccedilatildeo desses iacutendios nestas atividades apresenta

nuanccedilas riquiacutessimas do modo com que construiacuteram para si o sentido da religiatildeo e

dos rituais catoacutelicos principalmente se levarmos em conta que muitos deles

considerados hereges e que foram levados ao tribunal do Santo Ofiacutecio

O processo de conversatildeo dos iacutendios cristatildeos comeccedilava com o ritual do

batismo o que para os missionaacuterios significava uma forma de permitir a ida das

almas para o mundo de Deus

No entanto para a populaccedilatildeo indiacutegena o batismo ganhava sentido

mais complexo inclusive o de permissatildeo para adentrarem no mundo dos homens

brancos e cristatildeos mundo esse cheio de novas simbologias de curas para muitos

de seus males fiacutesicos e ateacute de um certo conforto diferenciado daquele que

conheciam ao viverem na proximidade dos jesuiacutetas

Poreacutem para o jesuiacuteta a verdadeira obra da missatildeo soacute se concretizava

com a pescaria das almas e com o seu controle absoluto ateacute a morte fiacutesica Salvar

os outros significava salvar a si mesmo Assim como morriam muitos inocentes

dever-se-ia batizar as crianccedilas prioritariamente ainda que moribundas para que

pudessem lograr ecircxito na batalha contra satanaacutes

104

natildeo podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor

para com eles principalmente porque vecircm que empregamos toda a

diligecircncia no tratamento de suas enfermidades sem nenhuma

esperanccedila de lucro E fazemos isto na intenccedilatildeo de preparar para o

recebimento do batismo caso haja necessidade os seus espiritos em

tais circustancias mais redutiveis e mais brandos por igual motivo eacute

que desejamos assistir agraves parturientes a fim de batizar matildee e filho se

o caso exigir Assim acontece atender-se agrave salvaccedilatildeo do corpo e da

alma 121

Claro poreacutem que batizar jaacute que parecia ser algo que os indiacutegenas

apreciavam ou desejavam para poderem adentrar ao mundo branco era um dos

pontos que os jesuiacutetas usavam como forma de meacuterito isto eacute seja cristatildeo em suas

atitudes e disciplinas e aiacute sim receberaacute o batismo Saiba o catecismo e assim seraacute

batizado Vejamos

Antes do dia do Nascimento do Senhor procuraacutemos que

se confessassem o qual fizeram muitas mulheres e alguns homens

os quais diligentemente examinaacutemos nas cousas da feacute e o que

principalmente pretendemos eacute que saibam o que toca os artigos da feacute

scilicet ao conhecimento da Santiacutessima Trindade e aos misteacuterios da

vida de Cristo que a Igreja celebra e que saibamquando lhes forem

perguntado dar conta destas cousas o qual temos em mais que

saber as oraccedilotildees de memoacuteria ainda que nisto se potildee muito cuidado e

diligecircncia porque duas vezes cada dia se lhes ensina na igreja a

nenhum batizamos senatildeo assim instruidos e ainda depois da

confissatildeo lhes pedimos conta dessas cousas a qual muitos maacutexime

121 ANCHIETA Cartas - 1988 P98 Carta de Piratininga - 1556

105

da mulheres datildeo bem que natildeo ha duacutevida senatildeo que levam

vantagem a muitos nascidos de pais Cristatildeos de maneira que muitos

satildeo assas aptos para receber o Santiacutessimo Sacramento da

Eucaristia

Antes ou mesmo depois do advento da liacutengua geral de Anchieta na

impossibilidade de compreensatildeo das liacutenguas por parte dos missionaacuterios e na falta

de interpretes que se batizasse por aceno e com a ajuda das imagens sacras

pinturas cruzes e outros objetos cristatildeos Vejamos

()O Padre que os tiver agrave sua conta procuraraacute com todo o

cuidado fazer um catecismo breve que contenha os pontos

precisamente necessaacuterios para a Salvaccedilatildeo e deste usaratildeo nos casos

de necessidade e por ele os iratildeo ensinando e instruindo mas em

caso que totalmente natildeo haja inteacuterprete nem outro modo por donde

fazer o dito catecismo seraacute meio muito acomodado o misturar os tais

Iacutendios com os da Liacutengua Geral ou de outra sabida para que ao menos

os seus meninos aprendam com a comunicaccedilatildeo e no entretanto se

lhes mostraratildeo as Imagens e Cruzes e os faratildeo assistir aos ofiacutecios

divinos e administraccedilatildeo dos Sacramentos e as mais accedilotildees dos

Cristatildeos para que possam em caso de necessidade inculcar-lhes o

batismo por acenos pois natildeo haacute meio de receberem a feacute pelos

ouvidos de modo que ao menos sub condicione nenhum morra sem

batismo 122

A confissatildeo tambeacutem natildeo poderia ficar de fora das preocupaccedilotildees dos

missionaacuterios Abrir os recocircnditos mais profundos da alma ao missionaacuterio era de

122 Vieira Regulamento das Missotildees p 199-200

106

vital importacircncia na tarefa de perscrutar a sinceridade da sua ligaccedilatildeo com a

religiatildeo Para tanto essas diretrizes indicavam a necessidade de todo ano

produzir listas daqueles capazes de confissatildeo Nenhum deveria ficar sem se

confessar ainda que fossem muitos os iacutendios e poucos os missionaacuterios

A confissatildeo eacute dos sacramentos aquele em que o caraacuteter

de julgamento eacute mais niacutetido Haacute um diaacutelogo - ou melhor uma

sucessatildeo de monoacutelogos em que o penitente diz seus eventuais

pecados responde a indagaccedilotildees sobre os pecados e sobre a

existecircncia de outras ofensas e o fim da confissatildeo eacute marcado por uma

penalidade 123

Assim batizar confessar casar e ajudar a bem morrer eram tarefas

baacutesicas ao bom missionaacuterio Nos laccedilos sagrados do matrimocircnio por exemplo os

missionaacuterios enfatizam a necessidade de manter registros dos nomes

sobrenomes da data do paacuteroco e das testemunhas do casamento assim como

da aldeia em que foi realizado Nenhum padre deveria realizar matrimocircnio entre

iacutendios de paroacutequias diferentes sem proceder a uma coleta de informaccedilotildees em

ambas as paroacutequias para assim terem certeza de que natildeo haveria um sagrado

matrimocircnio com pessoas que jaacute haviam recebido esse sacramento de outro padre

em outra eacutepoca em outra situaccedilatildeo

Quando da necessidade de ajudar o bem morrer era pelo firme

propoacutesito de guardar as almas desses novos cristatildeos e que tivessem morte

assistida o que garantia um ganho definitivo de seu espiacuterito pois era na morte

123 NEVES 1978 p75

107

que os jesuiacutetas colheriam o fruto do trabalho missionaacuterio pois como pastores de

almas teriam que dar conta daquelas que foram apresentadas aos ceacuteus e

encaminhaacute-las em direccedilatildeo a Deus

Mas controlar as almas natildeo bastava o diabo usava dos corpos e dos

gestos pra sua tarefa e por isso junto ao controle das almas atraveacutes da

evangelizaccedilatildeo dos gentios era necessaacuterio o controle dos gestos e dos corpos

tambeacutem fazia parte da obrigaccedilatildeo dos missionaacuterios Na ocasiatildeo das mortes o

controle sobre os rituais utilizados pelas naccedilotildees no sepultamento de seus mortos

era objeto tambeacutem da preocupaccedilatildeo do missionaacuterio O modo de amortalhar ou de

usarem algumas coisas supersticiosas era proibido pelos padres assim como

tambeacutem eram os excessos com que costumam chorar o defunto Pondera Vieira

que ainda que natildeo fossem demonstraccedilotildees de uso gentiacutelico mas sim de dor

natural deveriam se acomodar a poliacutetica cristatilde

Enfim a tocircnica comum compartilhada pelos jesuiacutetas estava relacionada

agrave necessidade de salvaccedilatildeo das almas Desde o seu princiacutepio a preocupaccedilatildeo com

a sua salvaccedilatildeo foi parte constitutiva da missatildeo da Companhia de Jesus Os iacutendios

considerados infieacuteis deveriam ser salvos de sua gentilidade da barbaacuterie e dos

erros em que viviam Essa gentilidade fazia com que esses iacutendios vivessem no

erro caberia ao missionaacuterio portanto conduzir os iacutendios para a verdade atraveacutes

da conversatildeo

108

Nos mostra Monteiro124 que a salvaccedilatildeo das almas encontrava outra

problemaacutetica a ser enfrentada a morte do gentio

A morte do gentil era constante desde o contato com os jesuiacutetas com

os aldeamentos com os brancos europeus mesticcedilos ou africanos e isso era com

certeza uma grande problemaacutetica para a conversatildeo pois com os primeiros

contatos comeccedilam ocorrer os principais episoacutedios epidecircmicos que destruiacuteram

muito das populaccedilotildees indiacutegenas do litoral

Eacute correto dizer no entanto que seja como for no litoral brasileiro do

seacuteculo XVI o contato direto entre as etnias indiacutegenas e os europeus e africanos jaacute

havia atravessado ao menos cinco deacutecadas antes da eclosatildeo das primeiras

pandemias Longe de constituir um variaacutevel independente no despovoamento do

litoral a mortalidade provocada por doenccedilas contagiosas atingiu seus pontos mais

altos quando conjugada com outras mudanccedilas importantes nas relaccedilotildees entre

colonizadores e iacutendios Afinal de contas foi na esteira das ofensivas beacutelicas

promovidas pelo governador Mem de Saacute e do processo concomitante de

deslocamento das populaccedilotildees indiacutegenas para as aldeias missionaacuterias que

ocorreram as primeiras grandes epidemias com destaque para o alastramento da

variacuteola pelo litoral de Pernambuco a Satildeo Vicente

As doenccedilas letais semearam a desordem entre a populaccedilatildeo nativa

sobretudo naquela subordinada aos missionaacuterios e aos colonos Anchieta

rememorando este grande surto epidecircmico escreveu em 1584

124 MONTEIRO 2001 p60

109

No mesmo ano de 1562 por justos juiacutezos de Deus

sobreveio uma grande doenccedila aos Iacutendios e escravos dos

Portugueses e com isto grande fome em que morreu muita gente e

dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos

Portugueses e se fazer escravos vendendo-se por um prato de

farinha e outros diziam que lhes pusessem ferretes que queriam ser

escravos foi tatildeo grande a morte que deu neste gentio que se dizia

que entre escravos e Iacutendios forros morreriam 30000 no espaccedilo de 2

ou 3 meses 125

Monteiro nos mostra ainda que infelizmente natildeo sabemos muito de

como os indiacutegenas responderam aos surtos epidecircmicos mas as cartas dos

jesuiacutetas no iniacutecio da colonizaccedilatildeo dizem algo sobre a percepccedilatildeo dos iacutendios com

relaccedilatildeo agrave origem das doenccedilas claramente associada agrave presenccedila dos padres

Pouco depois de chegar no Brasil o padre Manuel da Noacutebrega se espantou natildeo

apenas com a frequumlecircncia das doenccedilas entre a populaccedilatildeo batizada pelos jesuiacutetas

mas tambeacutem e sobretudo com a acusaccedilatildeo veiculada pelos feiticeiros de que os

missionaacuterios infligiam a doenccedila com a aacutegua do batismo e causavam a morte com

a doutrina126

A liacutengua Geral mostrava que as epidemias estavam presentes no

vocabulaacuterio indiacutegena ao definir a varicela como catapora o fogo que salta

De toda forma com epidemias ou natildeo com paciecircncia ou natildeo com

liacutengua geral e inteacuterpretes da comunicaccedilatildeo para o jesuiacuteta aqueles baacuterbaros natildeo

125 ANCHIETA Cartas- 1988 p364 Informaccedilotildees dos primeiros aldeamentos da Bahia 126 MONTEIRO 2001 p62

110

tinham afeiccedilatildeo pelas coisas de Deus viviam como brutos apenas para comer

beber e danccedilar Para os indiacutegenas de sua parte os padres natildeo entendiam seus

valores e sempre colocavam seus costumes e tradiccedilotildees como algo pertencente ao

diabo

O que se pode no entanto inferir eacute que houve o fato do processo de

encontro do embate de mitos entre dois universos simboacutelicos e sociais

completamente estranhos um ao outro

De um lado uma profecia que um certo pajeacute fazia com terror que os

iacutendios iriam virar brancos revelava mesmo aos pedaccedilos um pouco do processo

de leitura que essas populaccedilotildees nativas faziam desse encontro De outro lado o

cansaccedilo de Noacutebrega antes de sua morte revelavam um pouco do pessimismo do

jesuiacuteta quanto ao processo de conversatildeo e portanto da leitura que era possiacutevel

para ele missionaacuterio fazer tambeacutem daquele universo simboacutelico

Por um lado os pajeacutes acreditavam na transformaccedilatildeo de brancos em

iacutendios e de iacutendios em brancos por outro para o jesuiacuteta ver o iacutendio revestido

numa vestimenta simboacutelica a vestimenta da conversatildeo o cristatildeo tirado das

trevas De certa forma compactuavam pajeacute e jesuiacuteta com a mesma crenccedila ou

melhor com parte dela os iacutendios virariam brancos mas isso natildeo foi possiacutevel

Vieira em seu sermatildeo do Espiacuterito Santo dizia Natildeo ha gentios no

mundo que menos repugnem agrave doutrina da feacute e mais facilmente a aceitem e

recebam que os Brazis e natildeo porque os Brazis natildeo creiam com muita facilidade

mas porque essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crecircr em certo

modo seja como natildeo crer os Brazis ainda depois de crecircr satildeo increacutedulos em

111

outros gentios a incredulidade eacute increacutedulidade e a feacute eacute feacute nos Brasis a mesma feacute

ou eacute ou parece incredulidade 127

Vieira mostrava ainda em seus sermotildees que a resistecircncia era mais do

que resistecircncia pois outras naccedilotildees eram duras mas mais faacutecil de vencer que os

indiacutegenas do Brasil

haacute umas naccedilotildees naturalmente duras tenazes e

constantes as quaes difficultosamente recebem a feacute e deixam os

erros de seus antepassados resistem com as armas duvidam com o

entendimento repugnam com a vontade cerram-se teimam

argumentam replicam datildeo grande trabalho ateacute se renderem mas

uma vez rendidos uma vez que receberam a feacute ficam n ella firmes e

constante como estatuas de maacutermore natildeo eacute necessario trabalhar

mais com elles128

Jaacute com indiacutegenas do Brasil a tarefa era muito mais dura pois se o

pregador deixasse de estar presente por algum tempo que fosse todo o trabalho

de pregaccedilatildeo estava perdido e teria que ser reiniciado como se nunca tivesse

ouvido a palavra de algum pregador

Haacute outras naccedilotildees pelo contraacuterio ( e estas satildeo as do Brazil)

que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e

facilidade sem argumentar sem replicar sem duvidar sem resistir

mas satildeo estaacutetuas de murta que em levantando a matildeo e tesoura o

jardineiro logo perdem a nova figura e tornam agrave bruteza antiga e

natural e a ser matto como dantes eram Eacute necessario que assista

127 VIEIRA 1951 Sermatildeo do Espiacuterito Santo p410 128 idemp 413

112

sempre a estas estatuas o mestre d ellas uma vez que lhe corte o que

vicejam os olhos para que creiam o que natildeo vecircem outra vez que lhe

cerceie o que vicejam as orelhas para que natildeo decircem ouvidos agraves

fabulas do seus antepassados129

Era necessaacuterio insistir nos catecismo nas pregaccedilotildees na redundacircncia

de informaccedilotildees e conceitos mas mesmo assim os simbolismos continuavam

amalgamados e necessitando de mais imposiccedilatildeo de paciecircncia Veja Anchieta

Dando-lhe pois a primeira liccedilatildeo de ser um uacutenico Deus

todo poderoso que criou todas as coisas etc logo se lhe imprimiu na

memoacuteria dizendo que ele rogava muitas vezes que criasse os

mantimentos para o sustento de todos mas que pensava que os

trovotildees eram este Deus embora agora que sabia existir outro Deus

verdadeiro sobre todas as coisas que rogaria a ele chamando-lhe

Deus Padre e Deus Filho por que dos nomes da Santa Trindade

ecircstes dois sogravemente pocircde tomar porque se lhe podem dizer em sua

liacutengua mas o Espiacuterito Santo para este nunca achamos um vocabulo

proacuteprio nem circunloquio bastante e apesar de que natildeo o sabia

nomear poreacutem sabia crecircr 130

Outro ponto importante a ser citado como forma de conversatildeo era a

utilizaccedilatildeo do imaginaacuterio e do medo para a doutrinaccedilatildeo dos gentios e para

evangelizar aquelas almas

129 idem p 413 130 ANCHIETA- Cartas 1988 p200 Carta de Joseacute de Anchieta a Diego Laynes 16 de abril de 1563

113

A contrapartida da utilizaccedilatildeo consciente do imaginaacuterio indiacutegena para

fins doutrinais era a construccedilatildeo por parte desses gentios da imagem dos jesuiacutetas

que ganhava significados muito diferentes daqueles com que por ventura queriam

ser compreendidos

A perspicaacutecia desses jesuiacutetas natildeo foi suficiente para perceberem que

ao fazerem parte desse imaginaacuterio perdiam o controle e o poder sobre seus

catecuacutemenos pois passavam a pertencer a um mundo que natildeo era o seu

Portanto o medo que foi incutido nos gentios tambeacutem passou a ser compartilhado

pelos jesuiacutetas Na medida em que embora respeitados e temidos por muitos

indiacutegenas passavam a ser odiados com a mesma facilidade

A fronteira entre o temor o respeito e o oacutedio era demasiado tecircnue

Cabia ao jesuiacuteta se para isso talento tivesse traduzir esses limites O erro poderia

significar o fim da missatildeo ou mesmo a morte na ponta de uma flecha

O medo que sentiam os brasis de seus Pay-u-assuacute (como eram

denominados os jesuiacutetas) era compartilhado pelos padres Se os rituais catoacutelicos

estavam sendo resignificados em seus siacutembolos pelos indiacutegenas que os adequava

a sua maneira de perceber o universo da mesma forma os rituais gentiacutelicos mais

puros eram compreendidos pelos jesuiacutetas como sendo ritos demoniacuteacos

orquestrados pelo priacutencipe das trevas na batalha pela conquista das almas Claro

os jesuiacutetas tambeacutem carregavam por mais cultos que fossem seus mitos e suas

crenccedilas em Deus e portanto acreditavam no democircnio da mesma forma que os

indiacutegenas temiam a Deus ou a seus deuses

114

Mesmo assim a relaccedilatildeo do indiacutegena com o jesuiacuteta transformou muitos

desses iacutendios em cristatildeos e esses cristatildeos criados muitas vezes como produto

das missotildees dos jesuiacutetas tornaram-se peccedilas essenciais para a manutenccedilatildeo do

controle sobre a populaccedilatildeo indiacutegena para servirem de mediadores entre os

brancos colonizadores e os indiacutegenas das diversas aldeias que os jesuiacutetas tinham

sob seu comando para ajudarem na traduccedilatildeo dos catecismos e dos sermotildees para

a liacutengua geral para ajudarem na evangelizaccedilatildeo e nas tarefas da igreja Poreacutem a

doutrina por sua vez natildeo evoluiria sem o apoio desses personagens

Esses obscuros personagens quase nos bastidores desse teatro da

conversatildeo realizam de certa forma parte da profecia do pajeacute apavorado segundo

a qual os iacutendios iriam virar brancos e os brancos iriam virar iacutendios

Mas afinal qual o significado em tornar-se branco para esses iacutendios

A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no valor que

uma profusatildeo de objetos pontes entre mundos pudesse representar para esses

cristatildeos Cruzes medalhas bastotildees ferramentas vestidos e espadas tornaram-se

veiacuteculos de comunicaccedilatildeo entre homens de mundos distintos

Assim como o processo de alianccedila com diversas naccedilotildees indiacutegenas que

transformava seus liacutederes poliacuteticos em iacutendios principais de sua povoaccedilatildeo natildeo se

concretizava se o referido novo vassalo natildeo recebesse por parte das autoridades

portuguesas algum siacutembolo de sua grandeza e distinccedilatildeo

A espada e a casaca eram comumente utilizadas pelos principais das

tribos conquistadas assim como seus bastotildees de comando Ser importante

115

perante todos de todas as tribos significava receber honrarias brancas e cristatildes

em troca de ser subjugado pela cultura europeacuteia

Davam importacircncia a tudo que poderia tornaacute-los cristatildeos mas

adoravam receber e participar daquilo que se podia chamar de vida branca A

imagem de Cristo que preservaram com tanto cuidado o fato de terem construiacutedo

igreja e casa para o Jesuiacuteta a importacircncia que davam a ver seus nomes escritos

num papel que iria ateacute o rei e por fim o uso que os jesuiacutetas fizeram da cruz

levada nos ombros pelos escolhidos todas essas situaccedilotildees demonstram um

significado importante e ao mesmo tempo completamente inusitado desses

objetos Os jesuiacutetas pressentiam algo sobre esse significado tanto eacute que

utilizavam a cruz objeto para criar uma distinccedilatildeo entre os iacutendios Mas logo

traduziam esse significado para seu universo cosmoloacutegico inteiramente distinto e

estranho ao daqueles homens da floresta O que afinal poderiam significar esses

siacutembolos aos indiacutegenas

Alcanccedilar o significado desses objetos para os indiacutegenas significaria

obter uma resposta consistente sobre o que significava ser branco para eles

O uso dos objetos e roupas dos brancos distinguia os cristatildeos dos

gentios Havia uma transformaccedilatildeo em curso Natildeo significavam no entanto uma

total submissatildeo agraves regras de domiacutenio dos brancos Indicavam sim um aceite de

certas regras mas natildeo significava no entanto aceitar domiacutenio e desistecircncia de

suas crenccedilas e tradiccedilotildees

Iacutendios escravos poreacutem cristatildeos fincaram cruzes pelo caminho de suas

vidas numa clara tentativa de indicar sua inserccedilatildeo no mundo branco Esse

116

emaranhado de siacutembolos para estabelecer sua identidade cristatilde seria somente

uma estrateacutegia para sobreviverem demonstrando estarem do mesmo lado dos

brancos Por outro lado o uso dos objetos ocidentais no seu cotidiano e a

arquitetura de caiccedilara seriam indiacutecios de que esses homens apenas utilizavam tais

objetos por seu valor pragmaacutetico

Talvez o jesuiacuteta natildeo pudesse ter outra interpretaccedilatildeo desses indiacutecios

que natildeo essa do sentido utilitaacuterio e estrateacutegico No entanto natildeo parecem ter um

significado tatildeo simples Eles permitem conjecturas embora preliminares para

respostas um pouco mais complexas Esses diversos objetos apresentam uma

conexatildeo Sejam as espadas os bastotildees as cruzes ou as medalhas Natildeo podem

simplesmente ser traduzidos como simples recursos praacuteticos ou simboacutelicos

usados por populaccedilotildees indiacutegenas para o seu processo de inserccedilatildeo na sociedade

colonial portuguesa Menos ainda que essa inserccedilatildeo fosse uma estrateacutegia poliacutetica

para a manutenccedilatildeo de privileacutegios e de sobrevivecircncia somente

A imagem de cristo dos Nhengaiba por exemplo provavelmente um

crucifixo pode revelar um significado complexo que surgiu ao ser traduzido para a

liacutengua geral ou Nheengatu

Em liacutengua geral crucifixo eacute traduzido por Tupanarayra-rangaacuteua Para

se poder entender o seu possiacutevel significado para os indiacutegenas eacute necessaacuterio

traduzir cada umas das palavras que compotildee o termo

117

Tupana 131 significa em liacutengua geral matildee do trovatildeo a ela natildeo satildeo

rendidas homenagens ou festas Adaptado pelos jesuiacutetas Tupatilde transformou-se

no Deus cristatildeo O sufiacutexo ana indica que a accedilatildeo expressa no prefixo teve lugar e

continua a acontecer Ou seja Tupana ente desconhecido que troveja e mostra

seu poder pelo raio abate toda a floresta tirando a vida aos seres deixando-os

carbonizados

Rayra rangaacuteua 132 por sua vez significa filho ou afilhado do

homem Rangaacuteua isoladamente significa figura tempo hora medida

Certamente a ideacuteia que os Nhengaiba poderiam ter do crucifixo natildeo parece ser a

que os jesuiacutetas queriam que tivessem Ao traduzirem em liacutengua geral esse objeto

permitiram um cem nuacutemero de significados sobre os quais perderam o controle O

temor e respeito com que essa imagem foi adorada por estes iacutendios para a

surpresa dos jesuiacutetas podem estar ligados ao sentido que lhe deram ao traduzi-la

para o seu universo cosmogocircnico referencial

Embora esse sentido tenha ficado irremediavelmente perdido no tempo

eacute possiacutevel supor a traduccedilatildeo das palavras em Nhengatu uma possibilidade de

significado simboacutelico de que esse ser poderoso e desconhecido que troveja e tem

o poder de extinguir vidas se corporificou em uma figura sua medida em um

afilhado de Deus Se correto tal significado permite compreender o temor e o

respeito que esses catecuacutemenos tinham pelo Deus cristatildeo e seus missionaacuterios

jesuiacutetas Ao mesmo tempo permitem imaginar o oacutedio que possivelmente poderiam

131 Bueno 1998 p303 132 idem p 363

118

guardar por esse ser poderoso e vingativo Cruzes poderiam portanto ter um

poder em si mesmas para proteger e ao mesmo tempo simbolizar uma alianccedila

maacutegica com esse poderoso Deus

Enquanto espadas casacas e bastotildees simbolizavam poder para os

principais transformados em brancos ser cristatildeos atraveacutes do batismo poderia

permitir aliar-se a esse poderoso Deus possibilitando sua introduccedilatildeo num mundo

novo que se constituiacutea a sua revelia mas do qual eram tambeacutem artiacutefices

De certa maneira indicam que o processo de sua transformaccedilatildeo em

brancos estava em curso

Novamente a profecia daquele pajeacute parecia completar-se com a frase

de Vieira essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crer em certo

modo seja como natildeo crer Em outras palavras poderiacuteamos interpretar que esses

iacutendios mesmo facilmente tornando-se brancos e portugueses mesmo assim natildeo

o eram nunca seriam e nunca viriam a ser

119

CAPIacuteTULO 6 - O TEATRO COMO FERRAMENTA EDUCACIONAL E DE CATEQUESE

A religiatildeo indiacutegena eacute tomada desde o princiacutepio dos contatos dos

quinhentos como falsa como realidade diaboacutelica como de origem maldita sobre a

qual o cristianismo era imposto como o oposto superior

Havia uma imposiccedilatildeo eurocecircntrica onde o cristianismo era um dos

mais importantes sentimentos desse momento eurocentrista

Por esse motivo tudo deveria ser feito para que a conversatildeo chegasse

a termo

Mais uma ponte deveria ser construiacuteda para que o jesuiacuteta pudesse

persuadir e convencer os indiacutegenas da necessidade da aceitaccedilatildeo da conversatildeo ao

cristianismo Essa ponte deveria conter representaccedilotildees da realidade tanto do lado

cristatildeo como do lado dos brasis

Poreacutem a conversatildeo e qualquer ponte que levasse a ela natildeo poderia ser

apenas uma questatildeo de salvaccedilatildeo mas um elo essencial de inclusatildeo do Mundo

Novo e seus habitantes na sociedade europeacuteia para a qual naquela eacutepoca

religiatildeo e poliacutetica misturavam-se intrinsecamente

Os jesuiacutetas com as suas dificuldades de comunicaccedilatildeo muitas vezes jaacute

pregavam e doutrinavam usando de eloquumlecircncia levantando a voz mostrando os

120

misteacuterios da feacute atraveacutes de gestos andando em roda batendo as matildeos e os peacutes

sempre realizando um tipo de teatro rudimentar tal qual faziam os indiacutegenas

contando seus feitos fazendo as mesmas pausas quebras de retoacuterica gerando e

mostrando espantos pois sabiam que dessa forma estavam agradando e

persuadindo aquele povo que adorava a gestualiadade

Poreacutem eacute bom que se tenha claro que o teatro depois de consolidado

entre as formas pedagoacutegicas utilizadas pelos jesuiacutetas na conversatildeo serviu

tambeacutem como um espelho destruidor pois neles se mostrava a cosmogonia a

perfeiccedilatildeo do aguerrido a cultura dos brasis como sendo o Mal que se

contrapunha a vontade da Igreja que era o Bem Maior Na semacircntica desse teatro

Deus e os Santos lutavam na vida e na morte contra o Diabo da mesma forma

que os contraacuterios e os pajeacutes lutavam contra os padres e a pregaccedilatildeo

No teatro dos quinhentos o reino do democircnio das dissimulaccedilotildees e da

espreita das curas e dos espiacuteritos cabiam em uma soacute figura a do pajeacute visto que

eram essas coisas que mais davam credibilidade aos feiticeiros a arte de

persuadir de dissimular de espreitar e de falar com os espiacuteritos Luacutecifer aparecia

em lugares e situaccedilotildees sempre agrave espreita e como grande personagem do teatro

era representado de diversas formas por um principal por um beberratildeo por um

pajeacute por um guerreiro que desejasse defender as tradiccedilotildees mas nunca colocava

seu rosto para ser visto pois trabalhava sempre a espreita na calada na

sugestatildeo e na seduccedilatildeo se passando ateacute por bom por favoraacuteveis a causa da

catequese e ateacute como divinos O democircnio era atuante natildeo soacute nos autos mas sim

na vida do padres e dos demais cristatildeos vejamos por exemplo

121

o inimigo da natureza humana (como soe sempre fazer)

em impedir o bom successo da obra e assim determinou que a 7 ou 8

leguas daqui matassem um Christatildeo da armada em que viemos 133

Muitas das caracteriacutesticas do teatro medieval e do teatro europeu se

encontram presentes nos autos anchietanos de forma sempre adaptada agrave

compreensatildeo dos indiacutegenas segundo o que entendiam os jesuiacutetas Eram

mostrados nas peccedilas os misteacuterios os evangelhos as obras de Cristo mas

principalmente a realidade daqueles que assistiam ao teatro principalmente

atraveacutes do sagrado do temeroso do assustador do ruacutestico e do burlesco mas

principalmente a caracterizaccedilatildeo dos atores seus gestos e suas expressotildees e

figurino obedeciam a um simbolismo onde as caracteriacutesticas biacuteblicas por um lado

e por outro aos personagens antagocircnicos ao Bem mostrados pela caricatura

pelo grotesco de modo a ficar clara a desordem do inferno em contrapartida da

simbologia organizada do Bem Os cacircnticos suaves em latim estavam sempre em

contraposiccedilatildeo dos ruidosos personagens oriundos do inferno

Os autos de Anchieta tinham no entanto a caracteriacutestica de ultrapassar

as barreiras de uma peccedila teatral principalmente por fazer com que os

espectadores pudessem se misturar com os atores e de certa forma participarem

interativamente com o narrado mesmo que fossem com risadas e sons de

133 NOacuteBREGA 1988 p94

122

espanto com palma em cena aberta sem no entanto deixar que essa

representaccedilatildeo teatral perdesse seu intuito e seu formato dentro do espaccedilo cecircnico

Por representarem sempre os atores teatrais personagens do

cotidiano e do sagrado Anchieta conseguia utilizar esses mesmos personagens

em situaccedilotildees e contextos de diferentes momentos emprestando tanto

personagens como textos de um auto para outro

Muitas vezes Anchieta utilizava textos em que o aversivo para o

democircnio para o iacutendio perfeito portanto os bons costumes era dito pela boca

destes criando mais forccedila quando estes falavam mal da igreja dos padres de

Deus e dos Santos

Ai tenho andado debalde

agrave procura de um pouso

Irra Sempre me faz sair

Da taba o sacerdote

Expulsando-me para bem longe

Infelizmente ele ensina

A obedecer agraves palavras de Deus

Proclama que a sua linda matildee

Me desgraccedilou

Quebrou minha cabeccedila

Tudo o que Anchieta pretendia exaltar das boas qualidades dos

costumes dos iacutendios seus personagens sempre indiacutegenas mostravam essas

atitudes que vinham sempre acentuadas de forma positiva assim como a muacutesica

e as danccedilas pois no entender dos jesuiacutetas demonstravam a riqueza e a beleza

daquela cultura Jaacute os costumes que eram considerados pelos jesuiacutetas como

123

perniciosos e contraacuterios agrave moral da Santa Igreja apareciam normalmente

representados por personagens que deixavam claro pertencerem agraves hordas

demoniacuteacas ou pelo proacuteprio Diabo

O Auto de Satildeo Lourenccedilo eacute a mais longa e rica peccedila de Anchieta Essa

peccedila foi escrita em trecircs liacutenguas tupi portuguecircs e castelhano agrave semelhanccedila de

muitos autos de Gil Vicente que mostram a situaccedilatildeo de bilinguumlismo vigente em

Portugal no seacuteculo XVI

Do ponto de vista da linguumliacutestica essa peccedila eacute das mais importantes pois

mostra como o Tupi da Costa era efetivamente falado Nesse auto vemos os

diabos Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia a tentar perverter a aldeia no que satildeo

impedidos por Satildeo Lourenccedilo e por Satildeo Sebastiatildeo

Anchieta recorre muito agraves alegorias isto eacute agrave personificaccedilatildeo de nomes

abstratos ou agrave atribuiccedilatildeo de qualidades humanas a seres inanimados recurso

tambeacutem muito empregado por Gil Vicente em seus autos Assim vemos no Auto

de Satildeo Lourenccedilo o Amor e o Temor de Deus como personagens a aconselharem

aos iacutendios a caridade e a confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Essa concretude era

eficiente na transmissatildeo dos conteuacutedos doutrinaacuterios cristatildeos dada a concretude

do pensamento miacutetico no qual o mundo indiacutegena estava mergulhado

Considero o auto de Satildeo Lourenccedilo como sendo um dos melhores

exemplos do embate de mitos de que falamos em todo este trabalho onde

Aimbirecirc um dos democircnios diverte-se com piadas maliciosas enquanto leva os

assassinos de Satildeo Lourenccedilo para o inferno Vejamos por exemplo neste mesmo

auto como os diabos ironizam a confissatildeo

124

Satildeo Lourenccedilo Mas existe a confissatildeo

Bom remeacutedio para cura

Na comunhatildeo se depura

Da mais funda perdiccedilatildeo

A alma que o bem procura

Se depois de arrependidos

os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar

o caminho dos remeacutedios

o padre os vai abenccediloar

Guaixaraacute Como se nenhum pecado

Tivessem fazem a falsa

Confissatildeo e se disfarccedilam

Dos viacutecios abenccediloados

a assim viciados passam

Aimbirecirc Absolvidos

Dizem na hora da morte

Meus viacutecios renegarei

E entregam-se a sua sorte

No auto de Satildeo Lourenccedilo mostrando como essas personagens

aparecem representando o cotidiano e ao mesmo tempo o Bem e o Mal trecircs

diabos satildeo personagens de grande importacircncia Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia

todos nomes dos antigos chefes tamoios derrotados e mortos na campanha de

125

Guanabara que satildeo aproveitados para destacar o inimigo vencido e associaacute-lo

com inimigos de toda a cristandade

Do lado do Bem o Anjo vem acompanhado de Satildeo Lourenccedilo e de Satildeo

Sebastiatildeo que resistem aos diabos para natildeo permitir a destruiccedilatildeo da aldeia pelos

pecados

O Diabo talvez tenha sido uma das personagens mais importantes no

projeto de conversatildeo das almas natildeo soacute no teatro mas como em todas as

representaccedilotildees da catequese pois foi contra ele e seus disciacutepulos e seguidores

que partiram as acusaccedilotildees de perversatildeo de mentira de seduccedilatildeo de luxuria A

luta dos missionaacuterios jesuiacutetas natildeo foi nunca contra os pagatildeos ou contra os

hereges mas principalmente contra o diabo contra os feiticeiros e contra aqueles

que mesmo catequizados voltavam aos costumes antigos e promoviam revoltas

nas aldeias e as conduziam a fugas e ao deslocamento para terras mais distantes

da evangelizaccedilatildeo

126

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos

Nesta parte do capiacutetulo a intenccedilatildeo eacute a de fazer o leitor atentar para as

definiccedilotildees de mito como um todo do mito cristatildeo e de sua comparaccedilatildeo com os

mitos indiacutegenas Mostrar como de fato foi o verdadeiro embate de mitos na

batalha de imposiccedilatildeo do branco europeu portuguecircs e obviamente cristatildeo sobre

as populaccedilotildees indiacutegenas atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de cultura

As peccedilas os autos especificamente o Auto de Satildeo Lourenccedilo pelo

fasciacutenio da imagem representativa era muito mais eficaz do que um sermatildeo por

exemplo Escrito em tupi portuguecircs ou espanhol e mais tarde em latim Nesse

auto os personagens satildeo santos caciques democircnios imperadores e ainda

representam apenas simbolismos como o Amor ou o Temor a Deus

Anchieta o jovem missionaacuterio da Companhia de Jesus o grande

piahy (supremo pajeacute branco) como era chamado pelos iacutendios usava com

maestria neste auto o zelo constante pela conversatildeo e os mandamentos

religiosos atraveacutes de uma audiecircncia amena e agradaacutevel diferente da pregaccedilatildeo

seca e riacutegida de que os escritos catequeacuteticos satildeo cabal documento Some-se a

isso que os indiacutegenas eram sensiacuteveis agrave danccedila agrave muacutesica e a mistura de

personagens que integram a miacutetica cristatilde (diabos anjos santos) fatores esses

127

que atuavam sobre o expectador com vigoroso impacto O iacutendio natildeo era no

entanto apenas expectador desse teatro mas tambeacutem participava dele como ator

danccedilarino e cantor

Outros atores aleacutem dos iacutendios domesticados eram futuros padres

brancos e mamelucos Todos amadores que atuavam de improviso seguindo

textos mas sem trabalhos de interpretaccedilatildeo apresentavam os autos nas Igrejas

nas praccedilas e nos coleacutegios

Considero para esta tarefa o Auto de Satildeo Lourenccedilo como uma das

mais importantes ferramentas da catequese onde iacutendios principais de tribos

Tamoyo vencidos e destruiacutedos pelos portugueses passam a ter suas imagens

incorporadas ao diabo e a democircnios

No Apecircndice 1 coloco o Auto de S Lourenccedilo na iacutentegra para que o

leitor possa ter uma completa visatildeo dos comentaacuterios que apresento a cada passo

dessa peccedila teatral

Quando iniciamos a leitura do texto examinando-se apenas o tema do

auto jaacute se percebe que os portugueses do periacuteodo jesuiacutetico ao virem para o

Brasil trouxeram consigo seu espaccedilo miacutetico e obviamente necessitaram

sacralizar o novo territoacuterio

Inicia-se aqui na representaccedilatildeo do auto logo em seu iniacutecio o embate de

mitos De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado pelo Espiacuterito Santo e que trazia aos gentios os bons

costumes e a cura de todos os seus males Do outro lado homens aguerridos e

128

audaciosos que entendiam seus costumes da forma miacutetica que interpretavam

suas vidas e as explicaccedilotildees da finitude dessas vidas sem que conhecessem os

pecados ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao inimigo do Homem

que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a realidade

Jaacute no primeiro ato Percebe-se que a evocaccedilatildeo de Jesus Salvador

mostra agrave plateacuteia que algo se cria com as palavras de Satildeo Lourenccedilo um clima de

redenccedilatildeo com o sofrimento se implanta naqueles que ouvem e vivenciam a

experiecircncia do auto uma proposta de sentirem algo sagrado

Se a palavra se torna criadora se a partir dela formam-se as

proposiccedilotildees constitutivas o Sagrado se apresenta no dizer criador do Verbo

como a verdade dos entes 134

Na fala de Guaixaraacute que encontramos no iniacutecio do segundo ato nada

mais do que a resistecircncia agrave imposiccedilatildeo da cultura portuguesa ou ainda de

qualquer cultura que pudesse querer destruir o que ateacute aquele momento era

considerado pelos indiacutegenas como tradiccedilatildeo e modo de entender a vida Seu mito

o mito de Guaixaraacute pois a funccedilatildeo de seus mitos natildeo eacute a de mostrar uma ideacuteia

herdada de seus antepassados mas sim de mostrar um modo pelo qual aquela

sociedade funciona e que corresponde agrave maneira inata pela qual o homem nasce

e se relaciona em sua vida vivida

Nesta parte do auto Luacutecifer eacute o pajeacute Guaixaraacute eacute o pajeacute e todos que o

seguem satildeo democircnios Guaixaraacute eacute o diabo esse locutor infernal que eacute preciso

134 CRIPPA 1975 p115

129

calar O feiticeiro eacute algo anormal ele eacute um herege natildeo um pagatildeo Eacute um herege

que se faz passar por pagatildeo 135

O pajeacute eacute algo anormal na medida em que se considera que a cultura

iacutendia eacute pagatilde Considera-se a cultura iacutendia como algo jaacute possuiacutedo pelo Diabo

a figura infernal se flexiona Luacutecifer agora eacute o signo da perversatildeo eacute o liacuteder de

hereges que vecirc nele a siacutentese de suas qualidades malignas 136

No entanto durante boa parte do texto do auto Guaixaraacute sabe da forccedila

da tradiccedilatildeo e da linguagem e entende que mesmo que sejam os indiacutegenas

levados a outro mito eacute o mito primordial da origem da cultura que surge de forma

espontacircnea que permanece e crecirc que mesmo com a influecircncia externa de outra

transmissatildeo miacutetica cada indiviacuteduo da cultura a que pertence possui em cada

psique prontidotildees vivas e ativas e que mesmo que se encontrem inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico

Poreacutem o portuguecircs o jesuiacuteta tenta mostrar o inverso disso quando

pretende provar que ateacute mesmo Aimbirecirc acredita na forccedila do novo mito o mito

cristatildeo e a forccedila dos santos Vejamos

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me

amedronta

135 NEVES 1978 p93 136 NEVES 1978 p94

130

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos

noacutes

AIMBIREcirc

Esse

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te

venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

Pela visatildeo de Anchieta Aimbirecirc crecirc em seu mito mas de alguma forma

percebe que muitos indiacutegenas estatildeo passando para o outro lado porque o novo

mito tambeacutem lhes daacute uma explicaccedilatildeo para a vida que levam pois muitas das

situaccedilotildees tiacutepicas vividas pelos gentios com relaccedilatildeo a condiccedilatildeo humana tambeacutem

satildeo representadas pelos mitos que lhes vem sendo ensinado gerando nesses

indiacutegenas uma predisposiccedilatildeo para experimentar os novos conceitos Deus de

seus nascimentos de suas mortes e de renascimento apoacutes a morte dos novos

rituais dos sacramentos etc

Por outro lado percebe-se tambeacutem que Aimbirecirc junto com outros

diabos continuaraacute tentando o disconversatildeo e a manutenccedilatildeo do mito primordial

131

Haacute no entanto uma anguacutestia demonstrada pelo diabo que Anchieta

criou mostrando que ele mesmo sendo o diabo entende a necessidade dos

gentios em descobrir e refazer seus mitos Havia o vislumbre de que a nova

proposta o novo mito pudesse atender agraves necessidades daqueles que teriam

conhecido um novo tipo de conforto uma nova seguranccedila perante as doenccedilas que

destruiacuteram tribos inteiras um novo alento para suas dificuldades enfrentadas em

suas vidas vividas

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de nossa anguacutestia

individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de um novo mito central vai

resolver o problema para o indiviacuteduo e para a sociedade 137

Vejamos este trecho do auto onde os diabos em conversa com Satildeo

Lourenccedilo tentam mostrar que satildeo apenas indiacutegenas no entanto a fala proposta

por Anchieta no texto perverte essa informaccedilatildeo

(Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar

antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

137 EDINGER 1999 11

132

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio

Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou

luminoso democircnio

Ou estaria dizendo em suas proacuteprias palavras e nas natildeo palavras

colocadas por Anchieta em sua boca de personagem sou iacutendio sou livre sou

aguerrido luto por minha tradiccedilatildeo

Mas Satildeo Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo continuam a tentar convencer

esses diabos de que eles foram criados a imagem e semelhanccedila dos brancos e

por isso tecircm que se tornarem tementes a Deus

Como afirmei anteriormente Deus eacute uma forma de explicarmos as

experiecircncias que temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e

transcendentais Ele eacute a superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos

aos deuses pois temos que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa

vida Mas os gentios possuiacuteam outro mundo outra sublimidade outra

transcendentalidade outras ideacuteias outras abstraccedilotildees A terra eacute a mesma mas

entendida de outra forma a morte eacute a mesma mas o conceito dessa passagem

eacute distinto o espiacuterito de cada ideacuteia eacute formado por concepccedilotildees diferentes da dos

portugueses

Vejamos novamente uma afirmaccedilatildeo de Gusdorf jaacute citada anteriormente

neste trabalho

133

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao ser toda

sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da comunidade pelo

viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem vivente a terra as coisas os

seres e ainda os mortos que continuam frequumlentando a morada de sua vida 138

Os deuses dos indiacutegenas eram por eles conhecidos podiam olhar e ver

o Sol a Lua as estrelas a noite a chuva o vento mas o Deus apresentado pelos

jesuiacutetas era um deus que natildeo se podia ver nem acreditar sem pensar El Dios

verdadero el Dios de la religioacuten cristiana fue siempre un Deus absconditus 139

um Deus escondido um Deus que necessita que se creia sem que se possa ver

Mas Anchieta na voz da personagem Satildeo Sebastiatildeo vecirc a existecircncia de

um povo e seu mito e tenta ainda mudar a concepccedilatildeo de Aimbirecirc impondo o mito

cristatildeo

(Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo

espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

138 GUSDORF1959 p 55-56 139 CASSIRER 1945 p113

134

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas

velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas

palavras amigas

Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute

De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba disso natildeo

os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa

Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos

jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa

Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de

comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas

avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos

aprisionando

135

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando

AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e aos viacutecios bem se

convertem agrave forccedila do nosso mando

Os diabos aqui retratados tentam usar de uma linguagem que permite

estruturar seu conhecimento sobre si e sobre seu povo uma linguagem que

pudesse ser capaz de transcrever sua realidade vivida mas que pertencesse a

seu proacuteprio conhecimento de mundo um mundo indiacutegena um mundo desenhado

pelo mito primordial e pela essecircncia de seu ser e de sua existecircncia humana que

se fixa atraveacutes de uma paisagem desenhada pelo grupo social a que pertence a

tribo de sua origem de seu nome e de sua identidade envolta por uma membrana

relacionada com a moral e com a espiritualidade de seu povo

Eacute atraveacutes do mito que o homem se relaciona com o outro pensa seus

deuses pensa sua vida e vive as relaccedilotildees do povo a que pertence Eacute pelo mito

que satildeo definidas as tarefas coletivas e individuais da comunidade na defesa na

guarda dos indiviacuteduos coletores ou caccediladores guerreiros ou agricultores

partilhando vivecircncias e vivenciando a cooperatividade

136

A cooperatividade e mutualidade servem para garantir o alimento a

cultura e a tradiccedilatildeo as quais tambeacutem alimentam tanto para si como para os que

do indiviacuteduo miacutetico dependem sendo a base psiacutequica para o ser em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal

Mas quer Anchieta que seus personagens entendam o inferno mas o

proacuteprio texto mostra que Aimbirecirc percebe que os brancos tambeacutem cultuam esse

inferno de alguma forma

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a

taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

Inferno um local subterracircneo habitado pelos mortos um lugar em que

as almas pecadoras se entram apoacutes a morte submetidas a penas eternas

Novamente o absconditus soacute que agora natildeo eacute mais Deus quem estaacute escondido e

sim o diabo isto eacute eles mesmos Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos os outros

mesmo que eles mesmos natildeo saibam disso

SAtildeO LOURENCcedilO

Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura

137

Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma

que o bem procura

Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai

abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados

passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios

renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou

eu abandonaacute-los

E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los

Tanto confiaram em mim construindo esta capela

plantando o bem sobre ela

Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso

138

Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs

daqui lhes darei sumiccedilo

Deles nem sombra vereis

Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas

tridentes e alegrar as nossas gentes

Jaacute aqui Anchieta propotildee que os diabos saibam bem quem satildeo qual

sua origem e qual seu destino Mas Guaixaraacute e seus companheiros natildeo tinham

essa concepccedilatildeo de origem e de destino do mito cristatildeo ou mesmo de profano e de

sagrado pois sagrado ou profano eacute tudo aquilo que se encontra sob os olhos do

homem no entanto no iacutendio real natildeo interpretado de um texto apologeacutetico natildeo

havia a clara noccedilatildeo de profano e sagrado nem de pecado pois isso natildeo estava

sob seus olhos existindo sim o tabu que cometido ou invadido natildeo tinha perdatildeo

e soacute poderia receber a morte diferente do pecado que por maior que fosse teria

como ser renegado e obtido o perdatildeo para que se siga em direccedilatildeo aos Ceacuteus

As diversas formas da realidade seguem-se agraves diversas formas que o

sagrado assume ao revelar-se Independentemente dos contrastes e das

oposiccedilotildees que integram o mundo do real sensiacutevel haacute uma coincidecircncia radical no

Ser e no Sagrado O divino garante estas oposiccedilotildees e diversidades

apresentando-se ele mesmo das mais diversas maneira 140

Enfim apoacutes o embate de mitos de um lado Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo e

do outro Aimbirecirc e Saravaia como sempre o considerado Bem vence o

140 CRIPPA 1975 p117

139

considerado Mal onde ateacute os franceses e castelhanos satildeo considerados aliados

do Diabo e nesse embate de mitos o branco portuguecircs cristatildeo e jesuiacuteta vence o

Curupira a Grande Matildee a Matildee dacuteaacutegua o Macuteboy-tataacute

O Anjo Fala com os santos convidando-os a cantar e se

despede)

Cantemos todos cantemos

Que foi derrotado o mal

Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa

alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima

repeticcedilatildeo da cantiga choram)

Conforme se pode perceber no texto que define o terceiro ato e muito

do texto a seguir os anjos de Deus comandam os diabos Aimbirecirc e Saravaia para

que atuem sob seu comando fazendo arder nos infernos outros que podem ser

considerados pecadores Deacutecio e Valeriano imperadores e que representam

possivelmente no auto de Satildeo Lourenccedilo outros chefes tribais que natildeo aceitaram a

pregaccedilatildeo

ANJO

Aimbirecirc

Estou chamando vocecirc

Apressa-te Corre Jaacute

140

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute

Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para

dar-te como presa

De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los

Que para o sol sejam cegos

Ide ao fogo cozinhaacute-los

Castiga com teus vassalos estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto

Sejam tais ordens cumpridas

Reunirei meus democircnios

Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que

temos planos medonhos

(Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana

Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Sus Caborecirc vecirc se te

inflama pra comer estes perus

141

(Acodem todos os quatro com suas armas)

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Anchieta nos mostra neste ponto que tambeacutem os diabos criam seus

conceitos de Bem e Mal a partir de semelhanccedilas tanto com Deus como com o

Diabo pois para aceitarem o mito que altera seus costumes que gera dentro

deles uma perda da consciecircncia de uma realidade transpessoal seus deuses as

anarquias interna e externa dos desejos pessoais rivais assumem o poder e como

os cristatildeos passam a criar deidades agrave sua imagem e semelhanccedila as quais criam

homens agrave suas imagens e semelhanccedilas

Mostra Anchieta quando fala dos romanos no texto do Auto que Deacutecio

e Valeriano satildeo adeptos a ideacuteias contraacuterias ao cristianismo satildeo guerreiros

conquistadores pagatildeos e portanto infieacuteis que deveratildeo ser castigados mas por

quem por aqueles considerados pelo mito cristatildeo iguais a estes isto eacute Aimbirecirc e

Saravaia e outros diabos que os enganaraacute os assaraacute os sangraraacute atendendo agraves

ordens dos anjos e dos santos catoacutelicos Neste momento do texto do auto de Satildeo

Lourenccedilo os diabos chamam de castelhanos os imperadores o que pode servir

para mostrar o juiacutezo que dos castelhanos (ou de sua liacutengua) faziam entatildeo os

lusitanos juiacutezo esse perfilhado mesmo por quem como Anchieta nascera em

terras de Espanha

142

Caos total na cultura indiacutegena O mito cristatildeo eacute imposto sobre a pureza

da indianidade

No quarto o Temor de Deus e o Amor de Deus mandam sua mensagem

de que os iacutendios (puacuteblico-alvo de Joseacute de Anchieta) devem amar e temer a Deus

que por eles tudo sacrificou Neste quarto ato novamente o sagrado cristatildeo

invade o espaccedilo sagrado do mito indiacutegena invade o espaccedilo miacutetico primitivo

substituindo o altar de sacrifiacutecios espaccedilo de magia do pajeacute vital para a

manutenccedilatildeo de seu pensamento e estrutura de sua psique pelo altar a Deus

como um marco de apenas uma existecircncia possiacutevel como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute um novo sentido pois ali natildeo moram mais seus

deuses natildeo moram seus mortos seus pensamentos e desejos e sim um mito

cristatildeo

Reafirma essa imposiccedilatildeo do sagrado cristatildeo sobre o sagrado

indiacutegenas no momento do quinto ato onde na danccedila final de doze meninos

invocando Satildeo Lourenccedilo afirmando em tupi os bons propoacutesitos de seguir os

ensinamentos cristatildeos O fim da apresentaccedilatildeo criava um clima propiacutecio para que o

puacuteblico em verdadeiro coro formulasse idecircnticos votos de viver segundo os

preceitos religiosos

Natildeo haacute mais por esse auto de Anchieta um espaccedilo sagrado onde o

indiacutegena pudesse realizar seus rituais suas suplicas seus sacrifiacutecios fazendo

com percam por completo e em definitivo o local onde suas forccedilas vitais pudessem

se encontrar se concentrar e os fazer existir como satildeo

143

Conforme Cripa141 quando novas simbologias satildeo inseridas no

processo de manifestaccedilatildeo do sagrado elas assumem uma dimensatildeo nova a

sacralidade manifestando um poder transcendente e incontrolaacutevel pelo homem

tornando ao final o indiacutegena em um arremedo de branco e portuguecircs confirmando

assim a profecia do pajeacute que dizia que o iacutendio se transformaria no branco e o

branco em iacutendio Isso natildeo aconteceu o indiacutegena se transformou em algo que

caminha sobre a terra

Com a queda do pano na boca de cena para Anchieta o iacutendio se

converteu Vejamos em que ele acreditava

falamos-lhe que o queriacuteamos batizar para que sua alma

natildeo se perdesse mas que por entatildeo natildeo podiacuteamos ensinar-lhe o que

era necessaacuterio por falta de tempo e que estivesse preparado para

quando voltaacutessemos Folgou ele tanto com esta notiacutecia como vinda

do Ceacuteu e teve-a tanto em memoacuteria que agora quando viemos e lhe

perguntamos se queria ser Cristatildeo respondeu com muita alegria que

sim e que jaacute desde entatildeo o estava esperando [] O que se lhe

imprimiu foi o misteacuterio da Ressurreiccedilatildeo que ele repetia muitas vezes

dizendo Deus verdadeiro eacute Jesus que saiu da sepultura e subiu ao

Ceacuteu e depois haacute de vir muito irado a queimar todas as cousas []

Chegando agrave porta da igreja o assentamos em uma cadeira onde

estavam jaacute seus padrinhos com outros cristatildeos a esperaacute-lo Aiacute lhe

tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria e ele

respondeu com grande fervor que queria ser batizado e que toda

aquela noite estivera pensando na ira de Deus que havia de ter para

141 CRIPPA 1975 p120

144

queimar todo o mundo e destruir todas as cousas e de como

haviacuteamos de ressuscitar todos142

142 ANCHIETA - Cartas- 1988 p 199 - Carta ao Geral Diogo Lainez de Satildeo Vicente a 16 de abril de 1563

145

CONCLUSAtildeO - O RESULTADO DO EMBATE DESSES MITOS NA EDUCACcedilAtildeO E NA CULTURA

BRASILEIRA

Noacutes brancos negros mesticcedilos e cristatildeos ou natildeo pudemos ter nesse

Brasil uma heranccedila que poderia ser considerada magna quer na liacutengua que

falamos quer nas artes nas danccedilas na culinaacuteria que a Cunhatilde matildee da famiacutelia

brasileira nos deixou diria com certeza Gilberto Freire Aprendemos e

incorporamos tantos e tantos itens dessa cultura maravilhosa que veio do

indiacutegena fomos educados pelas Cunhatildes

Mas desde Caminha sempre se repetem pela educaccedilatildeo formal

brasileira as maravilhas deste paiacutes desta terra como se eles os indiacutegenas nunca

tivessem existido esquecendo-se que transmissatildeo cultural eacute educaccedilatildeo

Poreacutem a terra em si eacute de muitos bons ares assim frios e

temperados como os de Entre-Doiro e Miacutenho porque neste tempo

de agora assim os achaacutevamos como os de laacute Aacuteguas satildeo muitas

infindas E em tal maneira eacute graciosa que querendo-a aproveitar dar-

se-aacute nela tudo por bem das aacuteguas que tem 143

143 CAMINHA 2000 p 12

146

Podemos observar no trecho acima que o Brasil eacute descrito como

mundo feacutertil de clima ameno vida promissora Esse relato eacute consequumlecircncia da

visatildeo medieval da natureza na qual a exuberacircncia eacute uma manifestaccedilatildeo divina

Nessa idealizaccedilatildeo cada visatildeo da terra eacute uma liccedilatildeo de Deus e tudo eacute associado

entatildeo ao Eacuteden ao Paraiacuteso Terrestre Discurso elaborado no periacuteodo de

conquista da terra e que se repete ao longo dos seacuteculos

Vejamos por exemplo um trecho proacuteprio do romantismo da Canccedilatildeo do

Exiacutelio de Gonccedilalves Dias (seacuteculo XIX)

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiaacute

As aves que aqui gorjeiam

Natildeo gorjeiam como laacute

Nosso ceacuteu tem mais estrelas

Nossas vaacuterzeas tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida mais amores

Ateacute mesmo canccedilotildees atuais cantam essa terra maravilhosa onde o

Eacuteden repousa como em Paiacutes Tropical de Jorge Ben Jor (seacuteculo XX)

Moro num paiacutes tropical

Abenccediloado por Deus

E bonito por natureza

Mas que beleza

Fevereiro tem carnaval

Tem carnaval

147

O Hino Nacional Brasileiro tambeacutem se rende ao mito do Paraiacuteso

Terrestre ser o Brasil

Se em teu formoso ceacuteu risonho e liacutempido

A imagem do Cruzeiro resplandece

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida no teu seio mais amores

Gigante pela proacutepria natureza

Es belo eacutes forte impaacutevido colosso

E o teu futuro espelha essa grandeza

Terra adorada

Entretanto haacute textos que subvertem ironicamente a histoacuteria oficial do

paiacutes apresentada na Carta de Caminha num processo de desconstruccedilatildeo desse

mito de que o Eacuteden eacute aqui Mostram um Brasil cheio de contrastes tal como este

fragmento da muacutesica Iacutendios do conjunto Legiatildeo Urbana (seacuteculo XXI)

Quem me dera ao menos uma vez

Ter de volta todo o ouro que entreguei

A quem conseguiu me convencer

Que era prova de amizade

Se algueacutem levasse embora ateacute o que eu natildeo tinha

Quem me dera ao menos uma vez

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que natildeo tem o bastante

148

E fala demais por natildeo ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez

Que o mais simples fosse visto como o mais importante

Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez

Entender como um soacute Deus ao mesmo tempo eacute trecircs

E esse mesmo Deus foi morto por vocecircs -

Eacute soacute maldade entatildeo deixar um Deus tatildeo triste

Quem me dera ao menos uma vez

Como a mais bela tribo dos mais belos iacutendios

Natildeo ser atacado por ser inocente

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Tentei chorar e natildeo consegui

Em sua carta aleacutem das primeiras imagens da terra e dos homens

Caminha ressalta que Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que

seraacute salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela

deve lanccedilar Mas o iacutendio apoacutes a conversatildeo apoacutes ter sido educado pelo branco

vestiu maacutescaras de cristandade maacutescaras de algueacutem com pele branca maacutescaras

de civilizaccedilatildeo europeacuteia marca indeleacutevel de sua condiccedilatildeo de escravo do

colonizador europeu quinhentista e seiscentista

O mito cristatildeo nesse embate derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e

todos os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano Elimina o mito de

149

Acircgacircmahsacircpu o Pai maior o mito dos Diroaacute e dos Koaacuteyea e todo o conhecimento

do mito indiacutegena

Entendo que todo o trabalho aqui apresentado eacute uma conclusatildeo de per

si e leva o leitor a uma compreensatildeo do embate de mitos e quem venceu Que

lado se tornou o Bem e que lado se tornou o Mal

Gostaria de encerrar esta proposta voltando a tradiccedilatildeo indiacutegena natildeo

considerada fonte histoacuterica mas real como real eacute ainda alguma sombra tecircnue do

mito indiacutegena trazendo a Histoacuteria de Umukomahsu144

os Desana ficaram divididos em vaacuteria malocas onde

viviam sossegados Trabalhavam e faziam grandes festas como a

festa de oferta de bens (poori) Na maloca do filho de Boreka tambeacutem

chamado Boreka havia um tipo de boneco de que ele era o dono

Chamava-se Gotildeatildemecirc (demiurgo) Ele morava dentro de uma grande

cuia de um metro de altura sustentada sobre um suporte de panela

Durante o dia ele se parecia como uma cobra venenosa Mas ele natildeo

mordia De noite no sonho ele tinha relaccedilatildeo sexual com a mulher de

Boreka Assim a mulher de Boreka contava para as outras mulheres

No sonho ele lhe aparecia como um padre agraves vezes como um

Branco Assim natildeo somente ele tinha vida como tambeacutem ele vivia no

sonho com algumas outras mulheres da maloca de Boreka Mas natildeo

com todas Escolhia a mulher com quem ia viver no sonho Ele natildeo

fazia isso com as solteiras somente com as mulheres que jaacute tinham

marido isto eacute que pertenciam a outra tribo Por isso quando nascia

uma crianccedila da mistura do secircmem de Gotildeatildemecirc e do marido jaacute se sabia

que quando crescesse ele seria inteligente saacutebio e adivinho Gotildeatildemecirc

144 LANA 1995 p58-59

150

tinha relaccedilatildeo sexual no sonho com cinco mulheres da maloca de

Boreka que tinham marido

Ele tinha um grande poder Protegia Boreka livrando-o de

todos os males e de todos os perigos que dele se aproximassem

Enquanto viviam deste modo chegaram os primeiros Brancos na

regiatildeo De acordo coma a histoacuteria do Brasil esses Brancos seriam os

bandeirantes Depois deles chegaram os Brancos que agarraram a

gente Eles cercavam a maloca de Boreka mas natildeo conseguiram

entrar nela Suas pernas ficaram moles Eles natildeo tinham mais forccedila

para andar Voltaram uma segunda vez cercaram a maloca e

aconteceu a mesma coisa Tornaram a voltar e sucedia o mesmo Por

isso eles perguntaram para os iacutendios de outras tribos porque eles

ficavam deste jeito quando tentavam entrar na maloca de Boreka Os

outros contaram que Boreka tinha na sua maloca um tipo de boneco

que o defendia Os Brancos perguntaram em qual lugar ele ficava

guardado Responderam que era bem no meio da porta do quarto de

Boreka A porta chamava-se Imikadihsi (porta dos Paris) Ele estava

sobre essa porta em cima de um suporte de cuia

Os Brancos ouviram tudo direito e foram outra vez para a

maloca de Boreka Quando chegaram a primeira coisa que fizeram foi

derrubar Gotildeatildemecirc com um tiro de espingarda Atiraram sem ver nada

porque sabiam onde ele se encontrava A casa de Gotildeatildemecirc isto eacute a

cuia ficou totalmente despedaccedilada mas ele subiu ao ceacuteu Os

Brancos cercaram entatildeo a maloca e agarraram Boreka O

descendente legiacutetimo da Gente de Transformaccedilatildeo foi assim preso

pelos Brancos O irmatildeo de Boreka conseguiu fugir e tomou o lugar

dele como chefe supremo dos Desana Boreka quando foi levado

pelos Brancos levou consigo a maior parte dos seus poderes Natildeo se

sabe para qual lugar os Brancos o levaram Talvez esteja na Bahia

no Rio de Janeiro ou no Portugal Isso ningueacutem sabe As riquezas

restantes ficaram todas para a sua geraccedilatildeo Elas estatildeo com os

descendentes de Boreka os Borekapotilderatilde Entre outras estatildeo os

pumuribuya os Enfeites de Transformaccedilatildeo e as outras coisas

tiradas da Maloca do Universo

151

APEcircNDICES

Senti durante este trabalho a necessidade de acrescentar estes

apecircndices com o intuito de levar ao leitor uma seacuterie de informaccedilotildees que natildeo

pertencem ao objeto de estudo e a proacutepria tese em si mas que colaboraram para

o entendimento de mito cristatildeo no sentido especialmente cultural e que puderam

influenciar na missatildeo de educaccedilatildeo e catequese jesuiacutetica ao indiacutegena brasileiro

Para tanto apresento a seguir o texto completo do Auto de S Lourenccedilo

e trecircs estudos por mim realizados em forma de apecircndices A missa e os

siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem O mito de Cristo e por fim

Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade

152

APEcircNDICE 1 O AUTO DE SAtildeO LOURENCcedilO JOSEacute DE ANCHIETA

PERSONAGENS

GUAIXARAacute - rei dos diabos AIMBIREcirc SARAVAIA - criados de Guaixaraacute TATAURANA URUBU JAGUARUCcedilU - companheiros dos diabos VALERIANO DEacuteCIO - Imperadores romanos SAtildeO SEBASTIAtildeO - padroeiro do Rio de Janeiro SAtildeO LOURENCcedilO - padroeiro da aldeia de Satildeo Lourenccedilo VELHA ANJO TEMOR DE DEUS AMOR DE DEUS CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA Apoacutes a cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute chama Aimbirecirc e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia Satildeo Lourenccedilo a defende Satildeo Sebastiatildeo prende os democircnios Um anjo manda-os sufocarem Deacutecio e Valeriano Quatro companheiros acorrem para auxiliar os democircnios Os imperadores recordam faccedilanhas quando Aimbirecirc se aproxima O calor que se desprende dele abrasa os imperadores que suplicam a morte O Anjo o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade contriccedilatildeo e confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Faz-se o enterro do santo Meninos iacutendios danccedilam

PRIMEIRO ATO (Cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo) Cantam

Por Jesus meu salvador Que morre por meus pecados Nestas brasas morro assado Com fogo do meu amor Bom Jesus quando te vejo Na cruz por mim flagelado

Eu por ti vivo e queimado Mil vezes morrer desejo Pois teu sangue redentor Lavou minha culpa humana Arda eu pois nesta chama Com fogo do teu amor

153

O fogo do forte amor Ah meu Deus com que me amas Mais me consome que as chamas E brasas com seu calor

Pois teu amor pelo meu Tais prodiacutegios consumou Que eu nas brasas onde estou Morro de amor pelo teu

SEGUNDO ATO (Eram trecircs diabos que querem destruir a aldeia com pecados aos quais resistem Satildeo Lourenccedilo Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo da Guarda livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes satildeo Guaixaraacute que eacute o rei Aimbirecirc e Saravaia seus criados)

GUAIXARAacute

Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira Quem a teria trazido com seus haacutebitos polidos estragando a terra inteira Soacute eu permaneccedilo nesta aldeia como chefe guardiatildeo Minha lei eacute a inspiraccedilatildeo que lhe dou daqui vou longe visitar outro torratildeo Quem eacute forte como eu Como eu conceituado Sou diabo bem assado A fama me precedeu Guaixaraacute sou chamado Meu sistema eacute o bem viver Que natildeo seja constrangido o prazer nem abolido Quero as tabas acender com meu fogo preferido Boa medida eacute beber cauim ateacute vomitar Isto eacute jeito de gozar a vida e se recomenda a quem queira aproveitar A moccedilada beberrona

trago bem conceituada Valente eacute quem se embriaga e todo o cauim entorna e agrave luta entatildeo se consagra Quem bom costume eacute bailar Adornar-se andar pintado tingir pernas empenado fumar e curandeirar andar de negro pintado Andar matando de fuacuteria amancebar-se comer um ao outro e ainda ser espiatildeo prender Tapuia desonesto a honra perder Para isso com os iacutendios convivi Vecircm os tais padres agora com regras fora de hora praacute que duvidem de mim Lei de Deus que natildeo vigora Pois aqui tem meu ajudante-mor diabo bem requeimado meu bom colaborador grande Aimberecirc perversor dos homens regimentado

(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele E ele a ajuda como fazem os iacutendios Depois de chorar achando-se enganada diz a velha)

154

VELHA

O diabo mal cheiroso teu mau cheiro me enfastia Se vivesse o meu esposo meu pobre Piracaecirc isso agora eu lhe diria Natildeo prestas eacutes mau diabo Que bebas natildeo deixarei do cauim que eu mastiguei Beberei tudo sozinha ateacute cair beberei (a velha foge)

GUAIXARAacute (Chama Aimberecirc e diz)

Ei por onde andavas tu Dormias noutro lugar

AIMBIREcirc

Fui as Tabas vigiar nas serras de norte a sul nosso povo visitar Ao me ver regozijaram bebemos dias inteiros Adornaram-se festeiros Me abraccedilaram me hospedaram das leis de deus estrangeiros Enfim confraternizamos Ao ver seu comportamento tranquumlilizei-me Oacute portento Viacutecios de todos os ramos tem seus coraccedilotildees por dentro

GUAIXARAacute

Por isso no teu grande reboliccedilo eu confio que me baste os novos que cativaste os que corrompeste ao viacutecio Diz os nomes que agregaste

155

AIMBIREcirc

Gente de maratuauatilde no que eu disse acreditaram os das ilhas nestas matildeos deram alma e coraccedilatildeo mais os paraibiguaras Eacute certo que algum perdi que os missionaacuterios levaram a Mangueaacute Me irritaram Raivo de ver os tupis que do meu laccedilo escaparam Depois dos muitos que nos ficaram os padres sonsos quiseram com mentiras seduzir Natildeo vecirc que os deixei seguir - ao meu apelo atenderam

GUAIXARAacute

De que recurso usaste para que natildeo nos fugissem

AIMBIREcirc

Trouxe aos tapuias os trastes das velhas que tu instruiacuteste em Mangueaacute Que isto baste Que elas satildeo de fato maacutes fazem feiticcedilo e mandinga e esta lei de Deus natildeo vinga Conosco eacute que buscam a paz no ensino de nossa liacutengua E os tapuias por folgarem nem quiseram vir aqui De danccedila os enlouqueci para a passagem comprarem para o inferno que acendi

GUAIXARAacute

Jaacute chega

156

Que tua fala me alegra teu relatoacuterio me encanta

AIMBIREcirc

Usarei de igual destreza para arrastar outras presas nesta guerra pouco santa O povo Tupinambaacute que em Paraguaccedilu morava e que de Deus se afastava deles hoje um soacute natildeo haacute todos a noacutes se entregaram Tomamos Moccedilupiroca Jequei Gualapitiba

Niteroacutei e Paraiacuteba Guajajoacute Carijoacute-oca Pacucaia Araccedilatiba Todos os tamoios foram Jazer queimando no inferno Mas haacute alguns que ao Padre Eterno fieacuteis nesta aldeia moram livres do nosso caderno Estes maus Temiminoacutes nosso trabalho destroem

GUAIXARAacute

Vem tentaacute-los que se moem a blasfemar contra noacutes Que bebam roubem e esfolem Que provoquem muitas lutas muitos pecados cometam por outro lados se metam longe desta aldeia agrave escuta dos que as nossas leis prometam

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me amedronta

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

157

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos noacutes

AIMBIREcirc

Esse

GUAIXARAacute

Fica descansado Natildeo sou assim tatildeo covarde seraacute logo afugentado Aqui estaacute quem o queimou e ainda vivo o cozeu

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

GUAIXARAacute

O que eu deixei transpassado Natildeo faccedilas broma comigo que sou bem desaforado Ambos fugiratildeo logo aqui me virem chegar

AIMBIREcirc

Olha que vais te enganar

GUAIXARAacute

158

Tem confianccedila te rogo que horror lhes vou inspirar Quem como eu nas terras existe que ateacute Deus desafiou

AIMBIREcirc

Por isso Deus te expulsou e do inferno o fogo triste para sempre te abrasou Eu lembro de outra batalha em que Guaixaraacute entrou Muito povo te apoiou e inda que lhes desses forccedilas na fuga se debandou Natildeo eram muitos cristatildeos Contudo nada ficou da forccedila que te inspirou pois veio Sebastiatildeo na forccedila fogo ateou

GUAIXARAacute

Por certo aqueles cristatildeos tatildeo rebeldes natildeo seriam Mas esses que aqui estatildeo desprezam a devoccedilatildeo e a Deus natildeo reverenciam Vais ver como em nossos laccedilos caem logo estes malvados De nossos dons confiados as almas cederam passo para andar do nosso lado

AIMBIREcirc

Assim mesmo tentarei Um dia obedeceratildeo

GUAIXARAacute

Ao sinal de minha matildeo os iacutendios te entregarei

159

E agrave forccedila sucumbiratildeo

AIMBIREcirc

Preparemos a emboscada Natildeo te afobes Nosso espia veraacute em cada morada que armas nos satildeo preparadas na luta que se inicia

GUAIXARAacute

Muito bem eacutes capaz disso Saravaia meu vigia

SARAVAIA

Sou democircnio da alegria e assumi tal compromisso Vou longe nesta porfia Saravaiaccedilu me chamo Com que tarefa me aprazas

GUAIXARAacute

Ouve as ordens de teu amo quero que espies as casas e voltes quando te chame Hoje vou deixar que leves os iacutendios aprisionados

SARAVAIA

Irei onde me carregues E agradeccedilo que me entregues encargo tatildeo desejado Como Saravaia sou aos iacutendios que me aliei enfim aprisionarei E neste barco me vou De cauim me embriagarei

160

GUAIXARAacute

Anda logo vai ligeiro

SARAVAIA

Como um raio correrei (Sai)

GUAIXARAacute (Passeia com Aimbirecirc e diz)

Demos um curto passeio Quando volte o mensageiro a aldeia destroccedilarei (Volta Saravaia e Aimberecirc diz)

AIMBIREcirc

Danado Voltou voando

GUAIXARAacute

Demorou menos que um raio Foste mesmo Saravaia

SARAVAIA

Fui Jaacute estatildeo comemorando os iacutendios nossa vitoacuteria Alegra-te Transbordava o cauim o prazer regurgitava E a beber as igaccedilabas esgotam ateacute o fim

GUAIXARAacute

E era forte

161

SARAVAIA

Forte estava E os rapazes beberrotildees que pervertem esta aldeia caiam de cara cheia Velhos velhas mocetotildees que o cauim desnorteia

GUAIXARAacute

Jaacute basta Vamos mansinho tomaacute-los todos de assalto Nosso fogo arda bem alto (Vem Satildeo Lourenccedilo com dois companheiros Diz Aimbirecirc)

AIMBIREcirc

Haacute um sujeito no caminho que me ameaccedila de assalto Seraacute Lourenccedilo o queimado

SARAVAIA

Ele mesmo e Sebastiatildeo

AIMBIREcirc

E o outro dos trecircs que satildeo

SARAVAIA

Talvez seja o anjo mandado desta aldeia o guardiatildeo

AIMBIREcirc

Ai Eles me esmagaratildeo Natildeo posso sequer olhaacute-los

162

GUAIXARAacute

Natildeo te entregues assim natildeo ao ataque meu irmatildeo Teremos que amedrontaacute-los As flechas evitaremos fingiremos de atingidos

AIMBIREcirc

Olha eles vecircm decididos a accediloitar-nos Que faremos Penso que estamos perdidos (Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou luminosos democircnio

163

SAtildeO LOURENCcedilO

Dizei-me o que quereis desta minha terra em que nos vemos

GUAIXARAacute

Amando os iacutendios queremos que obediecircncia nos prestem por tanto que lhes fazemos Pois se as coisas satildeo da gente ama-se sinceramente

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Quem foi que insensatamente um dia ou presentemente os iacutendios vos entregou Se o proacuteprio Deus tatildeo potente deste povo em santo ofiacutecio corpo e alma modelou

GUAIXARAacute

Deus Talvez remotamente pois eacute nada edificante a vida que resultou Satildeo pecadores perfeitos repelem o amor de Deus e orgulham-se dos defeitos

AIMBIREcirc Bebem cuim a seu jeito como completos sandeus ao cauim rendem seu preito Esse cauim eacute que tolhe sua graccedila espiritual Perdidos no bacanal seus espiacuteritos se encolhem em nosso laccedilo fatal

164

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo se esforccedilam por orar na luta do dia a dia Isto eacute fraqueza de certo

AIMBIREcirc

Sua boca respira perto do pouco que Deus confia

SARAVAIA

Eacute verdade intimamente resmungam desafiando ao Deus que os estaacute guiando Dizem Seraacute realmente capaz de me ver passando

SAtildeO SEBASTIAtildeO (Para Saravaia)

Seraacutes tu um pobre rato Ou eacutes um gambaacute nojento Ou eacutes a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os iacutendios no mato

SARAVAIA

No anseio de devorar as almas sequer dormi

GUAIXARAacute

Cala-te Fale eu por ti

SARAVAIA

Natildeo vaacutes me denominar pra que natildeo me mate aqui Esconda-me antes dele

165

Eu por ti vigiarei

GUAIXARAacute

Cala-te Te guardarei Que a liacutengua natildeo te revele depois te libertarei

SARAVAIA

Se natildeo me viu safarei Inda posso me esconder

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Cuidado que lanccedilarei o dardo em que o flecharei

GUAIXARAacute

Deixa-o Vem de adormecer

SAtildeO SEBASTIAtildeO

A noite ele natildeo dormiu para os iacutendios perturbar

SARAVAIA

Isso natildeo se haacute de negar (Accediloita-o Guaixaraacute e diz)

GUAIXARAacute

Cala-te Nem mais um pio que ele quer te devorar

SARAVAIA

166

Ai de mim Por que me bates assim pois estou bem escondido (Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas palavras amigas Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba

167

disso natildeo os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos aprisionando

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e ao viacutecios bem se convertem agrave forccedila do nosso mando

GUAIXARAacute

Eu que te ajude a explicar As velhas como serpentes injuriam-se entre dentes maldizendo sem cessar

168

As que mais calam consentem Pecam as inconsequumlentes com intrigas bem tecidas preparam negras bebidas pra serem belas e ardentes no amor na cama e na vida

AIMBIREcirc

E os rapazes cobiccedilosos perseguindo o mulherio para escravas do gentio Assim invadem fogosos dos brancos o casario

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

SAtildeO LOURENCcedilO Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma que o bem procura Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

169

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou eu abandonaacute-los E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los Tanto confiaram em mim construindo esta capela plantando o bem sobre ela Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs daqui lhes darei sumiccedilo Deles nem sombra vereis Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas tridentes e alegrar as nossas gentes

AIMBIREcirc

170

Aqui vou com minhas garras meus longos dedos meus dentes

ANJO

Natildeo julgueis tolos dementes por no fogo esta legiatildeo Aqui estou com Sebastiatildeo e Satildeo Lourenccedilo natildeo tentem levaacute-los agrave danaccedilatildeo Pobres de voacutes que irritastes

de tal forma o bom Jesus Juro que em nome da cruz ao fogo vos condenastes (Aos santos) Prendei-os donos da luz (Os santos prendem os dois diabos)

GUAIXARAacute

Basta

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo Teu cinismo me agasta Destes provas que sobejam de querer destruir a igreja SAtildeO SEBASTIAtildeO (A Aimberecirc)

Grita Lamenta Te arrasta Te prendi

AIMBIREcirc

Maldito Seja (Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido)

ANJO

E tu que estaacute escondido seraacute acaso um morcego Sapo cururu minguaacute ou filhote de gambaacute ou bruxa pedindo arrego Sai daiacute seu fedorendo

171

abelha de asa de vento zorrilho maritaca seu lesma tamarutaca

SARAVAIA

Ai vida que me aprisionam Natildeo vecircs que morro de sono

ANJO

Quem eacutes tu

SARAVAIA

Sou Saravaia Inimigo dos franceses

ANJO

Teus tiacutetulos satildeo soacute estes SARAVAIA

Sou tambeacutem mestre em tocaia porco entre todas as reses

ANJO

Por isso eacutes sujo e enlameias tudo com teu negro rabo Veremos como pateias no fogo que a gente ateia

SARAVAIA

Natildeo Por todos os diabos Eu te dou ovas de peixe farinha de mandioca desde que agora me deixas te dou dinheiro aos feixes

172

ANJO

Natildeo te entendo maccedilaroca As coisas que me prometes em troca de onde roubaste Que morada assaltaste antes que aqui te escondeste Muito coisa tu furtaste

SARAVAIA

Natildeo somente o que falei Da casa dos bons cristatildeos foi bem pouco o que apanhei Tenho o que trago nas matildeos por muito que trabalhei Aqueles outros tecircm mais Para comprar cauim aos iacutendios em boa paz dei o que tinha e demais pois pobre acabei assim

ANJO

Vamos Restitui-lhes tudo o que tiveres roubado

SARAVAIA

Natildeo faccedilas isto estou becircbedo mais do que o demo rabudo da sogra do meu cunhado Tem paciecircncia me perdoa meu irmatildeo estou doente Das minhas almas presente farei a ti praacute que em boa hora as cucas lhes rebentes Leva o nome destes monstros e famoso ficaraacutes

173

ANJO

E onde lhes foste ao encontro

SARAVAIA

Fui pelo sertatildeo a dentro lacei as almas rapaz

ANJO

De que famiacutelias descendem

SARAVAIA

Desse assunto pouco sei Filhos de iacutendios talvez Na corda os enfileirei presos todos de uma vez Passei noites sem dormir nos seus lares espreitei fiz suas casas explodir suas mulheres lacei pra que natildeo possam fugir (Amarra-o o anjo e diz)

ANJO

Quantas maldades fizeste Por isso o fogo te espera Viveraacutes do que tramaste nesta abrasada tapera em que pro fim te pilhaste

SARAVAIA

Aimberecirc

AIMBIREcirc

Oi

174

SARAVAIA

Vem logo dar-me a matildeo Este louco me prendeu

AIMBIREcirc

A mim tambeacutem me venceu o flechado Sebastiatildeo Meu orgulho arrefeceu

SARAVAIA

Ai de mim Guaixaraacute dormes assim sem pensar em me salvar

GUAIXARAacute Estaacutes louco Saravaia Natildeo vecircs que Lourenccedilo ensaia maneira de me queimar

ANJO

Bem junto pois sois comparsas ardereis eternamente Enquanto noacutes Deo Gratias sob a luz da minha guarda viveremos santamente (Faz uma praacutetica aos ouvintes) Alegrai-vos filhos meus na santa graccedila de Deus pois que dos ceacuteus eu desci para junto a voacutes estar e sempre vos amparar dos males que haacute por aqui Iluminado esta aldeia junto de voacutes estarei por nada me afastarei - pois a isto me nomeia Deus Nosso Senhor e Rei

Ele que a cada um de voacutes um anjo seu destinou Que natildeo vos deixe mais soacutes e ao mando de sua voz os democircnios expulsou Tambeacutem Satildeo Lourenccedilo o virtuoso Servo de Nosso Senhor vos livra com muito amor terras e almas extremoso do democircnio enganador Tambeacutem Satildeo Sebastiatildeo valente santo soldado que aos tamoios rebelados deu outrora uma liccedilatildeo hoje estaacute do vosso lado E mais - Paranapucu

175

Jacutinga Moroacutei Sarigueacuteia Guiriri Pindoba Pariguaccedilu Curuccedila Miapei E a tapera do pecado a de Jabebiracica natildeo existe E lado a lado a naccedilatildeo dos derrotados no fundo do rio fica Os franceses seus amigos inutilmente trouxeram armas Por noacutes combateram Lourenccedilo jamais vencido e Satildeo Sebastiatildeo flecheiro Estes santos em verdade das almas se compadecem aparando-as desvanecem (Oacute armas da caridade) Do viacutecio que as envilece Quando o democircnio ameaccedilar vossas almas voacutes vereis com que forccedila hatildeo de zelar Santos e iacutendios sereis pessoas de um mesmo lar Tentai velhos viacutecios extirpar e as maldades caacute da terra evitai bebida e guerra adulteacuterio repudiai tudo o que o instinto encerra Amai vosso Criador cuja lei pura e isenta

Satildeo Lourenccedilo representa Engrandecei ao Senhor que de bens vos acrescenta Este mesmo Satildeo Lourenccedilo que aqui foi queimado vivo pelos maus feito cativo e ao martiacuterio foi infenso sendo o feliz redivivo Fazei-vos amar por ele e amai-o quanto puderdes que em sua lei nada se perde E confiando mais nele mais o ceacuteu se vos concede Vinde agrave direita celestial de Deus Pai ireis gozar junto aos que bem vatildeo guardar no coraccedilatildeo que eacute leal e aos peacutes de Deus repousar

(Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede)

Cantemos todos cantemos Que foi derrotado o mal Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima repeticcedilatildeo da cantiga choram)

CANTIGA

Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado (Voltam os santos)

Alegrai-vos vivei bem vitoriosos do viacutecio aceitai o sacrifiacutecio que ao amor de Deus conveacutem Daiacute fuga ao Demo-ningueacutem Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado

176

TERCEIRO ATO Depois de Satildeo Lourenccedilo morto na grelha o Anjo fica em sua guarda e chama os dois diabos Aimbirecirc e Saravaia que venham sufocar os imperadores Deacutecio e Valeriano que estatildeo sentados em seus tronos

ANJO

Aimbirecirc Estou chamando vocecirc Apressa-te Corre Jaacute

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para dar-te como presa De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

AIMBIREcirc

Boa Me fazes contente Agrave forccedila os castigarei e no fogo os queimarei como diabo eficiente Meu oacutedio satisfarei

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los Que para o sol sejam cegos Ide ao fogo cozinhaacute-los Castiga com teus vassalos

177

estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto Sejam tais ordens cumpridas Reunirei meus democircnios Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que temos planos medonhos

SARAVAIA

Jaacute de nego me pintei oacute meu avocirc jaguaruna e o cauim preparei veraacutes como beberei nesta festa da fortuna Que vejo Um temiminoacute Ou filho de guaianaacute Seraacute esse um guaitacaacute que agrave mesa do jacareacute sozinho vou devorar

(Vecirc o Anjo e espanta-se)

E este paacutessaro azulatildeo quem seraacute que assim me encara Algum parente de arara

AIMBIREcirc

Eacute o anjo que em nossa matildeo potildee duas presas bem raras

SARAVAIA

Meus capangas atenccedilatildeo Tataurana Tamanduaacute vamos com calma por laacute que esses monstros quereratildeo

178

por certo me afogar

AIMBIREcirc

Vamos

SARAVAIA

Ai os mosquitos me mordem Espera ou me comeratildeo Tenho medo quem me acode Sou pequenino e eles podem tragar-me de supetatildeo

AIMBIREcirc

Os iacutendios que natildeo se fiam nesta conversa e se escondem se os mandam executar

SARAVAIA

Tecircm razatildeo se desconfiam vivem sempre a se lograr

AIMBIREcirc

Cala a boca beberratildeo soacute por isso eacutes tatildeo valente moleiratildeo impertinente

SARAVAIA

Ai de mim me prenderatildeo mas vou por te ver contente E a quem vamos devorar

AIMBIREcirc

179

A algozes de Satildeo Lourenccedilo

SARAVAIA

Aqueles cheios de ranccedilo Com isto eu vou mudar meu nome de que me canso Muito bem Suas entranhas sejam hoje o meu quinhatildeo

AIMBIREcirc

Vou morder seu coraccedilatildeo

SARAVAIA

E os que natildeo nos acompanham sua parte comeratildeo (Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Suacutes Caborecirc vecirc se te inflama pra comer estes perus (Acodem todos os quatro com suas armas)

TATAURANA

Aqui estou com a muccedilurana e os braccedilos lhe comerei A Jaguaraccedilu darei o lombo a Urubu o cracircnio e as pernas a Caborecirc URUBU Aqui cheguei As tripas recolherei e com os bofes terei a panela a derramar E esta panela verei

180

minha sogra cozinhar

JAGUARUCcedilU

Com esta ingapema dura as cabeccedilas quebrarei e os miolos comerei Sou guaraacute onccedila criatura e antropoacutefago serei

CABOREcirc

E eu que em demandas andei aos franceses derrotando para um bom nome ir logrando agora contigo irei estes chefes devorando

SARAVAIA

Agora quietos De rastros natildeo nos viram Vou agrave frente Que natildeo escapem da gente Vigiarei No tempo exato ataquemos de repente

(Vatildeo todos agachados em direccedilatildeo a Deacutecio e Valeriano que conversam)

DEacuteCIO

Amigo Valeriano minha vontade venceu Natildeo houve arte no ceacuteu que livrasse do meu plano o servo do Galileu Nem Pompeu e nem Catatildeo nem Cesar nem o Africano nenhum grego nem troiano puderam dar conclusatildeo a um feito tatildeo soberano

181

VALERIANO

O remate gratildeo-Senhor desta tatildeo grande faccedilanha foi mais que vencer Espanha Jamais rei ou imperador logrou coisa tatildeo estranha Mas Senhor esse quem eacute que vejo ali tatildeo armado com espadas e cordel e com gente de tropel vindo tatildeo acompanhado

DEacuteCIO

Eacute o grande deus nosso amigo Juacutepiter sumo senhor que provou grande sabor com o tremendo castigo da morte deste traidor E quer para reforccedilar as penas deste rufiatildeo nosso impeacuterio acrescentar com sua potente matildeo pela terra e pelo mar

VALERIANO

Mais me parece eacute que vem a seus tormentos vingar e a noacutes ambos enforcar Oh que cara feia tem Comeccedilo a me apavorar

DEacuteCIO

Enforcar Quem a mim pode matar ou mover meus fundamentos Nem a exaltaccedilatildeo dos ventos Nem a braveza do mar nem todos os elementos

182

Natildeo temas que meu poder o que os deuses imortais me quiseram conceder natildeo se poderaacute vencer pois natildeo haacute forccedilas iguais De meu cetro imperial pendem reis tremem tiranos Venccedilo a todos os humanos e posso ser quase igual a esses deuses soberanos

VALERIANO

Oh que terriacutevel figura Natildeo posso mais aguardar que jaacute me sinto queimar Vamos que eacute grande loucura tal encontro aqui esperar Ai ai que grandes calores Natildeo tenho nenhum sossego Ai que poderosas dores Ai que feacutervidos ardores que me abrasam como fogo

DEacuteCIO

Oh paixatildeo Ai de mim que eacute o Plutatildeo chegando pelo Aqueronte ardendo como ticcedilatildeo a levar-nos de roldatildeo ao fogo do Flegetonte Oh coitado que me queimo Esse queimado me queima com grande dor

Oh infeliz imperador Todo me vejo cercado de penas e de pavor pois armado o diabo com seu dardo mais as fuacuterias infernais vecircm castigar-nos demais Jaacute nem sei o que hei falado com anguacutestias tatildeo mortais

VALERIANO

O Deacutecio cruel tirano Jaacute pagas e pagaraacute Contigo Valeriano porque Lourenccedilo cristatildeo assado nos assaraacute

183

AIMBIREcirc

Ocirc Castelhano Bom Castelhano parece Estou bem alegre mano que Espanhol seja o profano que no meu fogo padece Vou fingir-me castelhano e usar de diplomacia com Deacutecio e Valeriano porque o espanhol ufano sempre guarda a cortesia Oh mais alta majestade Beijo-vos a matildeo mil vezes por vossa gratilde-crueldade

pois justiccedila nem verdade guardastes sendo juizes Sou mandado por Satildeo Lourenccedilo queimado levaacute-los agrave minha casa onde seja confirmado vosso imperial estado em fogo que sempre abrasa Oh que tronos e que camas eu vos tenho preparadas nessas escuras moradas de vivas e eternas chamas de nunca ser apagadas

VALERIANO

Ai de mim

AIMBIREcirc

Vieste do Paraguai Que falais em Carijoacute Sei todas liacutenguas de cor Avanccedila aqui Saravaia Usa tu golpe maior

VALERIANO

Basta Que assim me assassinas natildeo tenho pecado nada Meu chefe eacute a presa acertada

SARAVAIA

Natildeo eacutes tu que me fascinas oacute presa bem cobiccedilada

184

DEacuteCIO

Oacute miseraacutevel de mim que nem basta ser tirano nem falar em castelhano Que eacute do mando em que me vi e o meu poder soberano

AIMBIREcirc

Jesus Deus grande e potente que tu traidor perseguiste te daraacute sorte mais triste entregando-te em meu dente a que malvado serviste Pois me honraste e sempre me contentaste ofendendo ao Deus eterno

Eacute justo pois que no inferno palaacutecio que tanto amaste natildeo sintas o mal do inverno Porque o oacutedio inveterado do teu duro coraccedilatildeo natildeo pode ser abrandado se natildeo for jaacute martelado com a aacutegua do Flegeton

DEacuteCIO

Olha que consolaccedilatildeo para quem se estaacute queimando Sumos deuses para quando adiais minha salvaccedilatildeo que vivo estou me abrasando Ai ai Que mortal desmaio Esculaacutepio natildeo me acodes Oh Juacutepiter porque dormes Que eacute do vosso raio Por que eacute que natildeo me socorres

AIMBIREcirc

Que dizeis De que mal voacutes padeceis Que pulso mais alterado Eacute grande dor de costado este mal que morreis Haveis de ser bem sangrado Haacute dias que esta sangria se guardava para voacutes

que sangraacuteveis noite e dia com dedicada porfia aos santos servos de Deus Muito desejo eu beber vosso sangue imperial Oh natildeo me leveis a mal que com isso quero ser homem de sangue real

DEacuteCIO

Que dizeis Que disparate e elegante desvario Joguem-me dentro de um rio antes que o fogo me mate oacute deuses em que confio Natildeo quereis socorrer-me ou natildeo podeis Oacute malditos fementidos

ingratos desconhecidos que pouco vos condoeis de quem fostes tatildeo servidos Se agora voar pudesse vos iria derrocar dos vossos tronos celestes feliz se a mim me coubesse no fogo vos projetar

AIMBIREcirc

Parece-me que eacute chegada a hora do frenesi e com chama redobrada a qual seraacute descuidada dos deuses a quem servis Satildeo armas dos audazes cavaleiros que usam palavroacuterio humano E por isso tatildeo ufano hoje vindes acolhecirc-los no romance castelhano

SARAVAIA

Assim eacute Pensava dar de reveacutes golpes de afiados accedilos mas enfim nossos balaccedilos se chocaram atraveacutes com bem poucos canhonaccedilos Mas que boas bofetadas lhes reservo para dar Os tristes sem descansar agrave forccedila de tais pauladas com catildees hatildeo de ladrar

186

VALERIANO

Que ferida Tira-me logo esta vida pois minha alta condiccedilatildeo contra justiccedila e razatildeo veio a ser tatildeo abatida que morro como ladratildeo

SARAVAIA

Natildeo eacute outro o galardatildeo que concedo aos meus criados senatildeo morrer enforcados e depois sem remissatildeo ao fogo ser condenados

DEacuteCIO

Essa eacute a pena redobrada que me causa maior dor que eu universal senhor morra morte desonrada na forca como traidor Ainda se fosse lutando dando golpes e reveses pernas e braccedilos cortando como fiz com os franceses acabaria triunfando

AIMBIREcirc

Parece que estais lembrando poderoso imperador quando com bravo furor matastes traiccedilatildeo armando Felipe vosso senhor Por certo que me alegrais e se cumpre meus anseios ante desabafos tais porque o fogo em que queimais provoca tais devaneios

187

DEacuteCIO

Bem entendo que este fogo em que me acendo merece-me a tirania pois com tatildeo feroz porfia aos cristatildeos martirizando pelo fogo os consumia Mas que em minha monarquia acabe com tal pregatildeo pois morrer como ladratildeo eacute muito triste agonia e dobrada confusatildeo

AIMBIREcirc

Como Pedis confissatildeo Sem asas quereis voar Ide se quereis achar aos vossos atos perdatildeo agrave deusa Pala rogar Ou a Nero esse cruel carniceiro do fiel povo cristatildeo Aqui estaacute Valeriano vosso leal companheiro buscai-o por sua matildeo

DEacuteCIO

Esses amargos chistes e agressotildees me acrescentam em paixotildees e mais dores com tatildeo profundos ardores como de ardentes ticcedilotildees E com isto crescem mais os fogos em que padeccedilo Acaba que me ofereccedilo em tuas matildeos Satanaacutes ao tormento que mereccedilo

188

AIMBIREcirc

Oh quanto vos agradeccedilo por esta boa vontade Eu com liberalidade quero dar-lhe bom refresco para vossa enfermidade Na cova onde o fogo se renova com ardores perenais os vossos males fatais aiacute teratildeo grande prova das agruras imortais

DEacuteCIO

Que fazer Valeriano bom amigo Testemunharaacutes comigo desta pena envolvido na cadeia de fogo deste castigo

VALERIANO

Em maacute hora Jaacute satildeo horas Vamos logo deste fogo ao outro fogo eternal laacute onde a chama imortal nunca nos daraacute sossego Suacutes asinha Vamos agrave nossa cozinha Saravaia

AIMBIREcirc

Aqui deles natildeo me afasto Nas brasas seratildeo bom pasto maldito quem nelas caia

DEacuteCIO

Aqui abrasado estou

189

Assa-me Lourenccedilo assado De soberano que sou vejo que Deus me marcou por ver seu santo vingado

AIMBIREcirc

Com efeito quiseste abrasar a jeito o virtuosos Satildeo Lourenccedilo Hoje te castigo e venccedilo e sobre as brasas te deito para morrer segundo penso (Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins e cada dois levam o seu)

Vinde aqui e aos malditos conduzi para em bom queimarem seus corpos sujos tostarem na festa em que os seduzi para cozidos bailarem

(Ficam ambos os democircnios no terreiros com as coroas dos imperadores na cabeccedila)

SARAVAIA

Sou o grande vencedor o que as maacutes cabeccedilas quebra sou um chefe de valor e hoje me decido por me chamar Cururupeba Como eles mato os que estatildeo em pecado e os arrasto em minhas chamas Velhos moccedilos jovens damas tenho sempre devorado De bom algoz tenho fama

QUARTO ATO Tendo o corpo de Satildeo Lourenccedilo amortalhado e posto na tumba entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus a encerrar a obra e no fim acompanham o santo agrave sepultura

190

ANJO

Vendo nosso Deus benigno vossa grande devoccedilatildeo que tendes e com razatildeo a Lourenccedilo o maacutertir digno de toda a veneraccedilatildeo determinam por seus rogos e martiacuterio singular a todos sempre ajudar para que escapeis dos fogos em que os maus se hatildeo de queimar Dois fogos trazia nalma com que as brasas resfriou a no fogo em que se assou com tatildeo gloriosa palma dos tiranos triunfou Um fogo foi o temor do bravo fogo infernal e como servo leal por honrar a seu Senhor fugiu da culpa mortal

Outro foi o Amor fervente de Jesus que tanto amava que muito mais se abrasava com esse fervor ardente que coo fogo em que se assava Estes o fizeram forte Com estes purificado como ouro refinado padeceu tatildeo crua morte por Jesus seu doce amado Estes vos manda o Senhor a ganhar vossa frieza para que vossa alma acesa de seu fogo gastador fique cheio de pureza Deixai-vos deles queimar como o maacutertir Satildeo Lourenccedilo e sereis um vivo incenso que sempre haveis de cheirar na corte de Deus imenso

TEMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Pecador sorves com grande sabor o pecado e natildeo ficas afogado com teus males E tuas chagas mortais natildeo sentes desventurado O inferno como seu fogo sempiterno Jaacute te espera se natildeo segues a bandeira

da cruz sobre a qual morreu Jesus para que tua morte morra Deus te envia esta mensagem com amor a mim que sou seu Temor me conveacutem declarar o que conteacutem para que temas ao Senhor

(Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Espantado estou de ver pecador teu vatildeo sossego Com tais males a fazer como vives sem temer aquele espantoso fogo Fogo que nunca descansa mas sempre provoca a dor e com seu bravo furor

dissipa toda a esperanccedila ao maldito pecador Pecador como te entregas tatildeo sem freio ao viacutecio extremo Dos viacutecios de que estaacutes cheios engolindo tatildeo agraves cegas a culpa com seu veneno

Veneno de maldiccedilatildeo tragas sem nenhum temor e sem sentir sua dor deleites da carnaccedilatildeo sorves com grande sabor Seraacute o sabor do pecado muito mais doce que o mel mas o inferno cruel depois te daraacute um bocado bem mais amargo que o fel Fel beberaacutes sem medida pecador desatinado tua alma em chamas ardida Esta seraacute a saiacuteda do deleite do pecado Do pecado que tu amas Lourenccedilo tanto escapou que mil penas suportou e queimado pelas chamas por natildeo pecar expirou Ele a morte natildeo temeu Tu natildeo temes o pecado no qual te tem enforcado Lucifer que te afogou

e natildeo ficas afogado Afogado pela matildeo do Diabo pereceu Deacutecio com Valeriano infiel cruel tirano no fogo que mereceu Tua feacute merece a vida mas com pecados mortais quase a tiveste perdida e teu Deus bem sem medida ofendeste com teus males Com teus males e pecados tua alma de Deus alheia da danaccedilatildeo na cadeia haacute de pagar com os danados a culpa que a incendeia Pena sem fim te daratildeo dentre os fogos infernais teus deleites sensuais Teus tormentos dobraratildeo e tuas chagas mortais Que mortais satildeo tuas feridas pecador Porque natildeo choras

Natildeo vecircs que nestas demoras estatildeo todas corrompidas a cada dia pioras Pioras e te confinas mas teu perigoso estado na pressa e grande cuidado com que ao fogo te destinas natildeo sentes desventurado Oh descuido intoleraacutevel de tua vida Tua alma estaacute confundida

no lodo e tu vais rindo de tudo natildeo sentes tua caiacuteda Oh traidor Que negas teu Criador Deus eterno que se fez menino terno por salvar-te E tu queres condenar-te e natildeo temes ao inferno

Ah insensiacutevel Natildeo calculas o terriacutevel espanto que causaraacute o juiz quando viraacute com carranca muito horriacutevel e agrave morte te entregaraacute

E tua alma seraacute sepultada em pleno inferno onde morte natildeo teraacute mas viva se queimaraacute com seu fogo sempre eterno

Oh perdido Ali seraacutes consumido sem nunca te consumir Teraacutes vida sem viver com choro e grande gemido teraacutes morte sem morrer Pranto seraacute teu sorrir sede sem fim te abeberra fome que em comer se gera teu sono nunca dormir tudo isto jaacute te espera Oh morfio Pois tu veras de continuo ao horrendo Lucifer sem nunca chegar a ver aquele molde divino de quem tiras todo o ser Acaba jaacute de temer a Deus que sempre te espera correndo por sua esteira pois natildeo lhes vai pertencer se natildeo lhe segues a bandeira Homem louco Se teu coraccedilatildeo jaacute toco mudar-se-atildeo alegrias em tristezas e agonias Olha que te falta pouco

para fenecer teus dias Natildeo peques mais contra Aquele que te ganhou vida e luz com seu martiacuterio cruel bebendo vinagre e fel no extremo lenho a cruz Oh malvado Ele foi crucificado sendo Deus por te salvar Pois que podes esperar se foste tu o culpado e natildeo cessas de pecar Tu o ofendes ele te ama Cegou-se por dar-te a luz Tu eacutes mau pisas a cruz sobre a qual morreu Jesus Homem cego porque natildeo comeccedilas logo a chorar por teu pecado E tomar por advogado a Lourenccedilo que no fogo por Jesus morreu queimado Teme a Deus juiz tremendo que em maacute hora te socorra em Jesus tatildeo soacute vivendo pois deu sua vida morrendo para que tua morte morra

AMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Ama a Deus que te criou homem de Deus muito amado Ama com todo cuidado a quem primeiro te amou Seu proacuteprio Filho entregou agrave morte por te salvar Que mais te podia dar

se tudo o que tem te dou Por mandado do Senhor te disse o que tens ouvido Abre todo teu sentido porque eu que sou seu Amor seja em ti bem imprimido (Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Todas as coisas criadas conhecem seu Criador Todas lhe guardam amor

pois nele satildeo conservadas cada qual em seu vigor Pois com tanta perfeiccedilatildeo

193

sua ciecircncia te formou homem capaz de razatildeo de todo o teu coraccedilatildeo ama a Deus que te criou Se amas a criatura por se parecer formosa ama a visatildeo graciosa desta mesma formosura por sobre todas as coisas Dessa divina lindeza deves ser enamorado Seja tua alma presa daquela suma beleza homem de Deus muito amado Aborrece todo o mal com despeito e com desdeacutem E pois que eacute racional abraccedila a Deus imortal todo sumo e uacutenico bem Este abismo de fartura

que nunca seraacute esgotado esta fonte viva e pura este rio de doccedilura ama com todo cuidado Antes que criasse nada jaacute a alma majestade te havia a vida gerado e tua alma abrasada com eterna caridade Por fazer-te todo seu com amor te cativou e pois que tudo te deu daacute tu todo o maior que eacute teu a quem primeiro te amou E deu-te alma imortal e digna de um Deus imenso para que fosses suspenso nele esse bem eternal que eacute sem fim e sem comeccedilo

Depois que em morte caiacuteste com vida te levantou Porque sair natildeo conseguiste da culpa em que te fundiste seu proacuteprio filho entregou Entregou-o por escravo deixou que fosse vendido para que tu redimido do poder do leatildeo bravo fosses sempre agradecido Para que natildeo morras morre com amor bem singular Pois quanto deves amar a Deus que entregar-se quer agrave morte por te salvar O Filho que o Padre deu a seu Pai te daacute por pai e sua graccedila te infundiu

e quando na cruz morreu deu-te por matildee sua Matildee Deu-te feacute com esperanccedila e a si mesmo por manjar para em si te transformar pela bem aventuranccedila Que mais te podia dar Em paga de tudo isto oh ditoso pecador pede apenas teu amor Despreza pois todo o resto por ganhar a tal Senhor Daacute tua vida pelos bens que Sua morte te ganhou Eacutes seu nada tens de teu Daacute-lhe tudo quanto tens pois tudo o que tem te deu

194

DESPEDIDA

Levantai os olhos ao ceacuteu meus irmatildeos Vereis a Lourenccedilo reinando com Deus por voacutes implorando junto ao rei dos ceacuteus que louvais seu nome aqui neste chatildeo Daqui por diante tende grande zelo que Deus seja sempre temido e amado e maacutertir tatildeo santo de todos honrado Terei seus favores e doce desvelo Pois que celebrai com tal devoccedilatildeo

seu claro martiacuterio tomai meu conselho sua vida e virtudes tende por espelho chamando-o sempre com grande afeiccedilatildeo Tereis por seus rogos o santo perdatildeo e sobre o inimigo perfeita vitoacuteria E depois da morte voacutes vereis na gloacuteria a cara divina com clara visatildeo

(LAUS DEO)

QUINTO ATO

Danccedila de doze meninos que se fez na procissatildeo de Satildeo Lourenccedilo

1ordm) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando Por teus rogos desejando Deus nos faccedila venturosos nosso coraccedilatildeo guardando

2ordm) Noacutes confiamos em ti Lourenccedilo santificado que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos viacutecios jaacute desligados nos pajeacutes natildeo crendo mais em suas danccedilas rituais nem seus maacutegicos cuidados

3ordm) Como tu que a confianccedila em Deus tatildeo bem resguardaste que o dom de Jesus nos baste pai da suprema esperanccedila

4ordm) Pleno do divino amor

195

foi teu coraccedilatildeo outrora Zela pois por noacutes agora Amemos nosso Criador pai nosso de cada hora

5ordm) Obedeceste ao Senhor cumprindo sua palavra Vem que nossa alma escrava de teu amor neste dia te imita em sabedoria

6ordm) Milagroso tu curaste teus filhos tatildeo santamente Suas almas estatildeo doentes deste mal que abominaste Vem curaacute-los novamente

7ordm) Fiel a Nosso Senhor a morte tu suportaste Que a forccedila disto nos baste para suportar a dor pelo mesmo Deus que amaste

8ordm) Pelo terriacutevel que eacutes Jaacute que os democircnios te temem nas ocas onde se escondem vem calcaacute-los sob os peacutes pra que as almas natildeo nos queimem

9ordm) Hereges que este indefeso corpo no teu assaram e a carne toda queimaram em grelhas de ferro aceso Choremos do alto desejo de Deus Padre contemplar Venha Ele neste ensejo nossas almas inflamar

10ordm) Os teus verdugos extremos treme algozes de Deus Vem leva-nos como teus que ao teu lado ficaremos assustando estes ateus

11ordm) Estes que te deram morte ardem no fogo infernal Tu na gloacuteria celestial

196

gozaraacutes divina sorte E contigo aprenderemos a amar a Deus no mais fundo do nosso ser e no mundo longa vida gozaremos

12ordm) Em tuas matildeos depositamos nosso destino tambeacutem Em teu amor confiamos

e uns aos outros nos amamos para todo o sempre Ameacutem

CAI O PANO

197

APEcircNDICE 2 - A MISSA E OS SIacuteMBOLOS CULTURAIS DE TRANSFORMACcedilAtildeO DO HOMEM

Partindo do princiacutepio de que a missa eacute um ritual miacutetico pertencente aos

preceitos da Igreja Catoacutelica desde os primoacuterdios do cristianismo e portanto

pertencente tambeacutem a Feacute natildeo poderia deixar de ser discutida neste trabalho pois

foi atraveacutes dela aleacutem dos sacramentos da Igreja que a religiatildeo em questatildeo se fixa

na mente miacutetica dos homens ateacute a data de hoje sob a forma de um ritual de

contato com a divindade

Justamente por ter sua origem em um mito talvez um dos maiores

mitos da atualidade eacute claro que nem a psicologia a sociologia a antropologia ou

a histoacuteria teria como dar conta de explicar esse grande misteacuterio da Igreja visto

que a feacute ultrapassa os domiacutenios dessas ciecircncias e possivelmente ateacute a filosofia e

da metafiacutesica mas podemos aqui estudar esses siacutembolos de transformaccedilatildeo do

ponto de vista fenomenoloacutegico e eacute o que faremos atraveacutes da visatildeo de Carl Gustav

Jung

Porque recebi do Senhor o que vos transmiti O Senhor

Jesus na noite em que foi entregue tomou o patildeo e depois de dar

graccedilas partiu-o e disse Isto eacute o meu corpo que se daacute por voacutes fazei

isto em memoacuteria de mim E do mesmo modo depois de cear tomou

198

o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o Novo Testamento do meu sangue

todas as vezes que o beberdes fazei-o em memoacuteria de mim Pois

todas as vezes que comerdes este patildeo e beberdes este caacutelice

anunciarei a morte do Senhor ateacute que Ele venha 145

Foi nessa Ceia que Cristo teria pronunciado as palavras da missa Eu

sou a vida verdadeira Permanecei em mim como eu [permaneccedilo] em voacutes eu sou

a videira voacutes sois os sarmentos146

Como a intenccedilatildeo eacute a de me limitar ao siacutembolo da transformaccedilatildeo na

missa natildeo tenho aqui a proposiccedilatildeo de explicar os aspectos de sua composiccedilatildeo

estrutural mas conforme Jung a missa eacute uma celebraccedilatildeo eucariacutestica muito bem

elaborada e com a seguinte estrutura

145 Citaccedilotildees que se seguem sobre a Biacuteblia foram tiradas do Novo Testamento traduzido pelo PeDr Frei Mateus Hoepers e publicado pela Vozes ( apud JUNG1985p2) 146 lat sartmentumi sarmento ramo ou vara de videira

199

Temos que iniciar essa explicaccedilatildeo e a citaccedilatildeo dos siacutembolos da missa

como uma das ferramentas de manutenccedilatildeo da feacute do sacrifiacutecio e do envolvimento

com o Deus e a comunidade

Quanto ao sacrifiacutecio o mito cristatildeo nos revela duas formas distintas de

representaccedilatildeo o deipnon e a thysia Deipnon traz o significado de ceia

propriamente dito definindo a ceia abenccediloada daqueles que passaram ou

participaram de algum sacrifiacutecio onde se entende que os deuses estejam

presentes Essa comida eacute abenccediloada pois o que passou por um sacrificium

tornou-se sagrado

Thysia por sua vez vem significar o entregar o oferecer o imolar e

tambeacutem o soprar com forccedila o que vem relacionar-se com o alimento usado nas

sociedades antigas e primitivas de enviar aos deuses a fumaccedila que sobe das

oferendas ateacute a morada dos deuses simbolizando o espiacuterito o pneuma como era

concebido nos primoacuterdios do cristianismo e mesmo na Idade Meacutedia

Graccedilas ao conceito de ceia para os cristatildeos a palavra corpo de

Cristo logo foi traduzida por carne

Principalmente para os sacerdotes esses conceitos inseridos nos

siacutembolos da missa levam um peso muito grande como nos mostra Hb 717 Tu

eacutes sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquizedeque Onde o

oferecimento do sacrifiacutecio perene e o sacerdoacutecio eterno constituem partes

integrantes e necessaacuterias do conceito de missa (JUNG1985 p3) As ideacuteias do

sacerdoacutecio eterno e do sacrifiacutecio estatildeo intimamente ligadas ao misteacuterio da missa e

com a transformaccedilatildeo das substacircncias da qual falaremos em seguida

200

O iniacutecio do rito da transformaccedilatildeo do indiviacuteduo cristatildeo quer a do

sacerdote quer a do ouvinte e assistente da missa inicia-se juntamente com o

ofertoacuterio momento em que se preparam as oferendas a Deus

O primeiro dos pontos eacute a oblaccedilatildeo do patildeo onde o sacerdote coloca a

hoacutestia na patena eleva-a em direccedilatildeo agrave cruz do altar faz o sinal da cruz e eleva a

hoacutestia o patildeo o corpo a carne de Cristo e a relaciona com seu sacrificium

atribuindo assim agrave hoacutestia a qualidade de coisa sagrada Ateacute entatildeo a hoacutestia era

apenas patildeo e considerada como corpus imperfectum

Isso tambeacutem ocorre com o vinho mesmo com sua natureza mais

espiritual tambeacutem eacute considerado corpus imperfectum ateacute que nessa mesma

preparaccedilatildeo ao vinho eacute misturada a aacutegua147

Satildeo Cipriano - bispo de Cartago

relaciona o vinho com Cristo e a

aacutegua com a comunidade que participa da missa parte de suma importacircncia de

todo o rito pois sem a comunidade para receber o rito ele natildeo pode existir148

Nesta parte especial da missa como o iniacutecio desse ritual do mito

cristatildeo os corpus imperctum estatildeo sendo transformados no corpus

glorificationis no corpo ressuscitado

147 Originariamente a mistura de aacutegua com vinho estava ligada ao antigo costume cultural de beber apenas vinho misturado com aacutegua Por isso um bebedor isto eacute um alcooacutelatra era chamado de acratopotes beberratildeo de vinho natildeo misturado (Jung 1985 p7-312) 148 Em Ap1715 se lecirc Aquae quas vidisti ubi meretrix sedet populi sunt et gentes et linguae acuteAs aacuteguas que vecircs sobre as quais a prostituta estaacute sentada satildeo os povos e as multidotildees as naccedilotildees e as liacutenguas Na alquimia meretrix prostituta eacute o nome da prima mateacuteria do corpus imperfectum Elevada a aacutegua a condiccedilatildeo de sagrada misturada ao vinho vem significar que somente uma comunidade perfeita pode se juntar a Cristo (idem)

201

O ponto seguinte do rito da missa o sacerdote mostrando agrave

comunidade eleva o caacutelice com a mistura jaacute preparada e invoca o Espiacuterito Santo

Veni espiritus sanctificator que eacute quem produz e transforma esse vinho em

sangue de Cristo perante toda uma plateacuteia que crecirc nessa transformaccedilatildeo

recebendo culturalmente mais informaccedilotildees sobre o mito que se refere a sua feacute

religiosa

A parte seguinte eacute a da incensaccedilatildeo das oferendas e do altar onde com

a fumaccedila do turiacutebulo oferece um sacrifico que eacute um resquiacutecio da thysia de que

falamos anteriormente no intuito de espiritualizar todos os objetos fiacutesicos do altar

e por estar enchendo o ar com perfume do pneuma espantar as eventuais

forccedilas demoniacuteacas que pudessem estar presentes elevando as oraccedilotildees a

Deus149

Em seguida vem a invocaccedilatildeo ou a epiclese onde atraceacutes do

Suspiece sancta Trinitas (Recebei oacute Trindade santa) satildeo iniciadas as oraccedilotildees

propiciatoacuterias em que se garante que as oferendas seratildeo aceitas por Deus A

certeza da aceitaccedilatildeo se prende a se crer que uma coisa chamada atraveacutes de seu

nome tem o poder de tornar presente o que se convoca Assim por meio do

Adesto adesto Jesu boneacute Pontifex in medio nostri sicut fuisti in medio

discopulorum tuorum (Vinde vinde oacute Jesus o Pontiacutefice misericordioso ficai

conosco como estiveste como os vossos disciacutepulos) atraveacutes do chamamento se

149 Eacute dito nesse instante da missa as palavras Dirigatur Domine oratio mea sicut incensum in conspectu tuo (Eleva-se Senhor a minha oraccedilatildeo como o incenso agrave Vossa presenccedila) e Accedat in nobis Dominus ignem sui amoris

(acenda ograve Senhor em noacutes o fogo de seu amor) (idem Jung-1985-p11-320)

202

obteacutem a certeza da presenccedila e da manifestaccedilatildeo do Senhor no momento que eacute

considerado a ponto alto da celebraccedilatildeo da missa

Desse ponto em diante segue a consagraccedilatildeo do patildeo e do caacutelice

momento em que se daacute a transubstanciaccedilatildeo ou a transformaccedilatildeo das substacircncias

do patildeo e do vinho em corpo e sangue do Senhor

Estamos aqui apenas relatando de forma didaacutetica os passos da

celebraccedilatildeo da missa portanto natildeo temos interesse de discutir esses passos

quanto a seu conteuacutedo e sim mais adiante analisarmos psicologicamente esses

siacutembolos No entanto apenas como curiosidade jaacute que vaacuterios termos foram

colocados em latim e posteriormente os traduzimos nos informa Jung (1985-p12)

as palavras ditas pelo sacerdote no momento da consagraccedilatildeo do patildeo e do vinho

natildeo devem ser traduzidas em liacutengua profana devendo ser ditas apenas e tatildeo

somente em latim por serem palavras consideradas sagradas mesmo que alguns

missais possam conter essa traduccedilatildeo dessa forma as citaremos no rodapeacute desta

paacutegina com o texto em latim obtida na fonte acima descrita150

Nesse ponto do ritual encontram-se devidamente consagrados e

purificados tanto o sacerdote como a comunidade as oferendas como o altar

totalmente preparados como uma unidade miacutestica para a epifania do Senhor isto

150 Consagraccedilatildeo do patildeo Qui pridie quam pateretur accepit panem in sanctas ac venerabiles manus suas et elevatis oculis in caelum ad Deum Patrem suum omnipotentem tibi gratias agens benedixit fregit deditque discipulis suis dicens Accipite et manducate ex hoc omnes Hoc est enim Corpus meum

Consagraccedilatildeo do caacutelice Simili modo postquam cenatum est accipiens et hunc praeclarum calicem in sancta ac venerabiles manus suas item tibi gratias agens benedixit deditque discipulis suis dicens Accipite et bibite ex eo omnes Hic est enim Calix Sanguinis mei novi et aeterni testamenti mysterium fidei qui pro vobis et pro multins effundetur in remissionem peccatorum Haec quosticumque faceritis in mei memoriam facietis

203

eacute o momento da manifestaccedilatildeo reveladora de Cristo de forma viva no Corpus

mysticum do sacrifiacutecio divino como se nesse momento se abrisse uma porta

onde do outro lado exista um espaccedilo liberto do tempo e do espaccedilo porta essa

aberta natildeo pelo sacerdote mas por Cristo como agens como agente dessa

transformaccedilatildeo

O sacerdote entatildeo levanta as substacircncias consagradas e as apresenta

agrave comunidade mostrando que o Homem-Deus tornou-se presente na hoacutestia

consagrada Pede entatildeo o sacerdote ao Senhor que receba a hoacutestia imaculada e

que abenccediloe a todos com sua graccedila Faz trecircs sinais da cruz com a hoacutestia sobre o

caacutelice pronunciando per ipsum et cum ipso et in ipso (Por Ele com Ele e Nele)

traccedilando outros trecircs sinais entre ele e o caacutelice para criar a relaccedilatildeo de identidade

entre a hoacutestia o caacutelice e o sacerdote para entatildeo poder incluir nas graccedilas a serem

recebidas a comunidade que aguarda ser livrada de todos os males passados

presentes e futuros Divide a hoacutestia em duas partes significando a morte de Cristo

glorificado do rex gloriae De uma das partes tira uma pequena partiacutecula que

seraacute colocada no vinho dentro do caacutelice durante a consignaacutetio e a commixtio

momento da mistura do patildeo com o vinho do corpo com o sangue onde satildeo ditas

as seguintes palavras Haec commixtrio et consecratio Corporis et Sanguinis

Domini nostri

Dessa forma sacerdote o corpo e o sangue do Senhor unidos agrave

comunidade fazem a unidade miacutetica da missa assim como o patildeo resulta de

muitos gratildeos o vinho de muitos bagos de uva assim tambeacutem o Corpus

204

mysticum a Igreja eacute constituiacutedo pela multidatildeo daqueles que crecircem151 e possuem

em si como visatildeo de mundo o mito cristatildeo

Eacute importante ressaltar aqui que natildeo procuro fazer nenhuma

interpretaccedilatildeo das partes que compotildeem a missa e sim com referecircncia ao mito

cristatildeo analisar psicologicamente esses siacutembolos que contribuem como

transmissatildeo cultural e como forma de propagaccedilatildeo universal do cristianismo

Vejamos o ato de pensar ou de crer expressam uma realidade

psicoloacutegica do indiviacuteduo que crecirc e nesse caso do mito e da crenccedila dos sacrifiacutecios

da missa essa realidade estaacute baseada nos enunciados do rito e da feacute explicados

metafisicamente o que pode ser indicado que exceto pela maneira psiacutequica de

manifestar-se a crenccedila escapa ao entendimento do intelecto e por esse motivo

natildeo pode ser posto em julgamento mas eacute certo que o pressuposto da feacute em si

conteacutem a realidade de um fato psiacutequico152

Cada passo da missa possui uma composiccedilatildeo de dois aspectos claros

um divino com a accedilatildeo do proacuteprio Deus e outro humano num significado

meramente instrumental

O lado humano oferece dons a Deus sobre o altar com a doaccedilatildeo

completa do sacerdote e da comunidade cristatilde celebrando a uacuteltima ceia de Jesus

com seus disciacutepulos mas celebra tambeacutem uma accedilatildeo sagrada onde Cristo se

encarna torna-se homem sub-espeacutecie das substacircncias oferecidas sofre e eacute

151 Jung-1985-p20-338 152 Jung-1985-p46-377

205

morto jaz no sepulcro e por fim quebra o poder do inferno ressuscitando

glorioso153 Embora esse acontecimento seja divino surge o cristatildeo perante o

ritual tal qual como na participaccedilatildeo divina agindo como agens

e patiens na

sua limitada capacidade

Mas no sentido divino onde o momento eacute entendido como uma accedilatildeo

direta de Deus esse mesmo homem se coloca apenas e tatildeo somente como um

instrumento agrave disposiccedilatildeo de um agente eterno que transcende a consciecircncia

humana

Assim como o homem eacute um simples instrumento

(voluntaacuterio) no acontecimento da missa tambeacutem eacute incapaz de

compreender o que quer que seja a respeito da matildeo que se utiliza

dele O martelo natildeo conteacutem em si proacuteprio aquilo que o faz bater Eacute um

ser situado fora dele autocircnomo que dele se apodera e o potildee em

movimento 154

Essa relaccedilatildeo do homem com o divino da oferenda com o recebimento

da graccedila possui a mesma funccedilatildeo psicoloacutegica e portanto cultural da magia

propiciatoacuteria que se encontra em todos os sacrifiacutecios de tribos e sociedades ditas

primitivas onde o humano oferece para receber em troca a matildeo da divindade

colocada sobre seus ombros quer para proteccedilatildeo quer para resolver suas afliccedilotildees

desejos e impossibilidades

153 Jung-1985-p47-379 154 Jung-1985-p49-379

206

Essa magia realizada pelas tribos traacutes consigo o sangue e a carne

verdadeiros sejam de animais ou de pessoas o que apavora me faz com que os

olhos humanos de outra cultura rechacem o acontecimento

Acontece poreacutem que o mito cristatildeo se utiliza nessa magia

propiciatoacuteria de siacutembolos que representam o melhor produto cultural desde muito

tempo que simbolizam a vida e a pessoa humana a produccedilatildeo o trabalho e as

virtudes

O patildeo e o vinho natildeo soacute constituem o alimento comum de grande parte

da humanidade como tambeacutem podem ser encontrados em toda a face da

Terra155

O patildeo e o vinho como importantes siacutembolos da civilizaccedilatildeo expressam o

esforccedilo humano em plantar e colher e ainda produzir com aquilo que foi colhido

Os gratildeos de trigo e os bagos de uva representam a condiccedilatildeo psicoloacutegica que faz

surgir as virtudes do homem e que o torna capaz de produzir cultura

Plantar e colher possui em si o trabalho durante o crescimento das

plantas por ele cultivadas crescimento esse que se desenvolve de acordo com

leis divinas por serem elas leis internas que atual dentro delas como um agens

ou uma forccedila que chegou mesmo a ser comparada ao proacuteprio alento ou espiacuterito

vital156 um espiacuterito que morre e ressuscita a cada estaccedilatildeo do ano tal qual a

manifestaccedilatildeo do manaacute mas que necessita da participaccedilatildeo do homem e de um

155 KRAMP Joseph 1924 Apud Jung-1985-p51-381 156 Jung-1985-p53-385

207

desempenho psicoloacutegico com relaccedilatildeo ao esforccedilo agrave aplicaccedilatildeo agrave paciecircncia e ao

devotamento

Tomar do patildeo e do vinho consagraacute-los e oferececirc-los a Deus queiramos

ou natildeo trata-se de um do ut des no entanto eacute uma forma de doaccedilatildeo em que o

humano se entrega de tal forma a essa oferenda que daacute o que foi entregue como

pedido como um sacrifiacutecio pois caso natildeo receba em troca a graccedila pedida

continua a acreditar que ao menos no reino dos ceacuteus receberaacute tal graccedila e por isso

se entrega o que faz com que o homem possa buscar com esse ritual sua

evoluccedilatildeo do eu conforme crecirc sua individuaccedilatildeo seu si mesmo O eu estaacute pra o

si mesmo assim como o patiens estaacute pra o agens porque as disposiccedilotildees que

emanam do si mesmo satildeo bastante amplas e por isso superiores ao euo si

mesmo eacute o existente a priori do qual proveacutem o euNatildeo sou eu que me crio mas

sou eu que aconteccedilo a mim mesmo 157

Essa conclusatildeo vem de encontro com o entendimento da psicologia sobre

o fenocircmeno religioso e sobre a feacute e Jung como bom exemplo dessa conclusatildeo

cita que o fundador da Companhia de Jesus Inaacutecio de Loyola colocou seu homo

creatus est como fundamentum de seus exerciacutecios espirituais

O Grande Si Mesmo para o cristatildeo eacute o proacuteprio Cristo o homem primordial

o Adam secundus o qual tentar entender fora do mito seria como

psicologizar158 de forma mal sucedida tentando destruir o misteacuterio do rito miacutetico

157 Jung-1985-p59-391 158 como uso pejorativo fazer especulaccedilotildees de cunho psicoloacutegico sem base cientiacutefica

208

APEcircNDICE 3 O MITO DE CRISTO

O drama da vida arquetiacutepica de Cristo descreve em

imagens simboacutelicas os eventos da vida consciente

assim como da

vida que transcende a consciecircncia

de um homem que foi

transformado pelo seu destino superior159

A obra de Jung eacute extremamente vasta com relaccedilatildeo ao estudo das

religiotildees tanta das religiotildees e seitas primitivas como do cristianismo do

protestantismo das religiotildees orientais poreacutem deu ecircnfase principalmente aos

estudos com relaccedilatildeo ao mito cristatildeo e suas caracteriacutesticas

Um dos pontos mais importantes de sua obra sobre o assunto eacute a visatildeo

que apresenta sobre a vida de Cristo o que nos chamou especial atenccedilatildeo para

escrevermos esta parte da pesquisa

Jung nos coloca que a vida de Cristo representa para nossa cultura o

processo de individuaccedilatildeo que pode significar para um indiviacuteduo a salvaccedilatildeo ou a

trageacutedia e quando esse indiviacuteduo eacute parte de uma igreja ou um credo religioso ele

159 Jung A psycological approach to the trynity Psychology and Religion in Edinger1988

209

eacute poupado dos perigos da vida em sua experiecircncia direta pois estaraacute protegido

pelo mito cristatildeo

Tal qual no mito do heroacutei das mil e uma noites ou outros contos do

oriente Cristo passa por uma saga bem definida como o nascimento do heroacutei a

missatildeo avisada a fuga e a negaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo o retorno a realizaccedilatildeo o triunfo

e o precircmio final

Como diz Campbell160 citando uma velha sabedoria romana Os fados

guiam aquele que assim o deseje aquele que natildeo o deseje eles arrastam

O mesmo ocorreu com Cristo foi arrastado por seus fados conforme

podemos ver pois O Filho preexistente e uacutenico de Deus esvazia-se de sua

divindade e se encarna como homem por intermeacutedio do Espiacuterito Santo que

impregna a Virgem Maria Ele nasce num ambiente humilde cercado de perigos

iniciais Quando alcanccedila a idade adulta submete-se ao batismo de Joatildeo Batista e

testemunha a descida do Espiacuterito Santo que indica sua vocaccedilatildeo Ele sobrevive agrave

tentaccedilatildeo do Democircnio e leva a bom termo seu ministeacuterio que proclama a

existecircncia de um Deus benevolente e amoroso Apoacutes passar pela agonia da

incerteza aceita o destino que lhe cabe e deixa-se prender julgar flagelar

escarnecer e crucificar Apoacutes passar trecircs dias no tuacutemulo de acordo com vaacuterias

testemunhas eacute ressuscitado Durante quarenta dias caminha e fala com seus

160 CAMPBELL 1990 pintroduccedilatildeo X

210

disciacutepulos e em seguida sob aos ceacuteus Dez dias depois no Pentecostes o

Espiacuterito Santo o Paraacuteclito prometido desce 161

Para explicar essa sequumlecircncia de fatos Jung nos apresenta o seguinte

graacutefico

A sequumlecircncia de situaccedilotildees passadas por Cristo e que constitui o mito

cristatildeo se repete em forma circular iniciando e encerrando com a mesma

161 EDINGER 1988 p16

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

211

situaccedilatildeo onde o Pentecostes eacute uma segunda Anunciaccedilatildeo pois na primeira nasce

Cristo e na segunda nasce a Igreja

Para o homem miacutetico engajado nesse ciacuterculo essa eacute a descriccedilatildeo do

processo por onde o ego do homem atinge sua consciecircncia pois descreve o que

correu com Deus feito homem e por consequumlecircncia descreve a transformaccedilatildeo de

Deus Assim por meio desse processo mais uma vez o Espiacuterito Santo desce a

terra natildeo para promover uma imitaccedilatildeo de Cristo Homem-Deus feita pelo homem

mas para promover a cristificaccedilatildeo de muitos 162

Vamos iniciar entatildeo pela Anunciaccedilatildeo

26 Ora no sexto mecircs (da gravidez de Isabel) foi o anjo

Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileacuteia chamada Nazareacute

27a uma virgem desposada com um varatildeo cujo nome era Joseacute da

casa de Davi e o nome da virgem era Maria

28 E entrando o anjo onde ela estava disse Salve

agraciada o Senhor eacute contigo

29 Ela poreacutem ao ouvir estas palavras turbou-se muito e

pocircs-se a pensar que saudaccedilatildeo seria essa

30 Disse-lhe entatildeo o anjo Natildeo temas Maria pois achaste

graccedila diante de Deus

31 Eis que conceberaacutes e daraacutes agrave luz um filho ao qual

poraacutes o nome de Jesus

32 Este seraacute grande e seraacute chamado filho do Altiacutessimo o

Senhor Deus lhe daraacute o trono de Davi seu pai

33 e reinaraacute eternamente sobre a casa de Jacoacute e o seu

reino natildeo teraacute fim

162 JUNG 1990 p113 par 758

212

34 Entatildeo Maria perguntou ao anjo Como se faraacute isso uma

vez que natildeo conheccedilo varatildeo

35 Respondeu-lhe o anjo Viraacute sobre ti o Espiacuterito Santo

e o poder do Altiacutessimo te cobriraacute com a sua sombra por isso o

que haacute de nascer seraacute chamado santo Filho de Deus

36 Eis que tambeacutem Isabel tua parenta concebeu um filho

em sua velhice e eacute este o sexto mecircs para aquela que era chamada

esteacuteril37 porque para Deus nada seraacute impossiacutevel

38 Disse entatildeo Maria Eis aqui a serva do Senhor cumpra-

se em mim segundo a tua palavra E o anjo ausentou-se dela

O primeiro ponto a que dei importacircncia estaacute em grifo no texto biacuteblico

onde a expressatildeo te cobriraacute com a sua sombra 163 se refere no Antigo

Testamento em vaacuterias passagens agraves manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de Iahweh o

que mostra aqui o lado sombrio do misteacuterio sagrado do momento em que Deus

atraveacutes do Espiacuterito Santo cobre com uma nuvem o momento em que a

fecundaccedilatildeo do Senhor ocorre isto eacute uma gravidez ilegiacutetima num tempo em que

cometer adulteacuterio era passiacutevel de ser punida com a morte no entanto a obediecircncia

a Deus transforma Maria em uma mulher cheia de graccedila pois carrega em seu

ventre o Homem-Deus

Muitas vezes a Anunciaccedilatildeo coberta pela sombra e a obediecircncia de

Maria foi contrastada agrave desobediecircncia de Eva que culminou com a expulsatildeo do

primeiro casal do paraiacuteso Paulo falando aos Corintos (1Cor 1522) estabelece

esse viacutenculo ao dizer E assim como em Adatildeo morrem todos assim tambeacutem

todos seratildeo vivificados em Cristo

163 te cobriraacute com a sua sombra (episkiaz ) onde skia traduz sombra escuridatildeo EDINGER 1988 p22

213

Essa comparaccedilatildeo surge tambeacutem em um texto apoacutecrifo Protoevangelho

de Tiago164 que ao ouvir falar da gravidez de Maria Joseacute exclama

Quem trouxe esse mal agrave minha casa e a conspurcou (a

virgem) Teraacute a histoacuteria (de Adatildeo) se repetido comigo

Onde se encontra a diferenccedila principal Eacute que enquanto Eva se

submete e obedece agrave serpente Maria se coloca como serva do Senhor e diz Eis

aqui a serva do Senhor cumpra-se em mim segundo a tua palavra o que em

termos da visatildeo miacutetica do significado psicoloacutegico retrata que Maria aceita por sua

alma o encontro como o numinosum165 e como consequumlecircncia o encontro do

arqueacutetipo do mito com a individuaccedilatildeo do homem

Outro ponto a ser considerado como importante siacutembolo formador do

mito cristatildeo eacute a virgindade de Maria que tal qual as Virgens Vestais eram guardiatildes

da chama sagrada Essa relaccedilatildeo com a virgindade parece ser importante como

energia de transmutaccedilatildeo do fogo sagrado pois como em muitas culturas as

virgens sempre possuem uma relaccedilatildeo com o numinoso o que significa ser um

forte siacutembolo arquetiacutepico formador do mito Edinger (1988 p28) diz O ego virgem

tem suficiente consciecircncia para relacionar-se com as energias transpessoais sem

identificar-se com elas

164 EDINGER1988p25 165 Numinosum- numinoso adjetivo - influenciado inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade

214

Seguindo adiante no ciacuterculo do mito de Cristo encontramos o segundo

ponto que se refere agrave natividade

1 Naqueles dias saiu um decreto da parte de Ceacutesar

Augusto para que todo o mundo fosse recenseado

2 Este primeiro recenseamento foi feito quando Quiriacutenio

era governador da Siacuteria

3 E todos iam alistar-se cada um agrave sua proacutepria cidade

4 Subiu tambeacutem Joseacute da Galileacuteia da cidade de Nazareacute agrave

cidade de Davi chamada Beleacutem porque era da casa e famiacutelia de

Davi5 a fim de alistar-se com Maria sua esposa que estava graacutevida

6 Enquanto estavam ali chegou o tempo em que ela havia

de dar agrave luz 7 e teve a seu filho primogecircnito envolveu-o em faixas e o

deitou em uma manjedoura porque natildeo havia lugar para eles na

estalagem

Este eacute o momento em que no mito do heroacutei se iniciam os perigos onde

enquanto se registrava nos Ceacuteus o nascimento de uma crianccedila divina se

recenseava na Terra e se registrava as pessoas nascidas pois naquele momento

histoacuterico e cultural era de suma importacircncia ter o nome escrito e registrado Cristo

disse mais adiante a seus disciacutepulos (Lc 1020) deveis alegrar-vos de que os

vossos nomes estejam escritos no ceacuteu

Em Hebreus (1223) agrave universal assembleacuteia eacute a igreja dos primogecircnitos

inscritos nos ceacuteus e Deus o juiz de todos e aos espiacuteritos dos justos

aperfeiccediloados

215

Mas tambeacutem eacute importante perceber que culturalmente os primogecircnitos

(pr totokos ou primogenitus)166 eram considerados especiais natildeo soacute para os

homens daquela eacutepoca mas tambeacutem para Iahveh vejamos Santifica-me todo

primogecircnito todo o que abrir o uacutetero de sua matildee entre os filhos de Israel assim

de homens como de animais porque meu eacute (Ex132)

Jesus foi o primogecircnito Primogecircnito entre muitos irmatildeos(Rm 829) que

erigiraacute uma igreja dos primogecircnitos inscritos nos ceacuteus (Hb1223)

Novamente a cultura como expressatildeo de uma eacutepoca de um povo gera

o poder criador do mito O heroacutei aqui denominado Jesus Cristo nasce como

primogecircnito e como Salvador Universal

Vamos entatildeo relembrar a saga de um heroacutei miacutetico nas palavras de

Jung167

Este eacute o motivo pelo qual o nascimento de Cristo foi

caracterizado pelas manifestaccedilotildees que acompanham o nascimento do

heroacutei quais sejam o anuacutencio preacutevio deste nascimento a geraccedilatildeo no

seio de uma virgem a coincidecircncia com a triacuteplice coniunctio magna

(juacutepiter marte e saturno) no signo de Pisces que introduziu

precisamente naquela eacutepoca o novo eon ligado ao nascimento de um

rei a perseguiccedilatildeo ao receacutem-nascido sua fuga e ocultaccedilatildeo a

modeacutestia de seu nascimento etc Pode-se ver tambeacutem o tema do

crescimento do heroacutei em sabedoria demonstrada pelo jovem de doze

anos no templo e quanto ao tema da ruptura com a matildee haacute tambeacutem

alguns exemplos

166 o mais velho o primeiro filho homem do homem 167 JUNG 1990

Resposta agrave Jocirc p49-par 644

216

A terceira situaccedilatildeo do nosso ciacuterculo do mito de cristo eacute a Fuga para o

Egito onde o nascimento do heroacutei ou da crianccedila divina como jaacute dito

anteriormente se faz acompanhar costumeiramente de ameaccedilas com relaccedilatildeo a

sua vida o que mais uma vez se confirma Vejamos

13 E havendo eles se retirado eis que um anjo do Senhor

apareceu a Joseacute em sonho dizendo Levanta-te toma o menino e sua

matildee foge para o Egito e ali fica ateacute que eu te fale porque Herodes

haacute de procurar o menino para o matar

14 Levantou-se pois tomou de noite o menino e sua matildee

e partiu para o Egito

15 e laacute ficou ateacute a morte de Herodes para que se

cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta Do Egito

chamei o meu Filho

16 Entatildeo Herodes vendo que fora iludido pelos magos

irou-se grandemente e mandou matar todos os meninos de dois anos

para baixo que havia em Beleacutem e em todos os seus arredores

segundo o tempo que com precisatildeo inquirira dos magos

17 Cumpriu-se entatildeo o que fora dito pelo profeta Jeremias

18 Em Ramaacute se ouviu uma voz lamentaccedilatildeo e grande

pranto Raquel chorando os seus filhos e natildeo querendo ser

consolada porque eles jaacute natildeo existem(Mt 213-18)

A autoridade maior o heroacutei o poder gerador do mito a crianccedila divina

cumpre as profecias pois em Oseacuteias (111) se diz Quando Israel era menino eu o

amei e do Egito chamei a meu filho e no antigo testamento a naccedilatildeo de Israel eacute o

217

filho de Iahweh mostrando assim que Cristo eacute a proacutepria substituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

Israel

Novamente a expressatildeo cultural gera o mito como forma de seguir

explicando o inexplicaacutevel

Na quarta situaccedilatildeo do ciacuterculo do mito identifica-se o Batismo onde

Jesus sai da Galileacuteia para se encontrar com Joatildeo e ser batizado por ele e que

depois de batizado os ceacuteus se abrem uma pomba desce dos ceacuteus e uma voz do

ceacuteu lhes diz Este eacute o meu filho amado em quem me comprazo (Mt 313-17)

Para a Igreja o sacramento do batismo vem significar a morte da antiga

vida da carne e o renascimento da vida eterna em Cristo

O Espiacuterito Santo que desce nas asas de uma pomba branca o fogo

sobre o rio Jordatildeo e a luz vida do ceacuteu e que se abre sobre Cristo e Joatildeo Batista a

purificaccedilatildeo atraveacutes da aacutegua e a voz sugerem que o proacuteprio Senhor se fez batizar

e o homem miacutetico sabe que com esse evento o que habitava de forma demoniacuteaca

no inconsciente foi transformado em terreno sagrado e na morada do numinoso

O homem miacutetico se encontra com seu destino com sua identidade e tambeacutem

pode se considerar como o Filho de Deus um eleito que teraacute seu nome inscrito

nos ceacuteus

Em seguida ocorre a entrada triunfal de Jesus em Jerusaleacutem

1 Quando se aproximaram de Jerusaleacutem e chegaram a

Betfageacute ao Monte das Oliveiras enviou Jesus dois disciacutepulos

dizendo-lhes

218

2 Ide agrave aldeia que estaacute defronte de voacutes e logo encontrareis

uma jumenta presa e um jumentinho com ela desprendei-a e trazei-

mos

3 E se algueacutem vos disser alguma coisa respondei O

Senhor precisa deles e logo os enviaraacute

4 Ora isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito

pelo profeta

5 Dizei agrave filha de Siatildeo Eis que aiacute te vem o teu Rei manso

e montado em um jumento em um jumentinho cria de animal de

carga

6 Indo pois os disciacutepulos e fazendo como Jesus lhes

ordenara

7 trouxeram a jumenta e o jumentinho e sobre eles

puseram os seus mantos e Jesus montou

8 E a maior parte da multidatildeo estendeu os seus mantos

pelo caminho e outros cortavam ramos de aacutervores e os espalhavam

pelo caminho

9 E as multidotildees tanto as que o precediam como as que o

seguiam clamavam dizendo Hosana ao Filho de Davi bendito o que

vem em nome do Senhor Hosana nas alturas

10 Ao entrar ele em Jerusaleacutem agitou-se a cidade toda e

perguntava Quem eacute este

11 E as multidotildees respondiam Este eacute o profeta Jesus de

Nazareacute da Galileacuteia (Mt 21 1-9)

Eacute permitido por Cristo que o aclamem rei Parece que nesse momento

a negaccedilatildeo de seu destino surge justamente quando deixa a humildade e

sucumbe agrave tentaccedilatildeo do poder rapidamente se enche de fuacuteria e expulsa os

vendilhotildees do templo de Deus e amaldiccediloa uma figueira que natildeo lhe fornecia

frutos Como nos propotildee Edinger168 parece neste momento que Cristo pela forma

168 EDINGER1988 p60

219

que entra em Jerusaleacutem identifica a si mesmo como o rei messiacircnico profetizado

em Zc 99

9 Alegra-te muito oacute filha de Siatildeo exulta oacute filha de

Jerusaleacutem eis que vem a ti o teu rei ele eacute justo e traz a salvaccedilatildeo ele eacute

humilde e vem montado sobre um jumento sobre um jumentinho filho de

jumenta

O mito do heroacutei novamente se assemelha ao mito de Cristo pois natildeo haacute

como o heroacutei aceitar seu destino e desenvolver-se sem que antes seu ego

sucumba ao erro necessaacuterio (Felix culpa) pois de acordo com Jung169 o

egocentrismo eacute um atributo necessaacuterio da consciecircncia bem como seu pecado

especiacutefico

Mas continuando em nosso caminho da individuaccedilatildeo de Cristo

encontramos a Uacuteltima Ceia parte que por achar de grande importacircncia para a

construccedilatildeo do mito cristatildeo dedico mais adiante um espaccedilo significativo onde

coloco ao lado da formaccedilatildeo do mito os siacutembolos culturais da missa na

transformaccedilatildeo do homem cristatildeo Eacute a Uacuteltima Ceia a Santa Ceia a primeira missa

realizada no mito cristatildeo o rito central da Igreja Catoacutelica

26 Enquanto comiam Jesus tomou o patildeo e abenccediloando-

o o partiu e o deu aos disciacutepulos dizendo Tomai comei isto eacute o meu

corpo

169 apud EDIGER 1988p61 e JUNG Mysterium Coniunctionis par 364

220

27 E tomando um caacutelice rendeu graccedilas e deu-lho

dizendo Bebei dele todos

28 pois isto eacute o meu sangue o sangue do pacto o qual eacute

derramado por muitos para remissatildeo dos pecados (Mt 26 26-28)

55 Porque a minha carne verdadeiramente eacute comida e o

meu sangue verdadeiramente eacute bebida(Jo 655)

Eacute neste ponto que surge o primeiro sacrifiacutecio de Cristo pois oferece seu

corpo e seu sangue para a alimentaccedilatildeo dos que nele crecircem provando isso mais

adiante quando se deixa prender ser julgado flagelado e crucificado entregando

novamente seu corpo e seu sangue para salvaccedilatildeo de todos que aceitassem viver

esse mito O alimento dado aos disciacutepulos vem representar a natureza paradoxal

do siacutembolo da Eucaristia170 De um lado fornece uma conexatildeo como poder

gerador do mito e do outro a prima mateacuteria que deve ser humanizada e

transformada pelos esforccedilos do ego171 para que o homem possa se transformar e

receber em si o divino o numinoso

Mais adiante Cristo vai ao Gethsemani onde fica clara a aceitaccedilatildeo da

missatildeo de ser o Filho de Deus uma missatildeo de sofrimento e sangue que caminha

pelo ciacuterculo do mito de Cristo atraveacutes dos pontos da Prisatildeo e Julgamento onde

mesmo que natildeo aceitasse ser o Rei dos Judeus dizendo natildeo ser deste mundo

seu reino ainda assim era um reino da Flagelaccedilatildeo e escaacuternio da crucificaccedilatildeo o

170 EDINGER1988 p69 171 idem

221

foco principal do mito cristatildeo em relaccedilatildeo agrave contemplaccedilatildeo do sofrimento e da

entrega do destino a Deus

A crucificaccedilatildeo pode equivaler ao fracasso do heroacutei em sua luta pois ao

dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonastes poderia estar revendo

que sua vida vivida de profunda convicccedilatildeo tinha sido uma terriacutevel ilusatildeo172

Vem a lamentaccedilatildeo e o sepultamento equivalendo agrave descida de Cristo

aos infernos e ao limbo amparado pela Pietaacute sobre o corpo morto do filho

Mas no primeiro dia da semana

1 Mas jaacute no primeiro dia da semana bem de madrugada

foram elas ao sepulcro levando as especiarias que tinham preparado

2 E acharam a pedra revolvida do sepulcro

3 Entrando poreacutem natildeo acharam o corpo do Senhor Jesus

4 E estando elas perplexas a esse respeito eis que lhes

apareceram dois varotildees em vestes resplandecentes

5 e ficando elas atemorizadas e abaixando o rosto para o

chatildeo eles lhes disseram Por que buscais entre os mortos aquele que

vive

6 Ele natildeo estaacute aqui mas ressurgiu Lembrai-vos de como

vos falou estando ainda na Galileacuteia(Lc 24 1-6)

Mas depois da Ressurreiccedilatildeo mesmo com diversas evidecircncias de seu

aparecimento como em Joatildeo 2011-17 como em Lucas e Mateus seus disciacutepulos

natildeo o reconheceram de imediato pois atingindo o Self o Si-mesmo a evoluccedilatildeo

do homem miacutetico ele se transforma de tal ordem que natildeo poderaacute ser reconhecido

172 ideacuteia expressada por Jung durante entrevistas CGJung Entrevistas e Encontrosp103- apud EDINGER 1988 p120

222

mesmo pelos amigos mais iacutentimos pois atingiria o contato pleno com o

numinosum

35Mas algueacutem diraacute Como ressuscitam os mortos e com

que qualidade de corpo vecircm

36 Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se

primeiro natildeo morrer

37 E quando semeias natildeo semeias o corpo que haacute de

nascer mas o simples gratildeo como o de trigo ou o de outra qualquer

semente

38 Mas Deus lhe daacute um corpo como lhe aprouve e a cada

uma das sementes um corpo proacuteprio

39 Nem toda carne eacute uma mesma carne mas uma eacute a

carne dos homens outra a carne dos animais outra a das aves e

outra a dos peixes

40 Tambeacutem haacute corpos celestes e corpos terrestres mas

uma eacute a gloacuteria dos celestes e outra a dos terrestres

41 Uma eacute a gloacuteria do sol outra a gloacuteria da lua e outra a

gloacuteria das estrelas porque uma estrela difere em gloacuteria de outra

estrela

42 Assim tambeacutem eacute a ressurreiccedilatildeo eacute ressuscitado em

incorrupccedilatildeo

43 Semeia-se em ignomiacutenia eacute ressuscitado em gloacuteria

Semeia-se em fraqueza eacute ressuscitado em poder

44 Semeia-se corpo animal eacute ressuscitado corpo

espiritual Se haacute corpo animal haacute tambeacutem corpo espiritual

45 Assim tambeacutem estaacute escrito O primeiro homem Adatildeo

tornou-se alma vivente o uacuteltimo Adatildeo espiacuterito vivificante

46 Mas natildeo eacute primeiro o espiritual senatildeo o animal depois

o espiritual

47 O primeiro homem sendo da terra eacute terreno o segundo

homem eacute do ceacuteu

223

48 Qual o terreno tais tambeacutem os terrenos e qual o

celestial tais tambeacutem os celestiais

49 E assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestial

50 Mas digo isto irmatildeos que carne e sangue natildeo podem

herdar o reino de Deus nem a corrupccedilatildeo herda a incorrupccedilatildeo

51 Eis aqui vos digo um misteacuterio Nem todos dormiremos

mas todos seremos transformados

52 num momento num abrir e fechar de olhos ao som da

uacuteltima trombeta porque a trombeta soaraacute e os mortos seratildeo

ressuscitados incorruptiacuteveis e noacutes seremos transformados (1 Cor

35-52)

O Corpo Celestial que Paulo cita em 1 Cor15 35-52 equivale a dizer

que o homem miacutetico com seu corpo em ressurreiccedilatildeo em Cristo estaacute em contato

direto com o arqueacutetipo Cristatildeo e com o proacuteprio Deus pois a morte e a

ressurreiccedilatildeo de Cristo formam um arqueacutetipo que vive natildeo apenas na psique

individual mas tambeacutem na coletiva 173

Com a Ascensatildeo onde Cristo diz se preparar para a descida sob a

forma do Espiacuterito Santo no Pentecostes Deus que se esvaziou de sua divindade e

desceu a Terra como espiacuterito humano sobe novamente e retorna ao ceacuteu em

ascensatildeo para depois retornar jaacute reconhecido como Deus sob a forma do

Espiacuterito Santo

173 idem

224

Mostra o mito Cristatildeo que natildeo somos seres humanos passando por

uma vida espiritual na Terra mas seres espirituais que passamos tal qual Cristo

por uma experiecircncia humana

8 Mas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito

Santo e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda

a Judeacuteia e Samaacuteria e ateacute os confins da terra

9 Tendo ele dito estas coisas foi levado para cima

enquanto eles olhavam e uma nuvem o recebeu ocultando-o a seus

olhos

10 Estando eles com os olhos fitos no ceacuteu enquanto ele

subia eis que junto deles apareceram dois varotildees vestidos de branco

11 os quais lhes disseram Varotildees galileus por que ficais

aiacute olhando para o ceacuteu Esse Jesus que dentre voacutes foi elevado para o

ceacuteu haacute de vir assim como para o ceacuteu o vistes ir (At 1 8-11)

O homem na visatildeo junguiana possui um Ego174 que se contrapotildee

constantemente ao Si-mesmo (Self) como sendo o Ego o terreno e o Si-mesmo o

celestial onde o Si-mesmo eacute a entidade inconsciente que desenvolve o ego

dizendo eu natildeo me crio a mim mesmo antes eu me aconteccedilo a mim mesmo

No ser humano sempre existiraacute a supremacia do Si-mesmo em

simultaneidade com a liberdade de accedilatildeo do Ego assim como no mundo sempre

haveraacute para o homem miacutetico a liberdade de accedilatildeo ou livre arbiacutetrio do corpo terreno

na relaccedilatildeo direta da supremacia do corpo espitirual O Ego estaacute para o Si-mesmo

174 Ego e Si-mesmo (self) pode ser visto em CARNOT(2005)

225

assim como o patiens

estaacute pra o agens ou como o objeto estaacute pra o

observador ou mesmo como o homem estaacute pra Deus

Jung comenta em seu livro The Spirit Mercurius Alchemical Studies

(par 280)175 que haacute uma correspondecircncia alquiacutemica e simboacutelica a esse evento da

Ascensatildeo e retorno de Cristo com a Taacutebua de Esmeraldas de Hermes a qual

inclui em sua receita pra a produccedilatildeo da Pedra Filosofal as palavras Ele sobe da

terra pra o ceacuteu e desce de novo na terra recebendo a forccedila de cima e de baixo e

comentando essa passagem diz

[Para o alquimista] natildeo haacute uma questatildeo de subida de

matildeo uacutenica pra o ceacuteu mas em contraste com a rota seguida pelo

Redentor Cristatildeo que vem de cima para baixo e depois retorna para

cima o filius macrocosmi comeccedila de baixo sobe agraves alturas e com os

poderes do Acima e do Abaixo unidos em si mesmo volta outra vez a

terra Ele (o alquimista) realiza o movimento inverso e assim

manifesta uma natureza contraacuteria agrave de Cristo e agrave dos Redentores

Gnoacutesticos (me agrada interpretar a palavra alquimista como traduccedilatildeo

de o homem miacutetico )

Chegamos ao ciclo do mito Cristatildeo ao Pentecostes a 13a situaccedilatildeo

colocada por Jung como sendo tambeacutem a primeira apoacutes a Ascensatildeo Com o

Pentecostes o ciclo da encarnaccedilatildeo de Cristo se completa assim como se

completa o ciclo do heroacutei O ciclo se inicia com a descida do Espiacuterito Santo na

175 apud EDINGER (1988 p 122)

226

anunciaccedilatildeo e termina com sua nova descida dos ceacuteus par o iniacutecio de um novo

ciclo

Para didaticamente deixar claro ao leitor repito a figura que

representa esse ciclo

A Igreja como corpo de Cristo teve sua anunciaccedilatildeo e

concepccedilatildeo no Pentecostes 176

176 idem EDINGER1988 p130

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

227

Foi este o momento onde deixam os disciacutepulos de serem um

receptaacuteculo dos ensinamentos do mito de Cristo para nascer a Santa Igreja

Catoacutelica sem tratar aqui os movimentos de sua criaccedilatildeo como o grande

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo

Aqui o homem miacutetico entrega a Igreja o controle do proacuteprio espiacuterito

celestial podendo viver sua vida independente dos desiacutegnios dos ceacuteus podendo

em agindo dentro do mito buscar seu uacuteltimo dia momento em que voltaraacute a ser

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo dando a ideacuteia de uma encarnaccedilatildeo contiacutenua tanto do

homem quanto de Deus

228

APEcircNDICE 4 - UMA PROPOSTA DE INTERPRETAR PSICOLOacuteGICA E MITICAMENTE A

TRINDADE

A Alma eacute o maior dos milagres coacutesmicos CG Jung 177

Como todo o tema deste trabalho desde o nome o objeto de pesquisa

pode parecer estranho tanto a um psicoacutelogo como a um educador como a um

historiador

No entanto faccedilo mais essa anaacutelise de forma plena e consciente de que

entro neste momento em mais uma pesquisa polecircmica e que por mais que me

aprofunde neste momento natildeo deixaraacute de ser superficial

Acontece que em meu entender tal qual os siacutembolos de transformaccedilatildeo

cultural da missa ou a interpretaccedilatildeo da vida de Cristo este tema tambeacutem eacute

necessaacuterio para que se possa ter mais clara a visatildeo do mito cristatildeo e por

consequumlecircncia o Cristatildeo portuguecircs do seacuteculo XVI pois a Trindade nos daraacute mais

algumas informaccedilotildees de como culturalmente esse arqueacutetipo esse mito foi imposto

agrave nossa cultura e imposiccedilatildeo aos brasis

177 JAFFEacute-1995-p5

229

As religiotildees cristatildes estatildeo tatildeo presentes e tatildeo proacuteximas agrave alma humana

que seria impossiacutevel ignoraacute-las do ponto de vista psicoloacutegico educacional e do

ponto de vista cultura

Por mais que a ideacuteia Trindade esteja no campo da Teologia aacuterea que

natildeo me sinto habilitado ou sequer inclinado a pesquisar eacute na histoacuteria e na obra de

CG Jung que busco as informaccedilotildees que necessito para escrever sobre esse

dogma e o simbolismo trinitaacuterio

Que se tenha notiacutecia a Trindade do mito cristatildeo eacute a uacutenica que soacute

existe como trecircs partes de um uno As triacuteades divinas de tantos mitos primitivos

tecircm uma relaccedilatildeo de parentesco entre elas como por exemplo a triacuteade babilocircnica

Anu Bel e Ea onde Ea a personificaccedilatildeo do saber eacute o pai de Bel (o Senhor) que

personifica a atividade praacutetica Numa triacuteade secundaacuteria desse mito da eacutepoca de

Nabucodonosor Sin (a lua) Shamash (o sol) e Adad (a tempestade Senhor do

Ceacuteu e da Terra e filho do altiacutessimo Anu da triacuteade primaacuteria) No tempo de

Hamurabi Marduk filho de Ea substitui Bel e seus poderes levando Bel a um

segundo plano Nisso Hamurabi se considera um novo deus e soacute venerava uma

diacuteade Anu e Bel e por ser Hamurabi considerado um soberano divino

mensageiro de Anu e Bels e associa a eles criando nova triacuteade Anu

Bel

Hamurabi178

Assim como nesse exemplo vaacuterias culturas primitivas se utilizavam em

seus mitos de triacuteades divinas

178 JUNG1988par173-174

230

No entanto no Velho Testamento encontramos por diversas vezes um

Deus quase que uno pois onde surge o Espiacuterito a palavra vem acompanhada de

Espiacuterito de Deus Espiacuterito do Senhor o que se pode confirmar em

Gecircnesis cap 1 e 6

Nuacutemeros cap 24 e 27

Juiacutezes cap 36111314 e 15

I Samuel cap 1011 e 16

II Samuel cap 3

I Reis cap 18 e 22

II Reacuteus cap 2

II Crocircnicas cap151820 e 24

Assim como em Neemias Joacute Salmos Isaias Ezequiel Joel Miqueacuteias

Ageu e Zacarias

Somente no evento do Novo Testamento surge a segunda parte da

diacuteade Espiacuterito Santo

Ateacute esse momento se percebe principalmente em Joacute um Deus uacutenico

onipotente e onisciente poreacutem com caracteriacutesticas de uma dualidade na forma de

agir com o homem Existe aiacute um Deus justo e injusto doce e coleacuterico que cria e

destroacutei que necessitava de aplausos e reverecircncias e dado ao caraacuteter temiacutevel

fazia com que o homem se referisse constantemente a um Temor de Deus

231

De fato Javeacute tudo pode e se permite sem pestanejar um

momento Ele eacute capaz de projetar com impassibilidade feacuterrea o seu

proacuteprio lado sombrio e permanecer inconsciente disto agrave custa do ser

humano Eacute capaz de apelar para o seu poder supremo e promulgar

leis que para ele significam menos que o ar Os assasiacutenios os

morticiacutenios natildeo lhe causam preocupaccedilatildeo e quando lhe daacute na veneta

eacute capaz igualmente de qual um senhor feudal ressarcir

generosamente os danos provocados nos campos de cereais dos

servos Perdeste os teus filhos as tuas filhas e os teus escravos Natildeo

haacute de ser nada eu te darei outros em troca e melhores do que os

primeiros 179

Iahweh natildeo possui origem nem passado comparado com outros

deuses helecircnicos ou natildeo Seu primeiro filho sendo Adatildeo fez com que todos

fossem descendentes desse primeiro pai Mas os povos judeus atraveacutes do que foi

chamado de providentia specialis garante a si a semelhanccedila de Deus e para

aplacar essa ira divina propotildee um pacto Iahweh - Noeacute do qual surge nova alianccedila

de Deus com os homens

Somente no Novo Testamento surge a figura do Espiacuterito Santo e aiacute a

fixaccedilatildeo da imagem da diacuteade divina

No entanto ateacute este momento natildeo havia entendimentos entre Deus

Iahweh e os homens nem entre os homens e Deus Era necessaacuterio um

entendimento mais humano das coisas terrenas Parece que podemos entender

ser a criaccedilatildeo imperfeita e tambeacutem Deus natildeo pode atender plenamente os

179 JUNG 1990 par597

232

requisitos de sua tarefa era necessaacuteria a criaccedilatildeo de um intermediaacuterio que

entendesse das coisas divinas e das coisas humanas Um Deus mais humano e

que entendesse o logos Dei O Uno precisava ser substituiacutedo por outro O mundo

do Pai deveria ser substituiacutedo pelo mundo do Filho

Alguma transmissatildeo cultural deve ter havido advinda da Babilocircnia do

Egito e da Greacutecia pois esses siacutembolos fazem parte dos fundamentos das imagens

miacuteticas e arquetiacutepicas do pensamento humano Aqui discutimos apenas aquilo

que emanou natildeo de pressupostos filosoacuteficos (mesmo os platocircnicos) mas sim

dos pressupostos arquetiacutepicos inconscientes inerentes agrave natureza humana

O Espiacuterito Santo anuncia o nascimento do Filius Dei e se completa

assim a Trindade a qual eacute nossa pesquisa para este tema

A Trindade Cristatilde natildeo tem a mesma origem das triacuteades divinas

babilocircnicas egiacutepcias ou gregas pois elas se diferem na concepccedilatildeo Por exemplo

enquanto a triacuteade platocircnica resulta de uma antiacutetese a Trindade ao contraacuterio eacute

totalmente harmocircnica entre si As denominaccedilotildees Pai Filho e Espiacuterito Santo natildeo

derivam absolutamente do nuacutemero trecircs e sim de um elemento uno

Apoacutes o Pai logicamente segue-se o Filho no entanto o Espiacuterito Santo

natildeo tem sua origem nem no Pai nem no Filho sendo portanto uma realidade

particular e de um pressuposto diferente Conforme se pode obter de Jung180 na

antiga doutrina Cristatilde o Espiacuterito Santo eacute vera persona quae filio et a patre missa

est [verdadeira pessoa enviada pelo pai e pelo Filho] O processio a patre filioque [o

180 JUNG 1988 par 197

233

ato de proceder do pai e do Filho] eacute uma inspiraccedilatildeo e natildeo uma geraccedilatildeo como no

caso do filho

De acordo com sua definiccedilatildeo o Pai eacute a prima causa o

creator o auctor rerum (o criador das coisas) o qual num determinado

estaacutegio cultural incapaz de reflexatildeo pode ser simplesmente o Uno 181

Mas se procurarmos a Matildee natildeo a encontraremos na Trindade e assim

natildeo poderemos entender a geraccedilatildeo do Filho Seria Trindade tambeacutem

transformada e quatro pontos e natildeo mais em trecircs Acontece que desde a Babilocircnia

ou do Egito a relaccedilatildeo pai-filho-vida com a exclusatildeo da matildee ou progenitora divina

constitui a foacutermula patriarcal que fazia parte da cultura desses povos o que vai

influenciar totalmente a mesma relaccedilatildeo patriarcal do periacuteodo do nascimento da

Trindade Cristatilde

No velho Egito e no Cristianismo a Matildee de Deus fica fora da trindade

No templo as coisas ritualiacutesticas eram exclusivas do homem e seus filhos Em

Lucas (2 40-49) Maria vai ao templo onde Jesus com 12 anos estava jaacute haacute trecircs

dias entre os mestres e lhe pergunta onde andava e ele lhe responde Porque me

procuraacuteveis Natildeo sabiacuteeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai

Desde os primoacuterdios os ritos iniciaacuteticos dos primitivos misteacuterios

sempre afastaram os jovens de suas matildees e os transformavam atraveacutes de um

181 idem par199

234

novo nascimento Essa ideacuteia miacutetica e arquetiacutepica continua viva ateacute os tempos de

hoje atraveacutes do celibato sacerdotal Mais uma vez a cultura e sua transmissatildeo de

forma educacional geram as fontes do mito A relaccedilatildeo sublimada pai-filho gera a

concepccedilatildeo de um espiacuterito que representa a encarnaccedilatildeo ideal da vida masculina

Outra possibilidade de transformaccedilatildeo da triacuteade em quatro pontos de

fundamento seria a da inclusatildeo do democircnio nesse grupo No entanto tambeacutem

isso natildeo seria possiacutevel pois o mal o democircnio as disposiccedilotildees morais soacute surgem

com um Cristianismo jaacute fundado em bases soacutelidas com o mito cristatildeo jaacute fazendo

parte e tendo efeito na vida da alma humana e cristatilde

Gostaria de lembrar que o mito se forma com as imagens primordiais

que possuem fatores que coordenam a psique humana e seratildeo reconhecidos

como formadores do mito apoacutes pertencerem e fazerem efeito na vida do homem

Novamente a cultura e a transmissatildeo da tradiccedilatildeo geram as fontes miacuteticas Se as

disposiccedilotildees morais natildeo estavam definidas como definir o mal Como definir o

democircnio

Mas a evoluccedilatildeo continua e a Trindade se fixa nos conceitos do homem

do mundo conhecido de entatildeo A vida do Homem-Deus faz com que seja revelada

a mais importante das revelaccedilotildees coisas que soacute podiam ser explicadas pelo

Filho visto que o Pai em seu estado original de uno natildeo tinha como revelar ao

homem a existecircncia do Espiacuterito Santo que conforme foi visto anteriormente apoacutes

a morte do Filho apoacutes ter abandonado o espaccedilo terreno desce sobre a alma dos

homens e envolve a todos com sua bondade e benevolecircncia para fazer mais

235

pelos homens do que fez o Pai ou o Filho o elemento miacutetico que completa

definitivamente a Trindade e reconstitui a unidade

Assim se lecirc na primeira carta de Clemente 466 Temos

um soacute Deus e um soacute Cristo como tambeacutem um soacute Espiacuterito 182

Ou como pode ser lido no Credo batismal chamado o Symbolum

Apostolicum atestado por documentos a partir do seacuteculo IV

Creio em Deus Pai todo poderoso em Jesus Cristo seu

filho unigecircnito nosso Senhor o qual doacutei concebido pelo Espiacuterito

Santo e nasceu de Maria Virgem foi crucificado sob Pocircncio Pilatos e

sepultado ao terceiro dia ressurgiu dos mortos subiu aos ceacuteus estaacute

sentado agrave direita da Deus Pai de onde haacute de vir a julgar os vivos e os

mortos e no Espiacuterito Santo na santa Igreja na remissatildeo dos

pecados na ressurreiccedilatildeo da carne 183

Por mais que qualquer racionalidade cultural pudesse tentar explicar

esse conceito de Trindade sempre permaneceu incoacutelume principalmente porque

apoacutes um mito ter sido fundado por seu poder criador ele passa a pertencer a um

mundo arquetiacutepico que natildeo pode ser atingido pela racionalidade pois o arqueacutetipo

o mito por residir por emanar do inconsciente humano adquire um caraacuteter

numinoso que torna impossiacutevel enquadraacute-lo no mundo da racionalidade tendo

182 JUNG 1988 par 207 183 JUNG 1988 par 211

236

muitas vezes sim gerado em na histoacuteria discussotildees vazias disputas verbais e

ateacute violecircncia na tentativa de se explicar o dogma da Santiacutessima Trindade

O conceito de santidade indica que uma determinada

coisa ou ideacuteia possui valor supremo cuja presenccedila leva o homem

por assim dizer ao mutismo A santidade eacute reveladora eacute a forccedila

iluminante que dimana da forma arquetiacutepica184

Somente o termo santiacutessima jaacute nos faz entender que o arqueacutetipo se

tornou ativo e que o mito impregnou a alma do homem poacutes cristianismo ou como

denomina a psicologia tambeacutem racionalista de presenccedila psiacutequica extra-

consciente

Para onde entatildeo foi o homem Jesus como poderiacuteamos definir ou contar

sua histoacuteria enquanto homem Natildeo havia mais Jesus o homem foi substituiacutedo

pelo mito mesmo nas palavras de Paulo por exemplo pois nunca uma palavra de

Jesus foi citada em qualquer de seus discursos O que se falava de Jesus se

falava do mito do arqueacutetipo sempre representado pela figuras de O Senhor dos

Democircnios o Salvador Coacutesmico etc Nunca mais surge na histoacuteria o humano de

Jesus Transformou-se o homem em sua expressatildeo miacutetica pois o Homem-Deus

o Deus Eterno natildeo tem histoacuteria do ponto de vista humano somente alegorias da

iconografia da Idade Meacutedia

184 JUNG 1988 par 235

237

Como pastor Ele eacute o condutor e o centro dos rebanhos Eacute

a videira Enquanto os que o seguem satildeo os ramos Seu corpo eacute patildeo

que se come e seu sangue eacute vinho que se bebe Ele eacute tambeacutem

Corpus mysticum formado pela uniatildeo dos crentes Como

manifestaccedilatildeo humana eacute o Heroacutei e o Homem-Deus sem pecado por

isso mais completo e perfeito do que o homem natural que Ele

ultrapassa e abrange e que estaacute pra Ele na mesma relaccedilatildeo de uma

crianccedila para o adulto ou da ovelha pra o homem 185

Ele eacute o Arqueacutetipo da Cristandade ele eacute o mito Cristatildeo

185 JUNG 1988 par 229

238

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Fontes

ANCHIETA Joseacute de Cartas

Informaccedilotildees Fragmentos Histoacutericos e

Sermotildees

1534-1597 Belo Horizonte Itatiaia S Paulo Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1988

__________ Diaacutelogos da Feacute

obras completas 8deg vol

introduccedilatildeo e notas

Pe Armando Cardoso Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988

__________ Feitos de Men de Saacute Paraacute de Minas Virtual Books 2000

__________ Auto de Satildeo Lourenccedilo - Paraacute de Minas Virtual Books 2000

BETTENDORF Joatildeo Felipe Pe 1627-1698

Crocircnica dos padres da

Companhia de Jesus do Estado de Maranhatildeo Beleacutem Fundaccedilatildeo Cultural do

Paraacute Tancredo Neves 1990

CARDIM Fernatildeo

1540-1625

Tratados da terra e gente do Brasil Belo

Horizonte Ed Itatiaia Satildeo Paulo Ed Da Universidade de Satildeo Paulo 1980

COLOacuteNCristoacutebal - Carta a los Reyes Catoacutelicos - 2000 virtualbookscombr -

Editora Virtual Books - Online MampM Editores Ltda

CAMINHA Pero Vaz de

A Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de

Portugal - Ministeacuterio da Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

(Coacutepia obtida via internet) e Carta de Pero

Vaz de Caminha

A certidatildeo de Nascimento da Naccedilatildeo Brasileira

Brasil 500

Anos Bradesco - 2000

NAVARRO Azpicuelta e outros - Cartas Avulsas 1550-1568 Belo Horizonte

ItatiaiaSatildeo Paulo Edusp 1988

NOacuteBREGA Manuel da Cartas do Brasil Belo Horizonte - ItatiaiaSatildeo Paulo

Edusp 1988

SALVADOR Frei Vicente do A Histoacuteria do Brasil

1500-1627 5a Ed Satildeo

Paulo Melhoramentos 1965

239

STADEN Hans Duas Viagens ao Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia Satildeo

Paulo Ed da Universidade de Satildeo Paulo [1557] 1974

VIEIRA Pe Antonio Sermotildees

Obras Completas

vol V- Sermatildeo do

Espiacuterito Santo Lisboa Lelo e irmatildeo Editores 1951

OUTRAS REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREU J Capistrano de

Capiacutetulos da Histoacuteria Colonial - Ministeacuterio da

Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro

versatildeo para e-books [httpwwwbnbrbibvirtualacervo]

1907

obtida em

2004

BACHELARD Gaston

A Terra e os Devaneios do Repouso

Satildeo Paulo

Martins Fontes 1990

BIacuteBLIA ELETROcircNICA 252 RK Soft Desenvolvimento

BIacuteBLIA SAGRADA - Nova traduccedilatildeo na linguagem de hoje

Barueri-SP

Sociedade Biacuteblica do Brasil 2000

BUENO Silveira

Vocabulaacuterio Tupi-Gurani

Portuguecircs

Satildeo Paulo Eacutefeta

Editora 1998

CALMON Pedro

Histoacuteria do Brasil

Seacuteculo XVI

As origens e Seacuteculo

XVII

Formaccedilatildeo Brasileira - Vol 1 e 2

Rio de Janeiro - Livraria Joseacute

Oliacutempio Editora 2a ed 1963

CALLOIS Roger Les jeux et les hommes

le masque et le vertige Paris

Galiimard 1985

CAMPBELL Joseph com Bill Moyers

O Poder do Mito - Satildeo Paulo Ed

Palas Athena 1990

240

CARDOSO Armando (Trad) O Teatro de Anchieta

Obras Completas - 3o

Volume - SPaulo Loyola 1977

CARNOT Sady A destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

Brasil Seacuteculo XVI

uma visatildeo junguiana

Prefaacutecio de Joseacute Maria de Paiva - S Matheus

ES

Memorial 2005

CAROTENUTO Aldo

Eros e Pathos Amor e sofrimento Satildeo Paulo Ed

Paulus 1994

CASSIRER Ernest

Antropologiacutea Filosoacutefica

Meacutexico Fondo de Cultura

Econoacutemica 1945

CHAIN Iza G C

O Encontro de Dois Mundos In O Diabo nos Porotildees das

Caravelas Tese de Mestrado texto obtido atraveacutes da Internet 2003

CRIPPA Adolfo

Mito e Cultura Satildeo Paulo Conviacutevio 1975

DEWEY John

Democracia e educaccedilatildeo Breve tratado de Philosophia de

Educaccedilatildeo Biblioteca Pedagoacutegica Brasileira

Companhia Editora Nacional S

Paulo 1936

DOURLEY John P A doenccedila que somos noacutes

A criacutetica de Jung ao

cristianismo trad Roberto Girola - Satildeo Paulo Paulus 1987

EDINGER Edward F

O Arqueacutetipo Cristatildeo

Um comentaacuterio junguiano

sobre a vida de Cristo Satildeo Paulo Cultrix 1988

__________ - A Criaccedilatildeo da Consciecircncia

O mito de Jung para o Homem

moderno Satildeo Paulo Cultrix 1999

FERNANDES Florestan

A funccedilatildeo social da guerra na sociedade

Tupinambaacute - Satildeo Paulo Livraria Pioneira Editora 1970

FREYRE Gilberto - Casa Grande e Senzala - Rio de Janeiro Livraria Joseacute

Oliacutempio 1984

__________- Casa Grande e SenzalaRio de Janeiro Rio Filmes com apoio

da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco e Fundaccedilatildeo Gilberto Freyre

narrado por

241

Edson Nery da Fonseca amigo pessoal e bioacutegrafo de Gilberto Freyre Capiacutetulo

II A cunha matildee da Famiacutelia Brasileira 2000

GAMBINI Roberto

O espelho iacutendio os jesuiacutetas e a destruiccedilatildeo da alma

indiacutegena - Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo 1988

GAcircNDAVO Pero de Magalhatildees

Tratado da Terra do Brasil

Histoacuteria da

Proviacutencia Santa Cruz - Belo Horizonte Itatiaia 1980

GINZBURG Carlo Mitos Emblemas Sinais - Satildeo Paulo Schwarkz 2002

GODINHO Vitorino Magalhatildees A estrutura social do Antigo Regime In

GODINHO VM A estrutura na Antiga Sociedade portuguesa Lisboa Arcaacutedia

1971

GUSDORF Georges Mito y Metafiacutesica Buenos Aires Editorial Nova 1959

HERNANDES Paulo Romualdo O Teatro de Joseacute de Anchieta Arte e

Pedagogia no Brasil Colocircnia

Campinas Biblioteca de Educaccedilatildeo da

UNICAMP 2001

HOELLER Stephan A A Gnose de Jung e os Sete Sermotildees aos mortos

Satildeo Paulo Cultrix 1991

__________ Jung e os evangelhos perdidos

Uma apreciaccedilatildeo junguiana

sobre os manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi - Satildeo

Paulo CultrixPensamento 1993

HOLLIS James

Rastreando os Deuses

O lugar do mito na vida

moderna Satildeo Paulo Paulus 1998

JAFFEacute Aniela

O Mito do significado na Obra de C Gustav Jung- Satildeo

Paulo Cultrix 1995

JACOBI Jolande Complexo Arqueacutetipo Siacutembolo na Psicologia de CG

Jung Satildeo Paulo Ed Cultrix 1991

JECUPEacute Kakaacute Weraacute A Terra dos mil Povos Satildeo Paulo Editora Fundaccedilatildeo

Peiroacutepolis 1999

242

______Tupatilde Tenondeacute Satildeo Paulo Peiroacutepolis 2001

JUDY Dwight H

Curando a Alma Masculina

O Cristianismo e a

Jornada miacutestica Satildeo Paulo Paulus 1998

JUNG C G A importacircncia dos sonhos In O Homem e seus siacutembolos

CG Jung MLvon Franz Joseph L Henderson Jolande Jacobi e Aniela Jaffeacute

Rio de Janeiro Nova Fronteira 1964

_______ Memoacuterias Sonhos e Reflexotildees Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira

1975

_______ Psicologia e Religiatildeo - Obras Completas

Vol XI1 Petroacutepolis

Vozes 1978

_______ Aion - Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo Petroacutepolis

EdVozes 1982

_______ O Siacutembolo da Transformaccedilatildeo na Missa Obras Completas Vol

XI3 Petroacutepolis Ed Vozes 1985

_______ Mysterium Coniunctionis

Obras Completas- vXIV1 Petroacutepolis

Vozes 1988

_______ A interpretaccedilatildeo Psicoloacutegica do Dogma da Trindade Obras

Completas Vol XI2 Petroacutepolis Vozes 1988

_______ Siacutembolos da Transformaccedilatildeo Obras completas VolV Petroacutepolis

Vozes 1989

_______ Civilizaccedilatildeo em Transiccedilatildeo Petroacutepolis Ed Vozes 1993

_______ Resposta a Jocirc Petroacutepolis Ed Vozes 1990

LACOUTURE Jean Os Jesuiacutetas

A Conquista

vol 1

Lisboa Editorial

Estampa 1993

LANA Firmino Arantes e LANA Luiz Gomes

Antes o mundo natildeo existia

Mitologia dos antigos Desana-Kehiriacutepotilderatilde - Satildeo Gabriel da Cachoeira

AM

FOIRN Federaccedilatildeo das Organizaccedilotildees dos Indiacutegenas do Rio Negro 1995

243

MAGASICH-AIROLA Jorge e BEER Jean-Marc de Ameacuterica Maacutegica

Quando a Europa da Renascenccedila pensou estar conquistando o Paraiacuteso

Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

MAY Rollo A procura do mito Satildeo Paulo Manole1992

MENDES Antoacutenio Rosa A vida Cultural In MATTOSO Joseacute Histoacuteria de

Portugal Lisboa Estampa1992 tIII coord de Joaquim Romero Magalhatildees

MONTEIRO John M Tupis Tapuias e Historiadores- Estudos de Histoacuteria

Indiacutegena e do Indigenismo Tese apresentada pra o concurso de Livre

Docecircncia Aacuterea de Antropologia Campinas IFCH Unicamp 2001

MORENTE Manuel Garcia Fundamentos de filosofia e liccedilotildees preliminares

(metafiacutesica idealismo e positivismo)8a Ed Traduccedilatildeo e proacutelogo de Guilhermo

de la Cruz Coronado Satildeo Paulo Editora Mestre Jou 1930

NEVES Luiz Felipe Baeta

O Combate dos Soldados de Cristo na Terra

dos Papagaios

Colonialismo e Repressatildeo Cultural

Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1978

NOGUEIRA Carlos Roberto F O Diabo no imaginaacuterio cristatildeo Bauru Edusc

2000

PAIVA Joseacute Maria de Histoacuteria da Educaccedilatildeo Colonial

texto natildeo publicado

2002

_______ Religiosidade e Cultura

Brasil Seacuteculo XVI uma chave de

leitura Texto natildeo publicado 2002

_______ Catequese e Colonizaccedilatildeo Satildeo Paulo CortezAutores Associados

1982

PEacuteCORA Alcir Teatro do sacramento A unidade teoloacutegico-retoacuterico-

poliacutetica dos sermotildees de Antocircnio Vieira Satildeo Paulo-Campinas EduspEditora

da Unicamp 1994

RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

244

SEREBURAtilde e outros

Wamrecircmeacute Zaacutera

Mito e Histoacuteria do Povo Chavante

Nossa Palavra Satildeo Paulo SENAC 1998

TAVARES Eduardo e outros

Missotildees Jesuiacutetico- Guarani Satildeo Leopoldo

Unisinos 1999

TODOROV Tzvetan A Conquista da Ameacuterica A questatildeo do outro 3a Ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

WHITMONT Edward A Busca do Siacutembolo Satildeo Paulo Ed Cultrix 1990

WYLY James

A busca Faacutelica

Priapo e a Inflaccedilatildeo Masculina

Satildeo

Paulo Ed Paulus 1994

XAVIER Acircngela Barreto amp HESPANHA Antonio Manuel a Representaccedilatildeo da

Sociedade e do PoderIn MATTOSO Joseacute Histoacuteria de Portugal t IV Coord

de Antocircnio Manuel Hespanha Lisboa Estampa 1992

httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905

This document was created with Win2PDF available at httpwwwwin2pdfcomThe unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only

Page 4: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão

4

RESUMO

Por entender que a anaacutelise de uma cultura mais englobante que outra eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual foi buscado neste trabalho entender como

essa espiritualidade leva o olhar para o centro do universo fazendo com que tudo

seja olhado a partir desse prisma Trata-se aqui dos resultados da conversatildeo dos

indiacutegenas durante o periacuteodo jesuiacutetico das coisas boas trazidas aos indiacutegenas

pela educaccedilatildeo portuguesa e do confronto de culturas na busca pela verdade de

um e de outro desse embate de mitos de tabus e pecados de Deus e de

demiurgos

Ao pesquisar como a visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do

viver na Europa quinhentista e seiscentista encontra-se que a feacute em Deus era a

uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou serem levados por ela ao uacutenico

mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural

natildeo era mais a natureza do homem e sim que a palavra de Deus tal qual

transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra conhecida e das terras a

se conhecer

O homem eacute nesse momento histoacuterico ator cultural de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

5

Era gerado entatildeo o grande embate de mitos baseado na saga de dois

heroacuteis de polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo

Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o

Orbis Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico indiacutegena

Eacute tratada aqui a ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas

onde os jesuiacutetas foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena

a Liacutengua Geral de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os

conceitos de sua cultura e de denegrir os conceitos da cultura indiacutegena

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas que as peccedilas que satildeo sempre as

mesmas estatildeo presas numa caixa Claro a educaccedilatildeo tambeacutem se baseia no mito

cultural

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida A educaccedilatildeo eacute exatamente isso

uma maneira de transmitir esse modo herdado e a maneira inata de se viver O

homem eacute o todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias

arquetiacutepicas que todos os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo

individual e possuindo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder essa participaccedilatildeo

arquetiacutepica de seu mundo o homem estaacute morto mesmo que natildeo fisicamente ele

agora eacute um defuncto que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

A didaacutetica da catequese trazia a definiccedilatildeo do democircnio ou do Diabo agraves

mentes indiacutegenas e isso se fazia pela pedagogia do terror que se impunha agraves

6

mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeosNesse embate

cultural uma certa profecia praticamente se confirmava de que haveria uma

transformaccedilatildeo de brancos em iacutendios e de iacutendios em brancos mas isso natildeo foi

possiacutevel pois ao final o mito cristatildeo derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos

os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano

7

RESUMEN

Por entender que la analice de una cultura mucho maacutes englobante que

otra es hecha de una forma mitoloacutegica y espiritual se busco en este trabajo

entender como esa espiritualidad lleva la mirada para el centro del universo

haciendo con que el todo sea mirado a partir de ese prisma Trata-se acaacute de los

resultados de la conversioacuten de los indiacutegenas durante el periacuteodo jesuiacutetico de las

cosas buenas traiacutedas a los indiacutegenas por la educacioacuten portuguesa y del

confronto de culturas en la buacutesqueda por la verdad de uno y de otro en ese

embate de mitos de tabus e pecados de Diacuteos e de demiurgos

Al pesquisar como la visioacuten del Orbis Christianus era la traduccioacuten del

vivir en la Europa quinientista se encuentra que la fe en Diacuteos era la uacutenica verdad

Todos deberiacutean estar en ella o llevados por ella al uacutenico mundo verdadero afora

del cual todo lo maacutes seria incuria e aberracioacuten El natural no era maacutes la

naturaleza Del hombre y si que la palabra de Diacuteos tal cual transmitida por la fe

cristiana llegase a los confines de la tierra conocida y de las tierras a conocer

El hombre es en ese momento histoacuterico actor cultural de una

complicada relacioacuten originaria de una dicotomiacutea entre el representado miacuteticamente

y el vivido en su realidad cotidiana no teniendo permisioacuten para conocer el pensar

el Bien sin antes pensar en el Mal pues sin embargo era tiempo de se reconocer

8

el enemigo para poder combate a ello por la gloria y triunfo del Redentor por

sobre el Tentador

Era generado entonces el embate de mitos con base en la saga de dos

heacuteroes de polaridades contrarias el europeo y el indiacutegena Cristo y el Diablo San

Lorenzo y San Sebastiaacuten de un lado contra Guaixaraacute y Aimberecirc del otro el Orbis

Christianus versus la visioacuten arquetiacutepica y el espiacuteritu cosmogoacutenico indiacutegena

Es tratada acaacute la herramienta de esa educacioacuten imposta a os

indiacutegenas donde los jesuitas fueran de una felicidad sin par al utilizaren la lengua

indiacutegena la Lengua General de Anchieta e sus autos teatrales como forma de

transmitir los conceptos de su cultura y de denegrir los conceptos de la cultura

indiacutegena

La educacioacuten es y siempre fue un caleidoscopio que muestra los maacutes

diversos y bellos dibujos e formas mas que las piezas que son siempre las

mismas estaacuten presas en una caja Claro la educacioacuten tambieacuten hace su base en el

mito cultural

La funcioacuten de los mitos no es denotar una idea recibida pero si un

modo de funcionamiento que corresponde a la manera innata pela cual el hombre

nace e se relaciona en su vida vivida La educacioacuten es exactamente eso una

manera de transmitir ese modo recibido por herencia y la manera innata de se

vivir El hombre es el todo de sus relaciones pues recibe las mismas influencias

arquetiacutepicas que todos los hombres de su grupo social reciben mismo siendo

individual e teniendo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder esa participacioacuten

9

arquetiacutepica de su mundo el hombre esta muerto mismo que no fiacutesicamente ello

ahora es un defuncto que no poseacute maacutes funciones a delante de la vida

La didaacutectica de la catequice tenia en si la definicioacuten del demonio o del

Diablo y la metiacutea en las mentes indiacutegenas y eso se haciacutea por la pedagogiacutea del

terror que se impugna a las mentes desavisadas de la existencia del Bien y del

Mal de los cristianos

En ese embate cultural una cierta profeciacutea praacutecticamente si confirmaba

que habriacutea una transformacioacuten de blancos en indios y de indios en blancos pero

eso no fue posible pues al final el mito cristiano derrotoacute Guaixaraacute Aimbirecirc

Saravaia y todos los otros diablos llevando con ellos hasta Deacutecio e Valeriano

10

SUMAacuteRIO

RESUMO _________________________________________________________ 4

RESUMEN ________________________________________________________ 7

SUMAacuteRIO _______________________________________________________ 10

Introduccedilatildeo _______________________________________________________ 11

Capiacutetulo 1 - A educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura que ensina e altera

costumes________________________________________________________ 36

Capiacutetulo 2 - O Mito ________________________________________________ 46

Capiacutetulo 3 - O mito Cristatildeo___________________________________________ 72

Capiacutetulo 4 - Como o Europeu Cristatildeo compreendia os indiacutegenas e a concepccedilatildeo

que tinham da vida desses brasis _____________________________________ 76

Capiacutetulo 5 - Como os indiacutegenas teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde e as dificuldades

encontradas na missatildeo de converter ___________________________________ 93

Capiacutetulo 6 - O Teatro como ferramenta educacional e de catequese _________ 119

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos_____________ 126

Conclusatildeo - O resultado do embate desses mitos na educaccedilatildeo e na cultura

brasileira________________________________________________________ 145

Apecircndices ______________________________________________________ 151

Apecircndice 1 O Auto de Satildeo Lourenccedilo Joseacute de Anchieta ________________ 152

Apecircndice 2 - A missa e os siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem____ 197

Apecircndice 3 O Mito de Cristo _______________________________________ 208

Apecircndice 4 - Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade 228

Referecircncias Bibliograacuteficas__________________________________________ 238

Outras referecircncias bibliograacuteficas_____________________________________ 239

11

INTRODUCcedilAtildeO

Eu queria ser como a aranha que tira de seu ventre todos

os fios de sua obra A abelha me eacute odiosa e o mel eacute para mim o

produto de um roubo

Papini Un homme fini

Entendendo que concluiacutedo o Mestrado em Histoacuteria e Educaccedilatildeo

trabalhando atraveacutes da teoria de Carl Gustav Jung a relaccedilatildeo jesuiacutetica com os

indiacutegenas no seacuteculo XVI mostrando a destribalizaccedilatildeo da alma indiacutegena atraveacutes da

imposiccedilatildeo cultural deveria continuar no processo de pesquisa sobre o assunto e

sob a mesma lente

Pesquisei teoacutericos filoacutesofos educadores e historiadores que pudessem

comprovar a tese a ser apresentada

Busco no sentido da vida desses homens jesuiacutetas em suas relaccedilotildees

com os indiacutegenas a proacutepria vida desses padres experienciada e tornada viva

atraveacutes de seus mitos e crenccedilas

Entendo que a anaacutelise de uma cultura elaborada por outra muito mais

englobante como no caso da cultura portuguesa em relaccedilatildeo agrave dos indiacutegenas eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual Essa espiritualidade leva o olhar para o

12

centro do universo fazendo com que tudo seja olhado a partir desse prisma

conforme jaacute pude demonstrar em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena objeto de

minha dissertaccedilatildeo de mestrado

Por entender o trabalho jesuiacutetico uma tarefa hercuacutelea composta de

uma saga heroacuteica na luta contra a resistecircncia indiacutegena agrave conversatildeo e agrave

catequese busco a simbologia e a interpretaccedilatildeo dessa saga

Por entender que mesmo sabendo dos resultados dessa conversatildeo no

sentido de destruir a alma indiacutegena houve como resultado desse confronto de

culturas um embate pela busca da verdade de sentido de significaccedilatildeo atraveacutes

dos tempos que alimentavam as mentes ainda eacutebrias de medievalismo e das

experiecircncias da alma do mato busco essa miacutetica esse relato de embates

Embate de mitos Embate de tabus e pecados de Deus e de deuses Enfim da

experiecircncia de vida

Quando utilizo a palavra embate em vaacuterios momentos deste texto

posso estar sendo ateacute mesmo mal compreendido pois muitos leitores poderatildeo

afirmar que as culturas quando se encontram se permeiam se harmonizam

Poderatildeo afirmar que sempre no encontro de duas culturas sobraraacute para os dois

lados aculturaccedilotildees costumes expressotildees linguumliacutesticas lendas antigas e as lendas

que surgiratildeo desse encontro Claro que sim natildeo tenho duacutevidas quanto a isso

Mas natildeo eacute essa a intenccedilatildeo Minha proposta eacute a de deixar claro que em

se tratando dos mitos culturais em se tratando do cristatildeo europeu ainda o

portuguecircs mais ameno que o espanhol houve sim um embate de mitos isto eacute um

choque impetuoso de culturas composta de oposiccedilotildees e resistecircncias (agraves vezes

13

mais passivas ou paciacuteficas poreacutem natildeo menores) poreacutem sempre se forma a

comparar-se com um abalo violento e profundo nas crenccedilas dos indiacutegenas

brasileiros

Por mais que resistissem os brasis o Orbis Christianus era violento

quanto agrave natureza real do homem

A visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do viver na Europa

quinhentista A feacute em Deus era a uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou

serem levados por ela ao uacutenico mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria

injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural natildeo era mais a natureza do homem e sim que a

palavra de Deus tal qual transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra

conhecida e das terras a se conhecer

Atraveacutes dessa visatildeo de mundo pudemos assistir agrave instituiccedilatildeo de novos

conteuacutedos simboacutelicos nas terras receacutem-descobertas articulados de maneira

extremamente eficaz entre a realidade cristatilde e o imaginaacuterio europeu quinhentista

Os guardiotildees do sagrado como foram chamados os cleacuterigos

devotam suas vidas com o uacutenico intuito de uniformizar as consciecircncias e converter

as almas pertencentes a Satatilde e seus ajudantes garantindo a hegemonia das

crenccedilas e a desculturaccedilatildeo de qualquer povo que natildeo vivesse os bons costumes

e natildeo pertencesse ao rebanho de fieacuteis

O seacuteculo XVI denotou na visatildeo cristatilde que o mundo se encontrava

dividido em duas partes bastante distintas

Os que cultivavam o Bem e as virtudes

14

Os que cultivavam o Mal e seus viacutecios

Tal qual na alegoria usada em O diabo no imaginaacuterio cristatildeo

O mundo se orienta como o portal de uma igreja goacutetica no

alto e no meio encontra-se Deus rodeado de um coro de anjos com

os santos e os justos prestando-lhes homenagem abaixo estatildeo os

mortais e na parte inferior ou agrave espreita os espiacuteritos malignos que

possuem formas horriacuteveis ou pelo menos enigmaacuteticas e cocircmicas

(NOGUEIRA 2000 39)

O homem eacute nesse momento histoacuterico personagem de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

Em contra-partida a essa postura miacutetica cristatilde surgem nas relaccedilotildees os

conteuacutedos da psique primitiva dos indiacutegenas brasileiros gerando costumes

padrotildees de comportamentos remexendo as sombras 1 jesuiacuteticas influenciando

1 A Sombra enquanto arqueacutetipo -Conforme nos orienta ML von Franz (JUNG 1964) e citado em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena (CARNOT Sady 2005p55) A Sombra pertence ao nosso mundo interior mais escondido descendo agraves profundezas do nosso proacuteprio mal e tornando o indiviacuteduo capaz de reconhecer em si o instinto e suas mentiras nada inocente nem tolo mas bem protegido contra tudo aquilo que de dentro possa surgirO arqueacutetipo Sombra eacute de todos os conteuacutedos arquetiacutepicos o que fica mais proacuteximo ao Ego cuja essecircncia estaacute mais em contato com a tona mais superficial sendo formada por componentes que jaacute fizeram parte um dia do presente do indiviacuteduo jaacute fizeram parte do seu cotidiano mas que foram reprimidos por natildeo pertencerem ao rol de compatibilidades desejadas pelos valores estabelecidos pelo social ao consciente ou por natildeo terem sido fortes o suficiente para ultrapassarem a consciecircncia e permaneceram em latecircncia dentro do Inconsciente Pessoal

15

com suas resistecircncias de aculturaccedilatildeo todo um conteuacutedo arquetiacutepico europeu que

veio dar origem agrave cultura brasileira

Esses embates culturais podem ser notados em cartas de marinheiros

cartas de jesuiacutetas a seus superiores e irmatildeos da Companhia de Jesus aleacutem da

utilizaccedilatildeo das simbologias miacuteticas de nossos indiacutegenas na elaboraccedilatildeo de taacuteticas

de conversatildeo presentes nos aldeamentos na supremacia dos sacramentos na

pedagogia do dia-a-dia e em especial em Anchieta que os mostra atraveacutes dos

autos como o de S Lourenccedilo e o da Pregaccedilatildeo Universal entre outros

Nesses autos nota-se claramente a noccedilatildeo de bem e mal que era

passada de forma determinista aos indiacutegenas

O Bem representando o fiel o santo o heroacutei o salvador os padres ou

abareacute a personagem Karaibebeacute grande cacique que aliado de Tupatilde e dos abareacute

na defesa das novas leis e dos novos costumes mostram o erro de seguir os

maus costumes das tradiccedilotildees e das falas de Guaixaraacute e Aimbirecirc

O Mal representado tambeacutem por grandes chefes como Guaixaraacute e

Aimbirecirc o diaboacutelico o proacuteprio democircnio bebedor de cauim que gosta de fumar e

defender os costumes da tradiccedilatildeo como danccedilar enfeitar-se tingir o corpo de

vermelho do urucum ou do preto da jemouacutena (una = preto)

Enfim grande embate de mitos baseado na saga de dois heroacuteis de

polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo Lourenccedilo e

16

Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o Orbis

Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico 2 indiacutegena

Muitas vezes em minha tese pretendo utilizar o conceito de experiecircncia

definido como um conhecimento que nos eacute transmitido pelos sentidos como um

conjunto de conhecimentos individuais ou especiacuteficos que constituem aquisiccedilotildees

vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade quer no sentido

metafiacutesico quer no sentido de aculturaccedilatildeo

A cada experiecircncia o indiviacuteduo se expotildee e soma a si o resultado do

ocorrido do fato do resultado Assim experiecircncia eacute a soma das situaccedilotildees que

influenciaram e influenciam a pessoa e as comunidades em toda a histoacuteria da

humanidade

Na imposiccedilatildeo cultural do portuguecircs do seacuteculo XVI sobre o indiacutegena

muitas vezes a renovaccedilatildeo era feita sob pressatildeo sob coerccedilatildeo em que o algo

transformado o indiviacuteduo transformado era sem que a experiecircncia pudesse ser

acumulada e sim imposta natildeo permitindo ao gentio a interaccedilatildeo com sua proacutepria

vida e em relaccedilatildeo ao ambiente do qual dependia visceralmente para sobreviver

Essa soma que Dewey chama de renovaccedilotildees satildeo a extensatildeo da

experiecircncia do indiviacuteduo e da espeacutecie no entanto vida para o ser humano

consiste em costumes crenccedilas instituiccedilotildees vitoacuterias e derrotas isto eacute a

experiecircncia

2 do grego kosmogonia - A origem ou formaccedilatildeo do mundo do universo conhecido Parte de uma cosmologia que trata especificamente da criaccedilatildeo e formaccedilatildeo do mundo Qualquer narrativa doutrina ou teoria a respeito da origem do mundo ou do universo

17

Poderia dizer que o homem vive em comunidade nas relaccedilotildees

pessoais em virtude das coisas que tem em comum e a comunidade eacute o meio

pelo qual se chega a possuir essas coisas comuns No entanto na relaccedilatildeo entre

mitos indiacutegenas total e completamente inserido no que falaremos mais tarde no

mito filosoacutefico e a imposiccedilatildeo do mito cristatildeo considerado numa relaccedilatildeo com a

racionalidade pouco de comum havia entre esses dois povos tatildeo distintos Por um

lado o aguerrido o natural o nu e o livre e do outro dogmas pecados eacutebrios de

medievalidade impondo sua cultura ad majorem Dei gloriam

A educaccedilatildeo como forma de transmissatildeo de cultura suprime a distacircncia

entre as ideacuteias dos mais velhos e a acircnsia de conhecer e modificar dos mais novos

e imaturos No entanto perguntaria a esses indiacutegenas se as ideacuteias dos

considerados mais velhos mais importantes ateacute mesmo com poderes divinos

como se os tivessem os padres jesuiacutetas natildeo tinham uma distacircncia tatildeo grande de

suas proacuteprias ideacuteias a ponto de que essas ideacuteias natildeo pudessem ser entendidas

tal como as noccedilotildees de pecado de ceacuteu e inferno ou mesmo de um deus tatildeo cruel a

ponto de matar toda uma tribo atraveacutes da gripe ou da variacuteola para mostrar que

esse Deus deveria ser louvado

Natildeo eacute por viverem em proximidade material ou por trabalharem pelo

mesmo fim comum que se pode dizer que um indiviacuteduo vive em comunidade eacute

necessaacuterio que se possua o conhecimento desses fins comuns sejam eles seus

deuses seu governo seus costumes e seus anseios Isso sim forma uma

comunidade Uma comunidade eacute aquela que vive no mesmo mito mito esse que

lhe explica a vida natildeo explicaacutevel

18

Toda comunicaccedilatildeo eacute educativa pois receber comunicaccedilatildeo receber

educaccedilatildeo eacute adquirir experiecircncia que viraacute a modificar seu modo de vida Quando o

modus faciendi de um indiviacuteduo modifica o modus vivendi de sua comunidade ele

estaacute fazendo cultura ele estaacute educando Ensinar a caccedilar eacute educar ensinar a

danccedilar eacute educar fazer um indiviacuteduo receber um novo mito eacute educar assim

ensinar a roubar e a matar eacute tambeacutem educar fazer adorar a um novo deus

tambeacutem eacute educar

Quando se fala em educaccedilatildeo formal poreacutem estamos falando de como

examinar se as aptidotildees daquilo que foi passado de um indiviacuteduo para outro para

habilitaacute-lo a participar de forma melhorada de uma vida em comum Eacute na

educaccedilatildeo formal escolar que se verifica se essa habilidade atua realmente nessa

vida comunitaacuteria isto eacute se o indiviacuteduo estaacute adaptado e atuando na vida comum se

estaacute avaliando se os conhecimentos transmitidos foram eficientes e se verifica

ainda a eficaacutecia dessa transmissatildeo

A educaccedilatildeo formal em suma avalia a eficaacutecia daquilo que foi passado

em conteuacutedo programaacutetico e isso existia de alguma forma nas escolas de ler e

contar criada pelos jesuiacutetas no Brasil Colocircnia

No entanto nas sociedades tribais ou grupos sociais menos

desenvolvidos encontramos muito pouco de adestramento formal poreacutem

encontramos vivecircncias de ritos de passagem nos quais os mitos satildeo fortes

ferramentas dessa educaccedilatildeo que considero tambeacutem formal poreacutem natildeo seriada e

programada

19

Como ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas os jesuiacutetas

foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena a Liacutengua Geral

de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os conceitos de sua

cultura e de demonizar os conceitos da cultura indiacutegena

Novamente afirmo ter clara a interpenetraccedilatildeo de valores e as traduccedilotildees

desses valores em ganho e perda para ambos os lados no entanto tento mostrar

aqui a habilidade de Anchieta em utilizar a liacutengua indiacutegena como ferramenta de

catequese como uma forma de acesso e penetraccedilatildeo na educaccedilatildeo indiacutegena e da

possibilidade com isso da imposiccedilatildeo de conceitos da Europa seiscentista

Habilidade houve tambeacutem por parte desse jesuiacuteta quando criou atraveacutes

dos autos a experiecircncia vivida pelo indiacutegena durante os espetaacuteculos teatrais

substituindo ateacute mesmo a liacutengua falada por ideacuteias contidas na gestualiadade

conforme nos mostra os paracircmetros do teatro greco-romano3 base dos autos de

Anchieta O corar o sorrir franzir o cenho os movimentos expressivos eacute que

3 Pelo teatro greco-romano (CALLOIS 1985) a influecircncia aplicada agrave plateacuteia eacute a seguinte Morphos Eacute a relaccedilatildeo do ator com o espaccedilo cecircnico e com a plateacuteia pois Morphos eacute a regra eacute a forma e o teatro eacute o jogo de transformar Mimeacutesis Eacute a relaccedilatildeo do ator e da personagem com o prover a si mesmo pois Mimeacutesis eacute a miacutemica a representaccedilatildeo Define a bandeira o lado pelo qual se defende ou ataca personagem versus plateacuteia ator versus ator personagem versus personagem ator versus plateacuteia e personagem versus plateacuteia Agon Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a agressividade pois eacute o Agon o diaacutelogo a luta o estranhamento entre dois lados novamente personagem versus personagem personagem versus plateacuteia plateacuteia versus personagem Lusus Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o que alimenta pois Lusus eacute a ilusatildeo eacute o sonho Eacute onde se tem a ideacuteia de que quando o meu lado ganha ou perde quem ganha ou perde sou euIlinx Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a loucura onde Ilinx eacute a vertigem o risco o perigo de se ganhar ou perder na conta de personagem versus personagem ou personagem versus plateacuteia etc Aleacutea Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o material com o fiacutesico com os resultados na qual o Aleacutea o aleatoacuterio o randocircmico eacute o que natildeo nos permite saber quem vai ganhar ou perder a contenda Plateacuteia versus personagem personagem versus plateacuteia ou personagem versus personagem etc

20

realmente comunicavam as ideacuteias a serem transmitidas incluindo-se a formaccedilatildeo

espiritual profunda onde o mito e crenccedilas cristatildes tiveram uma grande participaccedilatildeo

na formaccedilatildeo e definiccedilatildeo do rol de atividades da comunidade que se formava a

partir daiacute

Devo considerar que a comunidade o meio social se envolve com o

meio ambiente e digo que educar eacute de certa forma um ato ecoloacutegico pois forccedila os

laccedilos de sangue a perpetuarem os comportamentos que deram certo Quem deu

certo na relaccedilatildeo brasis e portugueses Seria ecologicamente correto seguir os

costumes da Santa Feacute Catoacutelica afinal era tudo uma questatildeo de sobrevivecircncia

para o indiacutegena mesmo com interesses diferenciados daqueles eleitos pelos

colonizadores

Natildeo poderia considerar essa falta de interesse dos indiacutegenas pelas

coisas de Deus ou da Coroa como incapacidade para entender o que era Lei Feacute

ou Rei mas como uma imaturidade como uma capacidade a ser desenvolvida

Sendo a educaccedilatildeo vinda da cultura portuguesa originaacuteria de um

depositum

fechado e definido como correto o seu saber eacute necessaacuterio realmente

que o indiviacuteduo que aprende seja um recipiente dependente e plaacutestico pois aos

moldes da Filosofia escolaacutestica tudo o que se recebe se recebe aos moldes do

recipiente Os indiacutegenas eram esse recipiente

No entanto os indiacutegenas natildeo eram essa argila mole ao menos natildeo

todos pois muitos tensionamentos ocorreram antes da aceitaccedilatildeo dos novos

costumes impostos O homem se acostuma a qualquer situaccedilatildeo e se adapta a

qualquer meio ambiente mas muitas vezes antes que isso ocorra o desconforto

21

e a resistecircncia a aceitaccedilatildeo pura e simples ficam evidentes Essas resistecircncias

ficaratildeo mais claras no capiacutetulo mais adiante em que mostro como os indiacutegenas

teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde

Outro ponto importante a ser mostrado eacute quanto aos aldeamentos

jesuiacuteticos onde o iacutendio foi obrigado a uma adaptaccedilatildeo a essa citada aceitaccedilatildeo de

costumes Os jesuiacutetas concebiam que aquela sociedade deveria ser una pela

concepccedilatildeo de bons propoacutesitos fidelidade de interesses e reciprocidade de

simpatia mas o que ocorria na verdade era a necessidade de sobrevivecircncia

daqueles que jaacute natildeo eram mais iacutendios e natildeo conseguiram pela aculturaccedilatildeo

imposta serem tambeacutem brancos e portugueses onde a homogeneidade cultural

natildeo existiu e natildeo existe ateacute hoje nas tribos de nossa atualidade

Como afirma Dewey (1936 p132) uma sociedade indesejaacutevel eacute a que

interna e externamente cria barreiras para o livre intercacircmbio e comunicaccedilatildeo da

experiecircncia A comunidade dos aldeamentos criava barreiras para a comunicaccedilatildeo

da experiecircncia isto eacute o poder de poucos sobre o conhecimento posto sobre as

coisas e a manutenccedilatildeo desse poder a qualquer custo

Haacute que se entender que enquanto o portuguecircs do seacuteculo XVI trazia a

verdade revelada recebida atraveacutes de leis instaacuteveis isto eacute aquelas que podem ser

mudadas conforme a decisatildeo do grupo social que as criou os gentios seguiam

as leis estaacuteveis as lei naturais que os fazia pensar o conhecimento de forma

distinta de seus protetores A filosofia explica o mundo para o filoacutesofo que a

pensa respondendo agraves suas proacuteprias perguntas As respostas agraves perguntas do

filoacutesofo atendem aos anseios do grupo e da eacutepoca em que ele vive pois eacute a

22

resposta agraves perguntas de uma sociedade de uma cultura e se o conceito

persiste eacute porque persistem as perguntas na consciecircncia dessa sociedade

A verdade revelada era imposta pois era atraveacutes de um novo mito que

se dava o novo conhecimento ao gentio O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria

verdade 4 Essa era a nova experiecircncia em que o indiacutegena do seacuteculo XVI se

encontrava experiecircncia essa que para ter valor real deveria fazer os brasis se

afastarem da dor ou se aproximarem do prazer Soacute essas duas coisas movem um

indiviacuteduo no Universo a que pertence

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertencia em relaccedilatildeo agrave nova natureza apresentada foi necessaacuterio ao indiacutegena

criar uma linguagem que pudesse dar conta de transcrever sua realidade afinada

com seu proacuteprio conhecimento de mundo Um novo mito em que ele deveria

chamar o padre de pai e de salvador Natildeo havia para o indiacutegena a divisatildeo entre o

mundo real e o mundo miacutetico e sim um uacutenico olhar que se espalha em todas as

direccedilotildees de sua existecircncia atraveacutes de sua vida vivida e possiacutevel

Assim viviam suas vidas da forma que lhes foi possiacutevel entre um

arremedo de branco e uma caricatura de iacutendio

No homem o possiacutevel se imprime sobre o real5

4 GUSDORF 1959 p13 5 GUSDORF 1959 p15

23

Natildeo parece que esses homens chamados gentios tivessem o

interesse de descobrir o como do mundo real e sim usar dessa forma esteacutetica

para trabalhar com suas fantasias e esperanccedilas subjetivas isto eacute experienciar

O homem moderno atraveacutes de seu racionalismo sentiu aos poucos o

esfriamento de sua psique primitiva e por consequumlecircncia perdeu muitas de suas

ilusotildees pois natildeo mais entra em contato com suas experiecircncias que satildeo o conjunto

e de conhecimentos individuais ou coletivos especiacuteficos ou natildeo e que constituem

aquisiccedilotildees vantajosas que foram acumuladas historicamente por toda a

humanidade sejam elas miacuteticas ou racionais

Jung nos ensina em suas obras que estamos envolvidos por exemplo

com a experiecircncia de Deus de uma forma tatildeo profunda e universal que por mais

que venhamos a questionar esse mito ou essa crenccedila temos a imagem dessa

experiecircncia dentro de noacutes e por isso natildeo temos como acreditar ou deixar de crer

nessas imagens O mesmo acontecia com o Cristatildeo portuguecircs quinhentista mas eacute

claro e oacutebvio que essa experiecircncia era distinta para os indiacutegenas dessa eacutepoca

Por mais que se quisesse impor uma esteacutetica cultural deveriacuteamos perguntar

Tupatilde era um deus diferente de Deus ou a experiecircncia era a mesma

Mas o portuguecircs do Seacuteculo XVI que trazia em suas caravelas e

bagagens todos os conceitos culturais mitos e crenccedilas impotildeem aos brasis

paracircmetros novos de vida cumprindo a qualquer custo uma missatildeo heroacuteica de

semear a palavra de Deus pela Terra fazendo cumprir uma profecia dentro de

concepccedilotildees mentais riacutegidas inflexiacuteveis racionais e complexas

24

Viraacute o tempo em um futuro longiacutenquo em que o mar

Oceano quebraraacute as suas correntes e uma vasta terra seraacute revelada

aos homens quando um marinheiro audacioso como aquele que se

chamava Tifis e que foi o guia de Jasatildeo descobrir um novo mundo

entatildeo Thule (a Islacircndia) natildeo seraacute a uacuteltima das terras

LUCIUS ANNAEUS SEcircNECA Medeacuteia Seacuteculo I da era cristatilde6

As grandes descobertas trouxeram aos novos mundos anseios e

frustraccedilotildees sobre o imaginaacuterio portuguecircs e espanhol dos seacuteculos XV e XVI mas

tambeacutem a possibilidade de encontrarem o local onde Deus plantou o Paraiacuteso

Terrestre

o lugar onde a Divina Providecircncia havia plantado o

Paraiacuteso Terrestre mito essencial e fundamento doutrinaacuterio dos

mundos judaico-cristatildeo e mulccedilumano lugar inicial onde o Criador

havia decidido criar a espeacutecie humana7

A faccedilanha dessas descobertas tanto teacutecnica como humana carregava

dentro das caravelas a crenccedila de que os atores sociais dos descobrimentos

haviam encontrado o paiacutes das lendas o Paraiacuteso Terrestre o reino das Amazonas

as minas do Rei Salomatildeo as hordas impuras de Gog e Magog8 e o fabuloso

palaacutecio com telhados de ouro de Cipango9

6 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p15 7 idem p34 8 O vocaacutebulo Armagedon eacute composto de duas palavras Ar em hebraico significa Planiacutecie e Megiddo eacute uma localidade ao Norte da Terra Santa proacutexima ao monte Carmel onde antigamente Barrack derrotou os exeacutercitos comandados por Sisara e o profeta Elias e executou mais de quinhentos sacerdotes de Baal (Apo 1616 1714 Juizes 42-16 1 Reis 1840) A luz destes eventos biacuteblicos Armagedon simboliza a derrota das forccedilas anti-religiosas por Cristo Os nomes Gog e Magog no capiacutetulo 20 lembram as profecias de Ezequiel a respeito da invasatildeo de Jerusaleacutem por um nuacutemero indeterminado de regimentos sob o comando de Gog das

25

Acreditava-se entre os portugueses e espanhoacuteis que os mitos dessas

terras se encontravam agora agrave matildeo de quem navegasse de quem ousasse terras

longiacutenquas e enigmaacuteticas desvelar seus misteacuterios e atravessar o mare oceano

innavigabile Dessa forma muitas das histoacuterias fantasiosas que povoavam a

mente do europeu quatrocentista e quinhentista foram transferidas para as terras a

serem conquistadas e vieram juntamente com o mito cristatildeo com o Diabo dentro

das caravelas misturadas ao desejo de expansatildeo do comeacutercio e da busca de

riquezas povoando as sombras desses conquistadores

Apenas como lembranccedila os mitos agem sobre a mente humana de

forma a incitar accedilotildees e desencadear moldes de conduta de pensamento e de

sensibilidade Foi dessa forma portanto que os conquistadores partiram para suas

buscas Uma busca baseada no comeacutercio e expansatildeo sim mas de forma latente

na busca de seus mitos

Assim cada terra descoberta cada povo encontrado cada riqueza

desvelada era considerado de propriedade da natureza e por isso era de quem

encontrasse quer por pirataria quer por ordem de um reino quer passando a ser

propriedade de um rei como descendente direto do divino quer ad majorem Dei

gloriam mesmo que isso significasse um etnociacutedio de nuacutemeros altiacutessimos durante

terras de Magog (sul do mar Caacutespio Ezeq cap 38 e 39 Apo 207-8) Ezequiel atribui esta profecia aos tempos do Messias No Apocalipse o cerco dos regimentos de Gog e Magog ao local dos santos e da cidade eleita (ie da Igreja) e a destruiccedilatildeo destes regimentos pelo fogo Celestial deve ser entendida pela derrota total das forccedilas contraacuterias a Deus humanas e demoniacuteacas pela segunda vinda de Cristo (Obtida em http2112hpyollnetapocalipse2htm em 250405) 9 antigo nome da ilha do Japatildeo antes de conhecido pela Europa cristatilde

26

todo os anos quinhentistas conforme jaacute pude demonstrar em A destribalizaccedilatildeo da

Alma Indiacutegena Brasil Seacuteculo XVI uma visatildeo junguiana10

Obviamente essas faccedilanhas dos descobrimentos trouxeram ao Orbis

Christianus grande avanccedilo tecnoloacutegico no ramo dos transportes da navegaccedilatildeo e

do comeacutercio mas principalmente trouxeram o mais preciso conhecimento

geograacutefico e cartograacutefico do planeta de entatildeo cujos mapas por mais atualizados

que estivessem baseavam-se tatildeo somente na geografia biacuteblica da Idade Meacutedia

Era o Velho Mundo nos seacuteculos XV e XVI aacutevido de modernidade mas

persistia na mente dos portugueses e espanhoacuteis a impregnaccedilatildeo de mitos Existia

como produto social uma turva fronteira entre o real e o imaginaacuterio causada pela

verdade revelada das Escrituras Haacute que se entender que aqueles autores

primeiros que escreveram os primeiros livros sagrados estavam cercados de

desertos e de aacutereas inoacutespitas e tiveram a visatildeo de um local edecircnico como sendo

de feacuterteis terras de aacuteguas abundantes onde tudo nascia e crescia sob a matildeo de

um jardineiro celestial

Entatildeo plantou o Senhor Deus um jardim da banda do

oriente no Eacuteden e pocircs ali o homem que tinha formado E o Senhor

Deus fez brotar da terra toda qualidade de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e boas para comida bem como a aacutervore da vida no meio do jardim e

a aacutervore do conhecimento do bem e do mal

E saiacutea um rio do Eacuteden para regar o jardim e dali se dividia

e se tornava em quatro braccedilos O nome do primeiro eacute Pisom este eacute o

que rodeia toda a terra de Havilaacute onde haacute ouro e o ouro dessa terra eacute

bom ali haacute o bdeacutelio e a pedra de berilo O nome do segundo rio eacute

10 CARNOT 2005

27

Giom este eacute o que rodeia toda a terra de Cuche E o nome do terceiro

rio eacute Tigre este eacute o que corre pelo oriente da Assiacuteria E o quarto rio eacute

o Eufrates11

Mas tambeacutem proibiu apoacutes a expulsatildeo de Adatildeo o homem de encontrar

esse Jardim edecircnico

O Senhor Deus pois o lanccedilou fora do jardim do Eacuteden para

lavrar a terra de que fora tomado E havendo lanccedilado fora o homem

pocircs ao oriente do jardim do Eacuteden os querubins e uma espada

flamejante que se volvia por todos os lados para guardar o caminho

da aacutervore da vida12

Encontraram Vejamos um relato de Cristoacutevatildeo Colombo

Satildeo esses grandes indiacutecios do paraiacuteso terrestre porque

o lugar eacute conforme ao que pensam os santos e os sagrados teoacutelogos

E os sinais satildeo igualmente muito conformes pois jamais li ou ouvi

dizer que tamanha quantidade de aacutegua doce pudesse estar no meio

da aacutegua salgada ou na sua vizinhanccedila vem ainda em apoio a tudo

isso a temperatura extremamente agradaacutevel E se essa aacutegua natildeo vem

do Paraiacuteso seria ainda maior maravilha porque natildeo creio que se

conheccedila no mundo rio tatildeo grande e tatildeo profundo13

Chegaram a um local adacircmico sim com vegetaccedilatildeo abundante com

aacuteguas cristalinas e principalmente com um povo diferente daquele que o europeu

11 (Gecircnesis 2 8-14) 12 (Gecircnesis 3 23-24) 13 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p57

28

conhecia Talvez um arremedo do Jardim mas enfim um jardim bom para a

exploraccedilatildeo e bom para aumentar as almas do Tesouro de Cristo

Corpos diferentes e muitas vezes nus exuberantes como os indiacutegenas

da Ilha de Vera Cruz com miacutesticos costumes com lendas fabulosas poreacutem

distintas daquelas que o imaginaacuterio cristatildeo pudesse relatar Nem cinoceacutefalos14

nem hordas malditas mas guerreiros aguerridos em parte doacuteceis e prontos para

serem convertidos em ovelhas do Senhor em parte bravios e indispostos a serem

conquistados

Natildeo se pode numerar nem compreender a multidatildeo de

baacuterbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil

porque ningueacutem pode pelo sertatildeo dentro caminhar seguro nem

passar por terra onde natildeo ache povoaccedilotildees de iacutendios armados contra

todas as naccedilotildees humanas e assim como satildeo muitos permitiu Deus

que fossem contraacuterios uns dos outros e que houvesse entre eles

grandes oacutedios e discoacuterdias porque se assim natildeo fosse os

portugueses natildeo poderiam viver na terra nem seria possiacutevel

conquistar tamanho poder de gente15

Ou ainda

E satildeo muito inclinados a pelejar e muito valentes e

esforccedilados contra seus adversaacuterios e assim parece coisa entranha

ver dois trecircs mil homens nus de uma parte e de outra com grandes

assobios e grita frechando uns aos outros e enquanto dura esta

14 Homens com cabeccedila de catildeo seguidores dos guerreiros Gog e Magog que viriam no apocalipse acompanhando o Anticristo (citados em Apocalipse 20 7-8) 15 GAcircNDAVO1980p12)

29

peleja nunca estatildeo com os corpos quedos meneando-se de uma parte

para outra com muita ligeireza para que natildeo possam apontar nem

fazer tiro em pessoa certa algumas velhas costumam apanhar-lhes

as frechas pelo chatildeo e servi-los enquanto pelejam Gente eacute esta muito

atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vatildeo agrave guerra

sempre lhes parece que tecircm certa a vitoacuteria e que nenhum de sua

companhia haacute de morrer E quando partem dizem vamos matar sem

mais consideraccedilatildeo e natildeo cuidam que tambeacutem podem ser vencidos 16

Era muito comum poreacutem que o conquistador tivesse a visatildeo de que os

povos dessas terras receacutem descobertas os vissem como sendo de origem divina

Colombo assim contava

Disseram-se muitas outras coisas que natildeo pude

compreender mas pude ver que estava maravilhado com

tudo(diaacuterio 18121492) satildeo creacutedulos sabem que haacute um Deus no

ceacuteu e estatildeo convencidos de que viemos de laacute (diaacuterio

12111492) achavam que todos os cristatildeos vinham do ceacuteu e que o

Reino de Castela ali se encontrava e natildeo neste mundo(diaacuterio

16121492) 17

Ou como escrevia Noacutebrega em suas cartas

Todos querem e desejam ser Cristatildeos mas deixar seus

costumes lhes parece aacutespero Vatildeo contudo pouco a pouco caindo na

verdade18

16 idem p13 17 TODOROV 2003 P57 18 NOacuteBREGA 1988 p 114 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551

30

Os Gentios aqui vecircm de muito longe a ver-nos pela fama e

todos mostram grandes desejos Eacute muito para folgar de os ver na

doutrina e natildeo contentes com a geral sempre nos estatildeo pedindo em

casa que os ensinemos e muitos deles com lagrimas nos olhos19

Estatildeo espantados de ver a majestade com que entramos e

estamos e temem-nos muito o que tambeacutem ajuda 20

Falamos do europeu do portuguecircs e do espanhol poreacutem nosso foco

deve e estaacute voltado para o cristatildeo portuguecircs

Esse portuguecircs que no seacuteculo XVI tinha essa imaginaccedilatildeo fervilhante

cheia de conteuacutedos miacuteticos que possuiacutea um falar livre sem os rebuccedilos dos

letrados enfim o povo portuguecircs quinhentista que seguia leis severas de um

reino corporativo onde como nos diz Capistrano de Abreu (1907) As cominaccedilotildees

penais natildeo conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor

de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo e o

confisco de todos os bens 21

Toda a cultura da sociedade portuguesa quinhentista era estruturada

com referecircncia ao sagrado e aos preceitos da Santa Feacute Catoacutelica onde a presenccedila

ou onipresenccedila divina acontecia em toda e qualquer circunstacircncia em qualquer

situaccedilatildeo

19 NOacuteBREGA 1988 p 115-116 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551 20 NOacuteBREGA 1988 p 75 carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo 21 ABREU 1907-2004p46)

31

Essa organizaccedilatildeo cultural se dava sob a forma de um corpo social

definido como o Reino que se entrelaccedilava com outro corpo formado pela Igreja

onde qualquer mediaccedilatildeo seria feita por esses corpos sociais e em uacuteltima instacircncia

Deus era a referecircncia Paiva22 nos coloca que essa constituiccedilatildeo social se dava

como um corpo em graus superpostos o corpo social o corpo miacutestico de Cristo o

universo

Culturalmente a sociedade portuguesa do seacuteculo XVI se

caracterizava pela cimentaccedilatildeo religiosa de todo o seu fazer A uacuteltima

explicaccedilatildeo do por que as coisas eram tais quais eram estava na

religiatildeo ou seja na sua referecircncia ao sagrado O poder do rei a

organizaccedilatildeo da sociedade as instituiccedilotildees os valores os costumes

as expressotildees tudo enfim tinha sua razatildeo de ser na sacralidade tudo

tinha um caraacuteter religioso 23

Nada era questionado quanto a essa cultura religiosa pois tudo

absolutamente tudo o comeacutercio os estudos as conquistas todos ordenavam

seus esquemas atraveacutes da dogmaacutetica e da apologeacutetica religiosa onde se

chamava de Ciecircncia rainha de todas as rainhas a Teologia

Os valores os costumes a compreensatildeo de vida estava imersa no mito

cristatildeo onde a uacuteltima realizaccedilatildeo se daacute em Deus 24 mito que ao longo da Idade

Meacutedia europeacuteia se elaborou fundado na compreensatildeo de uma ordem uacutenica que

se funda em Deus do qual todas as instacircncias subordinadamente se plenificam

22 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura 23 PAIVA 2002 p 3 24 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura

32

assim se pondo25 garantindo ao Rei o direito a proeminecircncia e conquista e

sujeiccedilatildeo de qualquer povo de qualquer terra conquistada

Ficava assim mais faacutecil se compreender o Poder pois ele estaria

concebido fundado na Vontade de Deus e por consequumlecircncia na do Rei

O Rei era antes de tudo era aquele que dizia a justiccedila e o rei perfeito

era o juiz perfeito Que todo julgamento era pela vontade divina e que a boa

dinastia nunca gerava um mau rei e portanto um bom representante de Deus na

Terra

Poreacutem a necessidade de um bom reinado se fazia presente todo o

tempo dando ateacute mesmo possibilidades de trocas de reis por natildeo se cumprir um

bom reinado Era a forma de garantirem a permanecircncia no reinado ou a

legitimidade do golpe para assumir o reinado de outro principalmente se o anterior

regia sem competecircncia com tirania ou descaso Ao levantar essa situaccedilatildeo de

troca de rei ou de afirmar-se no reinado invocavam o Direito das Gentes 26

Dessa forma o direito tambeacutem sujeitava o Rei agraves leis leis essas que na verdade

ao receber a coroa jurou defender como nas Ordenaccedilotildees Afonsinas por

exemplo

Quando Nosso Senhor Deos fez as criaturas assim

razoaveis como aquellas que carecem de razom non quis que

fossem iguaes mas estabeleceo e hordenou cada hua sua virtude e

poderio de partidos segundo o grao em que as pocircs bem assy os

25 idem 26 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128

33

Reys que em logo de Deos na Terra som postos para reger e

governar o povo nas obras que ham de fazer assy de Justiccedila como

de graccedila ou mercees devem seguir o exemplo daquello que ele fez

e hordenou dando e distribuindo non a todos por hua guisa mais a

cada huu apartadamente segundo o gratildeo e condiccedilon e estado de

que for27

Essas mesmas Ordenaccedilotildees dividiam a sociedade em estratos os

defensores os que defendem o povo os que rogam pelo povo os oradores

dividindo ainda em estados limpos (letrados lavradores e militares) e estados vis

(oficiais mecacircnicos ou artesatildeos) e dos privilegiados (que pela miliacutecia ou pela Arte

se livraram das profissotildees soacuterdidas) 28

Em todo esse universo religioso eacute que estavam os fatos gerados por

seus atores sociais seus costumes seus ritos e siacutembolos suas vestimentas e

linguagem tudo fazendo a cultura do portuguecircs cristatildeo quinhentista

O pensamento social poliacutetico medieval eacute dominado pela

ideacuteia da existecircncia de uma ordem universal (cosmos) abrangendo os

homens e as coisas que orientava todas as criaturas para um objetivo

uacuteltimo que o pensamento cristatildeo identificava como o proacuteprio

Criador29

A sociedade portuguesa para a gloacuteria e satisfaccedilatildeo de um imaginaacuterio

eminentemente cristatildeo estaria no mundo para realizar os planos do Criador

portanto tudo e todos que natildeo pudessem caber na inquestionaacutevel obediecircncia e

27 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128 28 idem p132 29 idem p122

34

pertenccedila ao cristianismo somente poderiam ser avaliados como inferiores como

infieacuteis e hereges tal qual as bruxas os aacuterabes os judeus tatildeo mancomunados

com o Diabo

Chega entatildeo esse Portugal agraves Terras Brasiacutelicas com o espiacuterito avivado

com relaccedilatildeo aos sentimentos de cumprir a missatildeo de propagar a feacute cristatilde com um

intuito exorcista de eliminar os democircnios e fantasmas que atraveacutes de milecircnios

teriam povoado estes mundos remotos onde a forccedila de Deus se batia com as

artimanhas do Diabo e ocupada por seres infieacuteis e de praacuteticas pagatildes mas ligado

ao racionalismo portuguecircs que se desenvolvia prometia ainda essa terra o

fornecimento de material para exploraccedilatildeo e o comeacutercio

A convivecircncia do europeu com os nativos da Aacutefrica Aacutesia e

Ameacuterica significou para esses povos castraccedilatildeo e imposiccedilatildeo cultural

tal o etnocentrismo que a caracterizava tal a racionalidade que

conduzia sua poliacutetica tal sua forccedila militar30

Chegam entatildeo esses portugueses fedentos e escalavrados de feridas

de escorbuto31 com a intenccedilatildeo de transformarem indiacutegenas esplendidos de vigor e

beleza32 em querubins caciques em Guaixaraacute e jovens adolescentes em outros

tantos diabos pois que se defrontam com formas diferentes de amor de mundo

de vida e morte e acreditavam piamente que essa era uma forma diaboacutelica de

30 PAIVA 2002 p 46 31 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 32 idem

35

viver uma ofensa agrave obra de Deus na terra por isso natildeo podia deixar de ser banida

e extirpada como um tumor que ameaccedilava a Gloacuteria do Senhor 33

33 CARNOT 2005 p120

36

CAPIacuteTULO 1 - A EDUCACcedilAtildeO COMO TRANSMISSAtildeO DE CULTURA QUE ENSINA E ALTERA

COSTUMES

Durante o tempo de estudos e pesquisas desde os tempos de

mestrado por ter vindo de uma aacuterea de investigaccedilatildeo como a Psicologia parto do

princiacutepio que a conversatildeo e na educaccedilatildeo transmitida aos indiacutegenas houve

diversas falhas como jaacute pude mostrar em a Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

falhas essas que existiram pelas vivecircncias dos atores sociais em seu tempo e em

resposta a suas ansiedades Tenho constantemente pensado que entre essas

falhas qual a mais importante na educaccedilatildeo na conversatildeo e na catequese

Seria um erro didaacutetico Seria um erro baseado no depositum

da

verdade revelada onde o jesuiacuteta professava suas concepccedilotildees e conceitos

Seraacute que esse erro se encontra no indiacutegena no receptaacuteculo desse

depositum que talvez natildeo estivesse apto a recebecirc-lo

Gostaria de entender o ser humano como um portador de um vaacutecuo

Natildeo como uma tabula rasa mas como um vaacutecuo disponiacutevel a descobertas a

formas e cores a necessidades a curiosidades Seriam a curiosidade e a

necessidade o proacuteprio vaacutecuo

37

Parto desse ponto para afirmar que os vaacutecuos preacute-existem para que as

formas e conteuacutedos possam vir a existir O vaacutecuo eacute a Ideacuteia a Concepccedilatildeo Primeira

a Fecundaccedilatildeo Coacutesmica assim como Primeiro foi o Verbo

CG Jung nos diz que o inconsciente possui todos os materiais

psiacutequicos que existem na consciecircncia de um indiviacuteduo inclusive as percepccedilotildees

sublimais34 e principalmente aqueles materiais que natildeo alcanccedilaram o limiar da

consciecircncia mas que serviratildeo para que o indiviacuteduo receba tudo aquilo que poderaacute

advir com a aculturaccedilatildeo que viraacute a acumular em sua vida

A educaccedilatildeo seja ela a de transmissatildeo de cultura ou a educaccedilatildeo formal

escolar com a funccedilatildeo de nos colocar em focircrmas nos daacute preenchimento desse

vaacutecuo sem que faccedila entender a necessidade ou que nos permita buscar a

curiosidade de desvelar o veacuteu que cobre o universo das coisas as essecircncias O

homem somente aprende algo que sirva para atender sua curiosidade ou uma

necessidade

Assim eacute a educaccedilatildeo nos oferece importantes informaccedilotildees e conceitos

sem que nos provoque a busca

Em Les secrets de la maturiteacute Hans Carossa (Apud Bachelard-1990 p7)

diz o homem eacute a uacutenica criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior

34 sublimais

origem sublimaccedilatildeo = lat sublimatigraveooacutenis accedilatildeo de elevar exaltar pelo fr sublimation (1274) elevaccedilatildeo exaltaccedilatildeo (1856) accedilatildeo de purificar (1904) - modificaccedilatildeo da orientaccedilatildeo originalmente sexual de um impulso ou de sua energia de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade transformaccedilatildeo de um motivo primitivo e sua colocaccedilatildeo a serviccedilo de fins considerados mais elevados [A atividade religiosa artiacutestica e intelectual satildeo exemplos tiacutepicos de sublimaccedilatildeo

38

de outra A palavra vontade usada por Carossa me faz buscar outros conceitos

como desejo curiosidade afatilde tesatildeo necessidade Eacute essa vontade de olhar para

o interior das coisas que torna a visatildeo aguccedilada penetrante pronta para descobrir

uma intenccedilatildeo uma utilidade uma funccedilatildeo Eacute o violar o segredo tal qual uma

crianccedila que abre seu brinquedo para ver o que haacute dentro Noacutes adultos por falta de

memoacuteria de nossa infacircncia queremos atribuir esse abrir o brinquedo como uma

intenccedilatildeo destrutiva Mas a crianccedila o humano em noacutes busca ver aleacutem ver por

dentro em suma escapar a passividade da visatildeo 35

O homem aculturado educado olha para essa estrutura externa e

natildeo vecirc a profundeza do brinquedo mas a crianccedila possuidora de um vaacutecuo ainda

natildeo preenchido pela histoacuteria faz com o brinquedo o que a educaccedilatildeo natildeo sabe

fazer e a imaginaccedilatildeo realiza magistralmente seja como for descobre sua

profundidade sua substacircncia seu oculto

Capta a crianccedila imagens tatildeo numerosas tatildeo variaacuteveis e tatildeo confusas

que despertam cada vez mais as nuanccedilas sentimentais de sua curiosidade Toda

doutrina da imagem eacute acompanhada em espelho por uma psicologia do

imaginante 36

Assim encontro um dos enganos da educaccedilatildeo o natildeo preencher o

vaacutecuo humano com o desejo com a vontade e sim com o que as concepccedilotildees

adultas pensam ser importantes

35 BACHELARD 1990p8 36 idem

39

Mas se procurarmos outras falhas com relaccedilatildeo ao ensinar e ao

aprender esbarramos na filosofia que muitas vezes trabalha com essa busca da

profundidade das coisas de forma dogmaacutetica que tolhe brutalmente toda

curiosidade voltada para o interior das coisas 37 Para esses filoacutesofos da educaccedilatildeo

que assim pensam a profundidade das coisas eacute ilusatildeo que a crianccedila pergunta

mas que natildeo deseja realmente saber e que se lhe explicarem superficialmente

satisfaratildeo sua necessidade

Em verdade essas questotildees natildeo perturbam esses filoacutesofos Nessas

questotildees que a a educaccedilatildeo natildeo sabe fazer amadurecer a filosofia condena o

homem a permanecer como ele diz no plano dos fenocircmenos 38 Tudo natildeo passa

de aparecircncia Inuacutetil ir ver mais inuacutetil ainda imaginar mas se esquece que a

natureza esconde como funccedilatildeo primaacuteria da vida protege abriga guarda

reserva e esse interior tem funccedilotildees de trevas de guardar aquilo que a curiosidade

ou a necessidade necessitam iluminar

Magie uma personagem de Henri Michaux39 em um de seus conselhos

diz ponho uma maccedilatilde sobre a mesa Depois ponho-me dentro dessa maccedila Que

tranquumlilidade Flaubert40 dizia a mesma coisa a forccedila de olhar um seixo um

animal um quadro senti que eu estava neles

Somente o poeta e seus personagens sabem do interior das coisas

Natildeo poderia ser a educaccedilatildeo uma poesia

37 idem p9 38 idem p9 39 BACHELARD 1990 apud p11 40 BACHELARD 1990 apud p11

40

Francis Ponge41 busca o entender das coisas da seguinte forma

Proponho a todos a abertura dos alccedilapotildees interiores uma viagem na espessura

das coisas uma invasatildeo de qualidades uma revoluccedilatildeo ou uma subversatildeo

comparaacutevel agravequela operada pela charrua ou pela paacute quando de repente e pela

primeira vez satildeo trazidos agrave luz milhotildees de fragmentos lamelas raiacutezes vermes e

bichinhos ateacute entatildeo enterrados

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas natildeo me conta que por mais que mude

as peccedilas que satildeo sempre as mesmas estatildeo presas numa caixa A mim agrada

mais o microscoacutepio ou a luneta que satildeo instrumentos da curiosidade

A educaccedilatildeo conserva em si a manutenccedilatildeo da verdade revelada da

Idade Meacutedia onde natildeo se podia buscar o cerne das coisas acredita ainda hoje

que o cisne de esplendorosa brancura eacute todo negrume no interior

Essa

verdade medieval que permanece nos conceitos da escola do ensinar do

aprender teria sido quebrada atraveacutes de um pequeno e simples exame para

saber que o cisne natildeo eacute muito diferente em suas cores do interior do corvo

Se apesar dos fatos a afirmaccedilatildeo do negrume intenso do cisne eacute tatildeo amiuacutede

repetida eacute por satisfazer a uma lei da imaginaccedilatildeo dialeacutetica As imagens que satildeo

forccedilas psiacutequicas primaacuterias satildeo mais fortes que as ideacuteias mais fortes que as

experiecircncias reais 42

41 BACHELARD 1990 apud p10 42 BACHELARD 1990 p17

41

Como disse Jean Paul Sartre eacute preciso inventar o acircmago das coisas

se quisermos um dia descobri-lo

Natildeo sei se estou conseguindo passar ao leitor a total significacircncia da

ideacuteia do preenchimento do vaacutecuo atraveacutes de uma educaccedilatildeo que olhe para dentro

das coisas Quando falo de dentro das coisas natildeo estou com isso falando de

interior tatildeo somente mas da essecircncia do acircmago Veja este exemplo certa vez

caminhando com meu filho que tinha entatildeo quatro anos pelas ruas do bairro

onde resido ruas com terrenos vazios e onde se pode ter contato bastante grande

com a natureza pude brincar de investigar

Andaacutevamos por uma dessas ruas quando eu encontrei pegadas de um

cavalo Conhecendo esse espiacuterito de investigaccedilatildeo e da curiosidade que emana do

meu filho mostrei a ele as pegadas Imediatamente ele disse que legal vocecirc

descobriu essas pegadas do cavalo branco Perguntei como ele poderia saber a

cor do cavalo que havia passado por ali Sua resposta foi simples vamos seguir

as pegadas e a gente pode saber e eu estou certo Aceitei a proposta e saiacutemos

seguindo as pegadas Em alguns pontos onde a terra estava mais firme as

pegadas sumiam mas ele como toda sua curiosidade buscava novas evidecircncias

e encontrava as pegadas seguintes Andamos lentamente e olhando para o chatildeo

das ruas de terra por mais ou menos duas horas sem que ele desistisse ou

mostrasse sinais que natildeo mais se importava com a brincadeira Andamos

precisamente quatro quilocircmetros ateacute chegarmos a um local onde se localizam

algumas baias e laacute estavam alguns cavalos Havia um branco e ele se convenceu

e quase me convenceu tambeacutem de que estava certo

42

Esse vaacutecuo da curiosidade foi preenchido a perspectiva de intimidade

da coisa do evento mostrou um interior maravilhoso um interior esculpido de

fantasias da mesma forma que se abrisse um geodo e um mundo cristalino

houvesse sido revelado

Eacute dessa qualidade de vaacutecuo que falo e que a educaccedilatildeo natildeo eacute capaz de

preencher natildeo por falta de conteuacutedo ou de forma mas da maneira de trabalhar a

curiosidade e a necessidade Natildeo basta a natureza conter formas incriacuteveis na

moleacutecula da aacutegua ou no floco de neve conter eflorescecircncias arborescecircncias e

luminescecircncias se natildeo for possiacutevel dar o desejo dessas descobertas Repito a

educaccedilatildeo natildeo sabe fazer isso mas a imaginaccedilatildeo faz com perfeiccedilatildeo a alquimia

das descobertas

Jung fala da alquimia em seus estudos ligando o sonho da

profundidade das substacircncias43 agrave busca do self atraveacutes do mergulho no

inconsciente Se o alquimista fala do mercuacuterio ele pensa exteriormente no

argento vivo mas ao mesmo tempo acredita estar diante de um espiacuterito escondido

ou prisioneiro da mateacuteria

44

A curiosidade eacute como um sonho de descoberta das virtudes secretas

das substacircncias ao tentar descobrir pela curiosidade ou pela necessidade a

essecircncia das coisas eacute como sonhar como o secreto em noacutes Os maiores

43 No aristotelismo e na escolaacutestica realidade que se manteacutem permanente sob os acidentes muacuteltiplos e mutaacuteveis servindo-lhes de suporte e sustentaacuteculo aquilo que subsiste por si com autonomia e independecircncia em relaccedilatildeo agraves suas qualificaccedilotildees e estados Algo que estaacute aleacutem sob as aparecircncias 44 cf JungPsychologie und Alchemie p399 apud Bachelard p 39

43

segredos de nosso ser estatildeo escondidos de noacutes mesmos estatildeo no segredo de

nossas profundezas 45

Eacute exatamente a partir da curiosidade sobre essas essecircncias sobre

essa alquimia que pesquiso meu trabalho em Educaccedilatildeo Histoacuteria e Cultura Minha

tese vem responder a esse meu anseio entender o mito que fazia com que

homens saiacutessem do conforto de seus lares ou mosteiros para conquistarem terras

novas e imporem seus dogmas a povos cuja explicaccedilatildeo da vida estavam

baseadas em outros mitos

Vejo o mito como um sistema de conhecimento velado poreacutem mesmo

assim exaustivo do inefaacutevel e do divino Eacute o mito a curiosidade aliada agrave

necessidade da explicaccedilatildeo de si e sua relaccedilatildeo individual com o Universo

Acontece poreacutem que a catequese a imposiccedilatildeo de cultura a educaccedilatildeo

negam a individualidade do homem negam seus vaacutecuos e seus mitos gerando

vaacutecuos novos e que natildeo podem ser preenchidos com aquilo que existe na verdade

daquele que foi conquistado O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria verdade

46

Negar essa individualidade eacute um absurdo e a crianccedila sabe disso O

homem por mais que natildeo queira aceitar pois tenta se proteger de sua

incapacidade de buscar as essecircncias tem pleno conhecimento que a consciecircncia

eacute individual que a busca eacute individual que a curiosidade eacute individual e que ela faz

parte da substacircncia e da coisa em si

45 Bachelard p39 46 GUSDORF 1959 p13

44

Mas para o homem quando despido de suas aculturaccedilotildees e carapaccedilas

de defesas contra suas emoccedilotildees a coisa em si precisa ser explicada O que lhe

resta entatildeo eacute estruturar essa explicaccedilatildeo sob a forma de representaccedilatildeo Para

representar colhe do externo e divino e interioriza tal representaccedilatildeo em sua

essecircncia Novamente o mito eacute criado

Em todo o tempo de bancos escolares infelizmente natildeo tive a atenccedilatildeo

que poderia ter em relaccedilatildeo agrave mitologia Tive uma ideacuteia precaacuteria de tal assunto que

natildeo me mostrou quanto essa forccedila criadora que norteou o rejuvenescimento

constante dos mitos na esfera grega assiacuteria egiacutepcia e como essa atividade do

espiacuterito antigo agia de modo essencialmente poeacutetico e artiacutestico da mesma forma

que para o homem moderno tem a ciecircncia contribuiacutedo para nossa evoluccedilatildeo

Assim novamente digo que a questatildeo a ser respondida com esta

pesquisa eacute de como vivia o povo indiacutegena com essa experiecircncia que chamo o

mito de Deus quer fosse o Deus Cristatildeo quer fosse o deus ntildeande ru Pa-Pa

Tenodeacute47

Por isso o objeto a ser trabalhado nesta tese eacute o mito como

instrumento educacional de transmissatildeo de cultura fazendo uma anaacutelise de como

o mito cristatildeo era entendido pelos portugueses e jesuiacutetas no seacuteculo XVI e imposto

violentamente aos indiacutegenas desse mesmo tempo

A pesquisa desta temaacutetica buscaraacute a relaccedilatildeo do mito cristatildeo em uniatildeo

com mitos e lendas do povo aacuterabe invasor da peniacutensula ibeacuterica aleacutem dos mitos e

47 Em liacutengua ancestral Tupi o abantildeeenga significa nosso Pai Primeiro

45

lendas oriundas do oceano inavegabile por ocasiatildeo dos descobrimentos quando

marinheiros narravam histoacuterias fantaacutesticas de Homens-cavalo homens

gigantescos de um uacutenico peacute ciclopes e amazonas e outros mitos do mirabilis no

mundo conhecido do seacuteculo XVI de encontrar as diferenccedilas e semelhanccedilas com

os mitos europeus

Pesquisar ainda o mito como instrumento educacional de transmissatildeo

de cultura atraveacutes da narrativa da educaccedilatildeo falada e contada amplamente

utilizada pela pedagogia jesuiacutetica que utilizou todos os conceitos tanto de mitos

como de pecados e tabus para catequizar e converter os indiacutegenas agrave Santa Feacute

Catoacutelica

Essa eacute minha busca atraveacutes da curiosidade mostrar que a educaccedilatildeo soacute

poderaacute ser eficaz no momento em que trabalhar com os mitos os mitos do

descobrir os mitos de desvelar o mito do vaacutecuo

46

CAPIacuteTULO 2 - O MITO

No atual quadro do desenvolvimento cientiacutefico eacute cada mais comum se

falar em interdisciplinariedade conceito que traduz um modo novo de lidar com

os objetos de estudo com os planos teoacuterico e metodoloacutegico da pesquisa e

especialmente com o papel do cientista diante do universo que busca

compreender eou explicar

Tendo como coadjuvantes conhecimentos que vatildeo da Psicanaacutelise agrave

Antropologia e agrave Arte da Sociologia agrave Filosofia e agrave Histoacuteria os estudos em

Educaccedilatildeo fazem um percurso que recoloca a questatildeo epistemoloacutegica do proacuteprio

estatuto da ciecircncia de transmissatildeo de cultura

Onde buscar respostas

Como opccedilatildeo de caminho busquei as respostas na ontologia claacutessica e

no mito como bases como alicerces do que pretendo construir no que tange agrave

Educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura

O mito foi quase sempre considerado o produto de uma forma de

conhecimento do mundo dos fatos de conhecimento do mundo dos fatos naturais

e sobrenaturais organizada de modo alegoacuterico a ponto de mostrar poeticamente

a relaccedilatildeo entre homem e universo ou um modelo um arqueacutetipo que mesmo

47

mudando de vez em quando de acordo com conteuacutedos histoacutericos e geograacuteficos

peculiares tem sempre a mesma estrutura formal ligada ao mecanismo de

funcionamento da psique humana ou enfim um meacutetodo religioso de aproximaccedilatildeo

da concepccedilatildeo sagrada da existecircncia em que o mito eacute tido como um sistema de

conhecimento velado poreacutem mesmo assim exaustivo do inefaacutevel e do divino

Natildeo importa se o mito define o iniacutecio do mundo ou o mundo define o

iniacutecio do mito O que importa enfim eacute que o mito nasce com o humano pois tudo o

que existe no mundo eacute visto sob o olhar do humano

Tendo esse homem um pecado original como faz parte da nossa cultura

ou uma forma original de ter vindo ao mundo como a partir do caos ou da

escuridatildeo todos os humanos reconhecem sua identidade atraveacutes da natureza e

das coisas humanas

Durante toda sua vida os homens que satildeo igualmente homens

nascem de uma mesma forma e morrem de uma mesma forma no entanto natildeo

soacute com caracteriacutestica fiacutesicas diferentes natildeo soacute com valores diferentes com

definiccedilotildees espirituais diferentes com mitos diferentes mas todos explicam essas

igualdades e diferenccedilas atraveacutes do mito

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida

O ser humano natildeo nasce com papeacuteis em branco como uma tabula rasa

ao contraacuterio estava preparado para as experiecircncias da vida humana do mesmo

48

modo que os paacutessaros estavam de maneira inata prontos para construir ninhos

ou a fecircmea da tartaruga marinha estava preparada para retornar ao local onde

nasceu para laacute botar os proacuteprios ovos Mas algumas muitas das situaccedilotildees tiacutepicas

do homem relativas agrave condiccedilatildeo humana satildeo representadas pelos mitos

apreendidos e esses mitos datildeo ao homem a predisposiccedilatildeo para experimentar os

conceitos de matildee pai filho Deus Grande Matildee velho saacutebio nascimento morte

renascimento separaccedilotildees rituais de cortejo casamento e assim por diante

O mito se forma sob as caracteriacutesticas de imagens primordiais de fatores e

motivos que coordenam os elementos psiacutequicos do homem que soacute podem ser

reconhecidos como formadores do mito apoacutes terem efeito na vida do homem

Dessa forma os conteuacutedos miacuteticos pertencem agrave estrutura psiacutequica dos

indiviacuteduos enquanto possibilidades latentes tanto como fatores bioloacutegicos

como histoacutericos

48

Os mitos natildeo se difundem apenas pela tradiccedilatildeo linguagem ou migraccedilatildeo

Eles podem surgir de forma espontacircnea em qualquer tempo ou lugar sem serem

influenciados por transmissatildeo externa Pode-se considerar portanto que em cada

psique existem verdadeiras prontidotildees vivas ativas que embora inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico Essas imagens de

prontidatildeo satildeo imagens arquetiacutepicas que na mente consciente desenvolvem um

jogo entre as realidades interna e externa do homem que sofre pressatildeo pessoal e

cultural do tempo e do lugar em que estatildeo inseridas

48 JACOBI 1991 paacuteg39

49

Por esse motivo o mito eacute normalmente milenar e universal ao grupo

social em que atua eacute parte do inconsciente coletivo pois satildeo disposiccedilotildees

herdadas pela humanidade Manifesta-se ou produz imagens e pensamentos Os

conteuacutedos do inconsciente pessoal satildeo aquisiccedilotildees da existecircncia individual ao

passo que os conteuacutedos do inconsciente coletivo satildeo arqueacutetipos que existem

sempre e a priori

A definiccedilatildeo de mito eacute basicamente a concepccedilatildeo de homem

plenamente relacionado com tudo o que existe em seu contorno O homem eacute o

todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias arquetiacutepicas que todos

os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo individual e possuindo

caracteriacutesticas uacutenicas

Essa eacute a relaccedilatildeo maacutegica do mito O homem crecirc que vai chover para

molhar sua plantaccedilatildeo e realmente chove Chove por condiccedilotildees climaacuteticas mas

para o homem envolvido no mito chove porque os deuses assim o permitiram

natildeo soacute para ele mas para aqueles que juntamente com ele vivem o mito Dentro

do mito o homem opera sobre o existente e sobre sua consciecircncia de mundo No

mito o homem vive dentro e fazendo parte do todo natildeo como uma soma de

partes mas como uma parte representando o todo

Ontologicamente o mito traz consigo a missatildeo de mostrar em termos

gerais a existecircncia do ser natildeo deste ou daquele ser concreto mas do ser em

geral pois o homem sempre buscou e buscaraacute as respostas de quem eacute de onde

vem para onde vai se eacute que vai para algum lugar ou condiccedilatildeo

50

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertence foi necessaacuterio ao homem criar uma linguagem que pudesse dar

conta de transcrever sua realidade afinada com seu proacuteprio conhecimento de

mundo

No entanto sempre foi tarefa impossiacutevel tanto ao homem primitivo

como ao homem da modernidade definir o que eacute o homem o que eacute o ser ou

mesmo quem ele eacute

Cada vez que tentamos definir o homem como um ser deparamos com

outros conceitos a serem elaborados pois a cada qualidade de homem a cada

origem cultural ou geograacutefica de cada eacutepoca os conceitos se modificam as

definiccedilotildees se tornam mais errocircneas caso se tente colocar o homem dentro de um

soacute conceito

Claro que sabemos o que eacute o homem claro que o homem conhece a si

mesmo poreacutem ao perceber-se diante do outro diante de desejos e anseios tatildeo

diferentes entre si associados a coisas tatildeo distintas se obriga novamente a uma

anaacutelise de si e do todo

Eacute nesse anseio que o homem se pergunta quem eacute natildeo deixando de

perguntar quem eacute o outro na relaccedilatildeo de troca de parceria de mutualidade

O mito do homem necessita demonstrar essa origem e esse fim

escatoloacutegico49

49 Da escatologia doutrina que trata do destino final do homem e do mundo pode apresentar-se em discurso profeacutetico ou em contexto apocaliacuteptico

51

Necessita o homem agregar valor agraves definiccedilotildees quer com objetos que

se agregam dando qualidade agraves coisas quer transformando os objetos ideais em

personificaccedilotildees

A fortaleza do deus sol era construiacuteda sobre esplecircndidas

colunas e brilhava coberta de reluzente ouro e rubis flamejantes O

frontatildeo superior era emoldurado por marfim alvo e brilhante e os

portotildees duplos eram de prata ornamentados com impressionantes

relevos esculpidos por Hefaiacutestos representando a terra o mar e o ceacuteu

com seus habitantes50

Heacutelio vestido com um manto de puacuterpura estava sentado

sobre o seu trono ornamentado com esmeraldas Agrave sua direita e agrave

sua esquerda estava o seu seacutequumlito o Dia o Mecircs o Ano o Seacuteculo e

as Horas Do outro lado a Primavera com sua coroa de flores o

Veratildeo com suas espigas de cereais o Outono com uma cornucoacutepia

cheia de uvas e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve51

Sem que se fique preso a definiccedilotildees religiosas de uma ou outra crenccedila

necessita ainda o homem buscar respostas atraveacutes dos mitos que possam

confirmar sua percepccedilatildeo de mundo Eu existo o mundo existe os deuses

existem e as coisas existem Mas existem sem mim Existem independentes de

minhas representaccedilotildees Ao perceber-se distinto ao olhar o outro ao reconhecer-

se em outro o homem miacutetico percebe existirem definiccedilotildees diferentes para o ser

50 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 51 idem

52

em si mesmo e o ser o outro o que sugere as relaccedilotildees e o obriga a entrar em

contato com o real e suas representaccedilotildees de mundo e suas explicaccedilotildees para

esse mundo

Esses dois significados equivalem a estes outros dois a

existecircncia e a consistecircncia A palavra ser significa tambeacutem consistir

ser isto ser aquilo Quando perguntamos que eacute o homem Que eacute a

aacutegua Que eacute a luz Natildeo queremos perguntar se existe ou natildeo existe

o homem se existe ou natildeo existe a aacutegua ou a luz Queremos dizer

qual eacute a sua essecircncia Em que consiste o homem Em que consiste

a aacutegua Em que consiste a luz 52

Dessa forma para que uma estrutura mental possa ser montada o

homem tentaraacute buscar no mito a essecircncia de sua vida do porquecirc do sol e de

como surgiu do porquecirc das chuvas da boa e da maacute colheita da boa e maacute sorte na

caccedila do existir do dia e da noite e mesmo depois de cientificamente ter certezas

de suas definiccedilotildees guarda dentro de si sob a forma do pensamento da crianccedila o

homem primitivo que crecirc e vive o mito O mito da essecircncia da origem no divino e

da busca de sua existecircncia

Honrado pai na terra todos me ridicularizam e respondem

minha matildee Cliacutemene Afirmam ser falsa a minha origem divina

dizendo que sou filho bastardo de um pai desconhecido Eacute por isso

52 MORENTE 1930 62

53

que estou aqui para pedir-lhe um sinal que prove a todos na terra que

sou seu filho 53

Cria entatildeo o homem um mito para mostrar sua existecircncia pois o mito

eacute a proacutepria representaccedilatildeo do real natildeo estando fora da realidade e sim formulando

um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a accedilatildeo 54 Natildeo se

pode encarar o mito como constituiacutedo de um puro e simples pensar de forma

fabulosa anaacuteloga ao sonho ao devaneio ou agrave poesia

A consciecircncia miacutetica desenha a configuraccedilatildeo do primeiro

universo 55

A imagem do mundo desenhada por essa consciecircncia miacutetica pela

consciecircncia da essecircncia do ser e sua existecircncia se afirma e se reafirma atraveacutes

de uma paisagem do grupo social paisagem esta que natildeo se prende somente a

uma configuraccedilatildeo geograacutefica ou mesmo fiacutesica mas envolvida por uma visatildeo moral

e espiritual do povo

A filosofia ao descobrir no caminhar das estrelas a mesma exigecircncia

do bater do coraccedilatildeo do homem reconhece nos milecircnios da evoluccedilatildeo social e

humana o primeiro desenho dos universos feito pelo homem primitivo sem saber

53 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 54 GUSDORF 1960 22 55 GUSDORF 1960 51

54

que em verdade jaacute sabia a diferenccedila entre a fiacutesica e a metafiacutesica Eacute proacuteprio do

mito pois dar sentido ao universo 56

Poreacutem o homem miacutetico se depara com outra pergunta por que somos

tatildeo distintos Porque os seres possuem qualidades diferentes que os transforma

em outros Se todos tecircm a mesma origem no divino e se os deuses satildeo como

satildeo por que criaram nos seres tantas diferenccedilas

Entende o homem que independente de sua percepccedilatildeo de universo e

as explicaccedilotildees que pode dar sobre deuses sobre as horas e sobre os tempos e

as colheitas ainda havia que tentar evidenciar as diferenccedilas e as qualidades das

coisas chamadas por ele de seres

A carruagem descia cada vez mais e passado um instante

jaacute estava perto de uma montanha O solo entatildeo se abriu por causa do

calor e como todos os liacutequidos secassem subitamente comeccedilou a

arder As pastagens ficaram amarelas e murchas as copas das

aacutervores das florestas incendiaram-se logo o fervor chegou agrave planiacutecie

queimando as colheitas incendiando cidades paiacuteses inteiros ardiam

com sua populaccedilatildeo Picos florestas e montanhas estavam em

chamas e foi entatildeo que os povos da Etioacutepia ficaram negros A Liacutebia

tornou-se um deserto57

Os seres possuem qualidades que agregam valores a esses seres

Definem as diferenccedilas de haacutebitos de raccedilas de culturas de deuses a serem

adorados e democircnios a serem rechaccedilados de bem e mal de batalhas de povos a

56 GUSDORF 196052 57 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005

55

serem dominados ou convertidos de deuses de conquistadores que se

transformam em democircnios para os povos conquistados Que fazem ricos

imperadores serem deuses e pobres escravos mortais

Onde estaratildeo essas explicaccedilotildees No topos ouran s58 Nos mundos

sensiacutevel e inteligiacutevel definidos por Parmecircnides Por Soacutecrates por Platatildeo ou

Aristoacuteteles

O homem miacutetico necessita mostrar que os sentidos o espetaacuteculo

heterogecircneo do mundo com seus variados matizes natildeo eacute o verdadeiro ser mas

antes eacute um ser posto em interrogaccedilatildeo eacute um ser problemaacutetico que necessita

explicaccedilatildeo 59 explicaccedilatildeo sobre as coisas sensiacuteveis e por traacutes delas o intemporal e

o eterno

O mito poderia ser considerado como a arquitetura do universo

desenhado pelo homem Tudo estaacute diante de noacutes todas as coisas estatildeo exposta e

noacutes tambeacutem fazemos parte dessa multiplicidade de coisas que compotildee e

constituem o real

O que se pode afirmar no entanto eacute que atraveacutes do mito o homem se

relaciona com o outro pensa os deuses vive e conhece as relaccedilotildees da

comunidade que habita Define tarefas coletivas e individuais na defesa e na

guarda da comunidade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

58 O mundo dos deuses Tambeacutem chamado de topos noet s o mundo das ideacuteias 59 MORENTE 1930 97

56

A relaccedilatildeo com o coletivo serve agraves necessidades bioloacutegicas de alimento

de si e da prole da procriaccedilatildeo e da guarda do patrimocircnio geneacutetico mas serve

tambeacutem para atender com base numa estrutura psiacutequica ao espiacuterito em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal Para Hollis (1998) Quem

a pessoa eacute define-se em parte por de quem ela eacute

a quem ou com qual

propoacutesito estaacute comprometida

Nas sociedades em que possa haver um colapso de um mito central se

esvai a essecircncia psicoloacutegica preciosa O homem perde o sentido de seus

conteuacutedos miacuteticos e se reativam seus conteuacutedos primitivos onde os valores

diferenciados satildeo substituiacutedos pelos elementos de poder e prazer em uma minoria

e expondo as outras camadas ao vazio e ao desespero

O mito central eacute de tatildeo vital importacircncia que sua perda acarreta uma

situaccedilatildeo apocaliacuteptica quebrando-se o ciacuterculo maacutegico em que o homem estaacute

inserido rompendo-se a relaccedilatildeo do ego com seu criador tendo esse indiviacuteduo que

perguntar novamente e seriamente qual o sentido da vida Natildeo haacute sentido na

vida pois a vida deve ser vivida e natildeo sentida no entanto isso soacute pode ocorrer e

as perguntas serem feitas se o ciacuterculo miacutetico estiver circundando a existecircncia do

homem

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de

nossa anguacutestia individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de

um novo mito central vai resolver o problema para o indiviacuteduo e para

a sociedade60

60 EDINGER 1999 p11

57

Se o mito natildeo eacute a proacutepria ontologia a proacutepria metafiacutesica61 eacute com

certeza a saga do heroacutei chamado ser humano em sua luta ontogocircnica62 Esse

heroacutei miacutetico usa suas armas para viver a vida a ser vivida Usa suas quatro armas

o saber o ousar o querer e o calar para tal qual Faetonte obter a resposta do

deus criador mesmo que tombe em combate na luta contra a finitude humana

Faetonte com os cabelos em chamas caiu como uma

estrela cadente E o rio Poacute recebeu sua carcaccedila carbonizada ante o

olhar estupefato de seu pai As naacuteiades daquela terra depositaram

seu corpo num tuacutemulo e nele gravaram o seguinte epitaacutefio

Aqui jaz Faetonte Na carruagem de Heacutelio ele correu E

se muito fracassou muito mais se atreveu

A finitude humana vem da mesma origem da ideacuteia de universo uma

noccedilatildeo adquirida recebida como heranccedila cultural atraveacutes de sucessivas

descobertas determinaccedilotildees e invenccedilotildees promovidas pelo homem tal qual sua

noccedilatildeo de espaccedilo e de tempo

O homem primitivo natildeo vecirc o espaccedilo como algo simplesmente

continente mas como um lugar absoluto Natildeo eacute o espaccedilo ou o tempo tidos como

61 metagrave tagrave physikaacute

metafiacutesica

aleacutem das coisas fiacutesicas - estudo do ser enquanto ser e especulaccedilatildeo em torno dos primeiros princiacutepios e das causas primeiras do ser 62 ntos ente - Ontogonia Histoacuteria da produccedilatildeo dos seres (entes) organizados sobre a Terra

58

racionais ou funcionais mas como partes estruturais de uma realidade criando a

definiccedilatildeo de um acontecimento de um acircmbito63

Esse contato com o universo com a finitude e com o espaccedilo miacutetico eacute o

proacuteprio princiacutepio da experiecircncia o sentido de realidade envolvida e revestida com

siacutembolos figuras intenccedilotildees humanas sejam agradaacuteveis ou desagradaacuteveis gentis

ou aversivas com o sagrado ou o profano enfim a proacutepria experiecircncia da

realidade humana

Poreacutem o espaccedilo miacutetico primitivo ou mesmo das sociedades claacutessicas

tinham seu espaccedilo vital como o altar o espaccedilo do sagrado onde esse espaccedilo

miacutetico eacute o o verdadeiro ponto de apoio de seu pensamento porque eacute o ponto de

apoio do mundo social e do mundo espacial

64 Por esse motivo o homem miacutetico

organiza seu espaccedilo vital em torno ao redor do espaccedilo sagrado espaccedilo esse

natildeo um marco de uma existecircncia possiacutevel mas sim como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute sentido pois ali moram seus deuses moram seus

mortos seus pensamentos e desejos

Eacute nesse espaccedilo miacutetico o espaccedilo sagrado que o homem realiza seus

rituais para uma boa marcha pelo mundo eacute a aiacute que faz suas suacuteplicas realiza

seus sacrifiacutecios e sua magia propiciatoacuteria onde suas forccedilas vitais se encontram e

se concentram

Dessa forma o homem miacutetico tem deve e precisa estar sempre em

contato com seu espaccedilo tempo e acircmbito onde se encontra o outro e com ele vive

63 GUSDORF 1959 64 GUSDORF 1959 p55

59

o grupo social pois fora dessa relaccedilatildeo tecida com o grupo social o homem

reduzido a si mesmo estaacute aniquilado pois perdeu seu lugar ontoloacutegico e as

referecircncias que lhe outorgavam figura e equiliacutebrio 65 E assim encontra a morte

mesmo que no sentido figurado pois morrer miticamente eacute a cessaccedilatildeo das

relaccedilotildees com o grupo social O morto o defunto eacute aquele que se livrou de suas

obrigaccedilotildees frente agrave comunidade

66 que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

(defuncto)

Vejamos o pensamento de Jung67

Mal terminei o manuscrito quando me dei conta do que

significa viver com um mito e o que significa viver sem ele [O

homem] que pensa que pode viver sem mito ou fora dele como

algueacutem sem raiacutezes natildeo tem nenhum viacutenculo verdadeiro nem com o

passado ou com a vida ancestral que continua dentro dele nem com

a sociedade humana contemporacircnea Esse seu brinquedo racional

nunca capta o lado vital

Nesse espaccedilo miacutetico eacute que se encontra o sagrado e esse sagrado eacute

tudo aquilo que se encontra sob os olhos do homem

Diz Gusdorf

65 Gusdorf1959p92 66 Gusdorf1959p92 67 apud Rollo May 1992p47

60

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao

ser toda sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da

comunidade pelo viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem

vivente a terra as coisas os seres e ainda os mortos que continuam

frequumlentando a morada de sua vida68

Viver no espaccedilo miacutetico eacute viver no sagrado pois o lugar natildeo eacute mais um

lugar e sim onde a vida acontece Ali estatildeo seus deuses suas forccedilas espirituais

os antepassados a vida o alimento etc

Os portugueses do Seacuteculo XVI ao virem para o Brasil trouxeram

consigo seu espaccedilo miacutetico e necessitaram sacralizar o novo territoacuterio construindo

imediatamente apoacutes sua chegada capelas casas ao seu estilo locais de

reuniotildees aleacutem de cristianizar o espaccedilo em que viveriam O espaccedilo eacute uma das

expressotildees da concepccedilatildeo de vida do homem da cultura do homem das relaccedilotildees

sociais Gostaria de afirmar que todos os povos desde o iniacutecio dos tempos tecircm

seu espaccedilo sagrado quando natildeo todo ele

No mundo miacutetico tudo eacute miacutetico natildeo soacute o homem a natureza eacute miacutetica

as pessoas a floresta a chuva o mar e as mareacutes os astros cada qual com sua

funccedilatildeo cada qual com sua participaccedilatildeo mas tudo fazendo parte do universo do

homem miacutetico Se desejarmos por esse motivo ver atraveacutes da razatildeo a loacutegica

disso natildeo conseguiremos pois o sentido do mito ou da vida natildeo existem pois a

vida como nos diz Campbell natildeo tem sentido pois vida natildeo eacute para ser sentida e

68 GUSDORF1959 p55-56

61

sim para ser vivida assim como natildeo eacute justa natildeo eacute certa pois eacute soacute vida e natildeo

justiccedila ou certezas

O mundo eacute um processo daquilo que creio diz o homem miacutetico Pedir

ao homem miacutetico que explique o mundo eacute o mesmo que pedir ao peixe para

explicar a aacutegua em que nada O ser miacutetico talvez tenha uma compreensatildeo mais

profunda da vida sem permitir o questionamento da racionalidade pois explicar o

miacutetico eacute saber que tudo eacute uma presenccedila real

O homem racional atende suas necessidades atraveacutes de possibilidades

conhecidas O homem miacutetico reconhece que o mundo eacute feito de possibilidades e

busca por elas mesmo natildeo as conhecendo as observa as testa e apoacutes tomar

consciecircncia delas as utiliza

O homem miacutetico sabe que natildeo estaacute sozinho pois estaacute conectado a tudo

que o cerca Ele eacute um criador efetivo do mundo infiltrando esse mundo de ideacuteias

e pensamentos Vejamos por exemplo que a Terra eacute um planeta totalmente

dominado por religiotildees Deus eacute uma forma de explicarmos as experiecircncias que

temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e transcendentais Ele eacute a

superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos aos deuses pois temos

que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa vida

Do ponto de vista antropoloacutegico-cultural passou-se de uma visatildeo do

mito como a modalidade mais primitiva que possa ser atribuiacuteda agraves cadeias de

eventos quotidianos (exemplos mito solar mitos da fecundidade da terra) para

uma visatildeo do mito como atividade fundamentalmente criativa do indiviacuteduo

humano tendo por objetivo a interpretaccedilatildeo das realidades que como as religiosas

62

ou as eacuteticas e de valores natildeo satildeo passiacuteveis de serem circunscritas nem

expressas em termos de pura racionalidade

O mito exprime valores e aspiraccedilotildees que caracterizam a vivecircncia de

certo grupo soacutecio-cultural e de qualquer maneira polarizam as suas energias

Assim por exemplo no acircmbito do judaiacutesmo o mito da justiccedila de Deus

concentrava todas as tensotildees eacuteticas e religiosas dos crentes

Essas concepccedilotildees levaram em conta dois fatos psicoloacutegicos a hipoacutetese

de estruturas inconscientes especiacuteficas os arqueacutetipos com a finalidade de captar

realidades natildeo racionais mas emocional e vitalmente importantes e a observaccedilatildeo

de que alguns grandes temas foram vividos e transmitidos sob a forma de mitos

de maneira repetitiva nas vaacuterias culturas e eacutepocas histoacutericas

Dentro da antropologia cultural e da psicologia do fenocircmeno religioso o

mito eacute visto como sendo a resultante de energias inconscientes que satildeo ativadas

por experiecircncias histoacutericas e que tecircm como finalidade a realizaccedilatildeo de um si-

mesmo individual ou de grupo de certo modo imanente a psique A origem da

ativaccedilatildeo dessas forccedilas pode estar ligada ou ser estimulada por eventos naturais

mas eacute depois atraiacuteda por personagens simboacutelicas natildeo histoacutericas (por exemplo as

vaacuterias deidades femininas que presidem os mitos da colheita dos frutos da

fecundidade etc) e que satildeo o resultado justamente das projeccedilotildees inconscientes

individuais e coletivas

Podemos considerar o mito como sendo a preacute-histoacuteria da filosofia onde

a consciecircncia humana se estrutura nas origens do conhecimento

63

A filosofia busca entender o Estado a Lei o Direito a Ciecircncia a

Tecnologia e tantos outros conhecimentos mas a filosofia quando nasce quer

resgatar o saber do mito que se esvaia na cultura grega

Conforme nos explica Joseph Campbell69 o mito vem para servir agraves

necessidades humanas no sentido de conhecer o cosmo a natureza o outro e a

si proacuteprio

Em primeiro lugar no que se refere agrave questatildeo cosmoloacutegica serve o

mito para abordar as questotildees teoloacutegicas o plano da gecircnese e da escatologia70

diz respeito a se a pessoa entende como caos ou um

absurdo o desenrolar de uma lei natural ou percebe a presenccedila de

uma inteligecircncia orientadora e a existecircncia de um plano

compreensiacutevel por traacutes do universo71

Eacute o mito a necessidade do homem de explicar com sua proacutepria visatildeo

de uma paisagem completa o iniacutecio de tudo das divindades e deidades

beneacutevolas ou maleacutevolas e dos misteacuterios insondaacuteveis que datildeo sentido ao cosmo

Onde o homem se relaciona com seus temores e sorve suas belezas

Para o homem miacutetico a vida natildeo tem sentido algum pois a vida eacute a

proacutepria experiecircncia de estar vivo de modo de nossas experiecircncias de vida no

plano puramente fiacutesico tenham ressonacircncia no interior do nosso ser e da nossa

69 apud James Hollis 1998 70 Principalmente no tocante ao tratado sobre os fins uacuteltimos do homem 71 HOLLIS 1998 18

64

realidade mais iacutentimos de modo que realmente sintamos o enlevo de estar

vivos 72

Em segundo lugar continuando o mito a servir agraves necessidades

humanas surge o sentido metafiacutesico no esforccedilo de apresentar a natureza do

mundo agrave nossa volta Qual eacute a nossa relaccedilatildeo com o que eacute arquetipicamente

chamado de A Grande Matildee de cujo ventre viemos e para cujo seio

retornaremos 73 A resposta a essa pergunta eacute a proacutepria formaccedilatildeo do mito tatildeo

numinoso 74 quanto os deuses tatildeo luminoso quanto os astros sobre a cabeccedila do

homem e tatildeo fulgurante quanto os fenocircmenos naturais

Outra alegoria miacutetica eacute a do bosque da vida para mostrar o ventre da

grande matildee do qual nascemos e muitas vezes laacute ficamos aprisionados assim nos

mostra Jung

Outro siacutembolo materno igualmente comum eacute o bosque da

vida ou a aacutervore da vida Primeiramente a aacutervore da vida pode ter

sido uma aacutervore genealoacutegica produtora de frutos consequumlentemente

uma espeacutecie de matildee tribal Inuacutemeros mitos dizem que seres humanos

nasceram de aacutervores e muitos relatam como o heroacutei havia sido

aprisionado no tronco de uma aacutervore materna como Osiacuteris morto

dentro de um cedro Adocircnis dentro do mirto etc Numerosas

divindades femininas eram adoradas sob a forma de aacutervores vindo

daiacute o culto de aacutervores e bosques sagrados Assim quando Aacutetis castra-

se sob um pinheiro ele o faz porque a aacutervore tem um significado

72 CAMPBELL 1990 p 3 73 HOLLIS1998p20 74 do latim numem = maacutegico enfeiticcedilante um efeito dinacircmico ou a existecircncia que domina o ser humano independente de sua vontade

65

materno A Juno de Teacutespia era representada por um galho a de

Samos por um prancha a de Argos por um pilar a Diana de Caacuteria por

um bloco de madeira bruta a Atena de Lindos era uma coluna polida

Tertuliano chamava a Ceres de Paros de `rudis palus et informe

lignum sine efigie (um tronco rude um pau informe sem rosto)

Ateneo informa que a Latona de Delos era um pedaccedilo informe de

madeira Tertuliano tambeacutem descreve uma Palas aacutetica como `crucis

stipes (estaca de uma cruz) Uma viga nua de pau como o proacuteprio

termo indica eacute faacutelica (JUNG 1988 sect 321)

Em terceiro lugar o mito serve ao homem miacutetico na relaccedilatildeo com o

outro para o conhecimento das relaccedilotildees da comunidade da divisatildeo de tarefas e

na defesa da coletividade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

No entanto esse viver de forma muacutetua tambeacutem vem transgredir a lei

natural Assim novamente surge o mito a forma narrada 75 desajustada com a

realidade vivida mas que explica orienta e normatiza as relaccedilotildees que daacute uma

forma ao pensamento ou ainda uma forma de viver

Por fim em quarto lugar Hollis (1998) nos falando do pensamento de

Campbell traz ao homem miacutetico o sentido psicoloacutegico do mito o entendimento do

si-mesmo do quem eacute do de onde vem de qual seu lugar no mundo e de como

encontrar a pessoa para formar um par

75 Do grego mythus = conto palavra

66

A cultura que tiver perdido seu cerne miacutetico ou cujas

mitologias sejam muito fragmentadas e diversas cria pessoas

perdidas e assustadas que mudam de culto para culto de ideologia

para ideologia 76

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Na visatildeo junguiana tanto a histoacuteria quanto a antropologia nos ensinam

que psicologicamente a sociedade humana natildeo poderia ter sobrevivido por muito

tempo a natildeo ser que as pessoas estivessem contidas na relaccedilatildeo psicoloacutegica

dentro de um mito central e vivo

Pode ser percebido que os membros mais competentes da sociedade

mais desenvolvidos e perspicazes possuem respostas miacuteticas que satisfazem

suas perguntas existenciais

Essa minoria criativa intelectual e dominante vive em intensa harmonia

com o mito predominante Jaacute as outras camadas da sociedade seguem a direta

lideranccedila dessa minoria chegando a evitar o confronto com as questotildees miacuteticas

poupando-se da discussatildeo e seguindo diretamente a questatildeo fatiacutedica do sentido

da vida

76 HOLLIS 1998 24

67

Com a perda da consciecircncia de uma realidade

transpessoal (Deus) as anarquias interna e externa dos desejos

pessoais rivais assumem o poder 77

Jung nos formula a questatildeo como sendo o problema do homem

moderno o estado de carecircncia de mitos

Em seus estudos teve um momento em Memoacuterias sonhos e

reflexotildees78 em que coloca a si mesmo como tendo perdido o ciacuterculo maacutegico do

mito

Agora vocecirc tem a chave para a mitologia e estaacute livre para

abrir todos os portotildees da psique inconsciente Alguma coisa em mim

entatildeo sussurrou Porque abrir os portotildees E logo me surgiu a

pergunta sobre o que afinal eu havia realizado Eu tinha explicado os

mitos das pessoas do passado havia escrito um livro sobre o heroacutei o

mito em que o homem sempre viveu Mas em que mito vive o homem

hoje em dia No mito cristatildeo poderia ser a resposta Vocecirc vive nele

Perguntei a mim mesmo Para ser honesto a resposta foi natildeo Para

mim natildeo eacute pautado nele que vivo Entatildeo natildeo temos mais nenhum

mito Natildeo eacute evidente que natildeo temos mais nenhum mito Mas

entatildeo qual eacute o seu mito o mito em que vocecirc efetivamente vive

Nesse ponto o diaacutelogo comigo mesmo ficou desconfortaacutevel e parei de

pensar Eu chegara a um beco sem saiacuteda79

77 EDINGER 1999 10 78 JUNG 1975 79 JUNG 1975 171

68

Disse ainda Jung que o mito leva o homem em uma tendecircncia a priori

ingecircnua a acreditar e levar a seacuterio todas as manifestaccedilotildees miacuteticas do

inconsciente e de acreditar que a natureza do proacuteprio mundo isto eacute as verdades

definitivas estejam encerradas no mito Essa concepccedilatildeo natildeo eacute de todo destituiacuteda

de fundamento visto que as manifestaccedilotildees espontacircneas do inconsciente

exprimem uma psique que nem sempre se identifica com a consciecircncia e muitas

vezes se distancia dela tratando-se de uma atividade psiacutequica natural e natildeo

aprendida que independe de nosso livre arbiacutetrio

As formas arquetiacutepicas que surgem da raiz do pensamento humano satildeo

necessaacuterias para que o homem possa determinar a existecircncia do mundo e

conhececirc-lo Eacute a psique primitiva essa raiz que se pode afirmar natildeo conhecia a si

mesma Essa consciecircncia soacute pode ser formada a partir da evoluccedilatildeo do homem

desde sua origem ateacute os tempos histoacutericos

Ainda hoje conhecemos certas tribos primitivas cuja

consciecircncia se distancia muito pouco do lado tenebroso da psique

primiacutegena e mesmo entre os homens civilizados podemos encontrar

resquiacutecios do estado primordial80

ABRAHAM em Traum und mytus (apud JUNG 1989 21) disse

entender ser o mito uma parte superada da vida espiritual infantil do povo Assim

o mito eacute uma parte preservada da vida espiritual infantil do povo e o sonho o mito

80 JUNG 1988 89

69

do indiviacuteduo Essa citaccedilatildeo se prende ao fato de que muitos teoacutericos acreditam ser

esta a real concepccedilatildeo psicoloacutegica de mito Realmente podemos ver nas crianccedilas

que a tendecircncia na formaccedilatildeo de mitos corre ao lado de suas fantasias

transformadas em realidade fantasias essas revestidas de histoacuterias No entanto

afirmar que o mito procede da vida espiritual infantil do povo chega a parecer

absurdo pois na verdade eacute o mito a produccedilatildeo mais adulta da humanidade

primitiva O homem que pensava e vivia nas cavernas que vivia no mito era uma

realidade adulta pois o mito natildeo eacute uma fantasia pueril mas um dos requisitos

mais importantes da vida primitiva 81

O mito eacute a cultura profana ou sagrada eacute cultura cultura por outro lado

eacute educaccedilatildeo assim a funccedilatildeo dos mitos pode ser vista como uma forma

estruturada de culturalmente se falar dos seres sobrenaturais perante a histoacuteria do

homem essa histoacuteria como se trata da realidade do homem miacutetico se constitui

como absoluta verdade pois se referem agraves realidades sagradas desse homem O

mito cria o mundo estabelece como se iniciou e como terminaraacute contanto

narrativamente escrita ou atraveacutes da tradiccedilatildeo oral como algo surgiu na viva do

homem miacutetico

O mito revela e revelando nos daacute a oportunidade da realizaccedilatildeo

misteriosa de controlar a realidade atraveacutes do rito o qual promove o contato com a

divindade Todos estamos contidos e contemos o mito pois em momentos de

extrema dor ou prazer sacralizamos o que sentimos e por mais ceacuteticos que

81 JUNG 1989 p21

70

possamos ser sentimos a presenccedila do mito e vivenciamos em nossa psique os

resultados do poder criador do mito

Sendo ainda cultura o mito pode ter como poder criador associado ao

tempo a eacutepoca ao produto social de um grupo as vivecircncias que se alteram e se

propagam no inconsciente coletivo determinando as forccedilas que manteacutem o mito

vivo gerando comportamentos religiosos morais sociais e poliacuteticos desde a

coleta da caccedila da construccedilatildeo de um barco de uma habitaccedilatildeo ateacute a postura

preponderante de um chefe de estado perante a naccedilatildeo que governa Eacute algo maior

que a racional inteligecircncia do homem de nosso seacuteculo em detrimento das

especulaccedilotildees metafiacutesicas ou teoloacutegicas

Toda e qualquer tentativa de explicar um mito faz com que uma

barreira inexplicaacutevel surja pois a proacutepria explicaccedilatildeo do mito vive dentro do mito

pois partes de um mito natildeo podem ser explicadas pois ele em si eacute todo

A tentativa de explicar um mito eacute feita com base em leis mutaacuteveis das

ciecircncias enquanto ele eacute baseado em leis estaacuteveis da natureza O animal

reconhece seu cio sem que se necessite ensinaacute-lo desloca-se para copular sem

que necessite de mapas luta por seu patrimocircnio geneacutetico sem aulas de

biodiversidade e as estrelas essas se encontram laacute para o homem miacutetico sem

que ningueacutem possa explicar como laacute chegaram

Por fim o mito eacute o homem e o homem eacute o mito natildeo como parte um do

outro mas ontologicamente na relaccedilatildeo do vir-a-ser Natildeo porque nada vem-a-ser

71

senatildeo o que pode ser mas o vir-a-ser depende de modelos ou formas garantidos

pelo Ser e por sua manifestaccedilatildeo 82 e o mito eacute a manifestaccedilatildeo desse Ser

82 CRIPPA1975p183

72

CAPIacuteTULO 3 - O MITO CRISTAtildeO

Para que o leitor tenha uma visatildeo mais profunda sobre o embate de

mitos que ocorreu no seacuteculo XVI com a chegada dos portugueses ao Brasil e

especificamente com a catequese jesuiacutetica vejo como de suma importacircncia que

seja dedicado ao capiacutetulo deste trabalho exclusivamente ao mito cristatildeo

Falei direta e especificamente das visotildees filosoacuteficas antropoloacutegicas e

psicoloacutegicas sobre o conceito de mito

Como natildeo tratar entatildeo o mito que deu origem ao estudo do objeto

desta pesquisa que se trata do embate de mitos durante o periacuteodo quinhentista

Quem eacute o portuguecircs que chega ao Brasil daquele periacuteodo que mitos

abriga em sua alma quais os caminhos direcionados ao mito da divindade como

explica suas impotecircncias suas crenccedilas seus valores religiosos pois satildeo esses

valores trazidos da Santa Feacute Catoacutelica que vatildeo ser impostos aos brasis desde a

chegada de Cabral

Para tal para que possa responder perguntas que satildeo minhas e

acredito sejam do leitor entrei em um campo muito profundo quer no sentido

psicoloacutegico da anaacutelise desse mito quer em levantar polecircmicas sobre os siacutembolos

de transformaccedilatildeo cultural que o mito cristatildeo tem gerado desde os mais remotos

tempos

73

Assim fui muitas vezes pesquisar na Biacuteblia e nos conceitos junguianos

como esse mito participou e participa da vida daqueles que seguem como mito

como arqueacutetipo principal de suas vidas a vida de Cristo

Em primeiro lugar busquei entender um pouco desse homem

anunciado pelo Anjo do Senhor e que no caminho de sua individuaccedilatildeo morre

crucificado apoacutes a aceitaccedilatildeo de seu destino em relaccedilatildeo a Deus83

Em seguida mais perguntas surgiram Ao falar do Homem ao falar do

Filho minha busca vai em direccedilatildeo ao Pai e por consequumlecircncia ao Espiacuterito Santo

onde tento entender e interpretar o mito da Trindade84

Mas o Filho de Deus fez coisas na terra entre elas fazer gerar uma

Igreja e uma Santa Feacute onde seu siacutembolo mais forte eacute a Santa Ceia que deu

origem agrave missa Busco aiacute outros siacutembolos cristatildeos outros mitos outros elementos

que foram gerados por uma cultura de uma eacutepoca e que foram transformados em

Lei85

Busco ainda a concepccedilatildeo natildeo maniqueiacutesta de Bem e Mal na visatildeo do

mito cristatildeo e condensando esses conhecimentos consigo entatildeo falar do cristatildeo

portuguecircs daquele que leva esses mitos esses arqueacutetipos esses siacutembolos de

transformaccedilatildeo esses siacutembolos culturais ao indiacutegena brasileiro que se encontrava

vivendo pelos seus proacuteprios mitos e de suas proacuteprias tradiccedilotildees por seus proacuteprios

83 vide apecircndices 2 3 e 4 84 idem 85 idem

74

arqueacutetipos e simbologias miacuteticas que tal como os portugueses tal como os

jesuiacutetas buscavam suas proacuteprias almas e os sentidos para suas vidas

De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado do proacuteprio Espiacuterito Santo e que traria aos brasis os

bons costumes a feacute em si a cura de todos os males da alma Do outro lado

homens livres que possuiacuteam seus costumes como bons que possuiacuteam feacute em

seus mitos e explicaccedilotildees da finitude de suas vidas sem que entendesse que

possuiacuteam males em suas almas ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao

inimigo do Homem que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a

realidade

O cristianismo do seacuteculo XVI natildeo tinha como entender que a verdade

acabada revelada e imposta natildeo abria o coraccedilatildeo do homem branco ou de pele

dourada para as reais coisas da palavra de Deus Estas palavras nascem

exatamente no coraccedilatildeo do homem pois satildeo elas que explicam e levam o homem

em busca da individuaccedilatildeo do contato direto com seus niacuteveis mais inconscientes

lugares esses em que realmente se ouve a voz da divindade seja ela qual for

O homem ao crer sem questionar natildeo reflete sobre suas duacutevidas natildeo

questiona seus mitos e seus dogmas natildeo muda natildeo altera o que pensa do

inexplicaacutevel mas o homem que pensa suas ideacuteias sempre teraacute a duacutevida como

bem recebida pois eacute ela que permite um conhecimento mais perfeito e mais

seguro de si e daquilo que natildeo consegue explicar

Jung nos coloca em sua obra que como estudioso chega a ver a

religiatildeo como um filho natural do inconsciente humano que vecirc nas vaacuterias e

75

improvaacuteveis afirmaccedilotildees religiosas movimentos psicoloacutegicos do processo universal

de renovaccedilatildeo e amadurecimento humanos mas que para isso a duacutevida o

questionamento sobre as verdades reveladas devem estar sendo pensadas pelo

homem

Mas nos quinhentos o homem portuguecircs natildeo pensava seus mitos

religiosos os vivia e por esse motivo podia de forma impositiva infligir sua feacute

seus bons costumes suas crenccedilas atraveacutes do poder de fogo de canhotildees do

poder dos sacramentos do poder do teatro e da catequese Seu modo miacutetico de

ver o mundo era o correto o uacutenico afinal como dizia Vicente de Lerins86 norma de

feacute eacute aquilo que foi acreditado sempre por todos e em toda parte No entanto natildeo

havia todos para os catoacutelicos senatildeo os catoacutelicos Protestantes eram

considerados tatildeo hereges quanto qualquer outro que natildeo catoacutelico Natildeo havia

parte alguma senatildeo aquela em que os catoacutelicos viviam o restante do mundo era

para ser transformado colonizado submetido e convertido gerando uma

verdadeira doenccedila na alma desses homens miacuteticos que habitavam estas terras no

seacuteculo XVI

86 Vicente de Lerins foi um antigo teoacutelogo citado diversas vezes por Jung em sua obra como sendo seu pensamento sobre a feacute uma das manifestaccedilotildees mais felizes da ortodoxia psicoloacutegica In Dourley 1987 p29

76

CAPIacuteTULO 4 - COMO O EUROPEU CRISTAtildeO COMPREENDIA OS INDIacuteGENAS E A

CONCEPCcedilAtildeO QUE TINHAM DA VIDA DESSES BRASIS

Esta terra poreacutem tinha dono belicoso e baacuterbaro87

Para que pudesse realizar esta parte deste trabalho tive que buscar

informaccedilotildees de distintas formas Em primeiro lugar houve uma preocupaccedilatildeo em

levantar as fontes em que poderia pesquisar fontes essas que soacute poderiam ser

de autores do periacuteodo em que me fixei para levantar as informaccedilotildees

Esses homens autores de alguns documentos me dariam sempre

visotildees cristatildes brancas portuguesas ou espanholas de como os indiacutegenas

concebiam suas vidas

Muitas vezes pude encontrar claros relatos dessas vidas mas em outras

me restava a interpretaccedilatildeo agraves vezes pelo negativo das narrativas de como essas

vidas aconteciam

Claro muitos documentos mostravam com repuacutedio e rechaccedilo os

costumes que busquei entender outros mais romacircnticos mostravam seres

edecircnicos em alguns momentos e bestas feras em outros Bastava que o indiacutegena

87 CALMON 1963 vol 2 p321

77

fosse contra de alguma forma ao contato ao convencimento que lhe tentavam agrave

catequese ou agrave conversatildeo proposta para que passasse de um extremo para outro

de adacircmicos em democircnios como fez Anchieta em seus autos com Guaixaraacute e os

outros diabos88

Percebo em cartas de Noacutebrega de Anchieta ou de Navarro momentos

de pura consternaccedilatildeo do modo de viver dos brasis para em seguida mostrar o

lado demoniacuteaco que carregavam os indiacutegenas obviamente em suas visotildees

europeacuteias e jesuiacuteticas dentro do mito cristatildeo Noacutebrega mais animado em suas

primeiras cartas e mais desgostoso e entristecido com sua missatildeo ao final

Navarro mais intelectual em seus conceitos e descriccedilotildees e em Anchieta um relato

mais duacutebio conforme a tribo da qual escrevia

Busquei Cardim Caminha Frei Vicente do Salvador Calmon

Capistrano de Abreu Gacircndavo e no de gestis Mendi de Saa

de Anchieta e em

todos tive que proceder da mesma forma agraves vezes relatando agraves vezes

interpretando pelo negativo

Pude encontrar ainda a tradiccedilatildeo oral com a qual convivi durante anos e

me senti agrave vontade em ler com isso os relatos de Kakaacute Weraacute Jecupeacute89 e

compreender algumas de suas informaccedilotildees

Por essa com-vivecircncia com tribos como Jivaros (com liacutengua proacutepria e

o espanhol) como Pataxoacutes no Sul da Bahia com Charruas na regiatildeo das missotildees

88 Auto de Satildeo Lourenccedilo o qual seraacute tratado mais adiante neste trabalho 89 Kakaacute Weraacute Jecupeacute

iacutendio txucarramatildee autor dos livros A Terra dos mil povos e Tupatilde Tenondeacute editados pela Editora Fundaccedilatildeo Peiroacutepolis - SP

78

e com verdadeiros iacutendios gauacutechos montados

vestidos em seus quiacutechua xiri

pac 90 dos pampas argentinos e da fronteira do Brasil sentia que podia ler relatos

de indiacutegenas de hoje pois entendia de tradiccedilatildeo oral afinal eu mesmo tive

centenas de ensinamentos atraveacutes dessa forma de educaccedilatildeo

Conheci indiacutegenas de diversos tipos e costumes mas todos mesmo

bastante transmutados por nossa cultura ainda livres ainda aguerridos muitos

ainda indolentes e outros prontos para a guerra mas nenhum deles menos

miacuteticos que noacutes menos inteligentes que noacutes menos carentes de explicaccedilotildees

sobre a finitude da vida humana e guardadores ferrenhos de seus costumes

crenccedilas e tradiccedilotildees

Tento assim neste capiacutetulo descrever daqui a diante todo esse estudo

sobre como os indiacutegenas concebiam suas vidas em meio ao Seacuteculo XVI

No entanto natildeo podendo perder o foco desta proposta o embate de

mitos por mais que nas descriccedilotildees encontradas nas fontes de que os indiacutegenas

viviam suas vidas surgissem termos como liberdade ou feras a serem

amestradas ou natildeo possuem Deus no coraccedilatildeo natildeo posso deixar de entender

que eram esses termos esses conceitos meras interpretaccedilotildees culturais de quem

via e relatava Vou trabalhar com esses termos conceituais

90 Do esp chiripaacute lt quiacutechua xiri pac para o frio S m Bras S Vestimenta sem costura outrora usada pelos gauacutechos habitantes do campo e que consistia num metro e meio de fazenda que passando por entre as pernas era presa agrave cintura por uma cinta de couro ou pelo tirador

79

Vejamos Cardim91 nas primeiras linhas de Princiacutepio e Origem dos iacutendios

do Brasil e seus costumes

Este gentio natildeo tem conhecimento algum de seu creador nem

de cousa do Ceacuteo nem se ha pena nem gloria depois desta vida

e portanto natildeo tem adoraccedilatildeo nenhuma nem cerimonias ou

culto divino mas sabem que tecircm alma e que esta natildeo morre e

depois da morte vatildeo a uns campos onde ha muitas figueiras ao

longo de um formoso rio e todas juntas natildeo fazem outra cousa

senatildeo bailar

Vamos ler agora maino i ypi kue apresentado em Tupan Tenondeacute92

Ntildeande Ru Pa-pa Tenondeacute Gete ratilde ombo-jera Pytuacute yma gui

Nosso Pai Primeiro criou-se por si mesmo na Vazia Noite iniciada

Yvaacutera pypyte Apyka apuia i Pytuacute yma mbyte re oguero-jera

As sagradas plantas dos peacutes O pequeno assento arredondado Do Vazio Inicial Enraizou seu desdobrar (florescer)

Yvaacutera jeckaka mba ekuaaacute Yvaacutera rendupa Yvaacutera popyte yvyra i Yvaacutera popyte rakatilde poty Oguero-jera Ntildeamandui Pytuacute yma mbyte re

Ciacuterculo desdobrado da sabedoria inaudiacutevel Fluiu-se divino Todo Ouvir As divinas palmas das matildeos portando o bastatildeo do poder As divinas palmas das matildeos feito ramas floridas Tramam o Imanifestado na dobra de sua evoluccedilatildeo no meio da primeira noite

Ntildeande Ru Ntildeamandu tenondeacute gua O yva raacute oguero-jera eyacute mboyve i Pytuacute A e ndoechaacutei Kuaray oiko eyacute ramo jepe

Nosso Pai O Grande Misteacuterio o primeiro antes de haver-se criado no curso de sua evoluccedilatildeo sua futura morada sustenta-se no Vazio

91 CARDIM 1980-p87 92 JECUPEacute2001 p25-31

a liacutengua apresentada ao lado do texto traduzido eacute o abantildeeenga considerada como a liacutengua ancestral Tupi de onde saiacuteram os dialetos que hoje existem dos Chiripaacute dos Kaiowaacute e dos Mbyaacute aleacutem do guarani paraguaio

80

O py a jechaka re A e oiko oikovy O yvaacutera py mba ekuaaacute py Antildeembo-kuaray i oiny

Antes que existisse sol Ele existia pelo reflexo de seu proacuteprio coraccedilatildeo E fazia servir-se de sol dentro de sua proacutepria divindade

Como podemos concluir fazendo uma comparaccedilatildeo entre os dois textos

o de Cardim considerado fonte histoacuterica e o outro de Jecupeacute uma traduccedilatildeo de

fonte oral da tradiccedilatildeo guarani tinham sim os indiacutegenas um conhecimento de seu

criador Apenas o mito eacute outro apenas os arqueacutetipos satildeo outros apenas a forma

de explicar o inexplicaacutevel eacute outra

O andarem nus por exemplo Todas fontes nos mostram o quanto eram

esses homens e mulheres livres e inocentes por andarem nus portando muitas

vezes sua arte plumaacuteria que os diferenciava de uma tribo para outra pinturas de

siacutembolos e cores Mas seria essa forma de viver realmente uma questatildeo de

liberdade Natildeo poderiacuteamos considerar a falta de roupa como uma falta de

conhecimento do tecer e da natildeo necessidade de tantas roupas conforme

estabelecido no modo de viver do portuguecircs cristatildeo

Havia pelo que podemos encontrar vaidade entre os indiacutegenas mas

com conceitos outros de mostrarem suas necessidades de guarda de patrimocircnio

geneacutetico que tal qual os paacutessaros seus vizinhos danccedilavam para suas mulheres

emplumados e coloridos mostrando seus dotes suas honras sua forccedila e sua

importacircncia dentro da hierarquia tribal

Poreacutem para saiacuterem galantes usatildeo de vaacuterias invenccedilotildees

tingindo seus corpos com certo sumo de uma aacutervores com que ficam

81

pretos dando muitos riscos pelo corpo braccedilos etc a modo de

imperiaes 93

Ou ainda como Caminha num dos relatos mais afamados

A feiccedilatildeo deles eacute serem pardos maneira de avermelhados

de bons rostos e bons narizes bem-feitos Andam nus sem nenhuma

cobertura Nem estimam em cobrir ou de mostrar suas vergonhas e

nisso tecircm tanta inocecircncia como em mostrar o rosto E um deles

trazia por debaixo da solapa de fonte a fonte para detraacutes uma

espeacutecie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do

comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o

touticcedilo e as orelhas94

Esta eacute uma das visotildees mais neutras da nudez indiacutegena mas vejamos

outra

aqui onde as mulheres andam nuas e natildeo sabem se

negar a ningueacutem mas ateacute elas mesmas cometem e importunam os

homens jogando-se com eles nas redes porque tecircem por honra

dormir com os Cristatildeos 95

93 CARDIM 1980-p90 94 CAMINHA

p3

Carta de pero Vaz de Caminha

A certidatildeo de nascimento do Brasil

Bradesco

Brasil 500 anos- 2000 e tb CALMON 1963- Vol I p67 95 ANCHIETA Cartas 1988 p78 Carta ao Padre Mestre Inaacutecio de Loiola julho 1554

82

Ou ainda na visatildeo de Noacutebrega

Parece-nos que natildeo podemos deixar de dar a roupa que

trouxemos a estes que querem ser christatildeos repartindo-lh a ateacute

ficarmos todos eguaes com elles ao menos por natildeo escandalisar aos

meus Irmatildeos de Coimbra si souberem que por falta de algumas

ceroulas deixa uma alma de ser christatilde e conhecer a seu Creador e

Senhor e dar-lhe gloria96

Ou ainda

Tambeacutem peccedila Vossa Reverendissima algum petitoacuterio de

roupa para entretanto cobrirmos estes novos convertidos ao menos

uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religiatildeo Christatilde

porque vecircm todos a esta cidade aacute missa aos domingos e festas que

fazem muita devoccedilatildeo e vecircm resando as oraccedilotildees que lhes ensinamos

e natildeo paree honesto estarem nuas entreos Christatildeos na egreja e

quando as ensinamos97

Assim somente uma forma de olhar de cima de que concepccedilatildeo se

analisa define de forma diferente o costume do outro

Podemos pegar mais um exemplo de como olhar um costume o

casamento

Entre eles ha casamentos poreacutem ha muita duvida se satildeo

verdadeiros Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar

contrario e preserverava virgem ateacute que o tomasse e matasse

correndo-lhe primeiro suas festas por espaccedilo de dous ou tres annos a

96 NOacuteBREGA 1988 P74 Carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo - 1549 97 NOacuteBREGA 1988 p85 Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549

83

mulher da mesma maneira natildeo conhecia homem ateacute lhe natildeo vir regra

depois da qual lhe faziatildeo grandes festas ao mesmo tempo de lhe

entregarem a mulher faziatildeo grandes vinhos e acabada a festa ficava

o casamento perfeito dando-lhe uma rede lavada e depois de

casados comeccedilavatildeo a beber poque ateacute ali natildeo o consentiatildeo seus

pais ensinando-lhes que bebessem com tento e fossem

considerados e prudentes em seu falar para que o vinho natildeo lhes

fizesse mal nem falassem cousas ruins e entatildeo com uma cuya lhe

davatildeo os velhos antigos o primeiro vinho e lhe tinhatildeo a matildeo na

cabeccedila para que natildeo arrevessassem porque se arrevessava tinhatildeo

para si que natildeo seria valente e vice-versa98

Entendo com este texto de Cardim que existe um tanto de moral de

regras de ensinamentos e de respeito muacutetuo entre as pessoas de uma mesma

tribo inclusive com preocupaccedilatildeo paterna de bons costumes Poreacutem me parece

na proacutexima citaccedilatildeo de autoria de Noacutebrega que natildeo era bem assim que ele via a

relaccedilatildeo de casamento pois os brancos e europeus natildeo seguiam essa mesma

visatildeo de um casamento verdadeiro entre eles proacuteprios como faziam os

indiacutegenas Vejamos

Nesta terra ha um grande peccado que eacute terem os

homens quase todos suas Negras por mancebas e outras livres que

pedem aos Negros por mulheres segundo o costume da terra que eacute

98 CARDIM 1980-p88

84

terem muitas mulheres E estas deixam-n as quando lhes apraz o que

pe grande escandalo para a nova Egreja que o Senhor quer fundar99

Anchieta tambeacutem natildeo vecirc com bons olhos o costume do casamento

indiacutegena mesmo com as regras intriacutensecas daquela cultura pois olhando de cima

de seu mito cristatildeo natildeo pode admitir as relaccedilotildees de casais que se formam nas

tribos Vejamos

contraiacutedo matrimocircnio com os mesmos parentes e

primos se torna dificiacutelimo se por ventura queremos admiiacute-los ao

batismo achar mulher que por causa do parentesco de sangue possa

ser tomada por esposa O que natildeo pequeno embaraccedilo nos traz

porquanto natildeo podemos admitir a receber o batismo aacute que se

conserva manceba pois satildeo de tal foacuterma barbaros e indocircmitos que

parecem aproximar-se mais a natureza das feras do que aacute dos

homens100

Mais um ponto para que possamos entender os costumes dos brasis eacute

o de comer carne humana a antropofagia tatildeo apontada em todos os relatos e

cartas e por todos os historiadores do periacuteodo

Ficou quase que declarado de que os indiacutegenas se alimentavam de

carne de seus contraacuterios como se pudesse falar que comiam carne no sentido

alimentar no sentido de sobrevivecircncia da mesma forma que caccedilavam pescavam

ou colhiam frutos e raiacutezes

99 NOacuteBREGA 1988 p79 - Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549 100 ANCHIETA- Cartas 1988p55 Carta de Piratininga 1554

85

Haacute que se entender a ritualiacutestica que envolvia a antropofagia Para

tanto eacute importante tambeacutem que se fale um pouco do costume de guerrear

Os indiacutegenas mais aguerridos tinham como orientaccedilatildeo alimentar nunca

comerem animais lentos ou fracos pois esses atributos passariam a fazer parte de

suas personalidades atributos esses que consideravam sobremaneira como

negativos101 Comiam para esse fim animais raacutepidos ferozes perigosos

audazes espertos e claro o inimigo aprisionado em uma batalha

A antropofagia natildeo alimentava mas dava de uma forma ritualiacutestica a

possibilidade da aquisiccedilatildeo dos atributos positivos do inimigo Ao comer a carne de

um guerreiro valente honrado capaz dominante em sua tribo acreditava por

seus mitos estar adquirindo esses atributos neste caso considerados positivos

Comer carne humana de um guerreiro vencido e aprisionado tinha portanto um

sentido miacutetico

A documentaccedilatildeo disponiacutevel natildeo deixa nenhuma duacutevida a

respeito do fim do aprisionamento de inimigos ele natildeo estava

subordinado a motivos fisioloacutegicos a necessidade de

aprovisionamento regular de carne humana destinada agrave alimentaccedilatildeo

Os Tupinambaacute praticavam a antropofagia sob a forma ritual (apesar

de alguns cronistas pretenderem insinuar o contraacuterio) de modo que a

ingestatildeo de carne dos inimigos sacrificados possuiacutea um significado

simboacutelico e maacutegico 102

101 Podemos ver uma descriccedilatildeo completa em FERNANDES 1970- p43 102 FERNANDES 1970- p47

86

A morte daquele que iria ou foi comido tambeacutem tinha um valor para o

proacuteprio sacrificado visto que morrer dessa forma tambeacutem significava honra pois

ser enterrado para que os vermes o comessem era ser considerado um fraco e

natildeo um guerreiro

Assim as lutas as guerras eram lutas bioacuteticas e necessaacuterias para a

sobrevivecircncia mas tambeacutem pelos seguintes motivos

A aplicaccedilatildeo e treinamento dos conhecimentos de caccedila utilizando

a cilada e o rastrear e perseguir como forma de ataque

Para a guarda do patrimocircnio geneacutetico roubando mulheres

melhores de outra tribo para que filhos melhores pudessem ser

fecundados em casamentos exogacircmicos

Para a pilhagem de conhecimentos como o da cestaria ou da

ceracircmica

Para garantia ou disputa de um espaccedilo ou territoacuterio

ecologicamente mais pleno de possibilidades de alimento da prole

e da tribo em si

Para a pilhagem de viacuteveres em tempos de escassez de recursos

naturais ou de aprovisionamento de utilidades

Como rito de passagem para os mais jovens tornarem-se homens

no sentido adulto de sua masculinidade (avaacute ou tujuaacutee) o que

poderia tornaacute-lo mais atrativo para as mulheres mais atrativas

onde novamente surge a guarda do patrimocircnio geneacutetico

87

Como forma de aprisionar guerreiros que poderiam ser trocados

por viveres ou territoacuterios mais bioacuteticos

A guerra como forma de vinganccedila

Todo indiacutegena estava pronto para lutar Uns mais agressivos outros

mais paciacuteficos mas todos tinham a necessidade belicosa de se defrontar com

inimigos em seus trajetos por territoacuterios que lhe pertenciam ou em incursotildees por

territoacuterios alheios

Talvez por esse motivo Noacutebrega olhasse as guerras indiacutegenas da

seguinte maneira

Fazem guerra uma tribu a outra a 10 15 e 20 leguas de

modo que estatildeo todos entre si divididos Se acontece aprisionarem

um contraacuterio na guerra conservam-o por algum tempo datildeo-lhe por

mulheres suas filhas para que o sirvam e guardem depois do que o

matam com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram

ali perto e si deles ficam filhos os comem ainda que sejam seus

sobrinhos e irmatildeos declarando aacutes vezes as proacuteprias matildees que soacute os

paes e natildeo a matildee tecircm parte nellesSi matam a um na guerra o

partem em pedaccedilos e depois de moqueados os comem com a

mesma solemnidade e tudo isto fazem com um odio cordial que tecircm

um do outro e nestas duas cousas isto eacute terem muitas mulheres e

matarem os inimigos consiste toda a sua honraNatildeo guerreiam por

avareza porque natildeo possuem de seu mais do que lhes datildeo a pesca

a caccedila e o fructo que a terra daacute a todos mas soacutemente por odio e

88

vinganccedila sendo tatildeo sujeitos a ira que si acaso se encontram em o

caminho logo vatildeo a pau aacute pedra ou dentada103

Muito se pode falar do costume de guerrear e da antropofagia como

magia propiciatoacuteria mas soacute esse assunto daria oportunidade de toda uma nova

tese

Dessa forma continuando com a proposta de mostrar como os brasis

concebiam suas vidas na visatildeo do cristatildeo europeu apresento outros pontos dos

costumes e outras comparaccedilotildees culturais

Falo agora da conceituaccedilatildeo de democircnio

A histoacuteria do Diabo confunde-se com a histoacuteria do proacuteprio

Cristianismo era necessaacuteria para a coletividade cristatilde a existecircncia e

a encarnaccedilatildeo do Mal Era preciso que fosse visto tateado tocado

para que o Bem surgisse como a graccedila suprema

O Belo e o Divino

em oposiccedilatildeo ao Horriacutevel e Demoniacuteaco104

Se pegarmos apenas pela definiccedilatildeo temos que a palavra democircnio que

obviamente natildeo existia no vocabulaacuterio de qualquer tribo indiacutegena do Brasil do

Seacuteculo XVI tem sua origem no grego daimoacutenion

e mais tarde do latim

daemonium termo originaacuterio nas crenccedilas da Antiguidade e no politeiacutesmo que

significaria o gecircnio criador fosse ele bom ou mal e que presidia o caraacuteter e o

destino de cada indiviacuteduo Surge no entanto no judaiacutesmo e por consequumlecircncia no

103 NOacuteBREGA 1988p90-91 carta ao Dr Navarro seu Mestre em Coimbra- 1549 104 NOGUEIRA 2000 P103

89

cristianismo com a definiccedilatildeo de anjo mau o qual apoacutes rebelar-se contra Iahweh

foi precipitado no inferno e busca a perdiccedilatildeo da humanidade

Pela didaacutetica da catequese trazer essa definiccedilatildeo do democircnio ou do

Diabo agraves mentes indiacutegenas se fazia necessaacuterio pela pedagogia do terror que se

impunha agraves mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeos

chegando mesmo a ser considerado no Teatro de Anchieta como um certo prazer

esteacutetico na arte de representaccedilatildeo de seus autos fazendo com que indiacutegenas tal

qual o imaginaacuterio cristatildeo acreditasse na importacircncia grandiosa de Satatilde o

Priacutencipe do Mundo na mente dos religiosos cristatildeos aquele que lutava contra a

verdade e a vida

Claro que o indiacutegena tinha noccedilatildeo do Bem e do Mal Tudo aquilo que era

contra seu prazer era o mal e a favor o bem O homem natural e espontacircneo soacute

se move por prazer ou pela dor e o indiacutegena era o homem espontacircneo no seacuteculo

XVI era o homem natural onde guerrear era prazer comer a carne de seu

inimigo era prazer atacar uma tribo para roubar uma fecircmea de outra tribo era

prazer ser belicoso e baacuterbaro na opiniatildeo dos cristatildeos era prazer portanto era o

bem pois para o homem natural Bem e Mal satildeo apenas pontos de referecircncia

Por outro lado existiam na cultura os espiacuteritos do mal isto eacute aqueles

que lhes levava o prazer a comida a caccedila a aacutegua lhes negava a chuva ou fazia

morrer aqueles a quem amavam Esses espiacuteritos eram o Mal Esses eram

Anhangaacute Anhanguumlera (Anhangaacute velho) Taguaigba o Mboy-tataacute105 Curupira106 ou

105 Mboy-cobra+tataacute- fogo = cobra de fogo tambeacutem conhecido como Baetataacute maetataacute ou boitataacute

90

Caipora107 que lhes impedia a caccedila afastando os animais que lhes dariam de

comer caso matasse animais aleacutem da conta necessaacuteria para sua sobrevivecircncia

Curupira era o Mal Curupira era o Bem O que se sabia eacute que era o

protetor da matas A floresta e todos que nela habitavam estavam sob sua

vigilacircncia constante

Por isso antes das grandes tempestades ouve-se bater

nos troncos das aacutervores Eacute o Curupira verificando se elas podem

resistir ao furacatildeo que se avizinha para em caso contraacuterio avisar os

moradores da mata do perigo 108

Anchieta fala desses democircnios em sua carta datada do fim de maio de

1560109 acreditando neles como acreditava em seus proacuteprios democircnios

Eacute cousa sabida e pela boca de todos corre que ha certos

democircnios a que os Brasis chamam corupira que acometem sos

Indios muitas vezes no mato datildeo-lhes accediloites machucam-os e

matam-os Satildeo testemunhas disto os nossos Irmatildeos que viram

algumas vezes os mortos por elesPor isso costumam os Indios

deixar em certo caminho que por aacutesperas brenhas vai ter ao interior

das terras no cume da mias alta montanha quando por caacute passam

penas de aves abanadores flechas e outras cousas semelhantes

como uma espeacutecie de oblaccedilatildeo rogando fervorosamente aos curupiras

que natildeo lhes faccedilam mal

106 de curu-corruptela de curumim + pira = corpo corpo de menino 107 Caipora do tupi-guarani caaacute mato e pora habitante 108 httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905 109 ANCHIETA- Cartas 1988p138 Carta de S Vicente - 1560

91

Anchieta fala do igpupiaacutera110

Ha tambeacutem nos rios outros fantasmas que chamam

Igpupiaacutera isto eacute que moram n agua que matam do mesmo aos Indios

Natildeo longe de noacutes ha um rio habitado por Cristatildeos e que os Indios

atravessavam outrora em pequenas canocircas que fazem de um soacute

tronco ou de corticcedila onde eram muitas vezes afogados por eles

antes que os Cristatildeos para laacute fossem

Conta ainda sobre o Macuteboy-tataacute111

Ha tambeacutem outros maximegrave nas praias que vivem a maior

parte do tempo junto ao mar e dos rios e satildeo chamados de baetataacute

que quer dizer cousa de fogo o que eacute o mesmo como se dissesse o

que eacute todo fogo Natildeo se vecirc outra cousa senatildeo um facho cintilante

correndo daqui para ali acomete rapidamente os Indios e mata-os

como os curupiras o que seja isto ainda natildeo se sabe com certeza

Haacute tambeacutem outros espectros do mesmo modo pavorosos

que natildeo soacute assaltam os Indios como lhes causam dano o que natildeo

admira quando por ecircstes e outros meios semelhantes que longo fora

enumerar quer o democircnio tornar-se formidaacutevel a ecircstes Brasis que

natildeo conhecem a Deus e exercer contra eles tatildeo cruel tirania

E assim podemos ir comparando os cristatildeos usando os padres como

intermediaacuterios do divino os indiacutegenas usando os pajeacutes como sacerdotes os

cristatildeos com medo do diabo os indiacutegenas com medo do Anhangaacute do Taguaigba

Pigtangua do Avasaly ou do Curupira o sarnento

110 Igpupiaacutera

falam Anchieta e F Cardim conforme nota 165 de ANCHIETA-Cartas 1988- 153 - tambeacutem conhecidos como y-pypiaacutera sendo y= aacutegua e pypiaacutera= de dentro isto eacute um monstro que vivia dentro das aacuteguas dos rios 111 ANCHIETA Cartas 1988 p139 Carta de S Vicente - 1560

92

Eram vaacuterios por todo o territoacuterio conhecido pelos portugueses conforme

nos fala Pedro Calmon112 Aimoreacute ou Tapuia os Tupinambaacute de todo o litoral os

Temiminoacute e os Tamoio que se denominavam velhos Tupi canoeiros e pescadores

os Goytacas dos campos proacuteximos de Cabo Frio e mais os Tucupecuxari

Kmayuraacute Yanomami Kadiweu Kaigang Krahocirc Yawalapiti e tantos e tantos

outros

Por esse motivo Jecupeacute que listou 206 tribos em nossas fronteiras

chama o Brasil de Terra dos Mil Povos

O que sabemos enfim eacute que o indiacutegena vivia e concebia suas vidas

atraveacutes de ritos de passagem de ritos de casamento de ritos de nascimento e

morte de magia propiciatoacuteria de batalhas culturais com outras tribos onde ao

guerrearem trocavam culturas trocavam conhecimentos garantiam seus

patrimocircnios geneacuteticos e realizavam suas mostras de honra e bravura garantindo-

lhes a sobrevivecircncia na terra adacircmica mas indocircmita em que viviam

Viviam como filhos do sol ou da lua apoiados no amor ou na ira da

Grande Matildee usando como siacutembolos em suas vidas a coruja a serpente a onccedila

ou o gaviatildeo dividindo-se em grupos e sub-grupos que geravam dialetos e

costumes de dormir de comer de amar de sofrer de rir de guerrear enfim de

viver

112 CALMON 1963 vol 2 p324-330

93

CAPIacuteTULO 5 - COMO OS INDIacuteGENAS TERIAM RECEBIDO A PREGACcedilAtildeO CRISTAtilde E AS

DIFICULDADES ENCONTRADAS NA MISSAtildeO DE CONVERTER

Entendo que seja necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees sobre o

espaccedilo poreacutem no sentido de acircmbito que ocupavam simultaneamente cristatildeos

principalmente os jesuiacutetas e os indiacutegenas brasileiros Era esse espaccedilo natildeo de

terra mas situacional em que ocorreram os confrontos entre grupos de origens

distintas obrigados a transformar a si proacuteprios muitas vezes a uacutenica possibilidade

de manterem suas vidas

Essa transformaccedilatildeo teve por alicerce uma espeacutecie de amaacutelgama

multifacetada de simbolismos o que significa dizer que nestes espaccedilos dedicados

a salvaccedilatildeo de almas forjaram-se respostas muacuteltiplas aos desafios trazidos pelo

encontro entre universos simboacutelicos tatildeo divergentes De um lado aquelas

orquestradas pelos disciacutepulos de Santo Inaacutecio atraveacutes da doutrina e da imposiccedilatildeo

do evangelho de outro as respostas fruto da apropriaccedilatildeo diversa e inovadora

produzida pela multidatildeo de etnias que compunham as muitas aldeias indiacutegenas

que deveriam ser totalmente subjugadas no bom sentido cristatildeo pela Santa

Madre Igreja

Quem nos definiu esse espaccedilo e tudo que nele ocorreu foram os

jesuiacutetas que atraveacutes de suas cartas suas crocircnicas catecismos e autos teatrais

94

relatavam o que acontecia com relaccedilatildeo a esses confrontos de culturas tatildeo

distintas

Muitos jesuiacutetas foram considerados cronistas perspicazes da realidade

que experimentavam Permitindo o desenho de um panorama complexo e intenso

do universo com o qual conviveram O encontro com o gentio e o escrutiacutenio de sua

natureza por parte desses soldados de cristo no firme propoacutesito de conquistar

almas ficou registrado nas diversas correspondecircncias que produziram no

cotidiano de suas missotildees Algumas circularam para aleacutem dos muros da ordem

como cartas de Noacutebrega de Navarro e de tantos outros Os catecismos e os autos

de Anchieta os sermotildees e os Regulamentos das Missotildees de Vieira

A vasta documentaccedilatildeo produzida pela Companhia de Jesus como fruto

do encontro entre seus missionaacuterios e os brasis corresponde a um conjunto

enorme de informaccedilotildees lapidadas pelo estilo conveniente para serem lidas

para servirem de registro da memoacuteria e como mateacuteria para edificaccedilatildeo dos irmatildeos

de sua ordem espalhados pelo mundo O sistema de comunicaccedilatildeo implantado

pela Ordem pode ser considerado sem precedentes na histoacuteria ocidental

Os Portugueses alcanccedilaram o litoral sul-americano pela

primeira vez em abril de 1500 poreacutem foi apenas no uacuteltimo quartel do

seacuteculo XVI que comeccedilaram a produzir relatos sistemaacuteticos com o

intuito de descrever e classificar as populaccedilotildees indiacutegenas

Excetuando-se a sumaacuteria Histoacuteria da proviacutencia de Santa

Cruz de Pero Magalhatildees Gacircndavo impressa em Lisboa em 1576 e

algumas cartas jesuiacuteticas amplamente disseminadas na Europa em

diversas liacutenguas os textos portugueses mais significativos

95

permaneceram ineacuteditos por seacuteculos bem como os Tratados da Terra

e Gente do Brasil uma compilaccedilatildeo da obra de Cardim proporcionam

claros indiacutecios das percepccedilotildees e imagens acumuladas ao longo do

seacuteculo XVI pelos portugueses no que diz respeito a um universo

indiacutegena que se apresentava tatildeo vasto e variado quanto

incompreensiacutevel 113

Ao mesmo tempo tratar essa documentaccedilatildeo como fonte enseja

algumas questotildees O que revelam sobre o cotidiano das missotildees jesuiacuteticas que

mereceriam destaque Qual a possibilidade de trataacute-los como fonte para a histoacuteria

das populaccedilotildees indiacutegenas e seu processo de conversatildeo Seriam elas confiaacuteveis a

ponto de elaborarmos este trabalho sobre como os indiacutegenas teriam recebido a

pregaccedilatildeo cristatilde

A importacircncia dos relatos jesuiacuteticos como fontes para a histoacuteria eacute

inegaacutevel Jaacute se produziu muito e haacute de se produzir muito mais com base nessas

cartas e relatos os mais variados No entanto esses verdadeiros veiacuteculos de

comunicaccedilatildeo trazem uma complexidade de regras e de formas retoacutericas que natildeo

devem ser menosprezadas Se o forem corre-se o perigo de retirar deles sua

historicidade e a possibilidade de sua inteligibilidade Isso natildeo foi esquecido

durante a pesquisa deste trabalho

Das muitas caracteriacutesticas especiacuteficas da empresa jesuiacutetica uma eacute

essencial a sua unidade Portanto natildeo haacute como desvincular a sua instituiccedilatildeo

epistolar de seus fins poliacuteticos e miacutesticos Tatildeo pouco eacute possiacutevel separar tais

113 MONTEIRO 2001p12

96

relatos dos interesses pragmaacuteticos que impregnavam seus ideais de missatildeo

Assim sendo os relatos jesuiacuteticos se conformaram na fronteira entre por um lado

a necessidade de se submeterem agraves regras retoacutericas tradicionais e de

obedecerem a outras que permitissem tornar seus textos puacuteblicos por outro lado

servirem de suporte para a troca de experiecircncias missionaacuterias essenciais para o

crescimento e manutenccedilatildeo de sua atividade evangelizadora

Mas era necessaacuterio ainda que se pudesse entender o indiacutegena no

sentido daquilo que diziam e como diziam seus significados e a comunicaccedilatildeo

entre brancos europeus e agravequeles a que a missatildeo impunha conversatildeo Afinal

como impor um mito sem uma linguagem em que o mito seja entendido

A linguagem e o mito satildeo espeacutecies proacuteximas Nas etapas

primeiras da cultura humana sua relaccedilatildeo eacute tatildeo estreita e sua

cooperaccedilatildeo tatildeo patente que resulta quase impossiacutevel separar uma da

outra 114

Conforme Monteiro115 em seu trabalho desde o momento que os

inacianos chegaram em 1549 eles se defrontaram com um dos maiores

problemas da conversatildeo o de traduzir a simbologia o conteuacutedo e os sentidos da

doutrina cristatilde para uma liacutengua que atingisse o maior nuacutemero possiacutevel de

catecuacutemenos natildeo soacute pela comunicaccedilatildeo mas pelo mito pois na liacutengua

114 CASSIRER 1945 p166 115 MONTEIRO 2001

97

portuguesa natildeo haveria como fazer com que os conceitos do mito cristatildeo

atingissem a alma daqueles a quem queriam converter

Apesar da enorme diversidade linguiacutestica que se descobria

pouco a pouco agrave medida que a expansatildeo portuguesa avanccedilava para

aleacutem das estreitas faixas litoracircneas estabeleceu-se desde cedo uma

poliacutetica linguiacutestica que tornava a liacutengua mais usada na costa do

Brasil o seu principal instrumento Baseada na verdade num

conjunto de dialetos da famiacutelia linguiacutestica tupi-guarani a primeira

liacutengua geral foi perdendo as suas inflexotildees locais e regionais em

funccedilatildeo da sua adoccedilatildeo sistematizaccedilatildeo e expansatildeo enquanto idioma

colonial 116

O primeiro inteacuterprete oficial foi o colono por conhecer tanto o discurso

cristatildeo como tambeacutem pela sua destreza na liacutengua tupi

Poreacutem natildeo foi muito duradoura essa alianccedila entre colonos e

missionaacuterios pelo fato de que esses colonos entraram em conflito com os jesuiacutetas

pelo controle da matildeo de obra indiacutegena que se tentava escravizar A capacidade e

a competecircncia dos colonos para servirem de interpretes na produccedilatildeo do discurso

religioso passou a ser um grande obstaacuteculo para a missatildeo de conversatildeo

deturpando e usando de persuasatildeo o trabalho de liacutengua para fins e propoacutesitos

proacuteprios Assim com esse conflito de interesses os jesuiacutetas tiveram que tentar

uma nova proposta a de encarregar suas proacuteprias instituiccedilotildees de formar seus

proacuteprios liacutenguas que seriam inclusive capacitados em traduzir aos indiacutegenas os

discursos religiosos e tentar interpretar suas respostas

116 MONTEIRO 2001 p36

98

Inicia-se entatildeo uma formaccedilatildeo de interpretes entre os indiacutegenas que

acompanhavam os missionaacuterios onde a escola de escrever e contar dirigida aos

filhos dos principais pudesse ter a funccedilatildeo de formar interpretes indiacutegenas para os

missionaacuterios Aprendiam entatildeo nas escolas o portuguecircs e o discurso religioso

No entanto a escola tambeacutem natildeo se mostrou como um meio seguro

com o qual se pudesse garantir o controle desse discurso pois dentre esses

indiacutegenas formados muitos se transformaram em verdadeiros opositores dos

discursos religiosos disseminando essa apologia entre os indiacutegenas de outras

regiotildees

Dessa forma a experiecircncia mostrou que tanto os indiacutegenas como os

colonos natildeo eram os inteacuterpretes adequados agraves condiccedilotildees de produccedilatildeo e

circulaccedilatildeo do discurso apologeacutetico religioso da missatildeo jesuiacutetica

Foi entatildeo que a Companhia de Jesus passou a recomendar que a

catequese e a conversatildeo fosse feita sem auxiacutelio de intermediaacuterios o que obrigou

aos jesuiacutetas a iniciar uma proposta de formar os liacutenguas no proacuteprio interior da

hierarquia da Igreja exigindo que todos tivessem que procurar formas de adquirir

o conhecimento da liacutengua indiacutegena Os coleacutegios de toda a colocircnia funcionavam

assim como centro de formaccedilatildeo de interpretes dando-se muitas vezes maior

ecircnfase ao conhecimento da liacutengua brasiacutelica do que agraves questotildees teologicas e

outras disciplinas da formaccedilatildeo eclesiaacutestica substituindo em muito o grego liacutengua

importante par a formaccedilatildeo dos cleacuterigos da eacutepoca preocupando-se muito mais em

transformar os noviccedilos em liacutenguas do que em teoacutelogos

99

Nesse caminho lentamente a Igreja foi adquirindo sua independecircncia

em relaccedilatildeo agraves necessidades de inteacuterpretes onde passo a passo foi elaborando

gramaacuteticas e dicionaacuterios em Tupi Tanto essas gramaacuteticas como esses dicionaacuterios

representavam os meacutetodos formais do aprendizado tupi adequando o jesuiacuteta agrave

aquisiccedilatildeo de uma segunda liacutengua

Desta forma a liacutengua geral para os jesuiacutetas foi o resultado de um longo

trabalho em que por pesquisas e interpretes de vaacuterias origens culminando com a

publicaccedilatildeo da Arte de Grammatica de Joseacute de Anchieta em 1595 e do Catecismo

na Liacutengua Brasiacutelica de Antocircnio de Arauacutejo em 1618 No iniacutecio das atividades no

Brasil os jesuiacutetas Pero Correia Juan de Azpilcueta Navarro e Joseacute de Anchieta

deram os primeiros passos decisivos em direccedilatildeo agrave sistematizaccedilatildeo dessa liacutengua

Monteiro117 nos informa que escrevendo de Satildeo Vicente em 1553 o

irmatildeo Pero Correia pediu ao Provincial Simatildeo Rodrigues o envio de livros como

subsiacutedio a seus trabalhos em tupi citando especificamente algumas obras do

escritor castelhano Constantino Ponce de la Fuente de que pudesse tirar

grandes exemplos com muita doutrina para estes gentios os quais espero antes

de morrer ver todos cristatildeos o que em muito ajudou os padres a verterem

sermotildees do Velho e Novo Testamento mandamentos pecados mortais e obras

de misericoacuterdia

No mesmo ano Azpilcueta Navarro informou aos padres e irmatildeos do

Coleacutegio de Coimbra que havia enviado todas as oraccedilotildees na liacutengua do Brasil com

117 MONTEIRO 2001

100

os mandamentos e pecados mortais etc com uma confissatildeo geral princiacutepio do

mundo encarnaccedilatildeo e do juiacutezo e fim do mundo Natildeo conseguiu no entanto criar

uma arte isto eacute manual de gramaacutetica Anchieta por seu turno achava

precipitado elaborar uma gramaacutetica tupi nesses anos iniciais Quanto agrave liacutengua

natildeo a ponho em arte porque natildeo haacute quem aproveite somente aproveito-me eu

dela e aproveitar-se-atildeo os que de laacute vierem que souberem gramaacutetica Contudo

no ano seguinte o irmatildeo Antocircnio Blaacutezquez relatou que os meninos e os irmatildeos

da casa andam todos com grande fervor de saber a liacutengua [e] para aprendecirc-la

tecircm uma Arte que trouxe o Padre Provincial

Tive grande consolaccedilatildeo em confessar muitos iacutendios e

iacutendias por inteacuterprete satildeo candidiacutessimos e vivem com muito menos

pecados que os Portugueses Dava-lhes sua penitecircncia leve porque

natildeo satildeo capazes de mais e depois da absolviccedilatildeo lhes dizia na

liacutengua xe rair tupatilde toccedilocirc de hirunamo sc filho Deus vaacute contigo 118

Mas voltemos agraves correspondecircncias Mostram essas correspondecircncias

que as aldeias indiacutegenas recebiam constantemente a visita dos padres jesuiacutetas

que para ganharem a confianccedila dos iacutendios a serem convertidos agrave feacute cristatilde

apropriavam-se muitas vezes da funccedilatildeo do pajeacute Tornavam-se portanto

portadores dos remeacutedios contra as mazelas natildeo somente das almas mas tambeacutem

dos corpos

Os jesuiacutetas sabiam da necessidade dessas associaccedilotildees como padre x

pajeacute simbologia cristatilde x cosmogonia indiacutegena mitos dessa cosmogonia e a visatildeo

118 CARDIM 1997 [1583-90] p234

101

do Orbis Christianus desde o iniacutecio de seus trabalhos missionaacuterios desde a

chegada dos primeiros jesuiacutetas e viam nos pajeacutes seus mais fortes adversaacuterios

uma vez que teriam necessariamente de tomar o seu lugar

Os que fazem estas feiticcedilarias que disse satildeo mui

apreciados dos Indios persuadem-lhes que em seu poder estaacute a vida

ou a morte natildeo ousam com tudo isto aparecer deante de noacutes outros

porque descobrimos suas mentiras e maldades 119

ou

Si noacutes abraccedilarmos com alguns costumes deste Gentio os

quaes natildeo satildeo contra nossa feacute catoacutelica nem satildeo ritos dedicados a

iacutedolos como eacute cantar cantigas de Nosso Senhor em sua liacutengua pelo

tom e tanger seus instrumentos de muacutesica que elles usam em suas

festas quando matam contraacuterios e quando andam becircbados e isto

para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais () e assim

o preacutegar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e

batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir

alguma cousa e dizecirc-la com muita efficacia e assim tosquiarem-se os

meninos da terra que em casa temos a seu modo Porque similhanccedila

eacute causa de amor E outros costumes similhantes a estes 120

Muitas vezes usavam a roupagem simboacutelica de seu adversaacuterio de

forma consciente para adentrarem no mundo miacutestico dos gentios outras vezes agrave

sua revelia eram confundidos e enquadrados como payeacute sem sequer disso se

darem conta

119 ANCHIETA - Cartas -1988 p83 Carta de Piratininga - 1555 120 NOacuteBREGA 1988 p142-Carta de Manuel da Noacutebrega a Simatildeo Rodrigues 17 de setembro de 1552

102

Mas era preciso controlar corpo e mente e na mente estavam seus

siacutembolos seus mitos e suas almas Dominar as almas dos gentios implicava ter o

controle sobre seus corpos e disciplinar os corpos e as accedilotildees era tarefa lenta e

metoacutedica O ritmo o tempo e a liberdade precisavam ser regulados O trabalho era

intenso e incansaacutevel

Nas cartas de Anchieta e de Noacutebrega muitas tantas vezes surgem

relatos de visitas repetidamente realizadas a uma tribo ou outra onde se mostrava

a intenccedilatildeo clara da imposiccedilatildeo dessa disciplina ou da repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos

em vaacuterios momentos de uma mesmo dia a fim de que se fixassem os novos

ensinamentos e conceitos

Natildeo bastasse a doutrinaccedilatildeo diaacuteria aos domingos e dias santos era

necessaacuterio dizer missa no momento em que pudessem estar todos juntos Para

ampliar o controle sobre a presenccedila deveria haver lugar certo nas Igrejas para as

casas e famiacutelias desses iacutendios

Caso algum faltasse agrave missa deveria o seu missionaacuterio tomar nota e

admoestar em particular o ausente Reincidindo no erro seria admoestado em

puacuteblico e por fim castigado

A atividade catequeacutetica dominical e festiva parecia ser a mais

importante uma vez que era o momento propiacutecio para a reuniatildeo de toda a

comunidade Portanto os cuidados para com ela tambeacutem eram maiores Deveria

se dizer missa e antes da mesma aleacutem da doutrina de ordem os padres

deveriam abordar dois pontos quais sejam os misteacuterios da feacute ou do evangelho e

outro moral que abordasse um viacutecio de maior incidecircncia no momento

103

A persistecircncia dos novos catecuacutemenos em manter haacutebitos tidos como

perniciosos ou como obra do inimigo por seus mestres jesuiacutetas fez com que

estes uacuteltimos flexibilizassem algumas regras de conduta como ateacute mesmo utilizar

iacutendios jaacute evangelizados nas tarefas de conversatildeo nem que fosse ao menos de

exercer atividades no interior dos templos tornando-se na maioria das vezes

sacristatildeos e coroinhas A inserccedilatildeo desses iacutendios nestas atividades apresenta

nuanccedilas riquiacutessimas do modo com que construiacuteram para si o sentido da religiatildeo e

dos rituais catoacutelicos principalmente se levarmos em conta que muitos deles

considerados hereges e que foram levados ao tribunal do Santo Ofiacutecio

O processo de conversatildeo dos iacutendios cristatildeos comeccedilava com o ritual do

batismo o que para os missionaacuterios significava uma forma de permitir a ida das

almas para o mundo de Deus

No entanto para a populaccedilatildeo indiacutegena o batismo ganhava sentido

mais complexo inclusive o de permissatildeo para adentrarem no mundo dos homens

brancos e cristatildeos mundo esse cheio de novas simbologias de curas para muitos

de seus males fiacutesicos e ateacute de um certo conforto diferenciado daquele que

conheciam ao viverem na proximidade dos jesuiacutetas

Poreacutem para o jesuiacuteta a verdadeira obra da missatildeo soacute se concretizava

com a pescaria das almas e com o seu controle absoluto ateacute a morte fiacutesica Salvar

os outros significava salvar a si mesmo Assim como morriam muitos inocentes

dever-se-ia batizar as crianccedilas prioritariamente ainda que moribundas para que

pudessem lograr ecircxito na batalha contra satanaacutes

104

natildeo podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor

para com eles principalmente porque vecircm que empregamos toda a

diligecircncia no tratamento de suas enfermidades sem nenhuma

esperanccedila de lucro E fazemos isto na intenccedilatildeo de preparar para o

recebimento do batismo caso haja necessidade os seus espiritos em

tais circustancias mais redutiveis e mais brandos por igual motivo eacute

que desejamos assistir agraves parturientes a fim de batizar matildee e filho se

o caso exigir Assim acontece atender-se agrave salvaccedilatildeo do corpo e da

alma 121

Claro poreacutem que batizar jaacute que parecia ser algo que os indiacutegenas

apreciavam ou desejavam para poderem adentrar ao mundo branco era um dos

pontos que os jesuiacutetas usavam como forma de meacuterito isto eacute seja cristatildeo em suas

atitudes e disciplinas e aiacute sim receberaacute o batismo Saiba o catecismo e assim seraacute

batizado Vejamos

Antes do dia do Nascimento do Senhor procuraacutemos que

se confessassem o qual fizeram muitas mulheres e alguns homens

os quais diligentemente examinaacutemos nas cousas da feacute e o que

principalmente pretendemos eacute que saibam o que toca os artigos da feacute

scilicet ao conhecimento da Santiacutessima Trindade e aos misteacuterios da

vida de Cristo que a Igreja celebra e que saibamquando lhes forem

perguntado dar conta destas cousas o qual temos em mais que

saber as oraccedilotildees de memoacuteria ainda que nisto se potildee muito cuidado e

diligecircncia porque duas vezes cada dia se lhes ensina na igreja a

nenhum batizamos senatildeo assim instruidos e ainda depois da

confissatildeo lhes pedimos conta dessas cousas a qual muitos maacutexime

121 ANCHIETA Cartas - 1988 P98 Carta de Piratininga - 1556

105

da mulheres datildeo bem que natildeo ha duacutevida senatildeo que levam

vantagem a muitos nascidos de pais Cristatildeos de maneira que muitos

satildeo assas aptos para receber o Santiacutessimo Sacramento da

Eucaristia

Antes ou mesmo depois do advento da liacutengua geral de Anchieta na

impossibilidade de compreensatildeo das liacutenguas por parte dos missionaacuterios e na falta

de interpretes que se batizasse por aceno e com a ajuda das imagens sacras

pinturas cruzes e outros objetos cristatildeos Vejamos

()O Padre que os tiver agrave sua conta procuraraacute com todo o

cuidado fazer um catecismo breve que contenha os pontos

precisamente necessaacuterios para a Salvaccedilatildeo e deste usaratildeo nos casos

de necessidade e por ele os iratildeo ensinando e instruindo mas em

caso que totalmente natildeo haja inteacuterprete nem outro modo por donde

fazer o dito catecismo seraacute meio muito acomodado o misturar os tais

Iacutendios com os da Liacutengua Geral ou de outra sabida para que ao menos

os seus meninos aprendam com a comunicaccedilatildeo e no entretanto se

lhes mostraratildeo as Imagens e Cruzes e os faratildeo assistir aos ofiacutecios

divinos e administraccedilatildeo dos Sacramentos e as mais accedilotildees dos

Cristatildeos para que possam em caso de necessidade inculcar-lhes o

batismo por acenos pois natildeo haacute meio de receberem a feacute pelos

ouvidos de modo que ao menos sub condicione nenhum morra sem

batismo 122

A confissatildeo tambeacutem natildeo poderia ficar de fora das preocupaccedilotildees dos

missionaacuterios Abrir os recocircnditos mais profundos da alma ao missionaacuterio era de

122 Vieira Regulamento das Missotildees p 199-200

106

vital importacircncia na tarefa de perscrutar a sinceridade da sua ligaccedilatildeo com a

religiatildeo Para tanto essas diretrizes indicavam a necessidade de todo ano

produzir listas daqueles capazes de confissatildeo Nenhum deveria ficar sem se

confessar ainda que fossem muitos os iacutendios e poucos os missionaacuterios

A confissatildeo eacute dos sacramentos aquele em que o caraacuteter

de julgamento eacute mais niacutetido Haacute um diaacutelogo - ou melhor uma

sucessatildeo de monoacutelogos em que o penitente diz seus eventuais

pecados responde a indagaccedilotildees sobre os pecados e sobre a

existecircncia de outras ofensas e o fim da confissatildeo eacute marcado por uma

penalidade 123

Assim batizar confessar casar e ajudar a bem morrer eram tarefas

baacutesicas ao bom missionaacuterio Nos laccedilos sagrados do matrimocircnio por exemplo os

missionaacuterios enfatizam a necessidade de manter registros dos nomes

sobrenomes da data do paacuteroco e das testemunhas do casamento assim como

da aldeia em que foi realizado Nenhum padre deveria realizar matrimocircnio entre

iacutendios de paroacutequias diferentes sem proceder a uma coleta de informaccedilotildees em

ambas as paroacutequias para assim terem certeza de que natildeo haveria um sagrado

matrimocircnio com pessoas que jaacute haviam recebido esse sacramento de outro padre

em outra eacutepoca em outra situaccedilatildeo

Quando da necessidade de ajudar o bem morrer era pelo firme

propoacutesito de guardar as almas desses novos cristatildeos e que tivessem morte

assistida o que garantia um ganho definitivo de seu espiacuterito pois era na morte

123 NEVES 1978 p75

107

que os jesuiacutetas colheriam o fruto do trabalho missionaacuterio pois como pastores de

almas teriam que dar conta daquelas que foram apresentadas aos ceacuteus e

encaminhaacute-las em direccedilatildeo a Deus

Mas controlar as almas natildeo bastava o diabo usava dos corpos e dos

gestos pra sua tarefa e por isso junto ao controle das almas atraveacutes da

evangelizaccedilatildeo dos gentios era necessaacuterio o controle dos gestos e dos corpos

tambeacutem fazia parte da obrigaccedilatildeo dos missionaacuterios Na ocasiatildeo das mortes o

controle sobre os rituais utilizados pelas naccedilotildees no sepultamento de seus mortos

era objeto tambeacutem da preocupaccedilatildeo do missionaacuterio O modo de amortalhar ou de

usarem algumas coisas supersticiosas era proibido pelos padres assim como

tambeacutem eram os excessos com que costumam chorar o defunto Pondera Vieira

que ainda que natildeo fossem demonstraccedilotildees de uso gentiacutelico mas sim de dor

natural deveriam se acomodar a poliacutetica cristatilde

Enfim a tocircnica comum compartilhada pelos jesuiacutetas estava relacionada

agrave necessidade de salvaccedilatildeo das almas Desde o seu princiacutepio a preocupaccedilatildeo com

a sua salvaccedilatildeo foi parte constitutiva da missatildeo da Companhia de Jesus Os iacutendios

considerados infieacuteis deveriam ser salvos de sua gentilidade da barbaacuterie e dos

erros em que viviam Essa gentilidade fazia com que esses iacutendios vivessem no

erro caberia ao missionaacuterio portanto conduzir os iacutendios para a verdade atraveacutes

da conversatildeo

108

Nos mostra Monteiro124 que a salvaccedilatildeo das almas encontrava outra

problemaacutetica a ser enfrentada a morte do gentio

A morte do gentil era constante desde o contato com os jesuiacutetas com

os aldeamentos com os brancos europeus mesticcedilos ou africanos e isso era com

certeza uma grande problemaacutetica para a conversatildeo pois com os primeiros

contatos comeccedilam ocorrer os principais episoacutedios epidecircmicos que destruiacuteram

muito das populaccedilotildees indiacutegenas do litoral

Eacute correto dizer no entanto que seja como for no litoral brasileiro do

seacuteculo XVI o contato direto entre as etnias indiacutegenas e os europeus e africanos jaacute

havia atravessado ao menos cinco deacutecadas antes da eclosatildeo das primeiras

pandemias Longe de constituir um variaacutevel independente no despovoamento do

litoral a mortalidade provocada por doenccedilas contagiosas atingiu seus pontos mais

altos quando conjugada com outras mudanccedilas importantes nas relaccedilotildees entre

colonizadores e iacutendios Afinal de contas foi na esteira das ofensivas beacutelicas

promovidas pelo governador Mem de Saacute e do processo concomitante de

deslocamento das populaccedilotildees indiacutegenas para as aldeias missionaacuterias que

ocorreram as primeiras grandes epidemias com destaque para o alastramento da

variacuteola pelo litoral de Pernambuco a Satildeo Vicente

As doenccedilas letais semearam a desordem entre a populaccedilatildeo nativa

sobretudo naquela subordinada aos missionaacuterios e aos colonos Anchieta

rememorando este grande surto epidecircmico escreveu em 1584

124 MONTEIRO 2001 p60

109

No mesmo ano de 1562 por justos juiacutezos de Deus

sobreveio uma grande doenccedila aos Iacutendios e escravos dos

Portugueses e com isto grande fome em que morreu muita gente e

dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos

Portugueses e se fazer escravos vendendo-se por um prato de

farinha e outros diziam que lhes pusessem ferretes que queriam ser

escravos foi tatildeo grande a morte que deu neste gentio que se dizia

que entre escravos e Iacutendios forros morreriam 30000 no espaccedilo de 2

ou 3 meses 125

Monteiro nos mostra ainda que infelizmente natildeo sabemos muito de

como os indiacutegenas responderam aos surtos epidecircmicos mas as cartas dos

jesuiacutetas no iniacutecio da colonizaccedilatildeo dizem algo sobre a percepccedilatildeo dos iacutendios com

relaccedilatildeo agrave origem das doenccedilas claramente associada agrave presenccedila dos padres

Pouco depois de chegar no Brasil o padre Manuel da Noacutebrega se espantou natildeo

apenas com a frequumlecircncia das doenccedilas entre a populaccedilatildeo batizada pelos jesuiacutetas

mas tambeacutem e sobretudo com a acusaccedilatildeo veiculada pelos feiticeiros de que os

missionaacuterios infligiam a doenccedila com a aacutegua do batismo e causavam a morte com

a doutrina126

A liacutengua Geral mostrava que as epidemias estavam presentes no

vocabulaacuterio indiacutegena ao definir a varicela como catapora o fogo que salta

De toda forma com epidemias ou natildeo com paciecircncia ou natildeo com

liacutengua geral e inteacuterpretes da comunicaccedilatildeo para o jesuiacuteta aqueles baacuterbaros natildeo

125 ANCHIETA Cartas- 1988 p364 Informaccedilotildees dos primeiros aldeamentos da Bahia 126 MONTEIRO 2001 p62

110

tinham afeiccedilatildeo pelas coisas de Deus viviam como brutos apenas para comer

beber e danccedilar Para os indiacutegenas de sua parte os padres natildeo entendiam seus

valores e sempre colocavam seus costumes e tradiccedilotildees como algo pertencente ao

diabo

O que se pode no entanto inferir eacute que houve o fato do processo de

encontro do embate de mitos entre dois universos simboacutelicos e sociais

completamente estranhos um ao outro

De um lado uma profecia que um certo pajeacute fazia com terror que os

iacutendios iriam virar brancos revelava mesmo aos pedaccedilos um pouco do processo

de leitura que essas populaccedilotildees nativas faziam desse encontro De outro lado o

cansaccedilo de Noacutebrega antes de sua morte revelavam um pouco do pessimismo do

jesuiacuteta quanto ao processo de conversatildeo e portanto da leitura que era possiacutevel

para ele missionaacuterio fazer tambeacutem daquele universo simboacutelico

Por um lado os pajeacutes acreditavam na transformaccedilatildeo de brancos em

iacutendios e de iacutendios em brancos por outro para o jesuiacuteta ver o iacutendio revestido

numa vestimenta simboacutelica a vestimenta da conversatildeo o cristatildeo tirado das

trevas De certa forma compactuavam pajeacute e jesuiacuteta com a mesma crenccedila ou

melhor com parte dela os iacutendios virariam brancos mas isso natildeo foi possiacutevel

Vieira em seu sermatildeo do Espiacuterito Santo dizia Natildeo ha gentios no

mundo que menos repugnem agrave doutrina da feacute e mais facilmente a aceitem e

recebam que os Brazis e natildeo porque os Brazis natildeo creiam com muita facilidade

mas porque essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crecircr em certo

modo seja como natildeo crer os Brazis ainda depois de crecircr satildeo increacutedulos em

111

outros gentios a incredulidade eacute increacutedulidade e a feacute eacute feacute nos Brasis a mesma feacute

ou eacute ou parece incredulidade 127

Vieira mostrava ainda em seus sermotildees que a resistecircncia era mais do

que resistecircncia pois outras naccedilotildees eram duras mas mais faacutecil de vencer que os

indiacutegenas do Brasil

haacute umas naccedilotildees naturalmente duras tenazes e

constantes as quaes difficultosamente recebem a feacute e deixam os

erros de seus antepassados resistem com as armas duvidam com o

entendimento repugnam com a vontade cerram-se teimam

argumentam replicam datildeo grande trabalho ateacute se renderem mas

uma vez rendidos uma vez que receberam a feacute ficam n ella firmes e

constante como estatuas de maacutermore natildeo eacute necessario trabalhar

mais com elles128

Jaacute com indiacutegenas do Brasil a tarefa era muito mais dura pois se o

pregador deixasse de estar presente por algum tempo que fosse todo o trabalho

de pregaccedilatildeo estava perdido e teria que ser reiniciado como se nunca tivesse

ouvido a palavra de algum pregador

Haacute outras naccedilotildees pelo contraacuterio ( e estas satildeo as do Brazil)

que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e

facilidade sem argumentar sem replicar sem duvidar sem resistir

mas satildeo estaacutetuas de murta que em levantando a matildeo e tesoura o

jardineiro logo perdem a nova figura e tornam agrave bruteza antiga e

natural e a ser matto como dantes eram Eacute necessario que assista

127 VIEIRA 1951 Sermatildeo do Espiacuterito Santo p410 128 idemp 413

112

sempre a estas estatuas o mestre d ellas uma vez que lhe corte o que

vicejam os olhos para que creiam o que natildeo vecircem outra vez que lhe

cerceie o que vicejam as orelhas para que natildeo decircem ouvidos agraves

fabulas do seus antepassados129

Era necessaacuterio insistir nos catecismo nas pregaccedilotildees na redundacircncia

de informaccedilotildees e conceitos mas mesmo assim os simbolismos continuavam

amalgamados e necessitando de mais imposiccedilatildeo de paciecircncia Veja Anchieta

Dando-lhe pois a primeira liccedilatildeo de ser um uacutenico Deus

todo poderoso que criou todas as coisas etc logo se lhe imprimiu na

memoacuteria dizendo que ele rogava muitas vezes que criasse os

mantimentos para o sustento de todos mas que pensava que os

trovotildees eram este Deus embora agora que sabia existir outro Deus

verdadeiro sobre todas as coisas que rogaria a ele chamando-lhe

Deus Padre e Deus Filho por que dos nomes da Santa Trindade

ecircstes dois sogravemente pocircde tomar porque se lhe podem dizer em sua

liacutengua mas o Espiacuterito Santo para este nunca achamos um vocabulo

proacuteprio nem circunloquio bastante e apesar de que natildeo o sabia

nomear poreacutem sabia crecircr 130

Outro ponto importante a ser citado como forma de conversatildeo era a

utilizaccedilatildeo do imaginaacuterio e do medo para a doutrinaccedilatildeo dos gentios e para

evangelizar aquelas almas

129 idem p 413 130 ANCHIETA- Cartas 1988 p200 Carta de Joseacute de Anchieta a Diego Laynes 16 de abril de 1563

113

A contrapartida da utilizaccedilatildeo consciente do imaginaacuterio indiacutegena para

fins doutrinais era a construccedilatildeo por parte desses gentios da imagem dos jesuiacutetas

que ganhava significados muito diferentes daqueles com que por ventura queriam

ser compreendidos

A perspicaacutecia desses jesuiacutetas natildeo foi suficiente para perceberem que

ao fazerem parte desse imaginaacuterio perdiam o controle e o poder sobre seus

catecuacutemenos pois passavam a pertencer a um mundo que natildeo era o seu

Portanto o medo que foi incutido nos gentios tambeacutem passou a ser compartilhado

pelos jesuiacutetas Na medida em que embora respeitados e temidos por muitos

indiacutegenas passavam a ser odiados com a mesma facilidade

A fronteira entre o temor o respeito e o oacutedio era demasiado tecircnue

Cabia ao jesuiacuteta se para isso talento tivesse traduzir esses limites O erro poderia

significar o fim da missatildeo ou mesmo a morte na ponta de uma flecha

O medo que sentiam os brasis de seus Pay-u-assuacute (como eram

denominados os jesuiacutetas) era compartilhado pelos padres Se os rituais catoacutelicos

estavam sendo resignificados em seus siacutembolos pelos indiacutegenas que os adequava

a sua maneira de perceber o universo da mesma forma os rituais gentiacutelicos mais

puros eram compreendidos pelos jesuiacutetas como sendo ritos demoniacuteacos

orquestrados pelo priacutencipe das trevas na batalha pela conquista das almas Claro

os jesuiacutetas tambeacutem carregavam por mais cultos que fossem seus mitos e suas

crenccedilas em Deus e portanto acreditavam no democircnio da mesma forma que os

indiacutegenas temiam a Deus ou a seus deuses

114

Mesmo assim a relaccedilatildeo do indiacutegena com o jesuiacuteta transformou muitos

desses iacutendios em cristatildeos e esses cristatildeos criados muitas vezes como produto

das missotildees dos jesuiacutetas tornaram-se peccedilas essenciais para a manutenccedilatildeo do

controle sobre a populaccedilatildeo indiacutegena para servirem de mediadores entre os

brancos colonizadores e os indiacutegenas das diversas aldeias que os jesuiacutetas tinham

sob seu comando para ajudarem na traduccedilatildeo dos catecismos e dos sermotildees para

a liacutengua geral para ajudarem na evangelizaccedilatildeo e nas tarefas da igreja Poreacutem a

doutrina por sua vez natildeo evoluiria sem o apoio desses personagens

Esses obscuros personagens quase nos bastidores desse teatro da

conversatildeo realizam de certa forma parte da profecia do pajeacute apavorado segundo

a qual os iacutendios iriam virar brancos e os brancos iriam virar iacutendios

Mas afinal qual o significado em tornar-se branco para esses iacutendios

A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no valor que

uma profusatildeo de objetos pontes entre mundos pudesse representar para esses

cristatildeos Cruzes medalhas bastotildees ferramentas vestidos e espadas tornaram-se

veiacuteculos de comunicaccedilatildeo entre homens de mundos distintos

Assim como o processo de alianccedila com diversas naccedilotildees indiacutegenas que

transformava seus liacutederes poliacuteticos em iacutendios principais de sua povoaccedilatildeo natildeo se

concretizava se o referido novo vassalo natildeo recebesse por parte das autoridades

portuguesas algum siacutembolo de sua grandeza e distinccedilatildeo

A espada e a casaca eram comumente utilizadas pelos principais das

tribos conquistadas assim como seus bastotildees de comando Ser importante

115

perante todos de todas as tribos significava receber honrarias brancas e cristatildes

em troca de ser subjugado pela cultura europeacuteia

Davam importacircncia a tudo que poderia tornaacute-los cristatildeos mas

adoravam receber e participar daquilo que se podia chamar de vida branca A

imagem de Cristo que preservaram com tanto cuidado o fato de terem construiacutedo

igreja e casa para o Jesuiacuteta a importacircncia que davam a ver seus nomes escritos

num papel que iria ateacute o rei e por fim o uso que os jesuiacutetas fizeram da cruz

levada nos ombros pelos escolhidos todas essas situaccedilotildees demonstram um

significado importante e ao mesmo tempo completamente inusitado desses

objetos Os jesuiacutetas pressentiam algo sobre esse significado tanto eacute que

utilizavam a cruz objeto para criar uma distinccedilatildeo entre os iacutendios Mas logo

traduziam esse significado para seu universo cosmoloacutegico inteiramente distinto e

estranho ao daqueles homens da floresta O que afinal poderiam significar esses

siacutembolos aos indiacutegenas

Alcanccedilar o significado desses objetos para os indiacutegenas significaria

obter uma resposta consistente sobre o que significava ser branco para eles

O uso dos objetos e roupas dos brancos distinguia os cristatildeos dos

gentios Havia uma transformaccedilatildeo em curso Natildeo significavam no entanto uma

total submissatildeo agraves regras de domiacutenio dos brancos Indicavam sim um aceite de

certas regras mas natildeo significava no entanto aceitar domiacutenio e desistecircncia de

suas crenccedilas e tradiccedilotildees

Iacutendios escravos poreacutem cristatildeos fincaram cruzes pelo caminho de suas

vidas numa clara tentativa de indicar sua inserccedilatildeo no mundo branco Esse

116

emaranhado de siacutembolos para estabelecer sua identidade cristatilde seria somente

uma estrateacutegia para sobreviverem demonstrando estarem do mesmo lado dos

brancos Por outro lado o uso dos objetos ocidentais no seu cotidiano e a

arquitetura de caiccedilara seriam indiacutecios de que esses homens apenas utilizavam tais

objetos por seu valor pragmaacutetico

Talvez o jesuiacuteta natildeo pudesse ter outra interpretaccedilatildeo desses indiacutecios

que natildeo essa do sentido utilitaacuterio e estrateacutegico No entanto natildeo parecem ter um

significado tatildeo simples Eles permitem conjecturas embora preliminares para

respostas um pouco mais complexas Esses diversos objetos apresentam uma

conexatildeo Sejam as espadas os bastotildees as cruzes ou as medalhas Natildeo podem

simplesmente ser traduzidos como simples recursos praacuteticos ou simboacutelicos

usados por populaccedilotildees indiacutegenas para o seu processo de inserccedilatildeo na sociedade

colonial portuguesa Menos ainda que essa inserccedilatildeo fosse uma estrateacutegia poliacutetica

para a manutenccedilatildeo de privileacutegios e de sobrevivecircncia somente

A imagem de cristo dos Nhengaiba por exemplo provavelmente um

crucifixo pode revelar um significado complexo que surgiu ao ser traduzido para a

liacutengua geral ou Nheengatu

Em liacutengua geral crucifixo eacute traduzido por Tupanarayra-rangaacuteua Para

se poder entender o seu possiacutevel significado para os indiacutegenas eacute necessaacuterio

traduzir cada umas das palavras que compotildee o termo

117

Tupana 131 significa em liacutengua geral matildee do trovatildeo a ela natildeo satildeo

rendidas homenagens ou festas Adaptado pelos jesuiacutetas Tupatilde transformou-se

no Deus cristatildeo O sufiacutexo ana indica que a accedilatildeo expressa no prefixo teve lugar e

continua a acontecer Ou seja Tupana ente desconhecido que troveja e mostra

seu poder pelo raio abate toda a floresta tirando a vida aos seres deixando-os

carbonizados

Rayra rangaacuteua 132 por sua vez significa filho ou afilhado do

homem Rangaacuteua isoladamente significa figura tempo hora medida

Certamente a ideacuteia que os Nhengaiba poderiam ter do crucifixo natildeo parece ser a

que os jesuiacutetas queriam que tivessem Ao traduzirem em liacutengua geral esse objeto

permitiram um cem nuacutemero de significados sobre os quais perderam o controle O

temor e respeito com que essa imagem foi adorada por estes iacutendios para a

surpresa dos jesuiacutetas podem estar ligados ao sentido que lhe deram ao traduzi-la

para o seu universo cosmogocircnico referencial

Embora esse sentido tenha ficado irremediavelmente perdido no tempo

eacute possiacutevel supor a traduccedilatildeo das palavras em Nhengatu uma possibilidade de

significado simboacutelico de que esse ser poderoso e desconhecido que troveja e tem

o poder de extinguir vidas se corporificou em uma figura sua medida em um

afilhado de Deus Se correto tal significado permite compreender o temor e o

respeito que esses catecuacutemenos tinham pelo Deus cristatildeo e seus missionaacuterios

jesuiacutetas Ao mesmo tempo permitem imaginar o oacutedio que possivelmente poderiam

131 Bueno 1998 p303 132 idem p 363

118

guardar por esse ser poderoso e vingativo Cruzes poderiam portanto ter um

poder em si mesmas para proteger e ao mesmo tempo simbolizar uma alianccedila

maacutegica com esse poderoso Deus

Enquanto espadas casacas e bastotildees simbolizavam poder para os

principais transformados em brancos ser cristatildeos atraveacutes do batismo poderia

permitir aliar-se a esse poderoso Deus possibilitando sua introduccedilatildeo num mundo

novo que se constituiacutea a sua revelia mas do qual eram tambeacutem artiacutefices

De certa maneira indicam que o processo de sua transformaccedilatildeo em

brancos estava em curso

Novamente a profecia daquele pajeacute parecia completar-se com a frase

de Vieira essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crer em certo

modo seja como natildeo crer Em outras palavras poderiacuteamos interpretar que esses

iacutendios mesmo facilmente tornando-se brancos e portugueses mesmo assim natildeo

o eram nunca seriam e nunca viriam a ser

119

CAPIacuteTULO 6 - O TEATRO COMO FERRAMENTA EDUCACIONAL E DE CATEQUESE

A religiatildeo indiacutegena eacute tomada desde o princiacutepio dos contatos dos

quinhentos como falsa como realidade diaboacutelica como de origem maldita sobre a

qual o cristianismo era imposto como o oposto superior

Havia uma imposiccedilatildeo eurocecircntrica onde o cristianismo era um dos

mais importantes sentimentos desse momento eurocentrista

Por esse motivo tudo deveria ser feito para que a conversatildeo chegasse

a termo

Mais uma ponte deveria ser construiacuteda para que o jesuiacuteta pudesse

persuadir e convencer os indiacutegenas da necessidade da aceitaccedilatildeo da conversatildeo ao

cristianismo Essa ponte deveria conter representaccedilotildees da realidade tanto do lado

cristatildeo como do lado dos brasis

Poreacutem a conversatildeo e qualquer ponte que levasse a ela natildeo poderia ser

apenas uma questatildeo de salvaccedilatildeo mas um elo essencial de inclusatildeo do Mundo

Novo e seus habitantes na sociedade europeacuteia para a qual naquela eacutepoca

religiatildeo e poliacutetica misturavam-se intrinsecamente

Os jesuiacutetas com as suas dificuldades de comunicaccedilatildeo muitas vezes jaacute

pregavam e doutrinavam usando de eloquumlecircncia levantando a voz mostrando os

120

misteacuterios da feacute atraveacutes de gestos andando em roda batendo as matildeos e os peacutes

sempre realizando um tipo de teatro rudimentar tal qual faziam os indiacutegenas

contando seus feitos fazendo as mesmas pausas quebras de retoacuterica gerando e

mostrando espantos pois sabiam que dessa forma estavam agradando e

persuadindo aquele povo que adorava a gestualiadade

Poreacutem eacute bom que se tenha claro que o teatro depois de consolidado

entre as formas pedagoacutegicas utilizadas pelos jesuiacutetas na conversatildeo serviu

tambeacutem como um espelho destruidor pois neles se mostrava a cosmogonia a

perfeiccedilatildeo do aguerrido a cultura dos brasis como sendo o Mal que se

contrapunha a vontade da Igreja que era o Bem Maior Na semacircntica desse teatro

Deus e os Santos lutavam na vida e na morte contra o Diabo da mesma forma

que os contraacuterios e os pajeacutes lutavam contra os padres e a pregaccedilatildeo

No teatro dos quinhentos o reino do democircnio das dissimulaccedilotildees e da

espreita das curas e dos espiacuteritos cabiam em uma soacute figura a do pajeacute visto que

eram essas coisas que mais davam credibilidade aos feiticeiros a arte de

persuadir de dissimular de espreitar e de falar com os espiacuteritos Luacutecifer aparecia

em lugares e situaccedilotildees sempre agrave espreita e como grande personagem do teatro

era representado de diversas formas por um principal por um beberratildeo por um

pajeacute por um guerreiro que desejasse defender as tradiccedilotildees mas nunca colocava

seu rosto para ser visto pois trabalhava sempre a espreita na calada na

sugestatildeo e na seduccedilatildeo se passando ateacute por bom por favoraacuteveis a causa da

catequese e ateacute como divinos O democircnio era atuante natildeo soacute nos autos mas sim

na vida do padres e dos demais cristatildeos vejamos por exemplo

121

o inimigo da natureza humana (como soe sempre fazer)

em impedir o bom successo da obra e assim determinou que a 7 ou 8

leguas daqui matassem um Christatildeo da armada em que viemos 133

Muitas das caracteriacutesticas do teatro medieval e do teatro europeu se

encontram presentes nos autos anchietanos de forma sempre adaptada agrave

compreensatildeo dos indiacutegenas segundo o que entendiam os jesuiacutetas Eram

mostrados nas peccedilas os misteacuterios os evangelhos as obras de Cristo mas

principalmente a realidade daqueles que assistiam ao teatro principalmente

atraveacutes do sagrado do temeroso do assustador do ruacutestico e do burlesco mas

principalmente a caracterizaccedilatildeo dos atores seus gestos e suas expressotildees e

figurino obedeciam a um simbolismo onde as caracteriacutesticas biacuteblicas por um lado

e por outro aos personagens antagocircnicos ao Bem mostrados pela caricatura

pelo grotesco de modo a ficar clara a desordem do inferno em contrapartida da

simbologia organizada do Bem Os cacircnticos suaves em latim estavam sempre em

contraposiccedilatildeo dos ruidosos personagens oriundos do inferno

Os autos de Anchieta tinham no entanto a caracteriacutestica de ultrapassar

as barreiras de uma peccedila teatral principalmente por fazer com que os

espectadores pudessem se misturar com os atores e de certa forma participarem

interativamente com o narrado mesmo que fossem com risadas e sons de

133 NOacuteBREGA 1988 p94

122

espanto com palma em cena aberta sem no entanto deixar que essa

representaccedilatildeo teatral perdesse seu intuito e seu formato dentro do espaccedilo cecircnico

Por representarem sempre os atores teatrais personagens do

cotidiano e do sagrado Anchieta conseguia utilizar esses mesmos personagens

em situaccedilotildees e contextos de diferentes momentos emprestando tanto

personagens como textos de um auto para outro

Muitas vezes Anchieta utilizava textos em que o aversivo para o

democircnio para o iacutendio perfeito portanto os bons costumes era dito pela boca

destes criando mais forccedila quando estes falavam mal da igreja dos padres de

Deus e dos Santos

Ai tenho andado debalde

agrave procura de um pouso

Irra Sempre me faz sair

Da taba o sacerdote

Expulsando-me para bem longe

Infelizmente ele ensina

A obedecer agraves palavras de Deus

Proclama que a sua linda matildee

Me desgraccedilou

Quebrou minha cabeccedila

Tudo o que Anchieta pretendia exaltar das boas qualidades dos

costumes dos iacutendios seus personagens sempre indiacutegenas mostravam essas

atitudes que vinham sempre acentuadas de forma positiva assim como a muacutesica

e as danccedilas pois no entender dos jesuiacutetas demonstravam a riqueza e a beleza

daquela cultura Jaacute os costumes que eram considerados pelos jesuiacutetas como

123

perniciosos e contraacuterios agrave moral da Santa Igreja apareciam normalmente

representados por personagens que deixavam claro pertencerem agraves hordas

demoniacuteacas ou pelo proacuteprio Diabo

O Auto de Satildeo Lourenccedilo eacute a mais longa e rica peccedila de Anchieta Essa

peccedila foi escrita em trecircs liacutenguas tupi portuguecircs e castelhano agrave semelhanccedila de

muitos autos de Gil Vicente que mostram a situaccedilatildeo de bilinguumlismo vigente em

Portugal no seacuteculo XVI

Do ponto de vista da linguumliacutestica essa peccedila eacute das mais importantes pois

mostra como o Tupi da Costa era efetivamente falado Nesse auto vemos os

diabos Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia a tentar perverter a aldeia no que satildeo

impedidos por Satildeo Lourenccedilo e por Satildeo Sebastiatildeo

Anchieta recorre muito agraves alegorias isto eacute agrave personificaccedilatildeo de nomes

abstratos ou agrave atribuiccedilatildeo de qualidades humanas a seres inanimados recurso

tambeacutem muito empregado por Gil Vicente em seus autos Assim vemos no Auto

de Satildeo Lourenccedilo o Amor e o Temor de Deus como personagens a aconselharem

aos iacutendios a caridade e a confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Essa concretude era

eficiente na transmissatildeo dos conteuacutedos doutrinaacuterios cristatildeos dada a concretude

do pensamento miacutetico no qual o mundo indiacutegena estava mergulhado

Considero o auto de Satildeo Lourenccedilo como sendo um dos melhores

exemplos do embate de mitos de que falamos em todo este trabalho onde

Aimbirecirc um dos democircnios diverte-se com piadas maliciosas enquanto leva os

assassinos de Satildeo Lourenccedilo para o inferno Vejamos por exemplo neste mesmo

auto como os diabos ironizam a confissatildeo

124

Satildeo Lourenccedilo Mas existe a confissatildeo

Bom remeacutedio para cura

Na comunhatildeo se depura

Da mais funda perdiccedilatildeo

A alma que o bem procura

Se depois de arrependidos

os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar

o caminho dos remeacutedios

o padre os vai abenccediloar

Guaixaraacute Como se nenhum pecado

Tivessem fazem a falsa

Confissatildeo e se disfarccedilam

Dos viacutecios abenccediloados

a assim viciados passam

Aimbirecirc Absolvidos

Dizem na hora da morte

Meus viacutecios renegarei

E entregam-se a sua sorte

No auto de Satildeo Lourenccedilo mostrando como essas personagens

aparecem representando o cotidiano e ao mesmo tempo o Bem e o Mal trecircs

diabos satildeo personagens de grande importacircncia Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia

todos nomes dos antigos chefes tamoios derrotados e mortos na campanha de

125

Guanabara que satildeo aproveitados para destacar o inimigo vencido e associaacute-lo

com inimigos de toda a cristandade

Do lado do Bem o Anjo vem acompanhado de Satildeo Lourenccedilo e de Satildeo

Sebastiatildeo que resistem aos diabos para natildeo permitir a destruiccedilatildeo da aldeia pelos

pecados

O Diabo talvez tenha sido uma das personagens mais importantes no

projeto de conversatildeo das almas natildeo soacute no teatro mas como em todas as

representaccedilotildees da catequese pois foi contra ele e seus disciacutepulos e seguidores

que partiram as acusaccedilotildees de perversatildeo de mentira de seduccedilatildeo de luxuria A

luta dos missionaacuterios jesuiacutetas natildeo foi nunca contra os pagatildeos ou contra os

hereges mas principalmente contra o diabo contra os feiticeiros e contra aqueles

que mesmo catequizados voltavam aos costumes antigos e promoviam revoltas

nas aldeias e as conduziam a fugas e ao deslocamento para terras mais distantes

da evangelizaccedilatildeo

126

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos

Nesta parte do capiacutetulo a intenccedilatildeo eacute a de fazer o leitor atentar para as

definiccedilotildees de mito como um todo do mito cristatildeo e de sua comparaccedilatildeo com os

mitos indiacutegenas Mostrar como de fato foi o verdadeiro embate de mitos na

batalha de imposiccedilatildeo do branco europeu portuguecircs e obviamente cristatildeo sobre

as populaccedilotildees indiacutegenas atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de cultura

As peccedilas os autos especificamente o Auto de Satildeo Lourenccedilo pelo

fasciacutenio da imagem representativa era muito mais eficaz do que um sermatildeo por

exemplo Escrito em tupi portuguecircs ou espanhol e mais tarde em latim Nesse

auto os personagens satildeo santos caciques democircnios imperadores e ainda

representam apenas simbolismos como o Amor ou o Temor a Deus

Anchieta o jovem missionaacuterio da Companhia de Jesus o grande

piahy (supremo pajeacute branco) como era chamado pelos iacutendios usava com

maestria neste auto o zelo constante pela conversatildeo e os mandamentos

religiosos atraveacutes de uma audiecircncia amena e agradaacutevel diferente da pregaccedilatildeo

seca e riacutegida de que os escritos catequeacuteticos satildeo cabal documento Some-se a

isso que os indiacutegenas eram sensiacuteveis agrave danccedila agrave muacutesica e a mistura de

personagens que integram a miacutetica cristatilde (diabos anjos santos) fatores esses

127

que atuavam sobre o expectador com vigoroso impacto O iacutendio natildeo era no

entanto apenas expectador desse teatro mas tambeacutem participava dele como ator

danccedilarino e cantor

Outros atores aleacutem dos iacutendios domesticados eram futuros padres

brancos e mamelucos Todos amadores que atuavam de improviso seguindo

textos mas sem trabalhos de interpretaccedilatildeo apresentavam os autos nas Igrejas

nas praccedilas e nos coleacutegios

Considero para esta tarefa o Auto de Satildeo Lourenccedilo como uma das

mais importantes ferramentas da catequese onde iacutendios principais de tribos

Tamoyo vencidos e destruiacutedos pelos portugueses passam a ter suas imagens

incorporadas ao diabo e a democircnios

No Apecircndice 1 coloco o Auto de S Lourenccedilo na iacutentegra para que o

leitor possa ter uma completa visatildeo dos comentaacuterios que apresento a cada passo

dessa peccedila teatral

Quando iniciamos a leitura do texto examinando-se apenas o tema do

auto jaacute se percebe que os portugueses do periacuteodo jesuiacutetico ao virem para o

Brasil trouxeram consigo seu espaccedilo miacutetico e obviamente necessitaram

sacralizar o novo territoacuterio

Inicia-se aqui na representaccedilatildeo do auto logo em seu iniacutecio o embate de

mitos De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado pelo Espiacuterito Santo e que trazia aos gentios os bons

costumes e a cura de todos os seus males Do outro lado homens aguerridos e

128

audaciosos que entendiam seus costumes da forma miacutetica que interpretavam

suas vidas e as explicaccedilotildees da finitude dessas vidas sem que conhecessem os

pecados ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao inimigo do Homem

que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a realidade

Jaacute no primeiro ato Percebe-se que a evocaccedilatildeo de Jesus Salvador

mostra agrave plateacuteia que algo se cria com as palavras de Satildeo Lourenccedilo um clima de

redenccedilatildeo com o sofrimento se implanta naqueles que ouvem e vivenciam a

experiecircncia do auto uma proposta de sentirem algo sagrado

Se a palavra se torna criadora se a partir dela formam-se as

proposiccedilotildees constitutivas o Sagrado se apresenta no dizer criador do Verbo

como a verdade dos entes 134

Na fala de Guaixaraacute que encontramos no iniacutecio do segundo ato nada

mais do que a resistecircncia agrave imposiccedilatildeo da cultura portuguesa ou ainda de

qualquer cultura que pudesse querer destruir o que ateacute aquele momento era

considerado pelos indiacutegenas como tradiccedilatildeo e modo de entender a vida Seu mito

o mito de Guaixaraacute pois a funccedilatildeo de seus mitos natildeo eacute a de mostrar uma ideacuteia

herdada de seus antepassados mas sim de mostrar um modo pelo qual aquela

sociedade funciona e que corresponde agrave maneira inata pela qual o homem nasce

e se relaciona em sua vida vivida

Nesta parte do auto Luacutecifer eacute o pajeacute Guaixaraacute eacute o pajeacute e todos que o

seguem satildeo democircnios Guaixaraacute eacute o diabo esse locutor infernal que eacute preciso

134 CRIPPA 1975 p115

129

calar O feiticeiro eacute algo anormal ele eacute um herege natildeo um pagatildeo Eacute um herege

que se faz passar por pagatildeo 135

O pajeacute eacute algo anormal na medida em que se considera que a cultura

iacutendia eacute pagatilde Considera-se a cultura iacutendia como algo jaacute possuiacutedo pelo Diabo

a figura infernal se flexiona Luacutecifer agora eacute o signo da perversatildeo eacute o liacuteder de

hereges que vecirc nele a siacutentese de suas qualidades malignas 136

No entanto durante boa parte do texto do auto Guaixaraacute sabe da forccedila

da tradiccedilatildeo e da linguagem e entende que mesmo que sejam os indiacutegenas

levados a outro mito eacute o mito primordial da origem da cultura que surge de forma

espontacircnea que permanece e crecirc que mesmo com a influecircncia externa de outra

transmissatildeo miacutetica cada indiviacuteduo da cultura a que pertence possui em cada

psique prontidotildees vivas e ativas e que mesmo que se encontrem inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico

Poreacutem o portuguecircs o jesuiacuteta tenta mostrar o inverso disso quando

pretende provar que ateacute mesmo Aimbirecirc acredita na forccedila do novo mito o mito

cristatildeo e a forccedila dos santos Vejamos

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me

amedronta

135 NEVES 1978 p93 136 NEVES 1978 p94

130

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos

noacutes

AIMBIREcirc

Esse

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te

venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

Pela visatildeo de Anchieta Aimbirecirc crecirc em seu mito mas de alguma forma

percebe que muitos indiacutegenas estatildeo passando para o outro lado porque o novo

mito tambeacutem lhes daacute uma explicaccedilatildeo para a vida que levam pois muitas das

situaccedilotildees tiacutepicas vividas pelos gentios com relaccedilatildeo a condiccedilatildeo humana tambeacutem

satildeo representadas pelos mitos que lhes vem sendo ensinado gerando nesses

indiacutegenas uma predisposiccedilatildeo para experimentar os novos conceitos Deus de

seus nascimentos de suas mortes e de renascimento apoacutes a morte dos novos

rituais dos sacramentos etc

Por outro lado percebe-se tambeacutem que Aimbirecirc junto com outros

diabos continuaraacute tentando o disconversatildeo e a manutenccedilatildeo do mito primordial

131

Haacute no entanto uma anguacutestia demonstrada pelo diabo que Anchieta

criou mostrando que ele mesmo sendo o diabo entende a necessidade dos

gentios em descobrir e refazer seus mitos Havia o vislumbre de que a nova

proposta o novo mito pudesse atender agraves necessidades daqueles que teriam

conhecido um novo tipo de conforto uma nova seguranccedila perante as doenccedilas que

destruiacuteram tribos inteiras um novo alento para suas dificuldades enfrentadas em

suas vidas vividas

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de nossa anguacutestia

individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de um novo mito central vai

resolver o problema para o indiviacuteduo e para a sociedade 137

Vejamos este trecho do auto onde os diabos em conversa com Satildeo

Lourenccedilo tentam mostrar que satildeo apenas indiacutegenas no entanto a fala proposta

por Anchieta no texto perverte essa informaccedilatildeo

(Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar

antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

137 EDINGER 1999 11

132

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio

Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou

luminoso democircnio

Ou estaria dizendo em suas proacuteprias palavras e nas natildeo palavras

colocadas por Anchieta em sua boca de personagem sou iacutendio sou livre sou

aguerrido luto por minha tradiccedilatildeo

Mas Satildeo Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo continuam a tentar convencer

esses diabos de que eles foram criados a imagem e semelhanccedila dos brancos e

por isso tecircm que se tornarem tementes a Deus

Como afirmei anteriormente Deus eacute uma forma de explicarmos as

experiecircncias que temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e

transcendentais Ele eacute a superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos

aos deuses pois temos que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa

vida Mas os gentios possuiacuteam outro mundo outra sublimidade outra

transcendentalidade outras ideacuteias outras abstraccedilotildees A terra eacute a mesma mas

entendida de outra forma a morte eacute a mesma mas o conceito dessa passagem

eacute distinto o espiacuterito de cada ideacuteia eacute formado por concepccedilotildees diferentes da dos

portugueses

Vejamos novamente uma afirmaccedilatildeo de Gusdorf jaacute citada anteriormente

neste trabalho

133

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao ser toda

sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da comunidade pelo

viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem vivente a terra as coisas os

seres e ainda os mortos que continuam frequumlentando a morada de sua vida 138

Os deuses dos indiacutegenas eram por eles conhecidos podiam olhar e ver

o Sol a Lua as estrelas a noite a chuva o vento mas o Deus apresentado pelos

jesuiacutetas era um deus que natildeo se podia ver nem acreditar sem pensar El Dios

verdadero el Dios de la religioacuten cristiana fue siempre un Deus absconditus 139

um Deus escondido um Deus que necessita que se creia sem que se possa ver

Mas Anchieta na voz da personagem Satildeo Sebastiatildeo vecirc a existecircncia de

um povo e seu mito e tenta ainda mudar a concepccedilatildeo de Aimbirecirc impondo o mito

cristatildeo

(Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo

espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

138 GUSDORF1959 p 55-56 139 CASSIRER 1945 p113

134

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas

velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas

palavras amigas

Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute

De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba disso natildeo

os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa

Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos

jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa

Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de

comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas

avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos

aprisionando

135

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando

AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e aos viacutecios bem se

convertem agrave forccedila do nosso mando

Os diabos aqui retratados tentam usar de uma linguagem que permite

estruturar seu conhecimento sobre si e sobre seu povo uma linguagem que

pudesse ser capaz de transcrever sua realidade vivida mas que pertencesse a

seu proacuteprio conhecimento de mundo um mundo indiacutegena um mundo desenhado

pelo mito primordial e pela essecircncia de seu ser e de sua existecircncia humana que

se fixa atraveacutes de uma paisagem desenhada pelo grupo social a que pertence a

tribo de sua origem de seu nome e de sua identidade envolta por uma membrana

relacionada com a moral e com a espiritualidade de seu povo

Eacute atraveacutes do mito que o homem se relaciona com o outro pensa seus

deuses pensa sua vida e vive as relaccedilotildees do povo a que pertence Eacute pelo mito

que satildeo definidas as tarefas coletivas e individuais da comunidade na defesa na

guarda dos indiviacuteduos coletores ou caccediladores guerreiros ou agricultores

partilhando vivecircncias e vivenciando a cooperatividade

136

A cooperatividade e mutualidade servem para garantir o alimento a

cultura e a tradiccedilatildeo as quais tambeacutem alimentam tanto para si como para os que

do indiviacuteduo miacutetico dependem sendo a base psiacutequica para o ser em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal

Mas quer Anchieta que seus personagens entendam o inferno mas o

proacuteprio texto mostra que Aimbirecirc percebe que os brancos tambeacutem cultuam esse

inferno de alguma forma

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a

taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

Inferno um local subterracircneo habitado pelos mortos um lugar em que

as almas pecadoras se entram apoacutes a morte submetidas a penas eternas

Novamente o absconditus soacute que agora natildeo eacute mais Deus quem estaacute escondido e

sim o diabo isto eacute eles mesmos Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos os outros

mesmo que eles mesmos natildeo saibam disso

SAtildeO LOURENCcedilO

Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura

137

Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma

que o bem procura

Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai

abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados

passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios

renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou

eu abandonaacute-los

E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los

Tanto confiaram em mim construindo esta capela

plantando o bem sobre ela

Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso

138

Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs

daqui lhes darei sumiccedilo

Deles nem sombra vereis

Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas

tridentes e alegrar as nossas gentes

Jaacute aqui Anchieta propotildee que os diabos saibam bem quem satildeo qual

sua origem e qual seu destino Mas Guaixaraacute e seus companheiros natildeo tinham

essa concepccedilatildeo de origem e de destino do mito cristatildeo ou mesmo de profano e de

sagrado pois sagrado ou profano eacute tudo aquilo que se encontra sob os olhos do

homem no entanto no iacutendio real natildeo interpretado de um texto apologeacutetico natildeo

havia a clara noccedilatildeo de profano e sagrado nem de pecado pois isso natildeo estava

sob seus olhos existindo sim o tabu que cometido ou invadido natildeo tinha perdatildeo

e soacute poderia receber a morte diferente do pecado que por maior que fosse teria

como ser renegado e obtido o perdatildeo para que se siga em direccedilatildeo aos Ceacuteus

As diversas formas da realidade seguem-se agraves diversas formas que o

sagrado assume ao revelar-se Independentemente dos contrastes e das

oposiccedilotildees que integram o mundo do real sensiacutevel haacute uma coincidecircncia radical no

Ser e no Sagrado O divino garante estas oposiccedilotildees e diversidades

apresentando-se ele mesmo das mais diversas maneira 140

Enfim apoacutes o embate de mitos de um lado Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo e

do outro Aimbirecirc e Saravaia como sempre o considerado Bem vence o

140 CRIPPA 1975 p117

139

considerado Mal onde ateacute os franceses e castelhanos satildeo considerados aliados

do Diabo e nesse embate de mitos o branco portuguecircs cristatildeo e jesuiacuteta vence o

Curupira a Grande Matildee a Matildee dacuteaacutegua o Macuteboy-tataacute

O Anjo Fala com os santos convidando-os a cantar e se

despede)

Cantemos todos cantemos

Que foi derrotado o mal

Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa

alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima

repeticcedilatildeo da cantiga choram)

Conforme se pode perceber no texto que define o terceiro ato e muito

do texto a seguir os anjos de Deus comandam os diabos Aimbirecirc e Saravaia para

que atuem sob seu comando fazendo arder nos infernos outros que podem ser

considerados pecadores Deacutecio e Valeriano imperadores e que representam

possivelmente no auto de Satildeo Lourenccedilo outros chefes tribais que natildeo aceitaram a

pregaccedilatildeo

ANJO

Aimbirecirc

Estou chamando vocecirc

Apressa-te Corre Jaacute

140

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute

Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para

dar-te como presa

De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los

Que para o sol sejam cegos

Ide ao fogo cozinhaacute-los

Castiga com teus vassalos estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto

Sejam tais ordens cumpridas

Reunirei meus democircnios

Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que

temos planos medonhos

(Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana

Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Sus Caborecirc vecirc se te

inflama pra comer estes perus

141

(Acodem todos os quatro com suas armas)

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Anchieta nos mostra neste ponto que tambeacutem os diabos criam seus

conceitos de Bem e Mal a partir de semelhanccedilas tanto com Deus como com o

Diabo pois para aceitarem o mito que altera seus costumes que gera dentro

deles uma perda da consciecircncia de uma realidade transpessoal seus deuses as

anarquias interna e externa dos desejos pessoais rivais assumem o poder e como

os cristatildeos passam a criar deidades agrave sua imagem e semelhanccedila as quais criam

homens agrave suas imagens e semelhanccedilas

Mostra Anchieta quando fala dos romanos no texto do Auto que Deacutecio

e Valeriano satildeo adeptos a ideacuteias contraacuterias ao cristianismo satildeo guerreiros

conquistadores pagatildeos e portanto infieacuteis que deveratildeo ser castigados mas por

quem por aqueles considerados pelo mito cristatildeo iguais a estes isto eacute Aimbirecirc e

Saravaia e outros diabos que os enganaraacute os assaraacute os sangraraacute atendendo agraves

ordens dos anjos e dos santos catoacutelicos Neste momento do texto do auto de Satildeo

Lourenccedilo os diabos chamam de castelhanos os imperadores o que pode servir

para mostrar o juiacutezo que dos castelhanos (ou de sua liacutengua) faziam entatildeo os

lusitanos juiacutezo esse perfilhado mesmo por quem como Anchieta nascera em

terras de Espanha

142

Caos total na cultura indiacutegena O mito cristatildeo eacute imposto sobre a pureza

da indianidade

No quarto o Temor de Deus e o Amor de Deus mandam sua mensagem

de que os iacutendios (puacuteblico-alvo de Joseacute de Anchieta) devem amar e temer a Deus

que por eles tudo sacrificou Neste quarto ato novamente o sagrado cristatildeo

invade o espaccedilo sagrado do mito indiacutegena invade o espaccedilo miacutetico primitivo

substituindo o altar de sacrifiacutecios espaccedilo de magia do pajeacute vital para a

manutenccedilatildeo de seu pensamento e estrutura de sua psique pelo altar a Deus

como um marco de apenas uma existecircncia possiacutevel como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute um novo sentido pois ali natildeo moram mais seus

deuses natildeo moram seus mortos seus pensamentos e desejos e sim um mito

cristatildeo

Reafirma essa imposiccedilatildeo do sagrado cristatildeo sobre o sagrado

indiacutegenas no momento do quinto ato onde na danccedila final de doze meninos

invocando Satildeo Lourenccedilo afirmando em tupi os bons propoacutesitos de seguir os

ensinamentos cristatildeos O fim da apresentaccedilatildeo criava um clima propiacutecio para que o

puacuteblico em verdadeiro coro formulasse idecircnticos votos de viver segundo os

preceitos religiosos

Natildeo haacute mais por esse auto de Anchieta um espaccedilo sagrado onde o

indiacutegena pudesse realizar seus rituais suas suplicas seus sacrifiacutecios fazendo

com percam por completo e em definitivo o local onde suas forccedilas vitais pudessem

se encontrar se concentrar e os fazer existir como satildeo

143

Conforme Cripa141 quando novas simbologias satildeo inseridas no

processo de manifestaccedilatildeo do sagrado elas assumem uma dimensatildeo nova a

sacralidade manifestando um poder transcendente e incontrolaacutevel pelo homem

tornando ao final o indiacutegena em um arremedo de branco e portuguecircs confirmando

assim a profecia do pajeacute que dizia que o iacutendio se transformaria no branco e o

branco em iacutendio Isso natildeo aconteceu o indiacutegena se transformou em algo que

caminha sobre a terra

Com a queda do pano na boca de cena para Anchieta o iacutendio se

converteu Vejamos em que ele acreditava

falamos-lhe que o queriacuteamos batizar para que sua alma

natildeo se perdesse mas que por entatildeo natildeo podiacuteamos ensinar-lhe o que

era necessaacuterio por falta de tempo e que estivesse preparado para

quando voltaacutessemos Folgou ele tanto com esta notiacutecia como vinda

do Ceacuteu e teve-a tanto em memoacuteria que agora quando viemos e lhe

perguntamos se queria ser Cristatildeo respondeu com muita alegria que

sim e que jaacute desde entatildeo o estava esperando [] O que se lhe

imprimiu foi o misteacuterio da Ressurreiccedilatildeo que ele repetia muitas vezes

dizendo Deus verdadeiro eacute Jesus que saiu da sepultura e subiu ao

Ceacuteu e depois haacute de vir muito irado a queimar todas as cousas []

Chegando agrave porta da igreja o assentamos em uma cadeira onde

estavam jaacute seus padrinhos com outros cristatildeos a esperaacute-lo Aiacute lhe

tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria e ele

respondeu com grande fervor que queria ser batizado e que toda

aquela noite estivera pensando na ira de Deus que havia de ter para

141 CRIPPA 1975 p120

144

queimar todo o mundo e destruir todas as cousas e de como

haviacuteamos de ressuscitar todos142

142 ANCHIETA - Cartas- 1988 p 199 - Carta ao Geral Diogo Lainez de Satildeo Vicente a 16 de abril de 1563

145

CONCLUSAtildeO - O RESULTADO DO EMBATE DESSES MITOS NA EDUCACcedilAtildeO E NA CULTURA

BRASILEIRA

Noacutes brancos negros mesticcedilos e cristatildeos ou natildeo pudemos ter nesse

Brasil uma heranccedila que poderia ser considerada magna quer na liacutengua que

falamos quer nas artes nas danccedilas na culinaacuteria que a Cunhatilde matildee da famiacutelia

brasileira nos deixou diria com certeza Gilberto Freire Aprendemos e

incorporamos tantos e tantos itens dessa cultura maravilhosa que veio do

indiacutegena fomos educados pelas Cunhatildes

Mas desde Caminha sempre se repetem pela educaccedilatildeo formal

brasileira as maravilhas deste paiacutes desta terra como se eles os indiacutegenas nunca

tivessem existido esquecendo-se que transmissatildeo cultural eacute educaccedilatildeo

Poreacutem a terra em si eacute de muitos bons ares assim frios e

temperados como os de Entre-Doiro e Miacutenho porque neste tempo

de agora assim os achaacutevamos como os de laacute Aacuteguas satildeo muitas

infindas E em tal maneira eacute graciosa que querendo-a aproveitar dar-

se-aacute nela tudo por bem das aacuteguas que tem 143

143 CAMINHA 2000 p 12

146

Podemos observar no trecho acima que o Brasil eacute descrito como

mundo feacutertil de clima ameno vida promissora Esse relato eacute consequumlecircncia da

visatildeo medieval da natureza na qual a exuberacircncia eacute uma manifestaccedilatildeo divina

Nessa idealizaccedilatildeo cada visatildeo da terra eacute uma liccedilatildeo de Deus e tudo eacute associado

entatildeo ao Eacuteden ao Paraiacuteso Terrestre Discurso elaborado no periacuteodo de

conquista da terra e que se repete ao longo dos seacuteculos

Vejamos por exemplo um trecho proacuteprio do romantismo da Canccedilatildeo do

Exiacutelio de Gonccedilalves Dias (seacuteculo XIX)

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiaacute

As aves que aqui gorjeiam

Natildeo gorjeiam como laacute

Nosso ceacuteu tem mais estrelas

Nossas vaacuterzeas tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida mais amores

Ateacute mesmo canccedilotildees atuais cantam essa terra maravilhosa onde o

Eacuteden repousa como em Paiacutes Tropical de Jorge Ben Jor (seacuteculo XX)

Moro num paiacutes tropical

Abenccediloado por Deus

E bonito por natureza

Mas que beleza

Fevereiro tem carnaval

Tem carnaval

147

O Hino Nacional Brasileiro tambeacutem se rende ao mito do Paraiacuteso

Terrestre ser o Brasil

Se em teu formoso ceacuteu risonho e liacutempido

A imagem do Cruzeiro resplandece

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida no teu seio mais amores

Gigante pela proacutepria natureza

Es belo eacutes forte impaacutevido colosso

E o teu futuro espelha essa grandeza

Terra adorada

Entretanto haacute textos que subvertem ironicamente a histoacuteria oficial do

paiacutes apresentada na Carta de Caminha num processo de desconstruccedilatildeo desse

mito de que o Eacuteden eacute aqui Mostram um Brasil cheio de contrastes tal como este

fragmento da muacutesica Iacutendios do conjunto Legiatildeo Urbana (seacuteculo XXI)

Quem me dera ao menos uma vez

Ter de volta todo o ouro que entreguei

A quem conseguiu me convencer

Que era prova de amizade

Se algueacutem levasse embora ateacute o que eu natildeo tinha

Quem me dera ao menos uma vez

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que natildeo tem o bastante

148

E fala demais por natildeo ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez

Que o mais simples fosse visto como o mais importante

Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez

Entender como um soacute Deus ao mesmo tempo eacute trecircs

E esse mesmo Deus foi morto por vocecircs -

Eacute soacute maldade entatildeo deixar um Deus tatildeo triste

Quem me dera ao menos uma vez

Como a mais bela tribo dos mais belos iacutendios

Natildeo ser atacado por ser inocente

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Tentei chorar e natildeo consegui

Em sua carta aleacutem das primeiras imagens da terra e dos homens

Caminha ressalta que Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que

seraacute salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela

deve lanccedilar Mas o iacutendio apoacutes a conversatildeo apoacutes ter sido educado pelo branco

vestiu maacutescaras de cristandade maacutescaras de algueacutem com pele branca maacutescaras

de civilizaccedilatildeo europeacuteia marca indeleacutevel de sua condiccedilatildeo de escravo do

colonizador europeu quinhentista e seiscentista

O mito cristatildeo nesse embate derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e

todos os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano Elimina o mito de

149

Acircgacircmahsacircpu o Pai maior o mito dos Diroaacute e dos Koaacuteyea e todo o conhecimento

do mito indiacutegena

Entendo que todo o trabalho aqui apresentado eacute uma conclusatildeo de per

si e leva o leitor a uma compreensatildeo do embate de mitos e quem venceu Que

lado se tornou o Bem e que lado se tornou o Mal

Gostaria de encerrar esta proposta voltando a tradiccedilatildeo indiacutegena natildeo

considerada fonte histoacuterica mas real como real eacute ainda alguma sombra tecircnue do

mito indiacutegena trazendo a Histoacuteria de Umukomahsu144

os Desana ficaram divididos em vaacuteria malocas onde

viviam sossegados Trabalhavam e faziam grandes festas como a

festa de oferta de bens (poori) Na maloca do filho de Boreka tambeacutem

chamado Boreka havia um tipo de boneco de que ele era o dono

Chamava-se Gotildeatildemecirc (demiurgo) Ele morava dentro de uma grande

cuia de um metro de altura sustentada sobre um suporte de panela

Durante o dia ele se parecia como uma cobra venenosa Mas ele natildeo

mordia De noite no sonho ele tinha relaccedilatildeo sexual com a mulher de

Boreka Assim a mulher de Boreka contava para as outras mulheres

No sonho ele lhe aparecia como um padre agraves vezes como um

Branco Assim natildeo somente ele tinha vida como tambeacutem ele vivia no

sonho com algumas outras mulheres da maloca de Boreka Mas natildeo

com todas Escolhia a mulher com quem ia viver no sonho Ele natildeo

fazia isso com as solteiras somente com as mulheres que jaacute tinham

marido isto eacute que pertenciam a outra tribo Por isso quando nascia

uma crianccedila da mistura do secircmem de Gotildeatildemecirc e do marido jaacute se sabia

que quando crescesse ele seria inteligente saacutebio e adivinho Gotildeatildemecirc

144 LANA 1995 p58-59

150

tinha relaccedilatildeo sexual no sonho com cinco mulheres da maloca de

Boreka que tinham marido

Ele tinha um grande poder Protegia Boreka livrando-o de

todos os males e de todos os perigos que dele se aproximassem

Enquanto viviam deste modo chegaram os primeiros Brancos na

regiatildeo De acordo coma a histoacuteria do Brasil esses Brancos seriam os

bandeirantes Depois deles chegaram os Brancos que agarraram a

gente Eles cercavam a maloca de Boreka mas natildeo conseguiram

entrar nela Suas pernas ficaram moles Eles natildeo tinham mais forccedila

para andar Voltaram uma segunda vez cercaram a maloca e

aconteceu a mesma coisa Tornaram a voltar e sucedia o mesmo Por

isso eles perguntaram para os iacutendios de outras tribos porque eles

ficavam deste jeito quando tentavam entrar na maloca de Boreka Os

outros contaram que Boreka tinha na sua maloca um tipo de boneco

que o defendia Os Brancos perguntaram em qual lugar ele ficava

guardado Responderam que era bem no meio da porta do quarto de

Boreka A porta chamava-se Imikadihsi (porta dos Paris) Ele estava

sobre essa porta em cima de um suporte de cuia

Os Brancos ouviram tudo direito e foram outra vez para a

maloca de Boreka Quando chegaram a primeira coisa que fizeram foi

derrubar Gotildeatildemecirc com um tiro de espingarda Atiraram sem ver nada

porque sabiam onde ele se encontrava A casa de Gotildeatildemecirc isto eacute a

cuia ficou totalmente despedaccedilada mas ele subiu ao ceacuteu Os

Brancos cercaram entatildeo a maloca e agarraram Boreka O

descendente legiacutetimo da Gente de Transformaccedilatildeo foi assim preso

pelos Brancos O irmatildeo de Boreka conseguiu fugir e tomou o lugar

dele como chefe supremo dos Desana Boreka quando foi levado

pelos Brancos levou consigo a maior parte dos seus poderes Natildeo se

sabe para qual lugar os Brancos o levaram Talvez esteja na Bahia

no Rio de Janeiro ou no Portugal Isso ningueacutem sabe As riquezas

restantes ficaram todas para a sua geraccedilatildeo Elas estatildeo com os

descendentes de Boreka os Borekapotilderatilde Entre outras estatildeo os

pumuribuya os Enfeites de Transformaccedilatildeo e as outras coisas

tiradas da Maloca do Universo

151

APEcircNDICES

Senti durante este trabalho a necessidade de acrescentar estes

apecircndices com o intuito de levar ao leitor uma seacuterie de informaccedilotildees que natildeo

pertencem ao objeto de estudo e a proacutepria tese em si mas que colaboraram para

o entendimento de mito cristatildeo no sentido especialmente cultural e que puderam

influenciar na missatildeo de educaccedilatildeo e catequese jesuiacutetica ao indiacutegena brasileiro

Para tanto apresento a seguir o texto completo do Auto de S Lourenccedilo

e trecircs estudos por mim realizados em forma de apecircndices A missa e os

siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem O mito de Cristo e por fim

Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade

152

APEcircNDICE 1 O AUTO DE SAtildeO LOURENCcedilO JOSEacute DE ANCHIETA

PERSONAGENS

GUAIXARAacute - rei dos diabos AIMBIREcirc SARAVAIA - criados de Guaixaraacute TATAURANA URUBU JAGUARUCcedilU - companheiros dos diabos VALERIANO DEacuteCIO - Imperadores romanos SAtildeO SEBASTIAtildeO - padroeiro do Rio de Janeiro SAtildeO LOURENCcedilO - padroeiro da aldeia de Satildeo Lourenccedilo VELHA ANJO TEMOR DE DEUS AMOR DE DEUS CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA Apoacutes a cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute chama Aimbirecirc e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia Satildeo Lourenccedilo a defende Satildeo Sebastiatildeo prende os democircnios Um anjo manda-os sufocarem Deacutecio e Valeriano Quatro companheiros acorrem para auxiliar os democircnios Os imperadores recordam faccedilanhas quando Aimbirecirc se aproxima O calor que se desprende dele abrasa os imperadores que suplicam a morte O Anjo o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade contriccedilatildeo e confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Faz-se o enterro do santo Meninos iacutendios danccedilam

PRIMEIRO ATO (Cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo) Cantam

Por Jesus meu salvador Que morre por meus pecados Nestas brasas morro assado Com fogo do meu amor Bom Jesus quando te vejo Na cruz por mim flagelado

Eu por ti vivo e queimado Mil vezes morrer desejo Pois teu sangue redentor Lavou minha culpa humana Arda eu pois nesta chama Com fogo do teu amor

153

O fogo do forte amor Ah meu Deus com que me amas Mais me consome que as chamas E brasas com seu calor

Pois teu amor pelo meu Tais prodiacutegios consumou Que eu nas brasas onde estou Morro de amor pelo teu

SEGUNDO ATO (Eram trecircs diabos que querem destruir a aldeia com pecados aos quais resistem Satildeo Lourenccedilo Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo da Guarda livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes satildeo Guaixaraacute que eacute o rei Aimbirecirc e Saravaia seus criados)

GUAIXARAacute

Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira Quem a teria trazido com seus haacutebitos polidos estragando a terra inteira Soacute eu permaneccedilo nesta aldeia como chefe guardiatildeo Minha lei eacute a inspiraccedilatildeo que lhe dou daqui vou longe visitar outro torratildeo Quem eacute forte como eu Como eu conceituado Sou diabo bem assado A fama me precedeu Guaixaraacute sou chamado Meu sistema eacute o bem viver Que natildeo seja constrangido o prazer nem abolido Quero as tabas acender com meu fogo preferido Boa medida eacute beber cauim ateacute vomitar Isto eacute jeito de gozar a vida e se recomenda a quem queira aproveitar A moccedilada beberrona

trago bem conceituada Valente eacute quem se embriaga e todo o cauim entorna e agrave luta entatildeo se consagra Quem bom costume eacute bailar Adornar-se andar pintado tingir pernas empenado fumar e curandeirar andar de negro pintado Andar matando de fuacuteria amancebar-se comer um ao outro e ainda ser espiatildeo prender Tapuia desonesto a honra perder Para isso com os iacutendios convivi Vecircm os tais padres agora com regras fora de hora praacute que duvidem de mim Lei de Deus que natildeo vigora Pois aqui tem meu ajudante-mor diabo bem requeimado meu bom colaborador grande Aimberecirc perversor dos homens regimentado

(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele E ele a ajuda como fazem os iacutendios Depois de chorar achando-se enganada diz a velha)

154

VELHA

O diabo mal cheiroso teu mau cheiro me enfastia Se vivesse o meu esposo meu pobre Piracaecirc isso agora eu lhe diria Natildeo prestas eacutes mau diabo Que bebas natildeo deixarei do cauim que eu mastiguei Beberei tudo sozinha ateacute cair beberei (a velha foge)

GUAIXARAacute (Chama Aimberecirc e diz)

Ei por onde andavas tu Dormias noutro lugar

AIMBIREcirc

Fui as Tabas vigiar nas serras de norte a sul nosso povo visitar Ao me ver regozijaram bebemos dias inteiros Adornaram-se festeiros Me abraccedilaram me hospedaram das leis de deus estrangeiros Enfim confraternizamos Ao ver seu comportamento tranquumlilizei-me Oacute portento Viacutecios de todos os ramos tem seus coraccedilotildees por dentro

GUAIXARAacute

Por isso no teu grande reboliccedilo eu confio que me baste os novos que cativaste os que corrompeste ao viacutecio Diz os nomes que agregaste

155

AIMBIREcirc

Gente de maratuauatilde no que eu disse acreditaram os das ilhas nestas matildeos deram alma e coraccedilatildeo mais os paraibiguaras Eacute certo que algum perdi que os missionaacuterios levaram a Mangueaacute Me irritaram Raivo de ver os tupis que do meu laccedilo escaparam Depois dos muitos que nos ficaram os padres sonsos quiseram com mentiras seduzir Natildeo vecirc que os deixei seguir - ao meu apelo atenderam

GUAIXARAacute

De que recurso usaste para que natildeo nos fugissem

AIMBIREcirc

Trouxe aos tapuias os trastes das velhas que tu instruiacuteste em Mangueaacute Que isto baste Que elas satildeo de fato maacutes fazem feiticcedilo e mandinga e esta lei de Deus natildeo vinga Conosco eacute que buscam a paz no ensino de nossa liacutengua E os tapuias por folgarem nem quiseram vir aqui De danccedila os enlouqueci para a passagem comprarem para o inferno que acendi

GUAIXARAacute

Jaacute chega

156

Que tua fala me alegra teu relatoacuterio me encanta

AIMBIREcirc

Usarei de igual destreza para arrastar outras presas nesta guerra pouco santa O povo Tupinambaacute que em Paraguaccedilu morava e que de Deus se afastava deles hoje um soacute natildeo haacute todos a noacutes se entregaram Tomamos Moccedilupiroca Jequei Gualapitiba

Niteroacutei e Paraiacuteba Guajajoacute Carijoacute-oca Pacucaia Araccedilatiba Todos os tamoios foram Jazer queimando no inferno Mas haacute alguns que ao Padre Eterno fieacuteis nesta aldeia moram livres do nosso caderno Estes maus Temiminoacutes nosso trabalho destroem

GUAIXARAacute

Vem tentaacute-los que se moem a blasfemar contra noacutes Que bebam roubem e esfolem Que provoquem muitas lutas muitos pecados cometam por outro lados se metam longe desta aldeia agrave escuta dos que as nossas leis prometam

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me amedronta

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

157

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos noacutes

AIMBIREcirc

Esse

GUAIXARAacute

Fica descansado Natildeo sou assim tatildeo covarde seraacute logo afugentado Aqui estaacute quem o queimou e ainda vivo o cozeu

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

GUAIXARAacute

O que eu deixei transpassado Natildeo faccedilas broma comigo que sou bem desaforado Ambos fugiratildeo logo aqui me virem chegar

AIMBIREcirc

Olha que vais te enganar

GUAIXARAacute

158

Tem confianccedila te rogo que horror lhes vou inspirar Quem como eu nas terras existe que ateacute Deus desafiou

AIMBIREcirc

Por isso Deus te expulsou e do inferno o fogo triste para sempre te abrasou Eu lembro de outra batalha em que Guaixaraacute entrou Muito povo te apoiou e inda que lhes desses forccedilas na fuga se debandou Natildeo eram muitos cristatildeos Contudo nada ficou da forccedila que te inspirou pois veio Sebastiatildeo na forccedila fogo ateou

GUAIXARAacute

Por certo aqueles cristatildeos tatildeo rebeldes natildeo seriam Mas esses que aqui estatildeo desprezam a devoccedilatildeo e a Deus natildeo reverenciam Vais ver como em nossos laccedilos caem logo estes malvados De nossos dons confiados as almas cederam passo para andar do nosso lado

AIMBIREcirc

Assim mesmo tentarei Um dia obedeceratildeo

GUAIXARAacute

Ao sinal de minha matildeo os iacutendios te entregarei

159

E agrave forccedila sucumbiratildeo

AIMBIREcirc

Preparemos a emboscada Natildeo te afobes Nosso espia veraacute em cada morada que armas nos satildeo preparadas na luta que se inicia

GUAIXARAacute

Muito bem eacutes capaz disso Saravaia meu vigia

SARAVAIA

Sou democircnio da alegria e assumi tal compromisso Vou longe nesta porfia Saravaiaccedilu me chamo Com que tarefa me aprazas

GUAIXARAacute

Ouve as ordens de teu amo quero que espies as casas e voltes quando te chame Hoje vou deixar que leves os iacutendios aprisionados

SARAVAIA

Irei onde me carregues E agradeccedilo que me entregues encargo tatildeo desejado Como Saravaia sou aos iacutendios que me aliei enfim aprisionarei E neste barco me vou De cauim me embriagarei

160

GUAIXARAacute

Anda logo vai ligeiro

SARAVAIA

Como um raio correrei (Sai)

GUAIXARAacute (Passeia com Aimbirecirc e diz)

Demos um curto passeio Quando volte o mensageiro a aldeia destroccedilarei (Volta Saravaia e Aimberecirc diz)

AIMBIREcirc

Danado Voltou voando

GUAIXARAacute

Demorou menos que um raio Foste mesmo Saravaia

SARAVAIA

Fui Jaacute estatildeo comemorando os iacutendios nossa vitoacuteria Alegra-te Transbordava o cauim o prazer regurgitava E a beber as igaccedilabas esgotam ateacute o fim

GUAIXARAacute

E era forte

161

SARAVAIA

Forte estava E os rapazes beberrotildees que pervertem esta aldeia caiam de cara cheia Velhos velhas mocetotildees que o cauim desnorteia

GUAIXARAacute

Jaacute basta Vamos mansinho tomaacute-los todos de assalto Nosso fogo arda bem alto (Vem Satildeo Lourenccedilo com dois companheiros Diz Aimbirecirc)

AIMBIREcirc

Haacute um sujeito no caminho que me ameaccedila de assalto Seraacute Lourenccedilo o queimado

SARAVAIA

Ele mesmo e Sebastiatildeo

AIMBIREcirc

E o outro dos trecircs que satildeo

SARAVAIA

Talvez seja o anjo mandado desta aldeia o guardiatildeo

AIMBIREcirc

Ai Eles me esmagaratildeo Natildeo posso sequer olhaacute-los

162

GUAIXARAacute

Natildeo te entregues assim natildeo ao ataque meu irmatildeo Teremos que amedrontaacute-los As flechas evitaremos fingiremos de atingidos

AIMBIREcirc

Olha eles vecircm decididos a accediloitar-nos Que faremos Penso que estamos perdidos (Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou luminosos democircnio

163

SAtildeO LOURENCcedilO

Dizei-me o que quereis desta minha terra em que nos vemos

GUAIXARAacute

Amando os iacutendios queremos que obediecircncia nos prestem por tanto que lhes fazemos Pois se as coisas satildeo da gente ama-se sinceramente

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Quem foi que insensatamente um dia ou presentemente os iacutendios vos entregou Se o proacuteprio Deus tatildeo potente deste povo em santo ofiacutecio corpo e alma modelou

GUAIXARAacute

Deus Talvez remotamente pois eacute nada edificante a vida que resultou Satildeo pecadores perfeitos repelem o amor de Deus e orgulham-se dos defeitos

AIMBIREcirc Bebem cuim a seu jeito como completos sandeus ao cauim rendem seu preito Esse cauim eacute que tolhe sua graccedila espiritual Perdidos no bacanal seus espiacuteritos se encolhem em nosso laccedilo fatal

164

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo se esforccedilam por orar na luta do dia a dia Isto eacute fraqueza de certo

AIMBIREcirc

Sua boca respira perto do pouco que Deus confia

SARAVAIA

Eacute verdade intimamente resmungam desafiando ao Deus que os estaacute guiando Dizem Seraacute realmente capaz de me ver passando

SAtildeO SEBASTIAtildeO (Para Saravaia)

Seraacutes tu um pobre rato Ou eacutes um gambaacute nojento Ou eacutes a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os iacutendios no mato

SARAVAIA

No anseio de devorar as almas sequer dormi

GUAIXARAacute

Cala-te Fale eu por ti

SARAVAIA

Natildeo vaacutes me denominar pra que natildeo me mate aqui Esconda-me antes dele

165

Eu por ti vigiarei

GUAIXARAacute

Cala-te Te guardarei Que a liacutengua natildeo te revele depois te libertarei

SARAVAIA

Se natildeo me viu safarei Inda posso me esconder

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Cuidado que lanccedilarei o dardo em que o flecharei

GUAIXARAacute

Deixa-o Vem de adormecer

SAtildeO SEBASTIAtildeO

A noite ele natildeo dormiu para os iacutendios perturbar

SARAVAIA

Isso natildeo se haacute de negar (Accediloita-o Guaixaraacute e diz)

GUAIXARAacute

Cala-te Nem mais um pio que ele quer te devorar

SARAVAIA

166

Ai de mim Por que me bates assim pois estou bem escondido (Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas palavras amigas Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba

167

disso natildeo os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos aprisionando

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e ao viacutecios bem se convertem agrave forccedila do nosso mando

GUAIXARAacute

Eu que te ajude a explicar As velhas como serpentes injuriam-se entre dentes maldizendo sem cessar

168

As que mais calam consentem Pecam as inconsequumlentes com intrigas bem tecidas preparam negras bebidas pra serem belas e ardentes no amor na cama e na vida

AIMBIREcirc

E os rapazes cobiccedilosos perseguindo o mulherio para escravas do gentio Assim invadem fogosos dos brancos o casario

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

SAtildeO LOURENCcedilO Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma que o bem procura Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

169

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou eu abandonaacute-los E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los Tanto confiaram em mim construindo esta capela plantando o bem sobre ela Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs daqui lhes darei sumiccedilo Deles nem sombra vereis Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas tridentes e alegrar as nossas gentes

AIMBIREcirc

170

Aqui vou com minhas garras meus longos dedos meus dentes

ANJO

Natildeo julgueis tolos dementes por no fogo esta legiatildeo Aqui estou com Sebastiatildeo e Satildeo Lourenccedilo natildeo tentem levaacute-los agrave danaccedilatildeo Pobres de voacutes que irritastes

de tal forma o bom Jesus Juro que em nome da cruz ao fogo vos condenastes (Aos santos) Prendei-os donos da luz (Os santos prendem os dois diabos)

GUAIXARAacute

Basta

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo Teu cinismo me agasta Destes provas que sobejam de querer destruir a igreja SAtildeO SEBASTIAtildeO (A Aimberecirc)

Grita Lamenta Te arrasta Te prendi

AIMBIREcirc

Maldito Seja (Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido)

ANJO

E tu que estaacute escondido seraacute acaso um morcego Sapo cururu minguaacute ou filhote de gambaacute ou bruxa pedindo arrego Sai daiacute seu fedorendo

171

abelha de asa de vento zorrilho maritaca seu lesma tamarutaca

SARAVAIA

Ai vida que me aprisionam Natildeo vecircs que morro de sono

ANJO

Quem eacutes tu

SARAVAIA

Sou Saravaia Inimigo dos franceses

ANJO

Teus tiacutetulos satildeo soacute estes SARAVAIA

Sou tambeacutem mestre em tocaia porco entre todas as reses

ANJO

Por isso eacutes sujo e enlameias tudo com teu negro rabo Veremos como pateias no fogo que a gente ateia

SARAVAIA

Natildeo Por todos os diabos Eu te dou ovas de peixe farinha de mandioca desde que agora me deixas te dou dinheiro aos feixes

172

ANJO

Natildeo te entendo maccedilaroca As coisas que me prometes em troca de onde roubaste Que morada assaltaste antes que aqui te escondeste Muito coisa tu furtaste

SARAVAIA

Natildeo somente o que falei Da casa dos bons cristatildeos foi bem pouco o que apanhei Tenho o que trago nas matildeos por muito que trabalhei Aqueles outros tecircm mais Para comprar cauim aos iacutendios em boa paz dei o que tinha e demais pois pobre acabei assim

ANJO

Vamos Restitui-lhes tudo o que tiveres roubado

SARAVAIA

Natildeo faccedilas isto estou becircbedo mais do que o demo rabudo da sogra do meu cunhado Tem paciecircncia me perdoa meu irmatildeo estou doente Das minhas almas presente farei a ti praacute que em boa hora as cucas lhes rebentes Leva o nome destes monstros e famoso ficaraacutes

173

ANJO

E onde lhes foste ao encontro

SARAVAIA

Fui pelo sertatildeo a dentro lacei as almas rapaz

ANJO

De que famiacutelias descendem

SARAVAIA

Desse assunto pouco sei Filhos de iacutendios talvez Na corda os enfileirei presos todos de uma vez Passei noites sem dormir nos seus lares espreitei fiz suas casas explodir suas mulheres lacei pra que natildeo possam fugir (Amarra-o o anjo e diz)

ANJO

Quantas maldades fizeste Por isso o fogo te espera Viveraacutes do que tramaste nesta abrasada tapera em que pro fim te pilhaste

SARAVAIA

Aimberecirc

AIMBIREcirc

Oi

174

SARAVAIA

Vem logo dar-me a matildeo Este louco me prendeu

AIMBIREcirc

A mim tambeacutem me venceu o flechado Sebastiatildeo Meu orgulho arrefeceu

SARAVAIA

Ai de mim Guaixaraacute dormes assim sem pensar em me salvar

GUAIXARAacute Estaacutes louco Saravaia Natildeo vecircs que Lourenccedilo ensaia maneira de me queimar

ANJO

Bem junto pois sois comparsas ardereis eternamente Enquanto noacutes Deo Gratias sob a luz da minha guarda viveremos santamente (Faz uma praacutetica aos ouvintes) Alegrai-vos filhos meus na santa graccedila de Deus pois que dos ceacuteus eu desci para junto a voacutes estar e sempre vos amparar dos males que haacute por aqui Iluminado esta aldeia junto de voacutes estarei por nada me afastarei - pois a isto me nomeia Deus Nosso Senhor e Rei

Ele que a cada um de voacutes um anjo seu destinou Que natildeo vos deixe mais soacutes e ao mando de sua voz os democircnios expulsou Tambeacutem Satildeo Lourenccedilo o virtuoso Servo de Nosso Senhor vos livra com muito amor terras e almas extremoso do democircnio enganador Tambeacutem Satildeo Sebastiatildeo valente santo soldado que aos tamoios rebelados deu outrora uma liccedilatildeo hoje estaacute do vosso lado E mais - Paranapucu

175

Jacutinga Moroacutei Sarigueacuteia Guiriri Pindoba Pariguaccedilu Curuccedila Miapei E a tapera do pecado a de Jabebiracica natildeo existe E lado a lado a naccedilatildeo dos derrotados no fundo do rio fica Os franceses seus amigos inutilmente trouxeram armas Por noacutes combateram Lourenccedilo jamais vencido e Satildeo Sebastiatildeo flecheiro Estes santos em verdade das almas se compadecem aparando-as desvanecem (Oacute armas da caridade) Do viacutecio que as envilece Quando o democircnio ameaccedilar vossas almas voacutes vereis com que forccedila hatildeo de zelar Santos e iacutendios sereis pessoas de um mesmo lar Tentai velhos viacutecios extirpar e as maldades caacute da terra evitai bebida e guerra adulteacuterio repudiai tudo o que o instinto encerra Amai vosso Criador cuja lei pura e isenta

Satildeo Lourenccedilo representa Engrandecei ao Senhor que de bens vos acrescenta Este mesmo Satildeo Lourenccedilo que aqui foi queimado vivo pelos maus feito cativo e ao martiacuterio foi infenso sendo o feliz redivivo Fazei-vos amar por ele e amai-o quanto puderdes que em sua lei nada se perde E confiando mais nele mais o ceacuteu se vos concede Vinde agrave direita celestial de Deus Pai ireis gozar junto aos que bem vatildeo guardar no coraccedilatildeo que eacute leal e aos peacutes de Deus repousar

(Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede)

Cantemos todos cantemos Que foi derrotado o mal Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima repeticcedilatildeo da cantiga choram)

CANTIGA

Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado (Voltam os santos)

Alegrai-vos vivei bem vitoriosos do viacutecio aceitai o sacrifiacutecio que ao amor de Deus conveacutem Daiacute fuga ao Demo-ningueacutem Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado

176

TERCEIRO ATO Depois de Satildeo Lourenccedilo morto na grelha o Anjo fica em sua guarda e chama os dois diabos Aimbirecirc e Saravaia que venham sufocar os imperadores Deacutecio e Valeriano que estatildeo sentados em seus tronos

ANJO

Aimbirecirc Estou chamando vocecirc Apressa-te Corre Jaacute

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para dar-te como presa De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

AIMBIREcirc

Boa Me fazes contente Agrave forccedila os castigarei e no fogo os queimarei como diabo eficiente Meu oacutedio satisfarei

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los Que para o sol sejam cegos Ide ao fogo cozinhaacute-los Castiga com teus vassalos

177

estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto Sejam tais ordens cumpridas Reunirei meus democircnios Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que temos planos medonhos

SARAVAIA

Jaacute de nego me pintei oacute meu avocirc jaguaruna e o cauim preparei veraacutes como beberei nesta festa da fortuna Que vejo Um temiminoacute Ou filho de guaianaacute Seraacute esse um guaitacaacute que agrave mesa do jacareacute sozinho vou devorar

(Vecirc o Anjo e espanta-se)

E este paacutessaro azulatildeo quem seraacute que assim me encara Algum parente de arara

AIMBIREcirc

Eacute o anjo que em nossa matildeo potildee duas presas bem raras

SARAVAIA

Meus capangas atenccedilatildeo Tataurana Tamanduaacute vamos com calma por laacute que esses monstros quereratildeo

178

por certo me afogar

AIMBIREcirc

Vamos

SARAVAIA

Ai os mosquitos me mordem Espera ou me comeratildeo Tenho medo quem me acode Sou pequenino e eles podem tragar-me de supetatildeo

AIMBIREcirc

Os iacutendios que natildeo se fiam nesta conversa e se escondem se os mandam executar

SARAVAIA

Tecircm razatildeo se desconfiam vivem sempre a se lograr

AIMBIREcirc

Cala a boca beberratildeo soacute por isso eacutes tatildeo valente moleiratildeo impertinente

SARAVAIA

Ai de mim me prenderatildeo mas vou por te ver contente E a quem vamos devorar

AIMBIREcirc

179

A algozes de Satildeo Lourenccedilo

SARAVAIA

Aqueles cheios de ranccedilo Com isto eu vou mudar meu nome de que me canso Muito bem Suas entranhas sejam hoje o meu quinhatildeo

AIMBIREcirc

Vou morder seu coraccedilatildeo

SARAVAIA

E os que natildeo nos acompanham sua parte comeratildeo (Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Suacutes Caborecirc vecirc se te inflama pra comer estes perus (Acodem todos os quatro com suas armas)

TATAURANA

Aqui estou com a muccedilurana e os braccedilos lhe comerei A Jaguaraccedilu darei o lombo a Urubu o cracircnio e as pernas a Caborecirc URUBU Aqui cheguei As tripas recolherei e com os bofes terei a panela a derramar E esta panela verei

180

minha sogra cozinhar

JAGUARUCcedilU

Com esta ingapema dura as cabeccedilas quebrarei e os miolos comerei Sou guaraacute onccedila criatura e antropoacutefago serei

CABOREcirc

E eu que em demandas andei aos franceses derrotando para um bom nome ir logrando agora contigo irei estes chefes devorando

SARAVAIA

Agora quietos De rastros natildeo nos viram Vou agrave frente Que natildeo escapem da gente Vigiarei No tempo exato ataquemos de repente

(Vatildeo todos agachados em direccedilatildeo a Deacutecio e Valeriano que conversam)

DEacuteCIO

Amigo Valeriano minha vontade venceu Natildeo houve arte no ceacuteu que livrasse do meu plano o servo do Galileu Nem Pompeu e nem Catatildeo nem Cesar nem o Africano nenhum grego nem troiano puderam dar conclusatildeo a um feito tatildeo soberano

181

VALERIANO

O remate gratildeo-Senhor desta tatildeo grande faccedilanha foi mais que vencer Espanha Jamais rei ou imperador logrou coisa tatildeo estranha Mas Senhor esse quem eacute que vejo ali tatildeo armado com espadas e cordel e com gente de tropel vindo tatildeo acompanhado

DEacuteCIO

Eacute o grande deus nosso amigo Juacutepiter sumo senhor que provou grande sabor com o tremendo castigo da morte deste traidor E quer para reforccedilar as penas deste rufiatildeo nosso impeacuterio acrescentar com sua potente matildeo pela terra e pelo mar

VALERIANO

Mais me parece eacute que vem a seus tormentos vingar e a noacutes ambos enforcar Oh que cara feia tem Comeccedilo a me apavorar

DEacuteCIO

Enforcar Quem a mim pode matar ou mover meus fundamentos Nem a exaltaccedilatildeo dos ventos Nem a braveza do mar nem todos os elementos

182

Natildeo temas que meu poder o que os deuses imortais me quiseram conceder natildeo se poderaacute vencer pois natildeo haacute forccedilas iguais De meu cetro imperial pendem reis tremem tiranos Venccedilo a todos os humanos e posso ser quase igual a esses deuses soberanos

VALERIANO

Oh que terriacutevel figura Natildeo posso mais aguardar que jaacute me sinto queimar Vamos que eacute grande loucura tal encontro aqui esperar Ai ai que grandes calores Natildeo tenho nenhum sossego Ai que poderosas dores Ai que feacutervidos ardores que me abrasam como fogo

DEacuteCIO

Oh paixatildeo Ai de mim que eacute o Plutatildeo chegando pelo Aqueronte ardendo como ticcedilatildeo a levar-nos de roldatildeo ao fogo do Flegetonte Oh coitado que me queimo Esse queimado me queima com grande dor

Oh infeliz imperador Todo me vejo cercado de penas e de pavor pois armado o diabo com seu dardo mais as fuacuterias infernais vecircm castigar-nos demais Jaacute nem sei o que hei falado com anguacutestias tatildeo mortais

VALERIANO

O Deacutecio cruel tirano Jaacute pagas e pagaraacute Contigo Valeriano porque Lourenccedilo cristatildeo assado nos assaraacute

183

AIMBIREcirc

Ocirc Castelhano Bom Castelhano parece Estou bem alegre mano que Espanhol seja o profano que no meu fogo padece Vou fingir-me castelhano e usar de diplomacia com Deacutecio e Valeriano porque o espanhol ufano sempre guarda a cortesia Oh mais alta majestade Beijo-vos a matildeo mil vezes por vossa gratilde-crueldade

pois justiccedila nem verdade guardastes sendo juizes Sou mandado por Satildeo Lourenccedilo queimado levaacute-los agrave minha casa onde seja confirmado vosso imperial estado em fogo que sempre abrasa Oh que tronos e que camas eu vos tenho preparadas nessas escuras moradas de vivas e eternas chamas de nunca ser apagadas

VALERIANO

Ai de mim

AIMBIREcirc

Vieste do Paraguai Que falais em Carijoacute Sei todas liacutenguas de cor Avanccedila aqui Saravaia Usa tu golpe maior

VALERIANO

Basta Que assim me assassinas natildeo tenho pecado nada Meu chefe eacute a presa acertada

SARAVAIA

Natildeo eacutes tu que me fascinas oacute presa bem cobiccedilada

184

DEacuteCIO

Oacute miseraacutevel de mim que nem basta ser tirano nem falar em castelhano Que eacute do mando em que me vi e o meu poder soberano

AIMBIREcirc

Jesus Deus grande e potente que tu traidor perseguiste te daraacute sorte mais triste entregando-te em meu dente a que malvado serviste Pois me honraste e sempre me contentaste ofendendo ao Deus eterno

Eacute justo pois que no inferno palaacutecio que tanto amaste natildeo sintas o mal do inverno Porque o oacutedio inveterado do teu duro coraccedilatildeo natildeo pode ser abrandado se natildeo for jaacute martelado com a aacutegua do Flegeton

DEacuteCIO

Olha que consolaccedilatildeo para quem se estaacute queimando Sumos deuses para quando adiais minha salvaccedilatildeo que vivo estou me abrasando Ai ai Que mortal desmaio Esculaacutepio natildeo me acodes Oh Juacutepiter porque dormes Que eacute do vosso raio Por que eacute que natildeo me socorres

AIMBIREcirc

Que dizeis De que mal voacutes padeceis Que pulso mais alterado Eacute grande dor de costado este mal que morreis Haveis de ser bem sangrado Haacute dias que esta sangria se guardava para voacutes

que sangraacuteveis noite e dia com dedicada porfia aos santos servos de Deus Muito desejo eu beber vosso sangue imperial Oh natildeo me leveis a mal que com isso quero ser homem de sangue real

DEacuteCIO

Que dizeis Que disparate e elegante desvario Joguem-me dentro de um rio antes que o fogo me mate oacute deuses em que confio Natildeo quereis socorrer-me ou natildeo podeis Oacute malditos fementidos

ingratos desconhecidos que pouco vos condoeis de quem fostes tatildeo servidos Se agora voar pudesse vos iria derrocar dos vossos tronos celestes feliz se a mim me coubesse no fogo vos projetar

AIMBIREcirc

Parece-me que eacute chegada a hora do frenesi e com chama redobrada a qual seraacute descuidada dos deuses a quem servis Satildeo armas dos audazes cavaleiros que usam palavroacuterio humano E por isso tatildeo ufano hoje vindes acolhecirc-los no romance castelhano

SARAVAIA

Assim eacute Pensava dar de reveacutes golpes de afiados accedilos mas enfim nossos balaccedilos se chocaram atraveacutes com bem poucos canhonaccedilos Mas que boas bofetadas lhes reservo para dar Os tristes sem descansar agrave forccedila de tais pauladas com catildees hatildeo de ladrar

186

VALERIANO

Que ferida Tira-me logo esta vida pois minha alta condiccedilatildeo contra justiccedila e razatildeo veio a ser tatildeo abatida que morro como ladratildeo

SARAVAIA

Natildeo eacute outro o galardatildeo que concedo aos meus criados senatildeo morrer enforcados e depois sem remissatildeo ao fogo ser condenados

DEacuteCIO

Essa eacute a pena redobrada que me causa maior dor que eu universal senhor morra morte desonrada na forca como traidor Ainda se fosse lutando dando golpes e reveses pernas e braccedilos cortando como fiz com os franceses acabaria triunfando

AIMBIREcirc

Parece que estais lembrando poderoso imperador quando com bravo furor matastes traiccedilatildeo armando Felipe vosso senhor Por certo que me alegrais e se cumpre meus anseios ante desabafos tais porque o fogo em que queimais provoca tais devaneios

187

DEacuteCIO

Bem entendo que este fogo em que me acendo merece-me a tirania pois com tatildeo feroz porfia aos cristatildeos martirizando pelo fogo os consumia Mas que em minha monarquia acabe com tal pregatildeo pois morrer como ladratildeo eacute muito triste agonia e dobrada confusatildeo

AIMBIREcirc

Como Pedis confissatildeo Sem asas quereis voar Ide se quereis achar aos vossos atos perdatildeo agrave deusa Pala rogar Ou a Nero esse cruel carniceiro do fiel povo cristatildeo Aqui estaacute Valeriano vosso leal companheiro buscai-o por sua matildeo

DEacuteCIO

Esses amargos chistes e agressotildees me acrescentam em paixotildees e mais dores com tatildeo profundos ardores como de ardentes ticcedilotildees E com isto crescem mais os fogos em que padeccedilo Acaba que me ofereccedilo em tuas matildeos Satanaacutes ao tormento que mereccedilo

188

AIMBIREcirc

Oh quanto vos agradeccedilo por esta boa vontade Eu com liberalidade quero dar-lhe bom refresco para vossa enfermidade Na cova onde o fogo se renova com ardores perenais os vossos males fatais aiacute teratildeo grande prova das agruras imortais

DEacuteCIO

Que fazer Valeriano bom amigo Testemunharaacutes comigo desta pena envolvido na cadeia de fogo deste castigo

VALERIANO

Em maacute hora Jaacute satildeo horas Vamos logo deste fogo ao outro fogo eternal laacute onde a chama imortal nunca nos daraacute sossego Suacutes asinha Vamos agrave nossa cozinha Saravaia

AIMBIREcirc

Aqui deles natildeo me afasto Nas brasas seratildeo bom pasto maldito quem nelas caia

DEacuteCIO

Aqui abrasado estou

189

Assa-me Lourenccedilo assado De soberano que sou vejo que Deus me marcou por ver seu santo vingado

AIMBIREcirc

Com efeito quiseste abrasar a jeito o virtuosos Satildeo Lourenccedilo Hoje te castigo e venccedilo e sobre as brasas te deito para morrer segundo penso (Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins e cada dois levam o seu)

Vinde aqui e aos malditos conduzi para em bom queimarem seus corpos sujos tostarem na festa em que os seduzi para cozidos bailarem

(Ficam ambos os democircnios no terreiros com as coroas dos imperadores na cabeccedila)

SARAVAIA

Sou o grande vencedor o que as maacutes cabeccedilas quebra sou um chefe de valor e hoje me decido por me chamar Cururupeba Como eles mato os que estatildeo em pecado e os arrasto em minhas chamas Velhos moccedilos jovens damas tenho sempre devorado De bom algoz tenho fama

QUARTO ATO Tendo o corpo de Satildeo Lourenccedilo amortalhado e posto na tumba entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus a encerrar a obra e no fim acompanham o santo agrave sepultura

190

ANJO

Vendo nosso Deus benigno vossa grande devoccedilatildeo que tendes e com razatildeo a Lourenccedilo o maacutertir digno de toda a veneraccedilatildeo determinam por seus rogos e martiacuterio singular a todos sempre ajudar para que escapeis dos fogos em que os maus se hatildeo de queimar Dois fogos trazia nalma com que as brasas resfriou a no fogo em que se assou com tatildeo gloriosa palma dos tiranos triunfou Um fogo foi o temor do bravo fogo infernal e como servo leal por honrar a seu Senhor fugiu da culpa mortal

Outro foi o Amor fervente de Jesus que tanto amava que muito mais se abrasava com esse fervor ardente que coo fogo em que se assava Estes o fizeram forte Com estes purificado como ouro refinado padeceu tatildeo crua morte por Jesus seu doce amado Estes vos manda o Senhor a ganhar vossa frieza para que vossa alma acesa de seu fogo gastador fique cheio de pureza Deixai-vos deles queimar como o maacutertir Satildeo Lourenccedilo e sereis um vivo incenso que sempre haveis de cheirar na corte de Deus imenso

TEMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Pecador sorves com grande sabor o pecado e natildeo ficas afogado com teus males E tuas chagas mortais natildeo sentes desventurado O inferno como seu fogo sempiterno Jaacute te espera se natildeo segues a bandeira

da cruz sobre a qual morreu Jesus para que tua morte morra Deus te envia esta mensagem com amor a mim que sou seu Temor me conveacutem declarar o que conteacutem para que temas ao Senhor

(Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Espantado estou de ver pecador teu vatildeo sossego Com tais males a fazer como vives sem temer aquele espantoso fogo Fogo que nunca descansa mas sempre provoca a dor e com seu bravo furor

dissipa toda a esperanccedila ao maldito pecador Pecador como te entregas tatildeo sem freio ao viacutecio extremo Dos viacutecios de que estaacutes cheios engolindo tatildeo agraves cegas a culpa com seu veneno

Veneno de maldiccedilatildeo tragas sem nenhum temor e sem sentir sua dor deleites da carnaccedilatildeo sorves com grande sabor Seraacute o sabor do pecado muito mais doce que o mel mas o inferno cruel depois te daraacute um bocado bem mais amargo que o fel Fel beberaacutes sem medida pecador desatinado tua alma em chamas ardida Esta seraacute a saiacuteda do deleite do pecado Do pecado que tu amas Lourenccedilo tanto escapou que mil penas suportou e queimado pelas chamas por natildeo pecar expirou Ele a morte natildeo temeu Tu natildeo temes o pecado no qual te tem enforcado Lucifer que te afogou

e natildeo ficas afogado Afogado pela matildeo do Diabo pereceu Deacutecio com Valeriano infiel cruel tirano no fogo que mereceu Tua feacute merece a vida mas com pecados mortais quase a tiveste perdida e teu Deus bem sem medida ofendeste com teus males Com teus males e pecados tua alma de Deus alheia da danaccedilatildeo na cadeia haacute de pagar com os danados a culpa que a incendeia Pena sem fim te daratildeo dentre os fogos infernais teus deleites sensuais Teus tormentos dobraratildeo e tuas chagas mortais Que mortais satildeo tuas feridas pecador Porque natildeo choras

Natildeo vecircs que nestas demoras estatildeo todas corrompidas a cada dia pioras Pioras e te confinas mas teu perigoso estado na pressa e grande cuidado com que ao fogo te destinas natildeo sentes desventurado Oh descuido intoleraacutevel de tua vida Tua alma estaacute confundida

no lodo e tu vais rindo de tudo natildeo sentes tua caiacuteda Oh traidor Que negas teu Criador Deus eterno que se fez menino terno por salvar-te E tu queres condenar-te e natildeo temes ao inferno

Ah insensiacutevel Natildeo calculas o terriacutevel espanto que causaraacute o juiz quando viraacute com carranca muito horriacutevel e agrave morte te entregaraacute

E tua alma seraacute sepultada em pleno inferno onde morte natildeo teraacute mas viva se queimaraacute com seu fogo sempre eterno

Oh perdido Ali seraacutes consumido sem nunca te consumir Teraacutes vida sem viver com choro e grande gemido teraacutes morte sem morrer Pranto seraacute teu sorrir sede sem fim te abeberra fome que em comer se gera teu sono nunca dormir tudo isto jaacute te espera Oh morfio Pois tu veras de continuo ao horrendo Lucifer sem nunca chegar a ver aquele molde divino de quem tiras todo o ser Acaba jaacute de temer a Deus que sempre te espera correndo por sua esteira pois natildeo lhes vai pertencer se natildeo lhe segues a bandeira Homem louco Se teu coraccedilatildeo jaacute toco mudar-se-atildeo alegrias em tristezas e agonias Olha que te falta pouco

para fenecer teus dias Natildeo peques mais contra Aquele que te ganhou vida e luz com seu martiacuterio cruel bebendo vinagre e fel no extremo lenho a cruz Oh malvado Ele foi crucificado sendo Deus por te salvar Pois que podes esperar se foste tu o culpado e natildeo cessas de pecar Tu o ofendes ele te ama Cegou-se por dar-te a luz Tu eacutes mau pisas a cruz sobre a qual morreu Jesus Homem cego porque natildeo comeccedilas logo a chorar por teu pecado E tomar por advogado a Lourenccedilo que no fogo por Jesus morreu queimado Teme a Deus juiz tremendo que em maacute hora te socorra em Jesus tatildeo soacute vivendo pois deu sua vida morrendo para que tua morte morra

AMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Ama a Deus que te criou homem de Deus muito amado Ama com todo cuidado a quem primeiro te amou Seu proacuteprio Filho entregou agrave morte por te salvar Que mais te podia dar

se tudo o que tem te dou Por mandado do Senhor te disse o que tens ouvido Abre todo teu sentido porque eu que sou seu Amor seja em ti bem imprimido (Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Todas as coisas criadas conhecem seu Criador Todas lhe guardam amor

pois nele satildeo conservadas cada qual em seu vigor Pois com tanta perfeiccedilatildeo

193

sua ciecircncia te formou homem capaz de razatildeo de todo o teu coraccedilatildeo ama a Deus que te criou Se amas a criatura por se parecer formosa ama a visatildeo graciosa desta mesma formosura por sobre todas as coisas Dessa divina lindeza deves ser enamorado Seja tua alma presa daquela suma beleza homem de Deus muito amado Aborrece todo o mal com despeito e com desdeacutem E pois que eacute racional abraccedila a Deus imortal todo sumo e uacutenico bem Este abismo de fartura

que nunca seraacute esgotado esta fonte viva e pura este rio de doccedilura ama com todo cuidado Antes que criasse nada jaacute a alma majestade te havia a vida gerado e tua alma abrasada com eterna caridade Por fazer-te todo seu com amor te cativou e pois que tudo te deu daacute tu todo o maior que eacute teu a quem primeiro te amou E deu-te alma imortal e digna de um Deus imenso para que fosses suspenso nele esse bem eternal que eacute sem fim e sem comeccedilo

Depois que em morte caiacuteste com vida te levantou Porque sair natildeo conseguiste da culpa em que te fundiste seu proacuteprio filho entregou Entregou-o por escravo deixou que fosse vendido para que tu redimido do poder do leatildeo bravo fosses sempre agradecido Para que natildeo morras morre com amor bem singular Pois quanto deves amar a Deus que entregar-se quer agrave morte por te salvar O Filho que o Padre deu a seu Pai te daacute por pai e sua graccedila te infundiu

e quando na cruz morreu deu-te por matildee sua Matildee Deu-te feacute com esperanccedila e a si mesmo por manjar para em si te transformar pela bem aventuranccedila Que mais te podia dar Em paga de tudo isto oh ditoso pecador pede apenas teu amor Despreza pois todo o resto por ganhar a tal Senhor Daacute tua vida pelos bens que Sua morte te ganhou Eacutes seu nada tens de teu Daacute-lhe tudo quanto tens pois tudo o que tem te deu

194

DESPEDIDA

Levantai os olhos ao ceacuteu meus irmatildeos Vereis a Lourenccedilo reinando com Deus por voacutes implorando junto ao rei dos ceacuteus que louvais seu nome aqui neste chatildeo Daqui por diante tende grande zelo que Deus seja sempre temido e amado e maacutertir tatildeo santo de todos honrado Terei seus favores e doce desvelo Pois que celebrai com tal devoccedilatildeo

seu claro martiacuterio tomai meu conselho sua vida e virtudes tende por espelho chamando-o sempre com grande afeiccedilatildeo Tereis por seus rogos o santo perdatildeo e sobre o inimigo perfeita vitoacuteria E depois da morte voacutes vereis na gloacuteria a cara divina com clara visatildeo

(LAUS DEO)

QUINTO ATO

Danccedila de doze meninos que se fez na procissatildeo de Satildeo Lourenccedilo

1ordm) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando Por teus rogos desejando Deus nos faccedila venturosos nosso coraccedilatildeo guardando

2ordm) Noacutes confiamos em ti Lourenccedilo santificado que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos viacutecios jaacute desligados nos pajeacutes natildeo crendo mais em suas danccedilas rituais nem seus maacutegicos cuidados

3ordm) Como tu que a confianccedila em Deus tatildeo bem resguardaste que o dom de Jesus nos baste pai da suprema esperanccedila

4ordm) Pleno do divino amor

195

foi teu coraccedilatildeo outrora Zela pois por noacutes agora Amemos nosso Criador pai nosso de cada hora

5ordm) Obedeceste ao Senhor cumprindo sua palavra Vem que nossa alma escrava de teu amor neste dia te imita em sabedoria

6ordm) Milagroso tu curaste teus filhos tatildeo santamente Suas almas estatildeo doentes deste mal que abominaste Vem curaacute-los novamente

7ordm) Fiel a Nosso Senhor a morte tu suportaste Que a forccedila disto nos baste para suportar a dor pelo mesmo Deus que amaste

8ordm) Pelo terriacutevel que eacutes Jaacute que os democircnios te temem nas ocas onde se escondem vem calcaacute-los sob os peacutes pra que as almas natildeo nos queimem

9ordm) Hereges que este indefeso corpo no teu assaram e a carne toda queimaram em grelhas de ferro aceso Choremos do alto desejo de Deus Padre contemplar Venha Ele neste ensejo nossas almas inflamar

10ordm) Os teus verdugos extremos treme algozes de Deus Vem leva-nos como teus que ao teu lado ficaremos assustando estes ateus

11ordm) Estes que te deram morte ardem no fogo infernal Tu na gloacuteria celestial

196

gozaraacutes divina sorte E contigo aprenderemos a amar a Deus no mais fundo do nosso ser e no mundo longa vida gozaremos

12ordm) Em tuas matildeos depositamos nosso destino tambeacutem Em teu amor confiamos

e uns aos outros nos amamos para todo o sempre Ameacutem

CAI O PANO

197

APEcircNDICE 2 - A MISSA E OS SIacuteMBOLOS CULTURAIS DE TRANSFORMACcedilAtildeO DO HOMEM

Partindo do princiacutepio de que a missa eacute um ritual miacutetico pertencente aos

preceitos da Igreja Catoacutelica desde os primoacuterdios do cristianismo e portanto

pertencente tambeacutem a Feacute natildeo poderia deixar de ser discutida neste trabalho pois

foi atraveacutes dela aleacutem dos sacramentos da Igreja que a religiatildeo em questatildeo se fixa

na mente miacutetica dos homens ateacute a data de hoje sob a forma de um ritual de

contato com a divindade

Justamente por ter sua origem em um mito talvez um dos maiores

mitos da atualidade eacute claro que nem a psicologia a sociologia a antropologia ou

a histoacuteria teria como dar conta de explicar esse grande misteacuterio da Igreja visto

que a feacute ultrapassa os domiacutenios dessas ciecircncias e possivelmente ateacute a filosofia e

da metafiacutesica mas podemos aqui estudar esses siacutembolos de transformaccedilatildeo do

ponto de vista fenomenoloacutegico e eacute o que faremos atraveacutes da visatildeo de Carl Gustav

Jung

Porque recebi do Senhor o que vos transmiti O Senhor

Jesus na noite em que foi entregue tomou o patildeo e depois de dar

graccedilas partiu-o e disse Isto eacute o meu corpo que se daacute por voacutes fazei

isto em memoacuteria de mim E do mesmo modo depois de cear tomou

198

o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o Novo Testamento do meu sangue

todas as vezes que o beberdes fazei-o em memoacuteria de mim Pois

todas as vezes que comerdes este patildeo e beberdes este caacutelice

anunciarei a morte do Senhor ateacute que Ele venha 145

Foi nessa Ceia que Cristo teria pronunciado as palavras da missa Eu

sou a vida verdadeira Permanecei em mim como eu [permaneccedilo] em voacutes eu sou

a videira voacutes sois os sarmentos146

Como a intenccedilatildeo eacute a de me limitar ao siacutembolo da transformaccedilatildeo na

missa natildeo tenho aqui a proposiccedilatildeo de explicar os aspectos de sua composiccedilatildeo

estrutural mas conforme Jung a missa eacute uma celebraccedilatildeo eucariacutestica muito bem

elaborada e com a seguinte estrutura

145 Citaccedilotildees que se seguem sobre a Biacuteblia foram tiradas do Novo Testamento traduzido pelo PeDr Frei Mateus Hoepers e publicado pela Vozes ( apud JUNG1985p2) 146 lat sartmentumi sarmento ramo ou vara de videira

199

Temos que iniciar essa explicaccedilatildeo e a citaccedilatildeo dos siacutembolos da missa

como uma das ferramentas de manutenccedilatildeo da feacute do sacrifiacutecio e do envolvimento

com o Deus e a comunidade

Quanto ao sacrifiacutecio o mito cristatildeo nos revela duas formas distintas de

representaccedilatildeo o deipnon e a thysia Deipnon traz o significado de ceia

propriamente dito definindo a ceia abenccediloada daqueles que passaram ou

participaram de algum sacrifiacutecio onde se entende que os deuses estejam

presentes Essa comida eacute abenccediloada pois o que passou por um sacrificium

tornou-se sagrado

Thysia por sua vez vem significar o entregar o oferecer o imolar e

tambeacutem o soprar com forccedila o que vem relacionar-se com o alimento usado nas

sociedades antigas e primitivas de enviar aos deuses a fumaccedila que sobe das

oferendas ateacute a morada dos deuses simbolizando o espiacuterito o pneuma como era

concebido nos primoacuterdios do cristianismo e mesmo na Idade Meacutedia

Graccedilas ao conceito de ceia para os cristatildeos a palavra corpo de

Cristo logo foi traduzida por carne

Principalmente para os sacerdotes esses conceitos inseridos nos

siacutembolos da missa levam um peso muito grande como nos mostra Hb 717 Tu

eacutes sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquizedeque Onde o

oferecimento do sacrifiacutecio perene e o sacerdoacutecio eterno constituem partes

integrantes e necessaacuterias do conceito de missa (JUNG1985 p3) As ideacuteias do

sacerdoacutecio eterno e do sacrifiacutecio estatildeo intimamente ligadas ao misteacuterio da missa e

com a transformaccedilatildeo das substacircncias da qual falaremos em seguida

200

O iniacutecio do rito da transformaccedilatildeo do indiviacuteduo cristatildeo quer a do

sacerdote quer a do ouvinte e assistente da missa inicia-se juntamente com o

ofertoacuterio momento em que se preparam as oferendas a Deus

O primeiro dos pontos eacute a oblaccedilatildeo do patildeo onde o sacerdote coloca a

hoacutestia na patena eleva-a em direccedilatildeo agrave cruz do altar faz o sinal da cruz e eleva a

hoacutestia o patildeo o corpo a carne de Cristo e a relaciona com seu sacrificium

atribuindo assim agrave hoacutestia a qualidade de coisa sagrada Ateacute entatildeo a hoacutestia era

apenas patildeo e considerada como corpus imperfectum

Isso tambeacutem ocorre com o vinho mesmo com sua natureza mais

espiritual tambeacutem eacute considerado corpus imperfectum ateacute que nessa mesma

preparaccedilatildeo ao vinho eacute misturada a aacutegua147

Satildeo Cipriano - bispo de Cartago

relaciona o vinho com Cristo e a

aacutegua com a comunidade que participa da missa parte de suma importacircncia de

todo o rito pois sem a comunidade para receber o rito ele natildeo pode existir148

Nesta parte especial da missa como o iniacutecio desse ritual do mito

cristatildeo os corpus imperctum estatildeo sendo transformados no corpus

glorificationis no corpo ressuscitado

147 Originariamente a mistura de aacutegua com vinho estava ligada ao antigo costume cultural de beber apenas vinho misturado com aacutegua Por isso um bebedor isto eacute um alcooacutelatra era chamado de acratopotes beberratildeo de vinho natildeo misturado (Jung 1985 p7-312) 148 Em Ap1715 se lecirc Aquae quas vidisti ubi meretrix sedet populi sunt et gentes et linguae acuteAs aacuteguas que vecircs sobre as quais a prostituta estaacute sentada satildeo os povos e as multidotildees as naccedilotildees e as liacutenguas Na alquimia meretrix prostituta eacute o nome da prima mateacuteria do corpus imperfectum Elevada a aacutegua a condiccedilatildeo de sagrada misturada ao vinho vem significar que somente uma comunidade perfeita pode se juntar a Cristo (idem)

201

O ponto seguinte do rito da missa o sacerdote mostrando agrave

comunidade eleva o caacutelice com a mistura jaacute preparada e invoca o Espiacuterito Santo

Veni espiritus sanctificator que eacute quem produz e transforma esse vinho em

sangue de Cristo perante toda uma plateacuteia que crecirc nessa transformaccedilatildeo

recebendo culturalmente mais informaccedilotildees sobre o mito que se refere a sua feacute

religiosa

A parte seguinte eacute a da incensaccedilatildeo das oferendas e do altar onde com

a fumaccedila do turiacutebulo oferece um sacrifico que eacute um resquiacutecio da thysia de que

falamos anteriormente no intuito de espiritualizar todos os objetos fiacutesicos do altar

e por estar enchendo o ar com perfume do pneuma espantar as eventuais

forccedilas demoniacuteacas que pudessem estar presentes elevando as oraccedilotildees a

Deus149

Em seguida vem a invocaccedilatildeo ou a epiclese onde atraceacutes do

Suspiece sancta Trinitas (Recebei oacute Trindade santa) satildeo iniciadas as oraccedilotildees

propiciatoacuterias em que se garante que as oferendas seratildeo aceitas por Deus A

certeza da aceitaccedilatildeo se prende a se crer que uma coisa chamada atraveacutes de seu

nome tem o poder de tornar presente o que se convoca Assim por meio do

Adesto adesto Jesu boneacute Pontifex in medio nostri sicut fuisti in medio

discopulorum tuorum (Vinde vinde oacute Jesus o Pontiacutefice misericordioso ficai

conosco como estiveste como os vossos disciacutepulos) atraveacutes do chamamento se

149 Eacute dito nesse instante da missa as palavras Dirigatur Domine oratio mea sicut incensum in conspectu tuo (Eleva-se Senhor a minha oraccedilatildeo como o incenso agrave Vossa presenccedila) e Accedat in nobis Dominus ignem sui amoris

(acenda ograve Senhor em noacutes o fogo de seu amor) (idem Jung-1985-p11-320)

202

obteacutem a certeza da presenccedila e da manifestaccedilatildeo do Senhor no momento que eacute

considerado a ponto alto da celebraccedilatildeo da missa

Desse ponto em diante segue a consagraccedilatildeo do patildeo e do caacutelice

momento em que se daacute a transubstanciaccedilatildeo ou a transformaccedilatildeo das substacircncias

do patildeo e do vinho em corpo e sangue do Senhor

Estamos aqui apenas relatando de forma didaacutetica os passos da

celebraccedilatildeo da missa portanto natildeo temos interesse de discutir esses passos

quanto a seu conteuacutedo e sim mais adiante analisarmos psicologicamente esses

siacutembolos No entanto apenas como curiosidade jaacute que vaacuterios termos foram

colocados em latim e posteriormente os traduzimos nos informa Jung (1985-p12)

as palavras ditas pelo sacerdote no momento da consagraccedilatildeo do patildeo e do vinho

natildeo devem ser traduzidas em liacutengua profana devendo ser ditas apenas e tatildeo

somente em latim por serem palavras consideradas sagradas mesmo que alguns

missais possam conter essa traduccedilatildeo dessa forma as citaremos no rodapeacute desta

paacutegina com o texto em latim obtida na fonte acima descrita150

Nesse ponto do ritual encontram-se devidamente consagrados e

purificados tanto o sacerdote como a comunidade as oferendas como o altar

totalmente preparados como uma unidade miacutestica para a epifania do Senhor isto

150 Consagraccedilatildeo do patildeo Qui pridie quam pateretur accepit panem in sanctas ac venerabiles manus suas et elevatis oculis in caelum ad Deum Patrem suum omnipotentem tibi gratias agens benedixit fregit deditque discipulis suis dicens Accipite et manducate ex hoc omnes Hoc est enim Corpus meum

Consagraccedilatildeo do caacutelice Simili modo postquam cenatum est accipiens et hunc praeclarum calicem in sancta ac venerabiles manus suas item tibi gratias agens benedixit deditque discipulis suis dicens Accipite et bibite ex eo omnes Hic est enim Calix Sanguinis mei novi et aeterni testamenti mysterium fidei qui pro vobis et pro multins effundetur in remissionem peccatorum Haec quosticumque faceritis in mei memoriam facietis

203

eacute o momento da manifestaccedilatildeo reveladora de Cristo de forma viva no Corpus

mysticum do sacrifiacutecio divino como se nesse momento se abrisse uma porta

onde do outro lado exista um espaccedilo liberto do tempo e do espaccedilo porta essa

aberta natildeo pelo sacerdote mas por Cristo como agens como agente dessa

transformaccedilatildeo

O sacerdote entatildeo levanta as substacircncias consagradas e as apresenta

agrave comunidade mostrando que o Homem-Deus tornou-se presente na hoacutestia

consagrada Pede entatildeo o sacerdote ao Senhor que receba a hoacutestia imaculada e

que abenccediloe a todos com sua graccedila Faz trecircs sinais da cruz com a hoacutestia sobre o

caacutelice pronunciando per ipsum et cum ipso et in ipso (Por Ele com Ele e Nele)

traccedilando outros trecircs sinais entre ele e o caacutelice para criar a relaccedilatildeo de identidade

entre a hoacutestia o caacutelice e o sacerdote para entatildeo poder incluir nas graccedilas a serem

recebidas a comunidade que aguarda ser livrada de todos os males passados

presentes e futuros Divide a hoacutestia em duas partes significando a morte de Cristo

glorificado do rex gloriae De uma das partes tira uma pequena partiacutecula que

seraacute colocada no vinho dentro do caacutelice durante a consignaacutetio e a commixtio

momento da mistura do patildeo com o vinho do corpo com o sangue onde satildeo ditas

as seguintes palavras Haec commixtrio et consecratio Corporis et Sanguinis

Domini nostri

Dessa forma sacerdote o corpo e o sangue do Senhor unidos agrave

comunidade fazem a unidade miacutetica da missa assim como o patildeo resulta de

muitos gratildeos o vinho de muitos bagos de uva assim tambeacutem o Corpus

204

mysticum a Igreja eacute constituiacutedo pela multidatildeo daqueles que crecircem151 e possuem

em si como visatildeo de mundo o mito cristatildeo

Eacute importante ressaltar aqui que natildeo procuro fazer nenhuma

interpretaccedilatildeo das partes que compotildeem a missa e sim com referecircncia ao mito

cristatildeo analisar psicologicamente esses siacutembolos que contribuem como

transmissatildeo cultural e como forma de propagaccedilatildeo universal do cristianismo

Vejamos o ato de pensar ou de crer expressam uma realidade

psicoloacutegica do indiviacuteduo que crecirc e nesse caso do mito e da crenccedila dos sacrifiacutecios

da missa essa realidade estaacute baseada nos enunciados do rito e da feacute explicados

metafisicamente o que pode ser indicado que exceto pela maneira psiacutequica de

manifestar-se a crenccedila escapa ao entendimento do intelecto e por esse motivo

natildeo pode ser posto em julgamento mas eacute certo que o pressuposto da feacute em si

conteacutem a realidade de um fato psiacutequico152

Cada passo da missa possui uma composiccedilatildeo de dois aspectos claros

um divino com a accedilatildeo do proacuteprio Deus e outro humano num significado

meramente instrumental

O lado humano oferece dons a Deus sobre o altar com a doaccedilatildeo

completa do sacerdote e da comunidade cristatilde celebrando a uacuteltima ceia de Jesus

com seus disciacutepulos mas celebra tambeacutem uma accedilatildeo sagrada onde Cristo se

encarna torna-se homem sub-espeacutecie das substacircncias oferecidas sofre e eacute

151 Jung-1985-p20-338 152 Jung-1985-p46-377

205

morto jaz no sepulcro e por fim quebra o poder do inferno ressuscitando

glorioso153 Embora esse acontecimento seja divino surge o cristatildeo perante o

ritual tal qual como na participaccedilatildeo divina agindo como agens

e patiens na

sua limitada capacidade

Mas no sentido divino onde o momento eacute entendido como uma accedilatildeo

direta de Deus esse mesmo homem se coloca apenas e tatildeo somente como um

instrumento agrave disposiccedilatildeo de um agente eterno que transcende a consciecircncia

humana

Assim como o homem eacute um simples instrumento

(voluntaacuterio) no acontecimento da missa tambeacutem eacute incapaz de

compreender o que quer que seja a respeito da matildeo que se utiliza

dele O martelo natildeo conteacutem em si proacuteprio aquilo que o faz bater Eacute um

ser situado fora dele autocircnomo que dele se apodera e o potildee em

movimento 154

Essa relaccedilatildeo do homem com o divino da oferenda com o recebimento

da graccedila possui a mesma funccedilatildeo psicoloacutegica e portanto cultural da magia

propiciatoacuteria que se encontra em todos os sacrifiacutecios de tribos e sociedades ditas

primitivas onde o humano oferece para receber em troca a matildeo da divindade

colocada sobre seus ombros quer para proteccedilatildeo quer para resolver suas afliccedilotildees

desejos e impossibilidades

153 Jung-1985-p47-379 154 Jung-1985-p49-379

206

Essa magia realizada pelas tribos traacutes consigo o sangue e a carne

verdadeiros sejam de animais ou de pessoas o que apavora me faz com que os

olhos humanos de outra cultura rechacem o acontecimento

Acontece poreacutem que o mito cristatildeo se utiliza nessa magia

propiciatoacuteria de siacutembolos que representam o melhor produto cultural desde muito

tempo que simbolizam a vida e a pessoa humana a produccedilatildeo o trabalho e as

virtudes

O patildeo e o vinho natildeo soacute constituem o alimento comum de grande parte

da humanidade como tambeacutem podem ser encontrados em toda a face da

Terra155

O patildeo e o vinho como importantes siacutembolos da civilizaccedilatildeo expressam o

esforccedilo humano em plantar e colher e ainda produzir com aquilo que foi colhido

Os gratildeos de trigo e os bagos de uva representam a condiccedilatildeo psicoloacutegica que faz

surgir as virtudes do homem e que o torna capaz de produzir cultura

Plantar e colher possui em si o trabalho durante o crescimento das

plantas por ele cultivadas crescimento esse que se desenvolve de acordo com

leis divinas por serem elas leis internas que atual dentro delas como um agens

ou uma forccedila que chegou mesmo a ser comparada ao proacuteprio alento ou espiacuterito

vital156 um espiacuterito que morre e ressuscita a cada estaccedilatildeo do ano tal qual a

manifestaccedilatildeo do manaacute mas que necessita da participaccedilatildeo do homem e de um

155 KRAMP Joseph 1924 Apud Jung-1985-p51-381 156 Jung-1985-p53-385

207

desempenho psicoloacutegico com relaccedilatildeo ao esforccedilo agrave aplicaccedilatildeo agrave paciecircncia e ao

devotamento

Tomar do patildeo e do vinho consagraacute-los e oferececirc-los a Deus queiramos

ou natildeo trata-se de um do ut des no entanto eacute uma forma de doaccedilatildeo em que o

humano se entrega de tal forma a essa oferenda que daacute o que foi entregue como

pedido como um sacrifiacutecio pois caso natildeo receba em troca a graccedila pedida

continua a acreditar que ao menos no reino dos ceacuteus receberaacute tal graccedila e por isso

se entrega o que faz com que o homem possa buscar com esse ritual sua

evoluccedilatildeo do eu conforme crecirc sua individuaccedilatildeo seu si mesmo O eu estaacute pra o

si mesmo assim como o patiens estaacute pra o agens porque as disposiccedilotildees que

emanam do si mesmo satildeo bastante amplas e por isso superiores ao euo si

mesmo eacute o existente a priori do qual proveacutem o euNatildeo sou eu que me crio mas

sou eu que aconteccedilo a mim mesmo 157

Essa conclusatildeo vem de encontro com o entendimento da psicologia sobre

o fenocircmeno religioso e sobre a feacute e Jung como bom exemplo dessa conclusatildeo

cita que o fundador da Companhia de Jesus Inaacutecio de Loyola colocou seu homo

creatus est como fundamentum de seus exerciacutecios espirituais

O Grande Si Mesmo para o cristatildeo eacute o proacuteprio Cristo o homem primordial

o Adam secundus o qual tentar entender fora do mito seria como

psicologizar158 de forma mal sucedida tentando destruir o misteacuterio do rito miacutetico

157 Jung-1985-p59-391 158 como uso pejorativo fazer especulaccedilotildees de cunho psicoloacutegico sem base cientiacutefica

208

APEcircNDICE 3 O MITO DE CRISTO

O drama da vida arquetiacutepica de Cristo descreve em

imagens simboacutelicas os eventos da vida consciente

assim como da

vida que transcende a consciecircncia

de um homem que foi

transformado pelo seu destino superior159

A obra de Jung eacute extremamente vasta com relaccedilatildeo ao estudo das

religiotildees tanta das religiotildees e seitas primitivas como do cristianismo do

protestantismo das religiotildees orientais poreacutem deu ecircnfase principalmente aos

estudos com relaccedilatildeo ao mito cristatildeo e suas caracteriacutesticas

Um dos pontos mais importantes de sua obra sobre o assunto eacute a visatildeo

que apresenta sobre a vida de Cristo o que nos chamou especial atenccedilatildeo para

escrevermos esta parte da pesquisa

Jung nos coloca que a vida de Cristo representa para nossa cultura o

processo de individuaccedilatildeo que pode significar para um indiviacuteduo a salvaccedilatildeo ou a

trageacutedia e quando esse indiviacuteduo eacute parte de uma igreja ou um credo religioso ele

159 Jung A psycological approach to the trynity Psychology and Religion in Edinger1988

209

eacute poupado dos perigos da vida em sua experiecircncia direta pois estaraacute protegido

pelo mito cristatildeo

Tal qual no mito do heroacutei das mil e uma noites ou outros contos do

oriente Cristo passa por uma saga bem definida como o nascimento do heroacutei a

missatildeo avisada a fuga e a negaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo o retorno a realizaccedilatildeo o triunfo

e o precircmio final

Como diz Campbell160 citando uma velha sabedoria romana Os fados

guiam aquele que assim o deseje aquele que natildeo o deseje eles arrastam

O mesmo ocorreu com Cristo foi arrastado por seus fados conforme

podemos ver pois O Filho preexistente e uacutenico de Deus esvazia-se de sua

divindade e se encarna como homem por intermeacutedio do Espiacuterito Santo que

impregna a Virgem Maria Ele nasce num ambiente humilde cercado de perigos

iniciais Quando alcanccedila a idade adulta submete-se ao batismo de Joatildeo Batista e

testemunha a descida do Espiacuterito Santo que indica sua vocaccedilatildeo Ele sobrevive agrave

tentaccedilatildeo do Democircnio e leva a bom termo seu ministeacuterio que proclama a

existecircncia de um Deus benevolente e amoroso Apoacutes passar pela agonia da

incerteza aceita o destino que lhe cabe e deixa-se prender julgar flagelar

escarnecer e crucificar Apoacutes passar trecircs dias no tuacutemulo de acordo com vaacuterias

testemunhas eacute ressuscitado Durante quarenta dias caminha e fala com seus

160 CAMPBELL 1990 pintroduccedilatildeo X

210

disciacutepulos e em seguida sob aos ceacuteus Dez dias depois no Pentecostes o

Espiacuterito Santo o Paraacuteclito prometido desce 161

Para explicar essa sequumlecircncia de fatos Jung nos apresenta o seguinte

graacutefico

A sequumlecircncia de situaccedilotildees passadas por Cristo e que constitui o mito

cristatildeo se repete em forma circular iniciando e encerrando com a mesma

161 EDINGER 1988 p16

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

211

situaccedilatildeo onde o Pentecostes eacute uma segunda Anunciaccedilatildeo pois na primeira nasce

Cristo e na segunda nasce a Igreja

Para o homem miacutetico engajado nesse ciacuterculo essa eacute a descriccedilatildeo do

processo por onde o ego do homem atinge sua consciecircncia pois descreve o que

correu com Deus feito homem e por consequumlecircncia descreve a transformaccedilatildeo de

Deus Assim por meio desse processo mais uma vez o Espiacuterito Santo desce a

terra natildeo para promover uma imitaccedilatildeo de Cristo Homem-Deus feita pelo homem

mas para promover a cristificaccedilatildeo de muitos 162

Vamos iniciar entatildeo pela Anunciaccedilatildeo

26 Ora no sexto mecircs (da gravidez de Isabel) foi o anjo

Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileacuteia chamada Nazareacute

27a uma virgem desposada com um varatildeo cujo nome era Joseacute da

casa de Davi e o nome da virgem era Maria

28 E entrando o anjo onde ela estava disse Salve

agraciada o Senhor eacute contigo

29 Ela poreacutem ao ouvir estas palavras turbou-se muito e

pocircs-se a pensar que saudaccedilatildeo seria essa

30 Disse-lhe entatildeo o anjo Natildeo temas Maria pois achaste

graccedila diante de Deus

31 Eis que conceberaacutes e daraacutes agrave luz um filho ao qual

poraacutes o nome de Jesus

32 Este seraacute grande e seraacute chamado filho do Altiacutessimo o

Senhor Deus lhe daraacute o trono de Davi seu pai

33 e reinaraacute eternamente sobre a casa de Jacoacute e o seu

reino natildeo teraacute fim

162 JUNG 1990 p113 par 758

212

34 Entatildeo Maria perguntou ao anjo Como se faraacute isso uma

vez que natildeo conheccedilo varatildeo

35 Respondeu-lhe o anjo Viraacute sobre ti o Espiacuterito Santo

e o poder do Altiacutessimo te cobriraacute com a sua sombra por isso o

que haacute de nascer seraacute chamado santo Filho de Deus

36 Eis que tambeacutem Isabel tua parenta concebeu um filho

em sua velhice e eacute este o sexto mecircs para aquela que era chamada

esteacuteril37 porque para Deus nada seraacute impossiacutevel

38 Disse entatildeo Maria Eis aqui a serva do Senhor cumpra-

se em mim segundo a tua palavra E o anjo ausentou-se dela

O primeiro ponto a que dei importacircncia estaacute em grifo no texto biacuteblico

onde a expressatildeo te cobriraacute com a sua sombra 163 se refere no Antigo

Testamento em vaacuterias passagens agraves manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de Iahweh o

que mostra aqui o lado sombrio do misteacuterio sagrado do momento em que Deus

atraveacutes do Espiacuterito Santo cobre com uma nuvem o momento em que a

fecundaccedilatildeo do Senhor ocorre isto eacute uma gravidez ilegiacutetima num tempo em que

cometer adulteacuterio era passiacutevel de ser punida com a morte no entanto a obediecircncia

a Deus transforma Maria em uma mulher cheia de graccedila pois carrega em seu

ventre o Homem-Deus

Muitas vezes a Anunciaccedilatildeo coberta pela sombra e a obediecircncia de

Maria foi contrastada agrave desobediecircncia de Eva que culminou com a expulsatildeo do

primeiro casal do paraiacuteso Paulo falando aos Corintos (1Cor 1522) estabelece

esse viacutenculo ao dizer E assim como em Adatildeo morrem todos assim tambeacutem

todos seratildeo vivificados em Cristo

163 te cobriraacute com a sua sombra (episkiaz ) onde skia traduz sombra escuridatildeo EDINGER 1988 p22

213

Essa comparaccedilatildeo surge tambeacutem em um texto apoacutecrifo Protoevangelho

de Tiago164 que ao ouvir falar da gravidez de Maria Joseacute exclama

Quem trouxe esse mal agrave minha casa e a conspurcou (a

virgem) Teraacute a histoacuteria (de Adatildeo) se repetido comigo

Onde se encontra a diferenccedila principal Eacute que enquanto Eva se

submete e obedece agrave serpente Maria se coloca como serva do Senhor e diz Eis

aqui a serva do Senhor cumpra-se em mim segundo a tua palavra o que em

termos da visatildeo miacutetica do significado psicoloacutegico retrata que Maria aceita por sua

alma o encontro como o numinosum165 e como consequumlecircncia o encontro do

arqueacutetipo do mito com a individuaccedilatildeo do homem

Outro ponto a ser considerado como importante siacutembolo formador do

mito cristatildeo eacute a virgindade de Maria que tal qual as Virgens Vestais eram guardiatildes

da chama sagrada Essa relaccedilatildeo com a virgindade parece ser importante como

energia de transmutaccedilatildeo do fogo sagrado pois como em muitas culturas as

virgens sempre possuem uma relaccedilatildeo com o numinoso o que significa ser um

forte siacutembolo arquetiacutepico formador do mito Edinger (1988 p28) diz O ego virgem

tem suficiente consciecircncia para relacionar-se com as energias transpessoais sem

identificar-se com elas

164 EDINGER1988p25 165 Numinosum- numinoso adjetivo - influenciado inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade

214

Seguindo adiante no ciacuterculo do mito de Cristo encontramos o segundo

ponto que se refere agrave natividade

1 Naqueles dias saiu um decreto da parte de Ceacutesar

Augusto para que todo o mundo fosse recenseado

2 Este primeiro recenseamento foi feito quando Quiriacutenio

era governador da Siacuteria

3 E todos iam alistar-se cada um agrave sua proacutepria cidade

4 Subiu tambeacutem Joseacute da Galileacuteia da cidade de Nazareacute agrave

cidade de Davi chamada Beleacutem porque era da casa e famiacutelia de

Davi5 a fim de alistar-se com Maria sua esposa que estava graacutevida

6 Enquanto estavam ali chegou o tempo em que ela havia

de dar agrave luz 7 e teve a seu filho primogecircnito envolveu-o em faixas e o

deitou em uma manjedoura porque natildeo havia lugar para eles na

estalagem

Este eacute o momento em que no mito do heroacutei se iniciam os perigos onde

enquanto se registrava nos Ceacuteus o nascimento de uma crianccedila divina se

recenseava na Terra e se registrava as pessoas nascidas pois naquele momento

histoacuterico e cultural era de suma importacircncia ter o nome escrito e registrado Cristo

disse mais adiante a seus disciacutepulos (Lc 1020) deveis alegrar-vos de que os

vossos nomes estejam escritos no ceacuteu

Em Hebreus (1223) agrave universal assembleacuteia eacute a igreja dos primogecircnitos

inscritos nos ceacuteus e Deus o juiz de todos e aos espiacuteritos dos justos

aperfeiccediloados

215

Mas tambeacutem eacute importante perceber que culturalmente os primogecircnitos

(pr totokos ou primogenitus)166 eram considerados especiais natildeo soacute para os

homens daquela eacutepoca mas tambeacutem para Iahveh vejamos Santifica-me todo

primogecircnito todo o que abrir o uacutetero de sua matildee entre os filhos de Israel assim

de homens como de animais porque meu eacute (Ex132)

Jesus foi o primogecircnito Primogecircnito entre muitos irmatildeos(Rm 829) que

erigiraacute uma igreja dos primogecircnitos inscritos nos ceacuteus (Hb1223)

Novamente a cultura como expressatildeo de uma eacutepoca de um povo gera

o poder criador do mito O heroacutei aqui denominado Jesus Cristo nasce como

primogecircnito e como Salvador Universal

Vamos entatildeo relembrar a saga de um heroacutei miacutetico nas palavras de

Jung167

Este eacute o motivo pelo qual o nascimento de Cristo foi

caracterizado pelas manifestaccedilotildees que acompanham o nascimento do

heroacutei quais sejam o anuacutencio preacutevio deste nascimento a geraccedilatildeo no

seio de uma virgem a coincidecircncia com a triacuteplice coniunctio magna

(juacutepiter marte e saturno) no signo de Pisces que introduziu

precisamente naquela eacutepoca o novo eon ligado ao nascimento de um

rei a perseguiccedilatildeo ao receacutem-nascido sua fuga e ocultaccedilatildeo a

modeacutestia de seu nascimento etc Pode-se ver tambeacutem o tema do

crescimento do heroacutei em sabedoria demonstrada pelo jovem de doze

anos no templo e quanto ao tema da ruptura com a matildee haacute tambeacutem

alguns exemplos

166 o mais velho o primeiro filho homem do homem 167 JUNG 1990

Resposta agrave Jocirc p49-par 644

216

A terceira situaccedilatildeo do nosso ciacuterculo do mito de cristo eacute a Fuga para o

Egito onde o nascimento do heroacutei ou da crianccedila divina como jaacute dito

anteriormente se faz acompanhar costumeiramente de ameaccedilas com relaccedilatildeo a

sua vida o que mais uma vez se confirma Vejamos

13 E havendo eles se retirado eis que um anjo do Senhor

apareceu a Joseacute em sonho dizendo Levanta-te toma o menino e sua

matildee foge para o Egito e ali fica ateacute que eu te fale porque Herodes

haacute de procurar o menino para o matar

14 Levantou-se pois tomou de noite o menino e sua matildee

e partiu para o Egito

15 e laacute ficou ateacute a morte de Herodes para que se

cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta Do Egito

chamei o meu Filho

16 Entatildeo Herodes vendo que fora iludido pelos magos

irou-se grandemente e mandou matar todos os meninos de dois anos

para baixo que havia em Beleacutem e em todos os seus arredores

segundo o tempo que com precisatildeo inquirira dos magos

17 Cumpriu-se entatildeo o que fora dito pelo profeta Jeremias

18 Em Ramaacute se ouviu uma voz lamentaccedilatildeo e grande

pranto Raquel chorando os seus filhos e natildeo querendo ser

consolada porque eles jaacute natildeo existem(Mt 213-18)

A autoridade maior o heroacutei o poder gerador do mito a crianccedila divina

cumpre as profecias pois em Oseacuteias (111) se diz Quando Israel era menino eu o

amei e do Egito chamei a meu filho e no antigo testamento a naccedilatildeo de Israel eacute o

217

filho de Iahweh mostrando assim que Cristo eacute a proacutepria substituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

Israel

Novamente a expressatildeo cultural gera o mito como forma de seguir

explicando o inexplicaacutevel

Na quarta situaccedilatildeo do ciacuterculo do mito identifica-se o Batismo onde

Jesus sai da Galileacuteia para se encontrar com Joatildeo e ser batizado por ele e que

depois de batizado os ceacuteus se abrem uma pomba desce dos ceacuteus e uma voz do

ceacuteu lhes diz Este eacute o meu filho amado em quem me comprazo (Mt 313-17)

Para a Igreja o sacramento do batismo vem significar a morte da antiga

vida da carne e o renascimento da vida eterna em Cristo

O Espiacuterito Santo que desce nas asas de uma pomba branca o fogo

sobre o rio Jordatildeo e a luz vida do ceacuteu e que se abre sobre Cristo e Joatildeo Batista a

purificaccedilatildeo atraveacutes da aacutegua e a voz sugerem que o proacuteprio Senhor se fez batizar

e o homem miacutetico sabe que com esse evento o que habitava de forma demoniacuteaca

no inconsciente foi transformado em terreno sagrado e na morada do numinoso

O homem miacutetico se encontra com seu destino com sua identidade e tambeacutem

pode se considerar como o Filho de Deus um eleito que teraacute seu nome inscrito

nos ceacuteus

Em seguida ocorre a entrada triunfal de Jesus em Jerusaleacutem

1 Quando se aproximaram de Jerusaleacutem e chegaram a

Betfageacute ao Monte das Oliveiras enviou Jesus dois disciacutepulos

dizendo-lhes

218

2 Ide agrave aldeia que estaacute defronte de voacutes e logo encontrareis

uma jumenta presa e um jumentinho com ela desprendei-a e trazei-

mos

3 E se algueacutem vos disser alguma coisa respondei O

Senhor precisa deles e logo os enviaraacute

4 Ora isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito

pelo profeta

5 Dizei agrave filha de Siatildeo Eis que aiacute te vem o teu Rei manso

e montado em um jumento em um jumentinho cria de animal de

carga

6 Indo pois os disciacutepulos e fazendo como Jesus lhes

ordenara

7 trouxeram a jumenta e o jumentinho e sobre eles

puseram os seus mantos e Jesus montou

8 E a maior parte da multidatildeo estendeu os seus mantos

pelo caminho e outros cortavam ramos de aacutervores e os espalhavam

pelo caminho

9 E as multidotildees tanto as que o precediam como as que o

seguiam clamavam dizendo Hosana ao Filho de Davi bendito o que

vem em nome do Senhor Hosana nas alturas

10 Ao entrar ele em Jerusaleacutem agitou-se a cidade toda e

perguntava Quem eacute este

11 E as multidotildees respondiam Este eacute o profeta Jesus de

Nazareacute da Galileacuteia (Mt 21 1-9)

Eacute permitido por Cristo que o aclamem rei Parece que nesse momento

a negaccedilatildeo de seu destino surge justamente quando deixa a humildade e

sucumbe agrave tentaccedilatildeo do poder rapidamente se enche de fuacuteria e expulsa os

vendilhotildees do templo de Deus e amaldiccediloa uma figueira que natildeo lhe fornecia

frutos Como nos propotildee Edinger168 parece neste momento que Cristo pela forma

168 EDINGER1988 p60

219

que entra em Jerusaleacutem identifica a si mesmo como o rei messiacircnico profetizado

em Zc 99

9 Alegra-te muito oacute filha de Siatildeo exulta oacute filha de

Jerusaleacutem eis que vem a ti o teu rei ele eacute justo e traz a salvaccedilatildeo ele eacute

humilde e vem montado sobre um jumento sobre um jumentinho filho de

jumenta

O mito do heroacutei novamente se assemelha ao mito de Cristo pois natildeo haacute

como o heroacutei aceitar seu destino e desenvolver-se sem que antes seu ego

sucumba ao erro necessaacuterio (Felix culpa) pois de acordo com Jung169 o

egocentrismo eacute um atributo necessaacuterio da consciecircncia bem como seu pecado

especiacutefico

Mas continuando em nosso caminho da individuaccedilatildeo de Cristo

encontramos a Uacuteltima Ceia parte que por achar de grande importacircncia para a

construccedilatildeo do mito cristatildeo dedico mais adiante um espaccedilo significativo onde

coloco ao lado da formaccedilatildeo do mito os siacutembolos culturais da missa na

transformaccedilatildeo do homem cristatildeo Eacute a Uacuteltima Ceia a Santa Ceia a primeira missa

realizada no mito cristatildeo o rito central da Igreja Catoacutelica

26 Enquanto comiam Jesus tomou o patildeo e abenccediloando-

o o partiu e o deu aos disciacutepulos dizendo Tomai comei isto eacute o meu

corpo

169 apud EDIGER 1988p61 e JUNG Mysterium Coniunctionis par 364

220

27 E tomando um caacutelice rendeu graccedilas e deu-lho

dizendo Bebei dele todos

28 pois isto eacute o meu sangue o sangue do pacto o qual eacute

derramado por muitos para remissatildeo dos pecados (Mt 26 26-28)

55 Porque a minha carne verdadeiramente eacute comida e o

meu sangue verdadeiramente eacute bebida(Jo 655)

Eacute neste ponto que surge o primeiro sacrifiacutecio de Cristo pois oferece seu

corpo e seu sangue para a alimentaccedilatildeo dos que nele crecircem provando isso mais

adiante quando se deixa prender ser julgado flagelado e crucificado entregando

novamente seu corpo e seu sangue para salvaccedilatildeo de todos que aceitassem viver

esse mito O alimento dado aos disciacutepulos vem representar a natureza paradoxal

do siacutembolo da Eucaristia170 De um lado fornece uma conexatildeo como poder

gerador do mito e do outro a prima mateacuteria que deve ser humanizada e

transformada pelos esforccedilos do ego171 para que o homem possa se transformar e

receber em si o divino o numinoso

Mais adiante Cristo vai ao Gethsemani onde fica clara a aceitaccedilatildeo da

missatildeo de ser o Filho de Deus uma missatildeo de sofrimento e sangue que caminha

pelo ciacuterculo do mito de Cristo atraveacutes dos pontos da Prisatildeo e Julgamento onde

mesmo que natildeo aceitasse ser o Rei dos Judeus dizendo natildeo ser deste mundo

seu reino ainda assim era um reino da Flagelaccedilatildeo e escaacuternio da crucificaccedilatildeo o

170 EDINGER1988 p69 171 idem

221

foco principal do mito cristatildeo em relaccedilatildeo agrave contemplaccedilatildeo do sofrimento e da

entrega do destino a Deus

A crucificaccedilatildeo pode equivaler ao fracasso do heroacutei em sua luta pois ao

dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonastes poderia estar revendo

que sua vida vivida de profunda convicccedilatildeo tinha sido uma terriacutevel ilusatildeo172

Vem a lamentaccedilatildeo e o sepultamento equivalendo agrave descida de Cristo

aos infernos e ao limbo amparado pela Pietaacute sobre o corpo morto do filho

Mas no primeiro dia da semana

1 Mas jaacute no primeiro dia da semana bem de madrugada

foram elas ao sepulcro levando as especiarias que tinham preparado

2 E acharam a pedra revolvida do sepulcro

3 Entrando poreacutem natildeo acharam o corpo do Senhor Jesus

4 E estando elas perplexas a esse respeito eis que lhes

apareceram dois varotildees em vestes resplandecentes

5 e ficando elas atemorizadas e abaixando o rosto para o

chatildeo eles lhes disseram Por que buscais entre os mortos aquele que

vive

6 Ele natildeo estaacute aqui mas ressurgiu Lembrai-vos de como

vos falou estando ainda na Galileacuteia(Lc 24 1-6)

Mas depois da Ressurreiccedilatildeo mesmo com diversas evidecircncias de seu

aparecimento como em Joatildeo 2011-17 como em Lucas e Mateus seus disciacutepulos

natildeo o reconheceram de imediato pois atingindo o Self o Si-mesmo a evoluccedilatildeo

do homem miacutetico ele se transforma de tal ordem que natildeo poderaacute ser reconhecido

172 ideacuteia expressada por Jung durante entrevistas CGJung Entrevistas e Encontrosp103- apud EDINGER 1988 p120

222

mesmo pelos amigos mais iacutentimos pois atingiria o contato pleno com o

numinosum

35Mas algueacutem diraacute Como ressuscitam os mortos e com

que qualidade de corpo vecircm

36 Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se

primeiro natildeo morrer

37 E quando semeias natildeo semeias o corpo que haacute de

nascer mas o simples gratildeo como o de trigo ou o de outra qualquer

semente

38 Mas Deus lhe daacute um corpo como lhe aprouve e a cada

uma das sementes um corpo proacuteprio

39 Nem toda carne eacute uma mesma carne mas uma eacute a

carne dos homens outra a carne dos animais outra a das aves e

outra a dos peixes

40 Tambeacutem haacute corpos celestes e corpos terrestres mas

uma eacute a gloacuteria dos celestes e outra a dos terrestres

41 Uma eacute a gloacuteria do sol outra a gloacuteria da lua e outra a

gloacuteria das estrelas porque uma estrela difere em gloacuteria de outra

estrela

42 Assim tambeacutem eacute a ressurreiccedilatildeo eacute ressuscitado em

incorrupccedilatildeo

43 Semeia-se em ignomiacutenia eacute ressuscitado em gloacuteria

Semeia-se em fraqueza eacute ressuscitado em poder

44 Semeia-se corpo animal eacute ressuscitado corpo

espiritual Se haacute corpo animal haacute tambeacutem corpo espiritual

45 Assim tambeacutem estaacute escrito O primeiro homem Adatildeo

tornou-se alma vivente o uacuteltimo Adatildeo espiacuterito vivificante

46 Mas natildeo eacute primeiro o espiritual senatildeo o animal depois

o espiritual

47 O primeiro homem sendo da terra eacute terreno o segundo

homem eacute do ceacuteu

223

48 Qual o terreno tais tambeacutem os terrenos e qual o

celestial tais tambeacutem os celestiais

49 E assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestial

50 Mas digo isto irmatildeos que carne e sangue natildeo podem

herdar o reino de Deus nem a corrupccedilatildeo herda a incorrupccedilatildeo

51 Eis aqui vos digo um misteacuterio Nem todos dormiremos

mas todos seremos transformados

52 num momento num abrir e fechar de olhos ao som da

uacuteltima trombeta porque a trombeta soaraacute e os mortos seratildeo

ressuscitados incorruptiacuteveis e noacutes seremos transformados (1 Cor

35-52)

O Corpo Celestial que Paulo cita em 1 Cor15 35-52 equivale a dizer

que o homem miacutetico com seu corpo em ressurreiccedilatildeo em Cristo estaacute em contato

direto com o arqueacutetipo Cristatildeo e com o proacuteprio Deus pois a morte e a

ressurreiccedilatildeo de Cristo formam um arqueacutetipo que vive natildeo apenas na psique

individual mas tambeacutem na coletiva 173

Com a Ascensatildeo onde Cristo diz se preparar para a descida sob a

forma do Espiacuterito Santo no Pentecostes Deus que se esvaziou de sua divindade e

desceu a Terra como espiacuterito humano sobe novamente e retorna ao ceacuteu em

ascensatildeo para depois retornar jaacute reconhecido como Deus sob a forma do

Espiacuterito Santo

173 idem

224

Mostra o mito Cristatildeo que natildeo somos seres humanos passando por

uma vida espiritual na Terra mas seres espirituais que passamos tal qual Cristo

por uma experiecircncia humana

8 Mas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito

Santo e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda

a Judeacuteia e Samaacuteria e ateacute os confins da terra

9 Tendo ele dito estas coisas foi levado para cima

enquanto eles olhavam e uma nuvem o recebeu ocultando-o a seus

olhos

10 Estando eles com os olhos fitos no ceacuteu enquanto ele

subia eis que junto deles apareceram dois varotildees vestidos de branco

11 os quais lhes disseram Varotildees galileus por que ficais

aiacute olhando para o ceacuteu Esse Jesus que dentre voacutes foi elevado para o

ceacuteu haacute de vir assim como para o ceacuteu o vistes ir (At 1 8-11)

O homem na visatildeo junguiana possui um Ego174 que se contrapotildee

constantemente ao Si-mesmo (Self) como sendo o Ego o terreno e o Si-mesmo o

celestial onde o Si-mesmo eacute a entidade inconsciente que desenvolve o ego

dizendo eu natildeo me crio a mim mesmo antes eu me aconteccedilo a mim mesmo

No ser humano sempre existiraacute a supremacia do Si-mesmo em

simultaneidade com a liberdade de accedilatildeo do Ego assim como no mundo sempre

haveraacute para o homem miacutetico a liberdade de accedilatildeo ou livre arbiacutetrio do corpo terreno

na relaccedilatildeo direta da supremacia do corpo espitirual O Ego estaacute para o Si-mesmo

174 Ego e Si-mesmo (self) pode ser visto em CARNOT(2005)

225

assim como o patiens

estaacute pra o agens ou como o objeto estaacute pra o

observador ou mesmo como o homem estaacute pra Deus

Jung comenta em seu livro The Spirit Mercurius Alchemical Studies

(par 280)175 que haacute uma correspondecircncia alquiacutemica e simboacutelica a esse evento da

Ascensatildeo e retorno de Cristo com a Taacutebua de Esmeraldas de Hermes a qual

inclui em sua receita pra a produccedilatildeo da Pedra Filosofal as palavras Ele sobe da

terra pra o ceacuteu e desce de novo na terra recebendo a forccedila de cima e de baixo e

comentando essa passagem diz

[Para o alquimista] natildeo haacute uma questatildeo de subida de

matildeo uacutenica pra o ceacuteu mas em contraste com a rota seguida pelo

Redentor Cristatildeo que vem de cima para baixo e depois retorna para

cima o filius macrocosmi comeccedila de baixo sobe agraves alturas e com os

poderes do Acima e do Abaixo unidos em si mesmo volta outra vez a

terra Ele (o alquimista) realiza o movimento inverso e assim

manifesta uma natureza contraacuteria agrave de Cristo e agrave dos Redentores

Gnoacutesticos (me agrada interpretar a palavra alquimista como traduccedilatildeo

de o homem miacutetico )

Chegamos ao ciclo do mito Cristatildeo ao Pentecostes a 13a situaccedilatildeo

colocada por Jung como sendo tambeacutem a primeira apoacutes a Ascensatildeo Com o

Pentecostes o ciclo da encarnaccedilatildeo de Cristo se completa assim como se

completa o ciclo do heroacutei O ciclo se inicia com a descida do Espiacuterito Santo na

175 apud EDINGER (1988 p 122)

226

anunciaccedilatildeo e termina com sua nova descida dos ceacuteus par o iniacutecio de um novo

ciclo

Para didaticamente deixar claro ao leitor repito a figura que

representa esse ciclo

A Igreja como corpo de Cristo teve sua anunciaccedilatildeo e

concepccedilatildeo no Pentecostes 176

176 idem EDINGER1988 p130

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

227

Foi este o momento onde deixam os disciacutepulos de serem um

receptaacuteculo dos ensinamentos do mito de Cristo para nascer a Santa Igreja

Catoacutelica sem tratar aqui os movimentos de sua criaccedilatildeo como o grande

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo

Aqui o homem miacutetico entrega a Igreja o controle do proacuteprio espiacuterito

celestial podendo viver sua vida independente dos desiacutegnios dos ceacuteus podendo

em agindo dentro do mito buscar seu uacuteltimo dia momento em que voltaraacute a ser

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo dando a ideacuteia de uma encarnaccedilatildeo contiacutenua tanto do

homem quanto de Deus

228

APEcircNDICE 4 - UMA PROPOSTA DE INTERPRETAR PSICOLOacuteGICA E MITICAMENTE A

TRINDADE

A Alma eacute o maior dos milagres coacutesmicos CG Jung 177

Como todo o tema deste trabalho desde o nome o objeto de pesquisa

pode parecer estranho tanto a um psicoacutelogo como a um educador como a um

historiador

No entanto faccedilo mais essa anaacutelise de forma plena e consciente de que

entro neste momento em mais uma pesquisa polecircmica e que por mais que me

aprofunde neste momento natildeo deixaraacute de ser superficial

Acontece que em meu entender tal qual os siacutembolos de transformaccedilatildeo

cultural da missa ou a interpretaccedilatildeo da vida de Cristo este tema tambeacutem eacute

necessaacuterio para que se possa ter mais clara a visatildeo do mito cristatildeo e por

consequumlecircncia o Cristatildeo portuguecircs do seacuteculo XVI pois a Trindade nos daraacute mais

algumas informaccedilotildees de como culturalmente esse arqueacutetipo esse mito foi imposto

agrave nossa cultura e imposiccedilatildeo aos brasis

177 JAFFEacute-1995-p5

229

As religiotildees cristatildes estatildeo tatildeo presentes e tatildeo proacuteximas agrave alma humana

que seria impossiacutevel ignoraacute-las do ponto de vista psicoloacutegico educacional e do

ponto de vista cultura

Por mais que a ideacuteia Trindade esteja no campo da Teologia aacuterea que

natildeo me sinto habilitado ou sequer inclinado a pesquisar eacute na histoacuteria e na obra de

CG Jung que busco as informaccedilotildees que necessito para escrever sobre esse

dogma e o simbolismo trinitaacuterio

Que se tenha notiacutecia a Trindade do mito cristatildeo eacute a uacutenica que soacute

existe como trecircs partes de um uno As triacuteades divinas de tantos mitos primitivos

tecircm uma relaccedilatildeo de parentesco entre elas como por exemplo a triacuteade babilocircnica

Anu Bel e Ea onde Ea a personificaccedilatildeo do saber eacute o pai de Bel (o Senhor) que

personifica a atividade praacutetica Numa triacuteade secundaacuteria desse mito da eacutepoca de

Nabucodonosor Sin (a lua) Shamash (o sol) e Adad (a tempestade Senhor do

Ceacuteu e da Terra e filho do altiacutessimo Anu da triacuteade primaacuteria) No tempo de

Hamurabi Marduk filho de Ea substitui Bel e seus poderes levando Bel a um

segundo plano Nisso Hamurabi se considera um novo deus e soacute venerava uma

diacuteade Anu e Bel e por ser Hamurabi considerado um soberano divino

mensageiro de Anu e Bels e associa a eles criando nova triacuteade Anu

Bel

Hamurabi178

Assim como nesse exemplo vaacuterias culturas primitivas se utilizavam em

seus mitos de triacuteades divinas

178 JUNG1988par173-174

230

No entanto no Velho Testamento encontramos por diversas vezes um

Deus quase que uno pois onde surge o Espiacuterito a palavra vem acompanhada de

Espiacuterito de Deus Espiacuterito do Senhor o que se pode confirmar em

Gecircnesis cap 1 e 6

Nuacutemeros cap 24 e 27

Juiacutezes cap 36111314 e 15

I Samuel cap 1011 e 16

II Samuel cap 3

I Reis cap 18 e 22

II Reacuteus cap 2

II Crocircnicas cap151820 e 24

Assim como em Neemias Joacute Salmos Isaias Ezequiel Joel Miqueacuteias

Ageu e Zacarias

Somente no evento do Novo Testamento surge a segunda parte da

diacuteade Espiacuterito Santo

Ateacute esse momento se percebe principalmente em Joacute um Deus uacutenico

onipotente e onisciente poreacutem com caracteriacutesticas de uma dualidade na forma de

agir com o homem Existe aiacute um Deus justo e injusto doce e coleacuterico que cria e

destroacutei que necessitava de aplausos e reverecircncias e dado ao caraacuteter temiacutevel

fazia com que o homem se referisse constantemente a um Temor de Deus

231

De fato Javeacute tudo pode e se permite sem pestanejar um

momento Ele eacute capaz de projetar com impassibilidade feacuterrea o seu

proacuteprio lado sombrio e permanecer inconsciente disto agrave custa do ser

humano Eacute capaz de apelar para o seu poder supremo e promulgar

leis que para ele significam menos que o ar Os assasiacutenios os

morticiacutenios natildeo lhe causam preocupaccedilatildeo e quando lhe daacute na veneta

eacute capaz igualmente de qual um senhor feudal ressarcir

generosamente os danos provocados nos campos de cereais dos

servos Perdeste os teus filhos as tuas filhas e os teus escravos Natildeo

haacute de ser nada eu te darei outros em troca e melhores do que os

primeiros 179

Iahweh natildeo possui origem nem passado comparado com outros

deuses helecircnicos ou natildeo Seu primeiro filho sendo Adatildeo fez com que todos

fossem descendentes desse primeiro pai Mas os povos judeus atraveacutes do que foi

chamado de providentia specialis garante a si a semelhanccedila de Deus e para

aplacar essa ira divina propotildee um pacto Iahweh - Noeacute do qual surge nova alianccedila

de Deus com os homens

Somente no Novo Testamento surge a figura do Espiacuterito Santo e aiacute a

fixaccedilatildeo da imagem da diacuteade divina

No entanto ateacute este momento natildeo havia entendimentos entre Deus

Iahweh e os homens nem entre os homens e Deus Era necessaacuterio um

entendimento mais humano das coisas terrenas Parece que podemos entender

ser a criaccedilatildeo imperfeita e tambeacutem Deus natildeo pode atender plenamente os

179 JUNG 1990 par597

232

requisitos de sua tarefa era necessaacuteria a criaccedilatildeo de um intermediaacuterio que

entendesse das coisas divinas e das coisas humanas Um Deus mais humano e

que entendesse o logos Dei O Uno precisava ser substituiacutedo por outro O mundo

do Pai deveria ser substituiacutedo pelo mundo do Filho

Alguma transmissatildeo cultural deve ter havido advinda da Babilocircnia do

Egito e da Greacutecia pois esses siacutembolos fazem parte dos fundamentos das imagens

miacuteticas e arquetiacutepicas do pensamento humano Aqui discutimos apenas aquilo

que emanou natildeo de pressupostos filosoacuteficos (mesmo os platocircnicos) mas sim

dos pressupostos arquetiacutepicos inconscientes inerentes agrave natureza humana

O Espiacuterito Santo anuncia o nascimento do Filius Dei e se completa

assim a Trindade a qual eacute nossa pesquisa para este tema

A Trindade Cristatilde natildeo tem a mesma origem das triacuteades divinas

babilocircnicas egiacutepcias ou gregas pois elas se diferem na concepccedilatildeo Por exemplo

enquanto a triacuteade platocircnica resulta de uma antiacutetese a Trindade ao contraacuterio eacute

totalmente harmocircnica entre si As denominaccedilotildees Pai Filho e Espiacuterito Santo natildeo

derivam absolutamente do nuacutemero trecircs e sim de um elemento uno

Apoacutes o Pai logicamente segue-se o Filho no entanto o Espiacuterito Santo

natildeo tem sua origem nem no Pai nem no Filho sendo portanto uma realidade

particular e de um pressuposto diferente Conforme se pode obter de Jung180 na

antiga doutrina Cristatilde o Espiacuterito Santo eacute vera persona quae filio et a patre missa

est [verdadeira pessoa enviada pelo pai e pelo Filho] O processio a patre filioque [o

180 JUNG 1988 par 197

233

ato de proceder do pai e do Filho] eacute uma inspiraccedilatildeo e natildeo uma geraccedilatildeo como no

caso do filho

De acordo com sua definiccedilatildeo o Pai eacute a prima causa o

creator o auctor rerum (o criador das coisas) o qual num determinado

estaacutegio cultural incapaz de reflexatildeo pode ser simplesmente o Uno 181

Mas se procurarmos a Matildee natildeo a encontraremos na Trindade e assim

natildeo poderemos entender a geraccedilatildeo do Filho Seria Trindade tambeacutem

transformada e quatro pontos e natildeo mais em trecircs Acontece que desde a Babilocircnia

ou do Egito a relaccedilatildeo pai-filho-vida com a exclusatildeo da matildee ou progenitora divina

constitui a foacutermula patriarcal que fazia parte da cultura desses povos o que vai

influenciar totalmente a mesma relaccedilatildeo patriarcal do periacuteodo do nascimento da

Trindade Cristatilde

No velho Egito e no Cristianismo a Matildee de Deus fica fora da trindade

No templo as coisas ritualiacutesticas eram exclusivas do homem e seus filhos Em

Lucas (2 40-49) Maria vai ao templo onde Jesus com 12 anos estava jaacute haacute trecircs

dias entre os mestres e lhe pergunta onde andava e ele lhe responde Porque me

procuraacuteveis Natildeo sabiacuteeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai

Desde os primoacuterdios os ritos iniciaacuteticos dos primitivos misteacuterios

sempre afastaram os jovens de suas matildees e os transformavam atraveacutes de um

181 idem par199

234

novo nascimento Essa ideacuteia miacutetica e arquetiacutepica continua viva ateacute os tempos de

hoje atraveacutes do celibato sacerdotal Mais uma vez a cultura e sua transmissatildeo de

forma educacional geram as fontes do mito A relaccedilatildeo sublimada pai-filho gera a

concepccedilatildeo de um espiacuterito que representa a encarnaccedilatildeo ideal da vida masculina

Outra possibilidade de transformaccedilatildeo da triacuteade em quatro pontos de

fundamento seria a da inclusatildeo do democircnio nesse grupo No entanto tambeacutem

isso natildeo seria possiacutevel pois o mal o democircnio as disposiccedilotildees morais soacute surgem

com um Cristianismo jaacute fundado em bases soacutelidas com o mito cristatildeo jaacute fazendo

parte e tendo efeito na vida da alma humana e cristatilde

Gostaria de lembrar que o mito se forma com as imagens primordiais

que possuem fatores que coordenam a psique humana e seratildeo reconhecidos

como formadores do mito apoacutes pertencerem e fazerem efeito na vida do homem

Novamente a cultura e a transmissatildeo da tradiccedilatildeo geram as fontes miacuteticas Se as

disposiccedilotildees morais natildeo estavam definidas como definir o mal Como definir o

democircnio

Mas a evoluccedilatildeo continua e a Trindade se fixa nos conceitos do homem

do mundo conhecido de entatildeo A vida do Homem-Deus faz com que seja revelada

a mais importante das revelaccedilotildees coisas que soacute podiam ser explicadas pelo

Filho visto que o Pai em seu estado original de uno natildeo tinha como revelar ao

homem a existecircncia do Espiacuterito Santo que conforme foi visto anteriormente apoacutes

a morte do Filho apoacutes ter abandonado o espaccedilo terreno desce sobre a alma dos

homens e envolve a todos com sua bondade e benevolecircncia para fazer mais

235

pelos homens do que fez o Pai ou o Filho o elemento miacutetico que completa

definitivamente a Trindade e reconstitui a unidade

Assim se lecirc na primeira carta de Clemente 466 Temos

um soacute Deus e um soacute Cristo como tambeacutem um soacute Espiacuterito 182

Ou como pode ser lido no Credo batismal chamado o Symbolum

Apostolicum atestado por documentos a partir do seacuteculo IV

Creio em Deus Pai todo poderoso em Jesus Cristo seu

filho unigecircnito nosso Senhor o qual doacutei concebido pelo Espiacuterito

Santo e nasceu de Maria Virgem foi crucificado sob Pocircncio Pilatos e

sepultado ao terceiro dia ressurgiu dos mortos subiu aos ceacuteus estaacute

sentado agrave direita da Deus Pai de onde haacute de vir a julgar os vivos e os

mortos e no Espiacuterito Santo na santa Igreja na remissatildeo dos

pecados na ressurreiccedilatildeo da carne 183

Por mais que qualquer racionalidade cultural pudesse tentar explicar

esse conceito de Trindade sempre permaneceu incoacutelume principalmente porque

apoacutes um mito ter sido fundado por seu poder criador ele passa a pertencer a um

mundo arquetiacutepico que natildeo pode ser atingido pela racionalidade pois o arqueacutetipo

o mito por residir por emanar do inconsciente humano adquire um caraacuteter

numinoso que torna impossiacutevel enquadraacute-lo no mundo da racionalidade tendo

182 JUNG 1988 par 207 183 JUNG 1988 par 211

236

muitas vezes sim gerado em na histoacuteria discussotildees vazias disputas verbais e

ateacute violecircncia na tentativa de se explicar o dogma da Santiacutessima Trindade

O conceito de santidade indica que uma determinada

coisa ou ideacuteia possui valor supremo cuja presenccedila leva o homem

por assim dizer ao mutismo A santidade eacute reveladora eacute a forccedila

iluminante que dimana da forma arquetiacutepica184

Somente o termo santiacutessima jaacute nos faz entender que o arqueacutetipo se

tornou ativo e que o mito impregnou a alma do homem poacutes cristianismo ou como

denomina a psicologia tambeacutem racionalista de presenccedila psiacutequica extra-

consciente

Para onde entatildeo foi o homem Jesus como poderiacuteamos definir ou contar

sua histoacuteria enquanto homem Natildeo havia mais Jesus o homem foi substituiacutedo

pelo mito mesmo nas palavras de Paulo por exemplo pois nunca uma palavra de

Jesus foi citada em qualquer de seus discursos O que se falava de Jesus se

falava do mito do arqueacutetipo sempre representado pela figuras de O Senhor dos

Democircnios o Salvador Coacutesmico etc Nunca mais surge na histoacuteria o humano de

Jesus Transformou-se o homem em sua expressatildeo miacutetica pois o Homem-Deus

o Deus Eterno natildeo tem histoacuteria do ponto de vista humano somente alegorias da

iconografia da Idade Meacutedia

184 JUNG 1988 par 235

237

Como pastor Ele eacute o condutor e o centro dos rebanhos Eacute

a videira Enquanto os que o seguem satildeo os ramos Seu corpo eacute patildeo

que se come e seu sangue eacute vinho que se bebe Ele eacute tambeacutem

Corpus mysticum formado pela uniatildeo dos crentes Como

manifestaccedilatildeo humana eacute o Heroacutei e o Homem-Deus sem pecado por

isso mais completo e perfeito do que o homem natural que Ele

ultrapassa e abrange e que estaacute pra Ele na mesma relaccedilatildeo de uma

crianccedila para o adulto ou da ovelha pra o homem 185

Ele eacute o Arqueacutetipo da Cristandade ele eacute o mito Cristatildeo

185 JUNG 1988 par 229

238

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Fontes

ANCHIETA Joseacute de Cartas

Informaccedilotildees Fragmentos Histoacutericos e

Sermotildees

1534-1597 Belo Horizonte Itatiaia S Paulo Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1988

__________ Diaacutelogos da Feacute

obras completas 8deg vol

introduccedilatildeo e notas

Pe Armando Cardoso Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988

__________ Feitos de Men de Saacute Paraacute de Minas Virtual Books 2000

__________ Auto de Satildeo Lourenccedilo - Paraacute de Minas Virtual Books 2000

BETTENDORF Joatildeo Felipe Pe 1627-1698

Crocircnica dos padres da

Companhia de Jesus do Estado de Maranhatildeo Beleacutem Fundaccedilatildeo Cultural do

Paraacute Tancredo Neves 1990

CARDIM Fernatildeo

1540-1625

Tratados da terra e gente do Brasil Belo

Horizonte Ed Itatiaia Satildeo Paulo Ed Da Universidade de Satildeo Paulo 1980

COLOacuteNCristoacutebal - Carta a los Reyes Catoacutelicos - 2000 virtualbookscombr -

Editora Virtual Books - Online MampM Editores Ltda

CAMINHA Pero Vaz de

A Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de

Portugal - Ministeacuterio da Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

(Coacutepia obtida via internet) e Carta de Pero

Vaz de Caminha

A certidatildeo de Nascimento da Naccedilatildeo Brasileira

Brasil 500

Anos Bradesco - 2000

NAVARRO Azpicuelta e outros - Cartas Avulsas 1550-1568 Belo Horizonte

ItatiaiaSatildeo Paulo Edusp 1988

NOacuteBREGA Manuel da Cartas do Brasil Belo Horizonte - ItatiaiaSatildeo Paulo

Edusp 1988

SALVADOR Frei Vicente do A Histoacuteria do Brasil

1500-1627 5a Ed Satildeo

Paulo Melhoramentos 1965

239

STADEN Hans Duas Viagens ao Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia Satildeo

Paulo Ed da Universidade de Satildeo Paulo [1557] 1974

VIEIRA Pe Antonio Sermotildees

Obras Completas

vol V- Sermatildeo do

Espiacuterito Santo Lisboa Lelo e irmatildeo Editores 1951

OUTRAS REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREU J Capistrano de

Capiacutetulos da Histoacuteria Colonial - Ministeacuterio da

Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro

versatildeo para e-books [httpwwwbnbrbibvirtualacervo]

1907

obtida em

2004

BACHELARD Gaston

A Terra e os Devaneios do Repouso

Satildeo Paulo

Martins Fontes 1990

BIacuteBLIA ELETROcircNICA 252 RK Soft Desenvolvimento

BIacuteBLIA SAGRADA - Nova traduccedilatildeo na linguagem de hoje

Barueri-SP

Sociedade Biacuteblica do Brasil 2000

BUENO Silveira

Vocabulaacuterio Tupi-Gurani

Portuguecircs

Satildeo Paulo Eacutefeta

Editora 1998

CALMON Pedro

Histoacuteria do Brasil

Seacuteculo XVI

As origens e Seacuteculo

XVII

Formaccedilatildeo Brasileira - Vol 1 e 2

Rio de Janeiro - Livraria Joseacute

Oliacutempio Editora 2a ed 1963

CALLOIS Roger Les jeux et les hommes

le masque et le vertige Paris

Galiimard 1985

CAMPBELL Joseph com Bill Moyers

O Poder do Mito - Satildeo Paulo Ed

Palas Athena 1990

240

CARDOSO Armando (Trad) O Teatro de Anchieta

Obras Completas - 3o

Volume - SPaulo Loyola 1977

CARNOT Sady A destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

Brasil Seacuteculo XVI

uma visatildeo junguiana

Prefaacutecio de Joseacute Maria de Paiva - S Matheus

ES

Memorial 2005

CAROTENUTO Aldo

Eros e Pathos Amor e sofrimento Satildeo Paulo Ed

Paulus 1994

CASSIRER Ernest

Antropologiacutea Filosoacutefica

Meacutexico Fondo de Cultura

Econoacutemica 1945

CHAIN Iza G C

O Encontro de Dois Mundos In O Diabo nos Porotildees das

Caravelas Tese de Mestrado texto obtido atraveacutes da Internet 2003

CRIPPA Adolfo

Mito e Cultura Satildeo Paulo Conviacutevio 1975

DEWEY John

Democracia e educaccedilatildeo Breve tratado de Philosophia de

Educaccedilatildeo Biblioteca Pedagoacutegica Brasileira

Companhia Editora Nacional S

Paulo 1936

DOURLEY John P A doenccedila que somos noacutes

A criacutetica de Jung ao

cristianismo trad Roberto Girola - Satildeo Paulo Paulus 1987

EDINGER Edward F

O Arqueacutetipo Cristatildeo

Um comentaacuterio junguiano

sobre a vida de Cristo Satildeo Paulo Cultrix 1988

__________ - A Criaccedilatildeo da Consciecircncia

O mito de Jung para o Homem

moderno Satildeo Paulo Cultrix 1999

FERNANDES Florestan

A funccedilatildeo social da guerra na sociedade

Tupinambaacute - Satildeo Paulo Livraria Pioneira Editora 1970

FREYRE Gilberto - Casa Grande e Senzala - Rio de Janeiro Livraria Joseacute

Oliacutempio 1984

__________- Casa Grande e SenzalaRio de Janeiro Rio Filmes com apoio

da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco e Fundaccedilatildeo Gilberto Freyre

narrado por

241

Edson Nery da Fonseca amigo pessoal e bioacutegrafo de Gilberto Freyre Capiacutetulo

II A cunha matildee da Famiacutelia Brasileira 2000

GAMBINI Roberto

O espelho iacutendio os jesuiacutetas e a destruiccedilatildeo da alma

indiacutegena - Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo 1988

GAcircNDAVO Pero de Magalhatildees

Tratado da Terra do Brasil

Histoacuteria da

Proviacutencia Santa Cruz - Belo Horizonte Itatiaia 1980

GINZBURG Carlo Mitos Emblemas Sinais - Satildeo Paulo Schwarkz 2002

GODINHO Vitorino Magalhatildees A estrutura social do Antigo Regime In

GODINHO VM A estrutura na Antiga Sociedade portuguesa Lisboa Arcaacutedia

1971

GUSDORF Georges Mito y Metafiacutesica Buenos Aires Editorial Nova 1959

HERNANDES Paulo Romualdo O Teatro de Joseacute de Anchieta Arte e

Pedagogia no Brasil Colocircnia

Campinas Biblioteca de Educaccedilatildeo da

UNICAMP 2001

HOELLER Stephan A A Gnose de Jung e os Sete Sermotildees aos mortos

Satildeo Paulo Cultrix 1991

__________ Jung e os evangelhos perdidos

Uma apreciaccedilatildeo junguiana

sobre os manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi - Satildeo

Paulo CultrixPensamento 1993

HOLLIS James

Rastreando os Deuses

O lugar do mito na vida

moderna Satildeo Paulo Paulus 1998

JAFFEacute Aniela

O Mito do significado na Obra de C Gustav Jung- Satildeo

Paulo Cultrix 1995

JACOBI Jolande Complexo Arqueacutetipo Siacutembolo na Psicologia de CG

Jung Satildeo Paulo Ed Cultrix 1991

JECUPEacute Kakaacute Weraacute A Terra dos mil Povos Satildeo Paulo Editora Fundaccedilatildeo

Peiroacutepolis 1999

242

______Tupatilde Tenondeacute Satildeo Paulo Peiroacutepolis 2001

JUDY Dwight H

Curando a Alma Masculina

O Cristianismo e a

Jornada miacutestica Satildeo Paulo Paulus 1998

JUNG C G A importacircncia dos sonhos In O Homem e seus siacutembolos

CG Jung MLvon Franz Joseph L Henderson Jolande Jacobi e Aniela Jaffeacute

Rio de Janeiro Nova Fronteira 1964

_______ Memoacuterias Sonhos e Reflexotildees Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira

1975

_______ Psicologia e Religiatildeo - Obras Completas

Vol XI1 Petroacutepolis

Vozes 1978

_______ Aion - Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo Petroacutepolis

EdVozes 1982

_______ O Siacutembolo da Transformaccedilatildeo na Missa Obras Completas Vol

XI3 Petroacutepolis Ed Vozes 1985

_______ Mysterium Coniunctionis

Obras Completas- vXIV1 Petroacutepolis

Vozes 1988

_______ A interpretaccedilatildeo Psicoloacutegica do Dogma da Trindade Obras

Completas Vol XI2 Petroacutepolis Vozes 1988

_______ Siacutembolos da Transformaccedilatildeo Obras completas VolV Petroacutepolis

Vozes 1989

_______ Civilizaccedilatildeo em Transiccedilatildeo Petroacutepolis Ed Vozes 1993

_______ Resposta a Jocirc Petroacutepolis Ed Vozes 1990

LACOUTURE Jean Os Jesuiacutetas

A Conquista

vol 1

Lisboa Editorial

Estampa 1993

LANA Firmino Arantes e LANA Luiz Gomes

Antes o mundo natildeo existia

Mitologia dos antigos Desana-Kehiriacutepotilderatilde - Satildeo Gabriel da Cachoeira

AM

FOIRN Federaccedilatildeo das Organizaccedilotildees dos Indiacutegenas do Rio Negro 1995

243

MAGASICH-AIROLA Jorge e BEER Jean-Marc de Ameacuterica Maacutegica

Quando a Europa da Renascenccedila pensou estar conquistando o Paraiacuteso

Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

MAY Rollo A procura do mito Satildeo Paulo Manole1992

MENDES Antoacutenio Rosa A vida Cultural In MATTOSO Joseacute Histoacuteria de

Portugal Lisboa Estampa1992 tIII coord de Joaquim Romero Magalhatildees

MONTEIRO John M Tupis Tapuias e Historiadores- Estudos de Histoacuteria

Indiacutegena e do Indigenismo Tese apresentada pra o concurso de Livre

Docecircncia Aacuterea de Antropologia Campinas IFCH Unicamp 2001

MORENTE Manuel Garcia Fundamentos de filosofia e liccedilotildees preliminares

(metafiacutesica idealismo e positivismo)8a Ed Traduccedilatildeo e proacutelogo de Guilhermo

de la Cruz Coronado Satildeo Paulo Editora Mestre Jou 1930

NEVES Luiz Felipe Baeta

O Combate dos Soldados de Cristo na Terra

dos Papagaios

Colonialismo e Repressatildeo Cultural

Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1978

NOGUEIRA Carlos Roberto F O Diabo no imaginaacuterio cristatildeo Bauru Edusc

2000

PAIVA Joseacute Maria de Histoacuteria da Educaccedilatildeo Colonial

texto natildeo publicado

2002

_______ Religiosidade e Cultura

Brasil Seacuteculo XVI uma chave de

leitura Texto natildeo publicado 2002

_______ Catequese e Colonizaccedilatildeo Satildeo Paulo CortezAutores Associados

1982

PEacuteCORA Alcir Teatro do sacramento A unidade teoloacutegico-retoacuterico-

poliacutetica dos sermotildees de Antocircnio Vieira Satildeo Paulo-Campinas EduspEditora

da Unicamp 1994

RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

244

SEREBURAtilde e outros

Wamrecircmeacute Zaacutera

Mito e Histoacuteria do Povo Chavante

Nossa Palavra Satildeo Paulo SENAC 1998

TAVARES Eduardo e outros

Missotildees Jesuiacutetico- Guarani Satildeo Leopoldo

Unisinos 1999

TODOROV Tzvetan A Conquista da Ameacuterica A questatildeo do outro 3a Ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

WHITMONT Edward A Busca do Siacutembolo Satildeo Paulo Ed Cultrix 1990

WYLY James

A busca Faacutelica

Priapo e a Inflaccedilatildeo Masculina

Satildeo

Paulo Ed Paulus 1994

XAVIER Acircngela Barreto amp HESPANHA Antonio Manuel a Representaccedilatildeo da

Sociedade e do PoderIn MATTOSO Joseacute Histoacuteria de Portugal t IV Coord

de Antocircnio Manuel Hespanha Lisboa Estampa 1992

httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905

This document was created with Win2PDF available at httpwwwwin2pdfcomThe unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only

Page 5: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão

5

Era gerado entatildeo o grande embate de mitos baseado na saga de dois

heroacuteis de polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo

Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o

Orbis Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico indiacutegena

Eacute tratada aqui a ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas

onde os jesuiacutetas foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena

a Liacutengua Geral de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os

conceitos de sua cultura e de denegrir os conceitos da cultura indiacutegena

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas que as peccedilas que satildeo sempre as

mesmas estatildeo presas numa caixa Claro a educaccedilatildeo tambeacutem se baseia no mito

cultural

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida A educaccedilatildeo eacute exatamente isso

uma maneira de transmitir esse modo herdado e a maneira inata de se viver O

homem eacute o todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias

arquetiacutepicas que todos os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo

individual e possuindo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder essa participaccedilatildeo

arquetiacutepica de seu mundo o homem estaacute morto mesmo que natildeo fisicamente ele

agora eacute um defuncto que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

A didaacutetica da catequese trazia a definiccedilatildeo do democircnio ou do Diabo agraves

mentes indiacutegenas e isso se fazia pela pedagogia do terror que se impunha agraves

6

mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeosNesse embate

cultural uma certa profecia praticamente se confirmava de que haveria uma

transformaccedilatildeo de brancos em iacutendios e de iacutendios em brancos mas isso natildeo foi

possiacutevel pois ao final o mito cristatildeo derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos

os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano

7

RESUMEN

Por entender que la analice de una cultura mucho maacutes englobante que

otra es hecha de una forma mitoloacutegica y espiritual se busco en este trabajo

entender como esa espiritualidad lleva la mirada para el centro del universo

haciendo con que el todo sea mirado a partir de ese prisma Trata-se acaacute de los

resultados de la conversioacuten de los indiacutegenas durante el periacuteodo jesuiacutetico de las

cosas buenas traiacutedas a los indiacutegenas por la educacioacuten portuguesa y del

confronto de culturas en la buacutesqueda por la verdad de uno y de otro en ese

embate de mitos de tabus e pecados de Diacuteos e de demiurgos

Al pesquisar como la visioacuten del Orbis Christianus era la traduccioacuten del

vivir en la Europa quinientista se encuentra que la fe en Diacuteos era la uacutenica verdad

Todos deberiacutean estar en ella o llevados por ella al uacutenico mundo verdadero afora

del cual todo lo maacutes seria incuria e aberracioacuten El natural no era maacutes la

naturaleza Del hombre y si que la palabra de Diacuteos tal cual transmitida por la fe

cristiana llegase a los confines de la tierra conocida y de las tierras a conocer

El hombre es en ese momento histoacuterico actor cultural de una

complicada relacioacuten originaria de una dicotomiacutea entre el representado miacuteticamente

y el vivido en su realidad cotidiana no teniendo permisioacuten para conocer el pensar

el Bien sin antes pensar en el Mal pues sin embargo era tiempo de se reconocer

8

el enemigo para poder combate a ello por la gloria y triunfo del Redentor por

sobre el Tentador

Era generado entonces el embate de mitos con base en la saga de dos

heacuteroes de polaridades contrarias el europeo y el indiacutegena Cristo y el Diablo San

Lorenzo y San Sebastiaacuten de un lado contra Guaixaraacute y Aimberecirc del otro el Orbis

Christianus versus la visioacuten arquetiacutepica y el espiacuteritu cosmogoacutenico indiacutegena

Es tratada acaacute la herramienta de esa educacioacuten imposta a os

indiacutegenas donde los jesuitas fueran de una felicidad sin par al utilizaren la lengua

indiacutegena la Lengua General de Anchieta e sus autos teatrales como forma de

transmitir los conceptos de su cultura y de denegrir los conceptos de la cultura

indiacutegena

La educacioacuten es y siempre fue un caleidoscopio que muestra los maacutes

diversos y bellos dibujos e formas mas que las piezas que son siempre las

mismas estaacuten presas en una caja Claro la educacioacuten tambieacuten hace su base en el

mito cultural

La funcioacuten de los mitos no es denotar una idea recibida pero si un

modo de funcionamiento que corresponde a la manera innata pela cual el hombre

nace e se relaciona en su vida vivida La educacioacuten es exactamente eso una

manera de transmitir ese modo recibido por herencia y la manera innata de se

vivir El hombre es el todo de sus relaciones pues recibe las mismas influencias

arquetiacutepicas que todos los hombres de su grupo social reciben mismo siendo

individual e teniendo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder esa participacioacuten

9

arquetiacutepica de su mundo el hombre esta muerto mismo que no fiacutesicamente ello

ahora es un defuncto que no poseacute maacutes funciones a delante de la vida

La didaacutectica de la catequice tenia en si la definicioacuten del demonio o del

Diablo y la metiacutea en las mentes indiacutegenas y eso se haciacutea por la pedagogiacutea del

terror que se impugna a las mentes desavisadas de la existencia del Bien y del

Mal de los cristianos

En ese embate cultural una cierta profeciacutea praacutecticamente si confirmaba

que habriacutea una transformacioacuten de blancos en indios y de indios en blancos pero

eso no fue posible pues al final el mito cristiano derrotoacute Guaixaraacute Aimbirecirc

Saravaia y todos los otros diablos llevando con ellos hasta Deacutecio e Valeriano

10

SUMAacuteRIO

RESUMO _________________________________________________________ 4

RESUMEN ________________________________________________________ 7

SUMAacuteRIO _______________________________________________________ 10

Introduccedilatildeo _______________________________________________________ 11

Capiacutetulo 1 - A educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura que ensina e altera

costumes________________________________________________________ 36

Capiacutetulo 2 - O Mito ________________________________________________ 46

Capiacutetulo 3 - O mito Cristatildeo___________________________________________ 72

Capiacutetulo 4 - Como o Europeu Cristatildeo compreendia os indiacutegenas e a concepccedilatildeo

que tinham da vida desses brasis _____________________________________ 76

Capiacutetulo 5 - Como os indiacutegenas teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde e as dificuldades

encontradas na missatildeo de converter ___________________________________ 93

Capiacutetulo 6 - O Teatro como ferramenta educacional e de catequese _________ 119

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos_____________ 126

Conclusatildeo - O resultado do embate desses mitos na educaccedilatildeo e na cultura

brasileira________________________________________________________ 145

Apecircndices ______________________________________________________ 151

Apecircndice 1 O Auto de Satildeo Lourenccedilo Joseacute de Anchieta ________________ 152

Apecircndice 2 - A missa e os siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem____ 197

Apecircndice 3 O Mito de Cristo _______________________________________ 208

Apecircndice 4 - Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade 228

Referecircncias Bibliograacuteficas__________________________________________ 238

Outras referecircncias bibliograacuteficas_____________________________________ 239

11

INTRODUCcedilAtildeO

Eu queria ser como a aranha que tira de seu ventre todos

os fios de sua obra A abelha me eacute odiosa e o mel eacute para mim o

produto de um roubo

Papini Un homme fini

Entendendo que concluiacutedo o Mestrado em Histoacuteria e Educaccedilatildeo

trabalhando atraveacutes da teoria de Carl Gustav Jung a relaccedilatildeo jesuiacutetica com os

indiacutegenas no seacuteculo XVI mostrando a destribalizaccedilatildeo da alma indiacutegena atraveacutes da

imposiccedilatildeo cultural deveria continuar no processo de pesquisa sobre o assunto e

sob a mesma lente

Pesquisei teoacutericos filoacutesofos educadores e historiadores que pudessem

comprovar a tese a ser apresentada

Busco no sentido da vida desses homens jesuiacutetas em suas relaccedilotildees

com os indiacutegenas a proacutepria vida desses padres experienciada e tornada viva

atraveacutes de seus mitos e crenccedilas

Entendo que a anaacutelise de uma cultura elaborada por outra muito mais

englobante como no caso da cultura portuguesa em relaccedilatildeo agrave dos indiacutegenas eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual Essa espiritualidade leva o olhar para o

12

centro do universo fazendo com que tudo seja olhado a partir desse prisma

conforme jaacute pude demonstrar em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena objeto de

minha dissertaccedilatildeo de mestrado

Por entender o trabalho jesuiacutetico uma tarefa hercuacutelea composta de

uma saga heroacuteica na luta contra a resistecircncia indiacutegena agrave conversatildeo e agrave

catequese busco a simbologia e a interpretaccedilatildeo dessa saga

Por entender que mesmo sabendo dos resultados dessa conversatildeo no

sentido de destruir a alma indiacutegena houve como resultado desse confronto de

culturas um embate pela busca da verdade de sentido de significaccedilatildeo atraveacutes

dos tempos que alimentavam as mentes ainda eacutebrias de medievalismo e das

experiecircncias da alma do mato busco essa miacutetica esse relato de embates

Embate de mitos Embate de tabus e pecados de Deus e de deuses Enfim da

experiecircncia de vida

Quando utilizo a palavra embate em vaacuterios momentos deste texto

posso estar sendo ateacute mesmo mal compreendido pois muitos leitores poderatildeo

afirmar que as culturas quando se encontram se permeiam se harmonizam

Poderatildeo afirmar que sempre no encontro de duas culturas sobraraacute para os dois

lados aculturaccedilotildees costumes expressotildees linguumliacutesticas lendas antigas e as lendas

que surgiratildeo desse encontro Claro que sim natildeo tenho duacutevidas quanto a isso

Mas natildeo eacute essa a intenccedilatildeo Minha proposta eacute a de deixar claro que em

se tratando dos mitos culturais em se tratando do cristatildeo europeu ainda o

portuguecircs mais ameno que o espanhol houve sim um embate de mitos isto eacute um

choque impetuoso de culturas composta de oposiccedilotildees e resistecircncias (agraves vezes

13

mais passivas ou paciacuteficas poreacutem natildeo menores) poreacutem sempre se forma a

comparar-se com um abalo violento e profundo nas crenccedilas dos indiacutegenas

brasileiros

Por mais que resistissem os brasis o Orbis Christianus era violento

quanto agrave natureza real do homem

A visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do viver na Europa

quinhentista A feacute em Deus era a uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou

serem levados por ela ao uacutenico mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria

injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural natildeo era mais a natureza do homem e sim que a

palavra de Deus tal qual transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra

conhecida e das terras a se conhecer

Atraveacutes dessa visatildeo de mundo pudemos assistir agrave instituiccedilatildeo de novos

conteuacutedos simboacutelicos nas terras receacutem-descobertas articulados de maneira

extremamente eficaz entre a realidade cristatilde e o imaginaacuterio europeu quinhentista

Os guardiotildees do sagrado como foram chamados os cleacuterigos

devotam suas vidas com o uacutenico intuito de uniformizar as consciecircncias e converter

as almas pertencentes a Satatilde e seus ajudantes garantindo a hegemonia das

crenccedilas e a desculturaccedilatildeo de qualquer povo que natildeo vivesse os bons costumes

e natildeo pertencesse ao rebanho de fieacuteis

O seacuteculo XVI denotou na visatildeo cristatilde que o mundo se encontrava

dividido em duas partes bastante distintas

Os que cultivavam o Bem e as virtudes

14

Os que cultivavam o Mal e seus viacutecios

Tal qual na alegoria usada em O diabo no imaginaacuterio cristatildeo

O mundo se orienta como o portal de uma igreja goacutetica no

alto e no meio encontra-se Deus rodeado de um coro de anjos com

os santos e os justos prestando-lhes homenagem abaixo estatildeo os

mortais e na parte inferior ou agrave espreita os espiacuteritos malignos que

possuem formas horriacuteveis ou pelo menos enigmaacuteticas e cocircmicas

(NOGUEIRA 2000 39)

O homem eacute nesse momento histoacuterico personagem de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

Em contra-partida a essa postura miacutetica cristatilde surgem nas relaccedilotildees os

conteuacutedos da psique primitiva dos indiacutegenas brasileiros gerando costumes

padrotildees de comportamentos remexendo as sombras 1 jesuiacuteticas influenciando

1 A Sombra enquanto arqueacutetipo -Conforme nos orienta ML von Franz (JUNG 1964) e citado em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena (CARNOT Sady 2005p55) A Sombra pertence ao nosso mundo interior mais escondido descendo agraves profundezas do nosso proacuteprio mal e tornando o indiviacuteduo capaz de reconhecer em si o instinto e suas mentiras nada inocente nem tolo mas bem protegido contra tudo aquilo que de dentro possa surgirO arqueacutetipo Sombra eacute de todos os conteuacutedos arquetiacutepicos o que fica mais proacuteximo ao Ego cuja essecircncia estaacute mais em contato com a tona mais superficial sendo formada por componentes que jaacute fizeram parte um dia do presente do indiviacuteduo jaacute fizeram parte do seu cotidiano mas que foram reprimidos por natildeo pertencerem ao rol de compatibilidades desejadas pelos valores estabelecidos pelo social ao consciente ou por natildeo terem sido fortes o suficiente para ultrapassarem a consciecircncia e permaneceram em latecircncia dentro do Inconsciente Pessoal

15

com suas resistecircncias de aculturaccedilatildeo todo um conteuacutedo arquetiacutepico europeu que

veio dar origem agrave cultura brasileira

Esses embates culturais podem ser notados em cartas de marinheiros

cartas de jesuiacutetas a seus superiores e irmatildeos da Companhia de Jesus aleacutem da

utilizaccedilatildeo das simbologias miacuteticas de nossos indiacutegenas na elaboraccedilatildeo de taacuteticas

de conversatildeo presentes nos aldeamentos na supremacia dos sacramentos na

pedagogia do dia-a-dia e em especial em Anchieta que os mostra atraveacutes dos

autos como o de S Lourenccedilo e o da Pregaccedilatildeo Universal entre outros

Nesses autos nota-se claramente a noccedilatildeo de bem e mal que era

passada de forma determinista aos indiacutegenas

O Bem representando o fiel o santo o heroacutei o salvador os padres ou

abareacute a personagem Karaibebeacute grande cacique que aliado de Tupatilde e dos abareacute

na defesa das novas leis e dos novos costumes mostram o erro de seguir os

maus costumes das tradiccedilotildees e das falas de Guaixaraacute e Aimbirecirc

O Mal representado tambeacutem por grandes chefes como Guaixaraacute e

Aimbirecirc o diaboacutelico o proacuteprio democircnio bebedor de cauim que gosta de fumar e

defender os costumes da tradiccedilatildeo como danccedilar enfeitar-se tingir o corpo de

vermelho do urucum ou do preto da jemouacutena (una = preto)

Enfim grande embate de mitos baseado na saga de dois heroacuteis de

polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo Lourenccedilo e

16

Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o Orbis

Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico 2 indiacutegena

Muitas vezes em minha tese pretendo utilizar o conceito de experiecircncia

definido como um conhecimento que nos eacute transmitido pelos sentidos como um

conjunto de conhecimentos individuais ou especiacuteficos que constituem aquisiccedilotildees

vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade quer no sentido

metafiacutesico quer no sentido de aculturaccedilatildeo

A cada experiecircncia o indiviacuteduo se expotildee e soma a si o resultado do

ocorrido do fato do resultado Assim experiecircncia eacute a soma das situaccedilotildees que

influenciaram e influenciam a pessoa e as comunidades em toda a histoacuteria da

humanidade

Na imposiccedilatildeo cultural do portuguecircs do seacuteculo XVI sobre o indiacutegena

muitas vezes a renovaccedilatildeo era feita sob pressatildeo sob coerccedilatildeo em que o algo

transformado o indiviacuteduo transformado era sem que a experiecircncia pudesse ser

acumulada e sim imposta natildeo permitindo ao gentio a interaccedilatildeo com sua proacutepria

vida e em relaccedilatildeo ao ambiente do qual dependia visceralmente para sobreviver

Essa soma que Dewey chama de renovaccedilotildees satildeo a extensatildeo da

experiecircncia do indiviacuteduo e da espeacutecie no entanto vida para o ser humano

consiste em costumes crenccedilas instituiccedilotildees vitoacuterias e derrotas isto eacute a

experiecircncia

2 do grego kosmogonia - A origem ou formaccedilatildeo do mundo do universo conhecido Parte de uma cosmologia que trata especificamente da criaccedilatildeo e formaccedilatildeo do mundo Qualquer narrativa doutrina ou teoria a respeito da origem do mundo ou do universo

17

Poderia dizer que o homem vive em comunidade nas relaccedilotildees

pessoais em virtude das coisas que tem em comum e a comunidade eacute o meio

pelo qual se chega a possuir essas coisas comuns No entanto na relaccedilatildeo entre

mitos indiacutegenas total e completamente inserido no que falaremos mais tarde no

mito filosoacutefico e a imposiccedilatildeo do mito cristatildeo considerado numa relaccedilatildeo com a

racionalidade pouco de comum havia entre esses dois povos tatildeo distintos Por um

lado o aguerrido o natural o nu e o livre e do outro dogmas pecados eacutebrios de

medievalidade impondo sua cultura ad majorem Dei gloriam

A educaccedilatildeo como forma de transmissatildeo de cultura suprime a distacircncia

entre as ideacuteias dos mais velhos e a acircnsia de conhecer e modificar dos mais novos

e imaturos No entanto perguntaria a esses indiacutegenas se as ideacuteias dos

considerados mais velhos mais importantes ateacute mesmo com poderes divinos

como se os tivessem os padres jesuiacutetas natildeo tinham uma distacircncia tatildeo grande de

suas proacuteprias ideacuteias a ponto de que essas ideacuteias natildeo pudessem ser entendidas

tal como as noccedilotildees de pecado de ceacuteu e inferno ou mesmo de um deus tatildeo cruel a

ponto de matar toda uma tribo atraveacutes da gripe ou da variacuteola para mostrar que

esse Deus deveria ser louvado

Natildeo eacute por viverem em proximidade material ou por trabalharem pelo

mesmo fim comum que se pode dizer que um indiviacuteduo vive em comunidade eacute

necessaacuterio que se possua o conhecimento desses fins comuns sejam eles seus

deuses seu governo seus costumes e seus anseios Isso sim forma uma

comunidade Uma comunidade eacute aquela que vive no mesmo mito mito esse que

lhe explica a vida natildeo explicaacutevel

18

Toda comunicaccedilatildeo eacute educativa pois receber comunicaccedilatildeo receber

educaccedilatildeo eacute adquirir experiecircncia que viraacute a modificar seu modo de vida Quando o

modus faciendi de um indiviacuteduo modifica o modus vivendi de sua comunidade ele

estaacute fazendo cultura ele estaacute educando Ensinar a caccedilar eacute educar ensinar a

danccedilar eacute educar fazer um indiviacuteduo receber um novo mito eacute educar assim

ensinar a roubar e a matar eacute tambeacutem educar fazer adorar a um novo deus

tambeacutem eacute educar

Quando se fala em educaccedilatildeo formal poreacutem estamos falando de como

examinar se as aptidotildees daquilo que foi passado de um indiviacuteduo para outro para

habilitaacute-lo a participar de forma melhorada de uma vida em comum Eacute na

educaccedilatildeo formal escolar que se verifica se essa habilidade atua realmente nessa

vida comunitaacuteria isto eacute se o indiviacuteduo estaacute adaptado e atuando na vida comum se

estaacute avaliando se os conhecimentos transmitidos foram eficientes e se verifica

ainda a eficaacutecia dessa transmissatildeo

A educaccedilatildeo formal em suma avalia a eficaacutecia daquilo que foi passado

em conteuacutedo programaacutetico e isso existia de alguma forma nas escolas de ler e

contar criada pelos jesuiacutetas no Brasil Colocircnia

No entanto nas sociedades tribais ou grupos sociais menos

desenvolvidos encontramos muito pouco de adestramento formal poreacutem

encontramos vivecircncias de ritos de passagem nos quais os mitos satildeo fortes

ferramentas dessa educaccedilatildeo que considero tambeacutem formal poreacutem natildeo seriada e

programada

19

Como ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas os jesuiacutetas

foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena a Liacutengua Geral

de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os conceitos de sua

cultura e de demonizar os conceitos da cultura indiacutegena

Novamente afirmo ter clara a interpenetraccedilatildeo de valores e as traduccedilotildees

desses valores em ganho e perda para ambos os lados no entanto tento mostrar

aqui a habilidade de Anchieta em utilizar a liacutengua indiacutegena como ferramenta de

catequese como uma forma de acesso e penetraccedilatildeo na educaccedilatildeo indiacutegena e da

possibilidade com isso da imposiccedilatildeo de conceitos da Europa seiscentista

Habilidade houve tambeacutem por parte desse jesuiacuteta quando criou atraveacutes

dos autos a experiecircncia vivida pelo indiacutegena durante os espetaacuteculos teatrais

substituindo ateacute mesmo a liacutengua falada por ideacuteias contidas na gestualiadade

conforme nos mostra os paracircmetros do teatro greco-romano3 base dos autos de

Anchieta O corar o sorrir franzir o cenho os movimentos expressivos eacute que

3 Pelo teatro greco-romano (CALLOIS 1985) a influecircncia aplicada agrave plateacuteia eacute a seguinte Morphos Eacute a relaccedilatildeo do ator com o espaccedilo cecircnico e com a plateacuteia pois Morphos eacute a regra eacute a forma e o teatro eacute o jogo de transformar Mimeacutesis Eacute a relaccedilatildeo do ator e da personagem com o prover a si mesmo pois Mimeacutesis eacute a miacutemica a representaccedilatildeo Define a bandeira o lado pelo qual se defende ou ataca personagem versus plateacuteia ator versus ator personagem versus personagem ator versus plateacuteia e personagem versus plateacuteia Agon Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a agressividade pois eacute o Agon o diaacutelogo a luta o estranhamento entre dois lados novamente personagem versus personagem personagem versus plateacuteia plateacuteia versus personagem Lusus Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o que alimenta pois Lusus eacute a ilusatildeo eacute o sonho Eacute onde se tem a ideacuteia de que quando o meu lado ganha ou perde quem ganha ou perde sou euIlinx Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a loucura onde Ilinx eacute a vertigem o risco o perigo de se ganhar ou perder na conta de personagem versus personagem ou personagem versus plateacuteia etc Aleacutea Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o material com o fiacutesico com os resultados na qual o Aleacutea o aleatoacuterio o randocircmico eacute o que natildeo nos permite saber quem vai ganhar ou perder a contenda Plateacuteia versus personagem personagem versus plateacuteia ou personagem versus personagem etc

20

realmente comunicavam as ideacuteias a serem transmitidas incluindo-se a formaccedilatildeo

espiritual profunda onde o mito e crenccedilas cristatildes tiveram uma grande participaccedilatildeo

na formaccedilatildeo e definiccedilatildeo do rol de atividades da comunidade que se formava a

partir daiacute

Devo considerar que a comunidade o meio social se envolve com o

meio ambiente e digo que educar eacute de certa forma um ato ecoloacutegico pois forccedila os

laccedilos de sangue a perpetuarem os comportamentos que deram certo Quem deu

certo na relaccedilatildeo brasis e portugueses Seria ecologicamente correto seguir os

costumes da Santa Feacute Catoacutelica afinal era tudo uma questatildeo de sobrevivecircncia

para o indiacutegena mesmo com interesses diferenciados daqueles eleitos pelos

colonizadores

Natildeo poderia considerar essa falta de interesse dos indiacutegenas pelas

coisas de Deus ou da Coroa como incapacidade para entender o que era Lei Feacute

ou Rei mas como uma imaturidade como uma capacidade a ser desenvolvida

Sendo a educaccedilatildeo vinda da cultura portuguesa originaacuteria de um

depositum

fechado e definido como correto o seu saber eacute necessaacuterio realmente

que o indiviacuteduo que aprende seja um recipiente dependente e plaacutestico pois aos

moldes da Filosofia escolaacutestica tudo o que se recebe se recebe aos moldes do

recipiente Os indiacutegenas eram esse recipiente

No entanto os indiacutegenas natildeo eram essa argila mole ao menos natildeo

todos pois muitos tensionamentos ocorreram antes da aceitaccedilatildeo dos novos

costumes impostos O homem se acostuma a qualquer situaccedilatildeo e se adapta a

qualquer meio ambiente mas muitas vezes antes que isso ocorra o desconforto

21

e a resistecircncia a aceitaccedilatildeo pura e simples ficam evidentes Essas resistecircncias

ficaratildeo mais claras no capiacutetulo mais adiante em que mostro como os indiacutegenas

teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde

Outro ponto importante a ser mostrado eacute quanto aos aldeamentos

jesuiacuteticos onde o iacutendio foi obrigado a uma adaptaccedilatildeo a essa citada aceitaccedilatildeo de

costumes Os jesuiacutetas concebiam que aquela sociedade deveria ser una pela

concepccedilatildeo de bons propoacutesitos fidelidade de interesses e reciprocidade de

simpatia mas o que ocorria na verdade era a necessidade de sobrevivecircncia

daqueles que jaacute natildeo eram mais iacutendios e natildeo conseguiram pela aculturaccedilatildeo

imposta serem tambeacutem brancos e portugueses onde a homogeneidade cultural

natildeo existiu e natildeo existe ateacute hoje nas tribos de nossa atualidade

Como afirma Dewey (1936 p132) uma sociedade indesejaacutevel eacute a que

interna e externamente cria barreiras para o livre intercacircmbio e comunicaccedilatildeo da

experiecircncia A comunidade dos aldeamentos criava barreiras para a comunicaccedilatildeo

da experiecircncia isto eacute o poder de poucos sobre o conhecimento posto sobre as

coisas e a manutenccedilatildeo desse poder a qualquer custo

Haacute que se entender que enquanto o portuguecircs do seacuteculo XVI trazia a

verdade revelada recebida atraveacutes de leis instaacuteveis isto eacute aquelas que podem ser

mudadas conforme a decisatildeo do grupo social que as criou os gentios seguiam

as leis estaacuteveis as lei naturais que os fazia pensar o conhecimento de forma

distinta de seus protetores A filosofia explica o mundo para o filoacutesofo que a

pensa respondendo agraves suas proacuteprias perguntas As respostas agraves perguntas do

filoacutesofo atendem aos anseios do grupo e da eacutepoca em que ele vive pois eacute a

22

resposta agraves perguntas de uma sociedade de uma cultura e se o conceito

persiste eacute porque persistem as perguntas na consciecircncia dessa sociedade

A verdade revelada era imposta pois era atraveacutes de um novo mito que

se dava o novo conhecimento ao gentio O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria

verdade 4 Essa era a nova experiecircncia em que o indiacutegena do seacuteculo XVI se

encontrava experiecircncia essa que para ter valor real deveria fazer os brasis se

afastarem da dor ou se aproximarem do prazer Soacute essas duas coisas movem um

indiviacuteduo no Universo a que pertence

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertencia em relaccedilatildeo agrave nova natureza apresentada foi necessaacuterio ao indiacutegena

criar uma linguagem que pudesse dar conta de transcrever sua realidade afinada

com seu proacuteprio conhecimento de mundo Um novo mito em que ele deveria

chamar o padre de pai e de salvador Natildeo havia para o indiacutegena a divisatildeo entre o

mundo real e o mundo miacutetico e sim um uacutenico olhar que se espalha em todas as

direccedilotildees de sua existecircncia atraveacutes de sua vida vivida e possiacutevel

Assim viviam suas vidas da forma que lhes foi possiacutevel entre um

arremedo de branco e uma caricatura de iacutendio

No homem o possiacutevel se imprime sobre o real5

4 GUSDORF 1959 p13 5 GUSDORF 1959 p15

23

Natildeo parece que esses homens chamados gentios tivessem o

interesse de descobrir o como do mundo real e sim usar dessa forma esteacutetica

para trabalhar com suas fantasias e esperanccedilas subjetivas isto eacute experienciar

O homem moderno atraveacutes de seu racionalismo sentiu aos poucos o

esfriamento de sua psique primitiva e por consequumlecircncia perdeu muitas de suas

ilusotildees pois natildeo mais entra em contato com suas experiecircncias que satildeo o conjunto

e de conhecimentos individuais ou coletivos especiacuteficos ou natildeo e que constituem

aquisiccedilotildees vantajosas que foram acumuladas historicamente por toda a

humanidade sejam elas miacuteticas ou racionais

Jung nos ensina em suas obras que estamos envolvidos por exemplo

com a experiecircncia de Deus de uma forma tatildeo profunda e universal que por mais

que venhamos a questionar esse mito ou essa crenccedila temos a imagem dessa

experiecircncia dentro de noacutes e por isso natildeo temos como acreditar ou deixar de crer

nessas imagens O mesmo acontecia com o Cristatildeo portuguecircs quinhentista mas eacute

claro e oacutebvio que essa experiecircncia era distinta para os indiacutegenas dessa eacutepoca

Por mais que se quisesse impor uma esteacutetica cultural deveriacuteamos perguntar

Tupatilde era um deus diferente de Deus ou a experiecircncia era a mesma

Mas o portuguecircs do Seacuteculo XVI que trazia em suas caravelas e

bagagens todos os conceitos culturais mitos e crenccedilas impotildeem aos brasis

paracircmetros novos de vida cumprindo a qualquer custo uma missatildeo heroacuteica de

semear a palavra de Deus pela Terra fazendo cumprir uma profecia dentro de

concepccedilotildees mentais riacutegidas inflexiacuteveis racionais e complexas

24

Viraacute o tempo em um futuro longiacutenquo em que o mar

Oceano quebraraacute as suas correntes e uma vasta terra seraacute revelada

aos homens quando um marinheiro audacioso como aquele que se

chamava Tifis e que foi o guia de Jasatildeo descobrir um novo mundo

entatildeo Thule (a Islacircndia) natildeo seraacute a uacuteltima das terras

LUCIUS ANNAEUS SEcircNECA Medeacuteia Seacuteculo I da era cristatilde6

As grandes descobertas trouxeram aos novos mundos anseios e

frustraccedilotildees sobre o imaginaacuterio portuguecircs e espanhol dos seacuteculos XV e XVI mas

tambeacutem a possibilidade de encontrarem o local onde Deus plantou o Paraiacuteso

Terrestre

o lugar onde a Divina Providecircncia havia plantado o

Paraiacuteso Terrestre mito essencial e fundamento doutrinaacuterio dos

mundos judaico-cristatildeo e mulccedilumano lugar inicial onde o Criador

havia decidido criar a espeacutecie humana7

A faccedilanha dessas descobertas tanto teacutecnica como humana carregava

dentro das caravelas a crenccedila de que os atores sociais dos descobrimentos

haviam encontrado o paiacutes das lendas o Paraiacuteso Terrestre o reino das Amazonas

as minas do Rei Salomatildeo as hordas impuras de Gog e Magog8 e o fabuloso

palaacutecio com telhados de ouro de Cipango9

6 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p15 7 idem p34 8 O vocaacutebulo Armagedon eacute composto de duas palavras Ar em hebraico significa Planiacutecie e Megiddo eacute uma localidade ao Norte da Terra Santa proacutexima ao monte Carmel onde antigamente Barrack derrotou os exeacutercitos comandados por Sisara e o profeta Elias e executou mais de quinhentos sacerdotes de Baal (Apo 1616 1714 Juizes 42-16 1 Reis 1840) A luz destes eventos biacuteblicos Armagedon simboliza a derrota das forccedilas anti-religiosas por Cristo Os nomes Gog e Magog no capiacutetulo 20 lembram as profecias de Ezequiel a respeito da invasatildeo de Jerusaleacutem por um nuacutemero indeterminado de regimentos sob o comando de Gog das

25

Acreditava-se entre os portugueses e espanhoacuteis que os mitos dessas

terras se encontravam agora agrave matildeo de quem navegasse de quem ousasse terras

longiacutenquas e enigmaacuteticas desvelar seus misteacuterios e atravessar o mare oceano

innavigabile Dessa forma muitas das histoacuterias fantasiosas que povoavam a

mente do europeu quatrocentista e quinhentista foram transferidas para as terras a

serem conquistadas e vieram juntamente com o mito cristatildeo com o Diabo dentro

das caravelas misturadas ao desejo de expansatildeo do comeacutercio e da busca de

riquezas povoando as sombras desses conquistadores

Apenas como lembranccedila os mitos agem sobre a mente humana de

forma a incitar accedilotildees e desencadear moldes de conduta de pensamento e de

sensibilidade Foi dessa forma portanto que os conquistadores partiram para suas

buscas Uma busca baseada no comeacutercio e expansatildeo sim mas de forma latente

na busca de seus mitos

Assim cada terra descoberta cada povo encontrado cada riqueza

desvelada era considerado de propriedade da natureza e por isso era de quem

encontrasse quer por pirataria quer por ordem de um reino quer passando a ser

propriedade de um rei como descendente direto do divino quer ad majorem Dei

gloriam mesmo que isso significasse um etnociacutedio de nuacutemeros altiacutessimos durante

terras de Magog (sul do mar Caacutespio Ezeq cap 38 e 39 Apo 207-8) Ezequiel atribui esta profecia aos tempos do Messias No Apocalipse o cerco dos regimentos de Gog e Magog ao local dos santos e da cidade eleita (ie da Igreja) e a destruiccedilatildeo destes regimentos pelo fogo Celestial deve ser entendida pela derrota total das forccedilas contraacuterias a Deus humanas e demoniacuteacas pela segunda vinda de Cristo (Obtida em http2112hpyollnetapocalipse2htm em 250405) 9 antigo nome da ilha do Japatildeo antes de conhecido pela Europa cristatilde

26

todo os anos quinhentistas conforme jaacute pude demonstrar em A destribalizaccedilatildeo da

Alma Indiacutegena Brasil Seacuteculo XVI uma visatildeo junguiana10

Obviamente essas faccedilanhas dos descobrimentos trouxeram ao Orbis

Christianus grande avanccedilo tecnoloacutegico no ramo dos transportes da navegaccedilatildeo e

do comeacutercio mas principalmente trouxeram o mais preciso conhecimento

geograacutefico e cartograacutefico do planeta de entatildeo cujos mapas por mais atualizados

que estivessem baseavam-se tatildeo somente na geografia biacuteblica da Idade Meacutedia

Era o Velho Mundo nos seacuteculos XV e XVI aacutevido de modernidade mas

persistia na mente dos portugueses e espanhoacuteis a impregnaccedilatildeo de mitos Existia

como produto social uma turva fronteira entre o real e o imaginaacuterio causada pela

verdade revelada das Escrituras Haacute que se entender que aqueles autores

primeiros que escreveram os primeiros livros sagrados estavam cercados de

desertos e de aacutereas inoacutespitas e tiveram a visatildeo de um local edecircnico como sendo

de feacuterteis terras de aacuteguas abundantes onde tudo nascia e crescia sob a matildeo de

um jardineiro celestial

Entatildeo plantou o Senhor Deus um jardim da banda do

oriente no Eacuteden e pocircs ali o homem que tinha formado E o Senhor

Deus fez brotar da terra toda qualidade de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e boas para comida bem como a aacutervore da vida no meio do jardim e

a aacutervore do conhecimento do bem e do mal

E saiacutea um rio do Eacuteden para regar o jardim e dali se dividia

e se tornava em quatro braccedilos O nome do primeiro eacute Pisom este eacute o

que rodeia toda a terra de Havilaacute onde haacute ouro e o ouro dessa terra eacute

bom ali haacute o bdeacutelio e a pedra de berilo O nome do segundo rio eacute

10 CARNOT 2005

27

Giom este eacute o que rodeia toda a terra de Cuche E o nome do terceiro

rio eacute Tigre este eacute o que corre pelo oriente da Assiacuteria E o quarto rio eacute

o Eufrates11

Mas tambeacutem proibiu apoacutes a expulsatildeo de Adatildeo o homem de encontrar

esse Jardim edecircnico

O Senhor Deus pois o lanccedilou fora do jardim do Eacuteden para

lavrar a terra de que fora tomado E havendo lanccedilado fora o homem

pocircs ao oriente do jardim do Eacuteden os querubins e uma espada

flamejante que se volvia por todos os lados para guardar o caminho

da aacutervore da vida12

Encontraram Vejamos um relato de Cristoacutevatildeo Colombo

Satildeo esses grandes indiacutecios do paraiacuteso terrestre porque

o lugar eacute conforme ao que pensam os santos e os sagrados teoacutelogos

E os sinais satildeo igualmente muito conformes pois jamais li ou ouvi

dizer que tamanha quantidade de aacutegua doce pudesse estar no meio

da aacutegua salgada ou na sua vizinhanccedila vem ainda em apoio a tudo

isso a temperatura extremamente agradaacutevel E se essa aacutegua natildeo vem

do Paraiacuteso seria ainda maior maravilha porque natildeo creio que se

conheccedila no mundo rio tatildeo grande e tatildeo profundo13

Chegaram a um local adacircmico sim com vegetaccedilatildeo abundante com

aacuteguas cristalinas e principalmente com um povo diferente daquele que o europeu

11 (Gecircnesis 2 8-14) 12 (Gecircnesis 3 23-24) 13 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p57

28

conhecia Talvez um arremedo do Jardim mas enfim um jardim bom para a

exploraccedilatildeo e bom para aumentar as almas do Tesouro de Cristo

Corpos diferentes e muitas vezes nus exuberantes como os indiacutegenas

da Ilha de Vera Cruz com miacutesticos costumes com lendas fabulosas poreacutem

distintas daquelas que o imaginaacuterio cristatildeo pudesse relatar Nem cinoceacutefalos14

nem hordas malditas mas guerreiros aguerridos em parte doacuteceis e prontos para

serem convertidos em ovelhas do Senhor em parte bravios e indispostos a serem

conquistados

Natildeo se pode numerar nem compreender a multidatildeo de

baacuterbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil

porque ningueacutem pode pelo sertatildeo dentro caminhar seguro nem

passar por terra onde natildeo ache povoaccedilotildees de iacutendios armados contra

todas as naccedilotildees humanas e assim como satildeo muitos permitiu Deus

que fossem contraacuterios uns dos outros e que houvesse entre eles

grandes oacutedios e discoacuterdias porque se assim natildeo fosse os

portugueses natildeo poderiam viver na terra nem seria possiacutevel

conquistar tamanho poder de gente15

Ou ainda

E satildeo muito inclinados a pelejar e muito valentes e

esforccedilados contra seus adversaacuterios e assim parece coisa entranha

ver dois trecircs mil homens nus de uma parte e de outra com grandes

assobios e grita frechando uns aos outros e enquanto dura esta

14 Homens com cabeccedila de catildeo seguidores dos guerreiros Gog e Magog que viriam no apocalipse acompanhando o Anticristo (citados em Apocalipse 20 7-8) 15 GAcircNDAVO1980p12)

29

peleja nunca estatildeo com os corpos quedos meneando-se de uma parte

para outra com muita ligeireza para que natildeo possam apontar nem

fazer tiro em pessoa certa algumas velhas costumam apanhar-lhes

as frechas pelo chatildeo e servi-los enquanto pelejam Gente eacute esta muito

atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vatildeo agrave guerra

sempre lhes parece que tecircm certa a vitoacuteria e que nenhum de sua

companhia haacute de morrer E quando partem dizem vamos matar sem

mais consideraccedilatildeo e natildeo cuidam que tambeacutem podem ser vencidos 16

Era muito comum poreacutem que o conquistador tivesse a visatildeo de que os

povos dessas terras receacutem descobertas os vissem como sendo de origem divina

Colombo assim contava

Disseram-se muitas outras coisas que natildeo pude

compreender mas pude ver que estava maravilhado com

tudo(diaacuterio 18121492) satildeo creacutedulos sabem que haacute um Deus no

ceacuteu e estatildeo convencidos de que viemos de laacute (diaacuterio

12111492) achavam que todos os cristatildeos vinham do ceacuteu e que o

Reino de Castela ali se encontrava e natildeo neste mundo(diaacuterio

16121492) 17

Ou como escrevia Noacutebrega em suas cartas

Todos querem e desejam ser Cristatildeos mas deixar seus

costumes lhes parece aacutespero Vatildeo contudo pouco a pouco caindo na

verdade18

16 idem p13 17 TODOROV 2003 P57 18 NOacuteBREGA 1988 p 114 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551

30

Os Gentios aqui vecircm de muito longe a ver-nos pela fama e

todos mostram grandes desejos Eacute muito para folgar de os ver na

doutrina e natildeo contentes com a geral sempre nos estatildeo pedindo em

casa que os ensinemos e muitos deles com lagrimas nos olhos19

Estatildeo espantados de ver a majestade com que entramos e

estamos e temem-nos muito o que tambeacutem ajuda 20

Falamos do europeu do portuguecircs e do espanhol poreacutem nosso foco

deve e estaacute voltado para o cristatildeo portuguecircs

Esse portuguecircs que no seacuteculo XVI tinha essa imaginaccedilatildeo fervilhante

cheia de conteuacutedos miacuteticos que possuiacutea um falar livre sem os rebuccedilos dos

letrados enfim o povo portuguecircs quinhentista que seguia leis severas de um

reino corporativo onde como nos diz Capistrano de Abreu (1907) As cominaccedilotildees

penais natildeo conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor

de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo e o

confisco de todos os bens 21

Toda a cultura da sociedade portuguesa quinhentista era estruturada

com referecircncia ao sagrado e aos preceitos da Santa Feacute Catoacutelica onde a presenccedila

ou onipresenccedila divina acontecia em toda e qualquer circunstacircncia em qualquer

situaccedilatildeo

19 NOacuteBREGA 1988 p 115-116 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551 20 NOacuteBREGA 1988 p 75 carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo 21 ABREU 1907-2004p46)

31

Essa organizaccedilatildeo cultural se dava sob a forma de um corpo social

definido como o Reino que se entrelaccedilava com outro corpo formado pela Igreja

onde qualquer mediaccedilatildeo seria feita por esses corpos sociais e em uacuteltima instacircncia

Deus era a referecircncia Paiva22 nos coloca que essa constituiccedilatildeo social se dava

como um corpo em graus superpostos o corpo social o corpo miacutestico de Cristo o

universo

Culturalmente a sociedade portuguesa do seacuteculo XVI se

caracterizava pela cimentaccedilatildeo religiosa de todo o seu fazer A uacuteltima

explicaccedilatildeo do por que as coisas eram tais quais eram estava na

religiatildeo ou seja na sua referecircncia ao sagrado O poder do rei a

organizaccedilatildeo da sociedade as instituiccedilotildees os valores os costumes

as expressotildees tudo enfim tinha sua razatildeo de ser na sacralidade tudo

tinha um caraacuteter religioso 23

Nada era questionado quanto a essa cultura religiosa pois tudo

absolutamente tudo o comeacutercio os estudos as conquistas todos ordenavam

seus esquemas atraveacutes da dogmaacutetica e da apologeacutetica religiosa onde se

chamava de Ciecircncia rainha de todas as rainhas a Teologia

Os valores os costumes a compreensatildeo de vida estava imersa no mito

cristatildeo onde a uacuteltima realizaccedilatildeo se daacute em Deus 24 mito que ao longo da Idade

Meacutedia europeacuteia se elaborou fundado na compreensatildeo de uma ordem uacutenica que

se funda em Deus do qual todas as instacircncias subordinadamente se plenificam

22 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura 23 PAIVA 2002 p 3 24 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura

32

assim se pondo25 garantindo ao Rei o direito a proeminecircncia e conquista e

sujeiccedilatildeo de qualquer povo de qualquer terra conquistada

Ficava assim mais faacutecil se compreender o Poder pois ele estaria

concebido fundado na Vontade de Deus e por consequumlecircncia na do Rei

O Rei era antes de tudo era aquele que dizia a justiccedila e o rei perfeito

era o juiz perfeito Que todo julgamento era pela vontade divina e que a boa

dinastia nunca gerava um mau rei e portanto um bom representante de Deus na

Terra

Poreacutem a necessidade de um bom reinado se fazia presente todo o

tempo dando ateacute mesmo possibilidades de trocas de reis por natildeo se cumprir um

bom reinado Era a forma de garantirem a permanecircncia no reinado ou a

legitimidade do golpe para assumir o reinado de outro principalmente se o anterior

regia sem competecircncia com tirania ou descaso Ao levantar essa situaccedilatildeo de

troca de rei ou de afirmar-se no reinado invocavam o Direito das Gentes 26

Dessa forma o direito tambeacutem sujeitava o Rei agraves leis leis essas que na verdade

ao receber a coroa jurou defender como nas Ordenaccedilotildees Afonsinas por

exemplo

Quando Nosso Senhor Deos fez as criaturas assim

razoaveis como aquellas que carecem de razom non quis que

fossem iguaes mas estabeleceo e hordenou cada hua sua virtude e

poderio de partidos segundo o grao em que as pocircs bem assy os

25 idem 26 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128

33

Reys que em logo de Deos na Terra som postos para reger e

governar o povo nas obras que ham de fazer assy de Justiccedila como

de graccedila ou mercees devem seguir o exemplo daquello que ele fez

e hordenou dando e distribuindo non a todos por hua guisa mais a

cada huu apartadamente segundo o gratildeo e condiccedilon e estado de

que for27

Essas mesmas Ordenaccedilotildees dividiam a sociedade em estratos os

defensores os que defendem o povo os que rogam pelo povo os oradores

dividindo ainda em estados limpos (letrados lavradores e militares) e estados vis

(oficiais mecacircnicos ou artesatildeos) e dos privilegiados (que pela miliacutecia ou pela Arte

se livraram das profissotildees soacuterdidas) 28

Em todo esse universo religioso eacute que estavam os fatos gerados por

seus atores sociais seus costumes seus ritos e siacutembolos suas vestimentas e

linguagem tudo fazendo a cultura do portuguecircs cristatildeo quinhentista

O pensamento social poliacutetico medieval eacute dominado pela

ideacuteia da existecircncia de uma ordem universal (cosmos) abrangendo os

homens e as coisas que orientava todas as criaturas para um objetivo

uacuteltimo que o pensamento cristatildeo identificava como o proacuteprio

Criador29

A sociedade portuguesa para a gloacuteria e satisfaccedilatildeo de um imaginaacuterio

eminentemente cristatildeo estaria no mundo para realizar os planos do Criador

portanto tudo e todos que natildeo pudessem caber na inquestionaacutevel obediecircncia e

27 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128 28 idem p132 29 idem p122

34

pertenccedila ao cristianismo somente poderiam ser avaliados como inferiores como

infieacuteis e hereges tal qual as bruxas os aacuterabes os judeus tatildeo mancomunados

com o Diabo

Chega entatildeo esse Portugal agraves Terras Brasiacutelicas com o espiacuterito avivado

com relaccedilatildeo aos sentimentos de cumprir a missatildeo de propagar a feacute cristatilde com um

intuito exorcista de eliminar os democircnios e fantasmas que atraveacutes de milecircnios

teriam povoado estes mundos remotos onde a forccedila de Deus se batia com as

artimanhas do Diabo e ocupada por seres infieacuteis e de praacuteticas pagatildes mas ligado

ao racionalismo portuguecircs que se desenvolvia prometia ainda essa terra o

fornecimento de material para exploraccedilatildeo e o comeacutercio

A convivecircncia do europeu com os nativos da Aacutefrica Aacutesia e

Ameacuterica significou para esses povos castraccedilatildeo e imposiccedilatildeo cultural

tal o etnocentrismo que a caracterizava tal a racionalidade que

conduzia sua poliacutetica tal sua forccedila militar30

Chegam entatildeo esses portugueses fedentos e escalavrados de feridas

de escorbuto31 com a intenccedilatildeo de transformarem indiacutegenas esplendidos de vigor e

beleza32 em querubins caciques em Guaixaraacute e jovens adolescentes em outros

tantos diabos pois que se defrontam com formas diferentes de amor de mundo

de vida e morte e acreditavam piamente que essa era uma forma diaboacutelica de

30 PAIVA 2002 p 46 31 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 32 idem

35

viver uma ofensa agrave obra de Deus na terra por isso natildeo podia deixar de ser banida

e extirpada como um tumor que ameaccedilava a Gloacuteria do Senhor 33

33 CARNOT 2005 p120

36

CAPIacuteTULO 1 - A EDUCACcedilAtildeO COMO TRANSMISSAtildeO DE CULTURA QUE ENSINA E ALTERA

COSTUMES

Durante o tempo de estudos e pesquisas desde os tempos de

mestrado por ter vindo de uma aacuterea de investigaccedilatildeo como a Psicologia parto do

princiacutepio que a conversatildeo e na educaccedilatildeo transmitida aos indiacutegenas houve

diversas falhas como jaacute pude mostrar em a Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

falhas essas que existiram pelas vivecircncias dos atores sociais em seu tempo e em

resposta a suas ansiedades Tenho constantemente pensado que entre essas

falhas qual a mais importante na educaccedilatildeo na conversatildeo e na catequese

Seria um erro didaacutetico Seria um erro baseado no depositum

da

verdade revelada onde o jesuiacuteta professava suas concepccedilotildees e conceitos

Seraacute que esse erro se encontra no indiacutegena no receptaacuteculo desse

depositum que talvez natildeo estivesse apto a recebecirc-lo

Gostaria de entender o ser humano como um portador de um vaacutecuo

Natildeo como uma tabula rasa mas como um vaacutecuo disponiacutevel a descobertas a

formas e cores a necessidades a curiosidades Seriam a curiosidade e a

necessidade o proacuteprio vaacutecuo

37

Parto desse ponto para afirmar que os vaacutecuos preacute-existem para que as

formas e conteuacutedos possam vir a existir O vaacutecuo eacute a Ideacuteia a Concepccedilatildeo Primeira

a Fecundaccedilatildeo Coacutesmica assim como Primeiro foi o Verbo

CG Jung nos diz que o inconsciente possui todos os materiais

psiacutequicos que existem na consciecircncia de um indiviacuteduo inclusive as percepccedilotildees

sublimais34 e principalmente aqueles materiais que natildeo alcanccedilaram o limiar da

consciecircncia mas que serviratildeo para que o indiviacuteduo receba tudo aquilo que poderaacute

advir com a aculturaccedilatildeo que viraacute a acumular em sua vida

A educaccedilatildeo seja ela a de transmissatildeo de cultura ou a educaccedilatildeo formal

escolar com a funccedilatildeo de nos colocar em focircrmas nos daacute preenchimento desse

vaacutecuo sem que faccedila entender a necessidade ou que nos permita buscar a

curiosidade de desvelar o veacuteu que cobre o universo das coisas as essecircncias O

homem somente aprende algo que sirva para atender sua curiosidade ou uma

necessidade

Assim eacute a educaccedilatildeo nos oferece importantes informaccedilotildees e conceitos

sem que nos provoque a busca

Em Les secrets de la maturiteacute Hans Carossa (Apud Bachelard-1990 p7)

diz o homem eacute a uacutenica criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior

34 sublimais

origem sublimaccedilatildeo = lat sublimatigraveooacutenis accedilatildeo de elevar exaltar pelo fr sublimation (1274) elevaccedilatildeo exaltaccedilatildeo (1856) accedilatildeo de purificar (1904) - modificaccedilatildeo da orientaccedilatildeo originalmente sexual de um impulso ou de sua energia de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade transformaccedilatildeo de um motivo primitivo e sua colocaccedilatildeo a serviccedilo de fins considerados mais elevados [A atividade religiosa artiacutestica e intelectual satildeo exemplos tiacutepicos de sublimaccedilatildeo

38

de outra A palavra vontade usada por Carossa me faz buscar outros conceitos

como desejo curiosidade afatilde tesatildeo necessidade Eacute essa vontade de olhar para

o interior das coisas que torna a visatildeo aguccedilada penetrante pronta para descobrir

uma intenccedilatildeo uma utilidade uma funccedilatildeo Eacute o violar o segredo tal qual uma

crianccedila que abre seu brinquedo para ver o que haacute dentro Noacutes adultos por falta de

memoacuteria de nossa infacircncia queremos atribuir esse abrir o brinquedo como uma

intenccedilatildeo destrutiva Mas a crianccedila o humano em noacutes busca ver aleacutem ver por

dentro em suma escapar a passividade da visatildeo 35

O homem aculturado educado olha para essa estrutura externa e

natildeo vecirc a profundeza do brinquedo mas a crianccedila possuidora de um vaacutecuo ainda

natildeo preenchido pela histoacuteria faz com o brinquedo o que a educaccedilatildeo natildeo sabe

fazer e a imaginaccedilatildeo realiza magistralmente seja como for descobre sua

profundidade sua substacircncia seu oculto

Capta a crianccedila imagens tatildeo numerosas tatildeo variaacuteveis e tatildeo confusas

que despertam cada vez mais as nuanccedilas sentimentais de sua curiosidade Toda

doutrina da imagem eacute acompanhada em espelho por uma psicologia do

imaginante 36

Assim encontro um dos enganos da educaccedilatildeo o natildeo preencher o

vaacutecuo humano com o desejo com a vontade e sim com o que as concepccedilotildees

adultas pensam ser importantes

35 BACHELARD 1990p8 36 idem

39

Mas se procurarmos outras falhas com relaccedilatildeo ao ensinar e ao

aprender esbarramos na filosofia que muitas vezes trabalha com essa busca da

profundidade das coisas de forma dogmaacutetica que tolhe brutalmente toda

curiosidade voltada para o interior das coisas 37 Para esses filoacutesofos da educaccedilatildeo

que assim pensam a profundidade das coisas eacute ilusatildeo que a crianccedila pergunta

mas que natildeo deseja realmente saber e que se lhe explicarem superficialmente

satisfaratildeo sua necessidade

Em verdade essas questotildees natildeo perturbam esses filoacutesofos Nessas

questotildees que a a educaccedilatildeo natildeo sabe fazer amadurecer a filosofia condena o

homem a permanecer como ele diz no plano dos fenocircmenos 38 Tudo natildeo passa

de aparecircncia Inuacutetil ir ver mais inuacutetil ainda imaginar mas se esquece que a

natureza esconde como funccedilatildeo primaacuteria da vida protege abriga guarda

reserva e esse interior tem funccedilotildees de trevas de guardar aquilo que a curiosidade

ou a necessidade necessitam iluminar

Magie uma personagem de Henri Michaux39 em um de seus conselhos

diz ponho uma maccedilatilde sobre a mesa Depois ponho-me dentro dessa maccedila Que

tranquumlilidade Flaubert40 dizia a mesma coisa a forccedila de olhar um seixo um

animal um quadro senti que eu estava neles

Somente o poeta e seus personagens sabem do interior das coisas

Natildeo poderia ser a educaccedilatildeo uma poesia

37 idem p9 38 idem p9 39 BACHELARD 1990 apud p11 40 BACHELARD 1990 apud p11

40

Francis Ponge41 busca o entender das coisas da seguinte forma

Proponho a todos a abertura dos alccedilapotildees interiores uma viagem na espessura

das coisas uma invasatildeo de qualidades uma revoluccedilatildeo ou uma subversatildeo

comparaacutevel agravequela operada pela charrua ou pela paacute quando de repente e pela

primeira vez satildeo trazidos agrave luz milhotildees de fragmentos lamelas raiacutezes vermes e

bichinhos ateacute entatildeo enterrados

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas natildeo me conta que por mais que mude

as peccedilas que satildeo sempre as mesmas estatildeo presas numa caixa A mim agrada

mais o microscoacutepio ou a luneta que satildeo instrumentos da curiosidade

A educaccedilatildeo conserva em si a manutenccedilatildeo da verdade revelada da

Idade Meacutedia onde natildeo se podia buscar o cerne das coisas acredita ainda hoje

que o cisne de esplendorosa brancura eacute todo negrume no interior

Essa

verdade medieval que permanece nos conceitos da escola do ensinar do

aprender teria sido quebrada atraveacutes de um pequeno e simples exame para

saber que o cisne natildeo eacute muito diferente em suas cores do interior do corvo

Se apesar dos fatos a afirmaccedilatildeo do negrume intenso do cisne eacute tatildeo amiuacutede

repetida eacute por satisfazer a uma lei da imaginaccedilatildeo dialeacutetica As imagens que satildeo

forccedilas psiacutequicas primaacuterias satildeo mais fortes que as ideacuteias mais fortes que as

experiecircncias reais 42

41 BACHELARD 1990 apud p10 42 BACHELARD 1990 p17

41

Como disse Jean Paul Sartre eacute preciso inventar o acircmago das coisas

se quisermos um dia descobri-lo

Natildeo sei se estou conseguindo passar ao leitor a total significacircncia da

ideacuteia do preenchimento do vaacutecuo atraveacutes de uma educaccedilatildeo que olhe para dentro

das coisas Quando falo de dentro das coisas natildeo estou com isso falando de

interior tatildeo somente mas da essecircncia do acircmago Veja este exemplo certa vez

caminhando com meu filho que tinha entatildeo quatro anos pelas ruas do bairro

onde resido ruas com terrenos vazios e onde se pode ter contato bastante grande

com a natureza pude brincar de investigar

Andaacutevamos por uma dessas ruas quando eu encontrei pegadas de um

cavalo Conhecendo esse espiacuterito de investigaccedilatildeo e da curiosidade que emana do

meu filho mostrei a ele as pegadas Imediatamente ele disse que legal vocecirc

descobriu essas pegadas do cavalo branco Perguntei como ele poderia saber a

cor do cavalo que havia passado por ali Sua resposta foi simples vamos seguir

as pegadas e a gente pode saber e eu estou certo Aceitei a proposta e saiacutemos

seguindo as pegadas Em alguns pontos onde a terra estava mais firme as

pegadas sumiam mas ele como toda sua curiosidade buscava novas evidecircncias

e encontrava as pegadas seguintes Andamos lentamente e olhando para o chatildeo

das ruas de terra por mais ou menos duas horas sem que ele desistisse ou

mostrasse sinais que natildeo mais se importava com a brincadeira Andamos

precisamente quatro quilocircmetros ateacute chegarmos a um local onde se localizam

algumas baias e laacute estavam alguns cavalos Havia um branco e ele se convenceu

e quase me convenceu tambeacutem de que estava certo

42

Esse vaacutecuo da curiosidade foi preenchido a perspectiva de intimidade

da coisa do evento mostrou um interior maravilhoso um interior esculpido de

fantasias da mesma forma que se abrisse um geodo e um mundo cristalino

houvesse sido revelado

Eacute dessa qualidade de vaacutecuo que falo e que a educaccedilatildeo natildeo eacute capaz de

preencher natildeo por falta de conteuacutedo ou de forma mas da maneira de trabalhar a

curiosidade e a necessidade Natildeo basta a natureza conter formas incriacuteveis na

moleacutecula da aacutegua ou no floco de neve conter eflorescecircncias arborescecircncias e

luminescecircncias se natildeo for possiacutevel dar o desejo dessas descobertas Repito a

educaccedilatildeo natildeo sabe fazer isso mas a imaginaccedilatildeo faz com perfeiccedilatildeo a alquimia

das descobertas

Jung fala da alquimia em seus estudos ligando o sonho da

profundidade das substacircncias43 agrave busca do self atraveacutes do mergulho no

inconsciente Se o alquimista fala do mercuacuterio ele pensa exteriormente no

argento vivo mas ao mesmo tempo acredita estar diante de um espiacuterito escondido

ou prisioneiro da mateacuteria

44

A curiosidade eacute como um sonho de descoberta das virtudes secretas

das substacircncias ao tentar descobrir pela curiosidade ou pela necessidade a

essecircncia das coisas eacute como sonhar como o secreto em noacutes Os maiores

43 No aristotelismo e na escolaacutestica realidade que se manteacutem permanente sob os acidentes muacuteltiplos e mutaacuteveis servindo-lhes de suporte e sustentaacuteculo aquilo que subsiste por si com autonomia e independecircncia em relaccedilatildeo agraves suas qualificaccedilotildees e estados Algo que estaacute aleacutem sob as aparecircncias 44 cf JungPsychologie und Alchemie p399 apud Bachelard p 39

43

segredos de nosso ser estatildeo escondidos de noacutes mesmos estatildeo no segredo de

nossas profundezas 45

Eacute exatamente a partir da curiosidade sobre essas essecircncias sobre

essa alquimia que pesquiso meu trabalho em Educaccedilatildeo Histoacuteria e Cultura Minha

tese vem responder a esse meu anseio entender o mito que fazia com que

homens saiacutessem do conforto de seus lares ou mosteiros para conquistarem terras

novas e imporem seus dogmas a povos cuja explicaccedilatildeo da vida estavam

baseadas em outros mitos

Vejo o mito como um sistema de conhecimento velado poreacutem mesmo

assim exaustivo do inefaacutevel e do divino Eacute o mito a curiosidade aliada agrave

necessidade da explicaccedilatildeo de si e sua relaccedilatildeo individual com o Universo

Acontece poreacutem que a catequese a imposiccedilatildeo de cultura a educaccedilatildeo

negam a individualidade do homem negam seus vaacutecuos e seus mitos gerando

vaacutecuos novos e que natildeo podem ser preenchidos com aquilo que existe na verdade

daquele que foi conquistado O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria verdade

46

Negar essa individualidade eacute um absurdo e a crianccedila sabe disso O

homem por mais que natildeo queira aceitar pois tenta se proteger de sua

incapacidade de buscar as essecircncias tem pleno conhecimento que a consciecircncia

eacute individual que a busca eacute individual que a curiosidade eacute individual e que ela faz

parte da substacircncia e da coisa em si

45 Bachelard p39 46 GUSDORF 1959 p13

44

Mas para o homem quando despido de suas aculturaccedilotildees e carapaccedilas

de defesas contra suas emoccedilotildees a coisa em si precisa ser explicada O que lhe

resta entatildeo eacute estruturar essa explicaccedilatildeo sob a forma de representaccedilatildeo Para

representar colhe do externo e divino e interioriza tal representaccedilatildeo em sua

essecircncia Novamente o mito eacute criado

Em todo o tempo de bancos escolares infelizmente natildeo tive a atenccedilatildeo

que poderia ter em relaccedilatildeo agrave mitologia Tive uma ideacuteia precaacuteria de tal assunto que

natildeo me mostrou quanto essa forccedila criadora que norteou o rejuvenescimento

constante dos mitos na esfera grega assiacuteria egiacutepcia e como essa atividade do

espiacuterito antigo agia de modo essencialmente poeacutetico e artiacutestico da mesma forma

que para o homem moderno tem a ciecircncia contribuiacutedo para nossa evoluccedilatildeo

Assim novamente digo que a questatildeo a ser respondida com esta

pesquisa eacute de como vivia o povo indiacutegena com essa experiecircncia que chamo o

mito de Deus quer fosse o Deus Cristatildeo quer fosse o deus ntildeande ru Pa-Pa

Tenodeacute47

Por isso o objeto a ser trabalhado nesta tese eacute o mito como

instrumento educacional de transmissatildeo de cultura fazendo uma anaacutelise de como

o mito cristatildeo era entendido pelos portugueses e jesuiacutetas no seacuteculo XVI e imposto

violentamente aos indiacutegenas desse mesmo tempo

A pesquisa desta temaacutetica buscaraacute a relaccedilatildeo do mito cristatildeo em uniatildeo

com mitos e lendas do povo aacuterabe invasor da peniacutensula ibeacuterica aleacutem dos mitos e

47 Em liacutengua ancestral Tupi o abantildeeenga significa nosso Pai Primeiro

45

lendas oriundas do oceano inavegabile por ocasiatildeo dos descobrimentos quando

marinheiros narravam histoacuterias fantaacutesticas de Homens-cavalo homens

gigantescos de um uacutenico peacute ciclopes e amazonas e outros mitos do mirabilis no

mundo conhecido do seacuteculo XVI de encontrar as diferenccedilas e semelhanccedilas com

os mitos europeus

Pesquisar ainda o mito como instrumento educacional de transmissatildeo

de cultura atraveacutes da narrativa da educaccedilatildeo falada e contada amplamente

utilizada pela pedagogia jesuiacutetica que utilizou todos os conceitos tanto de mitos

como de pecados e tabus para catequizar e converter os indiacutegenas agrave Santa Feacute

Catoacutelica

Essa eacute minha busca atraveacutes da curiosidade mostrar que a educaccedilatildeo soacute

poderaacute ser eficaz no momento em que trabalhar com os mitos os mitos do

descobrir os mitos de desvelar o mito do vaacutecuo

46

CAPIacuteTULO 2 - O MITO

No atual quadro do desenvolvimento cientiacutefico eacute cada mais comum se

falar em interdisciplinariedade conceito que traduz um modo novo de lidar com

os objetos de estudo com os planos teoacuterico e metodoloacutegico da pesquisa e

especialmente com o papel do cientista diante do universo que busca

compreender eou explicar

Tendo como coadjuvantes conhecimentos que vatildeo da Psicanaacutelise agrave

Antropologia e agrave Arte da Sociologia agrave Filosofia e agrave Histoacuteria os estudos em

Educaccedilatildeo fazem um percurso que recoloca a questatildeo epistemoloacutegica do proacuteprio

estatuto da ciecircncia de transmissatildeo de cultura

Onde buscar respostas

Como opccedilatildeo de caminho busquei as respostas na ontologia claacutessica e

no mito como bases como alicerces do que pretendo construir no que tange agrave

Educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura

O mito foi quase sempre considerado o produto de uma forma de

conhecimento do mundo dos fatos de conhecimento do mundo dos fatos naturais

e sobrenaturais organizada de modo alegoacuterico a ponto de mostrar poeticamente

a relaccedilatildeo entre homem e universo ou um modelo um arqueacutetipo que mesmo

47

mudando de vez em quando de acordo com conteuacutedos histoacutericos e geograacuteficos

peculiares tem sempre a mesma estrutura formal ligada ao mecanismo de

funcionamento da psique humana ou enfim um meacutetodo religioso de aproximaccedilatildeo

da concepccedilatildeo sagrada da existecircncia em que o mito eacute tido como um sistema de

conhecimento velado poreacutem mesmo assim exaustivo do inefaacutevel e do divino

Natildeo importa se o mito define o iniacutecio do mundo ou o mundo define o

iniacutecio do mito O que importa enfim eacute que o mito nasce com o humano pois tudo o

que existe no mundo eacute visto sob o olhar do humano

Tendo esse homem um pecado original como faz parte da nossa cultura

ou uma forma original de ter vindo ao mundo como a partir do caos ou da

escuridatildeo todos os humanos reconhecem sua identidade atraveacutes da natureza e

das coisas humanas

Durante toda sua vida os homens que satildeo igualmente homens

nascem de uma mesma forma e morrem de uma mesma forma no entanto natildeo

soacute com caracteriacutestica fiacutesicas diferentes natildeo soacute com valores diferentes com

definiccedilotildees espirituais diferentes com mitos diferentes mas todos explicam essas

igualdades e diferenccedilas atraveacutes do mito

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida

O ser humano natildeo nasce com papeacuteis em branco como uma tabula rasa

ao contraacuterio estava preparado para as experiecircncias da vida humana do mesmo

48

modo que os paacutessaros estavam de maneira inata prontos para construir ninhos

ou a fecircmea da tartaruga marinha estava preparada para retornar ao local onde

nasceu para laacute botar os proacuteprios ovos Mas algumas muitas das situaccedilotildees tiacutepicas

do homem relativas agrave condiccedilatildeo humana satildeo representadas pelos mitos

apreendidos e esses mitos datildeo ao homem a predisposiccedilatildeo para experimentar os

conceitos de matildee pai filho Deus Grande Matildee velho saacutebio nascimento morte

renascimento separaccedilotildees rituais de cortejo casamento e assim por diante

O mito se forma sob as caracteriacutesticas de imagens primordiais de fatores e

motivos que coordenam os elementos psiacutequicos do homem que soacute podem ser

reconhecidos como formadores do mito apoacutes terem efeito na vida do homem

Dessa forma os conteuacutedos miacuteticos pertencem agrave estrutura psiacutequica dos

indiviacuteduos enquanto possibilidades latentes tanto como fatores bioloacutegicos

como histoacutericos

48

Os mitos natildeo se difundem apenas pela tradiccedilatildeo linguagem ou migraccedilatildeo

Eles podem surgir de forma espontacircnea em qualquer tempo ou lugar sem serem

influenciados por transmissatildeo externa Pode-se considerar portanto que em cada

psique existem verdadeiras prontidotildees vivas ativas que embora inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico Essas imagens de

prontidatildeo satildeo imagens arquetiacutepicas que na mente consciente desenvolvem um

jogo entre as realidades interna e externa do homem que sofre pressatildeo pessoal e

cultural do tempo e do lugar em que estatildeo inseridas

48 JACOBI 1991 paacuteg39

49

Por esse motivo o mito eacute normalmente milenar e universal ao grupo

social em que atua eacute parte do inconsciente coletivo pois satildeo disposiccedilotildees

herdadas pela humanidade Manifesta-se ou produz imagens e pensamentos Os

conteuacutedos do inconsciente pessoal satildeo aquisiccedilotildees da existecircncia individual ao

passo que os conteuacutedos do inconsciente coletivo satildeo arqueacutetipos que existem

sempre e a priori

A definiccedilatildeo de mito eacute basicamente a concepccedilatildeo de homem

plenamente relacionado com tudo o que existe em seu contorno O homem eacute o

todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias arquetiacutepicas que todos

os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo individual e possuindo

caracteriacutesticas uacutenicas

Essa eacute a relaccedilatildeo maacutegica do mito O homem crecirc que vai chover para

molhar sua plantaccedilatildeo e realmente chove Chove por condiccedilotildees climaacuteticas mas

para o homem envolvido no mito chove porque os deuses assim o permitiram

natildeo soacute para ele mas para aqueles que juntamente com ele vivem o mito Dentro

do mito o homem opera sobre o existente e sobre sua consciecircncia de mundo No

mito o homem vive dentro e fazendo parte do todo natildeo como uma soma de

partes mas como uma parte representando o todo

Ontologicamente o mito traz consigo a missatildeo de mostrar em termos

gerais a existecircncia do ser natildeo deste ou daquele ser concreto mas do ser em

geral pois o homem sempre buscou e buscaraacute as respostas de quem eacute de onde

vem para onde vai se eacute que vai para algum lugar ou condiccedilatildeo

50

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertence foi necessaacuterio ao homem criar uma linguagem que pudesse dar

conta de transcrever sua realidade afinada com seu proacuteprio conhecimento de

mundo

No entanto sempre foi tarefa impossiacutevel tanto ao homem primitivo

como ao homem da modernidade definir o que eacute o homem o que eacute o ser ou

mesmo quem ele eacute

Cada vez que tentamos definir o homem como um ser deparamos com

outros conceitos a serem elaborados pois a cada qualidade de homem a cada

origem cultural ou geograacutefica de cada eacutepoca os conceitos se modificam as

definiccedilotildees se tornam mais errocircneas caso se tente colocar o homem dentro de um

soacute conceito

Claro que sabemos o que eacute o homem claro que o homem conhece a si

mesmo poreacutem ao perceber-se diante do outro diante de desejos e anseios tatildeo

diferentes entre si associados a coisas tatildeo distintas se obriga novamente a uma

anaacutelise de si e do todo

Eacute nesse anseio que o homem se pergunta quem eacute natildeo deixando de

perguntar quem eacute o outro na relaccedilatildeo de troca de parceria de mutualidade

O mito do homem necessita demonstrar essa origem e esse fim

escatoloacutegico49

49 Da escatologia doutrina que trata do destino final do homem e do mundo pode apresentar-se em discurso profeacutetico ou em contexto apocaliacuteptico

51

Necessita o homem agregar valor agraves definiccedilotildees quer com objetos que

se agregam dando qualidade agraves coisas quer transformando os objetos ideais em

personificaccedilotildees

A fortaleza do deus sol era construiacuteda sobre esplecircndidas

colunas e brilhava coberta de reluzente ouro e rubis flamejantes O

frontatildeo superior era emoldurado por marfim alvo e brilhante e os

portotildees duplos eram de prata ornamentados com impressionantes

relevos esculpidos por Hefaiacutestos representando a terra o mar e o ceacuteu

com seus habitantes50

Heacutelio vestido com um manto de puacuterpura estava sentado

sobre o seu trono ornamentado com esmeraldas Agrave sua direita e agrave

sua esquerda estava o seu seacutequumlito o Dia o Mecircs o Ano o Seacuteculo e

as Horas Do outro lado a Primavera com sua coroa de flores o

Veratildeo com suas espigas de cereais o Outono com uma cornucoacutepia

cheia de uvas e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve51

Sem que se fique preso a definiccedilotildees religiosas de uma ou outra crenccedila

necessita ainda o homem buscar respostas atraveacutes dos mitos que possam

confirmar sua percepccedilatildeo de mundo Eu existo o mundo existe os deuses

existem e as coisas existem Mas existem sem mim Existem independentes de

minhas representaccedilotildees Ao perceber-se distinto ao olhar o outro ao reconhecer-

se em outro o homem miacutetico percebe existirem definiccedilotildees diferentes para o ser

50 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 51 idem

52

em si mesmo e o ser o outro o que sugere as relaccedilotildees e o obriga a entrar em

contato com o real e suas representaccedilotildees de mundo e suas explicaccedilotildees para

esse mundo

Esses dois significados equivalem a estes outros dois a

existecircncia e a consistecircncia A palavra ser significa tambeacutem consistir

ser isto ser aquilo Quando perguntamos que eacute o homem Que eacute a

aacutegua Que eacute a luz Natildeo queremos perguntar se existe ou natildeo existe

o homem se existe ou natildeo existe a aacutegua ou a luz Queremos dizer

qual eacute a sua essecircncia Em que consiste o homem Em que consiste

a aacutegua Em que consiste a luz 52

Dessa forma para que uma estrutura mental possa ser montada o

homem tentaraacute buscar no mito a essecircncia de sua vida do porquecirc do sol e de

como surgiu do porquecirc das chuvas da boa e da maacute colheita da boa e maacute sorte na

caccedila do existir do dia e da noite e mesmo depois de cientificamente ter certezas

de suas definiccedilotildees guarda dentro de si sob a forma do pensamento da crianccedila o

homem primitivo que crecirc e vive o mito O mito da essecircncia da origem no divino e

da busca de sua existecircncia

Honrado pai na terra todos me ridicularizam e respondem

minha matildee Cliacutemene Afirmam ser falsa a minha origem divina

dizendo que sou filho bastardo de um pai desconhecido Eacute por isso

52 MORENTE 1930 62

53

que estou aqui para pedir-lhe um sinal que prove a todos na terra que

sou seu filho 53

Cria entatildeo o homem um mito para mostrar sua existecircncia pois o mito

eacute a proacutepria representaccedilatildeo do real natildeo estando fora da realidade e sim formulando

um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a accedilatildeo 54 Natildeo se

pode encarar o mito como constituiacutedo de um puro e simples pensar de forma

fabulosa anaacuteloga ao sonho ao devaneio ou agrave poesia

A consciecircncia miacutetica desenha a configuraccedilatildeo do primeiro

universo 55

A imagem do mundo desenhada por essa consciecircncia miacutetica pela

consciecircncia da essecircncia do ser e sua existecircncia se afirma e se reafirma atraveacutes

de uma paisagem do grupo social paisagem esta que natildeo se prende somente a

uma configuraccedilatildeo geograacutefica ou mesmo fiacutesica mas envolvida por uma visatildeo moral

e espiritual do povo

A filosofia ao descobrir no caminhar das estrelas a mesma exigecircncia

do bater do coraccedilatildeo do homem reconhece nos milecircnios da evoluccedilatildeo social e

humana o primeiro desenho dos universos feito pelo homem primitivo sem saber

53 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 54 GUSDORF 1960 22 55 GUSDORF 1960 51

54

que em verdade jaacute sabia a diferenccedila entre a fiacutesica e a metafiacutesica Eacute proacuteprio do

mito pois dar sentido ao universo 56

Poreacutem o homem miacutetico se depara com outra pergunta por que somos

tatildeo distintos Porque os seres possuem qualidades diferentes que os transforma

em outros Se todos tecircm a mesma origem no divino e se os deuses satildeo como

satildeo por que criaram nos seres tantas diferenccedilas

Entende o homem que independente de sua percepccedilatildeo de universo e

as explicaccedilotildees que pode dar sobre deuses sobre as horas e sobre os tempos e

as colheitas ainda havia que tentar evidenciar as diferenccedilas e as qualidades das

coisas chamadas por ele de seres

A carruagem descia cada vez mais e passado um instante

jaacute estava perto de uma montanha O solo entatildeo se abriu por causa do

calor e como todos os liacutequidos secassem subitamente comeccedilou a

arder As pastagens ficaram amarelas e murchas as copas das

aacutervores das florestas incendiaram-se logo o fervor chegou agrave planiacutecie

queimando as colheitas incendiando cidades paiacuteses inteiros ardiam

com sua populaccedilatildeo Picos florestas e montanhas estavam em

chamas e foi entatildeo que os povos da Etioacutepia ficaram negros A Liacutebia

tornou-se um deserto57

Os seres possuem qualidades que agregam valores a esses seres

Definem as diferenccedilas de haacutebitos de raccedilas de culturas de deuses a serem

adorados e democircnios a serem rechaccedilados de bem e mal de batalhas de povos a

56 GUSDORF 196052 57 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005

55

serem dominados ou convertidos de deuses de conquistadores que se

transformam em democircnios para os povos conquistados Que fazem ricos

imperadores serem deuses e pobres escravos mortais

Onde estaratildeo essas explicaccedilotildees No topos ouran s58 Nos mundos

sensiacutevel e inteligiacutevel definidos por Parmecircnides Por Soacutecrates por Platatildeo ou

Aristoacuteteles

O homem miacutetico necessita mostrar que os sentidos o espetaacuteculo

heterogecircneo do mundo com seus variados matizes natildeo eacute o verdadeiro ser mas

antes eacute um ser posto em interrogaccedilatildeo eacute um ser problemaacutetico que necessita

explicaccedilatildeo 59 explicaccedilatildeo sobre as coisas sensiacuteveis e por traacutes delas o intemporal e

o eterno

O mito poderia ser considerado como a arquitetura do universo

desenhado pelo homem Tudo estaacute diante de noacutes todas as coisas estatildeo exposta e

noacutes tambeacutem fazemos parte dessa multiplicidade de coisas que compotildee e

constituem o real

O que se pode afirmar no entanto eacute que atraveacutes do mito o homem se

relaciona com o outro pensa os deuses vive e conhece as relaccedilotildees da

comunidade que habita Define tarefas coletivas e individuais na defesa e na

guarda da comunidade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

58 O mundo dos deuses Tambeacutem chamado de topos noet s o mundo das ideacuteias 59 MORENTE 1930 97

56

A relaccedilatildeo com o coletivo serve agraves necessidades bioloacutegicas de alimento

de si e da prole da procriaccedilatildeo e da guarda do patrimocircnio geneacutetico mas serve

tambeacutem para atender com base numa estrutura psiacutequica ao espiacuterito em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal Para Hollis (1998) Quem

a pessoa eacute define-se em parte por de quem ela eacute

a quem ou com qual

propoacutesito estaacute comprometida

Nas sociedades em que possa haver um colapso de um mito central se

esvai a essecircncia psicoloacutegica preciosa O homem perde o sentido de seus

conteuacutedos miacuteticos e se reativam seus conteuacutedos primitivos onde os valores

diferenciados satildeo substituiacutedos pelos elementos de poder e prazer em uma minoria

e expondo as outras camadas ao vazio e ao desespero

O mito central eacute de tatildeo vital importacircncia que sua perda acarreta uma

situaccedilatildeo apocaliacuteptica quebrando-se o ciacuterculo maacutegico em que o homem estaacute

inserido rompendo-se a relaccedilatildeo do ego com seu criador tendo esse indiviacuteduo que

perguntar novamente e seriamente qual o sentido da vida Natildeo haacute sentido na

vida pois a vida deve ser vivida e natildeo sentida no entanto isso soacute pode ocorrer e

as perguntas serem feitas se o ciacuterculo miacutetico estiver circundando a existecircncia do

homem

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de

nossa anguacutestia individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de

um novo mito central vai resolver o problema para o indiviacuteduo e para

a sociedade60

60 EDINGER 1999 p11

57

Se o mito natildeo eacute a proacutepria ontologia a proacutepria metafiacutesica61 eacute com

certeza a saga do heroacutei chamado ser humano em sua luta ontogocircnica62 Esse

heroacutei miacutetico usa suas armas para viver a vida a ser vivida Usa suas quatro armas

o saber o ousar o querer e o calar para tal qual Faetonte obter a resposta do

deus criador mesmo que tombe em combate na luta contra a finitude humana

Faetonte com os cabelos em chamas caiu como uma

estrela cadente E o rio Poacute recebeu sua carcaccedila carbonizada ante o

olhar estupefato de seu pai As naacuteiades daquela terra depositaram

seu corpo num tuacutemulo e nele gravaram o seguinte epitaacutefio

Aqui jaz Faetonte Na carruagem de Heacutelio ele correu E

se muito fracassou muito mais se atreveu

A finitude humana vem da mesma origem da ideacuteia de universo uma

noccedilatildeo adquirida recebida como heranccedila cultural atraveacutes de sucessivas

descobertas determinaccedilotildees e invenccedilotildees promovidas pelo homem tal qual sua

noccedilatildeo de espaccedilo e de tempo

O homem primitivo natildeo vecirc o espaccedilo como algo simplesmente

continente mas como um lugar absoluto Natildeo eacute o espaccedilo ou o tempo tidos como

61 metagrave tagrave physikaacute

metafiacutesica

aleacutem das coisas fiacutesicas - estudo do ser enquanto ser e especulaccedilatildeo em torno dos primeiros princiacutepios e das causas primeiras do ser 62 ntos ente - Ontogonia Histoacuteria da produccedilatildeo dos seres (entes) organizados sobre a Terra

58

racionais ou funcionais mas como partes estruturais de uma realidade criando a

definiccedilatildeo de um acontecimento de um acircmbito63

Esse contato com o universo com a finitude e com o espaccedilo miacutetico eacute o

proacuteprio princiacutepio da experiecircncia o sentido de realidade envolvida e revestida com

siacutembolos figuras intenccedilotildees humanas sejam agradaacuteveis ou desagradaacuteveis gentis

ou aversivas com o sagrado ou o profano enfim a proacutepria experiecircncia da

realidade humana

Poreacutem o espaccedilo miacutetico primitivo ou mesmo das sociedades claacutessicas

tinham seu espaccedilo vital como o altar o espaccedilo do sagrado onde esse espaccedilo

miacutetico eacute o o verdadeiro ponto de apoio de seu pensamento porque eacute o ponto de

apoio do mundo social e do mundo espacial

64 Por esse motivo o homem miacutetico

organiza seu espaccedilo vital em torno ao redor do espaccedilo sagrado espaccedilo esse

natildeo um marco de uma existecircncia possiacutevel mas sim como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute sentido pois ali moram seus deuses moram seus

mortos seus pensamentos e desejos

Eacute nesse espaccedilo miacutetico o espaccedilo sagrado que o homem realiza seus

rituais para uma boa marcha pelo mundo eacute a aiacute que faz suas suacuteplicas realiza

seus sacrifiacutecios e sua magia propiciatoacuteria onde suas forccedilas vitais se encontram e

se concentram

Dessa forma o homem miacutetico tem deve e precisa estar sempre em

contato com seu espaccedilo tempo e acircmbito onde se encontra o outro e com ele vive

63 GUSDORF 1959 64 GUSDORF 1959 p55

59

o grupo social pois fora dessa relaccedilatildeo tecida com o grupo social o homem

reduzido a si mesmo estaacute aniquilado pois perdeu seu lugar ontoloacutegico e as

referecircncias que lhe outorgavam figura e equiliacutebrio 65 E assim encontra a morte

mesmo que no sentido figurado pois morrer miticamente eacute a cessaccedilatildeo das

relaccedilotildees com o grupo social O morto o defunto eacute aquele que se livrou de suas

obrigaccedilotildees frente agrave comunidade

66 que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

(defuncto)

Vejamos o pensamento de Jung67

Mal terminei o manuscrito quando me dei conta do que

significa viver com um mito e o que significa viver sem ele [O

homem] que pensa que pode viver sem mito ou fora dele como

algueacutem sem raiacutezes natildeo tem nenhum viacutenculo verdadeiro nem com o

passado ou com a vida ancestral que continua dentro dele nem com

a sociedade humana contemporacircnea Esse seu brinquedo racional

nunca capta o lado vital

Nesse espaccedilo miacutetico eacute que se encontra o sagrado e esse sagrado eacute

tudo aquilo que se encontra sob os olhos do homem

Diz Gusdorf

65 Gusdorf1959p92 66 Gusdorf1959p92 67 apud Rollo May 1992p47

60

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao

ser toda sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da

comunidade pelo viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem

vivente a terra as coisas os seres e ainda os mortos que continuam

frequumlentando a morada de sua vida68

Viver no espaccedilo miacutetico eacute viver no sagrado pois o lugar natildeo eacute mais um

lugar e sim onde a vida acontece Ali estatildeo seus deuses suas forccedilas espirituais

os antepassados a vida o alimento etc

Os portugueses do Seacuteculo XVI ao virem para o Brasil trouxeram

consigo seu espaccedilo miacutetico e necessitaram sacralizar o novo territoacuterio construindo

imediatamente apoacutes sua chegada capelas casas ao seu estilo locais de

reuniotildees aleacutem de cristianizar o espaccedilo em que viveriam O espaccedilo eacute uma das

expressotildees da concepccedilatildeo de vida do homem da cultura do homem das relaccedilotildees

sociais Gostaria de afirmar que todos os povos desde o iniacutecio dos tempos tecircm

seu espaccedilo sagrado quando natildeo todo ele

No mundo miacutetico tudo eacute miacutetico natildeo soacute o homem a natureza eacute miacutetica

as pessoas a floresta a chuva o mar e as mareacutes os astros cada qual com sua

funccedilatildeo cada qual com sua participaccedilatildeo mas tudo fazendo parte do universo do

homem miacutetico Se desejarmos por esse motivo ver atraveacutes da razatildeo a loacutegica

disso natildeo conseguiremos pois o sentido do mito ou da vida natildeo existem pois a

vida como nos diz Campbell natildeo tem sentido pois vida natildeo eacute para ser sentida e

68 GUSDORF1959 p55-56

61

sim para ser vivida assim como natildeo eacute justa natildeo eacute certa pois eacute soacute vida e natildeo

justiccedila ou certezas

O mundo eacute um processo daquilo que creio diz o homem miacutetico Pedir

ao homem miacutetico que explique o mundo eacute o mesmo que pedir ao peixe para

explicar a aacutegua em que nada O ser miacutetico talvez tenha uma compreensatildeo mais

profunda da vida sem permitir o questionamento da racionalidade pois explicar o

miacutetico eacute saber que tudo eacute uma presenccedila real

O homem racional atende suas necessidades atraveacutes de possibilidades

conhecidas O homem miacutetico reconhece que o mundo eacute feito de possibilidades e

busca por elas mesmo natildeo as conhecendo as observa as testa e apoacutes tomar

consciecircncia delas as utiliza

O homem miacutetico sabe que natildeo estaacute sozinho pois estaacute conectado a tudo

que o cerca Ele eacute um criador efetivo do mundo infiltrando esse mundo de ideacuteias

e pensamentos Vejamos por exemplo que a Terra eacute um planeta totalmente

dominado por religiotildees Deus eacute uma forma de explicarmos as experiecircncias que

temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e transcendentais Ele eacute a

superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos aos deuses pois temos

que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa vida

Do ponto de vista antropoloacutegico-cultural passou-se de uma visatildeo do

mito como a modalidade mais primitiva que possa ser atribuiacuteda agraves cadeias de

eventos quotidianos (exemplos mito solar mitos da fecundidade da terra) para

uma visatildeo do mito como atividade fundamentalmente criativa do indiviacuteduo

humano tendo por objetivo a interpretaccedilatildeo das realidades que como as religiosas

62

ou as eacuteticas e de valores natildeo satildeo passiacuteveis de serem circunscritas nem

expressas em termos de pura racionalidade

O mito exprime valores e aspiraccedilotildees que caracterizam a vivecircncia de

certo grupo soacutecio-cultural e de qualquer maneira polarizam as suas energias

Assim por exemplo no acircmbito do judaiacutesmo o mito da justiccedila de Deus

concentrava todas as tensotildees eacuteticas e religiosas dos crentes

Essas concepccedilotildees levaram em conta dois fatos psicoloacutegicos a hipoacutetese

de estruturas inconscientes especiacuteficas os arqueacutetipos com a finalidade de captar

realidades natildeo racionais mas emocional e vitalmente importantes e a observaccedilatildeo

de que alguns grandes temas foram vividos e transmitidos sob a forma de mitos

de maneira repetitiva nas vaacuterias culturas e eacutepocas histoacutericas

Dentro da antropologia cultural e da psicologia do fenocircmeno religioso o

mito eacute visto como sendo a resultante de energias inconscientes que satildeo ativadas

por experiecircncias histoacutericas e que tecircm como finalidade a realizaccedilatildeo de um si-

mesmo individual ou de grupo de certo modo imanente a psique A origem da

ativaccedilatildeo dessas forccedilas pode estar ligada ou ser estimulada por eventos naturais

mas eacute depois atraiacuteda por personagens simboacutelicas natildeo histoacutericas (por exemplo as

vaacuterias deidades femininas que presidem os mitos da colheita dos frutos da

fecundidade etc) e que satildeo o resultado justamente das projeccedilotildees inconscientes

individuais e coletivas

Podemos considerar o mito como sendo a preacute-histoacuteria da filosofia onde

a consciecircncia humana se estrutura nas origens do conhecimento

63

A filosofia busca entender o Estado a Lei o Direito a Ciecircncia a

Tecnologia e tantos outros conhecimentos mas a filosofia quando nasce quer

resgatar o saber do mito que se esvaia na cultura grega

Conforme nos explica Joseph Campbell69 o mito vem para servir agraves

necessidades humanas no sentido de conhecer o cosmo a natureza o outro e a

si proacuteprio

Em primeiro lugar no que se refere agrave questatildeo cosmoloacutegica serve o

mito para abordar as questotildees teoloacutegicas o plano da gecircnese e da escatologia70

diz respeito a se a pessoa entende como caos ou um

absurdo o desenrolar de uma lei natural ou percebe a presenccedila de

uma inteligecircncia orientadora e a existecircncia de um plano

compreensiacutevel por traacutes do universo71

Eacute o mito a necessidade do homem de explicar com sua proacutepria visatildeo

de uma paisagem completa o iniacutecio de tudo das divindades e deidades

beneacutevolas ou maleacutevolas e dos misteacuterios insondaacuteveis que datildeo sentido ao cosmo

Onde o homem se relaciona com seus temores e sorve suas belezas

Para o homem miacutetico a vida natildeo tem sentido algum pois a vida eacute a

proacutepria experiecircncia de estar vivo de modo de nossas experiecircncias de vida no

plano puramente fiacutesico tenham ressonacircncia no interior do nosso ser e da nossa

69 apud James Hollis 1998 70 Principalmente no tocante ao tratado sobre os fins uacuteltimos do homem 71 HOLLIS 1998 18

64

realidade mais iacutentimos de modo que realmente sintamos o enlevo de estar

vivos 72

Em segundo lugar continuando o mito a servir agraves necessidades

humanas surge o sentido metafiacutesico no esforccedilo de apresentar a natureza do

mundo agrave nossa volta Qual eacute a nossa relaccedilatildeo com o que eacute arquetipicamente

chamado de A Grande Matildee de cujo ventre viemos e para cujo seio

retornaremos 73 A resposta a essa pergunta eacute a proacutepria formaccedilatildeo do mito tatildeo

numinoso 74 quanto os deuses tatildeo luminoso quanto os astros sobre a cabeccedila do

homem e tatildeo fulgurante quanto os fenocircmenos naturais

Outra alegoria miacutetica eacute a do bosque da vida para mostrar o ventre da

grande matildee do qual nascemos e muitas vezes laacute ficamos aprisionados assim nos

mostra Jung

Outro siacutembolo materno igualmente comum eacute o bosque da

vida ou a aacutervore da vida Primeiramente a aacutervore da vida pode ter

sido uma aacutervore genealoacutegica produtora de frutos consequumlentemente

uma espeacutecie de matildee tribal Inuacutemeros mitos dizem que seres humanos

nasceram de aacutervores e muitos relatam como o heroacutei havia sido

aprisionado no tronco de uma aacutervore materna como Osiacuteris morto

dentro de um cedro Adocircnis dentro do mirto etc Numerosas

divindades femininas eram adoradas sob a forma de aacutervores vindo

daiacute o culto de aacutervores e bosques sagrados Assim quando Aacutetis castra-

se sob um pinheiro ele o faz porque a aacutervore tem um significado

72 CAMPBELL 1990 p 3 73 HOLLIS1998p20 74 do latim numem = maacutegico enfeiticcedilante um efeito dinacircmico ou a existecircncia que domina o ser humano independente de sua vontade

65

materno A Juno de Teacutespia era representada por um galho a de

Samos por um prancha a de Argos por um pilar a Diana de Caacuteria por

um bloco de madeira bruta a Atena de Lindos era uma coluna polida

Tertuliano chamava a Ceres de Paros de `rudis palus et informe

lignum sine efigie (um tronco rude um pau informe sem rosto)

Ateneo informa que a Latona de Delos era um pedaccedilo informe de

madeira Tertuliano tambeacutem descreve uma Palas aacutetica como `crucis

stipes (estaca de uma cruz) Uma viga nua de pau como o proacuteprio

termo indica eacute faacutelica (JUNG 1988 sect 321)

Em terceiro lugar o mito serve ao homem miacutetico na relaccedilatildeo com o

outro para o conhecimento das relaccedilotildees da comunidade da divisatildeo de tarefas e

na defesa da coletividade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

No entanto esse viver de forma muacutetua tambeacutem vem transgredir a lei

natural Assim novamente surge o mito a forma narrada 75 desajustada com a

realidade vivida mas que explica orienta e normatiza as relaccedilotildees que daacute uma

forma ao pensamento ou ainda uma forma de viver

Por fim em quarto lugar Hollis (1998) nos falando do pensamento de

Campbell traz ao homem miacutetico o sentido psicoloacutegico do mito o entendimento do

si-mesmo do quem eacute do de onde vem de qual seu lugar no mundo e de como

encontrar a pessoa para formar um par

75 Do grego mythus = conto palavra

66

A cultura que tiver perdido seu cerne miacutetico ou cujas

mitologias sejam muito fragmentadas e diversas cria pessoas

perdidas e assustadas que mudam de culto para culto de ideologia

para ideologia 76

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Na visatildeo junguiana tanto a histoacuteria quanto a antropologia nos ensinam

que psicologicamente a sociedade humana natildeo poderia ter sobrevivido por muito

tempo a natildeo ser que as pessoas estivessem contidas na relaccedilatildeo psicoloacutegica

dentro de um mito central e vivo

Pode ser percebido que os membros mais competentes da sociedade

mais desenvolvidos e perspicazes possuem respostas miacuteticas que satisfazem

suas perguntas existenciais

Essa minoria criativa intelectual e dominante vive em intensa harmonia

com o mito predominante Jaacute as outras camadas da sociedade seguem a direta

lideranccedila dessa minoria chegando a evitar o confronto com as questotildees miacuteticas

poupando-se da discussatildeo e seguindo diretamente a questatildeo fatiacutedica do sentido

da vida

76 HOLLIS 1998 24

67

Com a perda da consciecircncia de uma realidade

transpessoal (Deus) as anarquias interna e externa dos desejos

pessoais rivais assumem o poder 77

Jung nos formula a questatildeo como sendo o problema do homem

moderno o estado de carecircncia de mitos

Em seus estudos teve um momento em Memoacuterias sonhos e

reflexotildees78 em que coloca a si mesmo como tendo perdido o ciacuterculo maacutegico do

mito

Agora vocecirc tem a chave para a mitologia e estaacute livre para

abrir todos os portotildees da psique inconsciente Alguma coisa em mim

entatildeo sussurrou Porque abrir os portotildees E logo me surgiu a

pergunta sobre o que afinal eu havia realizado Eu tinha explicado os

mitos das pessoas do passado havia escrito um livro sobre o heroacutei o

mito em que o homem sempre viveu Mas em que mito vive o homem

hoje em dia No mito cristatildeo poderia ser a resposta Vocecirc vive nele

Perguntei a mim mesmo Para ser honesto a resposta foi natildeo Para

mim natildeo eacute pautado nele que vivo Entatildeo natildeo temos mais nenhum

mito Natildeo eacute evidente que natildeo temos mais nenhum mito Mas

entatildeo qual eacute o seu mito o mito em que vocecirc efetivamente vive

Nesse ponto o diaacutelogo comigo mesmo ficou desconfortaacutevel e parei de

pensar Eu chegara a um beco sem saiacuteda79

77 EDINGER 1999 10 78 JUNG 1975 79 JUNG 1975 171

68

Disse ainda Jung que o mito leva o homem em uma tendecircncia a priori

ingecircnua a acreditar e levar a seacuterio todas as manifestaccedilotildees miacuteticas do

inconsciente e de acreditar que a natureza do proacuteprio mundo isto eacute as verdades

definitivas estejam encerradas no mito Essa concepccedilatildeo natildeo eacute de todo destituiacuteda

de fundamento visto que as manifestaccedilotildees espontacircneas do inconsciente

exprimem uma psique que nem sempre se identifica com a consciecircncia e muitas

vezes se distancia dela tratando-se de uma atividade psiacutequica natural e natildeo

aprendida que independe de nosso livre arbiacutetrio

As formas arquetiacutepicas que surgem da raiz do pensamento humano satildeo

necessaacuterias para que o homem possa determinar a existecircncia do mundo e

conhececirc-lo Eacute a psique primitiva essa raiz que se pode afirmar natildeo conhecia a si

mesma Essa consciecircncia soacute pode ser formada a partir da evoluccedilatildeo do homem

desde sua origem ateacute os tempos histoacutericos

Ainda hoje conhecemos certas tribos primitivas cuja

consciecircncia se distancia muito pouco do lado tenebroso da psique

primiacutegena e mesmo entre os homens civilizados podemos encontrar

resquiacutecios do estado primordial80

ABRAHAM em Traum und mytus (apud JUNG 1989 21) disse

entender ser o mito uma parte superada da vida espiritual infantil do povo Assim

o mito eacute uma parte preservada da vida espiritual infantil do povo e o sonho o mito

80 JUNG 1988 89

69

do indiviacuteduo Essa citaccedilatildeo se prende ao fato de que muitos teoacutericos acreditam ser

esta a real concepccedilatildeo psicoloacutegica de mito Realmente podemos ver nas crianccedilas

que a tendecircncia na formaccedilatildeo de mitos corre ao lado de suas fantasias

transformadas em realidade fantasias essas revestidas de histoacuterias No entanto

afirmar que o mito procede da vida espiritual infantil do povo chega a parecer

absurdo pois na verdade eacute o mito a produccedilatildeo mais adulta da humanidade

primitiva O homem que pensava e vivia nas cavernas que vivia no mito era uma

realidade adulta pois o mito natildeo eacute uma fantasia pueril mas um dos requisitos

mais importantes da vida primitiva 81

O mito eacute a cultura profana ou sagrada eacute cultura cultura por outro lado

eacute educaccedilatildeo assim a funccedilatildeo dos mitos pode ser vista como uma forma

estruturada de culturalmente se falar dos seres sobrenaturais perante a histoacuteria do

homem essa histoacuteria como se trata da realidade do homem miacutetico se constitui

como absoluta verdade pois se referem agraves realidades sagradas desse homem O

mito cria o mundo estabelece como se iniciou e como terminaraacute contanto

narrativamente escrita ou atraveacutes da tradiccedilatildeo oral como algo surgiu na viva do

homem miacutetico

O mito revela e revelando nos daacute a oportunidade da realizaccedilatildeo

misteriosa de controlar a realidade atraveacutes do rito o qual promove o contato com a

divindade Todos estamos contidos e contemos o mito pois em momentos de

extrema dor ou prazer sacralizamos o que sentimos e por mais ceacuteticos que

81 JUNG 1989 p21

70

possamos ser sentimos a presenccedila do mito e vivenciamos em nossa psique os

resultados do poder criador do mito

Sendo ainda cultura o mito pode ter como poder criador associado ao

tempo a eacutepoca ao produto social de um grupo as vivecircncias que se alteram e se

propagam no inconsciente coletivo determinando as forccedilas que manteacutem o mito

vivo gerando comportamentos religiosos morais sociais e poliacuteticos desde a

coleta da caccedila da construccedilatildeo de um barco de uma habitaccedilatildeo ateacute a postura

preponderante de um chefe de estado perante a naccedilatildeo que governa Eacute algo maior

que a racional inteligecircncia do homem de nosso seacuteculo em detrimento das

especulaccedilotildees metafiacutesicas ou teoloacutegicas

Toda e qualquer tentativa de explicar um mito faz com que uma

barreira inexplicaacutevel surja pois a proacutepria explicaccedilatildeo do mito vive dentro do mito

pois partes de um mito natildeo podem ser explicadas pois ele em si eacute todo

A tentativa de explicar um mito eacute feita com base em leis mutaacuteveis das

ciecircncias enquanto ele eacute baseado em leis estaacuteveis da natureza O animal

reconhece seu cio sem que se necessite ensinaacute-lo desloca-se para copular sem

que necessite de mapas luta por seu patrimocircnio geneacutetico sem aulas de

biodiversidade e as estrelas essas se encontram laacute para o homem miacutetico sem

que ningueacutem possa explicar como laacute chegaram

Por fim o mito eacute o homem e o homem eacute o mito natildeo como parte um do

outro mas ontologicamente na relaccedilatildeo do vir-a-ser Natildeo porque nada vem-a-ser

71

senatildeo o que pode ser mas o vir-a-ser depende de modelos ou formas garantidos

pelo Ser e por sua manifestaccedilatildeo 82 e o mito eacute a manifestaccedilatildeo desse Ser

82 CRIPPA1975p183

72

CAPIacuteTULO 3 - O MITO CRISTAtildeO

Para que o leitor tenha uma visatildeo mais profunda sobre o embate de

mitos que ocorreu no seacuteculo XVI com a chegada dos portugueses ao Brasil e

especificamente com a catequese jesuiacutetica vejo como de suma importacircncia que

seja dedicado ao capiacutetulo deste trabalho exclusivamente ao mito cristatildeo

Falei direta e especificamente das visotildees filosoacuteficas antropoloacutegicas e

psicoloacutegicas sobre o conceito de mito

Como natildeo tratar entatildeo o mito que deu origem ao estudo do objeto

desta pesquisa que se trata do embate de mitos durante o periacuteodo quinhentista

Quem eacute o portuguecircs que chega ao Brasil daquele periacuteodo que mitos

abriga em sua alma quais os caminhos direcionados ao mito da divindade como

explica suas impotecircncias suas crenccedilas seus valores religiosos pois satildeo esses

valores trazidos da Santa Feacute Catoacutelica que vatildeo ser impostos aos brasis desde a

chegada de Cabral

Para tal para que possa responder perguntas que satildeo minhas e

acredito sejam do leitor entrei em um campo muito profundo quer no sentido

psicoloacutegico da anaacutelise desse mito quer em levantar polecircmicas sobre os siacutembolos

de transformaccedilatildeo cultural que o mito cristatildeo tem gerado desde os mais remotos

tempos

73

Assim fui muitas vezes pesquisar na Biacuteblia e nos conceitos junguianos

como esse mito participou e participa da vida daqueles que seguem como mito

como arqueacutetipo principal de suas vidas a vida de Cristo

Em primeiro lugar busquei entender um pouco desse homem

anunciado pelo Anjo do Senhor e que no caminho de sua individuaccedilatildeo morre

crucificado apoacutes a aceitaccedilatildeo de seu destino em relaccedilatildeo a Deus83

Em seguida mais perguntas surgiram Ao falar do Homem ao falar do

Filho minha busca vai em direccedilatildeo ao Pai e por consequumlecircncia ao Espiacuterito Santo

onde tento entender e interpretar o mito da Trindade84

Mas o Filho de Deus fez coisas na terra entre elas fazer gerar uma

Igreja e uma Santa Feacute onde seu siacutembolo mais forte eacute a Santa Ceia que deu

origem agrave missa Busco aiacute outros siacutembolos cristatildeos outros mitos outros elementos

que foram gerados por uma cultura de uma eacutepoca e que foram transformados em

Lei85

Busco ainda a concepccedilatildeo natildeo maniqueiacutesta de Bem e Mal na visatildeo do

mito cristatildeo e condensando esses conhecimentos consigo entatildeo falar do cristatildeo

portuguecircs daquele que leva esses mitos esses arqueacutetipos esses siacutembolos de

transformaccedilatildeo esses siacutembolos culturais ao indiacutegena brasileiro que se encontrava

vivendo pelos seus proacuteprios mitos e de suas proacuteprias tradiccedilotildees por seus proacuteprios

83 vide apecircndices 2 3 e 4 84 idem 85 idem

74

arqueacutetipos e simbologias miacuteticas que tal como os portugueses tal como os

jesuiacutetas buscavam suas proacuteprias almas e os sentidos para suas vidas

De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado do proacuteprio Espiacuterito Santo e que traria aos brasis os

bons costumes a feacute em si a cura de todos os males da alma Do outro lado

homens livres que possuiacuteam seus costumes como bons que possuiacuteam feacute em

seus mitos e explicaccedilotildees da finitude de suas vidas sem que entendesse que

possuiacuteam males em suas almas ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao

inimigo do Homem que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a

realidade

O cristianismo do seacuteculo XVI natildeo tinha como entender que a verdade

acabada revelada e imposta natildeo abria o coraccedilatildeo do homem branco ou de pele

dourada para as reais coisas da palavra de Deus Estas palavras nascem

exatamente no coraccedilatildeo do homem pois satildeo elas que explicam e levam o homem

em busca da individuaccedilatildeo do contato direto com seus niacuteveis mais inconscientes

lugares esses em que realmente se ouve a voz da divindade seja ela qual for

O homem ao crer sem questionar natildeo reflete sobre suas duacutevidas natildeo

questiona seus mitos e seus dogmas natildeo muda natildeo altera o que pensa do

inexplicaacutevel mas o homem que pensa suas ideacuteias sempre teraacute a duacutevida como

bem recebida pois eacute ela que permite um conhecimento mais perfeito e mais

seguro de si e daquilo que natildeo consegue explicar

Jung nos coloca em sua obra que como estudioso chega a ver a

religiatildeo como um filho natural do inconsciente humano que vecirc nas vaacuterias e

75

improvaacuteveis afirmaccedilotildees religiosas movimentos psicoloacutegicos do processo universal

de renovaccedilatildeo e amadurecimento humanos mas que para isso a duacutevida o

questionamento sobre as verdades reveladas devem estar sendo pensadas pelo

homem

Mas nos quinhentos o homem portuguecircs natildeo pensava seus mitos

religiosos os vivia e por esse motivo podia de forma impositiva infligir sua feacute

seus bons costumes suas crenccedilas atraveacutes do poder de fogo de canhotildees do

poder dos sacramentos do poder do teatro e da catequese Seu modo miacutetico de

ver o mundo era o correto o uacutenico afinal como dizia Vicente de Lerins86 norma de

feacute eacute aquilo que foi acreditado sempre por todos e em toda parte No entanto natildeo

havia todos para os catoacutelicos senatildeo os catoacutelicos Protestantes eram

considerados tatildeo hereges quanto qualquer outro que natildeo catoacutelico Natildeo havia

parte alguma senatildeo aquela em que os catoacutelicos viviam o restante do mundo era

para ser transformado colonizado submetido e convertido gerando uma

verdadeira doenccedila na alma desses homens miacuteticos que habitavam estas terras no

seacuteculo XVI

86 Vicente de Lerins foi um antigo teoacutelogo citado diversas vezes por Jung em sua obra como sendo seu pensamento sobre a feacute uma das manifestaccedilotildees mais felizes da ortodoxia psicoloacutegica In Dourley 1987 p29

76

CAPIacuteTULO 4 - COMO O EUROPEU CRISTAtildeO COMPREENDIA OS INDIacuteGENAS E A

CONCEPCcedilAtildeO QUE TINHAM DA VIDA DESSES BRASIS

Esta terra poreacutem tinha dono belicoso e baacuterbaro87

Para que pudesse realizar esta parte deste trabalho tive que buscar

informaccedilotildees de distintas formas Em primeiro lugar houve uma preocupaccedilatildeo em

levantar as fontes em que poderia pesquisar fontes essas que soacute poderiam ser

de autores do periacuteodo em que me fixei para levantar as informaccedilotildees

Esses homens autores de alguns documentos me dariam sempre

visotildees cristatildes brancas portuguesas ou espanholas de como os indiacutegenas

concebiam suas vidas

Muitas vezes pude encontrar claros relatos dessas vidas mas em outras

me restava a interpretaccedilatildeo agraves vezes pelo negativo das narrativas de como essas

vidas aconteciam

Claro muitos documentos mostravam com repuacutedio e rechaccedilo os

costumes que busquei entender outros mais romacircnticos mostravam seres

edecircnicos em alguns momentos e bestas feras em outros Bastava que o indiacutegena

87 CALMON 1963 vol 2 p321

77

fosse contra de alguma forma ao contato ao convencimento que lhe tentavam agrave

catequese ou agrave conversatildeo proposta para que passasse de um extremo para outro

de adacircmicos em democircnios como fez Anchieta em seus autos com Guaixaraacute e os

outros diabos88

Percebo em cartas de Noacutebrega de Anchieta ou de Navarro momentos

de pura consternaccedilatildeo do modo de viver dos brasis para em seguida mostrar o

lado demoniacuteaco que carregavam os indiacutegenas obviamente em suas visotildees

europeacuteias e jesuiacuteticas dentro do mito cristatildeo Noacutebrega mais animado em suas

primeiras cartas e mais desgostoso e entristecido com sua missatildeo ao final

Navarro mais intelectual em seus conceitos e descriccedilotildees e em Anchieta um relato

mais duacutebio conforme a tribo da qual escrevia

Busquei Cardim Caminha Frei Vicente do Salvador Calmon

Capistrano de Abreu Gacircndavo e no de gestis Mendi de Saa

de Anchieta e em

todos tive que proceder da mesma forma agraves vezes relatando agraves vezes

interpretando pelo negativo

Pude encontrar ainda a tradiccedilatildeo oral com a qual convivi durante anos e

me senti agrave vontade em ler com isso os relatos de Kakaacute Weraacute Jecupeacute89 e

compreender algumas de suas informaccedilotildees

Por essa com-vivecircncia com tribos como Jivaros (com liacutengua proacutepria e

o espanhol) como Pataxoacutes no Sul da Bahia com Charruas na regiatildeo das missotildees

88 Auto de Satildeo Lourenccedilo o qual seraacute tratado mais adiante neste trabalho 89 Kakaacute Weraacute Jecupeacute

iacutendio txucarramatildee autor dos livros A Terra dos mil povos e Tupatilde Tenondeacute editados pela Editora Fundaccedilatildeo Peiroacutepolis - SP

78

e com verdadeiros iacutendios gauacutechos montados

vestidos em seus quiacutechua xiri

pac 90 dos pampas argentinos e da fronteira do Brasil sentia que podia ler relatos

de indiacutegenas de hoje pois entendia de tradiccedilatildeo oral afinal eu mesmo tive

centenas de ensinamentos atraveacutes dessa forma de educaccedilatildeo

Conheci indiacutegenas de diversos tipos e costumes mas todos mesmo

bastante transmutados por nossa cultura ainda livres ainda aguerridos muitos

ainda indolentes e outros prontos para a guerra mas nenhum deles menos

miacuteticos que noacutes menos inteligentes que noacutes menos carentes de explicaccedilotildees

sobre a finitude da vida humana e guardadores ferrenhos de seus costumes

crenccedilas e tradiccedilotildees

Tento assim neste capiacutetulo descrever daqui a diante todo esse estudo

sobre como os indiacutegenas concebiam suas vidas em meio ao Seacuteculo XVI

No entanto natildeo podendo perder o foco desta proposta o embate de

mitos por mais que nas descriccedilotildees encontradas nas fontes de que os indiacutegenas

viviam suas vidas surgissem termos como liberdade ou feras a serem

amestradas ou natildeo possuem Deus no coraccedilatildeo natildeo posso deixar de entender

que eram esses termos esses conceitos meras interpretaccedilotildees culturais de quem

via e relatava Vou trabalhar com esses termos conceituais

90 Do esp chiripaacute lt quiacutechua xiri pac para o frio S m Bras S Vestimenta sem costura outrora usada pelos gauacutechos habitantes do campo e que consistia num metro e meio de fazenda que passando por entre as pernas era presa agrave cintura por uma cinta de couro ou pelo tirador

79

Vejamos Cardim91 nas primeiras linhas de Princiacutepio e Origem dos iacutendios

do Brasil e seus costumes

Este gentio natildeo tem conhecimento algum de seu creador nem

de cousa do Ceacuteo nem se ha pena nem gloria depois desta vida

e portanto natildeo tem adoraccedilatildeo nenhuma nem cerimonias ou

culto divino mas sabem que tecircm alma e que esta natildeo morre e

depois da morte vatildeo a uns campos onde ha muitas figueiras ao

longo de um formoso rio e todas juntas natildeo fazem outra cousa

senatildeo bailar

Vamos ler agora maino i ypi kue apresentado em Tupan Tenondeacute92

Ntildeande Ru Pa-pa Tenondeacute Gete ratilde ombo-jera Pytuacute yma gui

Nosso Pai Primeiro criou-se por si mesmo na Vazia Noite iniciada

Yvaacutera pypyte Apyka apuia i Pytuacute yma mbyte re oguero-jera

As sagradas plantas dos peacutes O pequeno assento arredondado Do Vazio Inicial Enraizou seu desdobrar (florescer)

Yvaacutera jeckaka mba ekuaaacute Yvaacutera rendupa Yvaacutera popyte yvyra i Yvaacutera popyte rakatilde poty Oguero-jera Ntildeamandui Pytuacute yma mbyte re

Ciacuterculo desdobrado da sabedoria inaudiacutevel Fluiu-se divino Todo Ouvir As divinas palmas das matildeos portando o bastatildeo do poder As divinas palmas das matildeos feito ramas floridas Tramam o Imanifestado na dobra de sua evoluccedilatildeo no meio da primeira noite

Ntildeande Ru Ntildeamandu tenondeacute gua O yva raacute oguero-jera eyacute mboyve i Pytuacute A e ndoechaacutei Kuaray oiko eyacute ramo jepe

Nosso Pai O Grande Misteacuterio o primeiro antes de haver-se criado no curso de sua evoluccedilatildeo sua futura morada sustenta-se no Vazio

91 CARDIM 1980-p87 92 JECUPEacute2001 p25-31

a liacutengua apresentada ao lado do texto traduzido eacute o abantildeeenga considerada como a liacutengua ancestral Tupi de onde saiacuteram os dialetos que hoje existem dos Chiripaacute dos Kaiowaacute e dos Mbyaacute aleacutem do guarani paraguaio

80

O py a jechaka re A e oiko oikovy O yvaacutera py mba ekuaaacute py Antildeembo-kuaray i oiny

Antes que existisse sol Ele existia pelo reflexo de seu proacuteprio coraccedilatildeo E fazia servir-se de sol dentro de sua proacutepria divindade

Como podemos concluir fazendo uma comparaccedilatildeo entre os dois textos

o de Cardim considerado fonte histoacuterica e o outro de Jecupeacute uma traduccedilatildeo de

fonte oral da tradiccedilatildeo guarani tinham sim os indiacutegenas um conhecimento de seu

criador Apenas o mito eacute outro apenas os arqueacutetipos satildeo outros apenas a forma

de explicar o inexplicaacutevel eacute outra

O andarem nus por exemplo Todas fontes nos mostram o quanto eram

esses homens e mulheres livres e inocentes por andarem nus portando muitas

vezes sua arte plumaacuteria que os diferenciava de uma tribo para outra pinturas de

siacutembolos e cores Mas seria essa forma de viver realmente uma questatildeo de

liberdade Natildeo poderiacuteamos considerar a falta de roupa como uma falta de

conhecimento do tecer e da natildeo necessidade de tantas roupas conforme

estabelecido no modo de viver do portuguecircs cristatildeo

Havia pelo que podemos encontrar vaidade entre os indiacutegenas mas

com conceitos outros de mostrarem suas necessidades de guarda de patrimocircnio

geneacutetico que tal qual os paacutessaros seus vizinhos danccedilavam para suas mulheres

emplumados e coloridos mostrando seus dotes suas honras sua forccedila e sua

importacircncia dentro da hierarquia tribal

Poreacutem para saiacuterem galantes usatildeo de vaacuterias invenccedilotildees

tingindo seus corpos com certo sumo de uma aacutervores com que ficam

81

pretos dando muitos riscos pelo corpo braccedilos etc a modo de

imperiaes 93

Ou ainda como Caminha num dos relatos mais afamados

A feiccedilatildeo deles eacute serem pardos maneira de avermelhados

de bons rostos e bons narizes bem-feitos Andam nus sem nenhuma

cobertura Nem estimam em cobrir ou de mostrar suas vergonhas e

nisso tecircm tanta inocecircncia como em mostrar o rosto E um deles

trazia por debaixo da solapa de fonte a fonte para detraacutes uma

espeacutecie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do

comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o

touticcedilo e as orelhas94

Esta eacute uma das visotildees mais neutras da nudez indiacutegena mas vejamos

outra

aqui onde as mulheres andam nuas e natildeo sabem se

negar a ningueacutem mas ateacute elas mesmas cometem e importunam os

homens jogando-se com eles nas redes porque tecircem por honra

dormir com os Cristatildeos 95

93 CARDIM 1980-p90 94 CAMINHA

p3

Carta de pero Vaz de Caminha

A certidatildeo de nascimento do Brasil

Bradesco

Brasil 500 anos- 2000 e tb CALMON 1963- Vol I p67 95 ANCHIETA Cartas 1988 p78 Carta ao Padre Mestre Inaacutecio de Loiola julho 1554

82

Ou ainda na visatildeo de Noacutebrega

Parece-nos que natildeo podemos deixar de dar a roupa que

trouxemos a estes que querem ser christatildeos repartindo-lh a ateacute

ficarmos todos eguaes com elles ao menos por natildeo escandalisar aos

meus Irmatildeos de Coimbra si souberem que por falta de algumas

ceroulas deixa uma alma de ser christatilde e conhecer a seu Creador e

Senhor e dar-lhe gloria96

Ou ainda

Tambeacutem peccedila Vossa Reverendissima algum petitoacuterio de

roupa para entretanto cobrirmos estes novos convertidos ao menos

uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religiatildeo Christatilde

porque vecircm todos a esta cidade aacute missa aos domingos e festas que

fazem muita devoccedilatildeo e vecircm resando as oraccedilotildees que lhes ensinamos

e natildeo paree honesto estarem nuas entreos Christatildeos na egreja e

quando as ensinamos97

Assim somente uma forma de olhar de cima de que concepccedilatildeo se

analisa define de forma diferente o costume do outro

Podemos pegar mais um exemplo de como olhar um costume o

casamento

Entre eles ha casamentos poreacutem ha muita duvida se satildeo

verdadeiros Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar

contrario e preserverava virgem ateacute que o tomasse e matasse

correndo-lhe primeiro suas festas por espaccedilo de dous ou tres annos a

96 NOacuteBREGA 1988 P74 Carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo - 1549 97 NOacuteBREGA 1988 p85 Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549

83

mulher da mesma maneira natildeo conhecia homem ateacute lhe natildeo vir regra

depois da qual lhe faziatildeo grandes festas ao mesmo tempo de lhe

entregarem a mulher faziatildeo grandes vinhos e acabada a festa ficava

o casamento perfeito dando-lhe uma rede lavada e depois de

casados comeccedilavatildeo a beber poque ateacute ali natildeo o consentiatildeo seus

pais ensinando-lhes que bebessem com tento e fossem

considerados e prudentes em seu falar para que o vinho natildeo lhes

fizesse mal nem falassem cousas ruins e entatildeo com uma cuya lhe

davatildeo os velhos antigos o primeiro vinho e lhe tinhatildeo a matildeo na

cabeccedila para que natildeo arrevessassem porque se arrevessava tinhatildeo

para si que natildeo seria valente e vice-versa98

Entendo com este texto de Cardim que existe um tanto de moral de

regras de ensinamentos e de respeito muacutetuo entre as pessoas de uma mesma

tribo inclusive com preocupaccedilatildeo paterna de bons costumes Poreacutem me parece

na proacutexima citaccedilatildeo de autoria de Noacutebrega que natildeo era bem assim que ele via a

relaccedilatildeo de casamento pois os brancos e europeus natildeo seguiam essa mesma

visatildeo de um casamento verdadeiro entre eles proacuteprios como faziam os

indiacutegenas Vejamos

Nesta terra ha um grande peccado que eacute terem os

homens quase todos suas Negras por mancebas e outras livres que

pedem aos Negros por mulheres segundo o costume da terra que eacute

98 CARDIM 1980-p88

84

terem muitas mulheres E estas deixam-n as quando lhes apraz o que

pe grande escandalo para a nova Egreja que o Senhor quer fundar99

Anchieta tambeacutem natildeo vecirc com bons olhos o costume do casamento

indiacutegena mesmo com as regras intriacutensecas daquela cultura pois olhando de cima

de seu mito cristatildeo natildeo pode admitir as relaccedilotildees de casais que se formam nas

tribos Vejamos

contraiacutedo matrimocircnio com os mesmos parentes e

primos se torna dificiacutelimo se por ventura queremos admiiacute-los ao

batismo achar mulher que por causa do parentesco de sangue possa

ser tomada por esposa O que natildeo pequeno embaraccedilo nos traz

porquanto natildeo podemos admitir a receber o batismo aacute que se

conserva manceba pois satildeo de tal foacuterma barbaros e indocircmitos que

parecem aproximar-se mais a natureza das feras do que aacute dos

homens100

Mais um ponto para que possamos entender os costumes dos brasis eacute

o de comer carne humana a antropofagia tatildeo apontada em todos os relatos e

cartas e por todos os historiadores do periacuteodo

Ficou quase que declarado de que os indiacutegenas se alimentavam de

carne de seus contraacuterios como se pudesse falar que comiam carne no sentido

alimentar no sentido de sobrevivecircncia da mesma forma que caccedilavam pescavam

ou colhiam frutos e raiacutezes

99 NOacuteBREGA 1988 p79 - Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549 100 ANCHIETA- Cartas 1988p55 Carta de Piratininga 1554

85

Haacute que se entender a ritualiacutestica que envolvia a antropofagia Para

tanto eacute importante tambeacutem que se fale um pouco do costume de guerrear

Os indiacutegenas mais aguerridos tinham como orientaccedilatildeo alimentar nunca

comerem animais lentos ou fracos pois esses atributos passariam a fazer parte de

suas personalidades atributos esses que consideravam sobremaneira como

negativos101 Comiam para esse fim animais raacutepidos ferozes perigosos

audazes espertos e claro o inimigo aprisionado em uma batalha

A antropofagia natildeo alimentava mas dava de uma forma ritualiacutestica a

possibilidade da aquisiccedilatildeo dos atributos positivos do inimigo Ao comer a carne de

um guerreiro valente honrado capaz dominante em sua tribo acreditava por

seus mitos estar adquirindo esses atributos neste caso considerados positivos

Comer carne humana de um guerreiro vencido e aprisionado tinha portanto um

sentido miacutetico

A documentaccedilatildeo disponiacutevel natildeo deixa nenhuma duacutevida a

respeito do fim do aprisionamento de inimigos ele natildeo estava

subordinado a motivos fisioloacutegicos a necessidade de

aprovisionamento regular de carne humana destinada agrave alimentaccedilatildeo

Os Tupinambaacute praticavam a antropofagia sob a forma ritual (apesar

de alguns cronistas pretenderem insinuar o contraacuterio) de modo que a

ingestatildeo de carne dos inimigos sacrificados possuiacutea um significado

simboacutelico e maacutegico 102

101 Podemos ver uma descriccedilatildeo completa em FERNANDES 1970- p43 102 FERNANDES 1970- p47

86

A morte daquele que iria ou foi comido tambeacutem tinha um valor para o

proacuteprio sacrificado visto que morrer dessa forma tambeacutem significava honra pois

ser enterrado para que os vermes o comessem era ser considerado um fraco e

natildeo um guerreiro

Assim as lutas as guerras eram lutas bioacuteticas e necessaacuterias para a

sobrevivecircncia mas tambeacutem pelos seguintes motivos

A aplicaccedilatildeo e treinamento dos conhecimentos de caccedila utilizando

a cilada e o rastrear e perseguir como forma de ataque

Para a guarda do patrimocircnio geneacutetico roubando mulheres

melhores de outra tribo para que filhos melhores pudessem ser

fecundados em casamentos exogacircmicos

Para a pilhagem de conhecimentos como o da cestaria ou da

ceracircmica

Para garantia ou disputa de um espaccedilo ou territoacuterio

ecologicamente mais pleno de possibilidades de alimento da prole

e da tribo em si

Para a pilhagem de viacuteveres em tempos de escassez de recursos

naturais ou de aprovisionamento de utilidades

Como rito de passagem para os mais jovens tornarem-se homens

no sentido adulto de sua masculinidade (avaacute ou tujuaacutee) o que

poderia tornaacute-lo mais atrativo para as mulheres mais atrativas

onde novamente surge a guarda do patrimocircnio geneacutetico

87

Como forma de aprisionar guerreiros que poderiam ser trocados

por viveres ou territoacuterios mais bioacuteticos

A guerra como forma de vinganccedila

Todo indiacutegena estava pronto para lutar Uns mais agressivos outros

mais paciacuteficos mas todos tinham a necessidade belicosa de se defrontar com

inimigos em seus trajetos por territoacuterios que lhe pertenciam ou em incursotildees por

territoacuterios alheios

Talvez por esse motivo Noacutebrega olhasse as guerras indiacutegenas da

seguinte maneira

Fazem guerra uma tribu a outra a 10 15 e 20 leguas de

modo que estatildeo todos entre si divididos Se acontece aprisionarem

um contraacuterio na guerra conservam-o por algum tempo datildeo-lhe por

mulheres suas filhas para que o sirvam e guardem depois do que o

matam com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram

ali perto e si deles ficam filhos os comem ainda que sejam seus

sobrinhos e irmatildeos declarando aacutes vezes as proacuteprias matildees que soacute os

paes e natildeo a matildee tecircm parte nellesSi matam a um na guerra o

partem em pedaccedilos e depois de moqueados os comem com a

mesma solemnidade e tudo isto fazem com um odio cordial que tecircm

um do outro e nestas duas cousas isto eacute terem muitas mulheres e

matarem os inimigos consiste toda a sua honraNatildeo guerreiam por

avareza porque natildeo possuem de seu mais do que lhes datildeo a pesca

a caccedila e o fructo que a terra daacute a todos mas soacutemente por odio e

88

vinganccedila sendo tatildeo sujeitos a ira que si acaso se encontram em o

caminho logo vatildeo a pau aacute pedra ou dentada103

Muito se pode falar do costume de guerrear e da antropofagia como

magia propiciatoacuteria mas soacute esse assunto daria oportunidade de toda uma nova

tese

Dessa forma continuando com a proposta de mostrar como os brasis

concebiam suas vidas na visatildeo do cristatildeo europeu apresento outros pontos dos

costumes e outras comparaccedilotildees culturais

Falo agora da conceituaccedilatildeo de democircnio

A histoacuteria do Diabo confunde-se com a histoacuteria do proacuteprio

Cristianismo era necessaacuteria para a coletividade cristatilde a existecircncia e

a encarnaccedilatildeo do Mal Era preciso que fosse visto tateado tocado

para que o Bem surgisse como a graccedila suprema

O Belo e o Divino

em oposiccedilatildeo ao Horriacutevel e Demoniacuteaco104

Se pegarmos apenas pela definiccedilatildeo temos que a palavra democircnio que

obviamente natildeo existia no vocabulaacuterio de qualquer tribo indiacutegena do Brasil do

Seacuteculo XVI tem sua origem no grego daimoacutenion

e mais tarde do latim

daemonium termo originaacuterio nas crenccedilas da Antiguidade e no politeiacutesmo que

significaria o gecircnio criador fosse ele bom ou mal e que presidia o caraacuteter e o

destino de cada indiviacuteduo Surge no entanto no judaiacutesmo e por consequumlecircncia no

103 NOacuteBREGA 1988p90-91 carta ao Dr Navarro seu Mestre em Coimbra- 1549 104 NOGUEIRA 2000 P103

89

cristianismo com a definiccedilatildeo de anjo mau o qual apoacutes rebelar-se contra Iahweh

foi precipitado no inferno e busca a perdiccedilatildeo da humanidade

Pela didaacutetica da catequese trazer essa definiccedilatildeo do democircnio ou do

Diabo agraves mentes indiacutegenas se fazia necessaacuterio pela pedagogia do terror que se

impunha agraves mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeos

chegando mesmo a ser considerado no Teatro de Anchieta como um certo prazer

esteacutetico na arte de representaccedilatildeo de seus autos fazendo com que indiacutegenas tal

qual o imaginaacuterio cristatildeo acreditasse na importacircncia grandiosa de Satatilde o

Priacutencipe do Mundo na mente dos religiosos cristatildeos aquele que lutava contra a

verdade e a vida

Claro que o indiacutegena tinha noccedilatildeo do Bem e do Mal Tudo aquilo que era

contra seu prazer era o mal e a favor o bem O homem natural e espontacircneo soacute

se move por prazer ou pela dor e o indiacutegena era o homem espontacircneo no seacuteculo

XVI era o homem natural onde guerrear era prazer comer a carne de seu

inimigo era prazer atacar uma tribo para roubar uma fecircmea de outra tribo era

prazer ser belicoso e baacuterbaro na opiniatildeo dos cristatildeos era prazer portanto era o

bem pois para o homem natural Bem e Mal satildeo apenas pontos de referecircncia

Por outro lado existiam na cultura os espiacuteritos do mal isto eacute aqueles

que lhes levava o prazer a comida a caccedila a aacutegua lhes negava a chuva ou fazia

morrer aqueles a quem amavam Esses espiacuteritos eram o Mal Esses eram

Anhangaacute Anhanguumlera (Anhangaacute velho) Taguaigba o Mboy-tataacute105 Curupira106 ou

105 Mboy-cobra+tataacute- fogo = cobra de fogo tambeacutem conhecido como Baetataacute maetataacute ou boitataacute

90

Caipora107 que lhes impedia a caccedila afastando os animais que lhes dariam de

comer caso matasse animais aleacutem da conta necessaacuteria para sua sobrevivecircncia

Curupira era o Mal Curupira era o Bem O que se sabia eacute que era o

protetor da matas A floresta e todos que nela habitavam estavam sob sua

vigilacircncia constante

Por isso antes das grandes tempestades ouve-se bater

nos troncos das aacutervores Eacute o Curupira verificando se elas podem

resistir ao furacatildeo que se avizinha para em caso contraacuterio avisar os

moradores da mata do perigo 108

Anchieta fala desses democircnios em sua carta datada do fim de maio de

1560109 acreditando neles como acreditava em seus proacuteprios democircnios

Eacute cousa sabida e pela boca de todos corre que ha certos

democircnios a que os Brasis chamam corupira que acometem sos

Indios muitas vezes no mato datildeo-lhes accediloites machucam-os e

matam-os Satildeo testemunhas disto os nossos Irmatildeos que viram

algumas vezes os mortos por elesPor isso costumam os Indios

deixar em certo caminho que por aacutesperas brenhas vai ter ao interior

das terras no cume da mias alta montanha quando por caacute passam

penas de aves abanadores flechas e outras cousas semelhantes

como uma espeacutecie de oblaccedilatildeo rogando fervorosamente aos curupiras

que natildeo lhes faccedilam mal

106 de curu-corruptela de curumim + pira = corpo corpo de menino 107 Caipora do tupi-guarani caaacute mato e pora habitante 108 httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905 109 ANCHIETA- Cartas 1988p138 Carta de S Vicente - 1560

91

Anchieta fala do igpupiaacutera110

Ha tambeacutem nos rios outros fantasmas que chamam

Igpupiaacutera isto eacute que moram n agua que matam do mesmo aos Indios

Natildeo longe de noacutes ha um rio habitado por Cristatildeos e que os Indios

atravessavam outrora em pequenas canocircas que fazem de um soacute

tronco ou de corticcedila onde eram muitas vezes afogados por eles

antes que os Cristatildeos para laacute fossem

Conta ainda sobre o Macuteboy-tataacute111

Ha tambeacutem outros maximegrave nas praias que vivem a maior

parte do tempo junto ao mar e dos rios e satildeo chamados de baetataacute

que quer dizer cousa de fogo o que eacute o mesmo como se dissesse o

que eacute todo fogo Natildeo se vecirc outra cousa senatildeo um facho cintilante

correndo daqui para ali acomete rapidamente os Indios e mata-os

como os curupiras o que seja isto ainda natildeo se sabe com certeza

Haacute tambeacutem outros espectros do mesmo modo pavorosos

que natildeo soacute assaltam os Indios como lhes causam dano o que natildeo

admira quando por ecircstes e outros meios semelhantes que longo fora

enumerar quer o democircnio tornar-se formidaacutevel a ecircstes Brasis que

natildeo conhecem a Deus e exercer contra eles tatildeo cruel tirania

E assim podemos ir comparando os cristatildeos usando os padres como

intermediaacuterios do divino os indiacutegenas usando os pajeacutes como sacerdotes os

cristatildeos com medo do diabo os indiacutegenas com medo do Anhangaacute do Taguaigba

Pigtangua do Avasaly ou do Curupira o sarnento

110 Igpupiaacutera

falam Anchieta e F Cardim conforme nota 165 de ANCHIETA-Cartas 1988- 153 - tambeacutem conhecidos como y-pypiaacutera sendo y= aacutegua e pypiaacutera= de dentro isto eacute um monstro que vivia dentro das aacuteguas dos rios 111 ANCHIETA Cartas 1988 p139 Carta de S Vicente - 1560

92

Eram vaacuterios por todo o territoacuterio conhecido pelos portugueses conforme

nos fala Pedro Calmon112 Aimoreacute ou Tapuia os Tupinambaacute de todo o litoral os

Temiminoacute e os Tamoio que se denominavam velhos Tupi canoeiros e pescadores

os Goytacas dos campos proacuteximos de Cabo Frio e mais os Tucupecuxari

Kmayuraacute Yanomami Kadiweu Kaigang Krahocirc Yawalapiti e tantos e tantos

outros

Por esse motivo Jecupeacute que listou 206 tribos em nossas fronteiras

chama o Brasil de Terra dos Mil Povos

O que sabemos enfim eacute que o indiacutegena vivia e concebia suas vidas

atraveacutes de ritos de passagem de ritos de casamento de ritos de nascimento e

morte de magia propiciatoacuteria de batalhas culturais com outras tribos onde ao

guerrearem trocavam culturas trocavam conhecimentos garantiam seus

patrimocircnios geneacuteticos e realizavam suas mostras de honra e bravura garantindo-

lhes a sobrevivecircncia na terra adacircmica mas indocircmita em que viviam

Viviam como filhos do sol ou da lua apoiados no amor ou na ira da

Grande Matildee usando como siacutembolos em suas vidas a coruja a serpente a onccedila

ou o gaviatildeo dividindo-se em grupos e sub-grupos que geravam dialetos e

costumes de dormir de comer de amar de sofrer de rir de guerrear enfim de

viver

112 CALMON 1963 vol 2 p324-330

93

CAPIacuteTULO 5 - COMO OS INDIacuteGENAS TERIAM RECEBIDO A PREGACcedilAtildeO CRISTAtilde E AS

DIFICULDADES ENCONTRADAS NA MISSAtildeO DE CONVERTER

Entendo que seja necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees sobre o

espaccedilo poreacutem no sentido de acircmbito que ocupavam simultaneamente cristatildeos

principalmente os jesuiacutetas e os indiacutegenas brasileiros Era esse espaccedilo natildeo de

terra mas situacional em que ocorreram os confrontos entre grupos de origens

distintas obrigados a transformar a si proacuteprios muitas vezes a uacutenica possibilidade

de manterem suas vidas

Essa transformaccedilatildeo teve por alicerce uma espeacutecie de amaacutelgama

multifacetada de simbolismos o que significa dizer que nestes espaccedilos dedicados

a salvaccedilatildeo de almas forjaram-se respostas muacuteltiplas aos desafios trazidos pelo

encontro entre universos simboacutelicos tatildeo divergentes De um lado aquelas

orquestradas pelos disciacutepulos de Santo Inaacutecio atraveacutes da doutrina e da imposiccedilatildeo

do evangelho de outro as respostas fruto da apropriaccedilatildeo diversa e inovadora

produzida pela multidatildeo de etnias que compunham as muitas aldeias indiacutegenas

que deveriam ser totalmente subjugadas no bom sentido cristatildeo pela Santa

Madre Igreja

Quem nos definiu esse espaccedilo e tudo que nele ocorreu foram os

jesuiacutetas que atraveacutes de suas cartas suas crocircnicas catecismos e autos teatrais

94

relatavam o que acontecia com relaccedilatildeo a esses confrontos de culturas tatildeo

distintas

Muitos jesuiacutetas foram considerados cronistas perspicazes da realidade

que experimentavam Permitindo o desenho de um panorama complexo e intenso

do universo com o qual conviveram O encontro com o gentio e o escrutiacutenio de sua

natureza por parte desses soldados de cristo no firme propoacutesito de conquistar

almas ficou registrado nas diversas correspondecircncias que produziram no

cotidiano de suas missotildees Algumas circularam para aleacutem dos muros da ordem

como cartas de Noacutebrega de Navarro e de tantos outros Os catecismos e os autos

de Anchieta os sermotildees e os Regulamentos das Missotildees de Vieira

A vasta documentaccedilatildeo produzida pela Companhia de Jesus como fruto

do encontro entre seus missionaacuterios e os brasis corresponde a um conjunto

enorme de informaccedilotildees lapidadas pelo estilo conveniente para serem lidas

para servirem de registro da memoacuteria e como mateacuteria para edificaccedilatildeo dos irmatildeos

de sua ordem espalhados pelo mundo O sistema de comunicaccedilatildeo implantado

pela Ordem pode ser considerado sem precedentes na histoacuteria ocidental

Os Portugueses alcanccedilaram o litoral sul-americano pela

primeira vez em abril de 1500 poreacutem foi apenas no uacuteltimo quartel do

seacuteculo XVI que comeccedilaram a produzir relatos sistemaacuteticos com o

intuito de descrever e classificar as populaccedilotildees indiacutegenas

Excetuando-se a sumaacuteria Histoacuteria da proviacutencia de Santa

Cruz de Pero Magalhatildees Gacircndavo impressa em Lisboa em 1576 e

algumas cartas jesuiacuteticas amplamente disseminadas na Europa em

diversas liacutenguas os textos portugueses mais significativos

95

permaneceram ineacuteditos por seacuteculos bem como os Tratados da Terra

e Gente do Brasil uma compilaccedilatildeo da obra de Cardim proporcionam

claros indiacutecios das percepccedilotildees e imagens acumuladas ao longo do

seacuteculo XVI pelos portugueses no que diz respeito a um universo

indiacutegena que se apresentava tatildeo vasto e variado quanto

incompreensiacutevel 113

Ao mesmo tempo tratar essa documentaccedilatildeo como fonte enseja

algumas questotildees O que revelam sobre o cotidiano das missotildees jesuiacuteticas que

mereceriam destaque Qual a possibilidade de trataacute-los como fonte para a histoacuteria

das populaccedilotildees indiacutegenas e seu processo de conversatildeo Seriam elas confiaacuteveis a

ponto de elaborarmos este trabalho sobre como os indiacutegenas teriam recebido a

pregaccedilatildeo cristatilde

A importacircncia dos relatos jesuiacuteticos como fontes para a histoacuteria eacute

inegaacutevel Jaacute se produziu muito e haacute de se produzir muito mais com base nessas

cartas e relatos os mais variados No entanto esses verdadeiros veiacuteculos de

comunicaccedilatildeo trazem uma complexidade de regras e de formas retoacutericas que natildeo

devem ser menosprezadas Se o forem corre-se o perigo de retirar deles sua

historicidade e a possibilidade de sua inteligibilidade Isso natildeo foi esquecido

durante a pesquisa deste trabalho

Das muitas caracteriacutesticas especiacuteficas da empresa jesuiacutetica uma eacute

essencial a sua unidade Portanto natildeo haacute como desvincular a sua instituiccedilatildeo

epistolar de seus fins poliacuteticos e miacutesticos Tatildeo pouco eacute possiacutevel separar tais

113 MONTEIRO 2001p12

96

relatos dos interesses pragmaacuteticos que impregnavam seus ideais de missatildeo

Assim sendo os relatos jesuiacuteticos se conformaram na fronteira entre por um lado

a necessidade de se submeterem agraves regras retoacutericas tradicionais e de

obedecerem a outras que permitissem tornar seus textos puacuteblicos por outro lado

servirem de suporte para a troca de experiecircncias missionaacuterias essenciais para o

crescimento e manutenccedilatildeo de sua atividade evangelizadora

Mas era necessaacuterio ainda que se pudesse entender o indiacutegena no

sentido daquilo que diziam e como diziam seus significados e a comunicaccedilatildeo

entre brancos europeus e agravequeles a que a missatildeo impunha conversatildeo Afinal

como impor um mito sem uma linguagem em que o mito seja entendido

A linguagem e o mito satildeo espeacutecies proacuteximas Nas etapas

primeiras da cultura humana sua relaccedilatildeo eacute tatildeo estreita e sua

cooperaccedilatildeo tatildeo patente que resulta quase impossiacutevel separar uma da

outra 114

Conforme Monteiro115 em seu trabalho desde o momento que os

inacianos chegaram em 1549 eles se defrontaram com um dos maiores

problemas da conversatildeo o de traduzir a simbologia o conteuacutedo e os sentidos da

doutrina cristatilde para uma liacutengua que atingisse o maior nuacutemero possiacutevel de

catecuacutemenos natildeo soacute pela comunicaccedilatildeo mas pelo mito pois na liacutengua

114 CASSIRER 1945 p166 115 MONTEIRO 2001

97

portuguesa natildeo haveria como fazer com que os conceitos do mito cristatildeo

atingissem a alma daqueles a quem queriam converter

Apesar da enorme diversidade linguiacutestica que se descobria

pouco a pouco agrave medida que a expansatildeo portuguesa avanccedilava para

aleacutem das estreitas faixas litoracircneas estabeleceu-se desde cedo uma

poliacutetica linguiacutestica que tornava a liacutengua mais usada na costa do

Brasil o seu principal instrumento Baseada na verdade num

conjunto de dialetos da famiacutelia linguiacutestica tupi-guarani a primeira

liacutengua geral foi perdendo as suas inflexotildees locais e regionais em

funccedilatildeo da sua adoccedilatildeo sistematizaccedilatildeo e expansatildeo enquanto idioma

colonial 116

O primeiro inteacuterprete oficial foi o colono por conhecer tanto o discurso

cristatildeo como tambeacutem pela sua destreza na liacutengua tupi

Poreacutem natildeo foi muito duradoura essa alianccedila entre colonos e

missionaacuterios pelo fato de que esses colonos entraram em conflito com os jesuiacutetas

pelo controle da matildeo de obra indiacutegena que se tentava escravizar A capacidade e

a competecircncia dos colonos para servirem de interpretes na produccedilatildeo do discurso

religioso passou a ser um grande obstaacuteculo para a missatildeo de conversatildeo

deturpando e usando de persuasatildeo o trabalho de liacutengua para fins e propoacutesitos

proacuteprios Assim com esse conflito de interesses os jesuiacutetas tiveram que tentar

uma nova proposta a de encarregar suas proacuteprias instituiccedilotildees de formar seus

proacuteprios liacutenguas que seriam inclusive capacitados em traduzir aos indiacutegenas os

discursos religiosos e tentar interpretar suas respostas

116 MONTEIRO 2001 p36

98

Inicia-se entatildeo uma formaccedilatildeo de interpretes entre os indiacutegenas que

acompanhavam os missionaacuterios onde a escola de escrever e contar dirigida aos

filhos dos principais pudesse ter a funccedilatildeo de formar interpretes indiacutegenas para os

missionaacuterios Aprendiam entatildeo nas escolas o portuguecircs e o discurso religioso

No entanto a escola tambeacutem natildeo se mostrou como um meio seguro

com o qual se pudesse garantir o controle desse discurso pois dentre esses

indiacutegenas formados muitos se transformaram em verdadeiros opositores dos

discursos religiosos disseminando essa apologia entre os indiacutegenas de outras

regiotildees

Dessa forma a experiecircncia mostrou que tanto os indiacutegenas como os

colonos natildeo eram os inteacuterpretes adequados agraves condiccedilotildees de produccedilatildeo e

circulaccedilatildeo do discurso apologeacutetico religioso da missatildeo jesuiacutetica

Foi entatildeo que a Companhia de Jesus passou a recomendar que a

catequese e a conversatildeo fosse feita sem auxiacutelio de intermediaacuterios o que obrigou

aos jesuiacutetas a iniciar uma proposta de formar os liacutenguas no proacuteprio interior da

hierarquia da Igreja exigindo que todos tivessem que procurar formas de adquirir

o conhecimento da liacutengua indiacutegena Os coleacutegios de toda a colocircnia funcionavam

assim como centro de formaccedilatildeo de interpretes dando-se muitas vezes maior

ecircnfase ao conhecimento da liacutengua brasiacutelica do que agraves questotildees teologicas e

outras disciplinas da formaccedilatildeo eclesiaacutestica substituindo em muito o grego liacutengua

importante par a formaccedilatildeo dos cleacuterigos da eacutepoca preocupando-se muito mais em

transformar os noviccedilos em liacutenguas do que em teoacutelogos

99

Nesse caminho lentamente a Igreja foi adquirindo sua independecircncia

em relaccedilatildeo agraves necessidades de inteacuterpretes onde passo a passo foi elaborando

gramaacuteticas e dicionaacuterios em Tupi Tanto essas gramaacuteticas como esses dicionaacuterios

representavam os meacutetodos formais do aprendizado tupi adequando o jesuiacuteta agrave

aquisiccedilatildeo de uma segunda liacutengua

Desta forma a liacutengua geral para os jesuiacutetas foi o resultado de um longo

trabalho em que por pesquisas e interpretes de vaacuterias origens culminando com a

publicaccedilatildeo da Arte de Grammatica de Joseacute de Anchieta em 1595 e do Catecismo

na Liacutengua Brasiacutelica de Antocircnio de Arauacutejo em 1618 No iniacutecio das atividades no

Brasil os jesuiacutetas Pero Correia Juan de Azpilcueta Navarro e Joseacute de Anchieta

deram os primeiros passos decisivos em direccedilatildeo agrave sistematizaccedilatildeo dessa liacutengua

Monteiro117 nos informa que escrevendo de Satildeo Vicente em 1553 o

irmatildeo Pero Correia pediu ao Provincial Simatildeo Rodrigues o envio de livros como

subsiacutedio a seus trabalhos em tupi citando especificamente algumas obras do

escritor castelhano Constantino Ponce de la Fuente de que pudesse tirar

grandes exemplos com muita doutrina para estes gentios os quais espero antes

de morrer ver todos cristatildeos o que em muito ajudou os padres a verterem

sermotildees do Velho e Novo Testamento mandamentos pecados mortais e obras

de misericoacuterdia

No mesmo ano Azpilcueta Navarro informou aos padres e irmatildeos do

Coleacutegio de Coimbra que havia enviado todas as oraccedilotildees na liacutengua do Brasil com

117 MONTEIRO 2001

100

os mandamentos e pecados mortais etc com uma confissatildeo geral princiacutepio do

mundo encarnaccedilatildeo e do juiacutezo e fim do mundo Natildeo conseguiu no entanto criar

uma arte isto eacute manual de gramaacutetica Anchieta por seu turno achava

precipitado elaborar uma gramaacutetica tupi nesses anos iniciais Quanto agrave liacutengua

natildeo a ponho em arte porque natildeo haacute quem aproveite somente aproveito-me eu

dela e aproveitar-se-atildeo os que de laacute vierem que souberem gramaacutetica Contudo

no ano seguinte o irmatildeo Antocircnio Blaacutezquez relatou que os meninos e os irmatildeos

da casa andam todos com grande fervor de saber a liacutengua [e] para aprendecirc-la

tecircm uma Arte que trouxe o Padre Provincial

Tive grande consolaccedilatildeo em confessar muitos iacutendios e

iacutendias por inteacuterprete satildeo candidiacutessimos e vivem com muito menos

pecados que os Portugueses Dava-lhes sua penitecircncia leve porque

natildeo satildeo capazes de mais e depois da absolviccedilatildeo lhes dizia na

liacutengua xe rair tupatilde toccedilocirc de hirunamo sc filho Deus vaacute contigo 118

Mas voltemos agraves correspondecircncias Mostram essas correspondecircncias

que as aldeias indiacutegenas recebiam constantemente a visita dos padres jesuiacutetas

que para ganharem a confianccedila dos iacutendios a serem convertidos agrave feacute cristatilde

apropriavam-se muitas vezes da funccedilatildeo do pajeacute Tornavam-se portanto

portadores dos remeacutedios contra as mazelas natildeo somente das almas mas tambeacutem

dos corpos

Os jesuiacutetas sabiam da necessidade dessas associaccedilotildees como padre x

pajeacute simbologia cristatilde x cosmogonia indiacutegena mitos dessa cosmogonia e a visatildeo

118 CARDIM 1997 [1583-90] p234

101

do Orbis Christianus desde o iniacutecio de seus trabalhos missionaacuterios desde a

chegada dos primeiros jesuiacutetas e viam nos pajeacutes seus mais fortes adversaacuterios

uma vez que teriam necessariamente de tomar o seu lugar

Os que fazem estas feiticcedilarias que disse satildeo mui

apreciados dos Indios persuadem-lhes que em seu poder estaacute a vida

ou a morte natildeo ousam com tudo isto aparecer deante de noacutes outros

porque descobrimos suas mentiras e maldades 119

ou

Si noacutes abraccedilarmos com alguns costumes deste Gentio os

quaes natildeo satildeo contra nossa feacute catoacutelica nem satildeo ritos dedicados a

iacutedolos como eacute cantar cantigas de Nosso Senhor em sua liacutengua pelo

tom e tanger seus instrumentos de muacutesica que elles usam em suas

festas quando matam contraacuterios e quando andam becircbados e isto

para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais () e assim

o preacutegar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e

batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir

alguma cousa e dizecirc-la com muita efficacia e assim tosquiarem-se os

meninos da terra que em casa temos a seu modo Porque similhanccedila

eacute causa de amor E outros costumes similhantes a estes 120

Muitas vezes usavam a roupagem simboacutelica de seu adversaacuterio de

forma consciente para adentrarem no mundo miacutestico dos gentios outras vezes agrave

sua revelia eram confundidos e enquadrados como payeacute sem sequer disso se

darem conta

119 ANCHIETA - Cartas -1988 p83 Carta de Piratininga - 1555 120 NOacuteBREGA 1988 p142-Carta de Manuel da Noacutebrega a Simatildeo Rodrigues 17 de setembro de 1552

102

Mas era preciso controlar corpo e mente e na mente estavam seus

siacutembolos seus mitos e suas almas Dominar as almas dos gentios implicava ter o

controle sobre seus corpos e disciplinar os corpos e as accedilotildees era tarefa lenta e

metoacutedica O ritmo o tempo e a liberdade precisavam ser regulados O trabalho era

intenso e incansaacutevel

Nas cartas de Anchieta e de Noacutebrega muitas tantas vezes surgem

relatos de visitas repetidamente realizadas a uma tribo ou outra onde se mostrava

a intenccedilatildeo clara da imposiccedilatildeo dessa disciplina ou da repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos

em vaacuterios momentos de uma mesmo dia a fim de que se fixassem os novos

ensinamentos e conceitos

Natildeo bastasse a doutrinaccedilatildeo diaacuteria aos domingos e dias santos era

necessaacuterio dizer missa no momento em que pudessem estar todos juntos Para

ampliar o controle sobre a presenccedila deveria haver lugar certo nas Igrejas para as

casas e famiacutelias desses iacutendios

Caso algum faltasse agrave missa deveria o seu missionaacuterio tomar nota e

admoestar em particular o ausente Reincidindo no erro seria admoestado em

puacuteblico e por fim castigado

A atividade catequeacutetica dominical e festiva parecia ser a mais

importante uma vez que era o momento propiacutecio para a reuniatildeo de toda a

comunidade Portanto os cuidados para com ela tambeacutem eram maiores Deveria

se dizer missa e antes da mesma aleacutem da doutrina de ordem os padres

deveriam abordar dois pontos quais sejam os misteacuterios da feacute ou do evangelho e

outro moral que abordasse um viacutecio de maior incidecircncia no momento

103

A persistecircncia dos novos catecuacutemenos em manter haacutebitos tidos como

perniciosos ou como obra do inimigo por seus mestres jesuiacutetas fez com que

estes uacuteltimos flexibilizassem algumas regras de conduta como ateacute mesmo utilizar

iacutendios jaacute evangelizados nas tarefas de conversatildeo nem que fosse ao menos de

exercer atividades no interior dos templos tornando-se na maioria das vezes

sacristatildeos e coroinhas A inserccedilatildeo desses iacutendios nestas atividades apresenta

nuanccedilas riquiacutessimas do modo com que construiacuteram para si o sentido da religiatildeo e

dos rituais catoacutelicos principalmente se levarmos em conta que muitos deles

considerados hereges e que foram levados ao tribunal do Santo Ofiacutecio

O processo de conversatildeo dos iacutendios cristatildeos comeccedilava com o ritual do

batismo o que para os missionaacuterios significava uma forma de permitir a ida das

almas para o mundo de Deus

No entanto para a populaccedilatildeo indiacutegena o batismo ganhava sentido

mais complexo inclusive o de permissatildeo para adentrarem no mundo dos homens

brancos e cristatildeos mundo esse cheio de novas simbologias de curas para muitos

de seus males fiacutesicos e ateacute de um certo conforto diferenciado daquele que

conheciam ao viverem na proximidade dos jesuiacutetas

Poreacutem para o jesuiacuteta a verdadeira obra da missatildeo soacute se concretizava

com a pescaria das almas e com o seu controle absoluto ateacute a morte fiacutesica Salvar

os outros significava salvar a si mesmo Assim como morriam muitos inocentes

dever-se-ia batizar as crianccedilas prioritariamente ainda que moribundas para que

pudessem lograr ecircxito na batalha contra satanaacutes

104

natildeo podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor

para com eles principalmente porque vecircm que empregamos toda a

diligecircncia no tratamento de suas enfermidades sem nenhuma

esperanccedila de lucro E fazemos isto na intenccedilatildeo de preparar para o

recebimento do batismo caso haja necessidade os seus espiritos em

tais circustancias mais redutiveis e mais brandos por igual motivo eacute

que desejamos assistir agraves parturientes a fim de batizar matildee e filho se

o caso exigir Assim acontece atender-se agrave salvaccedilatildeo do corpo e da

alma 121

Claro poreacutem que batizar jaacute que parecia ser algo que os indiacutegenas

apreciavam ou desejavam para poderem adentrar ao mundo branco era um dos

pontos que os jesuiacutetas usavam como forma de meacuterito isto eacute seja cristatildeo em suas

atitudes e disciplinas e aiacute sim receberaacute o batismo Saiba o catecismo e assim seraacute

batizado Vejamos

Antes do dia do Nascimento do Senhor procuraacutemos que

se confessassem o qual fizeram muitas mulheres e alguns homens

os quais diligentemente examinaacutemos nas cousas da feacute e o que

principalmente pretendemos eacute que saibam o que toca os artigos da feacute

scilicet ao conhecimento da Santiacutessima Trindade e aos misteacuterios da

vida de Cristo que a Igreja celebra e que saibamquando lhes forem

perguntado dar conta destas cousas o qual temos em mais que

saber as oraccedilotildees de memoacuteria ainda que nisto se potildee muito cuidado e

diligecircncia porque duas vezes cada dia se lhes ensina na igreja a

nenhum batizamos senatildeo assim instruidos e ainda depois da

confissatildeo lhes pedimos conta dessas cousas a qual muitos maacutexime

121 ANCHIETA Cartas - 1988 P98 Carta de Piratininga - 1556

105

da mulheres datildeo bem que natildeo ha duacutevida senatildeo que levam

vantagem a muitos nascidos de pais Cristatildeos de maneira que muitos

satildeo assas aptos para receber o Santiacutessimo Sacramento da

Eucaristia

Antes ou mesmo depois do advento da liacutengua geral de Anchieta na

impossibilidade de compreensatildeo das liacutenguas por parte dos missionaacuterios e na falta

de interpretes que se batizasse por aceno e com a ajuda das imagens sacras

pinturas cruzes e outros objetos cristatildeos Vejamos

()O Padre que os tiver agrave sua conta procuraraacute com todo o

cuidado fazer um catecismo breve que contenha os pontos

precisamente necessaacuterios para a Salvaccedilatildeo e deste usaratildeo nos casos

de necessidade e por ele os iratildeo ensinando e instruindo mas em

caso que totalmente natildeo haja inteacuterprete nem outro modo por donde

fazer o dito catecismo seraacute meio muito acomodado o misturar os tais

Iacutendios com os da Liacutengua Geral ou de outra sabida para que ao menos

os seus meninos aprendam com a comunicaccedilatildeo e no entretanto se

lhes mostraratildeo as Imagens e Cruzes e os faratildeo assistir aos ofiacutecios

divinos e administraccedilatildeo dos Sacramentos e as mais accedilotildees dos

Cristatildeos para que possam em caso de necessidade inculcar-lhes o

batismo por acenos pois natildeo haacute meio de receberem a feacute pelos

ouvidos de modo que ao menos sub condicione nenhum morra sem

batismo 122

A confissatildeo tambeacutem natildeo poderia ficar de fora das preocupaccedilotildees dos

missionaacuterios Abrir os recocircnditos mais profundos da alma ao missionaacuterio era de

122 Vieira Regulamento das Missotildees p 199-200

106

vital importacircncia na tarefa de perscrutar a sinceridade da sua ligaccedilatildeo com a

religiatildeo Para tanto essas diretrizes indicavam a necessidade de todo ano

produzir listas daqueles capazes de confissatildeo Nenhum deveria ficar sem se

confessar ainda que fossem muitos os iacutendios e poucos os missionaacuterios

A confissatildeo eacute dos sacramentos aquele em que o caraacuteter

de julgamento eacute mais niacutetido Haacute um diaacutelogo - ou melhor uma

sucessatildeo de monoacutelogos em que o penitente diz seus eventuais

pecados responde a indagaccedilotildees sobre os pecados e sobre a

existecircncia de outras ofensas e o fim da confissatildeo eacute marcado por uma

penalidade 123

Assim batizar confessar casar e ajudar a bem morrer eram tarefas

baacutesicas ao bom missionaacuterio Nos laccedilos sagrados do matrimocircnio por exemplo os

missionaacuterios enfatizam a necessidade de manter registros dos nomes

sobrenomes da data do paacuteroco e das testemunhas do casamento assim como

da aldeia em que foi realizado Nenhum padre deveria realizar matrimocircnio entre

iacutendios de paroacutequias diferentes sem proceder a uma coleta de informaccedilotildees em

ambas as paroacutequias para assim terem certeza de que natildeo haveria um sagrado

matrimocircnio com pessoas que jaacute haviam recebido esse sacramento de outro padre

em outra eacutepoca em outra situaccedilatildeo

Quando da necessidade de ajudar o bem morrer era pelo firme

propoacutesito de guardar as almas desses novos cristatildeos e que tivessem morte

assistida o que garantia um ganho definitivo de seu espiacuterito pois era na morte

123 NEVES 1978 p75

107

que os jesuiacutetas colheriam o fruto do trabalho missionaacuterio pois como pastores de

almas teriam que dar conta daquelas que foram apresentadas aos ceacuteus e

encaminhaacute-las em direccedilatildeo a Deus

Mas controlar as almas natildeo bastava o diabo usava dos corpos e dos

gestos pra sua tarefa e por isso junto ao controle das almas atraveacutes da

evangelizaccedilatildeo dos gentios era necessaacuterio o controle dos gestos e dos corpos

tambeacutem fazia parte da obrigaccedilatildeo dos missionaacuterios Na ocasiatildeo das mortes o

controle sobre os rituais utilizados pelas naccedilotildees no sepultamento de seus mortos

era objeto tambeacutem da preocupaccedilatildeo do missionaacuterio O modo de amortalhar ou de

usarem algumas coisas supersticiosas era proibido pelos padres assim como

tambeacutem eram os excessos com que costumam chorar o defunto Pondera Vieira

que ainda que natildeo fossem demonstraccedilotildees de uso gentiacutelico mas sim de dor

natural deveriam se acomodar a poliacutetica cristatilde

Enfim a tocircnica comum compartilhada pelos jesuiacutetas estava relacionada

agrave necessidade de salvaccedilatildeo das almas Desde o seu princiacutepio a preocupaccedilatildeo com

a sua salvaccedilatildeo foi parte constitutiva da missatildeo da Companhia de Jesus Os iacutendios

considerados infieacuteis deveriam ser salvos de sua gentilidade da barbaacuterie e dos

erros em que viviam Essa gentilidade fazia com que esses iacutendios vivessem no

erro caberia ao missionaacuterio portanto conduzir os iacutendios para a verdade atraveacutes

da conversatildeo

108

Nos mostra Monteiro124 que a salvaccedilatildeo das almas encontrava outra

problemaacutetica a ser enfrentada a morte do gentio

A morte do gentil era constante desde o contato com os jesuiacutetas com

os aldeamentos com os brancos europeus mesticcedilos ou africanos e isso era com

certeza uma grande problemaacutetica para a conversatildeo pois com os primeiros

contatos comeccedilam ocorrer os principais episoacutedios epidecircmicos que destruiacuteram

muito das populaccedilotildees indiacutegenas do litoral

Eacute correto dizer no entanto que seja como for no litoral brasileiro do

seacuteculo XVI o contato direto entre as etnias indiacutegenas e os europeus e africanos jaacute

havia atravessado ao menos cinco deacutecadas antes da eclosatildeo das primeiras

pandemias Longe de constituir um variaacutevel independente no despovoamento do

litoral a mortalidade provocada por doenccedilas contagiosas atingiu seus pontos mais

altos quando conjugada com outras mudanccedilas importantes nas relaccedilotildees entre

colonizadores e iacutendios Afinal de contas foi na esteira das ofensivas beacutelicas

promovidas pelo governador Mem de Saacute e do processo concomitante de

deslocamento das populaccedilotildees indiacutegenas para as aldeias missionaacuterias que

ocorreram as primeiras grandes epidemias com destaque para o alastramento da

variacuteola pelo litoral de Pernambuco a Satildeo Vicente

As doenccedilas letais semearam a desordem entre a populaccedilatildeo nativa

sobretudo naquela subordinada aos missionaacuterios e aos colonos Anchieta

rememorando este grande surto epidecircmico escreveu em 1584

124 MONTEIRO 2001 p60

109

No mesmo ano de 1562 por justos juiacutezos de Deus

sobreveio uma grande doenccedila aos Iacutendios e escravos dos

Portugueses e com isto grande fome em que morreu muita gente e

dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos

Portugueses e se fazer escravos vendendo-se por um prato de

farinha e outros diziam que lhes pusessem ferretes que queriam ser

escravos foi tatildeo grande a morte que deu neste gentio que se dizia

que entre escravos e Iacutendios forros morreriam 30000 no espaccedilo de 2

ou 3 meses 125

Monteiro nos mostra ainda que infelizmente natildeo sabemos muito de

como os indiacutegenas responderam aos surtos epidecircmicos mas as cartas dos

jesuiacutetas no iniacutecio da colonizaccedilatildeo dizem algo sobre a percepccedilatildeo dos iacutendios com

relaccedilatildeo agrave origem das doenccedilas claramente associada agrave presenccedila dos padres

Pouco depois de chegar no Brasil o padre Manuel da Noacutebrega se espantou natildeo

apenas com a frequumlecircncia das doenccedilas entre a populaccedilatildeo batizada pelos jesuiacutetas

mas tambeacutem e sobretudo com a acusaccedilatildeo veiculada pelos feiticeiros de que os

missionaacuterios infligiam a doenccedila com a aacutegua do batismo e causavam a morte com

a doutrina126

A liacutengua Geral mostrava que as epidemias estavam presentes no

vocabulaacuterio indiacutegena ao definir a varicela como catapora o fogo que salta

De toda forma com epidemias ou natildeo com paciecircncia ou natildeo com

liacutengua geral e inteacuterpretes da comunicaccedilatildeo para o jesuiacuteta aqueles baacuterbaros natildeo

125 ANCHIETA Cartas- 1988 p364 Informaccedilotildees dos primeiros aldeamentos da Bahia 126 MONTEIRO 2001 p62

110

tinham afeiccedilatildeo pelas coisas de Deus viviam como brutos apenas para comer

beber e danccedilar Para os indiacutegenas de sua parte os padres natildeo entendiam seus

valores e sempre colocavam seus costumes e tradiccedilotildees como algo pertencente ao

diabo

O que se pode no entanto inferir eacute que houve o fato do processo de

encontro do embate de mitos entre dois universos simboacutelicos e sociais

completamente estranhos um ao outro

De um lado uma profecia que um certo pajeacute fazia com terror que os

iacutendios iriam virar brancos revelava mesmo aos pedaccedilos um pouco do processo

de leitura que essas populaccedilotildees nativas faziam desse encontro De outro lado o

cansaccedilo de Noacutebrega antes de sua morte revelavam um pouco do pessimismo do

jesuiacuteta quanto ao processo de conversatildeo e portanto da leitura que era possiacutevel

para ele missionaacuterio fazer tambeacutem daquele universo simboacutelico

Por um lado os pajeacutes acreditavam na transformaccedilatildeo de brancos em

iacutendios e de iacutendios em brancos por outro para o jesuiacuteta ver o iacutendio revestido

numa vestimenta simboacutelica a vestimenta da conversatildeo o cristatildeo tirado das

trevas De certa forma compactuavam pajeacute e jesuiacuteta com a mesma crenccedila ou

melhor com parte dela os iacutendios virariam brancos mas isso natildeo foi possiacutevel

Vieira em seu sermatildeo do Espiacuterito Santo dizia Natildeo ha gentios no

mundo que menos repugnem agrave doutrina da feacute e mais facilmente a aceitem e

recebam que os Brazis e natildeo porque os Brazis natildeo creiam com muita facilidade

mas porque essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crecircr em certo

modo seja como natildeo crer os Brazis ainda depois de crecircr satildeo increacutedulos em

111

outros gentios a incredulidade eacute increacutedulidade e a feacute eacute feacute nos Brasis a mesma feacute

ou eacute ou parece incredulidade 127

Vieira mostrava ainda em seus sermotildees que a resistecircncia era mais do

que resistecircncia pois outras naccedilotildees eram duras mas mais faacutecil de vencer que os

indiacutegenas do Brasil

haacute umas naccedilotildees naturalmente duras tenazes e

constantes as quaes difficultosamente recebem a feacute e deixam os

erros de seus antepassados resistem com as armas duvidam com o

entendimento repugnam com a vontade cerram-se teimam

argumentam replicam datildeo grande trabalho ateacute se renderem mas

uma vez rendidos uma vez que receberam a feacute ficam n ella firmes e

constante como estatuas de maacutermore natildeo eacute necessario trabalhar

mais com elles128

Jaacute com indiacutegenas do Brasil a tarefa era muito mais dura pois se o

pregador deixasse de estar presente por algum tempo que fosse todo o trabalho

de pregaccedilatildeo estava perdido e teria que ser reiniciado como se nunca tivesse

ouvido a palavra de algum pregador

Haacute outras naccedilotildees pelo contraacuterio ( e estas satildeo as do Brazil)

que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e

facilidade sem argumentar sem replicar sem duvidar sem resistir

mas satildeo estaacutetuas de murta que em levantando a matildeo e tesoura o

jardineiro logo perdem a nova figura e tornam agrave bruteza antiga e

natural e a ser matto como dantes eram Eacute necessario que assista

127 VIEIRA 1951 Sermatildeo do Espiacuterito Santo p410 128 idemp 413

112

sempre a estas estatuas o mestre d ellas uma vez que lhe corte o que

vicejam os olhos para que creiam o que natildeo vecircem outra vez que lhe

cerceie o que vicejam as orelhas para que natildeo decircem ouvidos agraves

fabulas do seus antepassados129

Era necessaacuterio insistir nos catecismo nas pregaccedilotildees na redundacircncia

de informaccedilotildees e conceitos mas mesmo assim os simbolismos continuavam

amalgamados e necessitando de mais imposiccedilatildeo de paciecircncia Veja Anchieta

Dando-lhe pois a primeira liccedilatildeo de ser um uacutenico Deus

todo poderoso que criou todas as coisas etc logo se lhe imprimiu na

memoacuteria dizendo que ele rogava muitas vezes que criasse os

mantimentos para o sustento de todos mas que pensava que os

trovotildees eram este Deus embora agora que sabia existir outro Deus

verdadeiro sobre todas as coisas que rogaria a ele chamando-lhe

Deus Padre e Deus Filho por que dos nomes da Santa Trindade

ecircstes dois sogravemente pocircde tomar porque se lhe podem dizer em sua

liacutengua mas o Espiacuterito Santo para este nunca achamos um vocabulo

proacuteprio nem circunloquio bastante e apesar de que natildeo o sabia

nomear poreacutem sabia crecircr 130

Outro ponto importante a ser citado como forma de conversatildeo era a

utilizaccedilatildeo do imaginaacuterio e do medo para a doutrinaccedilatildeo dos gentios e para

evangelizar aquelas almas

129 idem p 413 130 ANCHIETA- Cartas 1988 p200 Carta de Joseacute de Anchieta a Diego Laynes 16 de abril de 1563

113

A contrapartida da utilizaccedilatildeo consciente do imaginaacuterio indiacutegena para

fins doutrinais era a construccedilatildeo por parte desses gentios da imagem dos jesuiacutetas

que ganhava significados muito diferentes daqueles com que por ventura queriam

ser compreendidos

A perspicaacutecia desses jesuiacutetas natildeo foi suficiente para perceberem que

ao fazerem parte desse imaginaacuterio perdiam o controle e o poder sobre seus

catecuacutemenos pois passavam a pertencer a um mundo que natildeo era o seu

Portanto o medo que foi incutido nos gentios tambeacutem passou a ser compartilhado

pelos jesuiacutetas Na medida em que embora respeitados e temidos por muitos

indiacutegenas passavam a ser odiados com a mesma facilidade

A fronteira entre o temor o respeito e o oacutedio era demasiado tecircnue

Cabia ao jesuiacuteta se para isso talento tivesse traduzir esses limites O erro poderia

significar o fim da missatildeo ou mesmo a morte na ponta de uma flecha

O medo que sentiam os brasis de seus Pay-u-assuacute (como eram

denominados os jesuiacutetas) era compartilhado pelos padres Se os rituais catoacutelicos

estavam sendo resignificados em seus siacutembolos pelos indiacutegenas que os adequava

a sua maneira de perceber o universo da mesma forma os rituais gentiacutelicos mais

puros eram compreendidos pelos jesuiacutetas como sendo ritos demoniacuteacos

orquestrados pelo priacutencipe das trevas na batalha pela conquista das almas Claro

os jesuiacutetas tambeacutem carregavam por mais cultos que fossem seus mitos e suas

crenccedilas em Deus e portanto acreditavam no democircnio da mesma forma que os

indiacutegenas temiam a Deus ou a seus deuses

114

Mesmo assim a relaccedilatildeo do indiacutegena com o jesuiacuteta transformou muitos

desses iacutendios em cristatildeos e esses cristatildeos criados muitas vezes como produto

das missotildees dos jesuiacutetas tornaram-se peccedilas essenciais para a manutenccedilatildeo do

controle sobre a populaccedilatildeo indiacutegena para servirem de mediadores entre os

brancos colonizadores e os indiacutegenas das diversas aldeias que os jesuiacutetas tinham

sob seu comando para ajudarem na traduccedilatildeo dos catecismos e dos sermotildees para

a liacutengua geral para ajudarem na evangelizaccedilatildeo e nas tarefas da igreja Poreacutem a

doutrina por sua vez natildeo evoluiria sem o apoio desses personagens

Esses obscuros personagens quase nos bastidores desse teatro da

conversatildeo realizam de certa forma parte da profecia do pajeacute apavorado segundo

a qual os iacutendios iriam virar brancos e os brancos iriam virar iacutendios

Mas afinal qual o significado em tornar-se branco para esses iacutendios

A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no valor que

uma profusatildeo de objetos pontes entre mundos pudesse representar para esses

cristatildeos Cruzes medalhas bastotildees ferramentas vestidos e espadas tornaram-se

veiacuteculos de comunicaccedilatildeo entre homens de mundos distintos

Assim como o processo de alianccedila com diversas naccedilotildees indiacutegenas que

transformava seus liacutederes poliacuteticos em iacutendios principais de sua povoaccedilatildeo natildeo se

concretizava se o referido novo vassalo natildeo recebesse por parte das autoridades

portuguesas algum siacutembolo de sua grandeza e distinccedilatildeo

A espada e a casaca eram comumente utilizadas pelos principais das

tribos conquistadas assim como seus bastotildees de comando Ser importante

115

perante todos de todas as tribos significava receber honrarias brancas e cristatildes

em troca de ser subjugado pela cultura europeacuteia

Davam importacircncia a tudo que poderia tornaacute-los cristatildeos mas

adoravam receber e participar daquilo que se podia chamar de vida branca A

imagem de Cristo que preservaram com tanto cuidado o fato de terem construiacutedo

igreja e casa para o Jesuiacuteta a importacircncia que davam a ver seus nomes escritos

num papel que iria ateacute o rei e por fim o uso que os jesuiacutetas fizeram da cruz

levada nos ombros pelos escolhidos todas essas situaccedilotildees demonstram um

significado importante e ao mesmo tempo completamente inusitado desses

objetos Os jesuiacutetas pressentiam algo sobre esse significado tanto eacute que

utilizavam a cruz objeto para criar uma distinccedilatildeo entre os iacutendios Mas logo

traduziam esse significado para seu universo cosmoloacutegico inteiramente distinto e

estranho ao daqueles homens da floresta O que afinal poderiam significar esses

siacutembolos aos indiacutegenas

Alcanccedilar o significado desses objetos para os indiacutegenas significaria

obter uma resposta consistente sobre o que significava ser branco para eles

O uso dos objetos e roupas dos brancos distinguia os cristatildeos dos

gentios Havia uma transformaccedilatildeo em curso Natildeo significavam no entanto uma

total submissatildeo agraves regras de domiacutenio dos brancos Indicavam sim um aceite de

certas regras mas natildeo significava no entanto aceitar domiacutenio e desistecircncia de

suas crenccedilas e tradiccedilotildees

Iacutendios escravos poreacutem cristatildeos fincaram cruzes pelo caminho de suas

vidas numa clara tentativa de indicar sua inserccedilatildeo no mundo branco Esse

116

emaranhado de siacutembolos para estabelecer sua identidade cristatilde seria somente

uma estrateacutegia para sobreviverem demonstrando estarem do mesmo lado dos

brancos Por outro lado o uso dos objetos ocidentais no seu cotidiano e a

arquitetura de caiccedilara seriam indiacutecios de que esses homens apenas utilizavam tais

objetos por seu valor pragmaacutetico

Talvez o jesuiacuteta natildeo pudesse ter outra interpretaccedilatildeo desses indiacutecios

que natildeo essa do sentido utilitaacuterio e estrateacutegico No entanto natildeo parecem ter um

significado tatildeo simples Eles permitem conjecturas embora preliminares para

respostas um pouco mais complexas Esses diversos objetos apresentam uma

conexatildeo Sejam as espadas os bastotildees as cruzes ou as medalhas Natildeo podem

simplesmente ser traduzidos como simples recursos praacuteticos ou simboacutelicos

usados por populaccedilotildees indiacutegenas para o seu processo de inserccedilatildeo na sociedade

colonial portuguesa Menos ainda que essa inserccedilatildeo fosse uma estrateacutegia poliacutetica

para a manutenccedilatildeo de privileacutegios e de sobrevivecircncia somente

A imagem de cristo dos Nhengaiba por exemplo provavelmente um

crucifixo pode revelar um significado complexo que surgiu ao ser traduzido para a

liacutengua geral ou Nheengatu

Em liacutengua geral crucifixo eacute traduzido por Tupanarayra-rangaacuteua Para

se poder entender o seu possiacutevel significado para os indiacutegenas eacute necessaacuterio

traduzir cada umas das palavras que compotildee o termo

117

Tupana 131 significa em liacutengua geral matildee do trovatildeo a ela natildeo satildeo

rendidas homenagens ou festas Adaptado pelos jesuiacutetas Tupatilde transformou-se

no Deus cristatildeo O sufiacutexo ana indica que a accedilatildeo expressa no prefixo teve lugar e

continua a acontecer Ou seja Tupana ente desconhecido que troveja e mostra

seu poder pelo raio abate toda a floresta tirando a vida aos seres deixando-os

carbonizados

Rayra rangaacuteua 132 por sua vez significa filho ou afilhado do

homem Rangaacuteua isoladamente significa figura tempo hora medida

Certamente a ideacuteia que os Nhengaiba poderiam ter do crucifixo natildeo parece ser a

que os jesuiacutetas queriam que tivessem Ao traduzirem em liacutengua geral esse objeto

permitiram um cem nuacutemero de significados sobre os quais perderam o controle O

temor e respeito com que essa imagem foi adorada por estes iacutendios para a

surpresa dos jesuiacutetas podem estar ligados ao sentido que lhe deram ao traduzi-la

para o seu universo cosmogocircnico referencial

Embora esse sentido tenha ficado irremediavelmente perdido no tempo

eacute possiacutevel supor a traduccedilatildeo das palavras em Nhengatu uma possibilidade de

significado simboacutelico de que esse ser poderoso e desconhecido que troveja e tem

o poder de extinguir vidas se corporificou em uma figura sua medida em um

afilhado de Deus Se correto tal significado permite compreender o temor e o

respeito que esses catecuacutemenos tinham pelo Deus cristatildeo e seus missionaacuterios

jesuiacutetas Ao mesmo tempo permitem imaginar o oacutedio que possivelmente poderiam

131 Bueno 1998 p303 132 idem p 363

118

guardar por esse ser poderoso e vingativo Cruzes poderiam portanto ter um

poder em si mesmas para proteger e ao mesmo tempo simbolizar uma alianccedila

maacutegica com esse poderoso Deus

Enquanto espadas casacas e bastotildees simbolizavam poder para os

principais transformados em brancos ser cristatildeos atraveacutes do batismo poderia

permitir aliar-se a esse poderoso Deus possibilitando sua introduccedilatildeo num mundo

novo que se constituiacutea a sua revelia mas do qual eram tambeacutem artiacutefices

De certa maneira indicam que o processo de sua transformaccedilatildeo em

brancos estava em curso

Novamente a profecia daquele pajeacute parecia completar-se com a frase

de Vieira essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crer em certo

modo seja como natildeo crer Em outras palavras poderiacuteamos interpretar que esses

iacutendios mesmo facilmente tornando-se brancos e portugueses mesmo assim natildeo

o eram nunca seriam e nunca viriam a ser

119

CAPIacuteTULO 6 - O TEATRO COMO FERRAMENTA EDUCACIONAL E DE CATEQUESE

A religiatildeo indiacutegena eacute tomada desde o princiacutepio dos contatos dos

quinhentos como falsa como realidade diaboacutelica como de origem maldita sobre a

qual o cristianismo era imposto como o oposto superior

Havia uma imposiccedilatildeo eurocecircntrica onde o cristianismo era um dos

mais importantes sentimentos desse momento eurocentrista

Por esse motivo tudo deveria ser feito para que a conversatildeo chegasse

a termo

Mais uma ponte deveria ser construiacuteda para que o jesuiacuteta pudesse

persuadir e convencer os indiacutegenas da necessidade da aceitaccedilatildeo da conversatildeo ao

cristianismo Essa ponte deveria conter representaccedilotildees da realidade tanto do lado

cristatildeo como do lado dos brasis

Poreacutem a conversatildeo e qualquer ponte que levasse a ela natildeo poderia ser

apenas uma questatildeo de salvaccedilatildeo mas um elo essencial de inclusatildeo do Mundo

Novo e seus habitantes na sociedade europeacuteia para a qual naquela eacutepoca

religiatildeo e poliacutetica misturavam-se intrinsecamente

Os jesuiacutetas com as suas dificuldades de comunicaccedilatildeo muitas vezes jaacute

pregavam e doutrinavam usando de eloquumlecircncia levantando a voz mostrando os

120

misteacuterios da feacute atraveacutes de gestos andando em roda batendo as matildeos e os peacutes

sempre realizando um tipo de teatro rudimentar tal qual faziam os indiacutegenas

contando seus feitos fazendo as mesmas pausas quebras de retoacuterica gerando e

mostrando espantos pois sabiam que dessa forma estavam agradando e

persuadindo aquele povo que adorava a gestualiadade

Poreacutem eacute bom que se tenha claro que o teatro depois de consolidado

entre as formas pedagoacutegicas utilizadas pelos jesuiacutetas na conversatildeo serviu

tambeacutem como um espelho destruidor pois neles se mostrava a cosmogonia a

perfeiccedilatildeo do aguerrido a cultura dos brasis como sendo o Mal que se

contrapunha a vontade da Igreja que era o Bem Maior Na semacircntica desse teatro

Deus e os Santos lutavam na vida e na morte contra o Diabo da mesma forma

que os contraacuterios e os pajeacutes lutavam contra os padres e a pregaccedilatildeo

No teatro dos quinhentos o reino do democircnio das dissimulaccedilotildees e da

espreita das curas e dos espiacuteritos cabiam em uma soacute figura a do pajeacute visto que

eram essas coisas que mais davam credibilidade aos feiticeiros a arte de

persuadir de dissimular de espreitar e de falar com os espiacuteritos Luacutecifer aparecia

em lugares e situaccedilotildees sempre agrave espreita e como grande personagem do teatro

era representado de diversas formas por um principal por um beberratildeo por um

pajeacute por um guerreiro que desejasse defender as tradiccedilotildees mas nunca colocava

seu rosto para ser visto pois trabalhava sempre a espreita na calada na

sugestatildeo e na seduccedilatildeo se passando ateacute por bom por favoraacuteveis a causa da

catequese e ateacute como divinos O democircnio era atuante natildeo soacute nos autos mas sim

na vida do padres e dos demais cristatildeos vejamos por exemplo

121

o inimigo da natureza humana (como soe sempre fazer)

em impedir o bom successo da obra e assim determinou que a 7 ou 8

leguas daqui matassem um Christatildeo da armada em que viemos 133

Muitas das caracteriacutesticas do teatro medieval e do teatro europeu se

encontram presentes nos autos anchietanos de forma sempre adaptada agrave

compreensatildeo dos indiacutegenas segundo o que entendiam os jesuiacutetas Eram

mostrados nas peccedilas os misteacuterios os evangelhos as obras de Cristo mas

principalmente a realidade daqueles que assistiam ao teatro principalmente

atraveacutes do sagrado do temeroso do assustador do ruacutestico e do burlesco mas

principalmente a caracterizaccedilatildeo dos atores seus gestos e suas expressotildees e

figurino obedeciam a um simbolismo onde as caracteriacutesticas biacuteblicas por um lado

e por outro aos personagens antagocircnicos ao Bem mostrados pela caricatura

pelo grotesco de modo a ficar clara a desordem do inferno em contrapartida da

simbologia organizada do Bem Os cacircnticos suaves em latim estavam sempre em

contraposiccedilatildeo dos ruidosos personagens oriundos do inferno

Os autos de Anchieta tinham no entanto a caracteriacutestica de ultrapassar

as barreiras de uma peccedila teatral principalmente por fazer com que os

espectadores pudessem se misturar com os atores e de certa forma participarem

interativamente com o narrado mesmo que fossem com risadas e sons de

133 NOacuteBREGA 1988 p94

122

espanto com palma em cena aberta sem no entanto deixar que essa

representaccedilatildeo teatral perdesse seu intuito e seu formato dentro do espaccedilo cecircnico

Por representarem sempre os atores teatrais personagens do

cotidiano e do sagrado Anchieta conseguia utilizar esses mesmos personagens

em situaccedilotildees e contextos de diferentes momentos emprestando tanto

personagens como textos de um auto para outro

Muitas vezes Anchieta utilizava textos em que o aversivo para o

democircnio para o iacutendio perfeito portanto os bons costumes era dito pela boca

destes criando mais forccedila quando estes falavam mal da igreja dos padres de

Deus e dos Santos

Ai tenho andado debalde

agrave procura de um pouso

Irra Sempre me faz sair

Da taba o sacerdote

Expulsando-me para bem longe

Infelizmente ele ensina

A obedecer agraves palavras de Deus

Proclama que a sua linda matildee

Me desgraccedilou

Quebrou minha cabeccedila

Tudo o que Anchieta pretendia exaltar das boas qualidades dos

costumes dos iacutendios seus personagens sempre indiacutegenas mostravam essas

atitudes que vinham sempre acentuadas de forma positiva assim como a muacutesica

e as danccedilas pois no entender dos jesuiacutetas demonstravam a riqueza e a beleza

daquela cultura Jaacute os costumes que eram considerados pelos jesuiacutetas como

123

perniciosos e contraacuterios agrave moral da Santa Igreja apareciam normalmente

representados por personagens que deixavam claro pertencerem agraves hordas

demoniacuteacas ou pelo proacuteprio Diabo

O Auto de Satildeo Lourenccedilo eacute a mais longa e rica peccedila de Anchieta Essa

peccedila foi escrita em trecircs liacutenguas tupi portuguecircs e castelhano agrave semelhanccedila de

muitos autos de Gil Vicente que mostram a situaccedilatildeo de bilinguumlismo vigente em

Portugal no seacuteculo XVI

Do ponto de vista da linguumliacutestica essa peccedila eacute das mais importantes pois

mostra como o Tupi da Costa era efetivamente falado Nesse auto vemos os

diabos Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia a tentar perverter a aldeia no que satildeo

impedidos por Satildeo Lourenccedilo e por Satildeo Sebastiatildeo

Anchieta recorre muito agraves alegorias isto eacute agrave personificaccedilatildeo de nomes

abstratos ou agrave atribuiccedilatildeo de qualidades humanas a seres inanimados recurso

tambeacutem muito empregado por Gil Vicente em seus autos Assim vemos no Auto

de Satildeo Lourenccedilo o Amor e o Temor de Deus como personagens a aconselharem

aos iacutendios a caridade e a confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Essa concretude era

eficiente na transmissatildeo dos conteuacutedos doutrinaacuterios cristatildeos dada a concretude

do pensamento miacutetico no qual o mundo indiacutegena estava mergulhado

Considero o auto de Satildeo Lourenccedilo como sendo um dos melhores

exemplos do embate de mitos de que falamos em todo este trabalho onde

Aimbirecirc um dos democircnios diverte-se com piadas maliciosas enquanto leva os

assassinos de Satildeo Lourenccedilo para o inferno Vejamos por exemplo neste mesmo

auto como os diabos ironizam a confissatildeo

124

Satildeo Lourenccedilo Mas existe a confissatildeo

Bom remeacutedio para cura

Na comunhatildeo se depura

Da mais funda perdiccedilatildeo

A alma que o bem procura

Se depois de arrependidos

os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar

o caminho dos remeacutedios

o padre os vai abenccediloar

Guaixaraacute Como se nenhum pecado

Tivessem fazem a falsa

Confissatildeo e se disfarccedilam

Dos viacutecios abenccediloados

a assim viciados passam

Aimbirecirc Absolvidos

Dizem na hora da morte

Meus viacutecios renegarei

E entregam-se a sua sorte

No auto de Satildeo Lourenccedilo mostrando como essas personagens

aparecem representando o cotidiano e ao mesmo tempo o Bem e o Mal trecircs

diabos satildeo personagens de grande importacircncia Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia

todos nomes dos antigos chefes tamoios derrotados e mortos na campanha de

125

Guanabara que satildeo aproveitados para destacar o inimigo vencido e associaacute-lo

com inimigos de toda a cristandade

Do lado do Bem o Anjo vem acompanhado de Satildeo Lourenccedilo e de Satildeo

Sebastiatildeo que resistem aos diabos para natildeo permitir a destruiccedilatildeo da aldeia pelos

pecados

O Diabo talvez tenha sido uma das personagens mais importantes no

projeto de conversatildeo das almas natildeo soacute no teatro mas como em todas as

representaccedilotildees da catequese pois foi contra ele e seus disciacutepulos e seguidores

que partiram as acusaccedilotildees de perversatildeo de mentira de seduccedilatildeo de luxuria A

luta dos missionaacuterios jesuiacutetas natildeo foi nunca contra os pagatildeos ou contra os

hereges mas principalmente contra o diabo contra os feiticeiros e contra aqueles

que mesmo catequizados voltavam aos costumes antigos e promoviam revoltas

nas aldeias e as conduziam a fugas e ao deslocamento para terras mais distantes

da evangelizaccedilatildeo

126

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos

Nesta parte do capiacutetulo a intenccedilatildeo eacute a de fazer o leitor atentar para as

definiccedilotildees de mito como um todo do mito cristatildeo e de sua comparaccedilatildeo com os

mitos indiacutegenas Mostrar como de fato foi o verdadeiro embate de mitos na

batalha de imposiccedilatildeo do branco europeu portuguecircs e obviamente cristatildeo sobre

as populaccedilotildees indiacutegenas atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de cultura

As peccedilas os autos especificamente o Auto de Satildeo Lourenccedilo pelo

fasciacutenio da imagem representativa era muito mais eficaz do que um sermatildeo por

exemplo Escrito em tupi portuguecircs ou espanhol e mais tarde em latim Nesse

auto os personagens satildeo santos caciques democircnios imperadores e ainda

representam apenas simbolismos como o Amor ou o Temor a Deus

Anchieta o jovem missionaacuterio da Companhia de Jesus o grande

piahy (supremo pajeacute branco) como era chamado pelos iacutendios usava com

maestria neste auto o zelo constante pela conversatildeo e os mandamentos

religiosos atraveacutes de uma audiecircncia amena e agradaacutevel diferente da pregaccedilatildeo

seca e riacutegida de que os escritos catequeacuteticos satildeo cabal documento Some-se a

isso que os indiacutegenas eram sensiacuteveis agrave danccedila agrave muacutesica e a mistura de

personagens que integram a miacutetica cristatilde (diabos anjos santos) fatores esses

127

que atuavam sobre o expectador com vigoroso impacto O iacutendio natildeo era no

entanto apenas expectador desse teatro mas tambeacutem participava dele como ator

danccedilarino e cantor

Outros atores aleacutem dos iacutendios domesticados eram futuros padres

brancos e mamelucos Todos amadores que atuavam de improviso seguindo

textos mas sem trabalhos de interpretaccedilatildeo apresentavam os autos nas Igrejas

nas praccedilas e nos coleacutegios

Considero para esta tarefa o Auto de Satildeo Lourenccedilo como uma das

mais importantes ferramentas da catequese onde iacutendios principais de tribos

Tamoyo vencidos e destruiacutedos pelos portugueses passam a ter suas imagens

incorporadas ao diabo e a democircnios

No Apecircndice 1 coloco o Auto de S Lourenccedilo na iacutentegra para que o

leitor possa ter uma completa visatildeo dos comentaacuterios que apresento a cada passo

dessa peccedila teatral

Quando iniciamos a leitura do texto examinando-se apenas o tema do

auto jaacute se percebe que os portugueses do periacuteodo jesuiacutetico ao virem para o

Brasil trouxeram consigo seu espaccedilo miacutetico e obviamente necessitaram

sacralizar o novo territoacuterio

Inicia-se aqui na representaccedilatildeo do auto logo em seu iniacutecio o embate de

mitos De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado pelo Espiacuterito Santo e que trazia aos gentios os bons

costumes e a cura de todos os seus males Do outro lado homens aguerridos e

128

audaciosos que entendiam seus costumes da forma miacutetica que interpretavam

suas vidas e as explicaccedilotildees da finitude dessas vidas sem que conhecessem os

pecados ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao inimigo do Homem

que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a realidade

Jaacute no primeiro ato Percebe-se que a evocaccedilatildeo de Jesus Salvador

mostra agrave plateacuteia que algo se cria com as palavras de Satildeo Lourenccedilo um clima de

redenccedilatildeo com o sofrimento se implanta naqueles que ouvem e vivenciam a

experiecircncia do auto uma proposta de sentirem algo sagrado

Se a palavra se torna criadora se a partir dela formam-se as

proposiccedilotildees constitutivas o Sagrado se apresenta no dizer criador do Verbo

como a verdade dos entes 134

Na fala de Guaixaraacute que encontramos no iniacutecio do segundo ato nada

mais do que a resistecircncia agrave imposiccedilatildeo da cultura portuguesa ou ainda de

qualquer cultura que pudesse querer destruir o que ateacute aquele momento era

considerado pelos indiacutegenas como tradiccedilatildeo e modo de entender a vida Seu mito

o mito de Guaixaraacute pois a funccedilatildeo de seus mitos natildeo eacute a de mostrar uma ideacuteia

herdada de seus antepassados mas sim de mostrar um modo pelo qual aquela

sociedade funciona e que corresponde agrave maneira inata pela qual o homem nasce

e se relaciona em sua vida vivida

Nesta parte do auto Luacutecifer eacute o pajeacute Guaixaraacute eacute o pajeacute e todos que o

seguem satildeo democircnios Guaixaraacute eacute o diabo esse locutor infernal que eacute preciso

134 CRIPPA 1975 p115

129

calar O feiticeiro eacute algo anormal ele eacute um herege natildeo um pagatildeo Eacute um herege

que se faz passar por pagatildeo 135

O pajeacute eacute algo anormal na medida em que se considera que a cultura

iacutendia eacute pagatilde Considera-se a cultura iacutendia como algo jaacute possuiacutedo pelo Diabo

a figura infernal se flexiona Luacutecifer agora eacute o signo da perversatildeo eacute o liacuteder de

hereges que vecirc nele a siacutentese de suas qualidades malignas 136

No entanto durante boa parte do texto do auto Guaixaraacute sabe da forccedila

da tradiccedilatildeo e da linguagem e entende que mesmo que sejam os indiacutegenas

levados a outro mito eacute o mito primordial da origem da cultura que surge de forma

espontacircnea que permanece e crecirc que mesmo com a influecircncia externa de outra

transmissatildeo miacutetica cada indiviacuteduo da cultura a que pertence possui em cada

psique prontidotildees vivas e ativas e que mesmo que se encontrem inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico

Poreacutem o portuguecircs o jesuiacuteta tenta mostrar o inverso disso quando

pretende provar que ateacute mesmo Aimbirecirc acredita na forccedila do novo mito o mito

cristatildeo e a forccedila dos santos Vejamos

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me

amedronta

135 NEVES 1978 p93 136 NEVES 1978 p94

130

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos

noacutes

AIMBIREcirc

Esse

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te

venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

Pela visatildeo de Anchieta Aimbirecirc crecirc em seu mito mas de alguma forma

percebe que muitos indiacutegenas estatildeo passando para o outro lado porque o novo

mito tambeacutem lhes daacute uma explicaccedilatildeo para a vida que levam pois muitas das

situaccedilotildees tiacutepicas vividas pelos gentios com relaccedilatildeo a condiccedilatildeo humana tambeacutem

satildeo representadas pelos mitos que lhes vem sendo ensinado gerando nesses

indiacutegenas uma predisposiccedilatildeo para experimentar os novos conceitos Deus de

seus nascimentos de suas mortes e de renascimento apoacutes a morte dos novos

rituais dos sacramentos etc

Por outro lado percebe-se tambeacutem que Aimbirecirc junto com outros

diabos continuaraacute tentando o disconversatildeo e a manutenccedilatildeo do mito primordial

131

Haacute no entanto uma anguacutestia demonstrada pelo diabo que Anchieta

criou mostrando que ele mesmo sendo o diabo entende a necessidade dos

gentios em descobrir e refazer seus mitos Havia o vislumbre de que a nova

proposta o novo mito pudesse atender agraves necessidades daqueles que teriam

conhecido um novo tipo de conforto uma nova seguranccedila perante as doenccedilas que

destruiacuteram tribos inteiras um novo alento para suas dificuldades enfrentadas em

suas vidas vividas

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de nossa anguacutestia

individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de um novo mito central vai

resolver o problema para o indiviacuteduo e para a sociedade 137

Vejamos este trecho do auto onde os diabos em conversa com Satildeo

Lourenccedilo tentam mostrar que satildeo apenas indiacutegenas no entanto a fala proposta

por Anchieta no texto perverte essa informaccedilatildeo

(Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar

antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

137 EDINGER 1999 11

132

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio

Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou

luminoso democircnio

Ou estaria dizendo em suas proacuteprias palavras e nas natildeo palavras

colocadas por Anchieta em sua boca de personagem sou iacutendio sou livre sou

aguerrido luto por minha tradiccedilatildeo

Mas Satildeo Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo continuam a tentar convencer

esses diabos de que eles foram criados a imagem e semelhanccedila dos brancos e

por isso tecircm que se tornarem tementes a Deus

Como afirmei anteriormente Deus eacute uma forma de explicarmos as

experiecircncias que temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e

transcendentais Ele eacute a superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos

aos deuses pois temos que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa

vida Mas os gentios possuiacuteam outro mundo outra sublimidade outra

transcendentalidade outras ideacuteias outras abstraccedilotildees A terra eacute a mesma mas

entendida de outra forma a morte eacute a mesma mas o conceito dessa passagem

eacute distinto o espiacuterito de cada ideacuteia eacute formado por concepccedilotildees diferentes da dos

portugueses

Vejamos novamente uma afirmaccedilatildeo de Gusdorf jaacute citada anteriormente

neste trabalho

133

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao ser toda

sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da comunidade pelo

viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem vivente a terra as coisas os

seres e ainda os mortos que continuam frequumlentando a morada de sua vida 138

Os deuses dos indiacutegenas eram por eles conhecidos podiam olhar e ver

o Sol a Lua as estrelas a noite a chuva o vento mas o Deus apresentado pelos

jesuiacutetas era um deus que natildeo se podia ver nem acreditar sem pensar El Dios

verdadero el Dios de la religioacuten cristiana fue siempre un Deus absconditus 139

um Deus escondido um Deus que necessita que se creia sem que se possa ver

Mas Anchieta na voz da personagem Satildeo Sebastiatildeo vecirc a existecircncia de

um povo e seu mito e tenta ainda mudar a concepccedilatildeo de Aimbirecirc impondo o mito

cristatildeo

(Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo

espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

138 GUSDORF1959 p 55-56 139 CASSIRER 1945 p113

134

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas

velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas

palavras amigas

Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute

De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba disso natildeo

os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa

Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos

jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa

Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de

comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas

avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos

aprisionando

135

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando

AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e aos viacutecios bem se

convertem agrave forccedila do nosso mando

Os diabos aqui retratados tentam usar de uma linguagem que permite

estruturar seu conhecimento sobre si e sobre seu povo uma linguagem que

pudesse ser capaz de transcrever sua realidade vivida mas que pertencesse a

seu proacuteprio conhecimento de mundo um mundo indiacutegena um mundo desenhado

pelo mito primordial e pela essecircncia de seu ser e de sua existecircncia humana que

se fixa atraveacutes de uma paisagem desenhada pelo grupo social a que pertence a

tribo de sua origem de seu nome e de sua identidade envolta por uma membrana

relacionada com a moral e com a espiritualidade de seu povo

Eacute atraveacutes do mito que o homem se relaciona com o outro pensa seus

deuses pensa sua vida e vive as relaccedilotildees do povo a que pertence Eacute pelo mito

que satildeo definidas as tarefas coletivas e individuais da comunidade na defesa na

guarda dos indiviacuteduos coletores ou caccediladores guerreiros ou agricultores

partilhando vivecircncias e vivenciando a cooperatividade

136

A cooperatividade e mutualidade servem para garantir o alimento a

cultura e a tradiccedilatildeo as quais tambeacutem alimentam tanto para si como para os que

do indiviacuteduo miacutetico dependem sendo a base psiacutequica para o ser em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal

Mas quer Anchieta que seus personagens entendam o inferno mas o

proacuteprio texto mostra que Aimbirecirc percebe que os brancos tambeacutem cultuam esse

inferno de alguma forma

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a

taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

Inferno um local subterracircneo habitado pelos mortos um lugar em que

as almas pecadoras se entram apoacutes a morte submetidas a penas eternas

Novamente o absconditus soacute que agora natildeo eacute mais Deus quem estaacute escondido e

sim o diabo isto eacute eles mesmos Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos os outros

mesmo que eles mesmos natildeo saibam disso

SAtildeO LOURENCcedilO

Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura

137

Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma

que o bem procura

Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai

abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados

passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios

renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou

eu abandonaacute-los

E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los

Tanto confiaram em mim construindo esta capela

plantando o bem sobre ela

Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso

138

Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs

daqui lhes darei sumiccedilo

Deles nem sombra vereis

Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas

tridentes e alegrar as nossas gentes

Jaacute aqui Anchieta propotildee que os diabos saibam bem quem satildeo qual

sua origem e qual seu destino Mas Guaixaraacute e seus companheiros natildeo tinham

essa concepccedilatildeo de origem e de destino do mito cristatildeo ou mesmo de profano e de

sagrado pois sagrado ou profano eacute tudo aquilo que se encontra sob os olhos do

homem no entanto no iacutendio real natildeo interpretado de um texto apologeacutetico natildeo

havia a clara noccedilatildeo de profano e sagrado nem de pecado pois isso natildeo estava

sob seus olhos existindo sim o tabu que cometido ou invadido natildeo tinha perdatildeo

e soacute poderia receber a morte diferente do pecado que por maior que fosse teria

como ser renegado e obtido o perdatildeo para que se siga em direccedilatildeo aos Ceacuteus

As diversas formas da realidade seguem-se agraves diversas formas que o

sagrado assume ao revelar-se Independentemente dos contrastes e das

oposiccedilotildees que integram o mundo do real sensiacutevel haacute uma coincidecircncia radical no

Ser e no Sagrado O divino garante estas oposiccedilotildees e diversidades

apresentando-se ele mesmo das mais diversas maneira 140

Enfim apoacutes o embate de mitos de um lado Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo e

do outro Aimbirecirc e Saravaia como sempre o considerado Bem vence o

140 CRIPPA 1975 p117

139

considerado Mal onde ateacute os franceses e castelhanos satildeo considerados aliados

do Diabo e nesse embate de mitos o branco portuguecircs cristatildeo e jesuiacuteta vence o

Curupira a Grande Matildee a Matildee dacuteaacutegua o Macuteboy-tataacute

O Anjo Fala com os santos convidando-os a cantar e se

despede)

Cantemos todos cantemos

Que foi derrotado o mal

Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa

alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima

repeticcedilatildeo da cantiga choram)

Conforme se pode perceber no texto que define o terceiro ato e muito

do texto a seguir os anjos de Deus comandam os diabos Aimbirecirc e Saravaia para

que atuem sob seu comando fazendo arder nos infernos outros que podem ser

considerados pecadores Deacutecio e Valeriano imperadores e que representam

possivelmente no auto de Satildeo Lourenccedilo outros chefes tribais que natildeo aceitaram a

pregaccedilatildeo

ANJO

Aimbirecirc

Estou chamando vocecirc

Apressa-te Corre Jaacute

140

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute

Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para

dar-te como presa

De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los

Que para o sol sejam cegos

Ide ao fogo cozinhaacute-los

Castiga com teus vassalos estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto

Sejam tais ordens cumpridas

Reunirei meus democircnios

Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que

temos planos medonhos

(Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana

Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Sus Caborecirc vecirc se te

inflama pra comer estes perus

141

(Acodem todos os quatro com suas armas)

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Anchieta nos mostra neste ponto que tambeacutem os diabos criam seus

conceitos de Bem e Mal a partir de semelhanccedilas tanto com Deus como com o

Diabo pois para aceitarem o mito que altera seus costumes que gera dentro

deles uma perda da consciecircncia de uma realidade transpessoal seus deuses as

anarquias interna e externa dos desejos pessoais rivais assumem o poder e como

os cristatildeos passam a criar deidades agrave sua imagem e semelhanccedila as quais criam

homens agrave suas imagens e semelhanccedilas

Mostra Anchieta quando fala dos romanos no texto do Auto que Deacutecio

e Valeriano satildeo adeptos a ideacuteias contraacuterias ao cristianismo satildeo guerreiros

conquistadores pagatildeos e portanto infieacuteis que deveratildeo ser castigados mas por

quem por aqueles considerados pelo mito cristatildeo iguais a estes isto eacute Aimbirecirc e

Saravaia e outros diabos que os enganaraacute os assaraacute os sangraraacute atendendo agraves

ordens dos anjos e dos santos catoacutelicos Neste momento do texto do auto de Satildeo

Lourenccedilo os diabos chamam de castelhanos os imperadores o que pode servir

para mostrar o juiacutezo que dos castelhanos (ou de sua liacutengua) faziam entatildeo os

lusitanos juiacutezo esse perfilhado mesmo por quem como Anchieta nascera em

terras de Espanha

142

Caos total na cultura indiacutegena O mito cristatildeo eacute imposto sobre a pureza

da indianidade

No quarto o Temor de Deus e o Amor de Deus mandam sua mensagem

de que os iacutendios (puacuteblico-alvo de Joseacute de Anchieta) devem amar e temer a Deus

que por eles tudo sacrificou Neste quarto ato novamente o sagrado cristatildeo

invade o espaccedilo sagrado do mito indiacutegena invade o espaccedilo miacutetico primitivo

substituindo o altar de sacrifiacutecios espaccedilo de magia do pajeacute vital para a

manutenccedilatildeo de seu pensamento e estrutura de sua psique pelo altar a Deus

como um marco de apenas uma existecircncia possiacutevel como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute um novo sentido pois ali natildeo moram mais seus

deuses natildeo moram seus mortos seus pensamentos e desejos e sim um mito

cristatildeo

Reafirma essa imposiccedilatildeo do sagrado cristatildeo sobre o sagrado

indiacutegenas no momento do quinto ato onde na danccedila final de doze meninos

invocando Satildeo Lourenccedilo afirmando em tupi os bons propoacutesitos de seguir os

ensinamentos cristatildeos O fim da apresentaccedilatildeo criava um clima propiacutecio para que o

puacuteblico em verdadeiro coro formulasse idecircnticos votos de viver segundo os

preceitos religiosos

Natildeo haacute mais por esse auto de Anchieta um espaccedilo sagrado onde o

indiacutegena pudesse realizar seus rituais suas suplicas seus sacrifiacutecios fazendo

com percam por completo e em definitivo o local onde suas forccedilas vitais pudessem

se encontrar se concentrar e os fazer existir como satildeo

143

Conforme Cripa141 quando novas simbologias satildeo inseridas no

processo de manifestaccedilatildeo do sagrado elas assumem uma dimensatildeo nova a

sacralidade manifestando um poder transcendente e incontrolaacutevel pelo homem

tornando ao final o indiacutegena em um arremedo de branco e portuguecircs confirmando

assim a profecia do pajeacute que dizia que o iacutendio se transformaria no branco e o

branco em iacutendio Isso natildeo aconteceu o indiacutegena se transformou em algo que

caminha sobre a terra

Com a queda do pano na boca de cena para Anchieta o iacutendio se

converteu Vejamos em que ele acreditava

falamos-lhe que o queriacuteamos batizar para que sua alma

natildeo se perdesse mas que por entatildeo natildeo podiacuteamos ensinar-lhe o que

era necessaacuterio por falta de tempo e que estivesse preparado para

quando voltaacutessemos Folgou ele tanto com esta notiacutecia como vinda

do Ceacuteu e teve-a tanto em memoacuteria que agora quando viemos e lhe

perguntamos se queria ser Cristatildeo respondeu com muita alegria que

sim e que jaacute desde entatildeo o estava esperando [] O que se lhe

imprimiu foi o misteacuterio da Ressurreiccedilatildeo que ele repetia muitas vezes

dizendo Deus verdadeiro eacute Jesus que saiu da sepultura e subiu ao

Ceacuteu e depois haacute de vir muito irado a queimar todas as cousas []

Chegando agrave porta da igreja o assentamos em uma cadeira onde

estavam jaacute seus padrinhos com outros cristatildeos a esperaacute-lo Aiacute lhe

tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria e ele

respondeu com grande fervor que queria ser batizado e que toda

aquela noite estivera pensando na ira de Deus que havia de ter para

141 CRIPPA 1975 p120

144

queimar todo o mundo e destruir todas as cousas e de como

haviacuteamos de ressuscitar todos142

142 ANCHIETA - Cartas- 1988 p 199 - Carta ao Geral Diogo Lainez de Satildeo Vicente a 16 de abril de 1563

145

CONCLUSAtildeO - O RESULTADO DO EMBATE DESSES MITOS NA EDUCACcedilAtildeO E NA CULTURA

BRASILEIRA

Noacutes brancos negros mesticcedilos e cristatildeos ou natildeo pudemos ter nesse

Brasil uma heranccedila que poderia ser considerada magna quer na liacutengua que

falamos quer nas artes nas danccedilas na culinaacuteria que a Cunhatilde matildee da famiacutelia

brasileira nos deixou diria com certeza Gilberto Freire Aprendemos e

incorporamos tantos e tantos itens dessa cultura maravilhosa que veio do

indiacutegena fomos educados pelas Cunhatildes

Mas desde Caminha sempre se repetem pela educaccedilatildeo formal

brasileira as maravilhas deste paiacutes desta terra como se eles os indiacutegenas nunca

tivessem existido esquecendo-se que transmissatildeo cultural eacute educaccedilatildeo

Poreacutem a terra em si eacute de muitos bons ares assim frios e

temperados como os de Entre-Doiro e Miacutenho porque neste tempo

de agora assim os achaacutevamos como os de laacute Aacuteguas satildeo muitas

infindas E em tal maneira eacute graciosa que querendo-a aproveitar dar-

se-aacute nela tudo por bem das aacuteguas que tem 143

143 CAMINHA 2000 p 12

146

Podemos observar no trecho acima que o Brasil eacute descrito como

mundo feacutertil de clima ameno vida promissora Esse relato eacute consequumlecircncia da

visatildeo medieval da natureza na qual a exuberacircncia eacute uma manifestaccedilatildeo divina

Nessa idealizaccedilatildeo cada visatildeo da terra eacute uma liccedilatildeo de Deus e tudo eacute associado

entatildeo ao Eacuteden ao Paraiacuteso Terrestre Discurso elaborado no periacuteodo de

conquista da terra e que se repete ao longo dos seacuteculos

Vejamos por exemplo um trecho proacuteprio do romantismo da Canccedilatildeo do

Exiacutelio de Gonccedilalves Dias (seacuteculo XIX)

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiaacute

As aves que aqui gorjeiam

Natildeo gorjeiam como laacute

Nosso ceacuteu tem mais estrelas

Nossas vaacuterzeas tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida mais amores

Ateacute mesmo canccedilotildees atuais cantam essa terra maravilhosa onde o

Eacuteden repousa como em Paiacutes Tropical de Jorge Ben Jor (seacuteculo XX)

Moro num paiacutes tropical

Abenccediloado por Deus

E bonito por natureza

Mas que beleza

Fevereiro tem carnaval

Tem carnaval

147

O Hino Nacional Brasileiro tambeacutem se rende ao mito do Paraiacuteso

Terrestre ser o Brasil

Se em teu formoso ceacuteu risonho e liacutempido

A imagem do Cruzeiro resplandece

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida no teu seio mais amores

Gigante pela proacutepria natureza

Es belo eacutes forte impaacutevido colosso

E o teu futuro espelha essa grandeza

Terra adorada

Entretanto haacute textos que subvertem ironicamente a histoacuteria oficial do

paiacutes apresentada na Carta de Caminha num processo de desconstruccedilatildeo desse

mito de que o Eacuteden eacute aqui Mostram um Brasil cheio de contrastes tal como este

fragmento da muacutesica Iacutendios do conjunto Legiatildeo Urbana (seacuteculo XXI)

Quem me dera ao menos uma vez

Ter de volta todo o ouro que entreguei

A quem conseguiu me convencer

Que era prova de amizade

Se algueacutem levasse embora ateacute o que eu natildeo tinha

Quem me dera ao menos uma vez

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que natildeo tem o bastante

148

E fala demais por natildeo ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez

Que o mais simples fosse visto como o mais importante

Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez

Entender como um soacute Deus ao mesmo tempo eacute trecircs

E esse mesmo Deus foi morto por vocecircs -

Eacute soacute maldade entatildeo deixar um Deus tatildeo triste

Quem me dera ao menos uma vez

Como a mais bela tribo dos mais belos iacutendios

Natildeo ser atacado por ser inocente

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Tentei chorar e natildeo consegui

Em sua carta aleacutem das primeiras imagens da terra e dos homens

Caminha ressalta que Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que

seraacute salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela

deve lanccedilar Mas o iacutendio apoacutes a conversatildeo apoacutes ter sido educado pelo branco

vestiu maacutescaras de cristandade maacutescaras de algueacutem com pele branca maacutescaras

de civilizaccedilatildeo europeacuteia marca indeleacutevel de sua condiccedilatildeo de escravo do

colonizador europeu quinhentista e seiscentista

O mito cristatildeo nesse embate derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e

todos os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano Elimina o mito de

149

Acircgacircmahsacircpu o Pai maior o mito dos Diroaacute e dos Koaacuteyea e todo o conhecimento

do mito indiacutegena

Entendo que todo o trabalho aqui apresentado eacute uma conclusatildeo de per

si e leva o leitor a uma compreensatildeo do embate de mitos e quem venceu Que

lado se tornou o Bem e que lado se tornou o Mal

Gostaria de encerrar esta proposta voltando a tradiccedilatildeo indiacutegena natildeo

considerada fonte histoacuterica mas real como real eacute ainda alguma sombra tecircnue do

mito indiacutegena trazendo a Histoacuteria de Umukomahsu144

os Desana ficaram divididos em vaacuteria malocas onde

viviam sossegados Trabalhavam e faziam grandes festas como a

festa de oferta de bens (poori) Na maloca do filho de Boreka tambeacutem

chamado Boreka havia um tipo de boneco de que ele era o dono

Chamava-se Gotildeatildemecirc (demiurgo) Ele morava dentro de uma grande

cuia de um metro de altura sustentada sobre um suporte de panela

Durante o dia ele se parecia como uma cobra venenosa Mas ele natildeo

mordia De noite no sonho ele tinha relaccedilatildeo sexual com a mulher de

Boreka Assim a mulher de Boreka contava para as outras mulheres

No sonho ele lhe aparecia como um padre agraves vezes como um

Branco Assim natildeo somente ele tinha vida como tambeacutem ele vivia no

sonho com algumas outras mulheres da maloca de Boreka Mas natildeo

com todas Escolhia a mulher com quem ia viver no sonho Ele natildeo

fazia isso com as solteiras somente com as mulheres que jaacute tinham

marido isto eacute que pertenciam a outra tribo Por isso quando nascia

uma crianccedila da mistura do secircmem de Gotildeatildemecirc e do marido jaacute se sabia

que quando crescesse ele seria inteligente saacutebio e adivinho Gotildeatildemecirc

144 LANA 1995 p58-59

150

tinha relaccedilatildeo sexual no sonho com cinco mulheres da maloca de

Boreka que tinham marido

Ele tinha um grande poder Protegia Boreka livrando-o de

todos os males e de todos os perigos que dele se aproximassem

Enquanto viviam deste modo chegaram os primeiros Brancos na

regiatildeo De acordo coma a histoacuteria do Brasil esses Brancos seriam os

bandeirantes Depois deles chegaram os Brancos que agarraram a

gente Eles cercavam a maloca de Boreka mas natildeo conseguiram

entrar nela Suas pernas ficaram moles Eles natildeo tinham mais forccedila

para andar Voltaram uma segunda vez cercaram a maloca e

aconteceu a mesma coisa Tornaram a voltar e sucedia o mesmo Por

isso eles perguntaram para os iacutendios de outras tribos porque eles

ficavam deste jeito quando tentavam entrar na maloca de Boreka Os

outros contaram que Boreka tinha na sua maloca um tipo de boneco

que o defendia Os Brancos perguntaram em qual lugar ele ficava

guardado Responderam que era bem no meio da porta do quarto de

Boreka A porta chamava-se Imikadihsi (porta dos Paris) Ele estava

sobre essa porta em cima de um suporte de cuia

Os Brancos ouviram tudo direito e foram outra vez para a

maloca de Boreka Quando chegaram a primeira coisa que fizeram foi

derrubar Gotildeatildemecirc com um tiro de espingarda Atiraram sem ver nada

porque sabiam onde ele se encontrava A casa de Gotildeatildemecirc isto eacute a

cuia ficou totalmente despedaccedilada mas ele subiu ao ceacuteu Os

Brancos cercaram entatildeo a maloca e agarraram Boreka O

descendente legiacutetimo da Gente de Transformaccedilatildeo foi assim preso

pelos Brancos O irmatildeo de Boreka conseguiu fugir e tomou o lugar

dele como chefe supremo dos Desana Boreka quando foi levado

pelos Brancos levou consigo a maior parte dos seus poderes Natildeo se

sabe para qual lugar os Brancos o levaram Talvez esteja na Bahia

no Rio de Janeiro ou no Portugal Isso ningueacutem sabe As riquezas

restantes ficaram todas para a sua geraccedilatildeo Elas estatildeo com os

descendentes de Boreka os Borekapotilderatilde Entre outras estatildeo os

pumuribuya os Enfeites de Transformaccedilatildeo e as outras coisas

tiradas da Maloca do Universo

151

APEcircNDICES

Senti durante este trabalho a necessidade de acrescentar estes

apecircndices com o intuito de levar ao leitor uma seacuterie de informaccedilotildees que natildeo

pertencem ao objeto de estudo e a proacutepria tese em si mas que colaboraram para

o entendimento de mito cristatildeo no sentido especialmente cultural e que puderam

influenciar na missatildeo de educaccedilatildeo e catequese jesuiacutetica ao indiacutegena brasileiro

Para tanto apresento a seguir o texto completo do Auto de S Lourenccedilo

e trecircs estudos por mim realizados em forma de apecircndices A missa e os

siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem O mito de Cristo e por fim

Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade

152

APEcircNDICE 1 O AUTO DE SAtildeO LOURENCcedilO JOSEacute DE ANCHIETA

PERSONAGENS

GUAIXARAacute - rei dos diabos AIMBIREcirc SARAVAIA - criados de Guaixaraacute TATAURANA URUBU JAGUARUCcedilU - companheiros dos diabos VALERIANO DEacuteCIO - Imperadores romanos SAtildeO SEBASTIAtildeO - padroeiro do Rio de Janeiro SAtildeO LOURENCcedilO - padroeiro da aldeia de Satildeo Lourenccedilo VELHA ANJO TEMOR DE DEUS AMOR DE DEUS CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA Apoacutes a cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute chama Aimbirecirc e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia Satildeo Lourenccedilo a defende Satildeo Sebastiatildeo prende os democircnios Um anjo manda-os sufocarem Deacutecio e Valeriano Quatro companheiros acorrem para auxiliar os democircnios Os imperadores recordam faccedilanhas quando Aimbirecirc se aproxima O calor que se desprende dele abrasa os imperadores que suplicam a morte O Anjo o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade contriccedilatildeo e confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Faz-se o enterro do santo Meninos iacutendios danccedilam

PRIMEIRO ATO (Cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo) Cantam

Por Jesus meu salvador Que morre por meus pecados Nestas brasas morro assado Com fogo do meu amor Bom Jesus quando te vejo Na cruz por mim flagelado

Eu por ti vivo e queimado Mil vezes morrer desejo Pois teu sangue redentor Lavou minha culpa humana Arda eu pois nesta chama Com fogo do teu amor

153

O fogo do forte amor Ah meu Deus com que me amas Mais me consome que as chamas E brasas com seu calor

Pois teu amor pelo meu Tais prodiacutegios consumou Que eu nas brasas onde estou Morro de amor pelo teu

SEGUNDO ATO (Eram trecircs diabos que querem destruir a aldeia com pecados aos quais resistem Satildeo Lourenccedilo Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo da Guarda livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes satildeo Guaixaraacute que eacute o rei Aimbirecirc e Saravaia seus criados)

GUAIXARAacute

Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira Quem a teria trazido com seus haacutebitos polidos estragando a terra inteira Soacute eu permaneccedilo nesta aldeia como chefe guardiatildeo Minha lei eacute a inspiraccedilatildeo que lhe dou daqui vou longe visitar outro torratildeo Quem eacute forte como eu Como eu conceituado Sou diabo bem assado A fama me precedeu Guaixaraacute sou chamado Meu sistema eacute o bem viver Que natildeo seja constrangido o prazer nem abolido Quero as tabas acender com meu fogo preferido Boa medida eacute beber cauim ateacute vomitar Isto eacute jeito de gozar a vida e se recomenda a quem queira aproveitar A moccedilada beberrona

trago bem conceituada Valente eacute quem se embriaga e todo o cauim entorna e agrave luta entatildeo se consagra Quem bom costume eacute bailar Adornar-se andar pintado tingir pernas empenado fumar e curandeirar andar de negro pintado Andar matando de fuacuteria amancebar-se comer um ao outro e ainda ser espiatildeo prender Tapuia desonesto a honra perder Para isso com os iacutendios convivi Vecircm os tais padres agora com regras fora de hora praacute que duvidem de mim Lei de Deus que natildeo vigora Pois aqui tem meu ajudante-mor diabo bem requeimado meu bom colaborador grande Aimberecirc perversor dos homens regimentado

(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele E ele a ajuda como fazem os iacutendios Depois de chorar achando-se enganada diz a velha)

154

VELHA

O diabo mal cheiroso teu mau cheiro me enfastia Se vivesse o meu esposo meu pobre Piracaecirc isso agora eu lhe diria Natildeo prestas eacutes mau diabo Que bebas natildeo deixarei do cauim que eu mastiguei Beberei tudo sozinha ateacute cair beberei (a velha foge)

GUAIXARAacute (Chama Aimberecirc e diz)

Ei por onde andavas tu Dormias noutro lugar

AIMBIREcirc

Fui as Tabas vigiar nas serras de norte a sul nosso povo visitar Ao me ver regozijaram bebemos dias inteiros Adornaram-se festeiros Me abraccedilaram me hospedaram das leis de deus estrangeiros Enfim confraternizamos Ao ver seu comportamento tranquumlilizei-me Oacute portento Viacutecios de todos os ramos tem seus coraccedilotildees por dentro

GUAIXARAacute

Por isso no teu grande reboliccedilo eu confio que me baste os novos que cativaste os que corrompeste ao viacutecio Diz os nomes que agregaste

155

AIMBIREcirc

Gente de maratuauatilde no que eu disse acreditaram os das ilhas nestas matildeos deram alma e coraccedilatildeo mais os paraibiguaras Eacute certo que algum perdi que os missionaacuterios levaram a Mangueaacute Me irritaram Raivo de ver os tupis que do meu laccedilo escaparam Depois dos muitos que nos ficaram os padres sonsos quiseram com mentiras seduzir Natildeo vecirc que os deixei seguir - ao meu apelo atenderam

GUAIXARAacute

De que recurso usaste para que natildeo nos fugissem

AIMBIREcirc

Trouxe aos tapuias os trastes das velhas que tu instruiacuteste em Mangueaacute Que isto baste Que elas satildeo de fato maacutes fazem feiticcedilo e mandinga e esta lei de Deus natildeo vinga Conosco eacute que buscam a paz no ensino de nossa liacutengua E os tapuias por folgarem nem quiseram vir aqui De danccedila os enlouqueci para a passagem comprarem para o inferno que acendi

GUAIXARAacute

Jaacute chega

156

Que tua fala me alegra teu relatoacuterio me encanta

AIMBIREcirc

Usarei de igual destreza para arrastar outras presas nesta guerra pouco santa O povo Tupinambaacute que em Paraguaccedilu morava e que de Deus se afastava deles hoje um soacute natildeo haacute todos a noacutes se entregaram Tomamos Moccedilupiroca Jequei Gualapitiba

Niteroacutei e Paraiacuteba Guajajoacute Carijoacute-oca Pacucaia Araccedilatiba Todos os tamoios foram Jazer queimando no inferno Mas haacute alguns que ao Padre Eterno fieacuteis nesta aldeia moram livres do nosso caderno Estes maus Temiminoacutes nosso trabalho destroem

GUAIXARAacute

Vem tentaacute-los que se moem a blasfemar contra noacutes Que bebam roubem e esfolem Que provoquem muitas lutas muitos pecados cometam por outro lados se metam longe desta aldeia agrave escuta dos que as nossas leis prometam

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me amedronta

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

157

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos noacutes

AIMBIREcirc

Esse

GUAIXARAacute

Fica descansado Natildeo sou assim tatildeo covarde seraacute logo afugentado Aqui estaacute quem o queimou e ainda vivo o cozeu

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

GUAIXARAacute

O que eu deixei transpassado Natildeo faccedilas broma comigo que sou bem desaforado Ambos fugiratildeo logo aqui me virem chegar

AIMBIREcirc

Olha que vais te enganar

GUAIXARAacute

158

Tem confianccedila te rogo que horror lhes vou inspirar Quem como eu nas terras existe que ateacute Deus desafiou

AIMBIREcirc

Por isso Deus te expulsou e do inferno o fogo triste para sempre te abrasou Eu lembro de outra batalha em que Guaixaraacute entrou Muito povo te apoiou e inda que lhes desses forccedilas na fuga se debandou Natildeo eram muitos cristatildeos Contudo nada ficou da forccedila que te inspirou pois veio Sebastiatildeo na forccedila fogo ateou

GUAIXARAacute

Por certo aqueles cristatildeos tatildeo rebeldes natildeo seriam Mas esses que aqui estatildeo desprezam a devoccedilatildeo e a Deus natildeo reverenciam Vais ver como em nossos laccedilos caem logo estes malvados De nossos dons confiados as almas cederam passo para andar do nosso lado

AIMBIREcirc

Assim mesmo tentarei Um dia obedeceratildeo

GUAIXARAacute

Ao sinal de minha matildeo os iacutendios te entregarei

159

E agrave forccedila sucumbiratildeo

AIMBIREcirc

Preparemos a emboscada Natildeo te afobes Nosso espia veraacute em cada morada que armas nos satildeo preparadas na luta que se inicia

GUAIXARAacute

Muito bem eacutes capaz disso Saravaia meu vigia

SARAVAIA

Sou democircnio da alegria e assumi tal compromisso Vou longe nesta porfia Saravaiaccedilu me chamo Com que tarefa me aprazas

GUAIXARAacute

Ouve as ordens de teu amo quero que espies as casas e voltes quando te chame Hoje vou deixar que leves os iacutendios aprisionados

SARAVAIA

Irei onde me carregues E agradeccedilo que me entregues encargo tatildeo desejado Como Saravaia sou aos iacutendios que me aliei enfim aprisionarei E neste barco me vou De cauim me embriagarei

160

GUAIXARAacute

Anda logo vai ligeiro

SARAVAIA

Como um raio correrei (Sai)

GUAIXARAacute (Passeia com Aimbirecirc e diz)

Demos um curto passeio Quando volte o mensageiro a aldeia destroccedilarei (Volta Saravaia e Aimberecirc diz)

AIMBIREcirc

Danado Voltou voando

GUAIXARAacute

Demorou menos que um raio Foste mesmo Saravaia

SARAVAIA

Fui Jaacute estatildeo comemorando os iacutendios nossa vitoacuteria Alegra-te Transbordava o cauim o prazer regurgitava E a beber as igaccedilabas esgotam ateacute o fim

GUAIXARAacute

E era forte

161

SARAVAIA

Forte estava E os rapazes beberrotildees que pervertem esta aldeia caiam de cara cheia Velhos velhas mocetotildees que o cauim desnorteia

GUAIXARAacute

Jaacute basta Vamos mansinho tomaacute-los todos de assalto Nosso fogo arda bem alto (Vem Satildeo Lourenccedilo com dois companheiros Diz Aimbirecirc)

AIMBIREcirc

Haacute um sujeito no caminho que me ameaccedila de assalto Seraacute Lourenccedilo o queimado

SARAVAIA

Ele mesmo e Sebastiatildeo

AIMBIREcirc

E o outro dos trecircs que satildeo

SARAVAIA

Talvez seja o anjo mandado desta aldeia o guardiatildeo

AIMBIREcirc

Ai Eles me esmagaratildeo Natildeo posso sequer olhaacute-los

162

GUAIXARAacute

Natildeo te entregues assim natildeo ao ataque meu irmatildeo Teremos que amedrontaacute-los As flechas evitaremos fingiremos de atingidos

AIMBIREcirc

Olha eles vecircm decididos a accediloitar-nos Que faremos Penso que estamos perdidos (Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou luminosos democircnio

163

SAtildeO LOURENCcedilO

Dizei-me o que quereis desta minha terra em que nos vemos

GUAIXARAacute

Amando os iacutendios queremos que obediecircncia nos prestem por tanto que lhes fazemos Pois se as coisas satildeo da gente ama-se sinceramente

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Quem foi que insensatamente um dia ou presentemente os iacutendios vos entregou Se o proacuteprio Deus tatildeo potente deste povo em santo ofiacutecio corpo e alma modelou

GUAIXARAacute

Deus Talvez remotamente pois eacute nada edificante a vida que resultou Satildeo pecadores perfeitos repelem o amor de Deus e orgulham-se dos defeitos

AIMBIREcirc Bebem cuim a seu jeito como completos sandeus ao cauim rendem seu preito Esse cauim eacute que tolhe sua graccedila espiritual Perdidos no bacanal seus espiacuteritos se encolhem em nosso laccedilo fatal

164

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo se esforccedilam por orar na luta do dia a dia Isto eacute fraqueza de certo

AIMBIREcirc

Sua boca respira perto do pouco que Deus confia

SARAVAIA

Eacute verdade intimamente resmungam desafiando ao Deus que os estaacute guiando Dizem Seraacute realmente capaz de me ver passando

SAtildeO SEBASTIAtildeO (Para Saravaia)

Seraacutes tu um pobre rato Ou eacutes um gambaacute nojento Ou eacutes a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os iacutendios no mato

SARAVAIA

No anseio de devorar as almas sequer dormi

GUAIXARAacute

Cala-te Fale eu por ti

SARAVAIA

Natildeo vaacutes me denominar pra que natildeo me mate aqui Esconda-me antes dele

165

Eu por ti vigiarei

GUAIXARAacute

Cala-te Te guardarei Que a liacutengua natildeo te revele depois te libertarei

SARAVAIA

Se natildeo me viu safarei Inda posso me esconder

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Cuidado que lanccedilarei o dardo em que o flecharei

GUAIXARAacute

Deixa-o Vem de adormecer

SAtildeO SEBASTIAtildeO

A noite ele natildeo dormiu para os iacutendios perturbar

SARAVAIA

Isso natildeo se haacute de negar (Accediloita-o Guaixaraacute e diz)

GUAIXARAacute

Cala-te Nem mais um pio que ele quer te devorar

SARAVAIA

166

Ai de mim Por que me bates assim pois estou bem escondido (Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas palavras amigas Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba

167

disso natildeo os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos aprisionando

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e ao viacutecios bem se convertem agrave forccedila do nosso mando

GUAIXARAacute

Eu que te ajude a explicar As velhas como serpentes injuriam-se entre dentes maldizendo sem cessar

168

As que mais calam consentem Pecam as inconsequumlentes com intrigas bem tecidas preparam negras bebidas pra serem belas e ardentes no amor na cama e na vida

AIMBIREcirc

E os rapazes cobiccedilosos perseguindo o mulherio para escravas do gentio Assim invadem fogosos dos brancos o casario

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

SAtildeO LOURENCcedilO Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma que o bem procura Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

169

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou eu abandonaacute-los E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los Tanto confiaram em mim construindo esta capela plantando o bem sobre ela Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs daqui lhes darei sumiccedilo Deles nem sombra vereis Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas tridentes e alegrar as nossas gentes

AIMBIREcirc

170

Aqui vou com minhas garras meus longos dedos meus dentes

ANJO

Natildeo julgueis tolos dementes por no fogo esta legiatildeo Aqui estou com Sebastiatildeo e Satildeo Lourenccedilo natildeo tentem levaacute-los agrave danaccedilatildeo Pobres de voacutes que irritastes

de tal forma o bom Jesus Juro que em nome da cruz ao fogo vos condenastes (Aos santos) Prendei-os donos da luz (Os santos prendem os dois diabos)

GUAIXARAacute

Basta

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo Teu cinismo me agasta Destes provas que sobejam de querer destruir a igreja SAtildeO SEBASTIAtildeO (A Aimberecirc)

Grita Lamenta Te arrasta Te prendi

AIMBIREcirc

Maldito Seja (Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido)

ANJO

E tu que estaacute escondido seraacute acaso um morcego Sapo cururu minguaacute ou filhote de gambaacute ou bruxa pedindo arrego Sai daiacute seu fedorendo

171

abelha de asa de vento zorrilho maritaca seu lesma tamarutaca

SARAVAIA

Ai vida que me aprisionam Natildeo vecircs que morro de sono

ANJO

Quem eacutes tu

SARAVAIA

Sou Saravaia Inimigo dos franceses

ANJO

Teus tiacutetulos satildeo soacute estes SARAVAIA

Sou tambeacutem mestre em tocaia porco entre todas as reses

ANJO

Por isso eacutes sujo e enlameias tudo com teu negro rabo Veremos como pateias no fogo que a gente ateia

SARAVAIA

Natildeo Por todos os diabos Eu te dou ovas de peixe farinha de mandioca desde que agora me deixas te dou dinheiro aos feixes

172

ANJO

Natildeo te entendo maccedilaroca As coisas que me prometes em troca de onde roubaste Que morada assaltaste antes que aqui te escondeste Muito coisa tu furtaste

SARAVAIA

Natildeo somente o que falei Da casa dos bons cristatildeos foi bem pouco o que apanhei Tenho o que trago nas matildeos por muito que trabalhei Aqueles outros tecircm mais Para comprar cauim aos iacutendios em boa paz dei o que tinha e demais pois pobre acabei assim

ANJO

Vamos Restitui-lhes tudo o que tiveres roubado

SARAVAIA

Natildeo faccedilas isto estou becircbedo mais do que o demo rabudo da sogra do meu cunhado Tem paciecircncia me perdoa meu irmatildeo estou doente Das minhas almas presente farei a ti praacute que em boa hora as cucas lhes rebentes Leva o nome destes monstros e famoso ficaraacutes

173

ANJO

E onde lhes foste ao encontro

SARAVAIA

Fui pelo sertatildeo a dentro lacei as almas rapaz

ANJO

De que famiacutelias descendem

SARAVAIA

Desse assunto pouco sei Filhos de iacutendios talvez Na corda os enfileirei presos todos de uma vez Passei noites sem dormir nos seus lares espreitei fiz suas casas explodir suas mulheres lacei pra que natildeo possam fugir (Amarra-o o anjo e diz)

ANJO

Quantas maldades fizeste Por isso o fogo te espera Viveraacutes do que tramaste nesta abrasada tapera em que pro fim te pilhaste

SARAVAIA

Aimberecirc

AIMBIREcirc

Oi

174

SARAVAIA

Vem logo dar-me a matildeo Este louco me prendeu

AIMBIREcirc

A mim tambeacutem me venceu o flechado Sebastiatildeo Meu orgulho arrefeceu

SARAVAIA

Ai de mim Guaixaraacute dormes assim sem pensar em me salvar

GUAIXARAacute Estaacutes louco Saravaia Natildeo vecircs que Lourenccedilo ensaia maneira de me queimar

ANJO

Bem junto pois sois comparsas ardereis eternamente Enquanto noacutes Deo Gratias sob a luz da minha guarda viveremos santamente (Faz uma praacutetica aos ouvintes) Alegrai-vos filhos meus na santa graccedila de Deus pois que dos ceacuteus eu desci para junto a voacutes estar e sempre vos amparar dos males que haacute por aqui Iluminado esta aldeia junto de voacutes estarei por nada me afastarei - pois a isto me nomeia Deus Nosso Senhor e Rei

Ele que a cada um de voacutes um anjo seu destinou Que natildeo vos deixe mais soacutes e ao mando de sua voz os democircnios expulsou Tambeacutem Satildeo Lourenccedilo o virtuoso Servo de Nosso Senhor vos livra com muito amor terras e almas extremoso do democircnio enganador Tambeacutem Satildeo Sebastiatildeo valente santo soldado que aos tamoios rebelados deu outrora uma liccedilatildeo hoje estaacute do vosso lado E mais - Paranapucu

175

Jacutinga Moroacutei Sarigueacuteia Guiriri Pindoba Pariguaccedilu Curuccedila Miapei E a tapera do pecado a de Jabebiracica natildeo existe E lado a lado a naccedilatildeo dos derrotados no fundo do rio fica Os franceses seus amigos inutilmente trouxeram armas Por noacutes combateram Lourenccedilo jamais vencido e Satildeo Sebastiatildeo flecheiro Estes santos em verdade das almas se compadecem aparando-as desvanecem (Oacute armas da caridade) Do viacutecio que as envilece Quando o democircnio ameaccedilar vossas almas voacutes vereis com que forccedila hatildeo de zelar Santos e iacutendios sereis pessoas de um mesmo lar Tentai velhos viacutecios extirpar e as maldades caacute da terra evitai bebida e guerra adulteacuterio repudiai tudo o que o instinto encerra Amai vosso Criador cuja lei pura e isenta

Satildeo Lourenccedilo representa Engrandecei ao Senhor que de bens vos acrescenta Este mesmo Satildeo Lourenccedilo que aqui foi queimado vivo pelos maus feito cativo e ao martiacuterio foi infenso sendo o feliz redivivo Fazei-vos amar por ele e amai-o quanto puderdes que em sua lei nada se perde E confiando mais nele mais o ceacuteu se vos concede Vinde agrave direita celestial de Deus Pai ireis gozar junto aos que bem vatildeo guardar no coraccedilatildeo que eacute leal e aos peacutes de Deus repousar

(Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede)

Cantemos todos cantemos Que foi derrotado o mal Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima repeticcedilatildeo da cantiga choram)

CANTIGA

Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado (Voltam os santos)

Alegrai-vos vivei bem vitoriosos do viacutecio aceitai o sacrifiacutecio que ao amor de Deus conveacutem Daiacute fuga ao Demo-ningueacutem Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado

176

TERCEIRO ATO Depois de Satildeo Lourenccedilo morto na grelha o Anjo fica em sua guarda e chama os dois diabos Aimbirecirc e Saravaia que venham sufocar os imperadores Deacutecio e Valeriano que estatildeo sentados em seus tronos

ANJO

Aimbirecirc Estou chamando vocecirc Apressa-te Corre Jaacute

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para dar-te como presa De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

AIMBIREcirc

Boa Me fazes contente Agrave forccedila os castigarei e no fogo os queimarei como diabo eficiente Meu oacutedio satisfarei

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los Que para o sol sejam cegos Ide ao fogo cozinhaacute-los Castiga com teus vassalos

177

estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto Sejam tais ordens cumpridas Reunirei meus democircnios Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que temos planos medonhos

SARAVAIA

Jaacute de nego me pintei oacute meu avocirc jaguaruna e o cauim preparei veraacutes como beberei nesta festa da fortuna Que vejo Um temiminoacute Ou filho de guaianaacute Seraacute esse um guaitacaacute que agrave mesa do jacareacute sozinho vou devorar

(Vecirc o Anjo e espanta-se)

E este paacutessaro azulatildeo quem seraacute que assim me encara Algum parente de arara

AIMBIREcirc

Eacute o anjo que em nossa matildeo potildee duas presas bem raras

SARAVAIA

Meus capangas atenccedilatildeo Tataurana Tamanduaacute vamos com calma por laacute que esses monstros quereratildeo

178

por certo me afogar

AIMBIREcirc

Vamos

SARAVAIA

Ai os mosquitos me mordem Espera ou me comeratildeo Tenho medo quem me acode Sou pequenino e eles podem tragar-me de supetatildeo

AIMBIREcirc

Os iacutendios que natildeo se fiam nesta conversa e se escondem se os mandam executar

SARAVAIA

Tecircm razatildeo se desconfiam vivem sempre a se lograr

AIMBIREcirc

Cala a boca beberratildeo soacute por isso eacutes tatildeo valente moleiratildeo impertinente

SARAVAIA

Ai de mim me prenderatildeo mas vou por te ver contente E a quem vamos devorar

AIMBIREcirc

179

A algozes de Satildeo Lourenccedilo

SARAVAIA

Aqueles cheios de ranccedilo Com isto eu vou mudar meu nome de que me canso Muito bem Suas entranhas sejam hoje o meu quinhatildeo

AIMBIREcirc

Vou morder seu coraccedilatildeo

SARAVAIA

E os que natildeo nos acompanham sua parte comeratildeo (Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Suacutes Caborecirc vecirc se te inflama pra comer estes perus (Acodem todos os quatro com suas armas)

TATAURANA

Aqui estou com a muccedilurana e os braccedilos lhe comerei A Jaguaraccedilu darei o lombo a Urubu o cracircnio e as pernas a Caborecirc URUBU Aqui cheguei As tripas recolherei e com os bofes terei a panela a derramar E esta panela verei

180

minha sogra cozinhar

JAGUARUCcedilU

Com esta ingapema dura as cabeccedilas quebrarei e os miolos comerei Sou guaraacute onccedila criatura e antropoacutefago serei

CABOREcirc

E eu que em demandas andei aos franceses derrotando para um bom nome ir logrando agora contigo irei estes chefes devorando

SARAVAIA

Agora quietos De rastros natildeo nos viram Vou agrave frente Que natildeo escapem da gente Vigiarei No tempo exato ataquemos de repente

(Vatildeo todos agachados em direccedilatildeo a Deacutecio e Valeriano que conversam)

DEacuteCIO

Amigo Valeriano minha vontade venceu Natildeo houve arte no ceacuteu que livrasse do meu plano o servo do Galileu Nem Pompeu e nem Catatildeo nem Cesar nem o Africano nenhum grego nem troiano puderam dar conclusatildeo a um feito tatildeo soberano

181

VALERIANO

O remate gratildeo-Senhor desta tatildeo grande faccedilanha foi mais que vencer Espanha Jamais rei ou imperador logrou coisa tatildeo estranha Mas Senhor esse quem eacute que vejo ali tatildeo armado com espadas e cordel e com gente de tropel vindo tatildeo acompanhado

DEacuteCIO

Eacute o grande deus nosso amigo Juacutepiter sumo senhor que provou grande sabor com o tremendo castigo da morte deste traidor E quer para reforccedilar as penas deste rufiatildeo nosso impeacuterio acrescentar com sua potente matildeo pela terra e pelo mar

VALERIANO

Mais me parece eacute que vem a seus tormentos vingar e a noacutes ambos enforcar Oh que cara feia tem Comeccedilo a me apavorar

DEacuteCIO

Enforcar Quem a mim pode matar ou mover meus fundamentos Nem a exaltaccedilatildeo dos ventos Nem a braveza do mar nem todos os elementos

182

Natildeo temas que meu poder o que os deuses imortais me quiseram conceder natildeo se poderaacute vencer pois natildeo haacute forccedilas iguais De meu cetro imperial pendem reis tremem tiranos Venccedilo a todos os humanos e posso ser quase igual a esses deuses soberanos

VALERIANO

Oh que terriacutevel figura Natildeo posso mais aguardar que jaacute me sinto queimar Vamos que eacute grande loucura tal encontro aqui esperar Ai ai que grandes calores Natildeo tenho nenhum sossego Ai que poderosas dores Ai que feacutervidos ardores que me abrasam como fogo

DEacuteCIO

Oh paixatildeo Ai de mim que eacute o Plutatildeo chegando pelo Aqueronte ardendo como ticcedilatildeo a levar-nos de roldatildeo ao fogo do Flegetonte Oh coitado que me queimo Esse queimado me queima com grande dor

Oh infeliz imperador Todo me vejo cercado de penas e de pavor pois armado o diabo com seu dardo mais as fuacuterias infernais vecircm castigar-nos demais Jaacute nem sei o que hei falado com anguacutestias tatildeo mortais

VALERIANO

O Deacutecio cruel tirano Jaacute pagas e pagaraacute Contigo Valeriano porque Lourenccedilo cristatildeo assado nos assaraacute

183

AIMBIREcirc

Ocirc Castelhano Bom Castelhano parece Estou bem alegre mano que Espanhol seja o profano que no meu fogo padece Vou fingir-me castelhano e usar de diplomacia com Deacutecio e Valeriano porque o espanhol ufano sempre guarda a cortesia Oh mais alta majestade Beijo-vos a matildeo mil vezes por vossa gratilde-crueldade

pois justiccedila nem verdade guardastes sendo juizes Sou mandado por Satildeo Lourenccedilo queimado levaacute-los agrave minha casa onde seja confirmado vosso imperial estado em fogo que sempre abrasa Oh que tronos e que camas eu vos tenho preparadas nessas escuras moradas de vivas e eternas chamas de nunca ser apagadas

VALERIANO

Ai de mim

AIMBIREcirc

Vieste do Paraguai Que falais em Carijoacute Sei todas liacutenguas de cor Avanccedila aqui Saravaia Usa tu golpe maior

VALERIANO

Basta Que assim me assassinas natildeo tenho pecado nada Meu chefe eacute a presa acertada

SARAVAIA

Natildeo eacutes tu que me fascinas oacute presa bem cobiccedilada

184

DEacuteCIO

Oacute miseraacutevel de mim que nem basta ser tirano nem falar em castelhano Que eacute do mando em que me vi e o meu poder soberano

AIMBIREcirc

Jesus Deus grande e potente que tu traidor perseguiste te daraacute sorte mais triste entregando-te em meu dente a que malvado serviste Pois me honraste e sempre me contentaste ofendendo ao Deus eterno

Eacute justo pois que no inferno palaacutecio que tanto amaste natildeo sintas o mal do inverno Porque o oacutedio inveterado do teu duro coraccedilatildeo natildeo pode ser abrandado se natildeo for jaacute martelado com a aacutegua do Flegeton

DEacuteCIO

Olha que consolaccedilatildeo para quem se estaacute queimando Sumos deuses para quando adiais minha salvaccedilatildeo que vivo estou me abrasando Ai ai Que mortal desmaio Esculaacutepio natildeo me acodes Oh Juacutepiter porque dormes Que eacute do vosso raio Por que eacute que natildeo me socorres

AIMBIREcirc

Que dizeis De que mal voacutes padeceis Que pulso mais alterado Eacute grande dor de costado este mal que morreis Haveis de ser bem sangrado Haacute dias que esta sangria se guardava para voacutes

que sangraacuteveis noite e dia com dedicada porfia aos santos servos de Deus Muito desejo eu beber vosso sangue imperial Oh natildeo me leveis a mal que com isso quero ser homem de sangue real

DEacuteCIO

Que dizeis Que disparate e elegante desvario Joguem-me dentro de um rio antes que o fogo me mate oacute deuses em que confio Natildeo quereis socorrer-me ou natildeo podeis Oacute malditos fementidos

ingratos desconhecidos que pouco vos condoeis de quem fostes tatildeo servidos Se agora voar pudesse vos iria derrocar dos vossos tronos celestes feliz se a mim me coubesse no fogo vos projetar

AIMBIREcirc

Parece-me que eacute chegada a hora do frenesi e com chama redobrada a qual seraacute descuidada dos deuses a quem servis Satildeo armas dos audazes cavaleiros que usam palavroacuterio humano E por isso tatildeo ufano hoje vindes acolhecirc-los no romance castelhano

SARAVAIA

Assim eacute Pensava dar de reveacutes golpes de afiados accedilos mas enfim nossos balaccedilos se chocaram atraveacutes com bem poucos canhonaccedilos Mas que boas bofetadas lhes reservo para dar Os tristes sem descansar agrave forccedila de tais pauladas com catildees hatildeo de ladrar

186

VALERIANO

Que ferida Tira-me logo esta vida pois minha alta condiccedilatildeo contra justiccedila e razatildeo veio a ser tatildeo abatida que morro como ladratildeo

SARAVAIA

Natildeo eacute outro o galardatildeo que concedo aos meus criados senatildeo morrer enforcados e depois sem remissatildeo ao fogo ser condenados

DEacuteCIO

Essa eacute a pena redobrada que me causa maior dor que eu universal senhor morra morte desonrada na forca como traidor Ainda se fosse lutando dando golpes e reveses pernas e braccedilos cortando como fiz com os franceses acabaria triunfando

AIMBIREcirc

Parece que estais lembrando poderoso imperador quando com bravo furor matastes traiccedilatildeo armando Felipe vosso senhor Por certo que me alegrais e se cumpre meus anseios ante desabafos tais porque o fogo em que queimais provoca tais devaneios

187

DEacuteCIO

Bem entendo que este fogo em que me acendo merece-me a tirania pois com tatildeo feroz porfia aos cristatildeos martirizando pelo fogo os consumia Mas que em minha monarquia acabe com tal pregatildeo pois morrer como ladratildeo eacute muito triste agonia e dobrada confusatildeo

AIMBIREcirc

Como Pedis confissatildeo Sem asas quereis voar Ide se quereis achar aos vossos atos perdatildeo agrave deusa Pala rogar Ou a Nero esse cruel carniceiro do fiel povo cristatildeo Aqui estaacute Valeriano vosso leal companheiro buscai-o por sua matildeo

DEacuteCIO

Esses amargos chistes e agressotildees me acrescentam em paixotildees e mais dores com tatildeo profundos ardores como de ardentes ticcedilotildees E com isto crescem mais os fogos em que padeccedilo Acaba que me ofereccedilo em tuas matildeos Satanaacutes ao tormento que mereccedilo

188

AIMBIREcirc

Oh quanto vos agradeccedilo por esta boa vontade Eu com liberalidade quero dar-lhe bom refresco para vossa enfermidade Na cova onde o fogo se renova com ardores perenais os vossos males fatais aiacute teratildeo grande prova das agruras imortais

DEacuteCIO

Que fazer Valeriano bom amigo Testemunharaacutes comigo desta pena envolvido na cadeia de fogo deste castigo

VALERIANO

Em maacute hora Jaacute satildeo horas Vamos logo deste fogo ao outro fogo eternal laacute onde a chama imortal nunca nos daraacute sossego Suacutes asinha Vamos agrave nossa cozinha Saravaia

AIMBIREcirc

Aqui deles natildeo me afasto Nas brasas seratildeo bom pasto maldito quem nelas caia

DEacuteCIO

Aqui abrasado estou

189

Assa-me Lourenccedilo assado De soberano que sou vejo que Deus me marcou por ver seu santo vingado

AIMBIREcirc

Com efeito quiseste abrasar a jeito o virtuosos Satildeo Lourenccedilo Hoje te castigo e venccedilo e sobre as brasas te deito para morrer segundo penso (Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins e cada dois levam o seu)

Vinde aqui e aos malditos conduzi para em bom queimarem seus corpos sujos tostarem na festa em que os seduzi para cozidos bailarem

(Ficam ambos os democircnios no terreiros com as coroas dos imperadores na cabeccedila)

SARAVAIA

Sou o grande vencedor o que as maacutes cabeccedilas quebra sou um chefe de valor e hoje me decido por me chamar Cururupeba Como eles mato os que estatildeo em pecado e os arrasto em minhas chamas Velhos moccedilos jovens damas tenho sempre devorado De bom algoz tenho fama

QUARTO ATO Tendo o corpo de Satildeo Lourenccedilo amortalhado e posto na tumba entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus a encerrar a obra e no fim acompanham o santo agrave sepultura

190

ANJO

Vendo nosso Deus benigno vossa grande devoccedilatildeo que tendes e com razatildeo a Lourenccedilo o maacutertir digno de toda a veneraccedilatildeo determinam por seus rogos e martiacuterio singular a todos sempre ajudar para que escapeis dos fogos em que os maus se hatildeo de queimar Dois fogos trazia nalma com que as brasas resfriou a no fogo em que se assou com tatildeo gloriosa palma dos tiranos triunfou Um fogo foi o temor do bravo fogo infernal e como servo leal por honrar a seu Senhor fugiu da culpa mortal

Outro foi o Amor fervente de Jesus que tanto amava que muito mais se abrasava com esse fervor ardente que coo fogo em que se assava Estes o fizeram forte Com estes purificado como ouro refinado padeceu tatildeo crua morte por Jesus seu doce amado Estes vos manda o Senhor a ganhar vossa frieza para que vossa alma acesa de seu fogo gastador fique cheio de pureza Deixai-vos deles queimar como o maacutertir Satildeo Lourenccedilo e sereis um vivo incenso que sempre haveis de cheirar na corte de Deus imenso

TEMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Pecador sorves com grande sabor o pecado e natildeo ficas afogado com teus males E tuas chagas mortais natildeo sentes desventurado O inferno como seu fogo sempiterno Jaacute te espera se natildeo segues a bandeira

da cruz sobre a qual morreu Jesus para que tua morte morra Deus te envia esta mensagem com amor a mim que sou seu Temor me conveacutem declarar o que conteacutem para que temas ao Senhor

(Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Espantado estou de ver pecador teu vatildeo sossego Com tais males a fazer como vives sem temer aquele espantoso fogo Fogo que nunca descansa mas sempre provoca a dor e com seu bravo furor

dissipa toda a esperanccedila ao maldito pecador Pecador como te entregas tatildeo sem freio ao viacutecio extremo Dos viacutecios de que estaacutes cheios engolindo tatildeo agraves cegas a culpa com seu veneno

Veneno de maldiccedilatildeo tragas sem nenhum temor e sem sentir sua dor deleites da carnaccedilatildeo sorves com grande sabor Seraacute o sabor do pecado muito mais doce que o mel mas o inferno cruel depois te daraacute um bocado bem mais amargo que o fel Fel beberaacutes sem medida pecador desatinado tua alma em chamas ardida Esta seraacute a saiacuteda do deleite do pecado Do pecado que tu amas Lourenccedilo tanto escapou que mil penas suportou e queimado pelas chamas por natildeo pecar expirou Ele a morte natildeo temeu Tu natildeo temes o pecado no qual te tem enforcado Lucifer que te afogou

e natildeo ficas afogado Afogado pela matildeo do Diabo pereceu Deacutecio com Valeriano infiel cruel tirano no fogo que mereceu Tua feacute merece a vida mas com pecados mortais quase a tiveste perdida e teu Deus bem sem medida ofendeste com teus males Com teus males e pecados tua alma de Deus alheia da danaccedilatildeo na cadeia haacute de pagar com os danados a culpa que a incendeia Pena sem fim te daratildeo dentre os fogos infernais teus deleites sensuais Teus tormentos dobraratildeo e tuas chagas mortais Que mortais satildeo tuas feridas pecador Porque natildeo choras

Natildeo vecircs que nestas demoras estatildeo todas corrompidas a cada dia pioras Pioras e te confinas mas teu perigoso estado na pressa e grande cuidado com que ao fogo te destinas natildeo sentes desventurado Oh descuido intoleraacutevel de tua vida Tua alma estaacute confundida

no lodo e tu vais rindo de tudo natildeo sentes tua caiacuteda Oh traidor Que negas teu Criador Deus eterno que se fez menino terno por salvar-te E tu queres condenar-te e natildeo temes ao inferno

Ah insensiacutevel Natildeo calculas o terriacutevel espanto que causaraacute o juiz quando viraacute com carranca muito horriacutevel e agrave morte te entregaraacute

E tua alma seraacute sepultada em pleno inferno onde morte natildeo teraacute mas viva se queimaraacute com seu fogo sempre eterno

Oh perdido Ali seraacutes consumido sem nunca te consumir Teraacutes vida sem viver com choro e grande gemido teraacutes morte sem morrer Pranto seraacute teu sorrir sede sem fim te abeberra fome que em comer se gera teu sono nunca dormir tudo isto jaacute te espera Oh morfio Pois tu veras de continuo ao horrendo Lucifer sem nunca chegar a ver aquele molde divino de quem tiras todo o ser Acaba jaacute de temer a Deus que sempre te espera correndo por sua esteira pois natildeo lhes vai pertencer se natildeo lhe segues a bandeira Homem louco Se teu coraccedilatildeo jaacute toco mudar-se-atildeo alegrias em tristezas e agonias Olha que te falta pouco

para fenecer teus dias Natildeo peques mais contra Aquele que te ganhou vida e luz com seu martiacuterio cruel bebendo vinagre e fel no extremo lenho a cruz Oh malvado Ele foi crucificado sendo Deus por te salvar Pois que podes esperar se foste tu o culpado e natildeo cessas de pecar Tu o ofendes ele te ama Cegou-se por dar-te a luz Tu eacutes mau pisas a cruz sobre a qual morreu Jesus Homem cego porque natildeo comeccedilas logo a chorar por teu pecado E tomar por advogado a Lourenccedilo que no fogo por Jesus morreu queimado Teme a Deus juiz tremendo que em maacute hora te socorra em Jesus tatildeo soacute vivendo pois deu sua vida morrendo para que tua morte morra

AMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Ama a Deus que te criou homem de Deus muito amado Ama com todo cuidado a quem primeiro te amou Seu proacuteprio Filho entregou agrave morte por te salvar Que mais te podia dar

se tudo o que tem te dou Por mandado do Senhor te disse o que tens ouvido Abre todo teu sentido porque eu que sou seu Amor seja em ti bem imprimido (Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Todas as coisas criadas conhecem seu Criador Todas lhe guardam amor

pois nele satildeo conservadas cada qual em seu vigor Pois com tanta perfeiccedilatildeo

193

sua ciecircncia te formou homem capaz de razatildeo de todo o teu coraccedilatildeo ama a Deus que te criou Se amas a criatura por se parecer formosa ama a visatildeo graciosa desta mesma formosura por sobre todas as coisas Dessa divina lindeza deves ser enamorado Seja tua alma presa daquela suma beleza homem de Deus muito amado Aborrece todo o mal com despeito e com desdeacutem E pois que eacute racional abraccedila a Deus imortal todo sumo e uacutenico bem Este abismo de fartura

que nunca seraacute esgotado esta fonte viva e pura este rio de doccedilura ama com todo cuidado Antes que criasse nada jaacute a alma majestade te havia a vida gerado e tua alma abrasada com eterna caridade Por fazer-te todo seu com amor te cativou e pois que tudo te deu daacute tu todo o maior que eacute teu a quem primeiro te amou E deu-te alma imortal e digna de um Deus imenso para que fosses suspenso nele esse bem eternal que eacute sem fim e sem comeccedilo

Depois que em morte caiacuteste com vida te levantou Porque sair natildeo conseguiste da culpa em que te fundiste seu proacuteprio filho entregou Entregou-o por escravo deixou que fosse vendido para que tu redimido do poder do leatildeo bravo fosses sempre agradecido Para que natildeo morras morre com amor bem singular Pois quanto deves amar a Deus que entregar-se quer agrave morte por te salvar O Filho que o Padre deu a seu Pai te daacute por pai e sua graccedila te infundiu

e quando na cruz morreu deu-te por matildee sua Matildee Deu-te feacute com esperanccedila e a si mesmo por manjar para em si te transformar pela bem aventuranccedila Que mais te podia dar Em paga de tudo isto oh ditoso pecador pede apenas teu amor Despreza pois todo o resto por ganhar a tal Senhor Daacute tua vida pelos bens que Sua morte te ganhou Eacutes seu nada tens de teu Daacute-lhe tudo quanto tens pois tudo o que tem te deu

194

DESPEDIDA

Levantai os olhos ao ceacuteu meus irmatildeos Vereis a Lourenccedilo reinando com Deus por voacutes implorando junto ao rei dos ceacuteus que louvais seu nome aqui neste chatildeo Daqui por diante tende grande zelo que Deus seja sempre temido e amado e maacutertir tatildeo santo de todos honrado Terei seus favores e doce desvelo Pois que celebrai com tal devoccedilatildeo

seu claro martiacuterio tomai meu conselho sua vida e virtudes tende por espelho chamando-o sempre com grande afeiccedilatildeo Tereis por seus rogos o santo perdatildeo e sobre o inimigo perfeita vitoacuteria E depois da morte voacutes vereis na gloacuteria a cara divina com clara visatildeo

(LAUS DEO)

QUINTO ATO

Danccedila de doze meninos que se fez na procissatildeo de Satildeo Lourenccedilo

1ordm) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando Por teus rogos desejando Deus nos faccedila venturosos nosso coraccedilatildeo guardando

2ordm) Noacutes confiamos em ti Lourenccedilo santificado que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos viacutecios jaacute desligados nos pajeacutes natildeo crendo mais em suas danccedilas rituais nem seus maacutegicos cuidados

3ordm) Como tu que a confianccedila em Deus tatildeo bem resguardaste que o dom de Jesus nos baste pai da suprema esperanccedila

4ordm) Pleno do divino amor

195

foi teu coraccedilatildeo outrora Zela pois por noacutes agora Amemos nosso Criador pai nosso de cada hora

5ordm) Obedeceste ao Senhor cumprindo sua palavra Vem que nossa alma escrava de teu amor neste dia te imita em sabedoria

6ordm) Milagroso tu curaste teus filhos tatildeo santamente Suas almas estatildeo doentes deste mal que abominaste Vem curaacute-los novamente

7ordm) Fiel a Nosso Senhor a morte tu suportaste Que a forccedila disto nos baste para suportar a dor pelo mesmo Deus que amaste

8ordm) Pelo terriacutevel que eacutes Jaacute que os democircnios te temem nas ocas onde se escondem vem calcaacute-los sob os peacutes pra que as almas natildeo nos queimem

9ordm) Hereges que este indefeso corpo no teu assaram e a carne toda queimaram em grelhas de ferro aceso Choremos do alto desejo de Deus Padre contemplar Venha Ele neste ensejo nossas almas inflamar

10ordm) Os teus verdugos extremos treme algozes de Deus Vem leva-nos como teus que ao teu lado ficaremos assustando estes ateus

11ordm) Estes que te deram morte ardem no fogo infernal Tu na gloacuteria celestial

196

gozaraacutes divina sorte E contigo aprenderemos a amar a Deus no mais fundo do nosso ser e no mundo longa vida gozaremos

12ordm) Em tuas matildeos depositamos nosso destino tambeacutem Em teu amor confiamos

e uns aos outros nos amamos para todo o sempre Ameacutem

CAI O PANO

197

APEcircNDICE 2 - A MISSA E OS SIacuteMBOLOS CULTURAIS DE TRANSFORMACcedilAtildeO DO HOMEM

Partindo do princiacutepio de que a missa eacute um ritual miacutetico pertencente aos

preceitos da Igreja Catoacutelica desde os primoacuterdios do cristianismo e portanto

pertencente tambeacutem a Feacute natildeo poderia deixar de ser discutida neste trabalho pois

foi atraveacutes dela aleacutem dos sacramentos da Igreja que a religiatildeo em questatildeo se fixa

na mente miacutetica dos homens ateacute a data de hoje sob a forma de um ritual de

contato com a divindade

Justamente por ter sua origem em um mito talvez um dos maiores

mitos da atualidade eacute claro que nem a psicologia a sociologia a antropologia ou

a histoacuteria teria como dar conta de explicar esse grande misteacuterio da Igreja visto

que a feacute ultrapassa os domiacutenios dessas ciecircncias e possivelmente ateacute a filosofia e

da metafiacutesica mas podemos aqui estudar esses siacutembolos de transformaccedilatildeo do

ponto de vista fenomenoloacutegico e eacute o que faremos atraveacutes da visatildeo de Carl Gustav

Jung

Porque recebi do Senhor o que vos transmiti O Senhor

Jesus na noite em que foi entregue tomou o patildeo e depois de dar

graccedilas partiu-o e disse Isto eacute o meu corpo que se daacute por voacutes fazei

isto em memoacuteria de mim E do mesmo modo depois de cear tomou

198

o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o Novo Testamento do meu sangue

todas as vezes que o beberdes fazei-o em memoacuteria de mim Pois

todas as vezes que comerdes este patildeo e beberdes este caacutelice

anunciarei a morte do Senhor ateacute que Ele venha 145

Foi nessa Ceia que Cristo teria pronunciado as palavras da missa Eu

sou a vida verdadeira Permanecei em mim como eu [permaneccedilo] em voacutes eu sou

a videira voacutes sois os sarmentos146

Como a intenccedilatildeo eacute a de me limitar ao siacutembolo da transformaccedilatildeo na

missa natildeo tenho aqui a proposiccedilatildeo de explicar os aspectos de sua composiccedilatildeo

estrutural mas conforme Jung a missa eacute uma celebraccedilatildeo eucariacutestica muito bem

elaborada e com a seguinte estrutura

145 Citaccedilotildees que se seguem sobre a Biacuteblia foram tiradas do Novo Testamento traduzido pelo PeDr Frei Mateus Hoepers e publicado pela Vozes ( apud JUNG1985p2) 146 lat sartmentumi sarmento ramo ou vara de videira

199

Temos que iniciar essa explicaccedilatildeo e a citaccedilatildeo dos siacutembolos da missa

como uma das ferramentas de manutenccedilatildeo da feacute do sacrifiacutecio e do envolvimento

com o Deus e a comunidade

Quanto ao sacrifiacutecio o mito cristatildeo nos revela duas formas distintas de

representaccedilatildeo o deipnon e a thysia Deipnon traz o significado de ceia

propriamente dito definindo a ceia abenccediloada daqueles que passaram ou

participaram de algum sacrifiacutecio onde se entende que os deuses estejam

presentes Essa comida eacute abenccediloada pois o que passou por um sacrificium

tornou-se sagrado

Thysia por sua vez vem significar o entregar o oferecer o imolar e

tambeacutem o soprar com forccedila o que vem relacionar-se com o alimento usado nas

sociedades antigas e primitivas de enviar aos deuses a fumaccedila que sobe das

oferendas ateacute a morada dos deuses simbolizando o espiacuterito o pneuma como era

concebido nos primoacuterdios do cristianismo e mesmo na Idade Meacutedia

Graccedilas ao conceito de ceia para os cristatildeos a palavra corpo de

Cristo logo foi traduzida por carne

Principalmente para os sacerdotes esses conceitos inseridos nos

siacutembolos da missa levam um peso muito grande como nos mostra Hb 717 Tu

eacutes sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquizedeque Onde o

oferecimento do sacrifiacutecio perene e o sacerdoacutecio eterno constituem partes

integrantes e necessaacuterias do conceito de missa (JUNG1985 p3) As ideacuteias do

sacerdoacutecio eterno e do sacrifiacutecio estatildeo intimamente ligadas ao misteacuterio da missa e

com a transformaccedilatildeo das substacircncias da qual falaremos em seguida

200

O iniacutecio do rito da transformaccedilatildeo do indiviacuteduo cristatildeo quer a do

sacerdote quer a do ouvinte e assistente da missa inicia-se juntamente com o

ofertoacuterio momento em que se preparam as oferendas a Deus

O primeiro dos pontos eacute a oblaccedilatildeo do patildeo onde o sacerdote coloca a

hoacutestia na patena eleva-a em direccedilatildeo agrave cruz do altar faz o sinal da cruz e eleva a

hoacutestia o patildeo o corpo a carne de Cristo e a relaciona com seu sacrificium

atribuindo assim agrave hoacutestia a qualidade de coisa sagrada Ateacute entatildeo a hoacutestia era

apenas patildeo e considerada como corpus imperfectum

Isso tambeacutem ocorre com o vinho mesmo com sua natureza mais

espiritual tambeacutem eacute considerado corpus imperfectum ateacute que nessa mesma

preparaccedilatildeo ao vinho eacute misturada a aacutegua147

Satildeo Cipriano - bispo de Cartago

relaciona o vinho com Cristo e a

aacutegua com a comunidade que participa da missa parte de suma importacircncia de

todo o rito pois sem a comunidade para receber o rito ele natildeo pode existir148

Nesta parte especial da missa como o iniacutecio desse ritual do mito

cristatildeo os corpus imperctum estatildeo sendo transformados no corpus

glorificationis no corpo ressuscitado

147 Originariamente a mistura de aacutegua com vinho estava ligada ao antigo costume cultural de beber apenas vinho misturado com aacutegua Por isso um bebedor isto eacute um alcooacutelatra era chamado de acratopotes beberratildeo de vinho natildeo misturado (Jung 1985 p7-312) 148 Em Ap1715 se lecirc Aquae quas vidisti ubi meretrix sedet populi sunt et gentes et linguae acuteAs aacuteguas que vecircs sobre as quais a prostituta estaacute sentada satildeo os povos e as multidotildees as naccedilotildees e as liacutenguas Na alquimia meretrix prostituta eacute o nome da prima mateacuteria do corpus imperfectum Elevada a aacutegua a condiccedilatildeo de sagrada misturada ao vinho vem significar que somente uma comunidade perfeita pode se juntar a Cristo (idem)

201

O ponto seguinte do rito da missa o sacerdote mostrando agrave

comunidade eleva o caacutelice com a mistura jaacute preparada e invoca o Espiacuterito Santo

Veni espiritus sanctificator que eacute quem produz e transforma esse vinho em

sangue de Cristo perante toda uma plateacuteia que crecirc nessa transformaccedilatildeo

recebendo culturalmente mais informaccedilotildees sobre o mito que se refere a sua feacute

religiosa

A parte seguinte eacute a da incensaccedilatildeo das oferendas e do altar onde com

a fumaccedila do turiacutebulo oferece um sacrifico que eacute um resquiacutecio da thysia de que

falamos anteriormente no intuito de espiritualizar todos os objetos fiacutesicos do altar

e por estar enchendo o ar com perfume do pneuma espantar as eventuais

forccedilas demoniacuteacas que pudessem estar presentes elevando as oraccedilotildees a

Deus149

Em seguida vem a invocaccedilatildeo ou a epiclese onde atraceacutes do

Suspiece sancta Trinitas (Recebei oacute Trindade santa) satildeo iniciadas as oraccedilotildees

propiciatoacuterias em que se garante que as oferendas seratildeo aceitas por Deus A

certeza da aceitaccedilatildeo se prende a se crer que uma coisa chamada atraveacutes de seu

nome tem o poder de tornar presente o que se convoca Assim por meio do

Adesto adesto Jesu boneacute Pontifex in medio nostri sicut fuisti in medio

discopulorum tuorum (Vinde vinde oacute Jesus o Pontiacutefice misericordioso ficai

conosco como estiveste como os vossos disciacutepulos) atraveacutes do chamamento se

149 Eacute dito nesse instante da missa as palavras Dirigatur Domine oratio mea sicut incensum in conspectu tuo (Eleva-se Senhor a minha oraccedilatildeo como o incenso agrave Vossa presenccedila) e Accedat in nobis Dominus ignem sui amoris

(acenda ograve Senhor em noacutes o fogo de seu amor) (idem Jung-1985-p11-320)

202

obteacutem a certeza da presenccedila e da manifestaccedilatildeo do Senhor no momento que eacute

considerado a ponto alto da celebraccedilatildeo da missa

Desse ponto em diante segue a consagraccedilatildeo do patildeo e do caacutelice

momento em que se daacute a transubstanciaccedilatildeo ou a transformaccedilatildeo das substacircncias

do patildeo e do vinho em corpo e sangue do Senhor

Estamos aqui apenas relatando de forma didaacutetica os passos da

celebraccedilatildeo da missa portanto natildeo temos interesse de discutir esses passos

quanto a seu conteuacutedo e sim mais adiante analisarmos psicologicamente esses

siacutembolos No entanto apenas como curiosidade jaacute que vaacuterios termos foram

colocados em latim e posteriormente os traduzimos nos informa Jung (1985-p12)

as palavras ditas pelo sacerdote no momento da consagraccedilatildeo do patildeo e do vinho

natildeo devem ser traduzidas em liacutengua profana devendo ser ditas apenas e tatildeo

somente em latim por serem palavras consideradas sagradas mesmo que alguns

missais possam conter essa traduccedilatildeo dessa forma as citaremos no rodapeacute desta

paacutegina com o texto em latim obtida na fonte acima descrita150

Nesse ponto do ritual encontram-se devidamente consagrados e

purificados tanto o sacerdote como a comunidade as oferendas como o altar

totalmente preparados como uma unidade miacutestica para a epifania do Senhor isto

150 Consagraccedilatildeo do patildeo Qui pridie quam pateretur accepit panem in sanctas ac venerabiles manus suas et elevatis oculis in caelum ad Deum Patrem suum omnipotentem tibi gratias agens benedixit fregit deditque discipulis suis dicens Accipite et manducate ex hoc omnes Hoc est enim Corpus meum

Consagraccedilatildeo do caacutelice Simili modo postquam cenatum est accipiens et hunc praeclarum calicem in sancta ac venerabiles manus suas item tibi gratias agens benedixit deditque discipulis suis dicens Accipite et bibite ex eo omnes Hic est enim Calix Sanguinis mei novi et aeterni testamenti mysterium fidei qui pro vobis et pro multins effundetur in remissionem peccatorum Haec quosticumque faceritis in mei memoriam facietis

203

eacute o momento da manifestaccedilatildeo reveladora de Cristo de forma viva no Corpus

mysticum do sacrifiacutecio divino como se nesse momento se abrisse uma porta

onde do outro lado exista um espaccedilo liberto do tempo e do espaccedilo porta essa

aberta natildeo pelo sacerdote mas por Cristo como agens como agente dessa

transformaccedilatildeo

O sacerdote entatildeo levanta as substacircncias consagradas e as apresenta

agrave comunidade mostrando que o Homem-Deus tornou-se presente na hoacutestia

consagrada Pede entatildeo o sacerdote ao Senhor que receba a hoacutestia imaculada e

que abenccediloe a todos com sua graccedila Faz trecircs sinais da cruz com a hoacutestia sobre o

caacutelice pronunciando per ipsum et cum ipso et in ipso (Por Ele com Ele e Nele)

traccedilando outros trecircs sinais entre ele e o caacutelice para criar a relaccedilatildeo de identidade

entre a hoacutestia o caacutelice e o sacerdote para entatildeo poder incluir nas graccedilas a serem

recebidas a comunidade que aguarda ser livrada de todos os males passados

presentes e futuros Divide a hoacutestia em duas partes significando a morte de Cristo

glorificado do rex gloriae De uma das partes tira uma pequena partiacutecula que

seraacute colocada no vinho dentro do caacutelice durante a consignaacutetio e a commixtio

momento da mistura do patildeo com o vinho do corpo com o sangue onde satildeo ditas

as seguintes palavras Haec commixtrio et consecratio Corporis et Sanguinis

Domini nostri

Dessa forma sacerdote o corpo e o sangue do Senhor unidos agrave

comunidade fazem a unidade miacutetica da missa assim como o patildeo resulta de

muitos gratildeos o vinho de muitos bagos de uva assim tambeacutem o Corpus

204

mysticum a Igreja eacute constituiacutedo pela multidatildeo daqueles que crecircem151 e possuem

em si como visatildeo de mundo o mito cristatildeo

Eacute importante ressaltar aqui que natildeo procuro fazer nenhuma

interpretaccedilatildeo das partes que compotildeem a missa e sim com referecircncia ao mito

cristatildeo analisar psicologicamente esses siacutembolos que contribuem como

transmissatildeo cultural e como forma de propagaccedilatildeo universal do cristianismo

Vejamos o ato de pensar ou de crer expressam uma realidade

psicoloacutegica do indiviacuteduo que crecirc e nesse caso do mito e da crenccedila dos sacrifiacutecios

da missa essa realidade estaacute baseada nos enunciados do rito e da feacute explicados

metafisicamente o que pode ser indicado que exceto pela maneira psiacutequica de

manifestar-se a crenccedila escapa ao entendimento do intelecto e por esse motivo

natildeo pode ser posto em julgamento mas eacute certo que o pressuposto da feacute em si

conteacutem a realidade de um fato psiacutequico152

Cada passo da missa possui uma composiccedilatildeo de dois aspectos claros

um divino com a accedilatildeo do proacuteprio Deus e outro humano num significado

meramente instrumental

O lado humano oferece dons a Deus sobre o altar com a doaccedilatildeo

completa do sacerdote e da comunidade cristatilde celebrando a uacuteltima ceia de Jesus

com seus disciacutepulos mas celebra tambeacutem uma accedilatildeo sagrada onde Cristo se

encarna torna-se homem sub-espeacutecie das substacircncias oferecidas sofre e eacute

151 Jung-1985-p20-338 152 Jung-1985-p46-377

205

morto jaz no sepulcro e por fim quebra o poder do inferno ressuscitando

glorioso153 Embora esse acontecimento seja divino surge o cristatildeo perante o

ritual tal qual como na participaccedilatildeo divina agindo como agens

e patiens na

sua limitada capacidade

Mas no sentido divino onde o momento eacute entendido como uma accedilatildeo

direta de Deus esse mesmo homem se coloca apenas e tatildeo somente como um

instrumento agrave disposiccedilatildeo de um agente eterno que transcende a consciecircncia

humana

Assim como o homem eacute um simples instrumento

(voluntaacuterio) no acontecimento da missa tambeacutem eacute incapaz de

compreender o que quer que seja a respeito da matildeo que se utiliza

dele O martelo natildeo conteacutem em si proacuteprio aquilo que o faz bater Eacute um

ser situado fora dele autocircnomo que dele se apodera e o potildee em

movimento 154

Essa relaccedilatildeo do homem com o divino da oferenda com o recebimento

da graccedila possui a mesma funccedilatildeo psicoloacutegica e portanto cultural da magia

propiciatoacuteria que se encontra em todos os sacrifiacutecios de tribos e sociedades ditas

primitivas onde o humano oferece para receber em troca a matildeo da divindade

colocada sobre seus ombros quer para proteccedilatildeo quer para resolver suas afliccedilotildees

desejos e impossibilidades

153 Jung-1985-p47-379 154 Jung-1985-p49-379

206

Essa magia realizada pelas tribos traacutes consigo o sangue e a carne

verdadeiros sejam de animais ou de pessoas o que apavora me faz com que os

olhos humanos de outra cultura rechacem o acontecimento

Acontece poreacutem que o mito cristatildeo se utiliza nessa magia

propiciatoacuteria de siacutembolos que representam o melhor produto cultural desde muito

tempo que simbolizam a vida e a pessoa humana a produccedilatildeo o trabalho e as

virtudes

O patildeo e o vinho natildeo soacute constituem o alimento comum de grande parte

da humanidade como tambeacutem podem ser encontrados em toda a face da

Terra155

O patildeo e o vinho como importantes siacutembolos da civilizaccedilatildeo expressam o

esforccedilo humano em plantar e colher e ainda produzir com aquilo que foi colhido

Os gratildeos de trigo e os bagos de uva representam a condiccedilatildeo psicoloacutegica que faz

surgir as virtudes do homem e que o torna capaz de produzir cultura

Plantar e colher possui em si o trabalho durante o crescimento das

plantas por ele cultivadas crescimento esse que se desenvolve de acordo com

leis divinas por serem elas leis internas que atual dentro delas como um agens

ou uma forccedila que chegou mesmo a ser comparada ao proacuteprio alento ou espiacuterito

vital156 um espiacuterito que morre e ressuscita a cada estaccedilatildeo do ano tal qual a

manifestaccedilatildeo do manaacute mas que necessita da participaccedilatildeo do homem e de um

155 KRAMP Joseph 1924 Apud Jung-1985-p51-381 156 Jung-1985-p53-385

207

desempenho psicoloacutegico com relaccedilatildeo ao esforccedilo agrave aplicaccedilatildeo agrave paciecircncia e ao

devotamento

Tomar do patildeo e do vinho consagraacute-los e oferececirc-los a Deus queiramos

ou natildeo trata-se de um do ut des no entanto eacute uma forma de doaccedilatildeo em que o

humano se entrega de tal forma a essa oferenda que daacute o que foi entregue como

pedido como um sacrifiacutecio pois caso natildeo receba em troca a graccedila pedida

continua a acreditar que ao menos no reino dos ceacuteus receberaacute tal graccedila e por isso

se entrega o que faz com que o homem possa buscar com esse ritual sua

evoluccedilatildeo do eu conforme crecirc sua individuaccedilatildeo seu si mesmo O eu estaacute pra o

si mesmo assim como o patiens estaacute pra o agens porque as disposiccedilotildees que

emanam do si mesmo satildeo bastante amplas e por isso superiores ao euo si

mesmo eacute o existente a priori do qual proveacutem o euNatildeo sou eu que me crio mas

sou eu que aconteccedilo a mim mesmo 157

Essa conclusatildeo vem de encontro com o entendimento da psicologia sobre

o fenocircmeno religioso e sobre a feacute e Jung como bom exemplo dessa conclusatildeo

cita que o fundador da Companhia de Jesus Inaacutecio de Loyola colocou seu homo

creatus est como fundamentum de seus exerciacutecios espirituais

O Grande Si Mesmo para o cristatildeo eacute o proacuteprio Cristo o homem primordial

o Adam secundus o qual tentar entender fora do mito seria como

psicologizar158 de forma mal sucedida tentando destruir o misteacuterio do rito miacutetico

157 Jung-1985-p59-391 158 como uso pejorativo fazer especulaccedilotildees de cunho psicoloacutegico sem base cientiacutefica

208

APEcircNDICE 3 O MITO DE CRISTO

O drama da vida arquetiacutepica de Cristo descreve em

imagens simboacutelicas os eventos da vida consciente

assim como da

vida que transcende a consciecircncia

de um homem que foi

transformado pelo seu destino superior159

A obra de Jung eacute extremamente vasta com relaccedilatildeo ao estudo das

religiotildees tanta das religiotildees e seitas primitivas como do cristianismo do

protestantismo das religiotildees orientais poreacutem deu ecircnfase principalmente aos

estudos com relaccedilatildeo ao mito cristatildeo e suas caracteriacutesticas

Um dos pontos mais importantes de sua obra sobre o assunto eacute a visatildeo

que apresenta sobre a vida de Cristo o que nos chamou especial atenccedilatildeo para

escrevermos esta parte da pesquisa

Jung nos coloca que a vida de Cristo representa para nossa cultura o

processo de individuaccedilatildeo que pode significar para um indiviacuteduo a salvaccedilatildeo ou a

trageacutedia e quando esse indiviacuteduo eacute parte de uma igreja ou um credo religioso ele

159 Jung A psycological approach to the trynity Psychology and Religion in Edinger1988

209

eacute poupado dos perigos da vida em sua experiecircncia direta pois estaraacute protegido

pelo mito cristatildeo

Tal qual no mito do heroacutei das mil e uma noites ou outros contos do

oriente Cristo passa por uma saga bem definida como o nascimento do heroacutei a

missatildeo avisada a fuga e a negaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo o retorno a realizaccedilatildeo o triunfo

e o precircmio final

Como diz Campbell160 citando uma velha sabedoria romana Os fados

guiam aquele que assim o deseje aquele que natildeo o deseje eles arrastam

O mesmo ocorreu com Cristo foi arrastado por seus fados conforme

podemos ver pois O Filho preexistente e uacutenico de Deus esvazia-se de sua

divindade e se encarna como homem por intermeacutedio do Espiacuterito Santo que

impregna a Virgem Maria Ele nasce num ambiente humilde cercado de perigos

iniciais Quando alcanccedila a idade adulta submete-se ao batismo de Joatildeo Batista e

testemunha a descida do Espiacuterito Santo que indica sua vocaccedilatildeo Ele sobrevive agrave

tentaccedilatildeo do Democircnio e leva a bom termo seu ministeacuterio que proclama a

existecircncia de um Deus benevolente e amoroso Apoacutes passar pela agonia da

incerteza aceita o destino que lhe cabe e deixa-se prender julgar flagelar

escarnecer e crucificar Apoacutes passar trecircs dias no tuacutemulo de acordo com vaacuterias

testemunhas eacute ressuscitado Durante quarenta dias caminha e fala com seus

160 CAMPBELL 1990 pintroduccedilatildeo X

210

disciacutepulos e em seguida sob aos ceacuteus Dez dias depois no Pentecostes o

Espiacuterito Santo o Paraacuteclito prometido desce 161

Para explicar essa sequumlecircncia de fatos Jung nos apresenta o seguinte

graacutefico

A sequumlecircncia de situaccedilotildees passadas por Cristo e que constitui o mito

cristatildeo se repete em forma circular iniciando e encerrando com a mesma

161 EDINGER 1988 p16

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

211

situaccedilatildeo onde o Pentecostes eacute uma segunda Anunciaccedilatildeo pois na primeira nasce

Cristo e na segunda nasce a Igreja

Para o homem miacutetico engajado nesse ciacuterculo essa eacute a descriccedilatildeo do

processo por onde o ego do homem atinge sua consciecircncia pois descreve o que

correu com Deus feito homem e por consequumlecircncia descreve a transformaccedilatildeo de

Deus Assim por meio desse processo mais uma vez o Espiacuterito Santo desce a

terra natildeo para promover uma imitaccedilatildeo de Cristo Homem-Deus feita pelo homem

mas para promover a cristificaccedilatildeo de muitos 162

Vamos iniciar entatildeo pela Anunciaccedilatildeo

26 Ora no sexto mecircs (da gravidez de Isabel) foi o anjo

Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileacuteia chamada Nazareacute

27a uma virgem desposada com um varatildeo cujo nome era Joseacute da

casa de Davi e o nome da virgem era Maria

28 E entrando o anjo onde ela estava disse Salve

agraciada o Senhor eacute contigo

29 Ela poreacutem ao ouvir estas palavras turbou-se muito e

pocircs-se a pensar que saudaccedilatildeo seria essa

30 Disse-lhe entatildeo o anjo Natildeo temas Maria pois achaste

graccedila diante de Deus

31 Eis que conceberaacutes e daraacutes agrave luz um filho ao qual

poraacutes o nome de Jesus

32 Este seraacute grande e seraacute chamado filho do Altiacutessimo o

Senhor Deus lhe daraacute o trono de Davi seu pai

33 e reinaraacute eternamente sobre a casa de Jacoacute e o seu

reino natildeo teraacute fim

162 JUNG 1990 p113 par 758

212

34 Entatildeo Maria perguntou ao anjo Como se faraacute isso uma

vez que natildeo conheccedilo varatildeo

35 Respondeu-lhe o anjo Viraacute sobre ti o Espiacuterito Santo

e o poder do Altiacutessimo te cobriraacute com a sua sombra por isso o

que haacute de nascer seraacute chamado santo Filho de Deus

36 Eis que tambeacutem Isabel tua parenta concebeu um filho

em sua velhice e eacute este o sexto mecircs para aquela que era chamada

esteacuteril37 porque para Deus nada seraacute impossiacutevel

38 Disse entatildeo Maria Eis aqui a serva do Senhor cumpra-

se em mim segundo a tua palavra E o anjo ausentou-se dela

O primeiro ponto a que dei importacircncia estaacute em grifo no texto biacuteblico

onde a expressatildeo te cobriraacute com a sua sombra 163 se refere no Antigo

Testamento em vaacuterias passagens agraves manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de Iahweh o

que mostra aqui o lado sombrio do misteacuterio sagrado do momento em que Deus

atraveacutes do Espiacuterito Santo cobre com uma nuvem o momento em que a

fecundaccedilatildeo do Senhor ocorre isto eacute uma gravidez ilegiacutetima num tempo em que

cometer adulteacuterio era passiacutevel de ser punida com a morte no entanto a obediecircncia

a Deus transforma Maria em uma mulher cheia de graccedila pois carrega em seu

ventre o Homem-Deus

Muitas vezes a Anunciaccedilatildeo coberta pela sombra e a obediecircncia de

Maria foi contrastada agrave desobediecircncia de Eva que culminou com a expulsatildeo do

primeiro casal do paraiacuteso Paulo falando aos Corintos (1Cor 1522) estabelece

esse viacutenculo ao dizer E assim como em Adatildeo morrem todos assim tambeacutem

todos seratildeo vivificados em Cristo

163 te cobriraacute com a sua sombra (episkiaz ) onde skia traduz sombra escuridatildeo EDINGER 1988 p22

213

Essa comparaccedilatildeo surge tambeacutem em um texto apoacutecrifo Protoevangelho

de Tiago164 que ao ouvir falar da gravidez de Maria Joseacute exclama

Quem trouxe esse mal agrave minha casa e a conspurcou (a

virgem) Teraacute a histoacuteria (de Adatildeo) se repetido comigo

Onde se encontra a diferenccedila principal Eacute que enquanto Eva se

submete e obedece agrave serpente Maria se coloca como serva do Senhor e diz Eis

aqui a serva do Senhor cumpra-se em mim segundo a tua palavra o que em

termos da visatildeo miacutetica do significado psicoloacutegico retrata que Maria aceita por sua

alma o encontro como o numinosum165 e como consequumlecircncia o encontro do

arqueacutetipo do mito com a individuaccedilatildeo do homem

Outro ponto a ser considerado como importante siacutembolo formador do

mito cristatildeo eacute a virgindade de Maria que tal qual as Virgens Vestais eram guardiatildes

da chama sagrada Essa relaccedilatildeo com a virgindade parece ser importante como

energia de transmutaccedilatildeo do fogo sagrado pois como em muitas culturas as

virgens sempre possuem uma relaccedilatildeo com o numinoso o que significa ser um

forte siacutembolo arquetiacutepico formador do mito Edinger (1988 p28) diz O ego virgem

tem suficiente consciecircncia para relacionar-se com as energias transpessoais sem

identificar-se com elas

164 EDINGER1988p25 165 Numinosum- numinoso adjetivo - influenciado inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade

214

Seguindo adiante no ciacuterculo do mito de Cristo encontramos o segundo

ponto que se refere agrave natividade

1 Naqueles dias saiu um decreto da parte de Ceacutesar

Augusto para que todo o mundo fosse recenseado

2 Este primeiro recenseamento foi feito quando Quiriacutenio

era governador da Siacuteria

3 E todos iam alistar-se cada um agrave sua proacutepria cidade

4 Subiu tambeacutem Joseacute da Galileacuteia da cidade de Nazareacute agrave

cidade de Davi chamada Beleacutem porque era da casa e famiacutelia de

Davi5 a fim de alistar-se com Maria sua esposa que estava graacutevida

6 Enquanto estavam ali chegou o tempo em que ela havia

de dar agrave luz 7 e teve a seu filho primogecircnito envolveu-o em faixas e o

deitou em uma manjedoura porque natildeo havia lugar para eles na

estalagem

Este eacute o momento em que no mito do heroacutei se iniciam os perigos onde

enquanto se registrava nos Ceacuteus o nascimento de uma crianccedila divina se

recenseava na Terra e se registrava as pessoas nascidas pois naquele momento

histoacuterico e cultural era de suma importacircncia ter o nome escrito e registrado Cristo

disse mais adiante a seus disciacutepulos (Lc 1020) deveis alegrar-vos de que os

vossos nomes estejam escritos no ceacuteu

Em Hebreus (1223) agrave universal assembleacuteia eacute a igreja dos primogecircnitos

inscritos nos ceacuteus e Deus o juiz de todos e aos espiacuteritos dos justos

aperfeiccediloados

215

Mas tambeacutem eacute importante perceber que culturalmente os primogecircnitos

(pr totokos ou primogenitus)166 eram considerados especiais natildeo soacute para os

homens daquela eacutepoca mas tambeacutem para Iahveh vejamos Santifica-me todo

primogecircnito todo o que abrir o uacutetero de sua matildee entre os filhos de Israel assim

de homens como de animais porque meu eacute (Ex132)

Jesus foi o primogecircnito Primogecircnito entre muitos irmatildeos(Rm 829) que

erigiraacute uma igreja dos primogecircnitos inscritos nos ceacuteus (Hb1223)

Novamente a cultura como expressatildeo de uma eacutepoca de um povo gera

o poder criador do mito O heroacutei aqui denominado Jesus Cristo nasce como

primogecircnito e como Salvador Universal

Vamos entatildeo relembrar a saga de um heroacutei miacutetico nas palavras de

Jung167

Este eacute o motivo pelo qual o nascimento de Cristo foi

caracterizado pelas manifestaccedilotildees que acompanham o nascimento do

heroacutei quais sejam o anuacutencio preacutevio deste nascimento a geraccedilatildeo no

seio de uma virgem a coincidecircncia com a triacuteplice coniunctio magna

(juacutepiter marte e saturno) no signo de Pisces que introduziu

precisamente naquela eacutepoca o novo eon ligado ao nascimento de um

rei a perseguiccedilatildeo ao receacutem-nascido sua fuga e ocultaccedilatildeo a

modeacutestia de seu nascimento etc Pode-se ver tambeacutem o tema do

crescimento do heroacutei em sabedoria demonstrada pelo jovem de doze

anos no templo e quanto ao tema da ruptura com a matildee haacute tambeacutem

alguns exemplos

166 o mais velho o primeiro filho homem do homem 167 JUNG 1990

Resposta agrave Jocirc p49-par 644

216

A terceira situaccedilatildeo do nosso ciacuterculo do mito de cristo eacute a Fuga para o

Egito onde o nascimento do heroacutei ou da crianccedila divina como jaacute dito

anteriormente se faz acompanhar costumeiramente de ameaccedilas com relaccedilatildeo a

sua vida o que mais uma vez se confirma Vejamos

13 E havendo eles se retirado eis que um anjo do Senhor

apareceu a Joseacute em sonho dizendo Levanta-te toma o menino e sua

matildee foge para o Egito e ali fica ateacute que eu te fale porque Herodes

haacute de procurar o menino para o matar

14 Levantou-se pois tomou de noite o menino e sua matildee

e partiu para o Egito

15 e laacute ficou ateacute a morte de Herodes para que se

cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta Do Egito

chamei o meu Filho

16 Entatildeo Herodes vendo que fora iludido pelos magos

irou-se grandemente e mandou matar todos os meninos de dois anos

para baixo que havia em Beleacutem e em todos os seus arredores

segundo o tempo que com precisatildeo inquirira dos magos

17 Cumpriu-se entatildeo o que fora dito pelo profeta Jeremias

18 Em Ramaacute se ouviu uma voz lamentaccedilatildeo e grande

pranto Raquel chorando os seus filhos e natildeo querendo ser

consolada porque eles jaacute natildeo existem(Mt 213-18)

A autoridade maior o heroacutei o poder gerador do mito a crianccedila divina

cumpre as profecias pois em Oseacuteias (111) se diz Quando Israel era menino eu o

amei e do Egito chamei a meu filho e no antigo testamento a naccedilatildeo de Israel eacute o

217

filho de Iahweh mostrando assim que Cristo eacute a proacutepria substituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

Israel

Novamente a expressatildeo cultural gera o mito como forma de seguir

explicando o inexplicaacutevel

Na quarta situaccedilatildeo do ciacuterculo do mito identifica-se o Batismo onde

Jesus sai da Galileacuteia para se encontrar com Joatildeo e ser batizado por ele e que

depois de batizado os ceacuteus se abrem uma pomba desce dos ceacuteus e uma voz do

ceacuteu lhes diz Este eacute o meu filho amado em quem me comprazo (Mt 313-17)

Para a Igreja o sacramento do batismo vem significar a morte da antiga

vida da carne e o renascimento da vida eterna em Cristo

O Espiacuterito Santo que desce nas asas de uma pomba branca o fogo

sobre o rio Jordatildeo e a luz vida do ceacuteu e que se abre sobre Cristo e Joatildeo Batista a

purificaccedilatildeo atraveacutes da aacutegua e a voz sugerem que o proacuteprio Senhor se fez batizar

e o homem miacutetico sabe que com esse evento o que habitava de forma demoniacuteaca

no inconsciente foi transformado em terreno sagrado e na morada do numinoso

O homem miacutetico se encontra com seu destino com sua identidade e tambeacutem

pode se considerar como o Filho de Deus um eleito que teraacute seu nome inscrito

nos ceacuteus

Em seguida ocorre a entrada triunfal de Jesus em Jerusaleacutem

1 Quando se aproximaram de Jerusaleacutem e chegaram a

Betfageacute ao Monte das Oliveiras enviou Jesus dois disciacutepulos

dizendo-lhes

218

2 Ide agrave aldeia que estaacute defronte de voacutes e logo encontrareis

uma jumenta presa e um jumentinho com ela desprendei-a e trazei-

mos

3 E se algueacutem vos disser alguma coisa respondei O

Senhor precisa deles e logo os enviaraacute

4 Ora isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito

pelo profeta

5 Dizei agrave filha de Siatildeo Eis que aiacute te vem o teu Rei manso

e montado em um jumento em um jumentinho cria de animal de

carga

6 Indo pois os disciacutepulos e fazendo como Jesus lhes

ordenara

7 trouxeram a jumenta e o jumentinho e sobre eles

puseram os seus mantos e Jesus montou

8 E a maior parte da multidatildeo estendeu os seus mantos

pelo caminho e outros cortavam ramos de aacutervores e os espalhavam

pelo caminho

9 E as multidotildees tanto as que o precediam como as que o

seguiam clamavam dizendo Hosana ao Filho de Davi bendito o que

vem em nome do Senhor Hosana nas alturas

10 Ao entrar ele em Jerusaleacutem agitou-se a cidade toda e

perguntava Quem eacute este

11 E as multidotildees respondiam Este eacute o profeta Jesus de

Nazareacute da Galileacuteia (Mt 21 1-9)

Eacute permitido por Cristo que o aclamem rei Parece que nesse momento

a negaccedilatildeo de seu destino surge justamente quando deixa a humildade e

sucumbe agrave tentaccedilatildeo do poder rapidamente se enche de fuacuteria e expulsa os

vendilhotildees do templo de Deus e amaldiccediloa uma figueira que natildeo lhe fornecia

frutos Como nos propotildee Edinger168 parece neste momento que Cristo pela forma

168 EDINGER1988 p60

219

que entra em Jerusaleacutem identifica a si mesmo como o rei messiacircnico profetizado

em Zc 99

9 Alegra-te muito oacute filha de Siatildeo exulta oacute filha de

Jerusaleacutem eis que vem a ti o teu rei ele eacute justo e traz a salvaccedilatildeo ele eacute

humilde e vem montado sobre um jumento sobre um jumentinho filho de

jumenta

O mito do heroacutei novamente se assemelha ao mito de Cristo pois natildeo haacute

como o heroacutei aceitar seu destino e desenvolver-se sem que antes seu ego

sucumba ao erro necessaacuterio (Felix culpa) pois de acordo com Jung169 o

egocentrismo eacute um atributo necessaacuterio da consciecircncia bem como seu pecado

especiacutefico

Mas continuando em nosso caminho da individuaccedilatildeo de Cristo

encontramos a Uacuteltima Ceia parte que por achar de grande importacircncia para a

construccedilatildeo do mito cristatildeo dedico mais adiante um espaccedilo significativo onde

coloco ao lado da formaccedilatildeo do mito os siacutembolos culturais da missa na

transformaccedilatildeo do homem cristatildeo Eacute a Uacuteltima Ceia a Santa Ceia a primeira missa

realizada no mito cristatildeo o rito central da Igreja Catoacutelica

26 Enquanto comiam Jesus tomou o patildeo e abenccediloando-

o o partiu e o deu aos disciacutepulos dizendo Tomai comei isto eacute o meu

corpo

169 apud EDIGER 1988p61 e JUNG Mysterium Coniunctionis par 364

220

27 E tomando um caacutelice rendeu graccedilas e deu-lho

dizendo Bebei dele todos

28 pois isto eacute o meu sangue o sangue do pacto o qual eacute

derramado por muitos para remissatildeo dos pecados (Mt 26 26-28)

55 Porque a minha carne verdadeiramente eacute comida e o

meu sangue verdadeiramente eacute bebida(Jo 655)

Eacute neste ponto que surge o primeiro sacrifiacutecio de Cristo pois oferece seu

corpo e seu sangue para a alimentaccedilatildeo dos que nele crecircem provando isso mais

adiante quando se deixa prender ser julgado flagelado e crucificado entregando

novamente seu corpo e seu sangue para salvaccedilatildeo de todos que aceitassem viver

esse mito O alimento dado aos disciacutepulos vem representar a natureza paradoxal

do siacutembolo da Eucaristia170 De um lado fornece uma conexatildeo como poder

gerador do mito e do outro a prima mateacuteria que deve ser humanizada e

transformada pelos esforccedilos do ego171 para que o homem possa se transformar e

receber em si o divino o numinoso

Mais adiante Cristo vai ao Gethsemani onde fica clara a aceitaccedilatildeo da

missatildeo de ser o Filho de Deus uma missatildeo de sofrimento e sangue que caminha

pelo ciacuterculo do mito de Cristo atraveacutes dos pontos da Prisatildeo e Julgamento onde

mesmo que natildeo aceitasse ser o Rei dos Judeus dizendo natildeo ser deste mundo

seu reino ainda assim era um reino da Flagelaccedilatildeo e escaacuternio da crucificaccedilatildeo o

170 EDINGER1988 p69 171 idem

221

foco principal do mito cristatildeo em relaccedilatildeo agrave contemplaccedilatildeo do sofrimento e da

entrega do destino a Deus

A crucificaccedilatildeo pode equivaler ao fracasso do heroacutei em sua luta pois ao

dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonastes poderia estar revendo

que sua vida vivida de profunda convicccedilatildeo tinha sido uma terriacutevel ilusatildeo172

Vem a lamentaccedilatildeo e o sepultamento equivalendo agrave descida de Cristo

aos infernos e ao limbo amparado pela Pietaacute sobre o corpo morto do filho

Mas no primeiro dia da semana

1 Mas jaacute no primeiro dia da semana bem de madrugada

foram elas ao sepulcro levando as especiarias que tinham preparado

2 E acharam a pedra revolvida do sepulcro

3 Entrando poreacutem natildeo acharam o corpo do Senhor Jesus

4 E estando elas perplexas a esse respeito eis que lhes

apareceram dois varotildees em vestes resplandecentes

5 e ficando elas atemorizadas e abaixando o rosto para o

chatildeo eles lhes disseram Por que buscais entre os mortos aquele que

vive

6 Ele natildeo estaacute aqui mas ressurgiu Lembrai-vos de como

vos falou estando ainda na Galileacuteia(Lc 24 1-6)

Mas depois da Ressurreiccedilatildeo mesmo com diversas evidecircncias de seu

aparecimento como em Joatildeo 2011-17 como em Lucas e Mateus seus disciacutepulos

natildeo o reconheceram de imediato pois atingindo o Self o Si-mesmo a evoluccedilatildeo

do homem miacutetico ele se transforma de tal ordem que natildeo poderaacute ser reconhecido

172 ideacuteia expressada por Jung durante entrevistas CGJung Entrevistas e Encontrosp103- apud EDINGER 1988 p120

222

mesmo pelos amigos mais iacutentimos pois atingiria o contato pleno com o

numinosum

35Mas algueacutem diraacute Como ressuscitam os mortos e com

que qualidade de corpo vecircm

36 Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se

primeiro natildeo morrer

37 E quando semeias natildeo semeias o corpo que haacute de

nascer mas o simples gratildeo como o de trigo ou o de outra qualquer

semente

38 Mas Deus lhe daacute um corpo como lhe aprouve e a cada

uma das sementes um corpo proacuteprio

39 Nem toda carne eacute uma mesma carne mas uma eacute a

carne dos homens outra a carne dos animais outra a das aves e

outra a dos peixes

40 Tambeacutem haacute corpos celestes e corpos terrestres mas

uma eacute a gloacuteria dos celestes e outra a dos terrestres

41 Uma eacute a gloacuteria do sol outra a gloacuteria da lua e outra a

gloacuteria das estrelas porque uma estrela difere em gloacuteria de outra

estrela

42 Assim tambeacutem eacute a ressurreiccedilatildeo eacute ressuscitado em

incorrupccedilatildeo

43 Semeia-se em ignomiacutenia eacute ressuscitado em gloacuteria

Semeia-se em fraqueza eacute ressuscitado em poder

44 Semeia-se corpo animal eacute ressuscitado corpo

espiritual Se haacute corpo animal haacute tambeacutem corpo espiritual

45 Assim tambeacutem estaacute escrito O primeiro homem Adatildeo

tornou-se alma vivente o uacuteltimo Adatildeo espiacuterito vivificante

46 Mas natildeo eacute primeiro o espiritual senatildeo o animal depois

o espiritual

47 O primeiro homem sendo da terra eacute terreno o segundo

homem eacute do ceacuteu

223

48 Qual o terreno tais tambeacutem os terrenos e qual o

celestial tais tambeacutem os celestiais

49 E assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestial

50 Mas digo isto irmatildeos que carne e sangue natildeo podem

herdar o reino de Deus nem a corrupccedilatildeo herda a incorrupccedilatildeo

51 Eis aqui vos digo um misteacuterio Nem todos dormiremos

mas todos seremos transformados

52 num momento num abrir e fechar de olhos ao som da

uacuteltima trombeta porque a trombeta soaraacute e os mortos seratildeo

ressuscitados incorruptiacuteveis e noacutes seremos transformados (1 Cor

35-52)

O Corpo Celestial que Paulo cita em 1 Cor15 35-52 equivale a dizer

que o homem miacutetico com seu corpo em ressurreiccedilatildeo em Cristo estaacute em contato

direto com o arqueacutetipo Cristatildeo e com o proacuteprio Deus pois a morte e a

ressurreiccedilatildeo de Cristo formam um arqueacutetipo que vive natildeo apenas na psique

individual mas tambeacutem na coletiva 173

Com a Ascensatildeo onde Cristo diz se preparar para a descida sob a

forma do Espiacuterito Santo no Pentecostes Deus que se esvaziou de sua divindade e

desceu a Terra como espiacuterito humano sobe novamente e retorna ao ceacuteu em

ascensatildeo para depois retornar jaacute reconhecido como Deus sob a forma do

Espiacuterito Santo

173 idem

224

Mostra o mito Cristatildeo que natildeo somos seres humanos passando por

uma vida espiritual na Terra mas seres espirituais que passamos tal qual Cristo

por uma experiecircncia humana

8 Mas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito

Santo e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda

a Judeacuteia e Samaacuteria e ateacute os confins da terra

9 Tendo ele dito estas coisas foi levado para cima

enquanto eles olhavam e uma nuvem o recebeu ocultando-o a seus

olhos

10 Estando eles com os olhos fitos no ceacuteu enquanto ele

subia eis que junto deles apareceram dois varotildees vestidos de branco

11 os quais lhes disseram Varotildees galileus por que ficais

aiacute olhando para o ceacuteu Esse Jesus que dentre voacutes foi elevado para o

ceacuteu haacute de vir assim como para o ceacuteu o vistes ir (At 1 8-11)

O homem na visatildeo junguiana possui um Ego174 que se contrapotildee

constantemente ao Si-mesmo (Self) como sendo o Ego o terreno e o Si-mesmo o

celestial onde o Si-mesmo eacute a entidade inconsciente que desenvolve o ego

dizendo eu natildeo me crio a mim mesmo antes eu me aconteccedilo a mim mesmo

No ser humano sempre existiraacute a supremacia do Si-mesmo em

simultaneidade com a liberdade de accedilatildeo do Ego assim como no mundo sempre

haveraacute para o homem miacutetico a liberdade de accedilatildeo ou livre arbiacutetrio do corpo terreno

na relaccedilatildeo direta da supremacia do corpo espitirual O Ego estaacute para o Si-mesmo

174 Ego e Si-mesmo (self) pode ser visto em CARNOT(2005)

225

assim como o patiens

estaacute pra o agens ou como o objeto estaacute pra o

observador ou mesmo como o homem estaacute pra Deus

Jung comenta em seu livro The Spirit Mercurius Alchemical Studies

(par 280)175 que haacute uma correspondecircncia alquiacutemica e simboacutelica a esse evento da

Ascensatildeo e retorno de Cristo com a Taacutebua de Esmeraldas de Hermes a qual

inclui em sua receita pra a produccedilatildeo da Pedra Filosofal as palavras Ele sobe da

terra pra o ceacuteu e desce de novo na terra recebendo a forccedila de cima e de baixo e

comentando essa passagem diz

[Para o alquimista] natildeo haacute uma questatildeo de subida de

matildeo uacutenica pra o ceacuteu mas em contraste com a rota seguida pelo

Redentor Cristatildeo que vem de cima para baixo e depois retorna para

cima o filius macrocosmi comeccedila de baixo sobe agraves alturas e com os

poderes do Acima e do Abaixo unidos em si mesmo volta outra vez a

terra Ele (o alquimista) realiza o movimento inverso e assim

manifesta uma natureza contraacuteria agrave de Cristo e agrave dos Redentores

Gnoacutesticos (me agrada interpretar a palavra alquimista como traduccedilatildeo

de o homem miacutetico )

Chegamos ao ciclo do mito Cristatildeo ao Pentecostes a 13a situaccedilatildeo

colocada por Jung como sendo tambeacutem a primeira apoacutes a Ascensatildeo Com o

Pentecostes o ciclo da encarnaccedilatildeo de Cristo se completa assim como se

completa o ciclo do heroacutei O ciclo se inicia com a descida do Espiacuterito Santo na

175 apud EDINGER (1988 p 122)

226

anunciaccedilatildeo e termina com sua nova descida dos ceacuteus par o iniacutecio de um novo

ciclo

Para didaticamente deixar claro ao leitor repito a figura que

representa esse ciclo

A Igreja como corpo de Cristo teve sua anunciaccedilatildeo e

concepccedilatildeo no Pentecostes 176

176 idem EDINGER1988 p130

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

227

Foi este o momento onde deixam os disciacutepulos de serem um

receptaacuteculo dos ensinamentos do mito de Cristo para nascer a Santa Igreja

Catoacutelica sem tratar aqui os movimentos de sua criaccedilatildeo como o grande

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo

Aqui o homem miacutetico entrega a Igreja o controle do proacuteprio espiacuterito

celestial podendo viver sua vida independente dos desiacutegnios dos ceacuteus podendo

em agindo dentro do mito buscar seu uacuteltimo dia momento em que voltaraacute a ser

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo dando a ideacuteia de uma encarnaccedilatildeo contiacutenua tanto do

homem quanto de Deus

228

APEcircNDICE 4 - UMA PROPOSTA DE INTERPRETAR PSICOLOacuteGICA E MITICAMENTE A

TRINDADE

A Alma eacute o maior dos milagres coacutesmicos CG Jung 177

Como todo o tema deste trabalho desde o nome o objeto de pesquisa

pode parecer estranho tanto a um psicoacutelogo como a um educador como a um

historiador

No entanto faccedilo mais essa anaacutelise de forma plena e consciente de que

entro neste momento em mais uma pesquisa polecircmica e que por mais que me

aprofunde neste momento natildeo deixaraacute de ser superficial

Acontece que em meu entender tal qual os siacutembolos de transformaccedilatildeo

cultural da missa ou a interpretaccedilatildeo da vida de Cristo este tema tambeacutem eacute

necessaacuterio para que se possa ter mais clara a visatildeo do mito cristatildeo e por

consequumlecircncia o Cristatildeo portuguecircs do seacuteculo XVI pois a Trindade nos daraacute mais

algumas informaccedilotildees de como culturalmente esse arqueacutetipo esse mito foi imposto

agrave nossa cultura e imposiccedilatildeo aos brasis

177 JAFFEacute-1995-p5

229

As religiotildees cristatildes estatildeo tatildeo presentes e tatildeo proacuteximas agrave alma humana

que seria impossiacutevel ignoraacute-las do ponto de vista psicoloacutegico educacional e do

ponto de vista cultura

Por mais que a ideacuteia Trindade esteja no campo da Teologia aacuterea que

natildeo me sinto habilitado ou sequer inclinado a pesquisar eacute na histoacuteria e na obra de

CG Jung que busco as informaccedilotildees que necessito para escrever sobre esse

dogma e o simbolismo trinitaacuterio

Que se tenha notiacutecia a Trindade do mito cristatildeo eacute a uacutenica que soacute

existe como trecircs partes de um uno As triacuteades divinas de tantos mitos primitivos

tecircm uma relaccedilatildeo de parentesco entre elas como por exemplo a triacuteade babilocircnica

Anu Bel e Ea onde Ea a personificaccedilatildeo do saber eacute o pai de Bel (o Senhor) que

personifica a atividade praacutetica Numa triacuteade secundaacuteria desse mito da eacutepoca de

Nabucodonosor Sin (a lua) Shamash (o sol) e Adad (a tempestade Senhor do

Ceacuteu e da Terra e filho do altiacutessimo Anu da triacuteade primaacuteria) No tempo de

Hamurabi Marduk filho de Ea substitui Bel e seus poderes levando Bel a um

segundo plano Nisso Hamurabi se considera um novo deus e soacute venerava uma

diacuteade Anu e Bel e por ser Hamurabi considerado um soberano divino

mensageiro de Anu e Bels e associa a eles criando nova triacuteade Anu

Bel

Hamurabi178

Assim como nesse exemplo vaacuterias culturas primitivas se utilizavam em

seus mitos de triacuteades divinas

178 JUNG1988par173-174

230

No entanto no Velho Testamento encontramos por diversas vezes um

Deus quase que uno pois onde surge o Espiacuterito a palavra vem acompanhada de

Espiacuterito de Deus Espiacuterito do Senhor o que se pode confirmar em

Gecircnesis cap 1 e 6

Nuacutemeros cap 24 e 27

Juiacutezes cap 36111314 e 15

I Samuel cap 1011 e 16

II Samuel cap 3

I Reis cap 18 e 22

II Reacuteus cap 2

II Crocircnicas cap151820 e 24

Assim como em Neemias Joacute Salmos Isaias Ezequiel Joel Miqueacuteias

Ageu e Zacarias

Somente no evento do Novo Testamento surge a segunda parte da

diacuteade Espiacuterito Santo

Ateacute esse momento se percebe principalmente em Joacute um Deus uacutenico

onipotente e onisciente poreacutem com caracteriacutesticas de uma dualidade na forma de

agir com o homem Existe aiacute um Deus justo e injusto doce e coleacuterico que cria e

destroacutei que necessitava de aplausos e reverecircncias e dado ao caraacuteter temiacutevel

fazia com que o homem se referisse constantemente a um Temor de Deus

231

De fato Javeacute tudo pode e se permite sem pestanejar um

momento Ele eacute capaz de projetar com impassibilidade feacuterrea o seu

proacuteprio lado sombrio e permanecer inconsciente disto agrave custa do ser

humano Eacute capaz de apelar para o seu poder supremo e promulgar

leis que para ele significam menos que o ar Os assasiacutenios os

morticiacutenios natildeo lhe causam preocupaccedilatildeo e quando lhe daacute na veneta

eacute capaz igualmente de qual um senhor feudal ressarcir

generosamente os danos provocados nos campos de cereais dos

servos Perdeste os teus filhos as tuas filhas e os teus escravos Natildeo

haacute de ser nada eu te darei outros em troca e melhores do que os

primeiros 179

Iahweh natildeo possui origem nem passado comparado com outros

deuses helecircnicos ou natildeo Seu primeiro filho sendo Adatildeo fez com que todos

fossem descendentes desse primeiro pai Mas os povos judeus atraveacutes do que foi

chamado de providentia specialis garante a si a semelhanccedila de Deus e para

aplacar essa ira divina propotildee um pacto Iahweh - Noeacute do qual surge nova alianccedila

de Deus com os homens

Somente no Novo Testamento surge a figura do Espiacuterito Santo e aiacute a

fixaccedilatildeo da imagem da diacuteade divina

No entanto ateacute este momento natildeo havia entendimentos entre Deus

Iahweh e os homens nem entre os homens e Deus Era necessaacuterio um

entendimento mais humano das coisas terrenas Parece que podemos entender

ser a criaccedilatildeo imperfeita e tambeacutem Deus natildeo pode atender plenamente os

179 JUNG 1990 par597

232

requisitos de sua tarefa era necessaacuteria a criaccedilatildeo de um intermediaacuterio que

entendesse das coisas divinas e das coisas humanas Um Deus mais humano e

que entendesse o logos Dei O Uno precisava ser substituiacutedo por outro O mundo

do Pai deveria ser substituiacutedo pelo mundo do Filho

Alguma transmissatildeo cultural deve ter havido advinda da Babilocircnia do

Egito e da Greacutecia pois esses siacutembolos fazem parte dos fundamentos das imagens

miacuteticas e arquetiacutepicas do pensamento humano Aqui discutimos apenas aquilo

que emanou natildeo de pressupostos filosoacuteficos (mesmo os platocircnicos) mas sim

dos pressupostos arquetiacutepicos inconscientes inerentes agrave natureza humana

O Espiacuterito Santo anuncia o nascimento do Filius Dei e se completa

assim a Trindade a qual eacute nossa pesquisa para este tema

A Trindade Cristatilde natildeo tem a mesma origem das triacuteades divinas

babilocircnicas egiacutepcias ou gregas pois elas se diferem na concepccedilatildeo Por exemplo

enquanto a triacuteade platocircnica resulta de uma antiacutetese a Trindade ao contraacuterio eacute

totalmente harmocircnica entre si As denominaccedilotildees Pai Filho e Espiacuterito Santo natildeo

derivam absolutamente do nuacutemero trecircs e sim de um elemento uno

Apoacutes o Pai logicamente segue-se o Filho no entanto o Espiacuterito Santo

natildeo tem sua origem nem no Pai nem no Filho sendo portanto uma realidade

particular e de um pressuposto diferente Conforme se pode obter de Jung180 na

antiga doutrina Cristatilde o Espiacuterito Santo eacute vera persona quae filio et a patre missa

est [verdadeira pessoa enviada pelo pai e pelo Filho] O processio a patre filioque [o

180 JUNG 1988 par 197

233

ato de proceder do pai e do Filho] eacute uma inspiraccedilatildeo e natildeo uma geraccedilatildeo como no

caso do filho

De acordo com sua definiccedilatildeo o Pai eacute a prima causa o

creator o auctor rerum (o criador das coisas) o qual num determinado

estaacutegio cultural incapaz de reflexatildeo pode ser simplesmente o Uno 181

Mas se procurarmos a Matildee natildeo a encontraremos na Trindade e assim

natildeo poderemos entender a geraccedilatildeo do Filho Seria Trindade tambeacutem

transformada e quatro pontos e natildeo mais em trecircs Acontece que desde a Babilocircnia

ou do Egito a relaccedilatildeo pai-filho-vida com a exclusatildeo da matildee ou progenitora divina

constitui a foacutermula patriarcal que fazia parte da cultura desses povos o que vai

influenciar totalmente a mesma relaccedilatildeo patriarcal do periacuteodo do nascimento da

Trindade Cristatilde

No velho Egito e no Cristianismo a Matildee de Deus fica fora da trindade

No templo as coisas ritualiacutesticas eram exclusivas do homem e seus filhos Em

Lucas (2 40-49) Maria vai ao templo onde Jesus com 12 anos estava jaacute haacute trecircs

dias entre os mestres e lhe pergunta onde andava e ele lhe responde Porque me

procuraacuteveis Natildeo sabiacuteeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai

Desde os primoacuterdios os ritos iniciaacuteticos dos primitivos misteacuterios

sempre afastaram os jovens de suas matildees e os transformavam atraveacutes de um

181 idem par199

234

novo nascimento Essa ideacuteia miacutetica e arquetiacutepica continua viva ateacute os tempos de

hoje atraveacutes do celibato sacerdotal Mais uma vez a cultura e sua transmissatildeo de

forma educacional geram as fontes do mito A relaccedilatildeo sublimada pai-filho gera a

concepccedilatildeo de um espiacuterito que representa a encarnaccedilatildeo ideal da vida masculina

Outra possibilidade de transformaccedilatildeo da triacuteade em quatro pontos de

fundamento seria a da inclusatildeo do democircnio nesse grupo No entanto tambeacutem

isso natildeo seria possiacutevel pois o mal o democircnio as disposiccedilotildees morais soacute surgem

com um Cristianismo jaacute fundado em bases soacutelidas com o mito cristatildeo jaacute fazendo

parte e tendo efeito na vida da alma humana e cristatilde

Gostaria de lembrar que o mito se forma com as imagens primordiais

que possuem fatores que coordenam a psique humana e seratildeo reconhecidos

como formadores do mito apoacutes pertencerem e fazerem efeito na vida do homem

Novamente a cultura e a transmissatildeo da tradiccedilatildeo geram as fontes miacuteticas Se as

disposiccedilotildees morais natildeo estavam definidas como definir o mal Como definir o

democircnio

Mas a evoluccedilatildeo continua e a Trindade se fixa nos conceitos do homem

do mundo conhecido de entatildeo A vida do Homem-Deus faz com que seja revelada

a mais importante das revelaccedilotildees coisas que soacute podiam ser explicadas pelo

Filho visto que o Pai em seu estado original de uno natildeo tinha como revelar ao

homem a existecircncia do Espiacuterito Santo que conforme foi visto anteriormente apoacutes

a morte do Filho apoacutes ter abandonado o espaccedilo terreno desce sobre a alma dos

homens e envolve a todos com sua bondade e benevolecircncia para fazer mais

235

pelos homens do que fez o Pai ou o Filho o elemento miacutetico que completa

definitivamente a Trindade e reconstitui a unidade

Assim se lecirc na primeira carta de Clemente 466 Temos

um soacute Deus e um soacute Cristo como tambeacutem um soacute Espiacuterito 182

Ou como pode ser lido no Credo batismal chamado o Symbolum

Apostolicum atestado por documentos a partir do seacuteculo IV

Creio em Deus Pai todo poderoso em Jesus Cristo seu

filho unigecircnito nosso Senhor o qual doacutei concebido pelo Espiacuterito

Santo e nasceu de Maria Virgem foi crucificado sob Pocircncio Pilatos e

sepultado ao terceiro dia ressurgiu dos mortos subiu aos ceacuteus estaacute

sentado agrave direita da Deus Pai de onde haacute de vir a julgar os vivos e os

mortos e no Espiacuterito Santo na santa Igreja na remissatildeo dos

pecados na ressurreiccedilatildeo da carne 183

Por mais que qualquer racionalidade cultural pudesse tentar explicar

esse conceito de Trindade sempre permaneceu incoacutelume principalmente porque

apoacutes um mito ter sido fundado por seu poder criador ele passa a pertencer a um

mundo arquetiacutepico que natildeo pode ser atingido pela racionalidade pois o arqueacutetipo

o mito por residir por emanar do inconsciente humano adquire um caraacuteter

numinoso que torna impossiacutevel enquadraacute-lo no mundo da racionalidade tendo

182 JUNG 1988 par 207 183 JUNG 1988 par 211

236

muitas vezes sim gerado em na histoacuteria discussotildees vazias disputas verbais e

ateacute violecircncia na tentativa de se explicar o dogma da Santiacutessima Trindade

O conceito de santidade indica que uma determinada

coisa ou ideacuteia possui valor supremo cuja presenccedila leva o homem

por assim dizer ao mutismo A santidade eacute reveladora eacute a forccedila

iluminante que dimana da forma arquetiacutepica184

Somente o termo santiacutessima jaacute nos faz entender que o arqueacutetipo se

tornou ativo e que o mito impregnou a alma do homem poacutes cristianismo ou como

denomina a psicologia tambeacutem racionalista de presenccedila psiacutequica extra-

consciente

Para onde entatildeo foi o homem Jesus como poderiacuteamos definir ou contar

sua histoacuteria enquanto homem Natildeo havia mais Jesus o homem foi substituiacutedo

pelo mito mesmo nas palavras de Paulo por exemplo pois nunca uma palavra de

Jesus foi citada em qualquer de seus discursos O que se falava de Jesus se

falava do mito do arqueacutetipo sempre representado pela figuras de O Senhor dos

Democircnios o Salvador Coacutesmico etc Nunca mais surge na histoacuteria o humano de

Jesus Transformou-se o homem em sua expressatildeo miacutetica pois o Homem-Deus

o Deus Eterno natildeo tem histoacuteria do ponto de vista humano somente alegorias da

iconografia da Idade Meacutedia

184 JUNG 1988 par 235

237

Como pastor Ele eacute o condutor e o centro dos rebanhos Eacute

a videira Enquanto os que o seguem satildeo os ramos Seu corpo eacute patildeo

que se come e seu sangue eacute vinho que se bebe Ele eacute tambeacutem

Corpus mysticum formado pela uniatildeo dos crentes Como

manifestaccedilatildeo humana eacute o Heroacutei e o Homem-Deus sem pecado por

isso mais completo e perfeito do que o homem natural que Ele

ultrapassa e abrange e que estaacute pra Ele na mesma relaccedilatildeo de uma

crianccedila para o adulto ou da ovelha pra o homem 185

Ele eacute o Arqueacutetipo da Cristandade ele eacute o mito Cristatildeo

185 JUNG 1988 par 229

238

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Fontes

ANCHIETA Joseacute de Cartas

Informaccedilotildees Fragmentos Histoacutericos e

Sermotildees

1534-1597 Belo Horizonte Itatiaia S Paulo Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1988

__________ Diaacutelogos da Feacute

obras completas 8deg vol

introduccedilatildeo e notas

Pe Armando Cardoso Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988

__________ Feitos de Men de Saacute Paraacute de Minas Virtual Books 2000

__________ Auto de Satildeo Lourenccedilo - Paraacute de Minas Virtual Books 2000

BETTENDORF Joatildeo Felipe Pe 1627-1698

Crocircnica dos padres da

Companhia de Jesus do Estado de Maranhatildeo Beleacutem Fundaccedilatildeo Cultural do

Paraacute Tancredo Neves 1990

CARDIM Fernatildeo

1540-1625

Tratados da terra e gente do Brasil Belo

Horizonte Ed Itatiaia Satildeo Paulo Ed Da Universidade de Satildeo Paulo 1980

COLOacuteNCristoacutebal - Carta a los Reyes Catoacutelicos - 2000 virtualbookscombr -

Editora Virtual Books - Online MampM Editores Ltda

CAMINHA Pero Vaz de

A Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de

Portugal - Ministeacuterio da Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

(Coacutepia obtida via internet) e Carta de Pero

Vaz de Caminha

A certidatildeo de Nascimento da Naccedilatildeo Brasileira

Brasil 500

Anos Bradesco - 2000

NAVARRO Azpicuelta e outros - Cartas Avulsas 1550-1568 Belo Horizonte

ItatiaiaSatildeo Paulo Edusp 1988

NOacuteBREGA Manuel da Cartas do Brasil Belo Horizonte - ItatiaiaSatildeo Paulo

Edusp 1988

SALVADOR Frei Vicente do A Histoacuteria do Brasil

1500-1627 5a Ed Satildeo

Paulo Melhoramentos 1965

239

STADEN Hans Duas Viagens ao Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia Satildeo

Paulo Ed da Universidade de Satildeo Paulo [1557] 1974

VIEIRA Pe Antonio Sermotildees

Obras Completas

vol V- Sermatildeo do

Espiacuterito Santo Lisboa Lelo e irmatildeo Editores 1951

OUTRAS REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREU J Capistrano de

Capiacutetulos da Histoacuteria Colonial - Ministeacuterio da

Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro

versatildeo para e-books [httpwwwbnbrbibvirtualacervo]

1907

obtida em

2004

BACHELARD Gaston

A Terra e os Devaneios do Repouso

Satildeo Paulo

Martins Fontes 1990

BIacuteBLIA ELETROcircNICA 252 RK Soft Desenvolvimento

BIacuteBLIA SAGRADA - Nova traduccedilatildeo na linguagem de hoje

Barueri-SP

Sociedade Biacuteblica do Brasil 2000

BUENO Silveira

Vocabulaacuterio Tupi-Gurani

Portuguecircs

Satildeo Paulo Eacutefeta

Editora 1998

CALMON Pedro

Histoacuteria do Brasil

Seacuteculo XVI

As origens e Seacuteculo

XVII

Formaccedilatildeo Brasileira - Vol 1 e 2

Rio de Janeiro - Livraria Joseacute

Oliacutempio Editora 2a ed 1963

CALLOIS Roger Les jeux et les hommes

le masque et le vertige Paris

Galiimard 1985

CAMPBELL Joseph com Bill Moyers

O Poder do Mito - Satildeo Paulo Ed

Palas Athena 1990

240

CARDOSO Armando (Trad) O Teatro de Anchieta

Obras Completas - 3o

Volume - SPaulo Loyola 1977

CARNOT Sady A destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

Brasil Seacuteculo XVI

uma visatildeo junguiana

Prefaacutecio de Joseacute Maria de Paiva - S Matheus

ES

Memorial 2005

CAROTENUTO Aldo

Eros e Pathos Amor e sofrimento Satildeo Paulo Ed

Paulus 1994

CASSIRER Ernest

Antropologiacutea Filosoacutefica

Meacutexico Fondo de Cultura

Econoacutemica 1945

CHAIN Iza G C

O Encontro de Dois Mundos In O Diabo nos Porotildees das

Caravelas Tese de Mestrado texto obtido atraveacutes da Internet 2003

CRIPPA Adolfo

Mito e Cultura Satildeo Paulo Conviacutevio 1975

DEWEY John

Democracia e educaccedilatildeo Breve tratado de Philosophia de

Educaccedilatildeo Biblioteca Pedagoacutegica Brasileira

Companhia Editora Nacional S

Paulo 1936

DOURLEY John P A doenccedila que somos noacutes

A criacutetica de Jung ao

cristianismo trad Roberto Girola - Satildeo Paulo Paulus 1987

EDINGER Edward F

O Arqueacutetipo Cristatildeo

Um comentaacuterio junguiano

sobre a vida de Cristo Satildeo Paulo Cultrix 1988

__________ - A Criaccedilatildeo da Consciecircncia

O mito de Jung para o Homem

moderno Satildeo Paulo Cultrix 1999

FERNANDES Florestan

A funccedilatildeo social da guerra na sociedade

Tupinambaacute - Satildeo Paulo Livraria Pioneira Editora 1970

FREYRE Gilberto - Casa Grande e Senzala - Rio de Janeiro Livraria Joseacute

Oliacutempio 1984

__________- Casa Grande e SenzalaRio de Janeiro Rio Filmes com apoio

da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco e Fundaccedilatildeo Gilberto Freyre

narrado por

241

Edson Nery da Fonseca amigo pessoal e bioacutegrafo de Gilberto Freyre Capiacutetulo

II A cunha matildee da Famiacutelia Brasileira 2000

GAMBINI Roberto

O espelho iacutendio os jesuiacutetas e a destruiccedilatildeo da alma

indiacutegena - Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo 1988

GAcircNDAVO Pero de Magalhatildees

Tratado da Terra do Brasil

Histoacuteria da

Proviacutencia Santa Cruz - Belo Horizonte Itatiaia 1980

GINZBURG Carlo Mitos Emblemas Sinais - Satildeo Paulo Schwarkz 2002

GODINHO Vitorino Magalhatildees A estrutura social do Antigo Regime In

GODINHO VM A estrutura na Antiga Sociedade portuguesa Lisboa Arcaacutedia

1971

GUSDORF Georges Mito y Metafiacutesica Buenos Aires Editorial Nova 1959

HERNANDES Paulo Romualdo O Teatro de Joseacute de Anchieta Arte e

Pedagogia no Brasil Colocircnia

Campinas Biblioteca de Educaccedilatildeo da

UNICAMP 2001

HOELLER Stephan A A Gnose de Jung e os Sete Sermotildees aos mortos

Satildeo Paulo Cultrix 1991

__________ Jung e os evangelhos perdidos

Uma apreciaccedilatildeo junguiana

sobre os manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi - Satildeo

Paulo CultrixPensamento 1993

HOLLIS James

Rastreando os Deuses

O lugar do mito na vida

moderna Satildeo Paulo Paulus 1998

JAFFEacute Aniela

O Mito do significado na Obra de C Gustav Jung- Satildeo

Paulo Cultrix 1995

JACOBI Jolande Complexo Arqueacutetipo Siacutembolo na Psicologia de CG

Jung Satildeo Paulo Ed Cultrix 1991

JECUPEacute Kakaacute Weraacute A Terra dos mil Povos Satildeo Paulo Editora Fundaccedilatildeo

Peiroacutepolis 1999

242

______Tupatilde Tenondeacute Satildeo Paulo Peiroacutepolis 2001

JUDY Dwight H

Curando a Alma Masculina

O Cristianismo e a

Jornada miacutestica Satildeo Paulo Paulus 1998

JUNG C G A importacircncia dos sonhos In O Homem e seus siacutembolos

CG Jung MLvon Franz Joseph L Henderson Jolande Jacobi e Aniela Jaffeacute

Rio de Janeiro Nova Fronteira 1964

_______ Memoacuterias Sonhos e Reflexotildees Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira

1975

_______ Psicologia e Religiatildeo - Obras Completas

Vol XI1 Petroacutepolis

Vozes 1978

_______ Aion - Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo Petroacutepolis

EdVozes 1982

_______ O Siacutembolo da Transformaccedilatildeo na Missa Obras Completas Vol

XI3 Petroacutepolis Ed Vozes 1985

_______ Mysterium Coniunctionis

Obras Completas- vXIV1 Petroacutepolis

Vozes 1988

_______ A interpretaccedilatildeo Psicoloacutegica do Dogma da Trindade Obras

Completas Vol XI2 Petroacutepolis Vozes 1988

_______ Siacutembolos da Transformaccedilatildeo Obras completas VolV Petroacutepolis

Vozes 1989

_______ Civilizaccedilatildeo em Transiccedilatildeo Petroacutepolis Ed Vozes 1993

_______ Resposta a Jocirc Petroacutepolis Ed Vozes 1990

LACOUTURE Jean Os Jesuiacutetas

A Conquista

vol 1

Lisboa Editorial

Estampa 1993

LANA Firmino Arantes e LANA Luiz Gomes

Antes o mundo natildeo existia

Mitologia dos antigos Desana-Kehiriacutepotilderatilde - Satildeo Gabriel da Cachoeira

AM

FOIRN Federaccedilatildeo das Organizaccedilotildees dos Indiacutegenas do Rio Negro 1995

243

MAGASICH-AIROLA Jorge e BEER Jean-Marc de Ameacuterica Maacutegica

Quando a Europa da Renascenccedila pensou estar conquistando o Paraiacuteso

Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

MAY Rollo A procura do mito Satildeo Paulo Manole1992

MENDES Antoacutenio Rosa A vida Cultural In MATTOSO Joseacute Histoacuteria de

Portugal Lisboa Estampa1992 tIII coord de Joaquim Romero Magalhatildees

MONTEIRO John M Tupis Tapuias e Historiadores- Estudos de Histoacuteria

Indiacutegena e do Indigenismo Tese apresentada pra o concurso de Livre

Docecircncia Aacuterea de Antropologia Campinas IFCH Unicamp 2001

MORENTE Manuel Garcia Fundamentos de filosofia e liccedilotildees preliminares

(metafiacutesica idealismo e positivismo)8a Ed Traduccedilatildeo e proacutelogo de Guilhermo

de la Cruz Coronado Satildeo Paulo Editora Mestre Jou 1930

NEVES Luiz Felipe Baeta

O Combate dos Soldados de Cristo na Terra

dos Papagaios

Colonialismo e Repressatildeo Cultural

Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1978

NOGUEIRA Carlos Roberto F O Diabo no imaginaacuterio cristatildeo Bauru Edusc

2000

PAIVA Joseacute Maria de Histoacuteria da Educaccedilatildeo Colonial

texto natildeo publicado

2002

_______ Religiosidade e Cultura

Brasil Seacuteculo XVI uma chave de

leitura Texto natildeo publicado 2002

_______ Catequese e Colonizaccedilatildeo Satildeo Paulo CortezAutores Associados

1982

PEacuteCORA Alcir Teatro do sacramento A unidade teoloacutegico-retoacuterico-

poliacutetica dos sermotildees de Antocircnio Vieira Satildeo Paulo-Campinas EduspEditora

da Unicamp 1994

RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

244

SEREBURAtilde e outros

Wamrecircmeacute Zaacutera

Mito e Histoacuteria do Povo Chavante

Nossa Palavra Satildeo Paulo SENAC 1998

TAVARES Eduardo e outros

Missotildees Jesuiacutetico- Guarani Satildeo Leopoldo

Unisinos 1999

TODOROV Tzvetan A Conquista da Ameacuterica A questatildeo do outro 3a Ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

WHITMONT Edward A Busca do Siacutembolo Satildeo Paulo Ed Cultrix 1990

WYLY James

A busca Faacutelica

Priapo e a Inflaccedilatildeo Masculina

Satildeo

Paulo Ed Paulus 1994

XAVIER Acircngela Barreto amp HESPANHA Antonio Manuel a Representaccedilatildeo da

Sociedade e do PoderIn MATTOSO Joseacute Histoacuteria de Portugal t IV Coord

de Antocircnio Manuel Hespanha Lisboa Estampa 1992

httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905

This document was created with Win2PDF available at httpwwwwin2pdfcomThe unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only

Page 6: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão

6

mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeosNesse embate

cultural uma certa profecia praticamente se confirmava de que haveria uma

transformaccedilatildeo de brancos em iacutendios e de iacutendios em brancos mas isso natildeo foi

possiacutevel pois ao final o mito cristatildeo derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos

os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano

7

RESUMEN

Por entender que la analice de una cultura mucho maacutes englobante que

otra es hecha de una forma mitoloacutegica y espiritual se busco en este trabajo

entender como esa espiritualidad lleva la mirada para el centro del universo

haciendo con que el todo sea mirado a partir de ese prisma Trata-se acaacute de los

resultados de la conversioacuten de los indiacutegenas durante el periacuteodo jesuiacutetico de las

cosas buenas traiacutedas a los indiacutegenas por la educacioacuten portuguesa y del

confronto de culturas en la buacutesqueda por la verdad de uno y de otro en ese

embate de mitos de tabus e pecados de Diacuteos e de demiurgos

Al pesquisar como la visioacuten del Orbis Christianus era la traduccioacuten del

vivir en la Europa quinientista se encuentra que la fe en Diacuteos era la uacutenica verdad

Todos deberiacutean estar en ella o llevados por ella al uacutenico mundo verdadero afora

del cual todo lo maacutes seria incuria e aberracioacuten El natural no era maacutes la

naturaleza Del hombre y si que la palabra de Diacuteos tal cual transmitida por la fe

cristiana llegase a los confines de la tierra conocida y de las tierras a conocer

El hombre es en ese momento histoacuterico actor cultural de una

complicada relacioacuten originaria de una dicotomiacutea entre el representado miacuteticamente

y el vivido en su realidad cotidiana no teniendo permisioacuten para conocer el pensar

el Bien sin antes pensar en el Mal pues sin embargo era tiempo de se reconocer

8

el enemigo para poder combate a ello por la gloria y triunfo del Redentor por

sobre el Tentador

Era generado entonces el embate de mitos con base en la saga de dos

heacuteroes de polaridades contrarias el europeo y el indiacutegena Cristo y el Diablo San

Lorenzo y San Sebastiaacuten de un lado contra Guaixaraacute y Aimberecirc del otro el Orbis

Christianus versus la visioacuten arquetiacutepica y el espiacuteritu cosmogoacutenico indiacutegena

Es tratada acaacute la herramienta de esa educacioacuten imposta a os

indiacutegenas donde los jesuitas fueran de una felicidad sin par al utilizaren la lengua

indiacutegena la Lengua General de Anchieta e sus autos teatrales como forma de

transmitir los conceptos de su cultura y de denegrir los conceptos de la cultura

indiacutegena

La educacioacuten es y siempre fue un caleidoscopio que muestra los maacutes

diversos y bellos dibujos e formas mas que las piezas que son siempre las

mismas estaacuten presas en una caja Claro la educacioacuten tambieacuten hace su base en el

mito cultural

La funcioacuten de los mitos no es denotar una idea recibida pero si un

modo de funcionamiento que corresponde a la manera innata pela cual el hombre

nace e se relaciona en su vida vivida La educacioacuten es exactamente eso una

manera de transmitir ese modo recibido por herencia y la manera innata de se

vivir El hombre es el todo de sus relaciones pues recibe las mismas influencias

arquetiacutepicas que todos los hombres de su grupo social reciben mismo siendo

individual e teniendo caracteriacutesticas uacutenicas Se perder esa participacioacuten

9

arquetiacutepica de su mundo el hombre esta muerto mismo que no fiacutesicamente ello

ahora es un defuncto que no poseacute maacutes funciones a delante de la vida

La didaacutectica de la catequice tenia en si la definicioacuten del demonio o del

Diablo y la metiacutea en las mentes indiacutegenas y eso se haciacutea por la pedagogiacutea del

terror que se impugna a las mentes desavisadas de la existencia del Bien y del

Mal de los cristianos

En ese embate cultural una cierta profeciacutea praacutecticamente si confirmaba

que habriacutea una transformacioacuten de blancos en indios y de indios en blancos pero

eso no fue posible pues al final el mito cristiano derrotoacute Guaixaraacute Aimbirecirc

Saravaia y todos los otros diablos llevando con ellos hasta Deacutecio e Valeriano

10

SUMAacuteRIO

RESUMO _________________________________________________________ 4

RESUMEN ________________________________________________________ 7

SUMAacuteRIO _______________________________________________________ 10

Introduccedilatildeo _______________________________________________________ 11

Capiacutetulo 1 - A educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura que ensina e altera

costumes________________________________________________________ 36

Capiacutetulo 2 - O Mito ________________________________________________ 46

Capiacutetulo 3 - O mito Cristatildeo___________________________________________ 72

Capiacutetulo 4 - Como o Europeu Cristatildeo compreendia os indiacutegenas e a concepccedilatildeo

que tinham da vida desses brasis _____________________________________ 76

Capiacutetulo 5 - Como os indiacutegenas teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde e as dificuldades

encontradas na missatildeo de converter ___________________________________ 93

Capiacutetulo 6 - O Teatro como ferramenta educacional e de catequese _________ 119

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos_____________ 126

Conclusatildeo - O resultado do embate desses mitos na educaccedilatildeo e na cultura

brasileira________________________________________________________ 145

Apecircndices ______________________________________________________ 151

Apecircndice 1 O Auto de Satildeo Lourenccedilo Joseacute de Anchieta ________________ 152

Apecircndice 2 - A missa e os siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem____ 197

Apecircndice 3 O Mito de Cristo _______________________________________ 208

Apecircndice 4 - Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade 228

Referecircncias Bibliograacuteficas__________________________________________ 238

Outras referecircncias bibliograacuteficas_____________________________________ 239

11

INTRODUCcedilAtildeO

Eu queria ser como a aranha que tira de seu ventre todos

os fios de sua obra A abelha me eacute odiosa e o mel eacute para mim o

produto de um roubo

Papini Un homme fini

Entendendo que concluiacutedo o Mestrado em Histoacuteria e Educaccedilatildeo

trabalhando atraveacutes da teoria de Carl Gustav Jung a relaccedilatildeo jesuiacutetica com os

indiacutegenas no seacuteculo XVI mostrando a destribalizaccedilatildeo da alma indiacutegena atraveacutes da

imposiccedilatildeo cultural deveria continuar no processo de pesquisa sobre o assunto e

sob a mesma lente

Pesquisei teoacutericos filoacutesofos educadores e historiadores que pudessem

comprovar a tese a ser apresentada

Busco no sentido da vida desses homens jesuiacutetas em suas relaccedilotildees

com os indiacutegenas a proacutepria vida desses padres experienciada e tornada viva

atraveacutes de seus mitos e crenccedilas

Entendo que a anaacutelise de uma cultura elaborada por outra muito mais

englobante como no caso da cultura portuguesa em relaccedilatildeo agrave dos indiacutegenas eacute

feita de forma mitoloacutegica e espiritual Essa espiritualidade leva o olhar para o

12

centro do universo fazendo com que tudo seja olhado a partir desse prisma

conforme jaacute pude demonstrar em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena objeto de

minha dissertaccedilatildeo de mestrado

Por entender o trabalho jesuiacutetico uma tarefa hercuacutelea composta de

uma saga heroacuteica na luta contra a resistecircncia indiacutegena agrave conversatildeo e agrave

catequese busco a simbologia e a interpretaccedilatildeo dessa saga

Por entender que mesmo sabendo dos resultados dessa conversatildeo no

sentido de destruir a alma indiacutegena houve como resultado desse confronto de

culturas um embate pela busca da verdade de sentido de significaccedilatildeo atraveacutes

dos tempos que alimentavam as mentes ainda eacutebrias de medievalismo e das

experiecircncias da alma do mato busco essa miacutetica esse relato de embates

Embate de mitos Embate de tabus e pecados de Deus e de deuses Enfim da

experiecircncia de vida

Quando utilizo a palavra embate em vaacuterios momentos deste texto

posso estar sendo ateacute mesmo mal compreendido pois muitos leitores poderatildeo

afirmar que as culturas quando se encontram se permeiam se harmonizam

Poderatildeo afirmar que sempre no encontro de duas culturas sobraraacute para os dois

lados aculturaccedilotildees costumes expressotildees linguumliacutesticas lendas antigas e as lendas

que surgiratildeo desse encontro Claro que sim natildeo tenho duacutevidas quanto a isso

Mas natildeo eacute essa a intenccedilatildeo Minha proposta eacute a de deixar claro que em

se tratando dos mitos culturais em se tratando do cristatildeo europeu ainda o

portuguecircs mais ameno que o espanhol houve sim um embate de mitos isto eacute um

choque impetuoso de culturas composta de oposiccedilotildees e resistecircncias (agraves vezes

13

mais passivas ou paciacuteficas poreacutem natildeo menores) poreacutem sempre se forma a

comparar-se com um abalo violento e profundo nas crenccedilas dos indiacutegenas

brasileiros

Por mais que resistissem os brasis o Orbis Christianus era violento

quanto agrave natureza real do homem

A visatildeo do Orbis Christianus era a traduccedilatildeo do viver na Europa

quinhentista A feacute em Deus era a uacutenica verdade Todos deveriam estar nela ou

serem levados por ela ao uacutenico mundo verdadeiro fora do qual tudo o mais seria

injuacuteria e aberraccedilatildeo O natural natildeo era mais a natureza do homem e sim que a

palavra de Deus tal qual transmitida pela feacute cristatilde chegasse aos confins da terra

conhecida e das terras a se conhecer

Atraveacutes dessa visatildeo de mundo pudemos assistir agrave instituiccedilatildeo de novos

conteuacutedos simboacutelicos nas terras receacutem-descobertas articulados de maneira

extremamente eficaz entre a realidade cristatilde e o imaginaacuterio europeu quinhentista

Os guardiotildees do sagrado como foram chamados os cleacuterigos

devotam suas vidas com o uacutenico intuito de uniformizar as consciecircncias e converter

as almas pertencentes a Satatilde e seus ajudantes garantindo a hegemonia das

crenccedilas e a desculturaccedilatildeo de qualquer povo que natildeo vivesse os bons costumes

e natildeo pertencesse ao rebanho de fieacuteis

O seacuteculo XVI denotou na visatildeo cristatilde que o mundo se encontrava

dividido em duas partes bastante distintas

Os que cultivavam o Bem e as virtudes

14

Os que cultivavam o Mal e seus viacutecios

Tal qual na alegoria usada em O diabo no imaginaacuterio cristatildeo

O mundo se orienta como o portal de uma igreja goacutetica no

alto e no meio encontra-se Deus rodeado de um coro de anjos com

os santos e os justos prestando-lhes homenagem abaixo estatildeo os

mortais e na parte inferior ou agrave espreita os espiacuteritos malignos que

possuem formas horriacuteveis ou pelo menos enigmaacuteticas e cocircmicas

(NOGUEIRA 2000 39)

O homem eacute nesse momento histoacuterico personagem de uma complicada

relaccedilatildeo originaacuteria de uma dicotomia entre o representado miticamente e o vivido

em sua realidade cotidiana natildeo podendo conhecer ou pensar no Bem sem antes

pensar no Mal pois era tempo de se reconhecer o inimigo para poder combatecirc-lo

pela gloacuteria e triunfo do Redentor sobre o Tentador

Em contra-partida a essa postura miacutetica cristatilde surgem nas relaccedilotildees os

conteuacutedos da psique primitiva dos indiacutegenas brasileiros gerando costumes

padrotildees de comportamentos remexendo as sombras 1 jesuiacuteticas influenciando

1 A Sombra enquanto arqueacutetipo -Conforme nos orienta ML von Franz (JUNG 1964) e citado em A Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena (CARNOT Sady 2005p55) A Sombra pertence ao nosso mundo interior mais escondido descendo agraves profundezas do nosso proacuteprio mal e tornando o indiviacuteduo capaz de reconhecer em si o instinto e suas mentiras nada inocente nem tolo mas bem protegido contra tudo aquilo que de dentro possa surgirO arqueacutetipo Sombra eacute de todos os conteuacutedos arquetiacutepicos o que fica mais proacuteximo ao Ego cuja essecircncia estaacute mais em contato com a tona mais superficial sendo formada por componentes que jaacute fizeram parte um dia do presente do indiviacuteduo jaacute fizeram parte do seu cotidiano mas que foram reprimidos por natildeo pertencerem ao rol de compatibilidades desejadas pelos valores estabelecidos pelo social ao consciente ou por natildeo terem sido fortes o suficiente para ultrapassarem a consciecircncia e permaneceram em latecircncia dentro do Inconsciente Pessoal

15

com suas resistecircncias de aculturaccedilatildeo todo um conteuacutedo arquetiacutepico europeu que

veio dar origem agrave cultura brasileira

Esses embates culturais podem ser notados em cartas de marinheiros

cartas de jesuiacutetas a seus superiores e irmatildeos da Companhia de Jesus aleacutem da

utilizaccedilatildeo das simbologias miacuteticas de nossos indiacutegenas na elaboraccedilatildeo de taacuteticas

de conversatildeo presentes nos aldeamentos na supremacia dos sacramentos na

pedagogia do dia-a-dia e em especial em Anchieta que os mostra atraveacutes dos

autos como o de S Lourenccedilo e o da Pregaccedilatildeo Universal entre outros

Nesses autos nota-se claramente a noccedilatildeo de bem e mal que era

passada de forma determinista aos indiacutegenas

O Bem representando o fiel o santo o heroacutei o salvador os padres ou

abareacute a personagem Karaibebeacute grande cacique que aliado de Tupatilde e dos abareacute

na defesa das novas leis e dos novos costumes mostram o erro de seguir os

maus costumes das tradiccedilotildees e das falas de Guaixaraacute e Aimbirecirc

O Mal representado tambeacutem por grandes chefes como Guaixaraacute e

Aimbirecirc o diaboacutelico o proacuteprio democircnio bebedor de cauim que gosta de fumar e

defender os costumes da tradiccedilatildeo como danccedilar enfeitar-se tingir o corpo de

vermelho do urucum ou do preto da jemouacutena (una = preto)

Enfim grande embate de mitos baseado na saga de dois heroacuteis de

polaridades contraacuterias o europeu e o indiacutegena Cristo e o Diabo Satildeo Lourenccedilo e

16

Satildeo Sebastiatildeo de um lado contra Guaixaraacute e Aimberecirc do outro o Orbis

Christianus versus a visatildeo arquetiacutepica e o espiacuterito cosmogocircnico 2 indiacutegena

Muitas vezes em minha tese pretendo utilizar o conceito de experiecircncia

definido como um conhecimento que nos eacute transmitido pelos sentidos como um

conjunto de conhecimentos individuais ou especiacuteficos que constituem aquisiccedilotildees

vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade quer no sentido

metafiacutesico quer no sentido de aculturaccedilatildeo

A cada experiecircncia o indiviacuteduo se expotildee e soma a si o resultado do

ocorrido do fato do resultado Assim experiecircncia eacute a soma das situaccedilotildees que

influenciaram e influenciam a pessoa e as comunidades em toda a histoacuteria da

humanidade

Na imposiccedilatildeo cultural do portuguecircs do seacuteculo XVI sobre o indiacutegena

muitas vezes a renovaccedilatildeo era feita sob pressatildeo sob coerccedilatildeo em que o algo

transformado o indiviacuteduo transformado era sem que a experiecircncia pudesse ser

acumulada e sim imposta natildeo permitindo ao gentio a interaccedilatildeo com sua proacutepria

vida e em relaccedilatildeo ao ambiente do qual dependia visceralmente para sobreviver

Essa soma que Dewey chama de renovaccedilotildees satildeo a extensatildeo da

experiecircncia do indiviacuteduo e da espeacutecie no entanto vida para o ser humano

consiste em costumes crenccedilas instituiccedilotildees vitoacuterias e derrotas isto eacute a

experiecircncia

2 do grego kosmogonia - A origem ou formaccedilatildeo do mundo do universo conhecido Parte de uma cosmologia que trata especificamente da criaccedilatildeo e formaccedilatildeo do mundo Qualquer narrativa doutrina ou teoria a respeito da origem do mundo ou do universo

17

Poderia dizer que o homem vive em comunidade nas relaccedilotildees

pessoais em virtude das coisas que tem em comum e a comunidade eacute o meio

pelo qual se chega a possuir essas coisas comuns No entanto na relaccedilatildeo entre

mitos indiacutegenas total e completamente inserido no que falaremos mais tarde no

mito filosoacutefico e a imposiccedilatildeo do mito cristatildeo considerado numa relaccedilatildeo com a

racionalidade pouco de comum havia entre esses dois povos tatildeo distintos Por um

lado o aguerrido o natural o nu e o livre e do outro dogmas pecados eacutebrios de

medievalidade impondo sua cultura ad majorem Dei gloriam

A educaccedilatildeo como forma de transmissatildeo de cultura suprime a distacircncia

entre as ideacuteias dos mais velhos e a acircnsia de conhecer e modificar dos mais novos

e imaturos No entanto perguntaria a esses indiacutegenas se as ideacuteias dos

considerados mais velhos mais importantes ateacute mesmo com poderes divinos

como se os tivessem os padres jesuiacutetas natildeo tinham uma distacircncia tatildeo grande de

suas proacuteprias ideacuteias a ponto de que essas ideacuteias natildeo pudessem ser entendidas

tal como as noccedilotildees de pecado de ceacuteu e inferno ou mesmo de um deus tatildeo cruel a

ponto de matar toda uma tribo atraveacutes da gripe ou da variacuteola para mostrar que

esse Deus deveria ser louvado

Natildeo eacute por viverem em proximidade material ou por trabalharem pelo

mesmo fim comum que se pode dizer que um indiviacuteduo vive em comunidade eacute

necessaacuterio que se possua o conhecimento desses fins comuns sejam eles seus

deuses seu governo seus costumes e seus anseios Isso sim forma uma

comunidade Uma comunidade eacute aquela que vive no mesmo mito mito esse que

lhe explica a vida natildeo explicaacutevel

18

Toda comunicaccedilatildeo eacute educativa pois receber comunicaccedilatildeo receber

educaccedilatildeo eacute adquirir experiecircncia que viraacute a modificar seu modo de vida Quando o

modus faciendi de um indiviacuteduo modifica o modus vivendi de sua comunidade ele

estaacute fazendo cultura ele estaacute educando Ensinar a caccedilar eacute educar ensinar a

danccedilar eacute educar fazer um indiviacuteduo receber um novo mito eacute educar assim

ensinar a roubar e a matar eacute tambeacutem educar fazer adorar a um novo deus

tambeacutem eacute educar

Quando se fala em educaccedilatildeo formal poreacutem estamos falando de como

examinar se as aptidotildees daquilo que foi passado de um indiviacuteduo para outro para

habilitaacute-lo a participar de forma melhorada de uma vida em comum Eacute na

educaccedilatildeo formal escolar que se verifica se essa habilidade atua realmente nessa

vida comunitaacuteria isto eacute se o indiviacuteduo estaacute adaptado e atuando na vida comum se

estaacute avaliando se os conhecimentos transmitidos foram eficientes e se verifica

ainda a eficaacutecia dessa transmissatildeo

A educaccedilatildeo formal em suma avalia a eficaacutecia daquilo que foi passado

em conteuacutedo programaacutetico e isso existia de alguma forma nas escolas de ler e

contar criada pelos jesuiacutetas no Brasil Colocircnia

No entanto nas sociedades tribais ou grupos sociais menos

desenvolvidos encontramos muito pouco de adestramento formal poreacutem

encontramos vivecircncias de ritos de passagem nos quais os mitos satildeo fortes

ferramentas dessa educaccedilatildeo que considero tambeacutem formal poreacutem natildeo seriada e

programada

19

Como ferramenta dessa educaccedilatildeo imposta aos indiacutegenas os jesuiacutetas

foram de uma felicidade sem par ao utilizarem a liacutengua indiacutegena a Liacutengua Geral

de Anchieta e seus autos teatrais como forma de transmitir os conceitos de sua

cultura e de demonizar os conceitos da cultura indiacutegena

Novamente afirmo ter clara a interpenetraccedilatildeo de valores e as traduccedilotildees

desses valores em ganho e perda para ambos os lados no entanto tento mostrar

aqui a habilidade de Anchieta em utilizar a liacutengua indiacutegena como ferramenta de

catequese como uma forma de acesso e penetraccedilatildeo na educaccedilatildeo indiacutegena e da

possibilidade com isso da imposiccedilatildeo de conceitos da Europa seiscentista

Habilidade houve tambeacutem por parte desse jesuiacuteta quando criou atraveacutes

dos autos a experiecircncia vivida pelo indiacutegena durante os espetaacuteculos teatrais

substituindo ateacute mesmo a liacutengua falada por ideacuteias contidas na gestualiadade

conforme nos mostra os paracircmetros do teatro greco-romano3 base dos autos de

Anchieta O corar o sorrir franzir o cenho os movimentos expressivos eacute que

3 Pelo teatro greco-romano (CALLOIS 1985) a influecircncia aplicada agrave plateacuteia eacute a seguinte Morphos Eacute a relaccedilatildeo do ator com o espaccedilo cecircnico e com a plateacuteia pois Morphos eacute a regra eacute a forma e o teatro eacute o jogo de transformar Mimeacutesis Eacute a relaccedilatildeo do ator e da personagem com o prover a si mesmo pois Mimeacutesis eacute a miacutemica a representaccedilatildeo Define a bandeira o lado pelo qual se defende ou ataca personagem versus plateacuteia ator versus ator personagem versus personagem ator versus plateacuteia e personagem versus plateacuteia Agon Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a agressividade pois eacute o Agon o diaacutelogo a luta o estranhamento entre dois lados novamente personagem versus personagem personagem versus plateacuteia plateacuteia versus personagem Lusus Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o que alimenta pois Lusus eacute a ilusatildeo eacute o sonho Eacute onde se tem a ideacuteia de que quando o meu lado ganha ou perde quem ganha ou perde sou euIlinx Eacute a relaccedilatildeo da personagem com a loucura onde Ilinx eacute a vertigem o risco o perigo de se ganhar ou perder na conta de personagem versus personagem ou personagem versus plateacuteia etc Aleacutea Eacute a relaccedilatildeo da personagem com o material com o fiacutesico com os resultados na qual o Aleacutea o aleatoacuterio o randocircmico eacute o que natildeo nos permite saber quem vai ganhar ou perder a contenda Plateacuteia versus personagem personagem versus plateacuteia ou personagem versus personagem etc

20

realmente comunicavam as ideacuteias a serem transmitidas incluindo-se a formaccedilatildeo

espiritual profunda onde o mito e crenccedilas cristatildes tiveram uma grande participaccedilatildeo

na formaccedilatildeo e definiccedilatildeo do rol de atividades da comunidade que se formava a

partir daiacute

Devo considerar que a comunidade o meio social se envolve com o

meio ambiente e digo que educar eacute de certa forma um ato ecoloacutegico pois forccedila os

laccedilos de sangue a perpetuarem os comportamentos que deram certo Quem deu

certo na relaccedilatildeo brasis e portugueses Seria ecologicamente correto seguir os

costumes da Santa Feacute Catoacutelica afinal era tudo uma questatildeo de sobrevivecircncia

para o indiacutegena mesmo com interesses diferenciados daqueles eleitos pelos

colonizadores

Natildeo poderia considerar essa falta de interesse dos indiacutegenas pelas

coisas de Deus ou da Coroa como incapacidade para entender o que era Lei Feacute

ou Rei mas como uma imaturidade como uma capacidade a ser desenvolvida

Sendo a educaccedilatildeo vinda da cultura portuguesa originaacuteria de um

depositum

fechado e definido como correto o seu saber eacute necessaacuterio realmente

que o indiviacuteduo que aprende seja um recipiente dependente e plaacutestico pois aos

moldes da Filosofia escolaacutestica tudo o que se recebe se recebe aos moldes do

recipiente Os indiacutegenas eram esse recipiente

No entanto os indiacutegenas natildeo eram essa argila mole ao menos natildeo

todos pois muitos tensionamentos ocorreram antes da aceitaccedilatildeo dos novos

costumes impostos O homem se acostuma a qualquer situaccedilatildeo e se adapta a

qualquer meio ambiente mas muitas vezes antes que isso ocorra o desconforto

21

e a resistecircncia a aceitaccedilatildeo pura e simples ficam evidentes Essas resistecircncias

ficaratildeo mais claras no capiacutetulo mais adiante em que mostro como os indiacutegenas

teriam recebido a pregaccedilatildeo cristatilde

Outro ponto importante a ser mostrado eacute quanto aos aldeamentos

jesuiacuteticos onde o iacutendio foi obrigado a uma adaptaccedilatildeo a essa citada aceitaccedilatildeo de

costumes Os jesuiacutetas concebiam que aquela sociedade deveria ser una pela

concepccedilatildeo de bons propoacutesitos fidelidade de interesses e reciprocidade de

simpatia mas o que ocorria na verdade era a necessidade de sobrevivecircncia

daqueles que jaacute natildeo eram mais iacutendios e natildeo conseguiram pela aculturaccedilatildeo

imposta serem tambeacutem brancos e portugueses onde a homogeneidade cultural

natildeo existiu e natildeo existe ateacute hoje nas tribos de nossa atualidade

Como afirma Dewey (1936 p132) uma sociedade indesejaacutevel eacute a que

interna e externamente cria barreiras para o livre intercacircmbio e comunicaccedilatildeo da

experiecircncia A comunidade dos aldeamentos criava barreiras para a comunicaccedilatildeo

da experiecircncia isto eacute o poder de poucos sobre o conhecimento posto sobre as

coisas e a manutenccedilatildeo desse poder a qualquer custo

Haacute que se entender que enquanto o portuguecircs do seacuteculo XVI trazia a

verdade revelada recebida atraveacutes de leis instaacuteveis isto eacute aquelas que podem ser

mudadas conforme a decisatildeo do grupo social que as criou os gentios seguiam

as leis estaacuteveis as lei naturais que os fazia pensar o conhecimento de forma

distinta de seus protetores A filosofia explica o mundo para o filoacutesofo que a

pensa respondendo agraves suas proacuteprias perguntas As respostas agraves perguntas do

filoacutesofo atendem aos anseios do grupo e da eacutepoca em que ele vive pois eacute a

22

resposta agraves perguntas de uma sociedade de uma cultura e se o conceito

persiste eacute porque persistem as perguntas na consciecircncia dessa sociedade

A verdade revelada era imposta pois era atraveacutes de um novo mito que

se dava o novo conhecimento ao gentio O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria

verdade 4 Essa era a nova experiecircncia em que o indiacutegena do seacuteculo XVI se

encontrava experiecircncia essa que para ter valor real deveria fazer os brasis se

afastarem da dor ou se aproximarem do prazer Soacute essas duas coisas movem um

indiviacuteduo no Universo a que pertence

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertencia em relaccedilatildeo agrave nova natureza apresentada foi necessaacuterio ao indiacutegena

criar uma linguagem que pudesse dar conta de transcrever sua realidade afinada

com seu proacuteprio conhecimento de mundo Um novo mito em que ele deveria

chamar o padre de pai e de salvador Natildeo havia para o indiacutegena a divisatildeo entre o

mundo real e o mundo miacutetico e sim um uacutenico olhar que se espalha em todas as

direccedilotildees de sua existecircncia atraveacutes de sua vida vivida e possiacutevel

Assim viviam suas vidas da forma que lhes foi possiacutevel entre um

arremedo de branco e uma caricatura de iacutendio

No homem o possiacutevel se imprime sobre o real5

4 GUSDORF 1959 p13 5 GUSDORF 1959 p15

23

Natildeo parece que esses homens chamados gentios tivessem o

interesse de descobrir o como do mundo real e sim usar dessa forma esteacutetica

para trabalhar com suas fantasias e esperanccedilas subjetivas isto eacute experienciar

O homem moderno atraveacutes de seu racionalismo sentiu aos poucos o

esfriamento de sua psique primitiva e por consequumlecircncia perdeu muitas de suas

ilusotildees pois natildeo mais entra em contato com suas experiecircncias que satildeo o conjunto

e de conhecimentos individuais ou coletivos especiacuteficos ou natildeo e que constituem

aquisiccedilotildees vantajosas que foram acumuladas historicamente por toda a

humanidade sejam elas miacuteticas ou racionais

Jung nos ensina em suas obras que estamos envolvidos por exemplo

com a experiecircncia de Deus de uma forma tatildeo profunda e universal que por mais

que venhamos a questionar esse mito ou essa crenccedila temos a imagem dessa

experiecircncia dentro de noacutes e por isso natildeo temos como acreditar ou deixar de crer

nessas imagens O mesmo acontecia com o Cristatildeo portuguecircs quinhentista mas eacute

claro e oacutebvio que essa experiecircncia era distinta para os indiacutegenas dessa eacutepoca

Por mais que se quisesse impor uma esteacutetica cultural deveriacuteamos perguntar

Tupatilde era um deus diferente de Deus ou a experiecircncia era a mesma

Mas o portuguecircs do Seacuteculo XVI que trazia em suas caravelas e

bagagens todos os conceitos culturais mitos e crenccedilas impotildeem aos brasis

paracircmetros novos de vida cumprindo a qualquer custo uma missatildeo heroacuteica de

semear a palavra de Deus pela Terra fazendo cumprir uma profecia dentro de

concepccedilotildees mentais riacutegidas inflexiacuteveis racionais e complexas

24

Viraacute o tempo em um futuro longiacutenquo em que o mar

Oceano quebraraacute as suas correntes e uma vasta terra seraacute revelada

aos homens quando um marinheiro audacioso como aquele que se

chamava Tifis e que foi o guia de Jasatildeo descobrir um novo mundo

entatildeo Thule (a Islacircndia) natildeo seraacute a uacuteltima das terras

LUCIUS ANNAEUS SEcircNECA Medeacuteia Seacuteculo I da era cristatilde6

As grandes descobertas trouxeram aos novos mundos anseios e

frustraccedilotildees sobre o imaginaacuterio portuguecircs e espanhol dos seacuteculos XV e XVI mas

tambeacutem a possibilidade de encontrarem o local onde Deus plantou o Paraiacuteso

Terrestre

o lugar onde a Divina Providecircncia havia plantado o

Paraiacuteso Terrestre mito essencial e fundamento doutrinaacuterio dos

mundos judaico-cristatildeo e mulccedilumano lugar inicial onde o Criador

havia decidido criar a espeacutecie humana7

A faccedilanha dessas descobertas tanto teacutecnica como humana carregava

dentro das caravelas a crenccedila de que os atores sociais dos descobrimentos

haviam encontrado o paiacutes das lendas o Paraiacuteso Terrestre o reino das Amazonas

as minas do Rei Salomatildeo as hordas impuras de Gog e Magog8 e o fabuloso

palaacutecio com telhados de ouro de Cipango9

6 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p15 7 idem p34 8 O vocaacutebulo Armagedon eacute composto de duas palavras Ar em hebraico significa Planiacutecie e Megiddo eacute uma localidade ao Norte da Terra Santa proacutexima ao monte Carmel onde antigamente Barrack derrotou os exeacutercitos comandados por Sisara e o profeta Elias e executou mais de quinhentos sacerdotes de Baal (Apo 1616 1714 Juizes 42-16 1 Reis 1840) A luz destes eventos biacuteblicos Armagedon simboliza a derrota das forccedilas anti-religiosas por Cristo Os nomes Gog e Magog no capiacutetulo 20 lembram as profecias de Ezequiel a respeito da invasatildeo de Jerusaleacutem por um nuacutemero indeterminado de regimentos sob o comando de Gog das

25

Acreditava-se entre os portugueses e espanhoacuteis que os mitos dessas

terras se encontravam agora agrave matildeo de quem navegasse de quem ousasse terras

longiacutenquas e enigmaacuteticas desvelar seus misteacuterios e atravessar o mare oceano

innavigabile Dessa forma muitas das histoacuterias fantasiosas que povoavam a

mente do europeu quatrocentista e quinhentista foram transferidas para as terras a

serem conquistadas e vieram juntamente com o mito cristatildeo com o Diabo dentro

das caravelas misturadas ao desejo de expansatildeo do comeacutercio e da busca de

riquezas povoando as sombras desses conquistadores

Apenas como lembranccedila os mitos agem sobre a mente humana de

forma a incitar accedilotildees e desencadear moldes de conduta de pensamento e de

sensibilidade Foi dessa forma portanto que os conquistadores partiram para suas

buscas Uma busca baseada no comeacutercio e expansatildeo sim mas de forma latente

na busca de seus mitos

Assim cada terra descoberta cada povo encontrado cada riqueza

desvelada era considerado de propriedade da natureza e por isso era de quem

encontrasse quer por pirataria quer por ordem de um reino quer passando a ser

propriedade de um rei como descendente direto do divino quer ad majorem Dei

gloriam mesmo que isso significasse um etnociacutedio de nuacutemeros altiacutessimos durante

terras de Magog (sul do mar Caacutespio Ezeq cap 38 e 39 Apo 207-8) Ezequiel atribui esta profecia aos tempos do Messias No Apocalipse o cerco dos regimentos de Gog e Magog ao local dos santos e da cidade eleita (ie da Igreja) e a destruiccedilatildeo destes regimentos pelo fogo Celestial deve ser entendida pela derrota total das forccedilas contraacuterias a Deus humanas e demoniacuteacas pela segunda vinda de Cristo (Obtida em http2112hpyollnetapocalipse2htm em 250405) 9 antigo nome da ilha do Japatildeo antes de conhecido pela Europa cristatilde

26

todo os anos quinhentistas conforme jaacute pude demonstrar em A destribalizaccedilatildeo da

Alma Indiacutegena Brasil Seacuteculo XVI uma visatildeo junguiana10

Obviamente essas faccedilanhas dos descobrimentos trouxeram ao Orbis

Christianus grande avanccedilo tecnoloacutegico no ramo dos transportes da navegaccedilatildeo e

do comeacutercio mas principalmente trouxeram o mais preciso conhecimento

geograacutefico e cartograacutefico do planeta de entatildeo cujos mapas por mais atualizados

que estivessem baseavam-se tatildeo somente na geografia biacuteblica da Idade Meacutedia

Era o Velho Mundo nos seacuteculos XV e XVI aacutevido de modernidade mas

persistia na mente dos portugueses e espanhoacuteis a impregnaccedilatildeo de mitos Existia

como produto social uma turva fronteira entre o real e o imaginaacuterio causada pela

verdade revelada das Escrituras Haacute que se entender que aqueles autores

primeiros que escreveram os primeiros livros sagrados estavam cercados de

desertos e de aacutereas inoacutespitas e tiveram a visatildeo de um local edecircnico como sendo

de feacuterteis terras de aacuteguas abundantes onde tudo nascia e crescia sob a matildeo de

um jardineiro celestial

Entatildeo plantou o Senhor Deus um jardim da banda do

oriente no Eacuteden e pocircs ali o homem que tinha formado E o Senhor

Deus fez brotar da terra toda qualidade de aacutervores agradaacuteveis agrave vista

e boas para comida bem como a aacutervore da vida no meio do jardim e

a aacutervore do conhecimento do bem e do mal

E saiacutea um rio do Eacuteden para regar o jardim e dali se dividia

e se tornava em quatro braccedilos O nome do primeiro eacute Pisom este eacute o

que rodeia toda a terra de Havilaacute onde haacute ouro e o ouro dessa terra eacute

bom ali haacute o bdeacutelio e a pedra de berilo O nome do segundo rio eacute

10 CARNOT 2005

27

Giom este eacute o que rodeia toda a terra de Cuche E o nome do terceiro

rio eacute Tigre este eacute o que corre pelo oriente da Assiacuteria E o quarto rio eacute

o Eufrates11

Mas tambeacutem proibiu apoacutes a expulsatildeo de Adatildeo o homem de encontrar

esse Jardim edecircnico

O Senhor Deus pois o lanccedilou fora do jardim do Eacuteden para

lavrar a terra de que fora tomado E havendo lanccedilado fora o homem

pocircs ao oriente do jardim do Eacuteden os querubins e uma espada

flamejante que se volvia por todos os lados para guardar o caminho

da aacutervore da vida12

Encontraram Vejamos um relato de Cristoacutevatildeo Colombo

Satildeo esses grandes indiacutecios do paraiacuteso terrestre porque

o lugar eacute conforme ao que pensam os santos e os sagrados teoacutelogos

E os sinais satildeo igualmente muito conformes pois jamais li ou ouvi

dizer que tamanha quantidade de aacutegua doce pudesse estar no meio

da aacutegua salgada ou na sua vizinhanccedila vem ainda em apoio a tudo

isso a temperatura extremamente agradaacutevel E se essa aacutegua natildeo vem

do Paraiacuteso seria ainda maior maravilha porque natildeo creio que se

conheccedila no mundo rio tatildeo grande e tatildeo profundo13

Chegaram a um local adacircmico sim com vegetaccedilatildeo abundante com

aacuteguas cristalinas e principalmente com um povo diferente daquele que o europeu

11 (Gecircnesis 2 8-14) 12 (Gecircnesis 3 23-24) 13 Magasich-Airolaamp Beer 2000 p57

28

conhecia Talvez um arremedo do Jardim mas enfim um jardim bom para a

exploraccedilatildeo e bom para aumentar as almas do Tesouro de Cristo

Corpos diferentes e muitas vezes nus exuberantes como os indiacutegenas

da Ilha de Vera Cruz com miacutesticos costumes com lendas fabulosas poreacutem

distintas daquelas que o imaginaacuterio cristatildeo pudesse relatar Nem cinoceacutefalos14

nem hordas malditas mas guerreiros aguerridos em parte doacuteceis e prontos para

serem convertidos em ovelhas do Senhor em parte bravios e indispostos a serem

conquistados

Natildeo se pode numerar nem compreender a multidatildeo de

baacuterbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra do Brasil

porque ningueacutem pode pelo sertatildeo dentro caminhar seguro nem

passar por terra onde natildeo ache povoaccedilotildees de iacutendios armados contra

todas as naccedilotildees humanas e assim como satildeo muitos permitiu Deus

que fossem contraacuterios uns dos outros e que houvesse entre eles

grandes oacutedios e discoacuterdias porque se assim natildeo fosse os

portugueses natildeo poderiam viver na terra nem seria possiacutevel

conquistar tamanho poder de gente15

Ou ainda

E satildeo muito inclinados a pelejar e muito valentes e

esforccedilados contra seus adversaacuterios e assim parece coisa entranha

ver dois trecircs mil homens nus de uma parte e de outra com grandes

assobios e grita frechando uns aos outros e enquanto dura esta

14 Homens com cabeccedila de catildeo seguidores dos guerreiros Gog e Magog que viriam no apocalipse acompanhando o Anticristo (citados em Apocalipse 20 7-8) 15 GAcircNDAVO1980p12)

29

peleja nunca estatildeo com os corpos quedos meneando-se de uma parte

para outra com muita ligeireza para que natildeo possam apontar nem

fazer tiro em pessoa certa algumas velhas costumam apanhar-lhes

as frechas pelo chatildeo e servi-los enquanto pelejam Gente eacute esta muito

atrevida e que teme muito pouco a morte e quando vatildeo agrave guerra

sempre lhes parece que tecircm certa a vitoacuteria e que nenhum de sua

companhia haacute de morrer E quando partem dizem vamos matar sem

mais consideraccedilatildeo e natildeo cuidam que tambeacutem podem ser vencidos 16

Era muito comum poreacutem que o conquistador tivesse a visatildeo de que os

povos dessas terras receacutem descobertas os vissem como sendo de origem divina

Colombo assim contava

Disseram-se muitas outras coisas que natildeo pude

compreender mas pude ver que estava maravilhado com

tudo(diaacuterio 18121492) satildeo creacutedulos sabem que haacute um Deus no

ceacuteu e estatildeo convencidos de que viemos de laacute (diaacuterio

12111492) achavam que todos os cristatildeos vinham do ceacuteu e que o

Reino de Castela ali se encontrava e natildeo neste mundo(diaacuterio

16121492) 17

Ou como escrevia Noacutebrega em suas cartas

Todos querem e desejam ser Cristatildeos mas deixar seus

costumes lhes parece aacutespero Vatildeo contudo pouco a pouco caindo na

verdade18

16 idem p13 17 TODOROV 2003 P57 18 NOacuteBREGA 1988 p 114 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551

30

Os Gentios aqui vecircm de muito longe a ver-nos pela fama e

todos mostram grandes desejos Eacute muito para folgar de os ver na

doutrina e natildeo contentes com a geral sempre nos estatildeo pedindo em

casa que os ensinemos e muitos deles com lagrimas nos olhos19

Estatildeo espantados de ver a majestade com que entramos e

estamos e temem-nos muito o que tambeacutem ajuda 20

Falamos do europeu do portuguecircs e do espanhol poreacutem nosso foco

deve e estaacute voltado para o cristatildeo portuguecircs

Esse portuguecircs que no seacuteculo XVI tinha essa imaginaccedilatildeo fervilhante

cheia de conteuacutedos miacuteticos que possuiacutea um falar livre sem os rebuccedilos dos

letrados enfim o povo portuguecircs quinhentista que seguia leis severas de um

reino corporativo onde como nos diz Capistrano de Abreu (1907) As cominaccedilotildees

penais natildeo conheciam piedade A morte expiava crimes tais como o furto do valor

de um marco de prata Ao falsificador de moeda infligia-se a morte pelo fogo e o

confisco de todos os bens 21

Toda a cultura da sociedade portuguesa quinhentista era estruturada

com referecircncia ao sagrado e aos preceitos da Santa Feacute Catoacutelica onde a presenccedila

ou onipresenccedila divina acontecia em toda e qualquer circunstacircncia em qualquer

situaccedilatildeo

19 NOacuteBREGA 1988 p 115-116 Carta aos Padres e Irmatildeos - 1551 20 NOacuteBREGA 1988 p 75 carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo 21 ABREU 1907-2004p46)

31

Essa organizaccedilatildeo cultural se dava sob a forma de um corpo social

definido como o Reino que se entrelaccedilava com outro corpo formado pela Igreja

onde qualquer mediaccedilatildeo seria feita por esses corpos sociais e em uacuteltima instacircncia

Deus era a referecircncia Paiva22 nos coloca que essa constituiccedilatildeo social se dava

como um corpo em graus superpostos o corpo social o corpo miacutestico de Cristo o

universo

Culturalmente a sociedade portuguesa do seacuteculo XVI se

caracterizava pela cimentaccedilatildeo religiosa de todo o seu fazer A uacuteltima

explicaccedilatildeo do por que as coisas eram tais quais eram estava na

religiatildeo ou seja na sua referecircncia ao sagrado O poder do rei a

organizaccedilatildeo da sociedade as instituiccedilotildees os valores os costumes

as expressotildees tudo enfim tinha sua razatildeo de ser na sacralidade tudo

tinha um caraacuteter religioso 23

Nada era questionado quanto a essa cultura religiosa pois tudo

absolutamente tudo o comeacutercio os estudos as conquistas todos ordenavam

seus esquemas atraveacutes da dogmaacutetica e da apologeacutetica religiosa onde se

chamava de Ciecircncia rainha de todas as rainhas a Teologia

Os valores os costumes a compreensatildeo de vida estava imersa no mito

cristatildeo onde a uacuteltima realizaccedilatildeo se daacute em Deus 24 mito que ao longo da Idade

Meacutedia europeacuteia se elaborou fundado na compreensatildeo de uma ordem uacutenica que

se funda em Deus do qual todas as instacircncias subordinadamente se plenificam

22 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura 23 PAIVA 2002 p 3 24 Religiosidade e Cultura Brasil Seacuteculo XVI uma chave de leitura

32

assim se pondo25 garantindo ao Rei o direito a proeminecircncia e conquista e

sujeiccedilatildeo de qualquer povo de qualquer terra conquistada

Ficava assim mais faacutecil se compreender o Poder pois ele estaria

concebido fundado na Vontade de Deus e por consequumlecircncia na do Rei

O Rei era antes de tudo era aquele que dizia a justiccedila e o rei perfeito

era o juiz perfeito Que todo julgamento era pela vontade divina e que a boa

dinastia nunca gerava um mau rei e portanto um bom representante de Deus na

Terra

Poreacutem a necessidade de um bom reinado se fazia presente todo o

tempo dando ateacute mesmo possibilidades de trocas de reis por natildeo se cumprir um

bom reinado Era a forma de garantirem a permanecircncia no reinado ou a

legitimidade do golpe para assumir o reinado de outro principalmente se o anterior

regia sem competecircncia com tirania ou descaso Ao levantar essa situaccedilatildeo de

troca de rei ou de afirmar-se no reinado invocavam o Direito das Gentes 26

Dessa forma o direito tambeacutem sujeitava o Rei agraves leis leis essas que na verdade

ao receber a coroa jurou defender como nas Ordenaccedilotildees Afonsinas por

exemplo

Quando Nosso Senhor Deos fez as criaturas assim

razoaveis como aquellas que carecem de razom non quis que

fossem iguaes mas estabeleceo e hordenou cada hua sua virtude e

poderio de partidos segundo o grao em que as pocircs bem assy os

25 idem 26 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128

33

Reys que em logo de Deos na Terra som postos para reger e

governar o povo nas obras que ham de fazer assy de Justiccedila como

de graccedila ou mercees devem seguir o exemplo daquello que ele fez

e hordenou dando e distribuindo non a todos por hua guisa mais a

cada huu apartadamente segundo o gratildeo e condiccedilon e estado de

que for27

Essas mesmas Ordenaccedilotildees dividiam a sociedade em estratos os

defensores os que defendem o povo os que rogam pelo povo os oradores

dividindo ainda em estados limpos (letrados lavradores e militares) e estados vis

(oficiais mecacircnicos ou artesatildeos) e dos privilegiados (que pela miliacutecia ou pela Arte

se livraram das profissotildees soacuterdidas) 28

Em todo esse universo religioso eacute que estavam os fatos gerados por

seus atores sociais seus costumes seus ritos e siacutembolos suas vestimentas e

linguagem tudo fazendo a cultura do portuguecircs cristatildeo quinhentista

O pensamento social poliacutetico medieval eacute dominado pela

ideacuteia da existecircncia de uma ordem universal (cosmos) abrangendo os

homens e as coisas que orientava todas as criaturas para um objetivo

uacuteltimo que o pensamento cristatildeo identificava como o proacuteprio

Criador29

A sociedade portuguesa para a gloacuteria e satisfaccedilatildeo de um imaginaacuterio

eminentemente cristatildeo estaria no mundo para realizar os planos do Criador

portanto tudo e todos que natildeo pudessem caber na inquestionaacutevel obediecircncia e

27 XAVIER amp HESPANHA 1992 p128 28 idem p132 29 idem p122

34

pertenccedila ao cristianismo somente poderiam ser avaliados como inferiores como

infieacuteis e hereges tal qual as bruxas os aacuterabes os judeus tatildeo mancomunados

com o Diabo

Chega entatildeo esse Portugal agraves Terras Brasiacutelicas com o espiacuterito avivado

com relaccedilatildeo aos sentimentos de cumprir a missatildeo de propagar a feacute cristatilde com um

intuito exorcista de eliminar os democircnios e fantasmas que atraveacutes de milecircnios

teriam povoado estes mundos remotos onde a forccedila de Deus se batia com as

artimanhas do Diabo e ocupada por seres infieacuteis e de praacuteticas pagatildes mas ligado

ao racionalismo portuguecircs que se desenvolvia prometia ainda essa terra o

fornecimento de material para exploraccedilatildeo e o comeacutercio

A convivecircncia do europeu com os nativos da Aacutefrica Aacutesia e

Ameacuterica significou para esses povos castraccedilatildeo e imposiccedilatildeo cultural

tal o etnocentrismo que a caracterizava tal a racionalidade que

conduzia sua poliacutetica tal sua forccedila militar30

Chegam entatildeo esses portugueses fedentos e escalavrados de feridas

de escorbuto31 com a intenccedilatildeo de transformarem indiacutegenas esplendidos de vigor e

beleza32 em querubins caciques em Guaixaraacute e jovens adolescentes em outros

tantos diabos pois que se defrontam com formas diferentes de amor de mundo

de vida e morte e acreditavam piamente que essa era uma forma diaboacutelica de

30 PAIVA 2002 p 46 31 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 32 idem

35

viver uma ofensa agrave obra de Deus na terra por isso natildeo podia deixar de ser banida

e extirpada como um tumor que ameaccedilava a Gloacuteria do Senhor 33

33 CARNOT 2005 p120

36

CAPIacuteTULO 1 - A EDUCACcedilAtildeO COMO TRANSMISSAtildeO DE CULTURA QUE ENSINA E ALTERA

COSTUMES

Durante o tempo de estudos e pesquisas desde os tempos de

mestrado por ter vindo de uma aacuterea de investigaccedilatildeo como a Psicologia parto do

princiacutepio que a conversatildeo e na educaccedilatildeo transmitida aos indiacutegenas houve

diversas falhas como jaacute pude mostrar em a Destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

falhas essas que existiram pelas vivecircncias dos atores sociais em seu tempo e em

resposta a suas ansiedades Tenho constantemente pensado que entre essas

falhas qual a mais importante na educaccedilatildeo na conversatildeo e na catequese

Seria um erro didaacutetico Seria um erro baseado no depositum

da

verdade revelada onde o jesuiacuteta professava suas concepccedilotildees e conceitos

Seraacute que esse erro se encontra no indiacutegena no receptaacuteculo desse

depositum que talvez natildeo estivesse apto a recebecirc-lo

Gostaria de entender o ser humano como um portador de um vaacutecuo

Natildeo como uma tabula rasa mas como um vaacutecuo disponiacutevel a descobertas a

formas e cores a necessidades a curiosidades Seriam a curiosidade e a

necessidade o proacuteprio vaacutecuo

37

Parto desse ponto para afirmar que os vaacutecuos preacute-existem para que as

formas e conteuacutedos possam vir a existir O vaacutecuo eacute a Ideacuteia a Concepccedilatildeo Primeira

a Fecundaccedilatildeo Coacutesmica assim como Primeiro foi o Verbo

CG Jung nos diz que o inconsciente possui todos os materiais

psiacutequicos que existem na consciecircncia de um indiviacuteduo inclusive as percepccedilotildees

sublimais34 e principalmente aqueles materiais que natildeo alcanccedilaram o limiar da

consciecircncia mas que serviratildeo para que o indiviacuteduo receba tudo aquilo que poderaacute

advir com a aculturaccedilatildeo que viraacute a acumular em sua vida

A educaccedilatildeo seja ela a de transmissatildeo de cultura ou a educaccedilatildeo formal

escolar com a funccedilatildeo de nos colocar em focircrmas nos daacute preenchimento desse

vaacutecuo sem que faccedila entender a necessidade ou que nos permita buscar a

curiosidade de desvelar o veacuteu que cobre o universo das coisas as essecircncias O

homem somente aprende algo que sirva para atender sua curiosidade ou uma

necessidade

Assim eacute a educaccedilatildeo nos oferece importantes informaccedilotildees e conceitos

sem que nos provoque a busca

Em Les secrets de la maturiteacute Hans Carossa (Apud Bachelard-1990 p7)

diz o homem eacute a uacutenica criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior

34 sublimais

origem sublimaccedilatildeo = lat sublimatigraveooacutenis accedilatildeo de elevar exaltar pelo fr sublimation (1274) elevaccedilatildeo exaltaccedilatildeo (1856) accedilatildeo de purificar (1904) - modificaccedilatildeo da orientaccedilatildeo originalmente sexual de um impulso ou de sua energia de maneira a levar a um outro ato aceito e valorizado pela sociedade transformaccedilatildeo de um motivo primitivo e sua colocaccedilatildeo a serviccedilo de fins considerados mais elevados [A atividade religiosa artiacutestica e intelectual satildeo exemplos tiacutepicos de sublimaccedilatildeo

38

de outra A palavra vontade usada por Carossa me faz buscar outros conceitos

como desejo curiosidade afatilde tesatildeo necessidade Eacute essa vontade de olhar para

o interior das coisas que torna a visatildeo aguccedilada penetrante pronta para descobrir

uma intenccedilatildeo uma utilidade uma funccedilatildeo Eacute o violar o segredo tal qual uma

crianccedila que abre seu brinquedo para ver o que haacute dentro Noacutes adultos por falta de

memoacuteria de nossa infacircncia queremos atribuir esse abrir o brinquedo como uma

intenccedilatildeo destrutiva Mas a crianccedila o humano em noacutes busca ver aleacutem ver por

dentro em suma escapar a passividade da visatildeo 35

O homem aculturado educado olha para essa estrutura externa e

natildeo vecirc a profundeza do brinquedo mas a crianccedila possuidora de um vaacutecuo ainda

natildeo preenchido pela histoacuteria faz com o brinquedo o que a educaccedilatildeo natildeo sabe

fazer e a imaginaccedilatildeo realiza magistralmente seja como for descobre sua

profundidade sua substacircncia seu oculto

Capta a crianccedila imagens tatildeo numerosas tatildeo variaacuteveis e tatildeo confusas

que despertam cada vez mais as nuanccedilas sentimentais de sua curiosidade Toda

doutrina da imagem eacute acompanhada em espelho por uma psicologia do

imaginante 36

Assim encontro um dos enganos da educaccedilatildeo o natildeo preencher o

vaacutecuo humano com o desejo com a vontade e sim com o que as concepccedilotildees

adultas pensam ser importantes

35 BACHELARD 1990p8 36 idem

39

Mas se procurarmos outras falhas com relaccedilatildeo ao ensinar e ao

aprender esbarramos na filosofia que muitas vezes trabalha com essa busca da

profundidade das coisas de forma dogmaacutetica que tolhe brutalmente toda

curiosidade voltada para o interior das coisas 37 Para esses filoacutesofos da educaccedilatildeo

que assim pensam a profundidade das coisas eacute ilusatildeo que a crianccedila pergunta

mas que natildeo deseja realmente saber e que se lhe explicarem superficialmente

satisfaratildeo sua necessidade

Em verdade essas questotildees natildeo perturbam esses filoacutesofos Nessas

questotildees que a a educaccedilatildeo natildeo sabe fazer amadurecer a filosofia condena o

homem a permanecer como ele diz no plano dos fenocircmenos 38 Tudo natildeo passa

de aparecircncia Inuacutetil ir ver mais inuacutetil ainda imaginar mas se esquece que a

natureza esconde como funccedilatildeo primaacuteria da vida protege abriga guarda

reserva e esse interior tem funccedilotildees de trevas de guardar aquilo que a curiosidade

ou a necessidade necessitam iluminar

Magie uma personagem de Henri Michaux39 em um de seus conselhos

diz ponho uma maccedilatilde sobre a mesa Depois ponho-me dentro dessa maccedila Que

tranquumlilidade Flaubert40 dizia a mesma coisa a forccedila de olhar um seixo um

animal um quadro senti que eu estava neles

Somente o poeta e seus personagens sabem do interior das coisas

Natildeo poderia ser a educaccedilatildeo uma poesia

37 idem p9 38 idem p9 39 BACHELARD 1990 apud p11 40 BACHELARD 1990 apud p11

40

Francis Ponge41 busca o entender das coisas da seguinte forma

Proponho a todos a abertura dos alccedilapotildees interiores uma viagem na espessura

das coisas uma invasatildeo de qualidades uma revoluccedilatildeo ou uma subversatildeo

comparaacutevel agravequela operada pela charrua ou pela paacute quando de repente e pela

primeira vez satildeo trazidos agrave luz milhotildees de fragmentos lamelas raiacutezes vermes e

bichinhos ateacute entatildeo enterrados

A educaccedilatildeo eacute e sempre foi um caleidoscoacutepio que mostra os mais

diversos e belos desenhos e formas mas natildeo me conta que por mais que mude

as peccedilas que satildeo sempre as mesmas estatildeo presas numa caixa A mim agrada

mais o microscoacutepio ou a luneta que satildeo instrumentos da curiosidade

A educaccedilatildeo conserva em si a manutenccedilatildeo da verdade revelada da

Idade Meacutedia onde natildeo se podia buscar o cerne das coisas acredita ainda hoje

que o cisne de esplendorosa brancura eacute todo negrume no interior

Essa

verdade medieval que permanece nos conceitos da escola do ensinar do

aprender teria sido quebrada atraveacutes de um pequeno e simples exame para

saber que o cisne natildeo eacute muito diferente em suas cores do interior do corvo

Se apesar dos fatos a afirmaccedilatildeo do negrume intenso do cisne eacute tatildeo amiuacutede

repetida eacute por satisfazer a uma lei da imaginaccedilatildeo dialeacutetica As imagens que satildeo

forccedilas psiacutequicas primaacuterias satildeo mais fortes que as ideacuteias mais fortes que as

experiecircncias reais 42

41 BACHELARD 1990 apud p10 42 BACHELARD 1990 p17

41

Como disse Jean Paul Sartre eacute preciso inventar o acircmago das coisas

se quisermos um dia descobri-lo

Natildeo sei se estou conseguindo passar ao leitor a total significacircncia da

ideacuteia do preenchimento do vaacutecuo atraveacutes de uma educaccedilatildeo que olhe para dentro

das coisas Quando falo de dentro das coisas natildeo estou com isso falando de

interior tatildeo somente mas da essecircncia do acircmago Veja este exemplo certa vez

caminhando com meu filho que tinha entatildeo quatro anos pelas ruas do bairro

onde resido ruas com terrenos vazios e onde se pode ter contato bastante grande

com a natureza pude brincar de investigar

Andaacutevamos por uma dessas ruas quando eu encontrei pegadas de um

cavalo Conhecendo esse espiacuterito de investigaccedilatildeo e da curiosidade que emana do

meu filho mostrei a ele as pegadas Imediatamente ele disse que legal vocecirc

descobriu essas pegadas do cavalo branco Perguntei como ele poderia saber a

cor do cavalo que havia passado por ali Sua resposta foi simples vamos seguir

as pegadas e a gente pode saber e eu estou certo Aceitei a proposta e saiacutemos

seguindo as pegadas Em alguns pontos onde a terra estava mais firme as

pegadas sumiam mas ele como toda sua curiosidade buscava novas evidecircncias

e encontrava as pegadas seguintes Andamos lentamente e olhando para o chatildeo

das ruas de terra por mais ou menos duas horas sem que ele desistisse ou

mostrasse sinais que natildeo mais se importava com a brincadeira Andamos

precisamente quatro quilocircmetros ateacute chegarmos a um local onde se localizam

algumas baias e laacute estavam alguns cavalos Havia um branco e ele se convenceu

e quase me convenceu tambeacutem de que estava certo

42

Esse vaacutecuo da curiosidade foi preenchido a perspectiva de intimidade

da coisa do evento mostrou um interior maravilhoso um interior esculpido de

fantasias da mesma forma que se abrisse um geodo e um mundo cristalino

houvesse sido revelado

Eacute dessa qualidade de vaacutecuo que falo e que a educaccedilatildeo natildeo eacute capaz de

preencher natildeo por falta de conteuacutedo ou de forma mas da maneira de trabalhar a

curiosidade e a necessidade Natildeo basta a natureza conter formas incriacuteveis na

moleacutecula da aacutegua ou no floco de neve conter eflorescecircncias arborescecircncias e

luminescecircncias se natildeo for possiacutevel dar o desejo dessas descobertas Repito a

educaccedilatildeo natildeo sabe fazer isso mas a imaginaccedilatildeo faz com perfeiccedilatildeo a alquimia

das descobertas

Jung fala da alquimia em seus estudos ligando o sonho da

profundidade das substacircncias43 agrave busca do self atraveacutes do mergulho no

inconsciente Se o alquimista fala do mercuacuterio ele pensa exteriormente no

argento vivo mas ao mesmo tempo acredita estar diante de um espiacuterito escondido

ou prisioneiro da mateacuteria

44

A curiosidade eacute como um sonho de descoberta das virtudes secretas

das substacircncias ao tentar descobrir pela curiosidade ou pela necessidade a

essecircncia das coisas eacute como sonhar como o secreto em noacutes Os maiores

43 No aristotelismo e na escolaacutestica realidade que se manteacutem permanente sob os acidentes muacuteltiplos e mutaacuteveis servindo-lhes de suporte e sustentaacuteculo aquilo que subsiste por si com autonomia e independecircncia em relaccedilatildeo agraves suas qualificaccedilotildees e estados Algo que estaacute aleacutem sob as aparecircncias 44 cf JungPsychologie und Alchemie p399 apud Bachelard p 39

43

segredos de nosso ser estatildeo escondidos de noacutes mesmos estatildeo no segredo de

nossas profundezas 45

Eacute exatamente a partir da curiosidade sobre essas essecircncias sobre

essa alquimia que pesquiso meu trabalho em Educaccedilatildeo Histoacuteria e Cultura Minha

tese vem responder a esse meu anseio entender o mito que fazia com que

homens saiacutessem do conforto de seus lares ou mosteiros para conquistarem terras

novas e imporem seus dogmas a povos cuja explicaccedilatildeo da vida estavam

baseadas em outros mitos

Vejo o mito como um sistema de conhecimento velado poreacutem mesmo

assim exaustivo do inefaacutevel e do divino Eacute o mito a curiosidade aliada agrave

necessidade da explicaccedilatildeo de si e sua relaccedilatildeo individual com o Universo

Acontece poreacutem que a catequese a imposiccedilatildeo de cultura a educaccedilatildeo

negam a individualidade do homem negam seus vaacutecuos e seus mitos gerando

vaacutecuos novos e que natildeo podem ser preenchidos com aquilo que existe na verdade

daquele que foi conquistado O mito natildeo eacute um mito e sim a proacutepria verdade

46

Negar essa individualidade eacute um absurdo e a crianccedila sabe disso O

homem por mais que natildeo queira aceitar pois tenta se proteger de sua

incapacidade de buscar as essecircncias tem pleno conhecimento que a consciecircncia

eacute individual que a busca eacute individual que a curiosidade eacute individual e que ela faz

parte da substacircncia e da coisa em si

45 Bachelard p39 46 GUSDORF 1959 p13

44

Mas para o homem quando despido de suas aculturaccedilotildees e carapaccedilas

de defesas contra suas emoccedilotildees a coisa em si precisa ser explicada O que lhe

resta entatildeo eacute estruturar essa explicaccedilatildeo sob a forma de representaccedilatildeo Para

representar colhe do externo e divino e interioriza tal representaccedilatildeo em sua

essecircncia Novamente o mito eacute criado

Em todo o tempo de bancos escolares infelizmente natildeo tive a atenccedilatildeo

que poderia ter em relaccedilatildeo agrave mitologia Tive uma ideacuteia precaacuteria de tal assunto que

natildeo me mostrou quanto essa forccedila criadora que norteou o rejuvenescimento

constante dos mitos na esfera grega assiacuteria egiacutepcia e como essa atividade do

espiacuterito antigo agia de modo essencialmente poeacutetico e artiacutestico da mesma forma

que para o homem moderno tem a ciecircncia contribuiacutedo para nossa evoluccedilatildeo

Assim novamente digo que a questatildeo a ser respondida com esta

pesquisa eacute de como vivia o povo indiacutegena com essa experiecircncia que chamo o

mito de Deus quer fosse o Deus Cristatildeo quer fosse o deus ntildeande ru Pa-Pa

Tenodeacute47

Por isso o objeto a ser trabalhado nesta tese eacute o mito como

instrumento educacional de transmissatildeo de cultura fazendo uma anaacutelise de como

o mito cristatildeo era entendido pelos portugueses e jesuiacutetas no seacuteculo XVI e imposto

violentamente aos indiacutegenas desse mesmo tempo

A pesquisa desta temaacutetica buscaraacute a relaccedilatildeo do mito cristatildeo em uniatildeo

com mitos e lendas do povo aacuterabe invasor da peniacutensula ibeacuterica aleacutem dos mitos e

47 Em liacutengua ancestral Tupi o abantildeeenga significa nosso Pai Primeiro

45

lendas oriundas do oceano inavegabile por ocasiatildeo dos descobrimentos quando

marinheiros narravam histoacuterias fantaacutesticas de Homens-cavalo homens

gigantescos de um uacutenico peacute ciclopes e amazonas e outros mitos do mirabilis no

mundo conhecido do seacuteculo XVI de encontrar as diferenccedilas e semelhanccedilas com

os mitos europeus

Pesquisar ainda o mito como instrumento educacional de transmissatildeo

de cultura atraveacutes da narrativa da educaccedilatildeo falada e contada amplamente

utilizada pela pedagogia jesuiacutetica que utilizou todos os conceitos tanto de mitos

como de pecados e tabus para catequizar e converter os indiacutegenas agrave Santa Feacute

Catoacutelica

Essa eacute minha busca atraveacutes da curiosidade mostrar que a educaccedilatildeo soacute

poderaacute ser eficaz no momento em que trabalhar com os mitos os mitos do

descobrir os mitos de desvelar o mito do vaacutecuo

46

CAPIacuteTULO 2 - O MITO

No atual quadro do desenvolvimento cientiacutefico eacute cada mais comum se

falar em interdisciplinariedade conceito que traduz um modo novo de lidar com

os objetos de estudo com os planos teoacuterico e metodoloacutegico da pesquisa e

especialmente com o papel do cientista diante do universo que busca

compreender eou explicar

Tendo como coadjuvantes conhecimentos que vatildeo da Psicanaacutelise agrave

Antropologia e agrave Arte da Sociologia agrave Filosofia e agrave Histoacuteria os estudos em

Educaccedilatildeo fazem um percurso que recoloca a questatildeo epistemoloacutegica do proacuteprio

estatuto da ciecircncia de transmissatildeo de cultura

Onde buscar respostas

Como opccedilatildeo de caminho busquei as respostas na ontologia claacutessica e

no mito como bases como alicerces do que pretendo construir no que tange agrave

Educaccedilatildeo como transmissatildeo de cultura

O mito foi quase sempre considerado o produto de uma forma de

conhecimento do mundo dos fatos de conhecimento do mundo dos fatos naturais

e sobrenaturais organizada de modo alegoacuterico a ponto de mostrar poeticamente

a relaccedilatildeo entre homem e universo ou um modelo um arqueacutetipo que mesmo

47

mudando de vez em quando de acordo com conteuacutedos histoacutericos e geograacuteficos

peculiares tem sempre a mesma estrutura formal ligada ao mecanismo de

funcionamento da psique humana ou enfim um meacutetodo religioso de aproximaccedilatildeo

da concepccedilatildeo sagrada da existecircncia em que o mito eacute tido como um sistema de

conhecimento velado poreacutem mesmo assim exaustivo do inefaacutevel e do divino

Natildeo importa se o mito define o iniacutecio do mundo ou o mundo define o

iniacutecio do mito O que importa enfim eacute que o mito nasce com o humano pois tudo o

que existe no mundo eacute visto sob o olhar do humano

Tendo esse homem um pecado original como faz parte da nossa cultura

ou uma forma original de ter vindo ao mundo como a partir do caos ou da

escuridatildeo todos os humanos reconhecem sua identidade atraveacutes da natureza e

das coisas humanas

Durante toda sua vida os homens que satildeo igualmente homens

nascem de uma mesma forma e morrem de uma mesma forma no entanto natildeo

soacute com caracteriacutestica fiacutesicas diferentes natildeo soacute com valores diferentes com

definiccedilotildees espirituais diferentes com mitos diferentes mas todos explicam essas

igualdades e diferenccedilas atraveacutes do mito

A funccedilatildeo dos mitos natildeo eacute denotar uma ideacuteia herdada mas sim um

modo herdado de funcionamento que corresponde agrave maneira inata pela qual o

homem nasce e se relaciona em sua vida vivida

O ser humano natildeo nasce com papeacuteis em branco como uma tabula rasa

ao contraacuterio estava preparado para as experiecircncias da vida humana do mesmo

48

modo que os paacutessaros estavam de maneira inata prontos para construir ninhos

ou a fecircmea da tartaruga marinha estava preparada para retornar ao local onde

nasceu para laacute botar os proacuteprios ovos Mas algumas muitas das situaccedilotildees tiacutepicas

do homem relativas agrave condiccedilatildeo humana satildeo representadas pelos mitos

apreendidos e esses mitos datildeo ao homem a predisposiccedilatildeo para experimentar os

conceitos de matildee pai filho Deus Grande Matildee velho saacutebio nascimento morte

renascimento separaccedilotildees rituais de cortejo casamento e assim por diante

O mito se forma sob as caracteriacutesticas de imagens primordiais de fatores e

motivos que coordenam os elementos psiacutequicos do homem que soacute podem ser

reconhecidos como formadores do mito apoacutes terem efeito na vida do homem

Dessa forma os conteuacutedos miacuteticos pertencem agrave estrutura psiacutequica dos

indiviacuteduos enquanto possibilidades latentes tanto como fatores bioloacutegicos

como histoacutericos

48

Os mitos natildeo se difundem apenas pela tradiccedilatildeo linguagem ou migraccedilatildeo

Eles podem surgir de forma espontacircnea em qualquer tempo ou lugar sem serem

influenciados por transmissatildeo externa Pode-se considerar portanto que em cada

psique existem verdadeiras prontidotildees vivas ativas que embora inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico Essas imagens de

prontidatildeo satildeo imagens arquetiacutepicas que na mente consciente desenvolvem um

jogo entre as realidades interna e externa do homem que sofre pressatildeo pessoal e

cultural do tempo e do lugar em que estatildeo inseridas

48 JACOBI 1991 paacuteg39

49

Por esse motivo o mito eacute normalmente milenar e universal ao grupo

social em que atua eacute parte do inconsciente coletivo pois satildeo disposiccedilotildees

herdadas pela humanidade Manifesta-se ou produz imagens e pensamentos Os

conteuacutedos do inconsciente pessoal satildeo aquisiccedilotildees da existecircncia individual ao

passo que os conteuacutedos do inconsciente coletivo satildeo arqueacutetipos que existem

sempre e a priori

A definiccedilatildeo de mito eacute basicamente a concepccedilatildeo de homem

plenamente relacionado com tudo o que existe em seu contorno O homem eacute o

todo de suas relaccedilotildees pois recebe as mesmas influecircncias arquetiacutepicas que todos

os homens de seu grupo social recebem mesmo sendo individual e possuindo

caracteriacutesticas uacutenicas

Essa eacute a relaccedilatildeo maacutegica do mito O homem crecirc que vai chover para

molhar sua plantaccedilatildeo e realmente chove Chove por condiccedilotildees climaacuteticas mas

para o homem envolvido no mito chove porque os deuses assim o permitiram

natildeo soacute para ele mas para aqueles que juntamente com ele vivem o mito Dentro

do mito o homem opera sobre o existente e sobre sua consciecircncia de mundo No

mito o homem vive dentro e fazendo parte do todo natildeo como uma soma de

partes mas como uma parte representando o todo

Ontologicamente o mito traz consigo a missatildeo de mostrar em termos

gerais a existecircncia do ser natildeo deste ou daquele ser concreto mas do ser em

geral pois o homem sempre buscou e buscaraacute as respostas de quem eacute de onde

vem para onde vai se eacute que vai para algum lugar ou condiccedilatildeo

50

Para estruturar seu conhecimento sobre si mesmo e sobre a natureza a

que pertence foi necessaacuterio ao homem criar uma linguagem que pudesse dar

conta de transcrever sua realidade afinada com seu proacuteprio conhecimento de

mundo

No entanto sempre foi tarefa impossiacutevel tanto ao homem primitivo

como ao homem da modernidade definir o que eacute o homem o que eacute o ser ou

mesmo quem ele eacute

Cada vez que tentamos definir o homem como um ser deparamos com

outros conceitos a serem elaborados pois a cada qualidade de homem a cada

origem cultural ou geograacutefica de cada eacutepoca os conceitos se modificam as

definiccedilotildees se tornam mais errocircneas caso se tente colocar o homem dentro de um

soacute conceito

Claro que sabemos o que eacute o homem claro que o homem conhece a si

mesmo poreacutem ao perceber-se diante do outro diante de desejos e anseios tatildeo

diferentes entre si associados a coisas tatildeo distintas se obriga novamente a uma

anaacutelise de si e do todo

Eacute nesse anseio que o homem se pergunta quem eacute natildeo deixando de

perguntar quem eacute o outro na relaccedilatildeo de troca de parceria de mutualidade

O mito do homem necessita demonstrar essa origem e esse fim

escatoloacutegico49

49 Da escatologia doutrina que trata do destino final do homem e do mundo pode apresentar-se em discurso profeacutetico ou em contexto apocaliacuteptico

51

Necessita o homem agregar valor agraves definiccedilotildees quer com objetos que

se agregam dando qualidade agraves coisas quer transformando os objetos ideais em

personificaccedilotildees

A fortaleza do deus sol era construiacuteda sobre esplecircndidas

colunas e brilhava coberta de reluzente ouro e rubis flamejantes O

frontatildeo superior era emoldurado por marfim alvo e brilhante e os

portotildees duplos eram de prata ornamentados com impressionantes

relevos esculpidos por Hefaiacutestos representando a terra o mar e o ceacuteu

com seus habitantes50

Heacutelio vestido com um manto de puacuterpura estava sentado

sobre o seu trono ornamentado com esmeraldas Agrave sua direita e agrave

sua esquerda estava o seu seacutequumlito o Dia o Mecircs o Ano o Seacuteculo e

as Horas Do outro lado a Primavera com sua coroa de flores o

Veratildeo com suas espigas de cereais o Outono com uma cornucoacutepia

cheia de uvas e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve51

Sem que se fique preso a definiccedilotildees religiosas de uma ou outra crenccedila

necessita ainda o homem buscar respostas atraveacutes dos mitos que possam

confirmar sua percepccedilatildeo de mundo Eu existo o mundo existe os deuses

existem e as coisas existem Mas existem sem mim Existem independentes de

minhas representaccedilotildees Ao perceber-se distinto ao olhar o outro ao reconhecer-

se em outro o homem miacutetico percebe existirem definiccedilotildees diferentes para o ser

50 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 51 idem

52

em si mesmo e o ser o outro o que sugere as relaccedilotildees e o obriga a entrar em

contato com o real e suas representaccedilotildees de mundo e suas explicaccedilotildees para

esse mundo

Esses dois significados equivalem a estes outros dois a

existecircncia e a consistecircncia A palavra ser significa tambeacutem consistir

ser isto ser aquilo Quando perguntamos que eacute o homem Que eacute a

aacutegua Que eacute a luz Natildeo queremos perguntar se existe ou natildeo existe

o homem se existe ou natildeo existe a aacutegua ou a luz Queremos dizer

qual eacute a sua essecircncia Em que consiste o homem Em que consiste

a aacutegua Em que consiste a luz 52

Dessa forma para que uma estrutura mental possa ser montada o

homem tentaraacute buscar no mito a essecircncia de sua vida do porquecirc do sol e de

como surgiu do porquecirc das chuvas da boa e da maacute colheita da boa e maacute sorte na

caccedila do existir do dia e da noite e mesmo depois de cientificamente ter certezas

de suas definiccedilotildees guarda dentro de si sob a forma do pensamento da crianccedila o

homem primitivo que crecirc e vive o mito O mito da essecircncia da origem no divino e

da busca de sua existecircncia

Honrado pai na terra todos me ridicularizam e respondem

minha matildee Cliacutemene Afirmam ser falsa a minha origem divina

dizendo que sou filho bastardo de um pai desconhecido Eacute por isso

52 MORENTE 1930 62

53

que estou aqui para pedir-lhe um sinal que prove a todos na terra que

sou seu filho 53

Cria entatildeo o homem um mito para mostrar sua existecircncia pois o mito

eacute a proacutepria representaccedilatildeo do real natildeo estando fora da realidade e sim formulando

um conjunto de regras precisas para o pensamento e para a accedilatildeo 54 Natildeo se

pode encarar o mito como constituiacutedo de um puro e simples pensar de forma

fabulosa anaacuteloga ao sonho ao devaneio ou agrave poesia

A consciecircncia miacutetica desenha a configuraccedilatildeo do primeiro

universo 55

A imagem do mundo desenhada por essa consciecircncia miacutetica pela

consciecircncia da essecircncia do ser e sua existecircncia se afirma e se reafirma atraveacutes

de uma paisagem do grupo social paisagem esta que natildeo se prende somente a

uma configuraccedilatildeo geograacutefica ou mesmo fiacutesica mas envolvida por uma visatildeo moral

e espiritual do povo

A filosofia ao descobrir no caminhar das estrelas a mesma exigecircncia

do bater do coraccedilatildeo do homem reconhece nos milecircnios da evoluccedilatildeo social e

humana o primeiro desenho dos universos feito pelo homem primitivo sem saber

53 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005 54 GUSDORF 1960 22 55 GUSDORF 1960 51

54

que em verdade jaacute sabia a diferenccedila entre a fiacutesica e a metafiacutesica Eacute proacuteprio do

mito pois dar sentido ao universo 56

Poreacutem o homem miacutetico se depara com outra pergunta por que somos

tatildeo distintos Porque os seres possuem qualidades diferentes que os transforma

em outros Se todos tecircm a mesma origem no divino e se os deuses satildeo como

satildeo por que criaram nos seres tantas diferenccedilas

Entende o homem que independente de sua percepccedilatildeo de universo e

as explicaccedilotildees que pode dar sobre deuses sobre as horas e sobre os tempos e

as colheitas ainda havia que tentar evidenciar as diferenccedilas e as qualidades das

coisas chamadas por ele de seres

A carruagem descia cada vez mais e passado um instante

jaacute estava perto de uma montanha O solo entatildeo se abriu por causa do

calor e como todos os liacutequidos secassem subitamente comeccedilou a

arder As pastagens ficaram amarelas e murchas as copas das

aacutervores das florestas incendiaram-se logo o fervor chegou agrave planiacutecie

queimando as colheitas incendiando cidades paiacuteses inteiros ardiam

com sua populaccedilatildeo Picos florestas e montanhas estavam em

chamas e foi entatildeo que os povos da Etioacutepia ficaram negros A Liacutebia

tornou-se um deserto57

Os seres possuem qualidades que agregam valores a esses seres

Definem as diferenccedilas de haacutebitos de raccedilas de culturas de deuses a serem

adorados e democircnios a serem rechaccedilados de bem e mal de batalhas de povos a

56 GUSDORF 196052 57 Mito de Faetonte Oviacutedio

httpwwwvicterhpgigcombrmitologiamitologiahtm

- nov2005

55

serem dominados ou convertidos de deuses de conquistadores que se

transformam em democircnios para os povos conquistados Que fazem ricos

imperadores serem deuses e pobres escravos mortais

Onde estaratildeo essas explicaccedilotildees No topos ouran s58 Nos mundos

sensiacutevel e inteligiacutevel definidos por Parmecircnides Por Soacutecrates por Platatildeo ou

Aristoacuteteles

O homem miacutetico necessita mostrar que os sentidos o espetaacuteculo

heterogecircneo do mundo com seus variados matizes natildeo eacute o verdadeiro ser mas

antes eacute um ser posto em interrogaccedilatildeo eacute um ser problemaacutetico que necessita

explicaccedilatildeo 59 explicaccedilatildeo sobre as coisas sensiacuteveis e por traacutes delas o intemporal e

o eterno

O mito poderia ser considerado como a arquitetura do universo

desenhado pelo homem Tudo estaacute diante de noacutes todas as coisas estatildeo exposta e

noacutes tambeacutem fazemos parte dessa multiplicidade de coisas que compotildee e

constituem o real

O que se pode afirmar no entanto eacute que atraveacutes do mito o homem se

relaciona com o outro pensa os deuses vive e conhece as relaccedilotildees da

comunidade que habita Define tarefas coletivas e individuais na defesa e na

guarda da comunidade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

58 O mundo dos deuses Tambeacutem chamado de topos noet s o mundo das ideacuteias 59 MORENTE 1930 97

56

A relaccedilatildeo com o coletivo serve agraves necessidades bioloacutegicas de alimento

de si e da prole da procriaccedilatildeo e da guarda do patrimocircnio geneacutetico mas serve

tambeacutem para atender com base numa estrutura psiacutequica ao espiacuterito em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal Para Hollis (1998) Quem

a pessoa eacute define-se em parte por de quem ela eacute

a quem ou com qual

propoacutesito estaacute comprometida

Nas sociedades em que possa haver um colapso de um mito central se

esvai a essecircncia psicoloacutegica preciosa O homem perde o sentido de seus

conteuacutedos miacuteticos e se reativam seus conteuacutedos primitivos onde os valores

diferenciados satildeo substituiacutedos pelos elementos de poder e prazer em uma minoria

e expondo as outras camadas ao vazio e ao desespero

O mito central eacute de tatildeo vital importacircncia que sua perda acarreta uma

situaccedilatildeo apocaliacuteptica quebrando-se o ciacuterculo maacutegico em que o homem estaacute

inserido rompendo-se a relaccedilatildeo do ego com seu criador tendo esse indiviacuteduo que

perguntar novamente e seriamente qual o sentido da vida Natildeo haacute sentido na

vida pois a vida deve ser vivida e natildeo sentida no entanto isso soacute pode ocorrer e

as perguntas serem feitas se o ciacuterculo miacutetico estiver circundando a existecircncia do

homem

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de

nossa anguacutestia individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de

um novo mito central vai resolver o problema para o indiviacuteduo e para

a sociedade60

60 EDINGER 1999 p11

57

Se o mito natildeo eacute a proacutepria ontologia a proacutepria metafiacutesica61 eacute com

certeza a saga do heroacutei chamado ser humano em sua luta ontogocircnica62 Esse

heroacutei miacutetico usa suas armas para viver a vida a ser vivida Usa suas quatro armas

o saber o ousar o querer e o calar para tal qual Faetonte obter a resposta do

deus criador mesmo que tombe em combate na luta contra a finitude humana

Faetonte com os cabelos em chamas caiu como uma

estrela cadente E o rio Poacute recebeu sua carcaccedila carbonizada ante o

olhar estupefato de seu pai As naacuteiades daquela terra depositaram

seu corpo num tuacutemulo e nele gravaram o seguinte epitaacutefio

Aqui jaz Faetonte Na carruagem de Heacutelio ele correu E

se muito fracassou muito mais se atreveu

A finitude humana vem da mesma origem da ideacuteia de universo uma

noccedilatildeo adquirida recebida como heranccedila cultural atraveacutes de sucessivas

descobertas determinaccedilotildees e invenccedilotildees promovidas pelo homem tal qual sua

noccedilatildeo de espaccedilo e de tempo

O homem primitivo natildeo vecirc o espaccedilo como algo simplesmente

continente mas como um lugar absoluto Natildeo eacute o espaccedilo ou o tempo tidos como

61 metagrave tagrave physikaacute

metafiacutesica

aleacutem das coisas fiacutesicas - estudo do ser enquanto ser e especulaccedilatildeo em torno dos primeiros princiacutepios e das causas primeiras do ser 62 ntos ente - Ontogonia Histoacuteria da produccedilatildeo dos seres (entes) organizados sobre a Terra

58

racionais ou funcionais mas como partes estruturais de uma realidade criando a

definiccedilatildeo de um acontecimento de um acircmbito63

Esse contato com o universo com a finitude e com o espaccedilo miacutetico eacute o

proacuteprio princiacutepio da experiecircncia o sentido de realidade envolvida e revestida com

siacutembolos figuras intenccedilotildees humanas sejam agradaacuteveis ou desagradaacuteveis gentis

ou aversivas com o sagrado ou o profano enfim a proacutepria experiecircncia da

realidade humana

Poreacutem o espaccedilo miacutetico primitivo ou mesmo das sociedades claacutessicas

tinham seu espaccedilo vital como o altar o espaccedilo do sagrado onde esse espaccedilo

miacutetico eacute o o verdadeiro ponto de apoio de seu pensamento porque eacute o ponto de

apoio do mundo social e do mundo espacial

64 Por esse motivo o homem miacutetico

organiza seu espaccedilo vital em torno ao redor do espaccedilo sagrado espaccedilo esse

natildeo um marco de uma existecircncia possiacutevel mas sim como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute sentido pois ali moram seus deuses moram seus

mortos seus pensamentos e desejos

Eacute nesse espaccedilo miacutetico o espaccedilo sagrado que o homem realiza seus

rituais para uma boa marcha pelo mundo eacute a aiacute que faz suas suacuteplicas realiza

seus sacrifiacutecios e sua magia propiciatoacuteria onde suas forccedilas vitais se encontram e

se concentram

Dessa forma o homem miacutetico tem deve e precisa estar sempre em

contato com seu espaccedilo tempo e acircmbito onde se encontra o outro e com ele vive

63 GUSDORF 1959 64 GUSDORF 1959 p55

59

o grupo social pois fora dessa relaccedilatildeo tecida com o grupo social o homem

reduzido a si mesmo estaacute aniquilado pois perdeu seu lugar ontoloacutegico e as

referecircncias que lhe outorgavam figura e equiliacutebrio 65 E assim encontra a morte

mesmo que no sentido figurado pois morrer miticamente eacute a cessaccedilatildeo das

relaccedilotildees com o grupo social O morto o defunto eacute aquele que se livrou de suas

obrigaccedilotildees frente agrave comunidade

66 que natildeo possui mais funccedilotildees perante a vida

(defuncto)

Vejamos o pensamento de Jung67

Mal terminei o manuscrito quando me dei conta do que

significa viver com um mito e o que significa viver sem ele [O

homem] que pensa que pode viver sem mito ou fora dele como

algueacutem sem raiacutezes natildeo tem nenhum viacutenculo verdadeiro nem com o

passado ou com a vida ancestral que continua dentro dele nem com

a sociedade humana contemporacircnea Esse seu brinquedo racional

nunca capta o lado vital

Nesse espaccedilo miacutetico eacute que se encontra o sagrado e esse sagrado eacute

tudo aquilo que se encontra sob os olhos do homem

Diz Gusdorf

65 Gusdorf1959p92 66 Gusdorf1959p92 67 apud Rollo May 1992p47

60

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao

ser toda sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da

comunidade pelo viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem

vivente a terra as coisas os seres e ainda os mortos que continuam

frequumlentando a morada de sua vida68

Viver no espaccedilo miacutetico eacute viver no sagrado pois o lugar natildeo eacute mais um

lugar e sim onde a vida acontece Ali estatildeo seus deuses suas forccedilas espirituais

os antepassados a vida o alimento etc

Os portugueses do Seacuteculo XVI ao virem para o Brasil trouxeram

consigo seu espaccedilo miacutetico e necessitaram sacralizar o novo territoacuterio construindo

imediatamente apoacutes sua chegada capelas casas ao seu estilo locais de

reuniotildees aleacutem de cristianizar o espaccedilo em que viveriam O espaccedilo eacute uma das

expressotildees da concepccedilatildeo de vida do homem da cultura do homem das relaccedilotildees

sociais Gostaria de afirmar que todos os povos desde o iniacutecio dos tempos tecircm

seu espaccedilo sagrado quando natildeo todo ele

No mundo miacutetico tudo eacute miacutetico natildeo soacute o homem a natureza eacute miacutetica

as pessoas a floresta a chuva o mar e as mareacutes os astros cada qual com sua

funccedilatildeo cada qual com sua participaccedilatildeo mas tudo fazendo parte do universo do

homem miacutetico Se desejarmos por esse motivo ver atraveacutes da razatildeo a loacutegica

disso natildeo conseguiremos pois o sentido do mito ou da vida natildeo existem pois a

vida como nos diz Campbell natildeo tem sentido pois vida natildeo eacute para ser sentida e

68 GUSDORF1959 p55-56

61

sim para ser vivida assim como natildeo eacute justa natildeo eacute certa pois eacute soacute vida e natildeo

justiccedila ou certezas

O mundo eacute um processo daquilo que creio diz o homem miacutetico Pedir

ao homem miacutetico que explique o mundo eacute o mesmo que pedir ao peixe para

explicar a aacutegua em que nada O ser miacutetico talvez tenha uma compreensatildeo mais

profunda da vida sem permitir o questionamento da racionalidade pois explicar o

miacutetico eacute saber que tudo eacute uma presenccedila real

O homem racional atende suas necessidades atraveacutes de possibilidades

conhecidas O homem miacutetico reconhece que o mundo eacute feito de possibilidades e

busca por elas mesmo natildeo as conhecendo as observa as testa e apoacutes tomar

consciecircncia delas as utiliza

O homem miacutetico sabe que natildeo estaacute sozinho pois estaacute conectado a tudo

que o cerca Ele eacute um criador efetivo do mundo infiltrando esse mundo de ideacuteias

e pensamentos Vejamos por exemplo que a Terra eacute um planeta totalmente

dominado por religiotildees Deus eacute uma forma de explicarmos as experiecircncias que

temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e transcendentais Ele eacute a

superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos aos deuses pois temos

que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa vida

Do ponto de vista antropoloacutegico-cultural passou-se de uma visatildeo do

mito como a modalidade mais primitiva que possa ser atribuiacuteda agraves cadeias de

eventos quotidianos (exemplos mito solar mitos da fecundidade da terra) para

uma visatildeo do mito como atividade fundamentalmente criativa do indiviacuteduo

humano tendo por objetivo a interpretaccedilatildeo das realidades que como as religiosas

62

ou as eacuteticas e de valores natildeo satildeo passiacuteveis de serem circunscritas nem

expressas em termos de pura racionalidade

O mito exprime valores e aspiraccedilotildees que caracterizam a vivecircncia de

certo grupo soacutecio-cultural e de qualquer maneira polarizam as suas energias

Assim por exemplo no acircmbito do judaiacutesmo o mito da justiccedila de Deus

concentrava todas as tensotildees eacuteticas e religiosas dos crentes

Essas concepccedilotildees levaram em conta dois fatos psicoloacutegicos a hipoacutetese

de estruturas inconscientes especiacuteficas os arqueacutetipos com a finalidade de captar

realidades natildeo racionais mas emocional e vitalmente importantes e a observaccedilatildeo

de que alguns grandes temas foram vividos e transmitidos sob a forma de mitos

de maneira repetitiva nas vaacuterias culturas e eacutepocas histoacutericas

Dentro da antropologia cultural e da psicologia do fenocircmeno religioso o

mito eacute visto como sendo a resultante de energias inconscientes que satildeo ativadas

por experiecircncias histoacutericas e que tecircm como finalidade a realizaccedilatildeo de um si-

mesmo individual ou de grupo de certo modo imanente a psique A origem da

ativaccedilatildeo dessas forccedilas pode estar ligada ou ser estimulada por eventos naturais

mas eacute depois atraiacuteda por personagens simboacutelicas natildeo histoacutericas (por exemplo as

vaacuterias deidades femininas que presidem os mitos da colheita dos frutos da

fecundidade etc) e que satildeo o resultado justamente das projeccedilotildees inconscientes

individuais e coletivas

Podemos considerar o mito como sendo a preacute-histoacuteria da filosofia onde

a consciecircncia humana se estrutura nas origens do conhecimento

63

A filosofia busca entender o Estado a Lei o Direito a Ciecircncia a

Tecnologia e tantos outros conhecimentos mas a filosofia quando nasce quer

resgatar o saber do mito que se esvaia na cultura grega

Conforme nos explica Joseph Campbell69 o mito vem para servir agraves

necessidades humanas no sentido de conhecer o cosmo a natureza o outro e a

si proacuteprio

Em primeiro lugar no que se refere agrave questatildeo cosmoloacutegica serve o

mito para abordar as questotildees teoloacutegicas o plano da gecircnese e da escatologia70

diz respeito a se a pessoa entende como caos ou um

absurdo o desenrolar de uma lei natural ou percebe a presenccedila de

uma inteligecircncia orientadora e a existecircncia de um plano

compreensiacutevel por traacutes do universo71

Eacute o mito a necessidade do homem de explicar com sua proacutepria visatildeo

de uma paisagem completa o iniacutecio de tudo das divindades e deidades

beneacutevolas ou maleacutevolas e dos misteacuterios insondaacuteveis que datildeo sentido ao cosmo

Onde o homem se relaciona com seus temores e sorve suas belezas

Para o homem miacutetico a vida natildeo tem sentido algum pois a vida eacute a

proacutepria experiecircncia de estar vivo de modo de nossas experiecircncias de vida no

plano puramente fiacutesico tenham ressonacircncia no interior do nosso ser e da nossa

69 apud James Hollis 1998 70 Principalmente no tocante ao tratado sobre os fins uacuteltimos do homem 71 HOLLIS 1998 18

64

realidade mais iacutentimos de modo que realmente sintamos o enlevo de estar

vivos 72

Em segundo lugar continuando o mito a servir agraves necessidades

humanas surge o sentido metafiacutesico no esforccedilo de apresentar a natureza do

mundo agrave nossa volta Qual eacute a nossa relaccedilatildeo com o que eacute arquetipicamente

chamado de A Grande Matildee de cujo ventre viemos e para cujo seio

retornaremos 73 A resposta a essa pergunta eacute a proacutepria formaccedilatildeo do mito tatildeo

numinoso 74 quanto os deuses tatildeo luminoso quanto os astros sobre a cabeccedila do

homem e tatildeo fulgurante quanto os fenocircmenos naturais

Outra alegoria miacutetica eacute a do bosque da vida para mostrar o ventre da

grande matildee do qual nascemos e muitas vezes laacute ficamos aprisionados assim nos

mostra Jung

Outro siacutembolo materno igualmente comum eacute o bosque da

vida ou a aacutervore da vida Primeiramente a aacutervore da vida pode ter

sido uma aacutervore genealoacutegica produtora de frutos consequumlentemente

uma espeacutecie de matildee tribal Inuacutemeros mitos dizem que seres humanos

nasceram de aacutervores e muitos relatam como o heroacutei havia sido

aprisionado no tronco de uma aacutervore materna como Osiacuteris morto

dentro de um cedro Adocircnis dentro do mirto etc Numerosas

divindades femininas eram adoradas sob a forma de aacutervores vindo

daiacute o culto de aacutervores e bosques sagrados Assim quando Aacutetis castra-

se sob um pinheiro ele o faz porque a aacutervore tem um significado

72 CAMPBELL 1990 p 3 73 HOLLIS1998p20 74 do latim numem = maacutegico enfeiticcedilante um efeito dinacircmico ou a existecircncia que domina o ser humano independente de sua vontade

65

materno A Juno de Teacutespia era representada por um galho a de

Samos por um prancha a de Argos por um pilar a Diana de Caacuteria por

um bloco de madeira bruta a Atena de Lindos era uma coluna polida

Tertuliano chamava a Ceres de Paros de `rudis palus et informe

lignum sine efigie (um tronco rude um pau informe sem rosto)

Ateneo informa que a Latona de Delos era um pedaccedilo informe de

madeira Tertuliano tambeacutem descreve uma Palas aacutetica como `crucis

stipes (estaca de uma cruz) Uma viga nua de pau como o proacuteprio

termo indica eacute faacutelica (JUNG 1988 sect 321)

Em terceiro lugar o mito serve ao homem miacutetico na relaccedilatildeo com o

outro para o conhecimento das relaccedilotildees da comunidade da divisatildeo de tarefas e

na defesa da coletividade na coleta na caccedila e na colheita dando a tudo isso a

forma estruturada do partilhar vivecircncias e para vivenciar a mutualidade

No entanto esse viver de forma muacutetua tambeacutem vem transgredir a lei

natural Assim novamente surge o mito a forma narrada 75 desajustada com a

realidade vivida mas que explica orienta e normatiza as relaccedilotildees que daacute uma

forma ao pensamento ou ainda uma forma de viver

Por fim em quarto lugar Hollis (1998) nos falando do pensamento de

Campbell traz ao homem miacutetico o sentido psicoloacutegico do mito o entendimento do

si-mesmo do quem eacute do de onde vem de qual seu lugar no mundo e de como

encontrar a pessoa para formar um par

75 Do grego mythus = conto palavra

66

A cultura que tiver perdido seu cerne miacutetico ou cujas

mitologias sejam muito fragmentadas e diversas cria pessoas

perdidas e assustadas que mudam de culto para culto de ideologia

para ideologia 76

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Na visatildeo junguiana tanto a histoacuteria quanto a antropologia nos ensinam

que psicologicamente a sociedade humana natildeo poderia ter sobrevivido por muito

tempo a natildeo ser que as pessoas estivessem contidas na relaccedilatildeo psicoloacutegica

dentro de um mito central e vivo

Pode ser percebido que os membros mais competentes da sociedade

mais desenvolvidos e perspicazes possuem respostas miacuteticas que satisfazem

suas perguntas existenciais

Essa minoria criativa intelectual e dominante vive em intensa harmonia

com o mito predominante Jaacute as outras camadas da sociedade seguem a direta

lideranccedila dessa minoria chegando a evitar o confronto com as questotildees miacuteticas

poupando-se da discussatildeo e seguindo diretamente a questatildeo fatiacutedica do sentido

da vida

76 HOLLIS 1998 24

67

Com a perda da consciecircncia de uma realidade

transpessoal (Deus) as anarquias interna e externa dos desejos

pessoais rivais assumem o poder 77

Jung nos formula a questatildeo como sendo o problema do homem

moderno o estado de carecircncia de mitos

Em seus estudos teve um momento em Memoacuterias sonhos e

reflexotildees78 em que coloca a si mesmo como tendo perdido o ciacuterculo maacutegico do

mito

Agora vocecirc tem a chave para a mitologia e estaacute livre para

abrir todos os portotildees da psique inconsciente Alguma coisa em mim

entatildeo sussurrou Porque abrir os portotildees E logo me surgiu a

pergunta sobre o que afinal eu havia realizado Eu tinha explicado os

mitos das pessoas do passado havia escrito um livro sobre o heroacutei o

mito em que o homem sempre viveu Mas em que mito vive o homem

hoje em dia No mito cristatildeo poderia ser a resposta Vocecirc vive nele

Perguntei a mim mesmo Para ser honesto a resposta foi natildeo Para

mim natildeo eacute pautado nele que vivo Entatildeo natildeo temos mais nenhum

mito Natildeo eacute evidente que natildeo temos mais nenhum mito Mas

entatildeo qual eacute o seu mito o mito em que vocecirc efetivamente vive

Nesse ponto o diaacutelogo comigo mesmo ficou desconfortaacutevel e parei de

pensar Eu chegara a um beco sem saiacuteda79

77 EDINGER 1999 10 78 JUNG 1975 79 JUNG 1975 171

68

Disse ainda Jung que o mito leva o homem em uma tendecircncia a priori

ingecircnua a acreditar e levar a seacuterio todas as manifestaccedilotildees miacuteticas do

inconsciente e de acreditar que a natureza do proacuteprio mundo isto eacute as verdades

definitivas estejam encerradas no mito Essa concepccedilatildeo natildeo eacute de todo destituiacuteda

de fundamento visto que as manifestaccedilotildees espontacircneas do inconsciente

exprimem uma psique que nem sempre se identifica com a consciecircncia e muitas

vezes se distancia dela tratando-se de uma atividade psiacutequica natural e natildeo

aprendida que independe de nosso livre arbiacutetrio

As formas arquetiacutepicas que surgem da raiz do pensamento humano satildeo

necessaacuterias para que o homem possa determinar a existecircncia do mundo e

conhececirc-lo Eacute a psique primitiva essa raiz que se pode afirmar natildeo conhecia a si

mesma Essa consciecircncia soacute pode ser formada a partir da evoluccedilatildeo do homem

desde sua origem ateacute os tempos histoacutericos

Ainda hoje conhecemos certas tribos primitivas cuja

consciecircncia se distancia muito pouco do lado tenebroso da psique

primiacutegena e mesmo entre os homens civilizados podemos encontrar

resquiacutecios do estado primordial80

ABRAHAM em Traum und mytus (apud JUNG 1989 21) disse

entender ser o mito uma parte superada da vida espiritual infantil do povo Assim

o mito eacute uma parte preservada da vida espiritual infantil do povo e o sonho o mito

80 JUNG 1988 89

69

do indiviacuteduo Essa citaccedilatildeo se prende ao fato de que muitos teoacutericos acreditam ser

esta a real concepccedilatildeo psicoloacutegica de mito Realmente podemos ver nas crianccedilas

que a tendecircncia na formaccedilatildeo de mitos corre ao lado de suas fantasias

transformadas em realidade fantasias essas revestidas de histoacuterias No entanto

afirmar que o mito procede da vida espiritual infantil do povo chega a parecer

absurdo pois na verdade eacute o mito a produccedilatildeo mais adulta da humanidade

primitiva O homem que pensava e vivia nas cavernas que vivia no mito era uma

realidade adulta pois o mito natildeo eacute uma fantasia pueril mas um dos requisitos

mais importantes da vida primitiva 81

O mito eacute a cultura profana ou sagrada eacute cultura cultura por outro lado

eacute educaccedilatildeo assim a funccedilatildeo dos mitos pode ser vista como uma forma

estruturada de culturalmente se falar dos seres sobrenaturais perante a histoacuteria do

homem essa histoacuteria como se trata da realidade do homem miacutetico se constitui

como absoluta verdade pois se referem agraves realidades sagradas desse homem O

mito cria o mundo estabelece como se iniciou e como terminaraacute contanto

narrativamente escrita ou atraveacutes da tradiccedilatildeo oral como algo surgiu na viva do

homem miacutetico

O mito revela e revelando nos daacute a oportunidade da realizaccedilatildeo

misteriosa de controlar a realidade atraveacutes do rito o qual promove o contato com a

divindade Todos estamos contidos e contemos o mito pois em momentos de

extrema dor ou prazer sacralizamos o que sentimos e por mais ceacuteticos que

81 JUNG 1989 p21

70

possamos ser sentimos a presenccedila do mito e vivenciamos em nossa psique os

resultados do poder criador do mito

Sendo ainda cultura o mito pode ter como poder criador associado ao

tempo a eacutepoca ao produto social de um grupo as vivecircncias que se alteram e se

propagam no inconsciente coletivo determinando as forccedilas que manteacutem o mito

vivo gerando comportamentos religiosos morais sociais e poliacuteticos desde a

coleta da caccedila da construccedilatildeo de um barco de uma habitaccedilatildeo ateacute a postura

preponderante de um chefe de estado perante a naccedilatildeo que governa Eacute algo maior

que a racional inteligecircncia do homem de nosso seacuteculo em detrimento das

especulaccedilotildees metafiacutesicas ou teoloacutegicas

Toda e qualquer tentativa de explicar um mito faz com que uma

barreira inexplicaacutevel surja pois a proacutepria explicaccedilatildeo do mito vive dentro do mito

pois partes de um mito natildeo podem ser explicadas pois ele em si eacute todo

A tentativa de explicar um mito eacute feita com base em leis mutaacuteveis das

ciecircncias enquanto ele eacute baseado em leis estaacuteveis da natureza O animal

reconhece seu cio sem que se necessite ensinaacute-lo desloca-se para copular sem

que necessite de mapas luta por seu patrimocircnio geneacutetico sem aulas de

biodiversidade e as estrelas essas se encontram laacute para o homem miacutetico sem

que ningueacutem possa explicar como laacute chegaram

Por fim o mito eacute o homem e o homem eacute o mito natildeo como parte um do

outro mas ontologicamente na relaccedilatildeo do vir-a-ser Natildeo porque nada vem-a-ser

71

senatildeo o que pode ser mas o vir-a-ser depende de modelos ou formas garantidos

pelo Ser e por sua manifestaccedilatildeo 82 e o mito eacute a manifestaccedilatildeo desse Ser

82 CRIPPA1975p183

72

CAPIacuteTULO 3 - O MITO CRISTAtildeO

Para que o leitor tenha uma visatildeo mais profunda sobre o embate de

mitos que ocorreu no seacuteculo XVI com a chegada dos portugueses ao Brasil e

especificamente com a catequese jesuiacutetica vejo como de suma importacircncia que

seja dedicado ao capiacutetulo deste trabalho exclusivamente ao mito cristatildeo

Falei direta e especificamente das visotildees filosoacuteficas antropoloacutegicas e

psicoloacutegicas sobre o conceito de mito

Como natildeo tratar entatildeo o mito que deu origem ao estudo do objeto

desta pesquisa que se trata do embate de mitos durante o periacuteodo quinhentista

Quem eacute o portuguecircs que chega ao Brasil daquele periacuteodo que mitos

abriga em sua alma quais os caminhos direcionados ao mito da divindade como

explica suas impotecircncias suas crenccedilas seus valores religiosos pois satildeo esses

valores trazidos da Santa Feacute Catoacutelica que vatildeo ser impostos aos brasis desde a

chegada de Cabral

Para tal para que possa responder perguntas que satildeo minhas e

acredito sejam do leitor entrei em um campo muito profundo quer no sentido

psicoloacutegico da anaacutelise desse mito quer em levantar polecircmicas sobre os siacutembolos

de transformaccedilatildeo cultural que o mito cristatildeo tem gerado desde os mais remotos

tempos

73

Assim fui muitas vezes pesquisar na Biacuteblia e nos conceitos junguianos

como esse mito participou e participa da vida daqueles que seguem como mito

como arqueacutetipo principal de suas vidas a vida de Cristo

Em primeiro lugar busquei entender um pouco desse homem

anunciado pelo Anjo do Senhor e que no caminho de sua individuaccedilatildeo morre

crucificado apoacutes a aceitaccedilatildeo de seu destino em relaccedilatildeo a Deus83

Em seguida mais perguntas surgiram Ao falar do Homem ao falar do

Filho minha busca vai em direccedilatildeo ao Pai e por consequumlecircncia ao Espiacuterito Santo

onde tento entender e interpretar o mito da Trindade84

Mas o Filho de Deus fez coisas na terra entre elas fazer gerar uma

Igreja e uma Santa Feacute onde seu siacutembolo mais forte eacute a Santa Ceia que deu

origem agrave missa Busco aiacute outros siacutembolos cristatildeos outros mitos outros elementos

que foram gerados por uma cultura de uma eacutepoca e que foram transformados em

Lei85

Busco ainda a concepccedilatildeo natildeo maniqueiacutesta de Bem e Mal na visatildeo do

mito cristatildeo e condensando esses conhecimentos consigo entatildeo falar do cristatildeo

portuguecircs daquele que leva esses mitos esses arqueacutetipos esses siacutembolos de

transformaccedilatildeo esses siacutembolos culturais ao indiacutegena brasileiro que se encontrava

vivendo pelos seus proacuteprios mitos e de suas proacuteprias tradiccedilotildees por seus proacuteprios

83 vide apecircndices 2 3 e 4 84 idem 85 idem

74

arqueacutetipos e simbologias miacuteticas que tal como os portugueses tal como os

jesuiacutetas buscavam suas proacuteprias almas e os sentidos para suas vidas

De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado do proacuteprio Espiacuterito Santo e que traria aos brasis os

bons costumes a feacute em si a cura de todos os males da alma Do outro lado

homens livres que possuiacuteam seus costumes como bons que possuiacuteam feacute em

seus mitos e explicaccedilotildees da finitude de suas vidas sem que entendesse que

possuiacuteam males em suas almas ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao

inimigo do Homem que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a

realidade

O cristianismo do seacuteculo XVI natildeo tinha como entender que a verdade

acabada revelada e imposta natildeo abria o coraccedilatildeo do homem branco ou de pele

dourada para as reais coisas da palavra de Deus Estas palavras nascem

exatamente no coraccedilatildeo do homem pois satildeo elas que explicam e levam o homem

em busca da individuaccedilatildeo do contato direto com seus niacuteveis mais inconscientes

lugares esses em que realmente se ouve a voz da divindade seja ela qual for

O homem ao crer sem questionar natildeo reflete sobre suas duacutevidas natildeo

questiona seus mitos e seus dogmas natildeo muda natildeo altera o que pensa do

inexplicaacutevel mas o homem que pensa suas ideacuteias sempre teraacute a duacutevida como

bem recebida pois eacute ela que permite um conhecimento mais perfeito e mais

seguro de si e daquilo que natildeo consegue explicar

Jung nos coloca em sua obra que como estudioso chega a ver a

religiatildeo como um filho natural do inconsciente humano que vecirc nas vaacuterias e

75

improvaacuteveis afirmaccedilotildees religiosas movimentos psicoloacutegicos do processo universal

de renovaccedilatildeo e amadurecimento humanos mas que para isso a duacutevida o

questionamento sobre as verdades reveladas devem estar sendo pensadas pelo

homem

Mas nos quinhentos o homem portuguecircs natildeo pensava seus mitos

religiosos os vivia e por esse motivo podia de forma impositiva infligir sua feacute

seus bons costumes suas crenccedilas atraveacutes do poder de fogo de canhotildees do

poder dos sacramentos do poder do teatro e da catequese Seu modo miacutetico de

ver o mundo era o correto o uacutenico afinal como dizia Vicente de Lerins86 norma de

feacute eacute aquilo que foi acreditado sempre por todos e em toda parte No entanto natildeo

havia todos para os catoacutelicos senatildeo os catoacutelicos Protestantes eram

considerados tatildeo hereges quanto qualquer outro que natildeo catoacutelico Natildeo havia

parte alguma senatildeo aquela em que os catoacutelicos viviam o restante do mundo era

para ser transformado colonizado submetido e convertido gerando uma

verdadeira doenccedila na alma desses homens miacuteticos que habitavam estas terras no

seacuteculo XVI

86 Vicente de Lerins foi um antigo teoacutelogo citado diversas vezes por Jung em sua obra como sendo seu pensamento sobre a feacute uma das manifestaccedilotildees mais felizes da ortodoxia psicoloacutegica In Dourley 1987 p29

76

CAPIacuteTULO 4 - COMO O EUROPEU CRISTAtildeO COMPREENDIA OS INDIacuteGENAS E A

CONCEPCcedilAtildeO QUE TINHAM DA VIDA DESSES BRASIS

Esta terra poreacutem tinha dono belicoso e baacuterbaro87

Para que pudesse realizar esta parte deste trabalho tive que buscar

informaccedilotildees de distintas formas Em primeiro lugar houve uma preocupaccedilatildeo em

levantar as fontes em que poderia pesquisar fontes essas que soacute poderiam ser

de autores do periacuteodo em que me fixei para levantar as informaccedilotildees

Esses homens autores de alguns documentos me dariam sempre

visotildees cristatildes brancas portuguesas ou espanholas de como os indiacutegenas

concebiam suas vidas

Muitas vezes pude encontrar claros relatos dessas vidas mas em outras

me restava a interpretaccedilatildeo agraves vezes pelo negativo das narrativas de como essas

vidas aconteciam

Claro muitos documentos mostravam com repuacutedio e rechaccedilo os

costumes que busquei entender outros mais romacircnticos mostravam seres

edecircnicos em alguns momentos e bestas feras em outros Bastava que o indiacutegena

87 CALMON 1963 vol 2 p321

77

fosse contra de alguma forma ao contato ao convencimento que lhe tentavam agrave

catequese ou agrave conversatildeo proposta para que passasse de um extremo para outro

de adacircmicos em democircnios como fez Anchieta em seus autos com Guaixaraacute e os

outros diabos88

Percebo em cartas de Noacutebrega de Anchieta ou de Navarro momentos

de pura consternaccedilatildeo do modo de viver dos brasis para em seguida mostrar o

lado demoniacuteaco que carregavam os indiacutegenas obviamente em suas visotildees

europeacuteias e jesuiacuteticas dentro do mito cristatildeo Noacutebrega mais animado em suas

primeiras cartas e mais desgostoso e entristecido com sua missatildeo ao final

Navarro mais intelectual em seus conceitos e descriccedilotildees e em Anchieta um relato

mais duacutebio conforme a tribo da qual escrevia

Busquei Cardim Caminha Frei Vicente do Salvador Calmon

Capistrano de Abreu Gacircndavo e no de gestis Mendi de Saa

de Anchieta e em

todos tive que proceder da mesma forma agraves vezes relatando agraves vezes

interpretando pelo negativo

Pude encontrar ainda a tradiccedilatildeo oral com a qual convivi durante anos e

me senti agrave vontade em ler com isso os relatos de Kakaacute Weraacute Jecupeacute89 e

compreender algumas de suas informaccedilotildees

Por essa com-vivecircncia com tribos como Jivaros (com liacutengua proacutepria e

o espanhol) como Pataxoacutes no Sul da Bahia com Charruas na regiatildeo das missotildees

88 Auto de Satildeo Lourenccedilo o qual seraacute tratado mais adiante neste trabalho 89 Kakaacute Weraacute Jecupeacute

iacutendio txucarramatildee autor dos livros A Terra dos mil povos e Tupatilde Tenondeacute editados pela Editora Fundaccedilatildeo Peiroacutepolis - SP

78

e com verdadeiros iacutendios gauacutechos montados

vestidos em seus quiacutechua xiri

pac 90 dos pampas argentinos e da fronteira do Brasil sentia que podia ler relatos

de indiacutegenas de hoje pois entendia de tradiccedilatildeo oral afinal eu mesmo tive

centenas de ensinamentos atraveacutes dessa forma de educaccedilatildeo

Conheci indiacutegenas de diversos tipos e costumes mas todos mesmo

bastante transmutados por nossa cultura ainda livres ainda aguerridos muitos

ainda indolentes e outros prontos para a guerra mas nenhum deles menos

miacuteticos que noacutes menos inteligentes que noacutes menos carentes de explicaccedilotildees

sobre a finitude da vida humana e guardadores ferrenhos de seus costumes

crenccedilas e tradiccedilotildees

Tento assim neste capiacutetulo descrever daqui a diante todo esse estudo

sobre como os indiacutegenas concebiam suas vidas em meio ao Seacuteculo XVI

No entanto natildeo podendo perder o foco desta proposta o embate de

mitos por mais que nas descriccedilotildees encontradas nas fontes de que os indiacutegenas

viviam suas vidas surgissem termos como liberdade ou feras a serem

amestradas ou natildeo possuem Deus no coraccedilatildeo natildeo posso deixar de entender

que eram esses termos esses conceitos meras interpretaccedilotildees culturais de quem

via e relatava Vou trabalhar com esses termos conceituais

90 Do esp chiripaacute lt quiacutechua xiri pac para o frio S m Bras S Vestimenta sem costura outrora usada pelos gauacutechos habitantes do campo e que consistia num metro e meio de fazenda que passando por entre as pernas era presa agrave cintura por uma cinta de couro ou pelo tirador

79

Vejamos Cardim91 nas primeiras linhas de Princiacutepio e Origem dos iacutendios

do Brasil e seus costumes

Este gentio natildeo tem conhecimento algum de seu creador nem

de cousa do Ceacuteo nem se ha pena nem gloria depois desta vida

e portanto natildeo tem adoraccedilatildeo nenhuma nem cerimonias ou

culto divino mas sabem que tecircm alma e que esta natildeo morre e

depois da morte vatildeo a uns campos onde ha muitas figueiras ao

longo de um formoso rio e todas juntas natildeo fazem outra cousa

senatildeo bailar

Vamos ler agora maino i ypi kue apresentado em Tupan Tenondeacute92

Ntildeande Ru Pa-pa Tenondeacute Gete ratilde ombo-jera Pytuacute yma gui

Nosso Pai Primeiro criou-se por si mesmo na Vazia Noite iniciada

Yvaacutera pypyte Apyka apuia i Pytuacute yma mbyte re oguero-jera

As sagradas plantas dos peacutes O pequeno assento arredondado Do Vazio Inicial Enraizou seu desdobrar (florescer)

Yvaacutera jeckaka mba ekuaaacute Yvaacutera rendupa Yvaacutera popyte yvyra i Yvaacutera popyte rakatilde poty Oguero-jera Ntildeamandui Pytuacute yma mbyte re

Ciacuterculo desdobrado da sabedoria inaudiacutevel Fluiu-se divino Todo Ouvir As divinas palmas das matildeos portando o bastatildeo do poder As divinas palmas das matildeos feito ramas floridas Tramam o Imanifestado na dobra de sua evoluccedilatildeo no meio da primeira noite

Ntildeande Ru Ntildeamandu tenondeacute gua O yva raacute oguero-jera eyacute mboyve i Pytuacute A e ndoechaacutei Kuaray oiko eyacute ramo jepe

Nosso Pai O Grande Misteacuterio o primeiro antes de haver-se criado no curso de sua evoluccedilatildeo sua futura morada sustenta-se no Vazio

91 CARDIM 1980-p87 92 JECUPEacute2001 p25-31

a liacutengua apresentada ao lado do texto traduzido eacute o abantildeeenga considerada como a liacutengua ancestral Tupi de onde saiacuteram os dialetos que hoje existem dos Chiripaacute dos Kaiowaacute e dos Mbyaacute aleacutem do guarani paraguaio

80

O py a jechaka re A e oiko oikovy O yvaacutera py mba ekuaaacute py Antildeembo-kuaray i oiny

Antes que existisse sol Ele existia pelo reflexo de seu proacuteprio coraccedilatildeo E fazia servir-se de sol dentro de sua proacutepria divindade

Como podemos concluir fazendo uma comparaccedilatildeo entre os dois textos

o de Cardim considerado fonte histoacuterica e o outro de Jecupeacute uma traduccedilatildeo de

fonte oral da tradiccedilatildeo guarani tinham sim os indiacutegenas um conhecimento de seu

criador Apenas o mito eacute outro apenas os arqueacutetipos satildeo outros apenas a forma

de explicar o inexplicaacutevel eacute outra

O andarem nus por exemplo Todas fontes nos mostram o quanto eram

esses homens e mulheres livres e inocentes por andarem nus portando muitas

vezes sua arte plumaacuteria que os diferenciava de uma tribo para outra pinturas de

siacutembolos e cores Mas seria essa forma de viver realmente uma questatildeo de

liberdade Natildeo poderiacuteamos considerar a falta de roupa como uma falta de

conhecimento do tecer e da natildeo necessidade de tantas roupas conforme

estabelecido no modo de viver do portuguecircs cristatildeo

Havia pelo que podemos encontrar vaidade entre os indiacutegenas mas

com conceitos outros de mostrarem suas necessidades de guarda de patrimocircnio

geneacutetico que tal qual os paacutessaros seus vizinhos danccedilavam para suas mulheres

emplumados e coloridos mostrando seus dotes suas honras sua forccedila e sua

importacircncia dentro da hierarquia tribal

Poreacutem para saiacuterem galantes usatildeo de vaacuterias invenccedilotildees

tingindo seus corpos com certo sumo de uma aacutervores com que ficam

81

pretos dando muitos riscos pelo corpo braccedilos etc a modo de

imperiaes 93

Ou ainda como Caminha num dos relatos mais afamados

A feiccedilatildeo deles eacute serem pardos maneira de avermelhados

de bons rostos e bons narizes bem-feitos Andam nus sem nenhuma

cobertura Nem estimam em cobrir ou de mostrar suas vergonhas e

nisso tecircm tanta inocecircncia como em mostrar o rosto E um deles

trazia por debaixo da solapa de fonte a fonte para detraacutes uma

espeacutecie de cabeleira de penas de ave amarela que seria do

comprimento de um coto mui basta e mui cerrada que lhe cobria o

touticcedilo e as orelhas94

Esta eacute uma das visotildees mais neutras da nudez indiacutegena mas vejamos

outra

aqui onde as mulheres andam nuas e natildeo sabem se

negar a ningueacutem mas ateacute elas mesmas cometem e importunam os

homens jogando-se com eles nas redes porque tecircem por honra

dormir com os Cristatildeos 95

93 CARDIM 1980-p90 94 CAMINHA

p3

Carta de pero Vaz de Caminha

A certidatildeo de nascimento do Brasil

Bradesco

Brasil 500 anos- 2000 e tb CALMON 1963- Vol I p67 95 ANCHIETA Cartas 1988 p78 Carta ao Padre Mestre Inaacutecio de Loiola julho 1554

82

Ou ainda na visatildeo de Noacutebrega

Parece-nos que natildeo podemos deixar de dar a roupa que

trouxemos a estes que querem ser christatildeos repartindo-lh a ateacute

ficarmos todos eguaes com elles ao menos por natildeo escandalisar aos

meus Irmatildeos de Coimbra si souberem que por falta de algumas

ceroulas deixa uma alma de ser christatilde e conhecer a seu Creador e

Senhor e dar-lhe gloria96

Ou ainda

Tambeacutem peccedila Vossa Reverendissima algum petitoacuterio de

roupa para entretanto cobrirmos estes novos convertidos ao menos

uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religiatildeo Christatilde

porque vecircm todos a esta cidade aacute missa aos domingos e festas que

fazem muita devoccedilatildeo e vecircm resando as oraccedilotildees que lhes ensinamos

e natildeo paree honesto estarem nuas entreos Christatildeos na egreja e

quando as ensinamos97

Assim somente uma forma de olhar de cima de que concepccedilatildeo se

analisa define de forma diferente o costume do outro

Podemos pegar mais um exemplo de como olhar um costume o

casamento

Entre eles ha casamentos poreacutem ha muita duvida se satildeo

verdadeiros Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar

contrario e preserverava virgem ateacute que o tomasse e matasse

correndo-lhe primeiro suas festas por espaccedilo de dous ou tres annos a

96 NOacuteBREGA 1988 P74 Carta ao Padre Mestre Simatildeo Rodrigues de Azevedo - 1549 97 NOacuteBREGA 1988 p85 Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549

83

mulher da mesma maneira natildeo conhecia homem ateacute lhe natildeo vir regra

depois da qual lhe faziatildeo grandes festas ao mesmo tempo de lhe

entregarem a mulher faziatildeo grandes vinhos e acabada a festa ficava

o casamento perfeito dando-lhe uma rede lavada e depois de

casados comeccedilavatildeo a beber poque ateacute ali natildeo o consentiatildeo seus

pais ensinando-lhes que bebessem com tento e fossem

considerados e prudentes em seu falar para que o vinho natildeo lhes

fizesse mal nem falassem cousas ruins e entatildeo com uma cuya lhe

davatildeo os velhos antigos o primeiro vinho e lhe tinhatildeo a matildeo na

cabeccedila para que natildeo arrevessassem porque se arrevessava tinhatildeo

para si que natildeo seria valente e vice-versa98

Entendo com este texto de Cardim que existe um tanto de moral de

regras de ensinamentos e de respeito muacutetuo entre as pessoas de uma mesma

tribo inclusive com preocupaccedilatildeo paterna de bons costumes Poreacutem me parece

na proacutexima citaccedilatildeo de autoria de Noacutebrega que natildeo era bem assim que ele via a

relaccedilatildeo de casamento pois os brancos e europeus natildeo seguiam essa mesma

visatildeo de um casamento verdadeiro entre eles proacuteprios como faziam os

indiacutegenas Vejamos

Nesta terra ha um grande peccado que eacute terem os

homens quase todos suas Negras por mancebas e outras livres que

pedem aos Negros por mulheres segundo o costume da terra que eacute

98 CARDIM 1980-p88

84

terem muitas mulheres E estas deixam-n as quando lhes apraz o que

pe grande escandalo para a nova Egreja que o Senhor quer fundar99

Anchieta tambeacutem natildeo vecirc com bons olhos o costume do casamento

indiacutegena mesmo com as regras intriacutensecas daquela cultura pois olhando de cima

de seu mito cristatildeo natildeo pode admitir as relaccedilotildees de casais que se formam nas

tribos Vejamos

contraiacutedo matrimocircnio com os mesmos parentes e

primos se torna dificiacutelimo se por ventura queremos admiiacute-los ao

batismo achar mulher que por causa do parentesco de sangue possa

ser tomada por esposa O que natildeo pequeno embaraccedilo nos traz

porquanto natildeo podemos admitir a receber o batismo aacute que se

conserva manceba pois satildeo de tal foacuterma barbaros e indocircmitos que

parecem aproximar-se mais a natureza das feras do que aacute dos

homens100

Mais um ponto para que possamos entender os costumes dos brasis eacute

o de comer carne humana a antropofagia tatildeo apontada em todos os relatos e

cartas e por todos os historiadores do periacuteodo

Ficou quase que declarado de que os indiacutegenas se alimentavam de

carne de seus contraacuterios como se pudesse falar que comiam carne no sentido

alimentar no sentido de sobrevivecircncia da mesma forma que caccedilavam pescavam

ou colhiam frutos e raiacutezes

99 NOacuteBREGA 1988 p79 - Carta ao Padre Mestre Simatildeo- 1549 100 ANCHIETA- Cartas 1988p55 Carta de Piratininga 1554

85

Haacute que se entender a ritualiacutestica que envolvia a antropofagia Para

tanto eacute importante tambeacutem que se fale um pouco do costume de guerrear

Os indiacutegenas mais aguerridos tinham como orientaccedilatildeo alimentar nunca

comerem animais lentos ou fracos pois esses atributos passariam a fazer parte de

suas personalidades atributos esses que consideravam sobremaneira como

negativos101 Comiam para esse fim animais raacutepidos ferozes perigosos

audazes espertos e claro o inimigo aprisionado em uma batalha

A antropofagia natildeo alimentava mas dava de uma forma ritualiacutestica a

possibilidade da aquisiccedilatildeo dos atributos positivos do inimigo Ao comer a carne de

um guerreiro valente honrado capaz dominante em sua tribo acreditava por

seus mitos estar adquirindo esses atributos neste caso considerados positivos

Comer carne humana de um guerreiro vencido e aprisionado tinha portanto um

sentido miacutetico

A documentaccedilatildeo disponiacutevel natildeo deixa nenhuma duacutevida a

respeito do fim do aprisionamento de inimigos ele natildeo estava

subordinado a motivos fisioloacutegicos a necessidade de

aprovisionamento regular de carne humana destinada agrave alimentaccedilatildeo

Os Tupinambaacute praticavam a antropofagia sob a forma ritual (apesar

de alguns cronistas pretenderem insinuar o contraacuterio) de modo que a

ingestatildeo de carne dos inimigos sacrificados possuiacutea um significado

simboacutelico e maacutegico 102

101 Podemos ver uma descriccedilatildeo completa em FERNANDES 1970- p43 102 FERNANDES 1970- p47

86

A morte daquele que iria ou foi comido tambeacutem tinha um valor para o

proacuteprio sacrificado visto que morrer dessa forma tambeacutem significava honra pois

ser enterrado para que os vermes o comessem era ser considerado um fraco e

natildeo um guerreiro

Assim as lutas as guerras eram lutas bioacuteticas e necessaacuterias para a

sobrevivecircncia mas tambeacutem pelos seguintes motivos

A aplicaccedilatildeo e treinamento dos conhecimentos de caccedila utilizando

a cilada e o rastrear e perseguir como forma de ataque

Para a guarda do patrimocircnio geneacutetico roubando mulheres

melhores de outra tribo para que filhos melhores pudessem ser

fecundados em casamentos exogacircmicos

Para a pilhagem de conhecimentos como o da cestaria ou da

ceracircmica

Para garantia ou disputa de um espaccedilo ou territoacuterio

ecologicamente mais pleno de possibilidades de alimento da prole

e da tribo em si

Para a pilhagem de viacuteveres em tempos de escassez de recursos

naturais ou de aprovisionamento de utilidades

Como rito de passagem para os mais jovens tornarem-se homens

no sentido adulto de sua masculinidade (avaacute ou tujuaacutee) o que

poderia tornaacute-lo mais atrativo para as mulheres mais atrativas

onde novamente surge a guarda do patrimocircnio geneacutetico

87

Como forma de aprisionar guerreiros que poderiam ser trocados

por viveres ou territoacuterios mais bioacuteticos

A guerra como forma de vinganccedila

Todo indiacutegena estava pronto para lutar Uns mais agressivos outros

mais paciacuteficos mas todos tinham a necessidade belicosa de se defrontar com

inimigos em seus trajetos por territoacuterios que lhe pertenciam ou em incursotildees por

territoacuterios alheios

Talvez por esse motivo Noacutebrega olhasse as guerras indiacutegenas da

seguinte maneira

Fazem guerra uma tribu a outra a 10 15 e 20 leguas de

modo que estatildeo todos entre si divididos Se acontece aprisionarem

um contraacuterio na guerra conservam-o por algum tempo datildeo-lhe por

mulheres suas filhas para que o sirvam e guardem depois do que o

matam com grande festa e ajuntamento dos amigos e dos que moram

ali perto e si deles ficam filhos os comem ainda que sejam seus

sobrinhos e irmatildeos declarando aacutes vezes as proacuteprias matildees que soacute os

paes e natildeo a matildee tecircm parte nellesSi matam a um na guerra o

partem em pedaccedilos e depois de moqueados os comem com a

mesma solemnidade e tudo isto fazem com um odio cordial que tecircm

um do outro e nestas duas cousas isto eacute terem muitas mulheres e

matarem os inimigos consiste toda a sua honraNatildeo guerreiam por

avareza porque natildeo possuem de seu mais do que lhes datildeo a pesca

a caccedila e o fructo que a terra daacute a todos mas soacutemente por odio e

88

vinganccedila sendo tatildeo sujeitos a ira que si acaso se encontram em o

caminho logo vatildeo a pau aacute pedra ou dentada103

Muito se pode falar do costume de guerrear e da antropofagia como

magia propiciatoacuteria mas soacute esse assunto daria oportunidade de toda uma nova

tese

Dessa forma continuando com a proposta de mostrar como os brasis

concebiam suas vidas na visatildeo do cristatildeo europeu apresento outros pontos dos

costumes e outras comparaccedilotildees culturais

Falo agora da conceituaccedilatildeo de democircnio

A histoacuteria do Diabo confunde-se com a histoacuteria do proacuteprio

Cristianismo era necessaacuteria para a coletividade cristatilde a existecircncia e

a encarnaccedilatildeo do Mal Era preciso que fosse visto tateado tocado

para que o Bem surgisse como a graccedila suprema

O Belo e o Divino

em oposiccedilatildeo ao Horriacutevel e Demoniacuteaco104

Se pegarmos apenas pela definiccedilatildeo temos que a palavra democircnio que

obviamente natildeo existia no vocabulaacuterio de qualquer tribo indiacutegena do Brasil do

Seacuteculo XVI tem sua origem no grego daimoacutenion

e mais tarde do latim

daemonium termo originaacuterio nas crenccedilas da Antiguidade e no politeiacutesmo que

significaria o gecircnio criador fosse ele bom ou mal e que presidia o caraacuteter e o

destino de cada indiviacuteduo Surge no entanto no judaiacutesmo e por consequumlecircncia no

103 NOacuteBREGA 1988p90-91 carta ao Dr Navarro seu Mestre em Coimbra- 1549 104 NOGUEIRA 2000 P103

89

cristianismo com a definiccedilatildeo de anjo mau o qual apoacutes rebelar-se contra Iahweh

foi precipitado no inferno e busca a perdiccedilatildeo da humanidade

Pela didaacutetica da catequese trazer essa definiccedilatildeo do democircnio ou do

Diabo agraves mentes indiacutegenas se fazia necessaacuterio pela pedagogia do terror que se

impunha agraves mentes desavisadas da existecircncia do Bem e do Mal dos cristatildeos

chegando mesmo a ser considerado no Teatro de Anchieta como um certo prazer

esteacutetico na arte de representaccedilatildeo de seus autos fazendo com que indiacutegenas tal

qual o imaginaacuterio cristatildeo acreditasse na importacircncia grandiosa de Satatilde o

Priacutencipe do Mundo na mente dos religiosos cristatildeos aquele que lutava contra a

verdade e a vida

Claro que o indiacutegena tinha noccedilatildeo do Bem e do Mal Tudo aquilo que era

contra seu prazer era o mal e a favor o bem O homem natural e espontacircneo soacute

se move por prazer ou pela dor e o indiacutegena era o homem espontacircneo no seacuteculo

XVI era o homem natural onde guerrear era prazer comer a carne de seu

inimigo era prazer atacar uma tribo para roubar uma fecircmea de outra tribo era

prazer ser belicoso e baacuterbaro na opiniatildeo dos cristatildeos era prazer portanto era o

bem pois para o homem natural Bem e Mal satildeo apenas pontos de referecircncia

Por outro lado existiam na cultura os espiacuteritos do mal isto eacute aqueles

que lhes levava o prazer a comida a caccedila a aacutegua lhes negava a chuva ou fazia

morrer aqueles a quem amavam Esses espiacuteritos eram o Mal Esses eram

Anhangaacute Anhanguumlera (Anhangaacute velho) Taguaigba o Mboy-tataacute105 Curupira106 ou

105 Mboy-cobra+tataacute- fogo = cobra de fogo tambeacutem conhecido como Baetataacute maetataacute ou boitataacute

90

Caipora107 que lhes impedia a caccedila afastando os animais que lhes dariam de

comer caso matasse animais aleacutem da conta necessaacuteria para sua sobrevivecircncia

Curupira era o Mal Curupira era o Bem O que se sabia eacute que era o

protetor da matas A floresta e todos que nela habitavam estavam sob sua

vigilacircncia constante

Por isso antes das grandes tempestades ouve-se bater

nos troncos das aacutervores Eacute o Curupira verificando se elas podem

resistir ao furacatildeo que se avizinha para em caso contraacuterio avisar os

moradores da mata do perigo 108

Anchieta fala desses democircnios em sua carta datada do fim de maio de

1560109 acreditando neles como acreditava em seus proacuteprios democircnios

Eacute cousa sabida e pela boca de todos corre que ha certos

democircnios a que os Brasis chamam corupira que acometem sos

Indios muitas vezes no mato datildeo-lhes accediloites machucam-os e

matam-os Satildeo testemunhas disto os nossos Irmatildeos que viram

algumas vezes os mortos por elesPor isso costumam os Indios

deixar em certo caminho que por aacutesperas brenhas vai ter ao interior

das terras no cume da mias alta montanha quando por caacute passam

penas de aves abanadores flechas e outras cousas semelhantes

como uma espeacutecie de oblaccedilatildeo rogando fervorosamente aos curupiras

que natildeo lhes faccedilam mal

106 de curu-corruptela de curumim + pira = corpo corpo de menino 107 Caipora do tupi-guarani caaacute mato e pora habitante 108 httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905 109 ANCHIETA- Cartas 1988p138 Carta de S Vicente - 1560

91

Anchieta fala do igpupiaacutera110

Ha tambeacutem nos rios outros fantasmas que chamam

Igpupiaacutera isto eacute que moram n agua que matam do mesmo aos Indios

Natildeo longe de noacutes ha um rio habitado por Cristatildeos e que os Indios

atravessavam outrora em pequenas canocircas que fazem de um soacute

tronco ou de corticcedila onde eram muitas vezes afogados por eles

antes que os Cristatildeos para laacute fossem

Conta ainda sobre o Macuteboy-tataacute111

Ha tambeacutem outros maximegrave nas praias que vivem a maior

parte do tempo junto ao mar e dos rios e satildeo chamados de baetataacute

que quer dizer cousa de fogo o que eacute o mesmo como se dissesse o

que eacute todo fogo Natildeo se vecirc outra cousa senatildeo um facho cintilante

correndo daqui para ali acomete rapidamente os Indios e mata-os

como os curupiras o que seja isto ainda natildeo se sabe com certeza

Haacute tambeacutem outros espectros do mesmo modo pavorosos

que natildeo soacute assaltam os Indios como lhes causam dano o que natildeo

admira quando por ecircstes e outros meios semelhantes que longo fora

enumerar quer o democircnio tornar-se formidaacutevel a ecircstes Brasis que

natildeo conhecem a Deus e exercer contra eles tatildeo cruel tirania

E assim podemos ir comparando os cristatildeos usando os padres como

intermediaacuterios do divino os indiacutegenas usando os pajeacutes como sacerdotes os

cristatildeos com medo do diabo os indiacutegenas com medo do Anhangaacute do Taguaigba

Pigtangua do Avasaly ou do Curupira o sarnento

110 Igpupiaacutera

falam Anchieta e F Cardim conforme nota 165 de ANCHIETA-Cartas 1988- 153 - tambeacutem conhecidos como y-pypiaacutera sendo y= aacutegua e pypiaacutera= de dentro isto eacute um monstro que vivia dentro das aacuteguas dos rios 111 ANCHIETA Cartas 1988 p139 Carta de S Vicente - 1560

92

Eram vaacuterios por todo o territoacuterio conhecido pelos portugueses conforme

nos fala Pedro Calmon112 Aimoreacute ou Tapuia os Tupinambaacute de todo o litoral os

Temiminoacute e os Tamoio que se denominavam velhos Tupi canoeiros e pescadores

os Goytacas dos campos proacuteximos de Cabo Frio e mais os Tucupecuxari

Kmayuraacute Yanomami Kadiweu Kaigang Krahocirc Yawalapiti e tantos e tantos

outros

Por esse motivo Jecupeacute que listou 206 tribos em nossas fronteiras

chama o Brasil de Terra dos Mil Povos

O que sabemos enfim eacute que o indiacutegena vivia e concebia suas vidas

atraveacutes de ritos de passagem de ritos de casamento de ritos de nascimento e

morte de magia propiciatoacuteria de batalhas culturais com outras tribos onde ao

guerrearem trocavam culturas trocavam conhecimentos garantiam seus

patrimocircnios geneacuteticos e realizavam suas mostras de honra e bravura garantindo-

lhes a sobrevivecircncia na terra adacircmica mas indocircmita em que viviam

Viviam como filhos do sol ou da lua apoiados no amor ou na ira da

Grande Matildee usando como siacutembolos em suas vidas a coruja a serpente a onccedila

ou o gaviatildeo dividindo-se em grupos e sub-grupos que geravam dialetos e

costumes de dormir de comer de amar de sofrer de rir de guerrear enfim de

viver

112 CALMON 1963 vol 2 p324-330

93

CAPIacuteTULO 5 - COMO OS INDIacuteGENAS TERIAM RECEBIDO A PREGACcedilAtildeO CRISTAtilde E AS

DIFICULDADES ENCONTRADAS NA MISSAtildeO DE CONVERTER

Entendo que seja necessaacuterio tecer algumas consideraccedilotildees sobre o

espaccedilo poreacutem no sentido de acircmbito que ocupavam simultaneamente cristatildeos

principalmente os jesuiacutetas e os indiacutegenas brasileiros Era esse espaccedilo natildeo de

terra mas situacional em que ocorreram os confrontos entre grupos de origens

distintas obrigados a transformar a si proacuteprios muitas vezes a uacutenica possibilidade

de manterem suas vidas

Essa transformaccedilatildeo teve por alicerce uma espeacutecie de amaacutelgama

multifacetada de simbolismos o que significa dizer que nestes espaccedilos dedicados

a salvaccedilatildeo de almas forjaram-se respostas muacuteltiplas aos desafios trazidos pelo

encontro entre universos simboacutelicos tatildeo divergentes De um lado aquelas

orquestradas pelos disciacutepulos de Santo Inaacutecio atraveacutes da doutrina e da imposiccedilatildeo

do evangelho de outro as respostas fruto da apropriaccedilatildeo diversa e inovadora

produzida pela multidatildeo de etnias que compunham as muitas aldeias indiacutegenas

que deveriam ser totalmente subjugadas no bom sentido cristatildeo pela Santa

Madre Igreja

Quem nos definiu esse espaccedilo e tudo que nele ocorreu foram os

jesuiacutetas que atraveacutes de suas cartas suas crocircnicas catecismos e autos teatrais

94

relatavam o que acontecia com relaccedilatildeo a esses confrontos de culturas tatildeo

distintas

Muitos jesuiacutetas foram considerados cronistas perspicazes da realidade

que experimentavam Permitindo o desenho de um panorama complexo e intenso

do universo com o qual conviveram O encontro com o gentio e o escrutiacutenio de sua

natureza por parte desses soldados de cristo no firme propoacutesito de conquistar

almas ficou registrado nas diversas correspondecircncias que produziram no

cotidiano de suas missotildees Algumas circularam para aleacutem dos muros da ordem

como cartas de Noacutebrega de Navarro e de tantos outros Os catecismos e os autos

de Anchieta os sermotildees e os Regulamentos das Missotildees de Vieira

A vasta documentaccedilatildeo produzida pela Companhia de Jesus como fruto

do encontro entre seus missionaacuterios e os brasis corresponde a um conjunto

enorme de informaccedilotildees lapidadas pelo estilo conveniente para serem lidas

para servirem de registro da memoacuteria e como mateacuteria para edificaccedilatildeo dos irmatildeos

de sua ordem espalhados pelo mundo O sistema de comunicaccedilatildeo implantado

pela Ordem pode ser considerado sem precedentes na histoacuteria ocidental

Os Portugueses alcanccedilaram o litoral sul-americano pela

primeira vez em abril de 1500 poreacutem foi apenas no uacuteltimo quartel do

seacuteculo XVI que comeccedilaram a produzir relatos sistemaacuteticos com o

intuito de descrever e classificar as populaccedilotildees indiacutegenas

Excetuando-se a sumaacuteria Histoacuteria da proviacutencia de Santa

Cruz de Pero Magalhatildees Gacircndavo impressa em Lisboa em 1576 e

algumas cartas jesuiacuteticas amplamente disseminadas na Europa em

diversas liacutenguas os textos portugueses mais significativos

95

permaneceram ineacuteditos por seacuteculos bem como os Tratados da Terra

e Gente do Brasil uma compilaccedilatildeo da obra de Cardim proporcionam

claros indiacutecios das percepccedilotildees e imagens acumuladas ao longo do

seacuteculo XVI pelos portugueses no que diz respeito a um universo

indiacutegena que se apresentava tatildeo vasto e variado quanto

incompreensiacutevel 113

Ao mesmo tempo tratar essa documentaccedilatildeo como fonte enseja

algumas questotildees O que revelam sobre o cotidiano das missotildees jesuiacuteticas que

mereceriam destaque Qual a possibilidade de trataacute-los como fonte para a histoacuteria

das populaccedilotildees indiacutegenas e seu processo de conversatildeo Seriam elas confiaacuteveis a

ponto de elaborarmos este trabalho sobre como os indiacutegenas teriam recebido a

pregaccedilatildeo cristatilde

A importacircncia dos relatos jesuiacuteticos como fontes para a histoacuteria eacute

inegaacutevel Jaacute se produziu muito e haacute de se produzir muito mais com base nessas

cartas e relatos os mais variados No entanto esses verdadeiros veiacuteculos de

comunicaccedilatildeo trazem uma complexidade de regras e de formas retoacutericas que natildeo

devem ser menosprezadas Se o forem corre-se o perigo de retirar deles sua

historicidade e a possibilidade de sua inteligibilidade Isso natildeo foi esquecido

durante a pesquisa deste trabalho

Das muitas caracteriacutesticas especiacuteficas da empresa jesuiacutetica uma eacute

essencial a sua unidade Portanto natildeo haacute como desvincular a sua instituiccedilatildeo

epistolar de seus fins poliacuteticos e miacutesticos Tatildeo pouco eacute possiacutevel separar tais

113 MONTEIRO 2001p12

96

relatos dos interesses pragmaacuteticos que impregnavam seus ideais de missatildeo

Assim sendo os relatos jesuiacuteticos se conformaram na fronteira entre por um lado

a necessidade de se submeterem agraves regras retoacutericas tradicionais e de

obedecerem a outras que permitissem tornar seus textos puacuteblicos por outro lado

servirem de suporte para a troca de experiecircncias missionaacuterias essenciais para o

crescimento e manutenccedilatildeo de sua atividade evangelizadora

Mas era necessaacuterio ainda que se pudesse entender o indiacutegena no

sentido daquilo que diziam e como diziam seus significados e a comunicaccedilatildeo

entre brancos europeus e agravequeles a que a missatildeo impunha conversatildeo Afinal

como impor um mito sem uma linguagem em que o mito seja entendido

A linguagem e o mito satildeo espeacutecies proacuteximas Nas etapas

primeiras da cultura humana sua relaccedilatildeo eacute tatildeo estreita e sua

cooperaccedilatildeo tatildeo patente que resulta quase impossiacutevel separar uma da

outra 114

Conforme Monteiro115 em seu trabalho desde o momento que os

inacianos chegaram em 1549 eles se defrontaram com um dos maiores

problemas da conversatildeo o de traduzir a simbologia o conteuacutedo e os sentidos da

doutrina cristatilde para uma liacutengua que atingisse o maior nuacutemero possiacutevel de

catecuacutemenos natildeo soacute pela comunicaccedilatildeo mas pelo mito pois na liacutengua

114 CASSIRER 1945 p166 115 MONTEIRO 2001

97

portuguesa natildeo haveria como fazer com que os conceitos do mito cristatildeo

atingissem a alma daqueles a quem queriam converter

Apesar da enorme diversidade linguiacutestica que se descobria

pouco a pouco agrave medida que a expansatildeo portuguesa avanccedilava para

aleacutem das estreitas faixas litoracircneas estabeleceu-se desde cedo uma

poliacutetica linguiacutestica que tornava a liacutengua mais usada na costa do

Brasil o seu principal instrumento Baseada na verdade num

conjunto de dialetos da famiacutelia linguiacutestica tupi-guarani a primeira

liacutengua geral foi perdendo as suas inflexotildees locais e regionais em

funccedilatildeo da sua adoccedilatildeo sistematizaccedilatildeo e expansatildeo enquanto idioma

colonial 116

O primeiro inteacuterprete oficial foi o colono por conhecer tanto o discurso

cristatildeo como tambeacutem pela sua destreza na liacutengua tupi

Poreacutem natildeo foi muito duradoura essa alianccedila entre colonos e

missionaacuterios pelo fato de que esses colonos entraram em conflito com os jesuiacutetas

pelo controle da matildeo de obra indiacutegena que se tentava escravizar A capacidade e

a competecircncia dos colonos para servirem de interpretes na produccedilatildeo do discurso

religioso passou a ser um grande obstaacuteculo para a missatildeo de conversatildeo

deturpando e usando de persuasatildeo o trabalho de liacutengua para fins e propoacutesitos

proacuteprios Assim com esse conflito de interesses os jesuiacutetas tiveram que tentar

uma nova proposta a de encarregar suas proacuteprias instituiccedilotildees de formar seus

proacuteprios liacutenguas que seriam inclusive capacitados em traduzir aos indiacutegenas os

discursos religiosos e tentar interpretar suas respostas

116 MONTEIRO 2001 p36

98

Inicia-se entatildeo uma formaccedilatildeo de interpretes entre os indiacutegenas que

acompanhavam os missionaacuterios onde a escola de escrever e contar dirigida aos

filhos dos principais pudesse ter a funccedilatildeo de formar interpretes indiacutegenas para os

missionaacuterios Aprendiam entatildeo nas escolas o portuguecircs e o discurso religioso

No entanto a escola tambeacutem natildeo se mostrou como um meio seguro

com o qual se pudesse garantir o controle desse discurso pois dentre esses

indiacutegenas formados muitos se transformaram em verdadeiros opositores dos

discursos religiosos disseminando essa apologia entre os indiacutegenas de outras

regiotildees

Dessa forma a experiecircncia mostrou que tanto os indiacutegenas como os

colonos natildeo eram os inteacuterpretes adequados agraves condiccedilotildees de produccedilatildeo e

circulaccedilatildeo do discurso apologeacutetico religioso da missatildeo jesuiacutetica

Foi entatildeo que a Companhia de Jesus passou a recomendar que a

catequese e a conversatildeo fosse feita sem auxiacutelio de intermediaacuterios o que obrigou

aos jesuiacutetas a iniciar uma proposta de formar os liacutenguas no proacuteprio interior da

hierarquia da Igreja exigindo que todos tivessem que procurar formas de adquirir

o conhecimento da liacutengua indiacutegena Os coleacutegios de toda a colocircnia funcionavam

assim como centro de formaccedilatildeo de interpretes dando-se muitas vezes maior

ecircnfase ao conhecimento da liacutengua brasiacutelica do que agraves questotildees teologicas e

outras disciplinas da formaccedilatildeo eclesiaacutestica substituindo em muito o grego liacutengua

importante par a formaccedilatildeo dos cleacuterigos da eacutepoca preocupando-se muito mais em

transformar os noviccedilos em liacutenguas do que em teoacutelogos

99

Nesse caminho lentamente a Igreja foi adquirindo sua independecircncia

em relaccedilatildeo agraves necessidades de inteacuterpretes onde passo a passo foi elaborando

gramaacuteticas e dicionaacuterios em Tupi Tanto essas gramaacuteticas como esses dicionaacuterios

representavam os meacutetodos formais do aprendizado tupi adequando o jesuiacuteta agrave

aquisiccedilatildeo de uma segunda liacutengua

Desta forma a liacutengua geral para os jesuiacutetas foi o resultado de um longo

trabalho em que por pesquisas e interpretes de vaacuterias origens culminando com a

publicaccedilatildeo da Arte de Grammatica de Joseacute de Anchieta em 1595 e do Catecismo

na Liacutengua Brasiacutelica de Antocircnio de Arauacutejo em 1618 No iniacutecio das atividades no

Brasil os jesuiacutetas Pero Correia Juan de Azpilcueta Navarro e Joseacute de Anchieta

deram os primeiros passos decisivos em direccedilatildeo agrave sistematizaccedilatildeo dessa liacutengua

Monteiro117 nos informa que escrevendo de Satildeo Vicente em 1553 o

irmatildeo Pero Correia pediu ao Provincial Simatildeo Rodrigues o envio de livros como

subsiacutedio a seus trabalhos em tupi citando especificamente algumas obras do

escritor castelhano Constantino Ponce de la Fuente de que pudesse tirar

grandes exemplos com muita doutrina para estes gentios os quais espero antes

de morrer ver todos cristatildeos o que em muito ajudou os padres a verterem

sermotildees do Velho e Novo Testamento mandamentos pecados mortais e obras

de misericoacuterdia

No mesmo ano Azpilcueta Navarro informou aos padres e irmatildeos do

Coleacutegio de Coimbra que havia enviado todas as oraccedilotildees na liacutengua do Brasil com

117 MONTEIRO 2001

100

os mandamentos e pecados mortais etc com uma confissatildeo geral princiacutepio do

mundo encarnaccedilatildeo e do juiacutezo e fim do mundo Natildeo conseguiu no entanto criar

uma arte isto eacute manual de gramaacutetica Anchieta por seu turno achava

precipitado elaborar uma gramaacutetica tupi nesses anos iniciais Quanto agrave liacutengua

natildeo a ponho em arte porque natildeo haacute quem aproveite somente aproveito-me eu

dela e aproveitar-se-atildeo os que de laacute vierem que souberem gramaacutetica Contudo

no ano seguinte o irmatildeo Antocircnio Blaacutezquez relatou que os meninos e os irmatildeos

da casa andam todos com grande fervor de saber a liacutengua [e] para aprendecirc-la

tecircm uma Arte que trouxe o Padre Provincial

Tive grande consolaccedilatildeo em confessar muitos iacutendios e

iacutendias por inteacuterprete satildeo candidiacutessimos e vivem com muito menos

pecados que os Portugueses Dava-lhes sua penitecircncia leve porque

natildeo satildeo capazes de mais e depois da absolviccedilatildeo lhes dizia na

liacutengua xe rair tupatilde toccedilocirc de hirunamo sc filho Deus vaacute contigo 118

Mas voltemos agraves correspondecircncias Mostram essas correspondecircncias

que as aldeias indiacutegenas recebiam constantemente a visita dos padres jesuiacutetas

que para ganharem a confianccedila dos iacutendios a serem convertidos agrave feacute cristatilde

apropriavam-se muitas vezes da funccedilatildeo do pajeacute Tornavam-se portanto

portadores dos remeacutedios contra as mazelas natildeo somente das almas mas tambeacutem

dos corpos

Os jesuiacutetas sabiam da necessidade dessas associaccedilotildees como padre x

pajeacute simbologia cristatilde x cosmogonia indiacutegena mitos dessa cosmogonia e a visatildeo

118 CARDIM 1997 [1583-90] p234

101

do Orbis Christianus desde o iniacutecio de seus trabalhos missionaacuterios desde a

chegada dos primeiros jesuiacutetas e viam nos pajeacutes seus mais fortes adversaacuterios

uma vez que teriam necessariamente de tomar o seu lugar

Os que fazem estas feiticcedilarias que disse satildeo mui

apreciados dos Indios persuadem-lhes que em seu poder estaacute a vida

ou a morte natildeo ousam com tudo isto aparecer deante de noacutes outros

porque descobrimos suas mentiras e maldades 119

ou

Si noacutes abraccedilarmos com alguns costumes deste Gentio os

quaes natildeo satildeo contra nossa feacute catoacutelica nem satildeo ritos dedicados a

iacutedolos como eacute cantar cantigas de Nosso Senhor em sua liacutengua pelo

tom e tanger seus instrumentos de muacutesica que elles usam em suas

festas quando matam contraacuterios e quando andam becircbados e isto

para os atrair a deixarem os outros costumes essenciais () e assim

o preacutegar-lhes a seu modo em certo tom andando passeando e

batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir

alguma cousa e dizecirc-la com muita efficacia e assim tosquiarem-se os

meninos da terra que em casa temos a seu modo Porque similhanccedila

eacute causa de amor E outros costumes similhantes a estes 120

Muitas vezes usavam a roupagem simboacutelica de seu adversaacuterio de

forma consciente para adentrarem no mundo miacutestico dos gentios outras vezes agrave

sua revelia eram confundidos e enquadrados como payeacute sem sequer disso se

darem conta

119 ANCHIETA - Cartas -1988 p83 Carta de Piratininga - 1555 120 NOacuteBREGA 1988 p142-Carta de Manuel da Noacutebrega a Simatildeo Rodrigues 17 de setembro de 1552

102

Mas era preciso controlar corpo e mente e na mente estavam seus

siacutembolos seus mitos e suas almas Dominar as almas dos gentios implicava ter o

controle sobre seus corpos e disciplinar os corpos e as accedilotildees era tarefa lenta e

metoacutedica O ritmo o tempo e a liberdade precisavam ser regulados O trabalho era

intenso e incansaacutevel

Nas cartas de Anchieta e de Noacutebrega muitas tantas vezes surgem

relatos de visitas repetidamente realizadas a uma tribo ou outra onde se mostrava

a intenccedilatildeo clara da imposiccedilatildeo dessa disciplina ou da repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos

em vaacuterios momentos de uma mesmo dia a fim de que se fixassem os novos

ensinamentos e conceitos

Natildeo bastasse a doutrinaccedilatildeo diaacuteria aos domingos e dias santos era

necessaacuterio dizer missa no momento em que pudessem estar todos juntos Para

ampliar o controle sobre a presenccedila deveria haver lugar certo nas Igrejas para as

casas e famiacutelias desses iacutendios

Caso algum faltasse agrave missa deveria o seu missionaacuterio tomar nota e

admoestar em particular o ausente Reincidindo no erro seria admoestado em

puacuteblico e por fim castigado

A atividade catequeacutetica dominical e festiva parecia ser a mais

importante uma vez que era o momento propiacutecio para a reuniatildeo de toda a

comunidade Portanto os cuidados para com ela tambeacutem eram maiores Deveria

se dizer missa e antes da mesma aleacutem da doutrina de ordem os padres

deveriam abordar dois pontos quais sejam os misteacuterios da feacute ou do evangelho e

outro moral que abordasse um viacutecio de maior incidecircncia no momento

103

A persistecircncia dos novos catecuacutemenos em manter haacutebitos tidos como

perniciosos ou como obra do inimigo por seus mestres jesuiacutetas fez com que

estes uacuteltimos flexibilizassem algumas regras de conduta como ateacute mesmo utilizar

iacutendios jaacute evangelizados nas tarefas de conversatildeo nem que fosse ao menos de

exercer atividades no interior dos templos tornando-se na maioria das vezes

sacristatildeos e coroinhas A inserccedilatildeo desses iacutendios nestas atividades apresenta

nuanccedilas riquiacutessimas do modo com que construiacuteram para si o sentido da religiatildeo e

dos rituais catoacutelicos principalmente se levarmos em conta que muitos deles

considerados hereges e que foram levados ao tribunal do Santo Ofiacutecio

O processo de conversatildeo dos iacutendios cristatildeos comeccedilava com o ritual do

batismo o que para os missionaacuterios significava uma forma de permitir a ida das

almas para o mundo de Deus

No entanto para a populaccedilatildeo indiacutegena o batismo ganhava sentido

mais complexo inclusive o de permissatildeo para adentrarem no mundo dos homens

brancos e cristatildeos mundo esse cheio de novas simbologias de curas para muitos

de seus males fiacutesicos e ateacute de um certo conforto diferenciado daquele que

conheciam ao viverem na proximidade dos jesuiacutetas

Poreacutem para o jesuiacuteta a verdadeira obra da missatildeo soacute se concretizava

com a pescaria das almas e com o seu controle absoluto ateacute a morte fiacutesica Salvar

os outros significava salvar a si mesmo Assim como morriam muitos inocentes

dever-se-ia batizar as crianccedilas prioritariamente ainda que moribundas para que

pudessem lograr ecircxito na batalha contra satanaacutes

104

natildeo podem deixar de admirar e reconhecer o nosso amor

para com eles principalmente porque vecircm que empregamos toda a

diligecircncia no tratamento de suas enfermidades sem nenhuma

esperanccedila de lucro E fazemos isto na intenccedilatildeo de preparar para o

recebimento do batismo caso haja necessidade os seus espiritos em

tais circustancias mais redutiveis e mais brandos por igual motivo eacute

que desejamos assistir agraves parturientes a fim de batizar matildee e filho se

o caso exigir Assim acontece atender-se agrave salvaccedilatildeo do corpo e da

alma 121

Claro poreacutem que batizar jaacute que parecia ser algo que os indiacutegenas

apreciavam ou desejavam para poderem adentrar ao mundo branco era um dos

pontos que os jesuiacutetas usavam como forma de meacuterito isto eacute seja cristatildeo em suas

atitudes e disciplinas e aiacute sim receberaacute o batismo Saiba o catecismo e assim seraacute

batizado Vejamos

Antes do dia do Nascimento do Senhor procuraacutemos que

se confessassem o qual fizeram muitas mulheres e alguns homens

os quais diligentemente examinaacutemos nas cousas da feacute e o que

principalmente pretendemos eacute que saibam o que toca os artigos da feacute

scilicet ao conhecimento da Santiacutessima Trindade e aos misteacuterios da

vida de Cristo que a Igreja celebra e que saibamquando lhes forem

perguntado dar conta destas cousas o qual temos em mais que

saber as oraccedilotildees de memoacuteria ainda que nisto se potildee muito cuidado e

diligecircncia porque duas vezes cada dia se lhes ensina na igreja a

nenhum batizamos senatildeo assim instruidos e ainda depois da

confissatildeo lhes pedimos conta dessas cousas a qual muitos maacutexime

121 ANCHIETA Cartas - 1988 P98 Carta de Piratininga - 1556

105

da mulheres datildeo bem que natildeo ha duacutevida senatildeo que levam

vantagem a muitos nascidos de pais Cristatildeos de maneira que muitos

satildeo assas aptos para receber o Santiacutessimo Sacramento da

Eucaristia

Antes ou mesmo depois do advento da liacutengua geral de Anchieta na

impossibilidade de compreensatildeo das liacutenguas por parte dos missionaacuterios e na falta

de interpretes que se batizasse por aceno e com a ajuda das imagens sacras

pinturas cruzes e outros objetos cristatildeos Vejamos

()O Padre que os tiver agrave sua conta procuraraacute com todo o

cuidado fazer um catecismo breve que contenha os pontos

precisamente necessaacuterios para a Salvaccedilatildeo e deste usaratildeo nos casos

de necessidade e por ele os iratildeo ensinando e instruindo mas em

caso que totalmente natildeo haja inteacuterprete nem outro modo por donde

fazer o dito catecismo seraacute meio muito acomodado o misturar os tais

Iacutendios com os da Liacutengua Geral ou de outra sabida para que ao menos

os seus meninos aprendam com a comunicaccedilatildeo e no entretanto se

lhes mostraratildeo as Imagens e Cruzes e os faratildeo assistir aos ofiacutecios

divinos e administraccedilatildeo dos Sacramentos e as mais accedilotildees dos

Cristatildeos para que possam em caso de necessidade inculcar-lhes o

batismo por acenos pois natildeo haacute meio de receberem a feacute pelos

ouvidos de modo que ao menos sub condicione nenhum morra sem

batismo 122

A confissatildeo tambeacutem natildeo poderia ficar de fora das preocupaccedilotildees dos

missionaacuterios Abrir os recocircnditos mais profundos da alma ao missionaacuterio era de

122 Vieira Regulamento das Missotildees p 199-200

106

vital importacircncia na tarefa de perscrutar a sinceridade da sua ligaccedilatildeo com a

religiatildeo Para tanto essas diretrizes indicavam a necessidade de todo ano

produzir listas daqueles capazes de confissatildeo Nenhum deveria ficar sem se

confessar ainda que fossem muitos os iacutendios e poucos os missionaacuterios

A confissatildeo eacute dos sacramentos aquele em que o caraacuteter

de julgamento eacute mais niacutetido Haacute um diaacutelogo - ou melhor uma

sucessatildeo de monoacutelogos em que o penitente diz seus eventuais

pecados responde a indagaccedilotildees sobre os pecados e sobre a

existecircncia de outras ofensas e o fim da confissatildeo eacute marcado por uma

penalidade 123

Assim batizar confessar casar e ajudar a bem morrer eram tarefas

baacutesicas ao bom missionaacuterio Nos laccedilos sagrados do matrimocircnio por exemplo os

missionaacuterios enfatizam a necessidade de manter registros dos nomes

sobrenomes da data do paacuteroco e das testemunhas do casamento assim como

da aldeia em que foi realizado Nenhum padre deveria realizar matrimocircnio entre

iacutendios de paroacutequias diferentes sem proceder a uma coleta de informaccedilotildees em

ambas as paroacutequias para assim terem certeza de que natildeo haveria um sagrado

matrimocircnio com pessoas que jaacute haviam recebido esse sacramento de outro padre

em outra eacutepoca em outra situaccedilatildeo

Quando da necessidade de ajudar o bem morrer era pelo firme

propoacutesito de guardar as almas desses novos cristatildeos e que tivessem morte

assistida o que garantia um ganho definitivo de seu espiacuterito pois era na morte

123 NEVES 1978 p75

107

que os jesuiacutetas colheriam o fruto do trabalho missionaacuterio pois como pastores de

almas teriam que dar conta daquelas que foram apresentadas aos ceacuteus e

encaminhaacute-las em direccedilatildeo a Deus

Mas controlar as almas natildeo bastava o diabo usava dos corpos e dos

gestos pra sua tarefa e por isso junto ao controle das almas atraveacutes da

evangelizaccedilatildeo dos gentios era necessaacuterio o controle dos gestos e dos corpos

tambeacutem fazia parte da obrigaccedilatildeo dos missionaacuterios Na ocasiatildeo das mortes o

controle sobre os rituais utilizados pelas naccedilotildees no sepultamento de seus mortos

era objeto tambeacutem da preocupaccedilatildeo do missionaacuterio O modo de amortalhar ou de

usarem algumas coisas supersticiosas era proibido pelos padres assim como

tambeacutem eram os excessos com que costumam chorar o defunto Pondera Vieira

que ainda que natildeo fossem demonstraccedilotildees de uso gentiacutelico mas sim de dor

natural deveriam se acomodar a poliacutetica cristatilde

Enfim a tocircnica comum compartilhada pelos jesuiacutetas estava relacionada

agrave necessidade de salvaccedilatildeo das almas Desde o seu princiacutepio a preocupaccedilatildeo com

a sua salvaccedilatildeo foi parte constitutiva da missatildeo da Companhia de Jesus Os iacutendios

considerados infieacuteis deveriam ser salvos de sua gentilidade da barbaacuterie e dos

erros em que viviam Essa gentilidade fazia com que esses iacutendios vivessem no

erro caberia ao missionaacuterio portanto conduzir os iacutendios para a verdade atraveacutes

da conversatildeo

108

Nos mostra Monteiro124 que a salvaccedilatildeo das almas encontrava outra

problemaacutetica a ser enfrentada a morte do gentio

A morte do gentil era constante desde o contato com os jesuiacutetas com

os aldeamentos com os brancos europeus mesticcedilos ou africanos e isso era com

certeza uma grande problemaacutetica para a conversatildeo pois com os primeiros

contatos comeccedilam ocorrer os principais episoacutedios epidecircmicos que destruiacuteram

muito das populaccedilotildees indiacutegenas do litoral

Eacute correto dizer no entanto que seja como for no litoral brasileiro do

seacuteculo XVI o contato direto entre as etnias indiacutegenas e os europeus e africanos jaacute

havia atravessado ao menos cinco deacutecadas antes da eclosatildeo das primeiras

pandemias Longe de constituir um variaacutevel independente no despovoamento do

litoral a mortalidade provocada por doenccedilas contagiosas atingiu seus pontos mais

altos quando conjugada com outras mudanccedilas importantes nas relaccedilotildees entre

colonizadores e iacutendios Afinal de contas foi na esteira das ofensivas beacutelicas

promovidas pelo governador Mem de Saacute e do processo concomitante de

deslocamento das populaccedilotildees indiacutegenas para as aldeias missionaacuterias que

ocorreram as primeiras grandes epidemias com destaque para o alastramento da

variacuteola pelo litoral de Pernambuco a Satildeo Vicente

As doenccedilas letais semearam a desordem entre a populaccedilatildeo nativa

sobretudo naquela subordinada aos missionaacuterios e aos colonos Anchieta

rememorando este grande surto epidecircmico escreveu em 1584

124 MONTEIRO 2001 p60

109

No mesmo ano de 1562 por justos juiacutezos de Deus

sobreveio uma grande doenccedila aos Iacutendios e escravos dos

Portugueses e com isto grande fome em que morreu muita gente e

dos que ficavam vivos muitos se vendiam e se iam meter por casa dos

Portugueses e se fazer escravos vendendo-se por um prato de

farinha e outros diziam que lhes pusessem ferretes que queriam ser

escravos foi tatildeo grande a morte que deu neste gentio que se dizia

que entre escravos e Iacutendios forros morreriam 30000 no espaccedilo de 2

ou 3 meses 125

Monteiro nos mostra ainda que infelizmente natildeo sabemos muito de

como os indiacutegenas responderam aos surtos epidecircmicos mas as cartas dos

jesuiacutetas no iniacutecio da colonizaccedilatildeo dizem algo sobre a percepccedilatildeo dos iacutendios com

relaccedilatildeo agrave origem das doenccedilas claramente associada agrave presenccedila dos padres

Pouco depois de chegar no Brasil o padre Manuel da Noacutebrega se espantou natildeo

apenas com a frequumlecircncia das doenccedilas entre a populaccedilatildeo batizada pelos jesuiacutetas

mas tambeacutem e sobretudo com a acusaccedilatildeo veiculada pelos feiticeiros de que os

missionaacuterios infligiam a doenccedila com a aacutegua do batismo e causavam a morte com

a doutrina126

A liacutengua Geral mostrava que as epidemias estavam presentes no

vocabulaacuterio indiacutegena ao definir a varicela como catapora o fogo que salta

De toda forma com epidemias ou natildeo com paciecircncia ou natildeo com

liacutengua geral e inteacuterpretes da comunicaccedilatildeo para o jesuiacuteta aqueles baacuterbaros natildeo

125 ANCHIETA Cartas- 1988 p364 Informaccedilotildees dos primeiros aldeamentos da Bahia 126 MONTEIRO 2001 p62

110

tinham afeiccedilatildeo pelas coisas de Deus viviam como brutos apenas para comer

beber e danccedilar Para os indiacutegenas de sua parte os padres natildeo entendiam seus

valores e sempre colocavam seus costumes e tradiccedilotildees como algo pertencente ao

diabo

O que se pode no entanto inferir eacute que houve o fato do processo de

encontro do embate de mitos entre dois universos simboacutelicos e sociais

completamente estranhos um ao outro

De um lado uma profecia que um certo pajeacute fazia com terror que os

iacutendios iriam virar brancos revelava mesmo aos pedaccedilos um pouco do processo

de leitura que essas populaccedilotildees nativas faziam desse encontro De outro lado o

cansaccedilo de Noacutebrega antes de sua morte revelavam um pouco do pessimismo do

jesuiacuteta quanto ao processo de conversatildeo e portanto da leitura que era possiacutevel

para ele missionaacuterio fazer tambeacutem daquele universo simboacutelico

Por um lado os pajeacutes acreditavam na transformaccedilatildeo de brancos em

iacutendios e de iacutendios em brancos por outro para o jesuiacuteta ver o iacutendio revestido

numa vestimenta simboacutelica a vestimenta da conversatildeo o cristatildeo tirado das

trevas De certa forma compactuavam pajeacute e jesuiacuteta com a mesma crenccedila ou

melhor com parte dela os iacutendios virariam brancos mas isso natildeo foi possiacutevel

Vieira em seu sermatildeo do Espiacuterito Santo dizia Natildeo ha gentios no

mundo que menos repugnem agrave doutrina da feacute e mais facilmente a aceitem e

recebam que os Brazis e natildeo porque os Brazis natildeo creiam com muita facilidade

mas porque essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crecircr em certo

modo seja como natildeo crer os Brazis ainda depois de crecircr satildeo increacutedulos em

111

outros gentios a incredulidade eacute increacutedulidade e a feacute eacute feacute nos Brasis a mesma feacute

ou eacute ou parece incredulidade 127

Vieira mostrava ainda em seus sermotildees que a resistecircncia era mais do

que resistecircncia pois outras naccedilotildees eram duras mas mais faacutecil de vencer que os

indiacutegenas do Brasil

haacute umas naccedilotildees naturalmente duras tenazes e

constantes as quaes difficultosamente recebem a feacute e deixam os

erros de seus antepassados resistem com as armas duvidam com o

entendimento repugnam com a vontade cerram-se teimam

argumentam replicam datildeo grande trabalho ateacute se renderem mas

uma vez rendidos uma vez que receberam a feacute ficam n ella firmes e

constante como estatuas de maacutermore natildeo eacute necessario trabalhar

mais com elles128

Jaacute com indiacutegenas do Brasil a tarefa era muito mais dura pois se o

pregador deixasse de estar presente por algum tempo que fosse todo o trabalho

de pregaccedilatildeo estava perdido e teria que ser reiniciado como se nunca tivesse

ouvido a palavra de algum pregador

Haacute outras naccedilotildees pelo contraacuterio ( e estas satildeo as do Brazil)

que recebem tudo o que lhes ensinam com grande docilidade e

facilidade sem argumentar sem replicar sem duvidar sem resistir

mas satildeo estaacutetuas de murta que em levantando a matildeo e tesoura o

jardineiro logo perdem a nova figura e tornam agrave bruteza antiga e

natural e a ser matto como dantes eram Eacute necessario que assista

127 VIEIRA 1951 Sermatildeo do Espiacuterito Santo p410 128 idemp 413

112

sempre a estas estatuas o mestre d ellas uma vez que lhe corte o que

vicejam os olhos para que creiam o que natildeo vecircem outra vez que lhe

cerceie o que vicejam as orelhas para que natildeo decircem ouvidos agraves

fabulas do seus antepassados129

Era necessaacuterio insistir nos catecismo nas pregaccedilotildees na redundacircncia

de informaccedilotildees e conceitos mas mesmo assim os simbolismos continuavam

amalgamados e necessitando de mais imposiccedilatildeo de paciecircncia Veja Anchieta

Dando-lhe pois a primeira liccedilatildeo de ser um uacutenico Deus

todo poderoso que criou todas as coisas etc logo se lhe imprimiu na

memoacuteria dizendo que ele rogava muitas vezes que criasse os

mantimentos para o sustento de todos mas que pensava que os

trovotildees eram este Deus embora agora que sabia existir outro Deus

verdadeiro sobre todas as coisas que rogaria a ele chamando-lhe

Deus Padre e Deus Filho por que dos nomes da Santa Trindade

ecircstes dois sogravemente pocircde tomar porque se lhe podem dizer em sua

liacutengua mas o Espiacuterito Santo para este nunca achamos um vocabulo

proacuteprio nem circunloquio bastante e apesar de que natildeo o sabia

nomear poreacutem sabia crecircr 130

Outro ponto importante a ser citado como forma de conversatildeo era a

utilizaccedilatildeo do imaginaacuterio e do medo para a doutrinaccedilatildeo dos gentios e para

evangelizar aquelas almas

129 idem p 413 130 ANCHIETA- Cartas 1988 p200 Carta de Joseacute de Anchieta a Diego Laynes 16 de abril de 1563

113

A contrapartida da utilizaccedilatildeo consciente do imaginaacuterio indiacutegena para

fins doutrinais era a construccedilatildeo por parte desses gentios da imagem dos jesuiacutetas

que ganhava significados muito diferentes daqueles com que por ventura queriam

ser compreendidos

A perspicaacutecia desses jesuiacutetas natildeo foi suficiente para perceberem que

ao fazerem parte desse imaginaacuterio perdiam o controle e o poder sobre seus

catecuacutemenos pois passavam a pertencer a um mundo que natildeo era o seu

Portanto o medo que foi incutido nos gentios tambeacutem passou a ser compartilhado

pelos jesuiacutetas Na medida em que embora respeitados e temidos por muitos

indiacutegenas passavam a ser odiados com a mesma facilidade

A fronteira entre o temor o respeito e o oacutedio era demasiado tecircnue

Cabia ao jesuiacuteta se para isso talento tivesse traduzir esses limites O erro poderia

significar o fim da missatildeo ou mesmo a morte na ponta de uma flecha

O medo que sentiam os brasis de seus Pay-u-assuacute (como eram

denominados os jesuiacutetas) era compartilhado pelos padres Se os rituais catoacutelicos

estavam sendo resignificados em seus siacutembolos pelos indiacutegenas que os adequava

a sua maneira de perceber o universo da mesma forma os rituais gentiacutelicos mais

puros eram compreendidos pelos jesuiacutetas como sendo ritos demoniacuteacos

orquestrados pelo priacutencipe das trevas na batalha pela conquista das almas Claro

os jesuiacutetas tambeacutem carregavam por mais cultos que fossem seus mitos e suas

crenccedilas em Deus e portanto acreditavam no democircnio da mesma forma que os

indiacutegenas temiam a Deus ou a seus deuses

114

Mesmo assim a relaccedilatildeo do indiacutegena com o jesuiacuteta transformou muitos

desses iacutendios em cristatildeos e esses cristatildeos criados muitas vezes como produto

das missotildees dos jesuiacutetas tornaram-se peccedilas essenciais para a manutenccedilatildeo do

controle sobre a populaccedilatildeo indiacutegena para servirem de mediadores entre os

brancos colonizadores e os indiacutegenas das diversas aldeias que os jesuiacutetas tinham

sob seu comando para ajudarem na traduccedilatildeo dos catecismos e dos sermotildees para

a liacutengua geral para ajudarem na evangelizaccedilatildeo e nas tarefas da igreja Poreacutem a

doutrina por sua vez natildeo evoluiria sem o apoio desses personagens

Esses obscuros personagens quase nos bastidores desse teatro da

conversatildeo realizam de certa forma parte da profecia do pajeacute apavorado segundo

a qual os iacutendios iriam virar brancos e os brancos iriam virar iacutendios

Mas afinal qual o significado em tornar-se branco para esses iacutendios

A resposta a esta pergunta talvez possa ser encontrada no valor que

uma profusatildeo de objetos pontes entre mundos pudesse representar para esses

cristatildeos Cruzes medalhas bastotildees ferramentas vestidos e espadas tornaram-se

veiacuteculos de comunicaccedilatildeo entre homens de mundos distintos

Assim como o processo de alianccedila com diversas naccedilotildees indiacutegenas que

transformava seus liacutederes poliacuteticos em iacutendios principais de sua povoaccedilatildeo natildeo se

concretizava se o referido novo vassalo natildeo recebesse por parte das autoridades

portuguesas algum siacutembolo de sua grandeza e distinccedilatildeo

A espada e a casaca eram comumente utilizadas pelos principais das

tribos conquistadas assim como seus bastotildees de comando Ser importante

115

perante todos de todas as tribos significava receber honrarias brancas e cristatildes

em troca de ser subjugado pela cultura europeacuteia

Davam importacircncia a tudo que poderia tornaacute-los cristatildeos mas

adoravam receber e participar daquilo que se podia chamar de vida branca A

imagem de Cristo que preservaram com tanto cuidado o fato de terem construiacutedo

igreja e casa para o Jesuiacuteta a importacircncia que davam a ver seus nomes escritos

num papel que iria ateacute o rei e por fim o uso que os jesuiacutetas fizeram da cruz

levada nos ombros pelos escolhidos todas essas situaccedilotildees demonstram um

significado importante e ao mesmo tempo completamente inusitado desses

objetos Os jesuiacutetas pressentiam algo sobre esse significado tanto eacute que

utilizavam a cruz objeto para criar uma distinccedilatildeo entre os iacutendios Mas logo

traduziam esse significado para seu universo cosmoloacutegico inteiramente distinto e

estranho ao daqueles homens da floresta O que afinal poderiam significar esses

siacutembolos aos indiacutegenas

Alcanccedilar o significado desses objetos para os indiacutegenas significaria

obter uma resposta consistente sobre o que significava ser branco para eles

O uso dos objetos e roupas dos brancos distinguia os cristatildeos dos

gentios Havia uma transformaccedilatildeo em curso Natildeo significavam no entanto uma

total submissatildeo agraves regras de domiacutenio dos brancos Indicavam sim um aceite de

certas regras mas natildeo significava no entanto aceitar domiacutenio e desistecircncia de

suas crenccedilas e tradiccedilotildees

Iacutendios escravos poreacutem cristatildeos fincaram cruzes pelo caminho de suas

vidas numa clara tentativa de indicar sua inserccedilatildeo no mundo branco Esse

116

emaranhado de siacutembolos para estabelecer sua identidade cristatilde seria somente

uma estrateacutegia para sobreviverem demonstrando estarem do mesmo lado dos

brancos Por outro lado o uso dos objetos ocidentais no seu cotidiano e a

arquitetura de caiccedilara seriam indiacutecios de que esses homens apenas utilizavam tais

objetos por seu valor pragmaacutetico

Talvez o jesuiacuteta natildeo pudesse ter outra interpretaccedilatildeo desses indiacutecios

que natildeo essa do sentido utilitaacuterio e estrateacutegico No entanto natildeo parecem ter um

significado tatildeo simples Eles permitem conjecturas embora preliminares para

respostas um pouco mais complexas Esses diversos objetos apresentam uma

conexatildeo Sejam as espadas os bastotildees as cruzes ou as medalhas Natildeo podem

simplesmente ser traduzidos como simples recursos praacuteticos ou simboacutelicos

usados por populaccedilotildees indiacutegenas para o seu processo de inserccedilatildeo na sociedade

colonial portuguesa Menos ainda que essa inserccedilatildeo fosse uma estrateacutegia poliacutetica

para a manutenccedilatildeo de privileacutegios e de sobrevivecircncia somente

A imagem de cristo dos Nhengaiba por exemplo provavelmente um

crucifixo pode revelar um significado complexo que surgiu ao ser traduzido para a

liacutengua geral ou Nheengatu

Em liacutengua geral crucifixo eacute traduzido por Tupanarayra-rangaacuteua Para

se poder entender o seu possiacutevel significado para os indiacutegenas eacute necessaacuterio

traduzir cada umas das palavras que compotildee o termo

117

Tupana 131 significa em liacutengua geral matildee do trovatildeo a ela natildeo satildeo

rendidas homenagens ou festas Adaptado pelos jesuiacutetas Tupatilde transformou-se

no Deus cristatildeo O sufiacutexo ana indica que a accedilatildeo expressa no prefixo teve lugar e

continua a acontecer Ou seja Tupana ente desconhecido que troveja e mostra

seu poder pelo raio abate toda a floresta tirando a vida aos seres deixando-os

carbonizados

Rayra rangaacuteua 132 por sua vez significa filho ou afilhado do

homem Rangaacuteua isoladamente significa figura tempo hora medida

Certamente a ideacuteia que os Nhengaiba poderiam ter do crucifixo natildeo parece ser a

que os jesuiacutetas queriam que tivessem Ao traduzirem em liacutengua geral esse objeto

permitiram um cem nuacutemero de significados sobre os quais perderam o controle O

temor e respeito com que essa imagem foi adorada por estes iacutendios para a

surpresa dos jesuiacutetas podem estar ligados ao sentido que lhe deram ao traduzi-la

para o seu universo cosmogocircnico referencial

Embora esse sentido tenha ficado irremediavelmente perdido no tempo

eacute possiacutevel supor a traduccedilatildeo das palavras em Nhengatu uma possibilidade de

significado simboacutelico de que esse ser poderoso e desconhecido que troveja e tem

o poder de extinguir vidas se corporificou em uma figura sua medida em um

afilhado de Deus Se correto tal significado permite compreender o temor e o

respeito que esses catecuacutemenos tinham pelo Deus cristatildeo e seus missionaacuterios

jesuiacutetas Ao mesmo tempo permitem imaginar o oacutedio que possivelmente poderiam

131 Bueno 1998 p303 132 idem p 363

118

guardar por esse ser poderoso e vingativo Cruzes poderiam portanto ter um

poder em si mesmas para proteger e ao mesmo tempo simbolizar uma alianccedila

maacutegica com esse poderoso Deus

Enquanto espadas casacas e bastotildees simbolizavam poder para os

principais transformados em brancos ser cristatildeos atraveacutes do batismo poderia

permitir aliar-se a esse poderoso Deus possibilitando sua introduccedilatildeo num mundo

novo que se constituiacutea a sua revelia mas do qual eram tambeacutem artiacutefices

De certa maneira indicam que o processo de sua transformaccedilatildeo em

brancos estava em curso

Novamente a profecia daquele pajeacute parecia completar-se com a frase

de Vieira essa mesma facilidade com que crecircem faz que o seu crer em certo

modo seja como natildeo crer Em outras palavras poderiacuteamos interpretar que esses

iacutendios mesmo facilmente tornando-se brancos e portugueses mesmo assim natildeo

o eram nunca seriam e nunca viriam a ser

119

CAPIacuteTULO 6 - O TEATRO COMO FERRAMENTA EDUCACIONAL E DE CATEQUESE

A religiatildeo indiacutegena eacute tomada desde o princiacutepio dos contatos dos

quinhentos como falsa como realidade diaboacutelica como de origem maldita sobre a

qual o cristianismo era imposto como o oposto superior

Havia uma imposiccedilatildeo eurocecircntrica onde o cristianismo era um dos

mais importantes sentimentos desse momento eurocentrista

Por esse motivo tudo deveria ser feito para que a conversatildeo chegasse

a termo

Mais uma ponte deveria ser construiacuteda para que o jesuiacuteta pudesse

persuadir e convencer os indiacutegenas da necessidade da aceitaccedilatildeo da conversatildeo ao

cristianismo Essa ponte deveria conter representaccedilotildees da realidade tanto do lado

cristatildeo como do lado dos brasis

Poreacutem a conversatildeo e qualquer ponte que levasse a ela natildeo poderia ser

apenas uma questatildeo de salvaccedilatildeo mas um elo essencial de inclusatildeo do Mundo

Novo e seus habitantes na sociedade europeacuteia para a qual naquela eacutepoca

religiatildeo e poliacutetica misturavam-se intrinsecamente

Os jesuiacutetas com as suas dificuldades de comunicaccedilatildeo muitas vezes jaacute

pregavam e doutrinavam usando de eloquumlecircncia levantando a voz mostrando os

120

misteacuterios da feacute atraveacutes de gestos andando em roda batendo as matildeos e os peacutes

sempre realizando um tipo de teatro rudimentar tal qual faziam os indiacutegenas

contando seus feitos fazendo as mesmas pausas quebras de retoacuterica gerando e

mostrando espantos pois sabiam que dessa forma estavam agradando e

persuadindo aquele povo que adorava a gestualiadade

Poreacutem eacute bom que se tenha claro que o teatro depois de consolidado

entre as formas pedagoacutegicas utilizadas pelos jesuiacutetas na conversatildeo serviu

tambeacutem como um espelho destruidor pois neles se mostrava a cosmogonia a

perfeiccedilatildeo do aguerrido a cultura dos brasis como sendo o Mal que se

contrapunha a vontade da Igreja que era o Bem Maior Na semacircntica desse teatro

Deus e os Santos lutavam na vida e na morte contra o Diabo da mesma forma

que os contraacuterios e os pajeacutes lutavam contra os padres e a pregaccedilatildeo

No teatro dos quinhentos o reino do democircnio das dissimulaccedilotildees e da

espreita das curas e dos espiacuteritos cabiam em uma soacute figura a do pajeacute visto que

eram essas coisas que mais davam credibilidade aos feiticeiros a arte de

persuadir de dissimular de espreitar e de falar com os espiacuteritos Luacutecifer aparecia

em lugares e situaccedilotildees sempre agrave espreita e como grande personagem do teatro

era representado de diversas formas por um principal por um beberratildeo por um

pajeacute por um guerreiro que desejasse defender as tradiccedilotildees mas nunca colocava

seu rosto para ser visto pois trabalhava sempre a espreita na calada na

sugestatildeo e na seduccedilatildeo se passando ateacute por bom por favoraacuteveis a causa da

catequese e ateacute como divinos O democircnio era atuante natildeo soacute nos autos mas sim

na vida do padres e dos demais cristatildeos vejamos por exemplo

121

o inimigo da natureza humana (como soe sempre fazer)

em impedir o bom successo da obra e assim determinou que a 7 ou 8

leguas daqui matassem um Christatildeo da armada em que viemos 133

Muitas das caracteriacutesticas do teatro medieval e do teatro europeu se

encontram presentes nos autos anchietanos de forma sempre adaptada agrave

compreensatildeo dos indiacutegenas segundo o que entendiam os jesuiacutetas Eram

mostrados nas peccedilas os misteacuterios os evangelhos as obras de Cristo mas

principalmente a realidade daqueles que assistiam ao teatro principalmente

atraveacutes do sagrado do temeroso do assustador do ruacutestico e do burlesco mas

principalmente a caracterizaccedilatildeo dos atores seus gestos e suas expressotildees e

figurino obedeciam a um simbolismo onde as caracteriacutesticas biacuteblicas por um lado

e por outro aos personagens antagocircnicos ao Bem mostrados pela caricatura

pelo grotesco de modo a ficar clara a desordem do inferno em contrapartida da

simbologia organizada do Bem Os cacircnticos suaves em latim estavam sempre em

contraposiccedilatildeo dos ruidosos personagens oriundos do inferno

Os autos de Anchieta tinham no entanto a caracteriacutestica de ultrapassar

as barreiras de uma peccedila teatral principalmente por fazer com que os

espectadores pudessem se misturar com os atores e de certa forma participarem

interativamente com o narrado mesmo que fossem com risadas e sons de

133 NOacuteBREGA 1988 p94

122

espanto com palma em cena aberta sem no entanto deixar que essa

representaccedilatildeo teatral perdesse seu intuito e seu formato dentro do espaccedilo cecircnico

Por representarem sempre os atores teatrais personagens do

cotidiano e do sagrado Anchieta conseguia utilizar esses mesmos personagens

em situaccedilotildees e contextos de diferentes momentos emprestando tanto

personagens como textos de um auto para outro

Muitas vezes Anchieta utilizava textos em que o aversivo para o

democircnio para o iacutendio perfeito portanto os bons costumes era dito pela boca

destes criando mais forccedila quando estes falavam mal da igreja dos padres de

Deus e dos Santos

Ai tenho andado debalde

agrave procura de um pouso

Irra Sempre me faz sair

Da taba o sacerdote

Expulsando-me para bem longe

Infelizmente ele ensina

A obedecer agraves palavras de Deus

Proclama que a sua linda matildee

Me desgraccedilou

Quebrou minha cabeccedila

Tudo o que Anchieta pretendia exaltar das boas qualidades dos

costumes dos iacutendios seus personagens sempre indiacutegenas mostravam essas

atitudes que vinham sempre acentuadas de forma positiva assim como a muacutesica

e as danccedilas pois no entender dos jesuiacutetas demonstravam a riqueza e a beleza

daquela cultura Jaacute os costumes que eram considerados pelos jesuiacutetas como

123

perniciosos e contraacuterios agrave moral da Santa Igreja apareciam normalmente

representados por personagens que deixavam claro pertencerem agraves hordas

demoniacuteacas ou pelo proacuteprio Diabo

O Auto de Satildeo Lourenccedilo eacute a mais longa e rica peccedila de Anchieta Essa

peccedila foi escrita em trecircs liacutenguas tupi portuguecircs e castelhano agrave semelhanccedila de

muitos autos de Gil Vicente que mostram a situaccedilatildeo de bilinguumlismo vigente em

Portugal no seacuteculo XVI

Do ponto de vista da linguumliacutestica essa peccedila eacute das mais importantes pois

mostra como o Tupi da Costa era efetivamente falado Nesse auto vemos os

diabos Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia a tentar perverter a aldeia no que satildeo

impedidos por Satildeo Lourenccedilo e por Satildeo Sebastiatildeo

Anchieta recorre muito agraves alegorias isto eacute agrave personificaccedilatildeo de nomes

abstratos ou agrave atribuiccedilatildeo de qualidades humanas a seres inanimados recurso

tambeacutem muito empregado por Gil Vicente em seus autos Assim vemos no Auto

de Satildeo Lourenccedilo o Amor e o Temor de Deus como personagens a aconselharem

aos iacutendios a caridade e a confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Essa concretude era

eficiente na transmissatildeo dos conteuacutedos doutrinaacuterios cristatildeos dada a concretude

do pensamento miacutetico no qual o mundo indiacutegena estava mergulhado

Considero o auto de Satildeo Lourenccedilo como sendo um dos melhores

exemplos do embate de mitos de que falamos em todo este trabalho onde

Aimbirecirc um dos democircnios diverte-se com piadas maliciosas enquanto leva os

assassinos de Satildeo Lourenccedilo para o inferno Vejamos por exemplo neste mesmo

auto como os diabos ironizam a confissatildeo

124

Satildeo Lourenccedilo Mas existe a confissatildeo

Bom remeacutedio para cura

Na comunhatildeo se depura

Da mais funda perdiccedilatildeo

A alma que o bem procura

Se depois de arrependidos

os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar

o caminho dos remeacutedios

o padre os vai abenccediloar

Guaixaraacute Como se nenhum pecado

Tivessem fazem a falsa

Confissatildeo e se disfarccedilam

Dos viacutecios abenccediloados

a assim viciados passam

Aimbirecirc Absolvidos

Dizem na hora da morte

Meus viacutecios renegarei

E entregam-se a sua sorte

No auto de Satildeo Lourenccedilo mostrando como essas personagens

aparecem representando o cotidiano e ao mesmo tempo o Bem e o Mal trecircs

diabos satildeo personagens de grande importacircncia Guaixaraacute Aimbirecirc e Saravaia

todos nomes dos antigos chefes tamoios derrotados e mortos na campanha de

125

Guanabara que satildeo aproveitados para destacar o inimigo vencido e associaacute-lo

com inimigos de toda a cristandade

Do lado do Bem o Anjo vem acompanhado de Satildeo Lourenccedilo e de Satildeo

Sebastiatildeo que resistem aos diabos para natildeo permitir a destruiccedilatildeo da aldeia pelos

pecados

O Diabo talvez tenha sido uma das personagens mais importantes no

projeto de conversatildeo das almas natildeo soacute no teatro mas como em todas as

representaccedilotildees da catequese pois foi contra ele e seus disciacutepulos e seguidores

que partiram as acusaccedilotildees de perversatildeo de mentira de seduccedilatildeo de luxuria A

luta dos missionaacuterios jesuiacutetas natildeo foi nunca contra os pagatildeos ou contra os

hereges mas principalmente contra o diabo contra os feiticeiros e contra aqueles

que mesmo catequizados voltavam aos costumes antigos e promoviam revoltas

nas aldeias e as conduziam a fugas e ao deslocamento para terras mais distantes

da evangelizaccedilatildeo

126

O Auto de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute e os outros diabos

Nesta parte do capiacutetulo a intenccedilatildeo eacute a de fazer o leitor atentar para as

definiccedilotildees de mito como um todo do mito cristatildeo e de sua comparaccedilatildeo com os

mitos indiacutegenas Mostrar como de fato foi o verdadeiro embate de mitos na

batalha de imposiccedilatildeo do branco europeu portuguecircs e obviamente cristatildeo sobre

as populaccedilotildees indiacutegenas atraveacutes da educaccedilatildeo e da transmissatildeo de cultura

As peccedilas os autos especificamente o Auto de Satildeo Lourenccedilo pelo

fasciacutenio da imagem representativa era muito mais eficaz do que um sermatildeo por

exemplo Escrito em tupi portuguecircs ou espanhol e mais tarde em latim Nesse

auto os personagens satildeo santos caciques democircnios imperadores e ainda

representam apenas simbolismos como o Amor ou o Temor a Deus

Anchieta o jovem missionaacuterio da Companhia de Jesus o grande

piahy (supremo pajeacute branco) como era chamado pelos iacutendios usava com

maestria neste auto o zelo constante pela conversatildeo e os mandamentos

religiosos atraveacutes de uma audiecircncia amena e agradaacutevel diferente da pregaccedilatildeo

seca e riacutegida de que os escritos catequeacuteticos satildeo cabal documento Some-se a

isso que os indiacutegenas eram sensiacuteveis agrave danccedila agrave muacutesica e a mistura de

personagens que integram a miacutetica cristatilde (diabos anjos santos) fatores esses

127

que atuavam sobre o expectador com vigoroso impacto O iacutendio natildeo era no

entanto apenas expectador desse teatro mas tambeacutem participava dele como ator

danccedilarino e cantor

Outros atores aleacutem dos iacutendios domesticados eram futuros padres

brancos e mamelucos Todos amadores que atuavam de improviso seguindo

textos mas sem trabalhos de interpretaccedilatildeo apresentavam os autos nas Igrejas

nas praccedilas e nos coleacutegios

Considero para esta tarefa o Auto de Satildeo Lourenccedilo como uma das

mais importantes ferramentas da catequese onde iacutendios principais de tribos

Tamoyo vencidos e destruiacutedos pelos portugueses passam a ter suas imagens

incorporadas ao diabo e a democircnios

No Apecircndice 1 coloco o Auto de S Lourenccedilo na iacutentegra para que o

leitor possa ter uma completa visatildeo dos comentaacuterios que apresento a cada passo

dessa peccedila teatral

Quando iniciamos a leitura do texto examinando-se apenas o tema do

auto jaacute se percebe que os portugueses do periacuteodo jesuiacutetico ao virem para o

Brasil trouxeram consigo seu espaccedilo miacutetico e obviamente necessitaram

sacralizar o novo territoacuterio

Inicia-se aqui na representaccedilatildeo do auto logo em seu iniacutecio o embate de

mitos De um lado a Igreja considerando a Feacute catoacutelica como um vento divino

sine macula peccatti soprado pelo Espiacuterito Santo e que trazia aos gentios os bons

costumes e a cura de todos os seus males Do outro lado homens aguerridos e

128

audaciosos que entendiam seus costumes da forma miacutetica que interpretavam

suas vidas e as explicaccedilotildees da finitude dessas vidas sem que conhecessem os

pecados ou que seus desejos natildeo pertenciam a si mas ao inimigo do Homem

que os cobria como uma sombra e que natildeo os deixava ver a realidade

Jaacute no primeiro ato Percebe-se que a evocaccedilatildeo de Jesus Salvador

mostra agrave plateacuteia que algo se cria com as palavras de Satildeo Lourenccedilo um clima de

redenccedilatildeo com o sofrimento se implanta naqueles que ouvem e vivenciam a

experiecircncia do auto uma proposta de sentirem algo sagrado

Se a palavra se torna criadora se a partir dela formam-se as

proposiccedilotildees constitutivas o Sagrado se apresenta no dizer criador do Verbo

como a verdade dos entes 134

Na fala de Guaixaraacute que encontramos no iniacutecio do segundo ato nada

mais do que a resistecircncia agrave imposiccedilatildeo da cultura portuguesa ou ainda de

qualquer cultura que pudesse querer destruir o que ateacute aquele momento era

considerado pelos indiacutegenas como tradiccedilatildeo e modo de entender a vida Seu mito

o mito de Guaixaraacute pois a funccedilatildeo de seus mitos natildeo eacute a de mostrar uma ideacuteia

herdada de seus antepassados mas sim de mostrar um modo pelo qual aquela

sociedade funciona e que corresponde agrave maneira inata pela qual o homem nasce

e se relaciona em sua vida vivida

Nesta parte do auto Luacutecifer eacute o pajeacute Guaixaraacute eacute o pajeacute e todos que o

seguem satildeo democircnios Guaixaraacute eacute o diabo esse locutor infernal que eacute preciso

134 CRIPPA 1975 p115

129

calar O feiticeiro eacute algo anormal ele eacute um herege natildeo um pagatildeo Eacute um herege

que se faz passar por pagatildeo 135

O pajeacute eacute algo anormal na medida em que se considera que a cultura

iacutendia eacute pagatilde Considera-se a cultura iacutendia como algo jaacute possuiacutedo pelo Diabo

a figura infernal se flexiona Luacutecifer agora eacute o signo da perversatildeo eacute o liacuteder de

hereges que vecirc nele a siacutentese de suas qualidades malignas 136

No entanto durante boa parte do texto do auto Guaixaraacute sabe da forccedila

da tradiccedilatildeo e da linguagem e entende que mesmo que sejam os indiacutegenas

levados a outro mito eacute o mito primordial da origem da cultura que surge de forma

espontacircnea que permanece e crecirc que mesmo com a influecircncia externa de outra

transmissatildeo miacutetica cada indiviacuteduo da cultura a que pertence possui em cada

psique prontidotildees vivas e ativas e que mesmo que se encontrem inconscientes

influenciam o sentir o pensar e o atuar do homem miacutetico

Poreacutem o portuguecircs o jesuiacuteta tenta mostrar o inverso disso quando

pretende provar que ateacute mesmo Aimbirecirc acredita na forccedila do novo mito o mito

cristatildeo e a forccedila dos santos Vejamos

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me

amedronta

135 NEVES 1978 p93 136 NEVES 1978 p94

130

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos

noacutes

AIMBIREcirc

Esse

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te

venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

Pela visatildeo de Anchieta Aimbirecirc crecirc em seu mito mas de alguma forma

percebe que muitos indiacutegenas estatildeo passando para o outro lado porque o novo

mito tambeacutem lhes daacute uma explicaccedilatildeo para a vida que levam pois muitas das

situaccedilotildees tiacutepicas vividas pelos gentios com relaccedilatildeo a condiccedilatildeo humana tambeacutem

satildeo representadas pelos mitos que lhes vem sendo ensinado gerando nesses

indiacutegenas uma predisposiccedilatildeo para experimentar os novos conceitos Deus de

seus nascimentos de suas mortes e de renascimento apoacutes a morte dos novos

rituais dos sacramentos etc

Por outro lado percebe-se tambeacutem que Aimbirecirc junto com outros

diabos continuaraacute tentando o disconversatildeo e a manutenccedilatildeo do mito primordial

131

Haacute no entanto uma anguacutestia demonstrada pelo diabo que Anchieta

criou mostrando que ele mesmo sendo o diabo entende a necessidade dos

gentios em descobrir e refazer seus mitos Havia o vislumbre de que a nova

proposta o novo mito pudesse atender agraves necessidades daqueles que teriam

conhecido um novo tipo de conforto uma nova seguranccedila perante as doenccedilas que

destruiacuteram tribos inteiras um novo alento para suas dificuldades enfrentadas em

suas vidas vividas

Eacute a perda de nosso mito continente que estaacute na raiz de nossa anguacutestia

individual e social e nada a natildeo ser a descoberta de um novo mito central vai

resolver o problema para o indiviacuteduo e para a sociedade 137

Vejamos este trecho do auto onde os diabos em conversa com Satildeo

Lourenccedilo tentam mostrar que satildeo apenas indiacutegenas no entanto a fala proposta

por Anchieta no texto perverte essa informaccedilatildeo

(Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar

antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

137 EDINGER 1999 11

132

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio

Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou

luminoso democircnio

Ou estaria dizendo em suas proacuteprias palavras e nas natildeo palavras

colocadas por Anchieta em sua boca de personagem sou iacutendio sou livre sou

aguerrido luto por minha tradiccedilatildeo

Mas Satildeo Lourenccedilo e Satildeo Sebastiatildeo continuam a tentar convencer

esses diabos de que eles foram criados a imagem e semelhanccedila dos brancos e

por isso tecircm que se tornarem tementes a Deus

Como afirmei anteriormente Deus eacute uma forma de explicarmos as

experiecircncias que temos no mundo que de alguma forma satildeo sublimes e

transcendentais Ele eacute a superposiccedilatildeo dos espiacuteritos de todas as ideacuteias Amamos

aos deuses pois temos que amar o abstrato da mesma forma que amamos nossa

vida Mas os gentios possuiacuteam outro mundo outra sublimidade outra

transcendentalidade outras ideacuteias outras abstraccedilotildees A terra eacute a mesma mas

entendida de outra forma a morte eacute a mesma mas o conceito dessa passagem

eacute distinto o espiacuterito de cada ideacuteia eacute formado por concepccedilotildees diferentes da dos

portugueses

Vejamos novamente uma afirmaccedilatildeo de Gusdorf jaacute citada anteriormente

neste trabalho

133

Porque a natureza junto com a sobrenatureza desvela ao ser toda

sua totalidade Consagra o estabelecimento ontoloacutegico da comunidade pelo

viacutenculo da participaccedilatildeo fundamental entre o homem vivente a terra as coisas os

seres e ainda os mortos que continuam frequumlentando a morada de sua vida 138

Os deuses dos indiacutegenas eram por eles conhecidos podiam olhar e ver

o Sol a Lua as estrelas a noite a chuva o vento mas o Deus apresentado pelos

jesuiacutetas era um deus que natildeo se podia ver nem acreditar sem pensar El Dios

verdadero el Dios de la religioacuten cristiana fue siempre un Deus absconditus 139

um Deus escondido um Deus que necessita que se creia sem que se possa ver

Mas Anchieta na voz da personagem Satildeo Sebastiatildeo vecirc a existecircncia de

um povo e seu mito e tenta ainda mudar a concepccedilatildeo de Aimbirecirc impondo o mito

cristatildeo

(Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo

espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

138 GUSDORF1959 p 55-56 139 CASSIRER 1945 p113

134

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas

velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas

palavras amigas

Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute

De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba disso natildeo

os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa

Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos

jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa

Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de

comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas

avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos

aprisionando

135

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando

AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e aos viacutecios bem se

convertem agrave forccedila do nosso mando

Os diabos aqui retratados tentam usar de uma linguagem que permite

estruturar seu conhecimento sobre si e sobre seu povo uma linguagem que

pudesse ser capaz de transcrever sua realidade vivida mas que pertencesse a

seu proacuteprio conhecimento de mundo um mundo indiacutegena um mundo desenhado

pelo mito primordial e pela essecircncia de seu ser e de sua existecircncia humana que

se fixa atraveacutes de uma paisagem desenhada pelo grupo social a que pertence a

tribo de sua origem de seu nome e de sua identidade envolta por uma membrana

relacionada com a moral e com a espiritualidade de seu povo

Eacute atraveacutes do mito que o homem se relaciona com o outro pensa seus

deuses pensa sua vida e vive as relaccedilotildees do povo a que pertence Eacute pelo mito

que satildeo definidas as tarefas coletivas e individuais da comunidade na defesa na

guarda dos indiviacuteduos coletores ou caccediladores guerreiros ou agricultores

partilhando vivecircncias e vivenciando a cooperatividade

136

A cooperatividade e mutualidade servem para garantir o alimento a

cultura e a tradiccedilatildeo as quais tambeacutem alimentam tanto para si como para os que

do indiviacuteduo miacutetico dependem sendo a base psiacutequica para o ser em suas

necessidades de viver ou estruturar a experiecircncia tribal

Mas quer Anchieta que seus personagens entendam o inferno mas o

proacuteprio texto mostra que Aimbirecirc percebe que os brancos tambeacutem cultuam esse

inferno de alguma forma

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a

taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

Inferno um local subterracircneo habitado pelos mortos um lugar em que

as almas pecadoras se entram apoacutes a morte submetidas a penas eternas

Novamente o absconditus soacute que agora natildeo eacute mais Deus quem estaacute escondido e

sim o diabo isto eacute eles mesmos Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e todos os outros

mesmo que eles mesmos natildeo saibam disso

SAtildeO LOURENCcedilO

Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura

137

Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma

que o bem procura

Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar

dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai

abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados

passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios

renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou

eu abandonaacute-los

E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los

Tanto confiaram em mim construindo esta capela

plantando o bem sobre ela

Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso

138

Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs

daqui lhes darei sumiccedilo

Deles nem sombra vereis

Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas

tridentes e alegrar as nossas gentes

Jaacute aqui Anchieta propotildee que os diabos saibam bem quem satildeo qual

sua origem e qual seu destino Mas Guaixaraacute e seus companheiros natildeo tinham

essa concepccedilatildeo de origem e de destino do mito cristatildeo ou mesmo de profano e de

sagrado pois sagrado ou profano eacute tudo aquilo que se encontra sob os olhos do

homem no entanto no iacutendio real natildeo interpretado de um texto apologeacutetico natildeo

havia a clara noccedilatildeo de profano e sagrado nem de pecado pois isso natildeo estava

sob seus olhos existindo sim o tabu que cometido ou invadido natildeo tinha perdatildeo

e soacute poderia receber a morte diferente do pecado que por maior que fosse teria

como ser renegado e obtido o perdatildeo para que se siga em direccedilatildeo aos Ceacuteus

As diversas formas da realidade seguem-se agraves diversas formas que o

sagrado assume ao revelar-se Independentemente dos contrastes e das

oposiccedilotildees que integram o mundo do real sensiacutevel haacute uma coincidecircncia radical no

Ser e no Sagrado O divino garante estas oposiccedilotildees e diversidades

apresentando-se ele mesmo das mais diversas maneira 140

Enfim apoacutes o embate de mitos de um lado Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo e

do outro Aimbirecirc e Saravaia como sempre o considerado Bem vence o

140 CRIPPA 1975 p117

139

considerado Mal onde ateacute os franceses e castelhanos satildeo considerados aliados

do Diabo e nesse embate de mitos o branco portuguecircs cristatildeo e jesuiacuteta vence o

Curupira a Grande Matildee a Matildee dacuteaacutegua o Macuteboy-tataacute

O Anjo Fala com os santos convidando-os a cantar e se

despede)

Cantemos todos cantemos

Que foi derrotado o mal

Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa

alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima

repeticcedilatildeo da cantiga choram)

Conforme se pode perceber no texto que define o terceiro ato e muito

do texto a seguir os anjos de Deus comandam os diabos Aimbirecirc e Saravaia para

que atuem sob seu comando fazendo arder nos infernos outros que podem ser

considerados pecadores Deacutecio e Valeriano imperadores e que representam

possivelmente no auto de Satildeo Lourenccedilo outros chefes tribais que natildeo aceitaram a

pregaccedilatildeo

ANJO

Aimbirecirc

Estou chamando vocecirc

Apressa-te Corre Jaacute

140

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute

Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para

dar-te como presa

De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los

Que para o sol sejam cegos

Ide ao fogo cozinhaacute-los

Castiga com teus vassalos estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto

Sejam tais ordens cumpridas

Reunirei meus democircnios

Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que

temos planos medonhos

(Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana

Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Sus Caborecirc vecirc se te

inflama pra comer estes perus

141

(Acodem todos os quatro com suas armas)

Dessa forma necessita psicologicamente o homem miacutetico de uma

visatildeo de unidade que impotildee a forma humana agrave totalidade do universo criando

deuses agrave sua imagem e semelhanccedila que criam homens agrave sua imagem e

semelhanccedila

Anchieta nos mostra neste ponto que tambeacutem os diabos criam seus

conceitos de Bem e Mal a partir de semelhanccedilas tanto com Deus como com o

Diabo pois para aceitarem o mito que altera seus costumes que gera dentro

deles uma perda da consciecircncia de uma realidade transpessoal seus deuses as

anarquias interna e externa dos desejos pessoais rivais assumem o poder e como

os cristatildeos passam a criar deidades agrave sua imagem e semelhanccedila as quais criam

homens agrave suas imagens e semelhanccedilas

Mostra Anchieta quando fala dos romanos no texto do Auto que Deacutecio

e Valeriano satildeo adeptos a ideacuteias contraacuterias ao cristianismo satildeo guerreiros

conquistadores pagatildeos e portanto infieacuteis que deveratildeo ser castigados mas por

quem por aqueles considerados pelo mito cristatildeo iguais a estes isto eacute Aimbirecirc e

Saravaia e outros diabos que os enganaraacute os assaraacute os sangraraacute atendendo agraves

ordens dos anjos e dos santos catoacutelicos Neste momento do texto do auto de Satildeo

Lourenccedilo os diabos chamam de castelhanos os imperadores o que pode servir

para mostrar o juiacutezo que dos castelhanos (ou de sua liacutengua) faziam entatildeo os

lusitanos juiacutezo esse perfilhado mesmo por quem como Anchieta nascera em

terras de Espanha

142

Caos total na cultura indiacutegena O mito cristatildeo eacute imposto sobre a pureza

da indianidade

No quarto o Temor de Deus e o Amor de Deus mandam sua mensagem

de que os iacutendios (puacuteblico-alvo de Joseacute de Anchieta) devem amar e temer a Deus

que por eles tudo sacrificou Neste quarto ato novamente o sagrado cristatildeo

invade o espaccedilo sagrado do mito indiacutegena invade o espaccedilo miacutetico primitivo

substituindo o altar de sacrifiacutecios espaccedilo de magia do pajeacute vital para a

manutenccedilatildeo de seu pensamento e estrutura de sua psique pelo altar a Deus

como um marco de apenas uma existecircncia possiacutevel como um lugar de uma

existecircncia real e que lhe daacute um novo sentido pois ali natildeo moram mais seus

deuses natildeo moram seus mortos seus pensamentos e desejos e sim um mito

cristatildeo

Reafirma essa imposiccedilatildeo do sagrado cristatildeo sobre o sagrado

indiacutegenas no momento do quinto ato onde na danccedila final de doze meninos

invocando Satildeo Lourenccedilo afirmando em tupi os bons propoacutesitos de seguir os

ensinamentos cristatildeos O fim da apresentaccedilatildeo criava um clima propiacutecio para que o

puacuteblico em verdadeiro coro formulasse idecircnticos votos de viver segundo os

preceitos religiosos

Natildeo haacute mais por esse auto de Anchieta um espaccedilo sagrado onde o

indiacutegena pudesse realizar seus rituais suas suplicas seus sacrifiacutecios fazendo

com percam por completo e em definitivo o local onde suas forccedilas vitais pudessem

se encontrar se concentrar e os fazer existir como satildeo

143

Conforme Cripa141 quando novas simbologias satildeo inseridas no

processo de manifestaccedilatildeo do sagrado elas assumem uma dimensatildeo nova a

sacralidade manifestando um poder transcendente e incontrolaacutevel pelo homem

tornando ao final o indiacutegena em um arremedo de branco e portuguecircs confirmando

assim a profecia do pajeacute que dizia que o iacutendio se transformaria no branco e o

branco em iacutendio Isso natildeo aconteceu o indiacutegena se transformou em algo que

caminha sobre a terra

Com a queda do pano na boca de cena para Anchieta o iacutendio se

converteu Vejamos em que ele acreditava

falamos-lhe que o queriacuteamos batizar para que sua alma

natildeo se perdesse mas que por entatildeo natildeo podiacuteamos ensinar-lhe o que

era necessaacuterio por falta de tempo e que estivesse preparado para

quando voltaacutessemos Folgou ele tanto com esta notiacutecia como vinda

do Ceacuteu e teve-a tanto em memoacuteria que agora quando viemos e lhe

perguntamos se queria ser Cristatildeo respondeu com muita alegria que

sim e que jaacute desde entatildeo o estava esperando [] O que se lhe

imprimiu foi o misteacuterio da Ressurreiccedilatildeo que ele repetia muitas vezes

dizendo Deus verdadeiro eacute Jesus que saiu da sepultura e subiu ao

Ceacuteu e depois haacute de vir muito irado a queimar todas as cousas []

Chegando agrave porta da igreja o assentamos em uma cadeira onde

estavam jaacute seus padrinhos com outros cristatildeos a esperaacute-lo Aiacute lhe

tornei a dizer que dissesse diante de todos o que queria e ele

respondeu com grande fervor que queria ser batizado e que toda

aquela noite estivera pensando na ira de Deus que havia de ter para

141 CRIPPA 1975 p120

144

queimar todo o mundo e destruir todas as cousas e de como

haviacuteamos de ressuscitar todos142

142 ANCHIETA - Cartas- 1988 p 199 - Carta ao Geral Diogo Lainez de Satildeo Vicente a 16 de abril de 1563

145

CONCLUSAtildeO - O RESULTADO DO EMBATE DESSES MITOS NA EDUCACcedilAtildeO E NA CULTURA

BRASILEIRA

Noacutes brancos negros mesticcedilos e cristatildeos ou natildeo pudemos ter nesse

Brasil uma heranccedila que poderia ser considerada magna quer na liacutengua que

falamos quer nas artes nas danccedilas na culinaacuteria que a Cunhatilde matildee da famiacutelia

brasileira nos deixou diria com certeza Gilberto Freire Aprendemos e

incorporamos tantos e tantos itens dessa cultura maravilhosa que veio do

indiacutegena fomos educados pelas Cunhatildes

Mas desde Caminha sempre se repetem pela educaccedilatildeo formal

brasileira as maravilhas deste paiacutes desta terra como se eles os indiacutegenas nunca

tivessem existido esquecendo-se que transmissatildeo cultural eacute educaccedilatildeo

Poreacutem a terra em si eacute de muitos bons ares assim frios e

temperados como os de Entre-Doiro e Miacutenho porque neste tempo

de agora assim os achaacutevamos como os de laacute Aacuteguas satildeo muitas

infindas E em tal maneira eacute graciosa que querendo-a aproveitar dar-

se-aacute nela tudo por bem das aacuteguas que tem 143

143 CAMINHA 2000 p 12

146

Podemos observar no trecho acima que o Brasil eacute descrito como

mundo feacutertil de clima ameno vida promissora Esse relato eacute consequumlecircncia da

visatildeo medieval da natureza na qual a exuberacircncia eacute uma manifestaccedilatildeo divina

Nessa idealizaccedilatildeo cada visatildeo da terra eacute uma liccedilatildeo de Deus e tudo eacute associado

entatildeo ao Eacuteden ao Paraiacuteso Terrestre Discurso elaborado no periacuteodo de

conquista da terra e que se repete ao longo dos seacuteculos

Vejamos por exemplo um trecho proacuteprio do romantismo da Canccedilatildeo do

Exiacutelio de Gonccedilalves Dias (seacuteculo XIX)

Minha terra tem palmeiras

Onde canta o Sabiaacute

As aves que aqui gorjeiam

Natildeo gorjeiam como laacute

Nosso ceacuteu tem mais estrelas

Nossas vaacuterzeas tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida mais amores

Ateacute mesmo canccedilotildees atuais cantam essa terra maravilhosa onde o

Eacuteden repousa como em Paiacutes Tropical de Jorge Ben Jor (seacuteculo XX)

Moro num paiacutes tropical

Abenccediloado por Deus

E bonito por natureza

Mas que beleza

Fevereiro tem carnaval

Tem carnaval

147

O Hino Nacional Brasileiro tambeacutem se rende ao mito do Paraiacuteso

Terrestre ser o Brasil

Se em teu formoso ceacuteu risonho e liacutempido

A imagem do Cruzeiro resplandece

Do que a terra mais garrida

Teus risonhos lindos campos tecircm mais flores

Nossos bosques tecircm mais vida

Nossa vida no teu seio mais amores

Gigante pela proacutepria natureza

Es belo eacutes forte impaacutevido colosso

E o teu futuro espelha essa grandeza

Terra adorada

Entretanto haacute textos que subvertem ironicamente a histoacuteria oficial do

paiacutes apresentada na Carta de Caminha num processo de desconstruccedilatildeo desse

mito de que o Eacuteden eacute aqui Mostram um Brasil cheio de contrastes tal como este

fragmento da muacutesica Iacutendios do conjunto Legiatildeo Urbana (seacuteculo XXI)

Quem me dera ao menos uma vez

Ter de volta todo o ouro que entreguei

A quem conseguiu me convencer

Que era prova de amizade

Se algueacutem levasse embora ateacute o que eu natildeo tinha

Quem me dera ao menos uma vez

Provar que quem tem mais do que precisa ter

Quase sempre se convence que natildeo tem o bastante

148

E fala demais por natildeo ter nada a dizer

Quem me dera ao menos uma vez

Que o mais simples fosse visto como o mais importante

Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Quem me dera ao menos uma vez

Entender como um soacute Deus ao mesmo tempo eacute trecircs

E esse mesmo Deus foi morto por vocecircs -

Eacute soacute maldade entatildeo deixar um Deus tatildeo triste

Quem me dera ao menos uma vez

Como a mais bela tribo dos mais belos iacutendios

Natildeo ser atacado por ser inocente

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente

Tentei chorar e natildeo consegui

Em sua carta aleacutem das primeiras imagens da terra e dos homens

Caminha ressalta que Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que

seraacute salvar esta gente e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela

deve lanccedilar Mas o iacutendio apoacutes a conversatildeo apoacutes ter sido educado pelo branco

vestiu maacutescaras de cristandade maacutescaras de algueacutem com pele branca maacutescaras

de civilizaccedilatildeo europeacuteia marca indeleacutevel de sua condiccedilatildeo de escravo do

colonizador europeu quinhentista e seiscentista

O mito cristatildeo nesse embate derrotou Guaixaraacute Aimbirecirc Saravaia e

todos os outros diabos levando com eles ateacute Deacutecio e Valeriano Elimina o mito de

149

Acircgacircmahsacircpu o Pai maior o mito dos Diroaacute e dos Koaacuteyea e todo o conhecimento

do mito indiacutegena

Entendo que todo o trabalho aqui apresentado eacute uma conclusatildeo de per

si e leva o leitor a uma compreensatildeo do embate de mitos e quem venceu Que

lado se tornou o Bem e que lado se tornou o Mal

Gostaria de encerrar esta proposta voltando a tradiccedilatildeo indiacutegena natildeo

considerada fonte histoacuterica mas real como real eacute ainda alguma sombra tecircnue do

mito indiacutegena trazendo a Histoacuteria de Umukomahsu144

os Desana ficaram divididos em vaacuteria malocas onde

viviam sossegados Trabalhavam e faziam grandes festas como a

festa de oferta de bens (poori) Na maloca do filho de Boreka tambeacutem

chamado Boreka havia um tipo de boneco de que ele era o dono

Chamava-se Gotildeatildemecirc (demiurgo) Ele morava dentro de uma grande

cuia de um metro de altura sustentada sobre um suporte de panela

Durante o dia ele se parecia como uma cobra venenosa Mas ele natildeo

mordia De noite no sonho ele tinha relaccedilatildeo sexual com a mulher de

Boreka Assim a mulher de Boreka contava para as outras mulheres

No sonho ele lhe aparecia como um padre agraves vezes como um

Branco Assim natildeo somente ele tinha vida como tambeacutem ele vivia no

sonho com algumas outras mulheres da maloca de Boreka Mas natildeo

com todas Escolhia a mulher com quem ia viver no sonho Ele natildeo

fazia isso com as solteiras somente com as mulheres que jaacute tinham

marido isto eacute que pertenciam a outra tribo Por isso quando nascia

uma crianccedila da mistura do secircmem de Gotildeatildemecirc e do marido jaacute se sabia

que quando crescesse ele seria inteligente saacutebio e adivinho Gotildeatildemecirc

144 LANA 1995 p58-59

150

tinha relaccedilatildeo sexual no sonho com cinco mulheres da maloca de

Boreka que tinham marido

Ele tinha um grande poder Protegia Boreka livrando-o de

todos os males e de todos os perigos que dele se aproximassem

Enquanto viviam deste modo chegaram os primeiros Brancos na

regiatildeo De acordo coma a histoacuteria do Brasil esses Brancos seriam os

bandeirantes Depois deles chegaram os Brancos que agarraram a

gente Eles cercavam a maloca de Boreka mas natildeo conseguiram

entrar nela Suas pernas ficaram moles Eles natildeo tinham mais forccedila

para andar Voltaram uma segunda vez cercaram a maloca e

aconteceu a mesma coisa Tornaram a voltar e sucedia o mesmo Por

isso eles perguntaram para os iacutendios de outras tribos porque eles

ficavam deste jeito quando tentavam entrar na maloca de Boreka Os

outros contaram que Boreka tinha na sua maloca um tipo de boneco

que o defendia Os Brancos perguntaram em qual lugar ele ficava

guardado Responderam que era bem no meio da porta do quarto de

Boreka A porta chamava-se Imikadihsi (porta dos Paris) Ele estava

sobre essa porta em cima de um suporte de cuia

Os Brancos ouviram tudo direito e foram outra vez para a

maloca de Boreka Quando chegaram a primeira coisa que fizeram foi

derrubar Gotildeatildemecirc com um tiro de espingarda Atiraram sem ver nada

porque sabiam onde ele se encontrava A casa de Gotildeatildemecirc isto eacute a

cuia ficou totalmente despedaccedilada mas ele subiu ao ceacuteu Os

Brancos cercaram entatildeo a maloca e agarraram Boreka O

descendente legiacutetimo da Gente de Transformaccedilatildeo foi assim preso

pelos Brancos O irmatildeo de Boreka conseguiu fugir e tomou o lugar

dele como chefe supremo dos Desana Boreka quando foi levado

pelos Brancos levou consigo a maior parte dos seus poderes Natildeo se

sabe para qual lugar os Brancos o levaram Talvez esteja na Bahia

no Rio de Janeiro ou no Portugal Isso ningueacutem sabe As riquezas

restantes ficaram todas para a sua geraccedilatildeo Elas estatildeo com os

descendentes de Boreka os Borekapotilderatilde Entre outras estatildeo os

pumuribuya os Enfeites de Transformaccedilatildeo e as outras coisas

tiradas da Maloca do Universo

151

APEcircNDICES

Senti durante este trabalho a necessidade de acrescentar estes

apecircndices com o intuito de levar ao leitor uma seacuterie de informaccedilotildees que natildeo

pertencem ao objeto de estudo e a proacutepria tese em si mas que colaboraram para

o entendimento de mito cristatildeo no sentido especialmente cultural e que puderam

influenciar na missatildeo de educaccedilatildeo e catequese jesuiacutetica ao indiacutegena brasileiro

Para tanto apresento a seguir o texto completo do Auto de S Lourenccedilo

e trecircs estudos por mim realizados em forma de apecircndices A missa e os

siacutembolos culturais de transformaccedilatildeo do homem O mito de Cristo e por fim

Uma proposta de interpretar psicoloacutegica e miticamente a Trindade

152

APEcircNDICE 1 O AUTO DE SAtildeO LOURENCcedilO JOSEacute DE ANCHIETA

PERSONAGENS

GUAIXARAacute - rei dos diabos AIMBIREcirc SARAVAIA - criados de Guaixaraacute TATAURANA URUBU JAGUARUCcedilU - companheiros dos diabos VALERIANO DEacuteCIO - Imperadores romanos SAtildeO SEBASTIAtildeO - padroeiro do Rio de Janeiro SAtildeO LOURENCcedilO - padroeiro da aldeia de Satildeo Lourenccedilo VELHA ANJO TEMOR DE DEUS AMOR DE DEUS CATIVOS E ACOMPANHANTES

TEMA Apoacutes a cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo Guaixaraacute chama Aimbirecirc e Saravaia para ajudarem a perverter a aldeia Satildeo Lourenccedilo a defende Satildeo Sebastiatildeo prende os democircnios Um anjo manda-os sufocarem Deacutecio e Valeriano Quatro companheiros acorrem para auxiliar os democircnios Os imperadores recordam faccedilanhas quando Aimbirecirc se aproxima O calor que se desprende dele abrasa os imperadores que suplicam a morte O Anjo o Temor de Deus e o Amor de Deus aconselham a caridade contriccedilatildeo e confianccedila em Satildeo Lourenccedilo Faz-se o enterro do santo Meninos iacutendios danccedilam

PRIMEIRO ATO (Cena do martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo) Cantam

Por Jesus meu salvador Que morre por meus pecados Nestas brasas morro assado Com fogo do meu amor Bom Jesus quando te vejo Na cruz por mim flagelado

Eu por ti vivo e queimado Mil vezes morrer desejo Pois teu sangue redentor Lavou minha culpa humana Arda eu pois nesta chama Com fogo do teu amor

153

O fogo do forte amor Ah meu Deus com que me amas Mais me consome que as chamas E brasas com seu calor

Pois teu amor pelo meu Tais prodiacutegios consumou Que eu nas brasas onde estou Morro de amor pelo teu

SEGUNDO ATO (Eram trecircs diabos que querem destruir a aldeia com pecados aos quais resistem Satildeo Lourenccedilo Satildeo Sebastiatildeo e o Anjo da Guarda livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes satildeo Guaixaraacute que eacute o rei Aimbirecirc e Saravaia seus criados)

GUAIXARAacute

Esta virtude estrangeira Me irrita sobremaneira Quem a teria trazido com seus haacutebitos polidos estragando a terra inteira Soacute eu permaneccedilo nesta aldeia como chefe guardiatildeo Minha lei eacute a inspiraccedilatildeo que lhe dou daqui vou longe visitar outro torratildeo Quem eacute forte como eu Como eu conceituado Sou diabo bem assado A fama me precedeu Guaixaraacute sou chamado Meu sistema eacute o bem viver Que natildeo seja constrangido o prazer nem abolido Quero as tabas acender com meu fogo preferido Boa medida eacute beber cauim ateacute vomitar Isto eacute jeito de gozar a vida e se recomenda a quem queira aproveitar A moccedilada beberrona

trago bem conceituada Valente eacute quem se embriaga e todo o cauim entorna e agrave luta entatildeo se consagra Quem bom costume eacute bailar Adornar-se andar pintado tingir pernas empenado fumar e curandeirar andar de negro pintado Andar matando de fuacuteria amancebar-se comer um ao outro e ainda ser espiatildeo prender Tapuia desonesto a honra perder Para isso com os iacutendios convivi Vecircm os tais padres agora com regras fora de hora praacute que duvidem de mim Lei de Deus que natildeo vigora Pois aqui tem meu ajudante-mor diabo bem requeimado meu bom colaborador grande Aimberecirc perversor dos homens regimentado

(Senta-se numa cadeira e vem uma velha chorar junto dele E ele a ajuda como fazem os iacutendios Depois de chorar achando-se enganada diz a velha)

154

VELHA

O diabo mal cheiroso teu mau cheiro me enfastia Se vivesse o meu esposo meu pobre Piracaecirc isso agora eu lhe diria Natildeo prestas eacutes mau diabo Que bebas natildeo deixarei do cauim que eu mastiguei Beberei tudo sozinha ateacute cair beberei (a velha foge)

GUAIXARAacute (Chama Aimberecirc e diz)

Ei por onde andavas tu Dormias noutro lugar

AIMBIREcirc

Fui as Tabas vigiar nas serras de norte a sul nosso povo visitar Ao me ver regozijaram bebemos dias inteiros Adornaram-se festeiros Me abraccedilaram me hospedaram das leis de deus estrangeiros Enfim confraternizamos Ao ver seu comportamento tranquumlilizei-me Oacute portento Viacutecios de todos os ramos tem seus coraccedilotildees por dentro

GUAIXARAacute

Por isso no teu grande reboliccedilo eu confio que me baste os novos que cativaste os que corrompeste ao viacutecio Diz os nomes que agregaste

155

AIMBIREcirc

Gente de maratuauatilde no que eu disse acreditaram os das ilhas nestas matildeos deram alma e coraccedilatildeo mais os paraibiguaras Eacute certo que algum perdi que os missionaacuterios levaram a Mangueaacute Me irritaram Raivo de ver os tupis que do meu laccedilo escaparam Depois dos muitos que nos ficaram os padres sonsos quiseram com mentiras seduzir Natildeo vecirc que os deixei seguir - ao meu apelo atenderam

GUAIXARAacute

De que recurso usaste para que natildeo nos fugissem

AIMBIREcirc

Trouxe aos tapuias os trastes das velhas que tu instruiacuteste em Mangueaacute Que isto baste Que elas satildeo de fato maacutes fazem feiticcedilo e mandinga e esta lei de Deus natildeo vinga Conosco eacute que buscam a paz no ensino de nossa liacutengua E os tapuias por folgarem nem quiseram vir aqui De danccedila os enlouqueci para a passagem comprarem para o inferno que acendi

GUAIXARAacute

Jaacute chega

156

Que tua fala me alegra teu relatoacuterio me encanta

AIMBIREcirc

Usarei de igual destreza para arrastar outras presas nesta guerra pouco santa O povo Tupinambaacute que em Paraguaccedilu morava e que de Deus se afastava deles hoje um soacute natildeo haacute todos a noacutes se entregaram Tomamos Moccedilupiroca Jequei Gualapitiba

Niteroacutei e Paraiacuteba Guajajoacute Carijoacute-oca Pacucaia Araccedilatiba Todos os tamoios foram Jazer queimando no inferno Mas haacute alguns que ao Padre Eterno fieacuteis nesta aldeia moram livres do nosso caderno Estes maus Temiminoacutes nosso trabalho destroem

GUAIXARAacute

Vem tentaacute-los que se moem a blasfemar contra noacutes Que bebam roubem e esfolem Que provoquem muitas lutas muitos pecados cometam por outro lados se metam longe desta aldeia agrave escuta dos que as nossas leis prometam

AIMBIREcirc

Eacute bem difiacutecil tentaacute-los Seu valente guardiatildeo me amedronta

GUAIXARAacute

E quais satildeo

AIMBIREcirc

Eacute Satildeo Lourenccedilo a guiaacute-los de Deus fiel Capitatildeo

157

GUAIXARAacute

Qual Lourenccedilo o consumado nas chamas qual somos noacutes

AIMBIREcirc

Esse

GUAIXARAacute

Fica descansado Natildeo sou assim tatildeo covarde seraacute logo afugentado Aqui estaacute quem o queimou e ainda vivo o cozeu

AIMBIREcirc

Por isso o que era teu ele agora libertou e na morte te venceu Haacute tambeacutem o seu amigo Bastiatildeo de flechas crivado

GUAIXARAacute

O que eu deixei transpassado Natildeo faccedilas broma comigo que sou bem desaforado Ambos fugiratildeo logo aqui me virem chegar

AIMBIREcirc

Olha que vais te enganar

GUAIXARAacute

158

Tem confianccedila te rogo que horror lhes vou inspirar Quem como eu nas terras existe que ateacute Deus desafiou

AIMBIREcirc

Por isso Deus te expulsou e do inferno o fogo triste para sempre te abrasou Eu lembro de outra batalha em que Guaixaraacute entrou Muito povo te apoiou e inda que lhes desses forccedilas na fuga se debandou Natildeo eram muitos cristatildeos Contudo nada ficou da forccedila que te inspirou pois veio Sebastiatildeo na forccedila fogo ateou

GUAIXARAacute

Por certo aqueles cristatildeos tatildeo rebeldes natildeo seriam Mas esses que aqui estatildeo desprezam a devoccedilatildeo e a Deus natildeo reverenciam Vais ver como em nossos laccedilos caem logo estes malvados De nossos dons confiados as almas cederam passo para andar do nosso lado

AIMBIREcirc

Assim mesmo tentarei Um dia obedeceratildeo

GUAIXARAacute

Ao sinal de minha matildeo os iacutendios te entregarei

159

E agrave forccedila sucumbiratildeo

AIMBIREcirc

Preparemos a emboscada Natildeo te afobes Nosso espia veraacute em cada morada que armas nos satildeo preparadas na luta que se inicia

GUAIXARAacute

Muito bem eacutes capaz disso Saravaia meu vigia

SARAVAIA

Sou democircnio da alegria e assumi tal compromisso Vou longe nesta porfia Saravaiaccedilu me chamo Com que tarefa me aprazas

GUAIXARAacute

Ouve as ordens de teu amo quero que espies as casas e voltes quando te chame Hoje vou deixar que leves os iacutendios aprisionados

SARAVAIA

Irei onde me carregues E agradeccedilo que me entregues encargo tatildeo desejado Como Saravaia sou aos iacutendios que me aliei enfim aprisionarei E neste barco me vou De cauim me embriagarei

160

GUAIXARAacute

Anda logo vai ligeiro

SARAVAIA

Como um raio correrei (Sai)

GUAIXARAacute (Passeia com Aimbirecirc e diz)

Demos um curto passeio Quando volte o mensageiro a aldeia destroccedilarei (Volta Saravaia e Aimberecirc diz)

AIMBIREcirc

Danado Voltou voando

GUAIXARAacute

Demorou menos que um raio Foste mesmo Saravaia

SARAVAIA

Fui Jaacute estatildeo comemorando os iacutendios nossa vitoacuteria Alegra-te Transbordava o cauim o prazer regurgitava E a beber as igaccedilabas esgotam ateacute o fim

GUAIXARAacute

E era forte

161

SARAVAIA

Forte estava E os rapazes beberrotildees que pervertem esta aldeia caiam de cara cheia Velhos velhas mocetotildees que o cauim desnorteia

GUAIXARAacute

Jaacute basta Vamos mansinho tomaacute-los todos de assalto Nosso fogo arda bem alto (Vem Satildeo Lourenccedilo com dois companheiros Diz Aimbirecirc)

AIMBIREcirc

Haacute um sujeito no caminho que me ameaccedila de assalto Seraacute Lourenccedilo o queimado

SARAVAIA

Ele mesmo e Sebastiatildeo

AIMBIREcirc

E o outro dos trecircs que satildeo

SARAVAIA

Talvez seja o anjo mandado desta aldeia o guardiatildeo

AIMBIREcirc

Ai Eles me esmagaratildeo Natildeo posso sequer olhaacute-los

162

GUAIXARAacute

Natildeo te entregues assim natildeo ao ataque meu irmatildeo Teremos que amedrontaacute-los As flechas evitaremos fingiremos de atingidos

AIMBIREcirc

Olha eles vecircm decididos a accediloitar-nos Que faremos Penso que estamos perdidos (Satildeo Lourenccedilo fala a Guaixaraacute)

SAtildeO LOURENCcedilO

Quem eacutes tu

GUAIXARAacute

Sou Guaixaraacute embriagado sou boicininga jaguar antropoacutefago agressor andiraacute-guaccedilu alado sou democircnio matador

SAtildeO LOURENCcedilO

E este aqui

AIMBIREcirc

Sou jiboacuteia sou socoacute o grande Aimbirecirc tamoio Sucuri gaviatildeo malhado sou tamanduaacute desgrenhado sou luminosos democircnio

163

SAtildeO LOURENCcedilO

Dizei-me o que quereis desta minha terra em que nos vemos

GUAIXARAacute

Amando os iacutendios queremos que obediecircncia nos prestem por tanto que lhes fazemos Pois se as coisas satildeo da gente ama-se sinceramente

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Quem foi que insensatamente um dia ou presentemente os iacutendios vos entregou Se o proacuteprio Deus tatildeo potente deste povo em santo ofiacutecio corpo e alma modelou

GUAIXARAacute

Deus Talvez remotamente pois eacute nada edificante a vida que resultou Satildeo pecadores perfeitos repelem o amor de Deus e orgulham-se dos defeitos

AIMBIREcirc Bebem cuim a seu jeito como completos sandeus ao cauim rendem seu preito Esse cauim eacute que tolhe sua graccedila espiritual Perdidos no bacanal seus espiacuteritos se encolhem em nosso laccedilo fatal

164

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo se esforccedilam por orar na luta do dia a dia Isto eacute fraqueza de certo

AIMBIREcirc

Sua boca respira perto do pouco que Deus confia

SARAVAIA

Eacute verdade intimamente resmungam desafiando ao Deus que os estaacute guiando Dizem Seraacute realmente capaz de me ver passando

SAtildeO SEBASTIAtildeO (Para Saravaia)

Seraacutes tu um pobre rato Ou eacutes um gambaacute nojento Ou eacutes a noite de fato que as galinhas afugenta e assusta os iacutendios no mato

SARAVAIA

No anseio de devorar as almas sequer dormi

GUAIXARAacute

Cala-te Fale eu por ti

SARAVAIA

Natildeo vaacutes me denominar pra que natildeo me mate aqui Esconda-me antes dele

165

Eu por ti vigiarei

GUAIXARAacute

Cala-te Te guardarei Que a liacutengua natildeo te revele depois te libertarei

SARAVAIA

Se natildeo me viu safarei Inda posso me esconder

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Cuidado que lanccedilarei o dardo em que o flecharei

GUAIXARAacute

Deixa-o Vem de adormecer

SAtildeO SEBASTIAtildeO

A noite ele natildeo dormiu para os iacutendios perturbar

SARAVAIA

Isso natildeo se haacute de negar (Accediloita-o Guaixaraacute e diz)

GUAIXARAacute

Cala-te Nem mais um pio que ele quer te devorar

SARAVAIA

166

Ai de mim Por que me bates assim pois estou bem escondido (Aimbirecirc com Satildeo Sebastiatildeo)

AIMBIREcirc

Vamos Deixa-nos a soacutes e retirai-vos que a noacutes meu povo espera afligido

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Que povo

AIMBIREcirc

Todos os que aqui habitam desde eacutepocas mais antigas velhos moccedilas raparigas submissos aos que lhes ditam nossas palavras amigas Vou contar todos seus viacutecios Em mim acreditaraacutes

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Tu natildeo me convenceraacutes

AIMBIREcirc

Tecircm bebida aos desperdiacutecios cauim natildeo lhes faltaraacute De eacutebrios datildeo-se ao malefiacutecio ferem-se brigam sei laacute

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Ouvem do morubixaba censuras em cada taba

167

disso natildeo os livraraacutes

AIMBIREcirc

Censura aos iacutendios Conversa Vem logo o dono da farra convida todos agrave festa velhos jovens moccedilocaras com morubixaba agrave testa Os jovens que censuravam com morubixaba danccedilam e de comer natildeo se cansam e no cauim se lavam e sobre as moccedilas avanccedilam

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Por isso aos aracajaacutes vivem vocecircs frequumlentando e a todos aprisionando

AIMBIREcirc

Conosco vivem em paz pois se entregam aos desmandos

SAtildeO SEBASTIAtildeO

Uns aos outros se pervertem convosco colaborando AIMBIREcirc

Natildeo sei Vamos trabalhando e ao viacutecios bem se convertem agrave forccedila do nosso mando

GUAIXARAacute

Eu que te ajude a explicar As velhas como serpentes injuriam-se entre dentes maldizendo sem cessar

168

As que mais calam consentem Pecam as inconsequumlentes com intrigas bem tecidas preparam negras bebidas pra serem belas e ardentes no amor na cama e na vida

AIMBIREcirc

E os rapazes cobiccedilosos perseguindo o mulherio para escravas do gentio Assim invadem fogosos dos brancos o casario

GUAIXARAacute

Esta histoacuteria natildeo termina antes que desponte a lua e a taba se contamina

AIMBIREcirc

E nem sequer raciocinam que eacute o inferno que cultuam

SAtildeO LOURENCcedilO Mas existe a confissatildeo bem remeacutedio para a cura Na comunhatildeo se depura da mais funda perdiccedilatildeo a alma que o bem procura Se depois de arrependidos os iacutendios vatildeo confessar dizendo Quero trilhar o caminho dos remidos - o padre os vai abenccediloar

GUAIXARAacute

Como se nenhum pecado tivessem fazem a falsa

169

confissatildeo e se disfarccedilam dos viacutecios abenccediloados e assim viciados passam

AIMBIREcirc

Absolvidos dizem na hora da morte meus viacutecios renegarei E entregam-se agrave sua sorte

GUAIXARAacute

Ouviste que enumerei os males satildeo seu forte

SAtildeO LOURENCcedilO

Se com oacutedio procurais tanto assim prejudicaacute-los natildeo vou eu abandonaacute-los E a Deus erguerei meus ais para no transe amparaacute-los Tanto confiaram em mim construindo esta capela plantando o bem sobre ela Natildeo os deixarei assim sucumbir sem mais aquela

GUAIXARAacute

Eacute inuacutetil desista disso Por mais forccedila que lhes decircs com o vento num dois trecircs daqui lhes darei sumiccedilo Deles nem sombra vereis Aimbirecirc vamos conservar a terra com chifres unhas tridentes e alegrar as nossas gentes

AIMBIREcirc

170

Aqui vou com minhas garras meus longos dedos meus dentes

ANJO

Natildeo julgueis tolos dementes por no fogo esta legiatildeo Aqui estou com Sebastiatildeo e Satildeo Lourenccedilo natildeo tentem levaacute-los agrave danaccedilatildeo Pobres de voacutes que irritastes

de tal forma o bom Jesus Juro que em nome da cruz ao fogo vos condenastes (Aos santos) Prendei-os donos da luz (Os santos prendem os dois diabos)

GUAIXARAacute

Basta

SAtildeO LOURENCcedilO

Natildeo Teu cinismo me agasta Destes provas que sobejam de querer destruir a igreja SAtildeO SEBASTIAtildeO (A Aimberecirc)

Grita Lamenta Te arrasta Te prendi

AIMBIREcirc

Maldito Seja (Preso os dois fala o Anjo a Saravaia que ficou escondido)

ANJO

E tu que estaacute escondido seraacute acaso um morcego Sapo cururu minguaacute ou filhote de gambaacute ou bruxa pedindo arrego Sai daiacute seu fedorendo

171

abelha de asa de vento zorrilho maritaca seu lesma tamarutaca

SARAVAIA

Ai vida que me aprisionam Natildeo vecircs que morro de sono

ANJO

Quem eacutes tu

SARAVAIA

Sou Saravaia Inimigo dos franceses

ANJO

Teus tiacutetulos satildeo soacute estes SARAVAIA

Sou tambeacutem mestre em tocaia porco entre todas as reses

ANJO

Por isso eacutes sujo e enlameias tudo com teu negro rabo Veremos como pateias no fogo que a gente ateia

SARAVAIA

Natildeo Por todos os diabos Eu te dou ovas de peixe farinha de mandioca desde que agora me deixas te dou dinheiro aos feixes

172

ANJO

Natildeo te entendo maccedilaroca As coisas que me prometes em troca de onde roubaste Que morada assaltaste antes que aqui te escondeste Muito coisa tu furtaste

SARAVAIA

Natildeo somente o que falei Da casa dos bons cristatildeos foi bem pouco o que apanhei Tenho o que trago nas matildeos por muito que trabalhei Aqueles outros tecircm mais Para comprar cauim aos iacutendios em boa paz dei o que tinha e demais pois pobre acabei assim

ANJO

Vamos Restitui-lhes tudo o que tiveres roubado

SARAVAIA

Natildeo faccedilas isto estou becircbedo mais do que o demo rabudo da sogra do meu cunhado Tem paciecircncia me perdoa meu irmatildeo estou doente Das minhas almas presente farei a ti praacute que em boa hora as cucas lhes rebentes Leva o nome destes monstros e famoso ficaraacutes

173

ANJO

E onde lhes foste ao encontro

SARAVAIA

Fui pelo sertatildeo a dentro lacei as almas rapaz

ANJO

De que famiacutelias descendem

SARAVAIA

Desse assunto pouco sei Filhos de iacutendios talvez Na corda os enfileirei presos todos de uma vez Passei noites sem dormir nos seus lares espreitei fiz suas casas explodir suas mulheres lacei pra que natildeo possam fugir (Amarra-o o anjo e diz)

ANJO

Quantas maldades fizeste Por isso o fogo te espera Viveraacutes do que tramaste nesta abrasada tapera em que pro fim te pilhaste

SARAVAIA

Aimberecirc

AIMBIREcirc

Oi

174

SARAVAIA

Vem logo dar-me a matildeo Este louco me prendeu

AIMBIREcirc

A mim tambeacutem me venceu o flechado Sebastiatildeo Meu orgulho arrefeceu

SARAVAIA

Ai de mim Guaixaraacute dormes assim sem pensar em me salvar

GUAIXARAacute Estaacutes louco Saravaia Natildeo vecircs que Lourenccedilo ensaia maneira de me queimar

ANJO

Bem junto pois sois comparsas ardereis eternamente Enquanto noacutes Deo Gratias sob a luz da minha guarda viveremos santamente (Faz uma praacutetica aos ouvintes) Alegrai-vos filhos meus na santa graccedila de Deus pois que dos ceacuteus eu desci para junto a voacutes estar e sempre vos amparar dos males que haacute por aqui Iluminado esta aldeia junto de voacutes estarei por nada me afastarei - pois a isto me nomeia Deus Nosso Senhor e Rei

Ele que a cada um de voacutes um anjo seu destinou Que natildeo vos deixe mais soacutes e ao mando de sua voz os democircnios expulsou Tambeacutem Satildeo Lourenccedilo o virtuoso Servo de Nosso Senhor vos livra com muito amor terras e almas extremoso do democircnio enganador Tambeacutem Satildeo Sebastiatildeo valente santo soldado que aos tamoios rebelados deu outrora uma liccedilatildeo hoje estaacute do vosso lado E mais - Paranapucu

175

Jacutinga Moroacutei Sarigueacuteia Guiriri Pindoba Pariguaccedilu Curuccedila Miapei E a tapera do pecado a de Jabebiracica natildeo existe E lado a lado a naccedilatildeo dos derrotados no fundo do rio fica Os franceses seus amigos inutilmente trouxeram armas Por noacutes combateram Lourenccedilo jamais vencido e Satildeo Sebastiatildeo flecheiro Estes santos em verdade das almas se compadecem aparando-as desvanecem (Oacute armas da caridade) Do viacutecio que as envilece Quando o democircnio ameaccedilar vossas almas voacutes vereis com que forccedila hatildeo de zelar Santos e iacutendios sereis pessoas de um mesmo lar Tentai velhos viacutecios extirpar e as maldades caacute da terra evitai bebida e guerra adulteacuterio repudiai tudo o que o instinto encerra Amai vosso Criador cuja lei pura e isenta

Satildeo Lourenccedilo representa Engrandecei ao Senhor que de bens vos acrescenta Este mesmo Satildeo Lourenccedilo que aqui foi queimado vivo pelos maus feito cativo e ao martiacuterio foi infenso sendo o feliz redivivo Fazei-vos amar por ele e amai-o quanto puderdes que em sua lei nada se perde E confiando mais nele mais o ceacuteu se vos concede Vinde agrave direita celestial de Deus Pai ireis gozar junto aos que bem vatildeo guardar no coraccedilatildeo que eacute leal e aos peacutes de Deus repousar

(Fala com os santos convidando-os a cantar e se despede)

Cantemos todos cantemos Que foi derrotado o mal Esta histoacuteria celebremos nosso reino inauguremos nessa alegria campal

(Os santos levam presos os diabos os quais na uacuteltima repeticcedilatildeo da cantiga choram)

CANTIGA

Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado (Voltam os santos)

Alegrai-vos vivei bem vitoriosos do viacutecio aceitai o sacrifiacutecio que ao amor de Deus conveacutem Daiacute fuga ao Demo-ningueacutem Guaixaraacute seja queimado Aimbirecirc vaacute para o exiacutelio Saravaia condenado

176

TERCEIRO ATO Depois de Satildeo Lourenccedilo morto na grelha o Anjo fica em sua guarda e chama os dois diabos Aimbirecirc e Saravaia que venham sufocar os imperadores Deacutecio e Valeriano que estatildeo sentados em seus tronos

ANJO

Aimbirecirc Estou chamando vocecirc Apressa-te Corre Jaacute

AIMBIREcirc

Aqui estou Pronto O que haacute Seraacute que vai me pender de novo este passaratildeo

ANJO

Reservei-te uma surpresa tenho dois imperadores para dar-te como presa De Lourenccedilo em chama acesa foram ele os matadores

AIMBIREcirc

Boa Me fazes contente Agrave forccedila os castigarei e no fogo os queimarei como diabo eficiente Meu oacutedio satisfarei

ANJO

Eia depressa a afogaacute-los Que para o sol sejam cegos Ide ao fogo cozinhaacute-los Castiga com teus vassalos

177

estes dois sujos morcegos

AIMBIREcirc

Pronto Pronto Sejam tais ordens cumpridas Reunirei meus democircnios Saravaia deixa os sonhos traz-me de boa bebida que temos planos medonhos

SARAVAIA

Jaacute de nego me pintei oacute meu avocirc jaguaruna e o cauim preparei veraacutes como beberei nesta festa da fortuna Que vejo Um temiminoacute Ou filho de guaianaacute Seraacute esse um guaitacaacute que agrave mesa do jacareacute sozinho vou devorar

(Vecirc o Anjo e espanta-se)

E este paacutessaro azulatildeo quem seraacute que assim me encara Algum parente de arara

AIMBIREcirc

Eacute o anjo que em nossa matildeo potildee duas presas bem raras

SARAVAIA

Meus capangas atenccedilatildeo Tataurana Tamanduaacute vamos com calma por laacute que esses monstros quereratildeo

178

por certo me afogar

AIMBIREcirc

Vamos

SARAVAIA

Ai os mosquitos me mordem Espera ou me comeratildeo Tenho medo quem me acode Sou pequenino e eles podem tragar-me de supetatildeo

AIMBIREcirc

Os iacutendios que natildeo se fiam nesta conversa e se escondem se os mandam executar

SARAVAIA

Tecircm razatildeo se desconfiam vivem sempre a se lograr

AIMBIREcirc

Cala a boca beberratildeo soacute por isso eacutes tatildeo valente moleiratildeo impertinente

SARAVAIA

Ai de mim me prenderatildeo mas vou por te ver contente E a quem vamos devorar

AIMBIREcirc

179

A algozes de Satildeo Lourenccedilo

SARAVAIA

Aqueles cheios de ranccedilo Com isto eu vou mudar meu nome de que me canso Muito bem Suas entranhas sejam hoje o meu quinhatildeo

AIMBIREcirc

Vou morder seu coraccedilatildeo

SARAVAIA

E os que natildeo nos acompanham sua parte comeratildeo (Chama quatro companheiros para que os ajudem)

Tataurana traze a tua muccedilurana Urubu jaguaruccedilu traz a ingapema Suacutes Caborecirc vecirc se te inflama pra comer estes perus (Acodem todos os quatro com suas armas)

TATAURANA

Aqui estou com a muccedilurana e os braccedilos lhe comerei A Jaguaraccedilu darei o lombo a Urubu o cracircnio e as pernas a Caborecirc URUBU Aqui cheguei As tripas recolherei e com os bofes terei a panela a derramar E esta panela verei

180

minha sogra cozinhar

JAGUARUCcedilU

Com esta ingapema dura as cabeccedilas quebrarei e os miolos comerei Sou guaraacute onccedila criatura e antropoacutefago serei

CABOREcirc

E eu que em demandas andei aos franceses derrotando para um bom nome ir logrando agora contigo irei estes chefes devorando

SARAVAIA

Agora quietos De rastros natildeo nos viram Vou agrave frente Que natildeo escapem da gente Vigiarei No tempo exato ataquemos de repente

(Vatildeo todos agachados em direccedilatildeo a Deacutecio e Valeriano que conversam)

DEacuteCIO

Amigo Valeriano minha vontade venceu Natildeo houve arte no ceacuteu que livrasse do meu plano o servo do Galileu Nem Pompeu e nem Catatildeo nem Cesar nem o Africano nenhum grego nem troiano puderam dar conclusatildeo a um feito tatildeo soberano

181

VALERIANO

O remate gratildeo-Senhor desta tatildeo grande faccedilanha foi mais que vencer Espanha Jamais rei ou imperador logrou coisa tatildeo estranha Mas Senhor esse quem eacute que vejo ali tatildeo armado com espadas e cordel e com gente de tropel vindo tatildeo acompanhado

DEacuteCIO

Eacute o grande deus nosso amigo Juacutepiter sumo senhor que provou grande sabor com o tremendo castigo da morte deste traidor E quer para reforccedilar as penas deste rufiatildeo nosso impeacuterio acrescentar com sua potente matildeo pela terra e pelo mar

VALERIANO

Mais me parece eacute que vem a seus tormentos vingar e a noacutes ambos enforcar Oh que cara feia tem Comeccedilo a me apavorar

DEacuteCIO

Enforcar Quem a mim pode matar ou mover meus fundamentos Nem a exaltaccedilatildeo dos ventos Nem a braveza do mar nem todos os elementos

182

Natildeo temas que meu poder o que os deuses imortais me quiseram conceder natildeo se poderaacute vencer pois natildeo haacute forccedilas iguais De meu cetro imperial pendem reis tremem tiranos Venccedilo a todos os humanos e posso ser quase igual a esses deuses soberanos

VALERIANO

Oh que terriacutevel figura Natildeo posso mais aguardar que jaacute me sinto queimar Vamos que eacute grande loucura tal encontro aqui esperar Ai ai que grandes calores Natildeo tenho nenhum sossego Ai que poderosas dores Ai que feacutervidos ardores que me abrasam como fogo

DEacuteCIO

Oh paixatildeo Ai de mim que eacute o Plutatildeo chegando pelo Aqueronte ardendo como ticcedilatildeo a levar-nos de roldatildeo ao fogo do Flegetonte Oh coitado que me queimo Esse queimado me queima com grande dor

Oh infeliz imperador Todo me vejo cercado de penas e de pavor pois armado o diabo com seu dardo mais as fuacuterias infernais vecircm castigar-nos demais Jaacute nem sei o que hei falado com anguacutestias tatildeo mortais

VALERIANO

O Deacutecio cruel tirano Jaacute pagas e pagaraacute Contigo Valeriano porque Lourenccedilo cristatildeo assado nos assaraacute

183

AIMBIREcirc

Ocirc Castelhano Bom Castelhano parece Estou bem alegre mano que Espanhol seja o profano que no meu fogo padece Vou fingir-me castelhano e usar de diplomacia com Deacutecio e Valeriano porque o espanhol ufano sempre guarda a cortesia Oh mais alta majestade Beijo-vos a matildeo mil vezes por vossa gratilde-crueldade

pois justiccedila nem verdade guardastes sendo juizes Sou mandado por Satildeo Lourenccedilo queimado levaacute-los agrave minha casa onde seja confirmado vosso imperial estado em fogo que sempre abrasa Oh que tronos e que camas eu vos tenho preparadas nessas escuras moradas de vivas e eternas chamas de nunca ser apagadas

VALERIANO

Ai de mim

AIMBIREcirc

Vieste do Paraguai Que falais em Carijoacute Sei todas liacutenguas de cor Avanccedila aqui Saravaia Usa tu golpe maior

VALERIANO

Basta Que assim me assassinas natildeo tenho pecado nada Meu chefe eacute a presa acertada

SARAVAIA

Natildeo eacutes tu que me fascinas oacute presa bem cobiccedilada

184

DEacuteCIO

Oacute miseraacutevel de mim que nem basta ser tirano nem falar em castelhano Que eacute do mando em que me vi e o meu poder soberano

AIMBIREcirc

Jesus Deus grande e potente que tu traidor perseguiste te daraacute sorte mais triste entregando-te em meu dente a que malvado serviste Pois me honraste e sempre me contentaste ofendendo ao Deus eterno

Eacute justo pois que no inferno palaacutecio que tanto amaste natildeo sintas o mal do inverno Porque o oacutedio inveterado do teu duro coraccedilatildeo natildeo pode ser abrandado se natildeo for jaacute martelado com a aacutegua do Flegeton

DEacuteCIO

Olha que consolaccedilatildeo para quem se estaacute queimando Sumos deuses para quando adiais minha salvaccedilatildeo que vivo estou me abrasando Ai ai Que mortal desmaio Esculaacutepio natildeo me acodes Oh Juacutepiter porque dormes Que eacute do vosso raio Por que eacute que natildeo me socorres

AIMBIREcirc

Que dizeis De que mal voacutes padeceis Que pulso mais alterado Eacute grande dor de costado este mal que morreis Haveis de ser bem sangrado Haacute dias que esta sangria se guardava para voacutes

que sangraacuteveis noite e dia com dedicada porfia aos santos servos de Deus Muito desejo eu beber vosso sangue imperial Oh natildeo me leveis a mal que com isso quero ser homem de sangue real

DEacuteCIO

Que dizeis Que disparate e elegante desvario Joguem-me dentro de um rio antes que o fogo me mate oacute deuses em que confio Natildeo quereis socorrer-me ou natildeo podeis Oacute malditos fementidos

ingratos desconhecidos que pouco vos condoeis de quem fostes tatildeo servidos Se agora voar pudesse vos iria derrocar dos vossos tronos celestes feliz se a mim me coubesse no fogo vos projetar

AIMBIREcirc

Parece-me que eacute chegada a hora do frenesi e com chama redobrada a qual seraacute descuidada dos deuses a quem servis Satildeo armas dos audazes cavaleiros que usam palavroacuterio humano E por isso tatildeo ufano hoje vindes acolhecirc-los no romance castelhano

SARAVAIA

Assim eacute Pensava dar de reveacutes golpes de afiados accedilos mas enfim nossos balaccedilos se chocaram atraveacutes com bem poucos canhonaccedilos Mas que boas bofetadas lhes reservo para dar Os tristes sem descansar agrave forccedila de tais pauladas com catildees hatildeo de ladrar

186

VALERIANO

Que ferida Tira-me logo esta vida pois minha alta condiccedilatildeo contra justiccedila e razatildeo veio a ser tatildeo abatida que morro como ladratildeo

SARAVAIA

Natildeo eacute outro o galardatildeo que concedo aos meus criados senatildeo morrer enforcados e depois sem remissatildeo ao fogo ser condenados

DEacuteCIO

Essa eacute a pena redobrada que me causa maior dor que eu universal senhor morra morte desonrada na forca como traidor Ainda se fosse lutando dando golpes e reveses pernas e braccedilos cortando como fiz com os franceses acabaria triunfando

AIMBIREcirc

Parece que estais lembrando poderoso imperador quando com bravo furor matastes traiccedilatildeo armando Felipe vosso senhor Por certo que me alegrais e se cumpre meus anseios ante desabafos tais porque o fogo em que queimais provoca tais devaneios

187

DEacuteCIO

Bem entendo que este fogo em que me acendo merece-me a tirania pois com tatildeo feroz porfia aos cristatildeos martirizando pelo fogo os consumia Mas que em minha monarquia acabe com tal pregatildeo pois morrer como ladratildeo eacute muito triste agonia e dobrada confusatildeo

AIMBIREcirc

Como Pedis confissatildeo Sem asas quereis voar Ide se quereis achar aos vossos atos perdatildeo agrave deusa Pala rogar Ou a Nero esse cruel carniceiro do fiel povo cristatildeo Aqui estaacute Valeriano vosso leal companheiro buscai-o por sua matildeo

DEacuteCIO

Esses amargos chistes e agressotildees me acrescentam em paixotildees e mais dores com tatildeo profundos ardores como de ardentes ticcedilotildees E com isto crescem mais os fogos em que padeccedilo Acaba que me ofereccedilo em tuas matildeos Satanaacutes ao tormento que mereccedilo

188

AIMBIREcirc

Oh quanto vos agradeccedilo por esta boa vontade Eu com liberalidade quero dar-lhe bom refresco para vossa enfermidade Na cova onde o fogo se renova com ardores perenais os vossos males fatais aiacute teratildeo grande prova das agruras imortais

DEacuteCIO

Que fazer Valeriano bom amigo Testemunharaacutes comigo desta pena envolvido na cadeia de fogo deste castigo

VALERIANO

Em maacute hora Jaacute satildeo horas Vamos logo deste fogo ao outro fogo eternal laacute onde a chama imortal nunca nos daraacute sossego Suacutes asinha Vamos agrave nossa cozinha Saravaia

AIMBIREcirc

Aqui deles natildeo me afasto Nas brasas seratildeo bom pasto maldito quem nelas caia

DEacuteCIO

Aqui abrasado estou

189

Assa-me Lourenccedilo assado De soberano que sou vejo que Deus me marcou por ver seu santo vingado

AIMBIREcirc

Com efeito quiseste abrasar a jeito o virtuosos Satildeo Lourenccedilo Hoje te castigo e venccedilo e sobre as brasas te deito para morrer segundo penso (Sufocam-nos e entregam aos quatro beleguins e cada dois levam o seu)

Vinde aqui e aos malditos conduzi para em bom queimarem seus corpos sujos tostarem na festa em que os seduzi para cozidos bailarem

(Ficam ambos os democircnios no terreiros com as coroas dos imperadores na cabeccedila)

SARAVAIA

Sou o grande vencedor o que as maacutes cabeccedilas quebra sou um chefe de valor e hoje me decido por me chamar Cururupeba Como eles mato os que estatildeo em pecado e os arrasto em minhas chamas Velhos moccedilos jovens damas tenho sempre devorado De bom algoz tenho fama

QUARTO ATO Tendo o corpo de Satildeo Lourenccedilo amortalhado e posto na tumba entra o Anjo com o Temor e o Amor de Deus a encerrar a obra e no fim acompanham o santo agrave sepultura

190

ANJO

Vendo nosso Deus benigno vossa grande devoccedilatildeo que tendes e com razatildeo a Lourenccedilo o maacutertir digno de toda a veneraccedilatildeo determinam por seus rogos e martiacuterio singular a todos sempre ajudar para que escapeis dos fogos em que os maus se hatildeo de queimar Dois fogos trazia nalma com que as brasas resfriou a no fogo em que se assou com tatildeo gloriosa palma dos tiranos triunfou Um fogo foi o temor do bravo fogo infernal e como servo leal por honrar a seu Senhor fugiu da culpa mortal

Outro foi o Amor fervente de Jesus que tanto amava que muito mais se abrasava com esse fervor ardente que coo fogo em que se assava Estes o fizeram forte Com estes purificado como ouro refinado padeceu tatildeo crua morte por Jesus seu doce amado Estes vos manda o Senhor a ganhar vossa frieza para que vossa alma acesa de seu fogo gastador fique cheio de pureza Deixai-vos deles queimar como o maacutertir Satildeo Lourenccedilo e sereis um vivo incenso que sempre haveis de cheirar na corte de Deus imenso

TEMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Pecador sorves com grande sabor o pecado e natildeo ficas afogado com teus males E tuas chagas mortais natildeo sentes desventurado O inferno como seu fogo sempiterno Jaacute te espera se natildeo segues a bandeira

da cruz sobre a qual morreu Jesus para que tua morte morra Deus te envia esta mensagem com amor a mim que sou seu Temor me conveacutem declarar o que conteacutem para que temas ao Senhor

(Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Espantado estou de ver pecador teu vatildeo sossego Com tais males a fazer como vives sem temer aquele espantoso fogo Fogo que nunca descansa mas sempre provoca a dor e com seu bravo furor

dissipa toda a esperanccedila ao maldito pecador Pecador como te entregas tatildeo sem freio ao viacutecio extremo Dos viacutecios de que estaacutes cheios engolindo tatildeo agraves cegas a culpa com seu veneno

Veneno de maldiccedilatildeo tragas sem nenhum temor e sem sentir sua dor deleites da carnaccedilatildeo sorves com grande sabor Seraacute o sabor do pecado muito mais doce que o mel mas o inferno cruel depois te daraacute um bocado bem mais amargo que o fel Fel beberaacutes sem medida pecador desatinado tua alma em chamas ardida Esta seraacute a saiacuteda do deleite do pecado Do pecado que tu amas Lourenccedilo tanto escapou que mil penas suportou e queimado pelas chamas por natildeo pecar expirou Ele a morte natildeo temeu Tu natildeo temes o pecado no qual te tem enforcado Lucifer que te afogou

e natildeo ficas afogado Afogado pela matildeo do Diabo pereceu Deacutecio com Valeriano infiel cruel tirano no fogo que mereceu Tua feacute merece a vida mas com pecados mortais quase a tiveste perdida e teu Deus bem sem medida ofendeste com teus males Com teus males e pecados tua alma de Deus alheia da danaccedilatildeo na cadeia haacute de pagar com os danados a culpa que a incendeia Pena sem fim te daratildeo dentre os fogos infernais teus deleites sensuais Teus tormentos dobraratildeo e tuas chagas mortais Que mortais satildeo tuas feridas pecador Porque natildeo choras

Natildeo vecircs que nestas demoras estatildeo todas corrompidas a cada dia pioras Pioras e te confinas mas teu perigoso estado na pressa e grande cuidado com que ao fogo te destinas natildeo sentes desventurado Oh descuido intoleraacutevel de tua vida Tua alma estaacute confundida

no lodo e tu vais rindo de tudo natildeo sentes tua caiacuteda Oh traidor Que negas teu Criador Deus eterno que se fez menino terno por salvar-te E tu queres condenar-te e natildeo temes ao inferno

Ah insensiacutevel Natildeo calculas o terriacutevel espanto que causaraacute o juiz quando viraacute com carranca muito horriacutevel e agrave morte te entregaraacute

E tua alma seraacute sepultada em pleno inferno onde morte natildeo teraacute mas viva se queimaraacute com seu fogo sempre eterno

Oh perdido Ali seraacutes consumido sem nunca te consumir Teraacutes vida sem viver com choro e grande gemido teraacutes morte sem morrer Pranto seraacute teu sorrir sede sem fim te abeberra fome que em comer se gera teu sono nunca dormir tudo isto jaacute te espera Oh morfio Pois tu veras de continuo ao horrendo Lucifer sem nunca chegar a ver aquele molde divino de quem tiras todo o ser Acaba jaacute de temer a Deus que sempre te espera correndo por sua esteira pois natildeo lhes vai pertencer se natildeo lhe segues a bandeira Homem louco Se teu coraccedilatildeo jaacute toco mudar-se-atildeo alegrias em tristezas e agonias Olha que te falta pouco

para fenecer teus dias Natildeo peques mais contra Aquele que te ganhou vida e luz com seu martiacuterio cruel bebendo vinagre e fel no extremo lenho a cruz Oh malvado Ele foi crucificado sendo Deus por te salvar Pois que podes esperar se foste tu o culpado e natildeo cessas de pecar Tu o ofendes ele te ama Cegou-se por dar-te a luz Tu eacutes mau pisas a cruz sobre a qual morreu Jesus Homem cego porque natildeo comeccedilas logo a chorar por teu pecado E tomar por advogado a Lourenccedilo que no fogo por Jesus morreu queimado Teme a Deus juiz tremendo que em maacute hora te socorra em Jesus tatildeo soacute vivendo pois deu sua vida morrendo para que tua morte morra

AMOR DE DEUS (Daacute seu recado)

Ama a Deus que te criou homem de Deus muito amado Ama com todo cuidado a quem primeiro te amou Seu proacuteprio Filho entregou agrave morte por te salvar Que mais te podia dar

se tudo o que tem te dou Por mandado do Senhor te disse o que tens ouvido Abre todo teu sentido porque eu que sou seu Amor seja em ti bem imprimido (Glosa e declaraccedilatildeo do recado)

Todas as coisas criadas conhecem seu Criador Todas lhe guardam amor

pois nele satildeo conservadas cada qual em seu vigor Pois com tanta perfeiccedilatildeo

193

sua ciecircncia te formou homem capaz de razatildeo de todo o teu coraccedilatildeo ama a Deus que te criou Se amas a criatura por se parecer formosa ama a visatildeo graciosa desta mesma formosura por sobre todas as coisas Dessa divina lindeza deves ser enamorado Seja tua alma presa daquela suma beleza homem de Deus muito amado Aborrece todo o mal com despeito e com desdeacutem E pois que eacute racional abraccedila a Deus imortal todo sumo e uacutenico bem Este abismo de fartura

que nunca seraacute esgotado esta fonte viva e pura este rio de doccedilura ama com todo cuidado Antes que criasse nada jaacute a alma majestade te havia a vida gerado e tua alma abrasada com eterna caridade Por fazer-te todo seu com amor te cativou e pois que tudo te deu daacute tu todo o maior que eacute teu a quem primeiro te amou E deu-te alma imortal e digna de um Deus imenso para que fosses suspenso nele esse bem eternal que eacute sem fim e sem comeccedilo

Depois que em morte caiacuteste com vida te levantou Porque sair natildeo conseguiste da culpa em que te fundiste seu proacuteprio filho entregou Entregou-o por escravo deixou que fosse vendido para que tu redimido do poder do leatildeo bravo fosses sempre agradecido Para que natildeo morras morre com amor bem singular Pois quanto deves amar a Deus que entregar-se quer agrave morte por te salvar O Filho que o Padre deu a seu Pai te daacute por pai e sua graccedila te infundiu

e quando na cruz morreu deu-te por matildee sua Matildee Deu-te feacute com esperanccedila e a si mesmo por manjar para em si te transformar pela bem aventuranccedila Que mais te podia dar Em paga de tudo isto oh ditoso pecador pede apenas teu amor Despreza pois todo o resto por ganhar a tal Senhor Daacute tua vida pelos bens que Sua morte te ganhou Eacutes seu nada tens de teu Daacute-lhe tudo quanto tens pois tudo o que tem te deu

194

DESPEDIDA

Levantai os olhos ao ceacuteu meus irmatildeos Vereis a Lourenccedilo reinando com Deus por voacutes implorando junto ao rei dos ceacuteus que louvais seu nome aqui neste chatildeo Daqui por diante tende grande zelo que Deus seja sempre temido e amado e maacutertir tatildeo santo de todos honrado Terei seus favores e doce desvelo Pois que celebrai com tal devoccedilatildeo

seu claro martiacuterio tomai meu conselho sua vida e virtudes tende por espelho chamando-o sempre com grande afeiccedilatildeo Tereis por seus rogos o santo perdatildeo e sobre o inimigo perfeita vitoacuteria E depois da morte voacutes vereis na gloacuteria a cara divina com clara visatildeo

(LAUS DEO)

QUINTO ATO

Danccedila de doze meninos que se fez na procissatildeo de Satildeo Lourenccedilo

1ordm) Aqui estamos jubilosos tua festa celebrando Por teus rogos desejando Deus nos faccedila venturosos nosso coraccedilatildeo guardando

2ordm) Noacutes confiamos em ti Lourenccedilo santificado que nos guardes preservados dos inimigos aqui Dos viacutecios jaacute desligados nos pajeacutes natildeo crendo mais em suas danccedilas rituais nem seus maacutegicos cuidados

3ordm) Como tu que a confianccedila em Deus tatildeo bem resguardaste que o dom de Jesus nos baste pai da suprema esperanccedila

4ordm) Pleno do divino amor

195

foi teu coraccedilatildeo outrora Zela pois por noacutes agora Amemos nosso Criador pai nosso de cada hora

5ordm) Obedeceste ao Senhor cumprindo sua palavra Vem que nossa alma escrava de teu amor neste dia te imita em sabedoria

6ordm) Milagroso tu curaste teus filhos tatildeo santamente Suas almas estatildeo doentes deste mal que abominaste Vem curaacute-los novamente

7ordm) Fiel a Nosso Senhor a morte tu suportaste Que a forccedila disto nos baste para suportar a dor pelo mesmo Deus que amaste

8ordm) Pelo terriacutevel que eacutes Jaacute que os democircnios te temem nas ocas onde se escondem vem calcaacute-los sob os peacutes pra que as almas natildeo nos queimem

9ordm) Hereges que este indefeso corpo no teu assaram e a carne toda queimaram em grelhas de ferro aceso Choremos do alto desejo de Deus Padre contemplar Venha Ele neste ensejo nossas almas inflamar

10ordm) Os teus verdugos extremos treme algozes de Deus Vem leva-nos como teus que ao teu lado ficaremos assustando estes ateus

11ordm) Estes que te deram morte ardem no fogo infernal Tu na gloacuteria celestial

196

gozaraacutes divina sorte E contigo aprenderemos a amar a Deus no mais fundo do nosso ser e no mundo longa vida gozaremos

12ordm) Em tuas matildeos depositamos nosso destino tambeacutem Em teu amor confiamos

e uns aos outros nos amamos para todo o sempre Ameacutem

CAI O PANO

197

APEcircNDICE 2 - A MISSA E OS SIacuteMBOLOS CULTURAIS DE TRANSFORMACcedilAtildeO DO HOMEM

Partindo do princiacutepio de que a missa eacute um ritual miacutetico pertencente aos

preceitos da Igreja Catoacutelica desde os primoacuterdios do cristianismo e portanto

pertencente tambeacutem a Feacute natildeo poderia deixar de ser discutida neste trabalho pois

foi atraveacutes dela aleacutem dos sacramentos da Igreja que a religiatildeo em questatildeo se fixa

na mente miacutetica dos homens ateacute a data de hoje sob a forma de um ritual de

contato com a divindade

Justamente por ter sua origem em um mito talvez um dos maiores

mitos da atualidade eacute claro que nem a psicologia a sociologia a antropologia ou

a histoacuteria teria como dar conta de explicar esse grande misteacuterio da Igreja visto

que a feacute ultrapassa os domiacutenios dessas ciecircncias e possivelmente ateacute a filosofia e

da metafiacutesica mas podemos aqui estudar esses siacutembolos de transformaccedilatildeo do

ponto de vista fenomenoloacutegico e eacute o que faremos atraveacutes da visatildeo de Carl Gustav

Jung

Porque recebi do Senhor o que vos transmiti O Senhor

Jesus na noite em que foi entregue tomou o patildeo e depois de dar

graccedilas partiu-o e disse Isto eacute o meu corpo que se daacute por voacutes fazei

isto em memoacuteria de mim E do mesmo modo depois de cear tomou

198

o caacutelice dizendo Este caacutelice eacute o Novo Testamento do meu sangue

todas as vezes que o beberdes fazei-o em memoacuteria de mim Pois

todas as vezes que comerdes este patildeo e beberdes este caacutelice

anunciarei a morte do Senhor ateacute que Ele venha 145

Foi nessa Ceia que Cristo teria pronunciado as palavras da missa Eu

sou a vida verdadeira Permanecei em mim como eu [permaneccedilo] em voacutes eu sou

a videira voacutes sois os sarmentos146

Como a intenccedilatildeo eacute a de me limitar ao siacutembolo da transformaccedilatildeo na

missa natildeo tenho aqui a proposiccedilatildeo de explicar os aspectos de sua composiccedilatildeo

estrutural mas conforme Jung a missa eacute uma celebraccedilatildeo eucariacutestica muito bem

elaborada e com a seguinte estrutura

145 Citaccedilotildees que se seguem sobre a Biacuteblia foram tiradas do Novo Testamento traduzido pelo PeDr Frei Mateus Hoepers e publicado pela Vozes ( apud JUNG1985p2) 146 lat sartmentumi sarmento ramo ou vara de videira

199

Temos que iniciar essa explicaccedilatildeo e a citaccedilatildeo dos siacutembolos da missa

como uma das ferramentas de manutenccedilatildeo da feacute do sacrifiacutecio e do envolvimento

com o Deus e a comunidade

Quanto ao sacrifiacutecio o mito cristatildeo nos revela duas formas distintas de

representaccedilatildeo o deipnon e a thysia Deipnon traz o significado de ceia

propriamente dito definindo a ceia abenccediloada daqueles que passaram ou

participaram de algum sacrifiacutecio onde se entende que os deuses estejam

presentes Essa comida eacute abenccediloada pois o que passou por um sacrificium

tornou-se sagrado

Thysia por sua vez vem significar o entregar o oferecer o imolar e

tambeacutem o soprar com forccedila o que vem relacionar-se com o alimento usado nas

sociedades antigas e primitivas de enviar aos deuses a fumaccedila que sobe das

oferendas ateacute a morada dos deuses simbolizando o espiacuterito o pneuma como era

concebido nos primoacuterdios do cristianismo e mesmo na Idade Meacutedia

Graccedilas ao conceito de ceia para os cristatildeos a palavra corpo de

Cristo logo foi traduzida por carne

Principalmente para os sacerdotes esses conceitos inseridos nos

siacutembolos da missa levam um peso muito grande como nos mostra Hb 717 Tu

eacutes sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquizedeque Onde o

oferecimento do sacrifiacutecio perene e o sacerdoacutecio eterno constituem partes

integrantes e necessaacuterias do conceito de missa (JUNG1985 p3) As ideacuteias do

sacerdoacutecio eterno e do sacrifiacutecio estatildeo intimamente ligadas ao misteacuterio da missa e

com a transformaccedilatildeo das substacircncias da qual falaremos em seguida

200

O iniacutecio do rito da transformaccedilatildeo do indiviacuteduo cristatildeo quer a do

sacerdote quer a do ouvinte e assistente da missa inicia-se juntamente com o

ofertoacuterio momento em que se preparam as oferendas a Deus

O primeiro dos pontos eacute a oblaccedilatildeo do patildeo onde o sacerdote coloca a

hoacutestia na patena eleva-a em direccedilatildeo agrave cruz do altar faz o sinal da cruz e eleva a

hoacutestia o patildeo o corpo a carne de Cristo e a relaciona com seu sacrificium

atribuindo assim agrave hoacutestia a qualidade de coisa sagrada Ateacute entatildeo a hoacutestia era

apenas patildeo e considerada como corpus imperfectum

Isso tambeacutem ocorre com o vinho mesmo com sua natureza mais

espiritual tambeacutem eacute considerado corpus imperfectum ateacute que nessa mesma

preparaccedilatildeo ao vinho eacute misturada a aacutegua147

Satildeo Cipriano - bispo de Cartago

relaciona o vinho com Cristo e a

aacutegua com a comunidade que participa da missa parte de suma importacircncia de

todo o rito pois sem a comunidade para receber o rito ele natildeo pode existir148

Nesta parte especial da missa como o iniacutecio desse ritual do mito

cristatildeo os corpus imperctum estatildeo sendo transformados no corpus

glorificationis no corpo ressuscitado

147 Originariamente a mistura de aacutegua com vinho estava ligada ao antigo costume cultural de beber apenas vinho misturado com aacutegua Por isso um bebedor isto eacute um alcooacutelatra era chamado de acratopotes beberratildeo de vinho natildeo misturado (Jung 1985 p7-312) 148 Em Ap1715 se lecirc Aquae quas vidisti ubi meretrix sedet populi sunt et gentes et linguae acuteAs aacuteguas que vecircs sobre as quais a prostituta estaacute sentada satildeo os povos e as multidotildees as naccedilotildees e as liacutenguas Na alquimia meretrix prostituta eacute o nome da prima mateacuteria do corpus imperfectum Elevada a aacutegua a condiccedilatildeo de sagrada misturada ao vinho vem significar que somente uma comunidade perfeita pode se juntar a Cristo (idem)

201

O ponto seguinte do rito da missa o sacerdote mostrando agrave

comunidade eleva o caacutelice com a mistura jaacute preparada e invoca o Espiacuterito Santo

Veni espiritus sanctificator que eacute quem produz e transforma esse vinho em

sangue de Cristo perante toda uma plateacuteia que crecirc nessa transformaccedilatildeo

recebendo culturalmente mais informaccedilotildees sobre o mito que se refere a sua feacute

religiosa

A parte seguinte eacute a da incensaccedilatildeo das oferendas e do altar onde com

a fumaccedila do turiacutebulo oferece um sacrifico que eacute um resquiacutecio da thysia de que

falamos anteriormente no intuito de espiritualizar todos os objetos fiacutesicos do altar

e por estar enchendo o ar com perfume do pneuma espantar as eventuais

forccedilas demoniacuteacas que pudessem estar presentes elevando as oraccedilotildees a

Deus149

Em seguida vem a invocaccedilatildeo ou a epiclese onde atraceacutes do

Suspiece sancta Trinitas (Recebei oacute Trindade santa) satildeo iniciadas as oraccedilotildees

propiciatoacuterias em que se garante que as oferendas seratildeo aceitas por Deus A

certeza da aceitaccedilatildeo se prende a se crer que uma coisa chamada atraveacutes de seu

nome tem o poder de tornar presente o que se convoca Assim por meio do

Adesto adesto Jesu boneacute Pontifex in medio nostri sicut fuisti in medio

discopulorum tuorum (Vinde vinde oacute Jesus o Pontiacutefice misericordioso ficai

conosco como estiveste como os vossos disciacutepulos) atraveacutes do chamamento se

149 Eacute dito nesse instante da missa as palavras Dirigatur Domine oratio mea sicut incensum in conspectu tuo (Eleva-se Senhor a minha oraccedilatildeo como o incenso agrave Vossa presenccedila) e Accedat in nobis Dominus ignem sui amoris

(acenda ograve Senhor em noacutes o fogo de seu amor) (idem Jung-1985-p11-320)

202

obteacutem a certeza da presenccedila e da manifestaccedilatildeo do Senhor no momento que eacute

considerado a ponto alto da celebraccedilatildeo da missa

Desse ponto em diante segue a consagraccedilatildeo do patildeo e do caacutelice

momento em que se daacute a transubstanciaccedilatildeo ou a transformaccedilatildeo das substacircncias

do patildeo e do vinho em corpo e sangue do Senhor

Estamos aqui apenas relatando de forma didaacutetica os passos da

celebraccedilatildeo da missa portanto natildeo temos interesse de discutir esses passos

quanto a seu conteuacutedo e sim mais adiante analisarmos psicologicamente esses

siacutembolos No entanto apenas como curiosidade jaacute que vaacuterios termos foram

colocados em latim e posteriormente os traduzimos nos informa Jung (1985-p12)

as palavras ditas pelo sacerdote no momento da consagraccedilatildeo do patildeo e do vinho

natildeo devem ser traduzidas em liacutengua profana devendo ser ditas apenas e tatildeo

somente em latim por serem palavras consideradas sagradas mesmo que alguns

missais possam conter essa traduccedilatildeo dessa forma as citaremos no rodapeacute desta

paacutegina com o texto em latim obtida na fonte acima descrita150

Nesse ponto do ritual encontram-se devidamente consagrados e

purificados tanto o sacerdote como a comunidade as oferendas como o altar

totalmente preparados como uma unidade miacutestica para a epifania do Senhor isto

150 Consagraccedilatildeo do patildeo Qui pridie quam pateretur accepit panem in sanctas ac venerabiles manus suas et elevatis oculis in caelum ad Deum Patrem suum omnipotentem tibi gratias agens benedixit fregit deditque discipulis suis dicens Accipite et manducate ex hoc omnes Hoc est enim Corpus meum

Consagraccedilatildeo do caacutelice Simili modo postquam cenatum est accipiens et hunc praeclarum calicem in sancta ac venerabiles manus suas item tibi gratias agens benedixit deditque discipulis suis dicens Accipite et bibite ex eo omnes Hic est enim Calix Sanguinis mei novi et aeterni testamenti mysterium fidei qui pro vobis et pro multins effundetur in remissionem peccatorum Haec quosticumque faceritis in mei memoriam facietis

203

eacute o momento da manifestaccedilatildeo reveladora de Cristo de forma viva no Corpus

mysticum do sacrifiacutecio divino como se nesse momento se abrisse uma porta

onde do outro lado exista um espaccedilo liberto do tempo e do espaccedilo porta essa

aberta natildeo pelo sacerdote mas por Cristo como agens como agente dessa

transformaccedilatildeo

O sacerdote entatildeo levanta as substacircncias consagradas e as apresenta

agrave comunidade mostrando que o Homem-Deus tornou-se presente na hoacutestia

consagrada Pede entatildeo o sacerdote ao Senhor que receba a hoacutestia imaculada e

que abenccediloe a todos com sua graccedila Faz trecircs sinais da cruz com a hoacutestia sobre o

caacutelice pronunciando per ipsum et cum ipso et in ipso (Por Ele com Ele e Nele)

traccedilando outros trecircs sinais entre ele e o caacutelice para criar a relaccedilatildeo de identidade

entre a hoacutestia o caacutelice e o sacerdote para entatildeo poder incluir nas graccedilas a serem

recebidas a comunidade que aguarda ser livrada de todos os males passados

presentes e futuros Divide a hoacutestia em duas partes significando a morte de Cristo

glorificado do rex gloriae De uma das partes tira uma pequena partiacutecula que

seraacute colocada no vinho dentro do caacutelice durante a consignaacutetio e a commixtio

momento da mistura do patildeo com o vinho do corpo com o sangue onde satildeo ditas

as seguintes palavras Haec commixtrio et consecratio Corporis et Sanguinis

Domini nostri

Dessa forma sacerdote o corpo e o sangue do Senhor unidos agrave

comunidade fazem a unidade miacutetica da missa assim como o patildeo resulta de

muitos gratildeos o vinho de muitos bagos de uva assim tambeacutem o Corpus

204

mysticum a Igreja eacute constituiacutedo pela multidatildeo daqueles que crecircem151 e possuem

em si como visatildeo de mundo o mito cristatildeo

Eacute importante ressaltar aqui que natildeo procuro fazer nenhuma

interpretaccedilatildeo das partes que compotildeem a missa e sim com referecircncia ao mito

cristatildeo analisar psicologicamente esses siacutembolos que contribuem como

transmissatildeo cultural e como forma de propagaccedilatildeo universal do cristianismo

Vejamos o ato de pensar ou de crer expressam uma realidade

psicoloacutegica do indiviacuteduo que crecirc e nesse caso do mito e da crenccedila dos sacrifiacutecios

da missa essa realidade estaacute baseada nos enunciados do rito e da feacute explicados

metafisicamente o que pode ser indicado que exceto pela maneira psiacutequica de

manifestar-se a crenccedila escapa ao entendimento do intelecto e por esse motivo

natildeo pode ser posto em julgamento mas eacute certo que o pressuposto da feacute em si

conteacutem a realidade de um fato psiacutequico152

Cada passo da missa possui uma composiccedilatildeo de dois aspectos claros

um divino com a accedilatildeo do proacuteprio Deus e outro humano num significado

meramente instrumental

O lado humano oferece dons a Deus sobre o altar com a doaccedilatildeo

completa do sacerdote e da comunidade cristatilde celebrando a uacuteltima ceia de Jesus

com seus disciacutepulos mas celebra tambeacutem uma accedilatildeo sagrada onde Cristo se

encarna torna-se homem sub-espeacutecie das substacircncias oferecidas sofre e eacute

151 Jung-1985-p20-338 152 Jung-1985-p46-377

205

morto jaz no sepulcro e por fim quebra o poder do inferno ressuscitando

glorioso153 Embora esse acontecimento seja divino surge o cristatildeo perante o

ritual tal qual como na participaccedilatildeo divina agindo como agens

e patiens na

sua limitada capacidade

Mas no sentido divino onde o momento eacute entendido como uma accedilatildeo

direta de Deus esse mesmo homem se coloca apenas e tatildeo somente como um

instrumento agrave disposiccedilatildeo de um agente eterno que transcende a consciecircncia

humana

Assim como o homem eacute um simples instrumento

(voluntaacuterio) no acontecimento da missa tambeacutem eacute incapaz de

compreender o que quer que seja a respeito da matildeo que se utiliza

dele O martelo natildeo conteacutem em si proacuteprio aquilo que o faz bater Eacute um

ser situado fora dele autocircnomo que dele se apodera e o potildee em

movimento 154

Essa relaccedilatildeo do homem com o divino da oferenda com o recebimento

da graccedila possui a mesma funccedilatildeo psicoloacutegica e portanto cultural da magia

propiciatoacuteria que se encontra em todos os sacrifiacutecios de tribos e sociedades ditas

primitivas onde o humano oferece para receber em troca a matildeo da divindade

colocada sobre seus ombros quer para proteccedilatildeo quer para resolver suas afliccedilotildees

desejos e impossibilidades

153 Jung-1985-p47-379 154 Jung-1985-p49-379

206

Essa magia realizada pelas tribos traacutes consigo o sangue e a carne

verdadeiros sejam de animais ou de pessoas o que apavora me faz com que os

olhos humanos de outra cultura rechacem o acontecimento

Acontece poreacutem que o mito cristatildeo se utiliza nessa magia

propiciatoacuteria de siacutembolos que representam o melhor produto cultural desde muito

tempo que simbolizam a vida e a pessoa humana a produccedilatildeo o trabalho e as

virtudes

O patildeo e o vinho natildeo soacute constituem o alimento comum de grande parte

da humanidade como tambeacutem podem ser encontrados em toda a face da

Terra155

O patildeo e o vinho como importantes siacutembolos da civilizaccedilatildeo expressam o

esforccedilo humano em plantar e colher e ainda produzir com aquilo que foi colhido

Os gratildeos de trigo e os bagos de uva representam a condiccedilatildeo psicoloacutegica que faz

surgir as virtudes do homem e que o torna capaz de produzir cultura

Plantar e colher possui em si o trabalho durante o crescimento das

plantas por ele cultivadas crescimento esse que se desenvolve de acordo com

leis divinas por serem elas leis internas que atual dentro delas como um agens

ou uma forccedila que chegou mesmo a ser comparada ao proacuteprio alento ou espiacuterito

vital156 um espiacuterito que morre e ressuscita a cada estaccedilatildeo do ano tal qual a

manifestaccedilatildeo do manaacute mas que necessita da participaccedilatildeo do homem e de um

155 KRAMP Joseph 1924 Apud Jung-1985-p51-381 156 Jung-1985-p53-385

207

desempenho psicoloacutegico com relaccedilatildeo ao esforccedilo agrave aplicaccedilatildeo agrave paciecircncia e ao

devotamento

Tomar do patildeo e do vinho consagraacute-los e oferececirc-los a Deus queiramos

ou natildeo trata-se de um do ut des no entanto eacute uma forma de doaccedilatildeo em que o

humano se entrega de tal forma a essa oferenda que daacute o que foi entregue como

pedido como um sacrifiacutecio pois caso natildeo receba em troca a graccedila pedida

continua a acreditar que ao menos no reino dos ceacuteus receberaacute tal graccedila e por isso

se entrega o que faz com que o homem possa buscar com esse ritual sua

evoluccedilatildeo do eu conforme crecirc sua individuaccedilatildeo seu si mesmo O eu estaacute pra o

si mesmo assim como o patiens estaacute pra o agens porque as disposiccedilotildees que

emanam do si mesmo satildeo bastante amplas e por isso superiores ao euo si

mesmo eacute o existente a priori do qual proveacutem o euNatildeo sou eu que me crio mas

sou eu que aconteccedilo a mim mesmo 157

Essa conclusatildeo vem de encontro com o entendimento da psicologia sobre

o fenocircmeno religioso e sobre a feacute e Jung como bom exemplo dessa conclusatildeo

cita que o fundador da Companhia de Jesus Inaacutecio de Loyola colocou seu homo

creatus est como fundamentum de seus exerciacutecios espirituais

O Grande Si Mesmo para o cristatildeo eacute o proacuteprio Cristo o homem primordial

o Adam secundus o qual tentar entender fora do mito seria como

psicologizar158 de forma mal sucedida tentando destruir o misteacuterio do rito miacutetico

157 Jung-1985-p59-391 158 como uso pejorativo fazer especulaccedilotildees de cunho psicoloacutegico sem base cientiacutefica

208

APEcircNDICE 3 O MITO DE CRISTO

O drama da vida arquetiacutepica de Cristo descreve em

imagens simboacutelicas os eventos da vida consciente

assim como da

vida que transcende a consciecircncia

de um homem que foi

transformado pelo seu destino superior159

A obra de Jung eacute extremamente vasta com relaccedilatildeo ao estudo das

religiotildees tanta das religiotildees e seitas primitivas como do cristianismo do

protestantismo das religiotildees orientais poreacutem deu ecircnfase principalmente aos

estudos com relaccedilatildeo ao mito cristatildeo e suas caracteriacutesticas

Um dos pontos mais importantes de sua obra sobre o assunto eacute a visatildeo

que apresenta sobre a vida de Cristo o que nos chamou especial atenccedilatildeo para

escrevermos esta parte da pesquisa

Jung nos coloca que a vida de Cristo representa para nossa cultura o

processo de individuaccedilatildeo que pode significar para um indiviacuteduo a salvaccedilatildeo ou a

trageacutedia e quando esse indiviacuteduo eacute parte de uma igreja ou um credo religioso ele

159 Jung A psycological approach to the trynity Psychology and Religion in Edinger1988

209

eacute poupado dos perigos da vida em sua experiecircncia direta pois estaraacute protegido

pelo mito cristatildeo

Tal qual no mito do heroacutei das mil e uma noites ou outros contos do

oriente Cristo passa por uma saga bem definida como o nascimento do heroacutei a

missatildeo avisada a fuga e a negaccedilatildeo a aceitaccedilatildeo o retorno a realizaccedilatildeo o triunfo

e o precircmio final

Como diz Campbell160 citando uma velha sabedoria romana Os fados

guiam aquele que assim o deseje aquele que natildeo o deseje eles arrastam

O mesmo ocorreu com Cristo foi arrastado por seus fados conforme

podemos ver pois O Filho preexistente e uacutenico de Deus esvazia-se de sua

divindade e se encarna como homem por intermeacutedio do Espiacuterito Santo que

impregna a Virgem Maria Ele nasce num ambiente humilde cercado de perigos

iniciais Quando alcanccedila a idade adulta submete-se ao batismo de Joatildeo Batista e

testemunha a descida do Espiacuterito Santo que indica sua vocaccedilatildeo Ele sobrevive agrave

tentaccedilatildeo do Democircnio e leva a bom termo seu ministeacuterio que proclama a

existecircncia de um Deus benevolente e amoroso Apoacutes passar pela agonia da

incerteza aceita o destino que lhe cabe e deixa-se prender julgar flagelar

escarnecer e crucificar Apoacutes passar trecircs dias no tuacutemulo de acordo com vaacuterias

testemunhas eacute ressuscitado Durante quarenta dias caminha e fala com seus

160 CAMPBELL 1990 pintroduccedilatildeo X

210

disciacutepulos e em seguida sob aos ceacuteus Dez dias depois no Pentecostes o

Espiacuterito Santo o Paraacuteclito prometido desce 161

Para explicar essa sequumlecircncia de fatos Jung nos apresenta o seguinte

graacutefico

A sequumlecircncia de situaccedilotildees passadas por Cristo e que constitui o mito

cristatildeo se repete em forma circular iniciando e encerrando com a mesma

161 EDINGER 1988 p16

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

211

situaccedilatildeo onde o Pentecostes eacute uma segunda Anunciaccedilatildeo pois na primeira nasce

Cristo e na segunda nasce a Igreja

Para o homem miacutetico engajado nesse ciacuterculo essa eacute a descriccedilatildeo do

processo por onde o ego do homem atinge sua consciecircncia pois descreve o que

correu com Deus feito homem e por consequumlecircncia descreve a transformaccedilatildeo de

Deus Assim por meio desse processo mais uma vez o Espiacuterito Santo desce a

terra natildeo para promover uma imitaccedilatildeo de Cristo Homem-Deus feita pelo homem

mas para promover a cristificaccedilatildeo de muitos 162

Vamos iniciar entatildeo pela Anunciaccedilatildeo

26 Ora no sexto mecircs (da gravidez de Isabel) foi o anjo

Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileacuteia chamada Nazareacute

27a uma virgem desposada com um varatildeo cujo nome era Joseacute da

casa de Davi e o nome da virgem era Maria

28 E entrando o anjo onde ela estava disse Salve

agraciada o Senhor eacute contigo

29 Ela poreacutem ao ouvir estas palavras turbou-se muito e

pocircs-se a pensar que saudaccedilatildeo seria essa

30 Disse-lhe entatildeo o anjo Natildeo temas Maria pois achaste

graccedila diante de Deus

31 Eis que conceberaacutes e daraacutes agrave luz um filho ao qual

poraacutes o nome de Jesus

32 Este seraacute grande e seraacute chamado filho do Altiacutessimo o

Senhor Deus lhe daraacute o trono de Davi seu pai

33 e reinaraacute eternamente sobre a casa de Jacoacute e o seu

reino natildeo teraacute fim

162 JUNG 1990 p113 par 758

212

34 Entatildeo Maria perguntou ao anjo Como se faraacute isso uma

vez que natildeo conheccedilo varatildeo

35 Respondeu-lhe o anjo Viraacute sobre ti o Espiacuterito Santo

e o poder do Altiacutessimo te cobriraacute com a sua sombra por isso o

que haacute de nascer seraacute chamado santo Filho de Deus

36 Eis que tambeacutem Isabel tua parenta concebeu um filho

em sua velhice e eacute este o sexto mecircs para aquela que era chamada

esteacuteril37 porque para Deus nada seraacute impossiacutevel

38 Disse entatildeo Maria Eis aqui a serva do Senhor cumpra-

se em mim segundo a tua palavra E o anjo ausentou-se dela

O primeiro ponto a que dei importacircncia estaacute em grifo no texto biacuteblico

onde a expressatildeo te cobriraacute com a sua sombra 163 se refere no Antigo

Testamento em vaacuterias passagens agraves manifestaccedilotildees caracteriacutesticas de Iahweh o

que mostra aqui o lado sombrio do misteacuterio sagrado do momento em que Deus

atraveacutes do Espiacuterito Santo cobre com uma nuvem o momento em que a

fecundaccedilatildeo do Senhor ocorre isto eacute uma gravidez ilegiacutetima num tempo em que

cometer adulteacuterio era passiacutevel de ser punida com a morte no entanto a obediecircncia

a Deus transforma Maria em uma mulher cheia de graccedila pois carrega em seu

ventre o Homem-Deus

Muitas vezes a Anunciaccedilatildeo coberta pela sombra e a obediecircncia de

Maria foi contrastada agrave desobediecircncia de Eva que culminou com a expulsatildeo do

primeiro casal do paraiacuteso Paulo falando aos Corintos (1Cor 1522) estabelece

esse viacutenculo ao dizer E assim como em Adatildeo morrem todos assim tambeacutem

todos seratildeo vivificados em Cristo

163 te cobriraacute com a sua sombra (episkiaz ) onde skia traduz sombra escuridatildeo EDINGER 1988 p22

213

Essa comparaccedilatildeo surge tambeacutem em um texto apoacutecrifo Protoevangelho

de Tiago164 que ao ouvir falar da gravidez de Maria Joseacute exclama

Quem trouxe esse mal agrave minha casa e a conspurcou (a

virgem) Teraacute a histoacuteria (de Adatildeo) se repetido comigo

Onde se encontra a diferenccedila principal Eacute que enquanto Eva se

submete e obedece agrave serpente Maria se coloca como serva do Senhor e diz Eis

aqui a serva do Senhor cumpra-se em mim segundo a tua palavra o que em

termos da visatildeo miacutetica do significado psicoloacutegico retrata que Maria aceita por sua

alma o encontro como o numinosum165 e como consequumlecircncia o encontro do

arqueacutetipo do mito com a individuaccedilatildeo do homem

Outro ponto a ser considerado como importante siacutembolo formador do

mito cristatildeo eacute a virgindade de Maria que tal qual as Virgens Vestais eram guardiatildes

da chama sagrada Essa relaccedilatildeo com a virgindade parece ser importante como

energia de transmutaccedilatildeo do fogo sagrado pois como em muitas culturas as

virgens sempre possuem uma relaccedilatildeo com o numinoso o que significa ser um

forte siacutembolo arquetiacutepico formador do mito Edinger (1988 p28) diz O ego virgem

tem suficiente consciecircncia para relacionar-se com as energias transpessoais sem

identificar-se com elas

164 EDINGER1988p25 165 Numinosum- numinoso adjetivo - influenciado inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade

214

Seguindo adiante no ciacuterculo do mito de Cristo encontramos o segundo

ponto que se refere agrave natividade

1 Naqueles dias saiu um decreto da parte de Ceacutesar

Augusto para que todo o mundo fosse recenseado

2 Este primeiro recenseamento foi feito quando Quiriacutenio

era governador da Siacuteria

3 E todos iam alistar-se cada um agrave sua proacutepria cidade

4 Subiu tambeacutem Joseacute da Galileacuteia da cidade de Nazareacute agrave

cidade de Davi chamada Beleacutem porque era da casa e famiacutelia de

Davi5 a fim de alistar-se com Maria sua esposa que estava graacutevida

6 Enquanto estavam ali chegou o tempo em que ela havia

de dar agrave luz 7 e teve a seu filho primogecircnito envolveu-o em faixas e o

deitou em uma manjedoura porque natildeo havia lugar para eles na

estalagem

Este eacute o momento em que no mito do heroacutei se iniciam os perigos onde

enquanto se registrava nos Ceacuteus o nascimento de uma crianccedila divina se

recenseava na Terra e se registrava as pessoas nascidas pois naquele momento

histoacuterico e cultural era de suma importacircncia ter o nome escrito e registrado Cristo

disse mais adiante a seus disciacutepulos (Lc 1020) deveis alegrar-vos de que os

vossos nomes estejam escritos no ceacuteu

Em Hebreus (1223) agrave universal assembleacuteia eacute a igreja dos primogecircnitos

inscritos nos ceacuteus e Deus o juiz de todos e aos espiacuteritos dos justos

aperfeiccediloados

215

Mas tambeacutem eacute importante perceber que culturalmente os primogecircnitos

(pr totokos ou primogenitus)166 eram considerados especiais natildeo soacute para os

homens daquela eacutepoca mas tambeacutem para Iahveh vejamos Santifica-me todo

primogecircnito todo o que abrir o uacutetero de sua matildee entre os filhos de Israel assim

de homens como de animais porque meu eacute (Ex132)

Jesus foi o primogecircnito Primogecircnito entre muitos irmatildeos(Rm 829) que

erigiraacute uma igreja dos primogecircnitos inscritos nos ceacuteus (Hb1223)

Novamente a cultura como expressatildeo de uma eacutepoca de um povo gera

o poder criador do mito O heroacutei aqui denominado Jesus Cristo nasce como

primogecircnito e como Salvador Universal

Vamos entatildeo relembrar a saga de um heroacutei miacutetico nas palavras de

Jung167

Este eacute o motivo pelo qual o nascimento de Cristo foi

caracterizado pelas manifestaccedilotildees que acompanham o nascimento do

heroacutei quais sejam o anuacutencio preacutevio deste nascimento a geraccedilatildeo no

seio de uma virgem a coincidecircncia com a triacuteplice coniunctio magna

(juacutepiter marte e saturno) no signo de Pisces que introduziu

precisamente naquela eacutepoca o novo eon ligado ao nascimento de um

rei a perseguiccedilatildeo ao receacutem-nascido sua fuga e ocultaccedilatildeo a

modeacutestia de seu nascimento etc Pode-se ver tambeacutem o tema do

crescimento do heroacutei em sabedoria demonstrada pelo jovem de doze

anos no templo e quanto ao tema da ruptura com a matildee haacute tambeacutem

alguns exemplos

166 o mais velho o primeiro filho homem do homem 167 JUNG 1990

Resposta agrave Jocirc p49-par 644

216

A terceira situaccedilatildeo do nosso ciacuterculo do mito de cristo eacute a Fuga para o

Egito onde o nascimento do heroacutei ou da crianccedila divina como jaacute dito

anteriormente se faz acompanhar costumeiramente de ameaccedilas com relaccedilatildeo a

sua vida o que mais uma vez se confirma Vejamos

13 E havendo eles se retirado eis que um anjo do Senhor

apareceu a Joseacute em sonho dizendo Levanta-te toma o menino e sua

matildee foge para o Egito e ali fica ateacute que eu te fale porque Herodes

haacute de procurar o menino para o matar

14 Levantou-se pois tomou de noite o menino e sua matildee

e partiu para o Egito

15 e laacute ficou ateacute a morte de Herodes para que se

cumprisse o que fora dito da parte do Senhor pelo profeta Do Egito

chamei o meu Filho

16 Entatildeo Herodes vendo que fora iludido pelos magos

irou-se grandemente e mandou matar todos os meninos de dois anos

para baixo que havia em Beleacutem e em todos os seus arredores

segundo o tempo que com precisatildeo inquirira dos magos

17 Cumpriu-se entatildeo o que fora dito pelo profeta Jeremias

18 Em Ramaacute se ouviu uma voz lamentaccedilatildeo e grande

pranto Raquel chorando os seus filhos e natildeo querendo ser

consolada porque eles jaacute natildeo existem(Mt 213-18)

A autoridade maior o heroacutei o poder gerador do mito a crianccedila divina

cumpre as profecias pois em Oseacuteias (111) se diz Quando Israel era menino eu o

amei e do Egito chamei a meu filho e no antigo testamento a naccedilatildeo de Israel eacute o

217

filho de Iahweh mostrando assim que Cristo eacute a proacutepria substituiccedilatildeo da naccedilatildeo de

Israel

Novamente a expressatildeo cultural gera o mito como forma de seguir

explicando o inexplicaacutevel

Na quarta situaccedilatildeo do ciacuterculo do mito identifica-se o Batismo onde

Jesus sai da Galileacuteia para se encontrar com Joatildeo e ser batizado por ele e que

depois de batizado os ceacuteus se abrem uma pomba desce dos ceacuteus e uma voz do

ceacuteu lhes diz Este eacute o meu filho amado em quem me comprazo (Mt 313-17)

Para a Igreja o sacramento do batismo vem significar a morte da antiga

vida da carne e o renascimento da vida eterna em Cristo

O Espiacuterito Santo que desce nas asas de uma pomba branca o fogo

sobre o rio Jordatildeo e a luz vida do ceacuteu e que se abre sobre Cristo e Joatildeo Batista a

purificaccedilatildeo atraveacutes da aacutegua e a voz sugerem que o proacuteprio Senhor se fez batizar

e o homem miacutetico sabe que com esse evento o que habitava de forma demoniacuteaca

no inconsciente foi transformado em terreno sagrado e na morada do numinoso

O homem miacutetico se encontra com seu destino com sua identidade e tambeacutem

pode se considerar como o Filho de Deus um eleito que teraacute seu nome inscrito

nos ceacuteus

Em seguida ocorre a entrada triunfal de Jesus em Jerusaleacutem

1 Quando se aproximaram de Jerusaleacutem e chegaram a

Betfageacute ao Monte das Oliveiras enviou Jesus dois disciacutepulos

dizendo-lhes

218

2 Ide agrave aldeia que estaacute defronte de voacutes e logo encontrareis

uma jumenta presa e um jumentinho com ela desprendei-a e trazei-

mos

3 E se algueacutem vos disser alguma coisa respondei O

Senhor precisa deles e logo os enviaraacute

4 Ora isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito

pelo profeta

5 Dizei agrave filha de Siatildeo Eis que aiacute te vem o teu Rei manso

e montado em um jumento em um jumentinho cria de animal de

carga

6 Indo pois os disciacutepulos e fazendo como Jesus lhes

ordenara

7 trouxeram a jumenta e o jumentinho e sobre eles

puseram os seus mantos e Jesus montou

8 E a maior parte da multidatildeo estendeu os seus mantos

pelo caminho e outros cortavam ramos de aacutervores e os espalhavam

pelo caminho

9 E as multidotildees tanto as que o precediam como as que o

seguiam clamavam dizendo Hosana ao Filho de Davi bendito o que

vem em nome do Senhor Hosana nas alturas

10 Ao entrar ele em Jerusaleacutem agitou-se a cidade toda e

perguntava Quem eacute este

11 E as multidotildees respondiam Este eacute o profeta Jesus de

Nazareacute da Galileacuteia (Mt 21 1-9)

Eacute permitido por Cristo que o aclamem rei Parece que nesse momento

a negaccedilatildeo de seu destino surge justamente quando deixa a humildade e

sucumbe agrave tentaccedilatildeo do poder rapidamente se enche de fuacuteria e expulsa os

vendilhotildees do templo de Deus e amaldiccediloa uma figueira que natildeo lhe fornecia

frutos Como nos propotildee Edinger168 parece neste momento que Cristo pela forma

168 EDINGER1988 p60

219

que entra em Jerusaleacutem identifica a si mesmo como o rei messiacircnico profetizado

em Zc 99

9 Alegra-te muito oacute filha de Siatildeo exulta oacute filha de

Jerusaleacutem eis que vem a ti o teu rei ele eacute justo e traz a salvaccedilatildeo ele eacute

humilde e vem montado sobre um jumento sobre um jumentinho filho de

jumenta

O mito do heroacutei novamente se assemelha ao mito de Cristo pois natildeo haacute

como o heroacutei aceitar seu destino e desenvolver-se sem que antes seu ego

sucumba ao erro necessaacuterio (Felix culpa) pois de acordo com Jung169 o

egocentrismo eacute um atributo necessaacuterio da consciecircncia bem como seu pecado

especiacutefico

Mas continuando em nosso caminho da individuaccedilatildeo de Cristo

encontramos a Uacuteltima Ceia parte que por achar de grande importacircncia para a

construccedilatildeo do mito cristatildeo dedico mais adiante um espaccedilo significativo onde

coloco ao lado da formaccedilatildeo do mito os siacutembolos culturais da missa na

transformaccedilatildeo do homem cristatildeo Eacute a Uacuteltima Ceia a Santa Ceia a primeira missa

realizada no mito cristatildeo o rito central da Igreja Catoacutelica

26 Enquanto comiam Jesus tomou o patildeo e abenccediloando-

o o partiu e o deu aos disciacutepulos dizendo Tomai comei isto eacute o meu

corpo

169 apud EDIGER 1988p61 e JUNG Mysterium Coniunctionis par 364

220

27 E tomando um caacutelice rendeu graccedilas e deu-lho

dizendo Bebei dele todos

28 pois isto eacute o meu sangue o sangue do pacto o qual eacute

derramado por muitos para remissatildeo dos pecados (Mt 26 26-28)

55 Porque a minha carne verdadeiramente eacute comida e o

meu sangue verdadeiramente eacute bebida(Jo 655)

Eacute neste ponto que surge o primeiro sacrifiacutecio de Cristo pois oferece seu

corpo e seu sangue para a alimentaccedilatildeo dos que nele crecircem provando isso mais

adiante quando se deixa prender ser julgado flagelado e crucificado entregando

novamente seu corpo e seu sangue para salvaccedilatildeo de todos que aceitassem viver

esse mito O alimento dado aos disciacutepulos vem representar a natureza paradoxal

do siacutembolo da Eucaristia170 De um lado fornece uma conexatildeo como poder

gerador do mito e do outro a prima mateacuteria que deve ser humanizada e

transformada pelos esforccedilos do ego171 para que o homem possa se transformar e

receber em si o divino o numinoso

Mais adiante Cristo vai ao Gethsemani onde fica clara a aceitaccedilatildeo da

missatildeo de ser o Filho de Deus uma missatildeo de sofrimento e sangue que caminha

pelo ciacuterculo do mito de Cristo atraveacutes dos pontos da Prisatildeo e Julgamento onde

mesmo que natildeo aceitasse ser o Rei dos Judeus dizendo natildeo ser deste mundo

seu reino ainda assim era um reino da Flagelaccedilatildeo e escaacuternio da crucificaccedilatildeo o

170 EDINGER1988 p69 171 idem

221

foco principal do mito cristatildeo em relaccedilatildeo agrave contemplaccedilatildeo do sofrimento e da

entrega do destino a Deus

A crucificaccedilatildeo pode equivaler ao fracasso do heroacutei em sua luta pois ao

dizer Meu Deus meu Deus porque me abandonastes poderia estar revendo

que sua vida vivida de profunda convicccedilatildeo tinha sido uma terriacutevel ilusatildeo172

Vem a lamentaccedilatildeo e o sepultamento equivalendo agrave descida de Cristo

aos infernos e ao limbo amparado pela Pietaacute sobre o corpo morto do filho

Mas no primeiro dia da semana

1 Mas jaacute no primeiro dia da semana bem de madrugada

foram elas ao sepulcro levando as especiarias que tinham preparado

2 E acharam a pedra revolvida do sepulcro

3 Entrando poreacutem natildeo acharam o corpo do Senhor Jesus

4 E estando elas perplexas a esse respeito eis que lhes

apareceram dois varotildees em vestes resplandecentes

5 e ficando elas atemorizadas e abaixando o rosto para o

chatildeo eles lhes disseram Por que buscais entre os mortos aquele que

vive

6 Ele natildeo estaacute aqui mas ressurgiu Lembrai-vos de como

vos falou estando ainda na Galileacuteia(Lc 24 1-6)

Mas depois da Ressurreiccedilatildeo mesmo com diversas evidecircncias de seu

aparecimento como em Joatildeo 2011-17 como em Lucas e Mateus seus disciacutepulos

natildeo o reconheceram de imediato pois atingindo o Self o Si-mesmo a evoluccedilatildeo

do homem miacutetico ele se transforma de tal ordem que natildeo poderaacute ser reconhecido

172 ideacuteia expressada por Jung durante entrevistas CGJung Entrevistas e Encontrosp103- apud EDINGER 1988 p120

222

mesmo pelos amigos mais iacutentimos pois atingiria o contato pleno com o

numinosum

35Mas algueacutem diraacute Como ressuscitam os mortos e com

que qualidade de corpo vecircm

36 Insensato o que tu semeias natildeo eacute vivificado se

primeiro natildeo morrer

37 E quando semeias natildeo semeias o corpo que haacute de

nascer mas o simples gratildeo como o de trigo ou o de outra qualquer

semente

38 Mas Deus lhe daacute um corpo como lhe aprouve e a cada

uma das sementes um corpo proacuteprio

39 Nem toda carne eacute uma mesma carne mas uma eacute a

carne dos homens outra a carne dos animais outra a das aves e

outra a dos peixes

40 Tambeacutem haacute corpos celestes e corpos terrestres mas

uma eacute a gloacuteria dos celestes e outra a dos terrestres

41 Uma eacute a gloacuteria do sol outra a gloacuteria da lua e outra a

gloacuteria das estrelas porque uma estrela difere em gloacuteria de outra

estrela

42 Assim tambeacutem eacute a ressurreiccedilatildeo eacute ressuscitado em

incorrupccedilatildeo

43 Semeia-se em ignomiacutenia eacute ressuscitado em gloacuteria

Semeia-se em fraqueza eacute ressuscitado em poder

44 Semeia-se corpo animal eacute ressuscitado corpo

espiritual Se haacute corpo animal haacute tambeacutem corpo espiritual

45 Assim tambeacutem estaacute escrito O primeiro homem Adatildeo

tornou-se alma vivente o uacuteltimo Adatildeo espiacuterito vivificante

46 Mas natildeo eacute primeiro o espiritual senatildeo o animal depois

o espiritual

47 O primeiro homem sendo da terra eacute terreno o segundo

homem eacute do ceacuteu

223

48 Qual o terreno tais tambeacutem os terrenos e qual o

celestial tais tambeacutem os celestiais

49 E assim como trouxemos a imagem do terreno

traremos tambeacutem a imagem do celestial

50 Mas digo isto irmatildeos que carne e sangue natildeo podem

herdar o reino de Deus nem a corrupccedilatildeo herda a incorrupccedilatildeo

51 Eis aqui vos digo um misteacuterio Nem todos dormiremos

mas todos seremos transformados

52 num momento num abrir e fechar de olhos ao som da

uacuteltima trombeta porque a trombeta soaraacute e os mortos seratildeo

ressuscitados incorruptiacuteveis e noacutes seremos transformados (1 Cor

35-52)

O Corpo Celestial que Paulo cita em 1 Cor15 35-52 equivale a dizer

que o homem miacutetico com seu corpo em ressurreiccedilatildeo em Cristo estaacute em contato

direto com o arqueacutetipo Cristatildeo e com o proacuteprio Deus pois a morte e a

ressurreiccedilatildeo de Cristo formam um arqueacutetipo que vive natildeo apenas na psique

individual mas tambeacutem na coletiva 173

Com a Ascensatildeo onde Cristo diz se preparar para a descida sob a

forma do Espiacuterito Santo no Pentecostes Deus que se esvaziou de sua divindade e

desceu a Terra como espiacuterito humano sobe novamente e retorna ao ceacuteu em

ascensatildeo para depois retornar jaacute reconhecido como Deus sob a forma do

Espiacuterito Santo

173 idem

224

Mostra o mito Cristatildeo que natildeo somos seres humanos passando por

uma vida espiritual na Terra mas seres espirituais que passamos tal qual Cristo

por uma experiecircncia humana

8 Mas recebereis poder ao descer sobre voacutes o Espiacuterito

Santo e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusaleacutem como em toda

a Judeacuteia e Samaacuteria e ateacute os confins da terra

9 Tendo ele dito estas coisas foi levado para cima

enquanto eles olhavam e uma nuvem o recebeu ocultando-o a seus

olhos

10 Estando eles com os olhos fitos no ceacuteu enquanto ele

subia eis que junto deles apareceram dois varotildees vestidos de branco

11 os quais lhes disseram Varotildees galileus por que ficais

aiacute olhando para o ceacuteu Esse Jesus que dentre voacutes foi elevado para o

ceacuteu haacute de vir assim como para o ceacuteu o vistes ir (At 1 8-11)

O homem na visatildeo junguiana possui um Ego174 que se contrapotildee

constantemente ao Si-mesmo (Self) como sendo o Ego o terreno e o Si-mesmo o

celestial onde o Si-mesmo eacute a entidade inconsciente que desenvolve o ego

dizendo eu natildeo me crio a mim mesmo antes eu me aconteccedilo a mim mesmo

No ser humano sempre existiraacute a supremacia do Si-mesmo em

simultaneidade com a liberdade de accedilatildeo do Ego assim como no mundo sempre

haveraacute para o homem miacutetico a liberdade de accedilatildeo ou livre arbiacutetrio do corpo terreno

na relaccedilatildeo direta da supremacia do corpo espitirual O Ego estaacute para o Si-mesmo

174 Ego e Si-mesmo (self) pode ser visto em CARNOT(2005)

225

assim como o patiens

estaacute pra o agens ou como o objeto estaacute pra o

observador ou mesmo como o homem estaacute pra Deus

Jung comenta em seu livro The Spirit Mercurius Alchemical Studies

(par 280)175 que haacute uma correspondecircncia alquiacutemica e simboacutelica a esse evento da

Ascensatildeo e retorno de Cristo com a Taacutebua de Esmeraldas de Hermes a qual

inclui em sua receita pra a produccedilatildeo da Pedra Filosofal as palavras Ele sobe da

terra pra o ceacuteu e desce de novo na terra recebendo a forccedila de cima e de baixo e

comentando essa passagem diz

[Para o alquimista] natildeo haacute uma questatildeo de subida de

matildeo uacutenica pra o ceacuteu mas em contraste com a rota seguida pelo

Redentor Cristatildeo que vem de cima para baixo e depois retorna para

cima o filius macrocosmi comeccedila de baixo sobe agraves alturas e com os

poderes do Acima e do Abaixo unidos em si mesmo volta outra vez a

terra Ele (o alquimista) realiza o movimento inverso e assim

manifesta uma natureza contraacuteria agrave de Cristo e agrave dos Redentores

Gnoacutesticos (me agrada interpretar a palavra alquimista como traduccedilatildeo

de o homem miacutetico )

Chegamos ao ciclo do mito Cristatildeo ao Pentecostes a 13a situaccedilatildeo

colocada por Jung como sendo tambeacutem a primeira apoacutes a Ascensatildeo Com o

Pentecostes o ciclo da encarnaccedilatildeo de Cristo se completa assim como se

completa o ciclo do heroacutei O ciclo se inicia com a descida do Espiacuterito Santo na

175 apud EDINGER (1988 p 122)

226

anunciaccedilatildeo e termina com sua nova descida dos ceacuteus par o iniacutecio de um novo

ciclo

Para didaticamente deixar claro ao leitor repito a figura que

representa esse ciclo

A Igreja como corpo de Cristo teve sua anunciaccedilatildeo e

concepccedilatildeo no Pentecostes 176

176 idem EDINGER1988 p130

4 - batismo

1 - Anunciaccedilatildeo

2 - Natividade

3- Fuga para o Egito

13 - Pentecostes

5 Entrada Triunfal

6- A uacuteltima Ceia

Ressurreiccedilatildeo e ascensatildeo - 12

Lamentaccedilatildeo e sepultamento - 11

Crucificaccedilatildeo - 10

Flagelaccedilatildeo e escaacuternio - 9

Prisatildeo e julgamento 8

7

Gethsemani

227

Foi este o momento onde deixam os disciacutepulos de serem um

receptaacuteculo dos ensinamentos do mito de Cristo para nascer a Santa Igreja

Catoacutelica sem tratar aqui os movimentos de sua criaccedilatildeo como o grande

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo

Aqui o homem miacutetico entrega a Igreja o controle do proacuteprio espiacuterito

celestial podendo viver sua vida independente dos desiacutegnios dos ceacuteus podendo

em agindo dentro do mito buscar seu uacuteltimo dia momento em que voltaraacute a ser

receptaacuteculo do Espiacuterito Santo dando a ideacuteia de uma encarnaccedilatildeo contiacutenua tanto do

homem quanto de Deus

228

APEcircNDICE 4 - UMA PROPOSTA DE INTERPRETAR PSICOLOacuteGICA E MITICAMENTE A

TRINDADE

A Alma eacute o maior dos milagres coacutesmicos CG Jung 177

Como todo o tema deste trabalho desde o nome o objeto de pesquisa

pode parecer estranho tanto a um psicoacutelogo como a um educador como a um

historiador

No entanto faccedilo mais essa anaacutelise de forma plena e consciente de que

entro neste momento em mais uma pesquisa polecircmica e que por mais que me

aprofunde neste momento natildeo deixaraacute de ser superficial

Acontece que em meu entender tal qual os siacutembolos de transformaccedilatildeo

cultural da missa ou a interpretaccedilatildeo da vida de Cristo este tema tambeacutem eacute

necessaacuterio para que se possa ter mais clara a visatildeo do mito cristatildeo e por

consequumlecircncia o Cristatildeo portuguecircs do seacuteculo XVI pois a Trindade nos daraacute mais

algumas informaccedilotildees de como culturalmente esse arqueacutetipo esse mito foi imposto

agrave nossa cultura e imposiccedilatildeo aos brasis

177 JAFFEacute-1995-p5

229

As religiotildees cristatildes estatildeo tatildeo presentes e tatildeo proacuteximas agrave alma humana

que seria impossiacutevel ignoraacute-las do ponto de vista psicoloacutegico educacional e do

ponto de vista cultura

Por mais que a ideacuteia Trindade esteja no campo da Teologia aacuterea que

natildeo me sinto habilitado ou sequer inclinado a pesquisar eacute na histoacuteria e na obra de

CG Jung que busco as informaccedilotildees que necessito para escrever sobre esse

dogma e o simbolismo trinitaacuterio

Que se tenha notiacutecia a Trindade do mito cristatildeo eacute a uacutenica que soacute

existe como trecircs partes de um uno As triacuteades divinas de tantos mitos primitivos

tecircm uma relaccedilatildeo de parentesco entre elas como por exemplo a triacuteade babilocircnica

Anu Bel e Ea onde Ea a personificaccedilatildeo do saber eacute o pai de Bel (o Senhor) que

personifica a atividade praacutetica Numa triacuteade secundaacuteria desse mito da eacutepoca de

Nabucodonosor Sin (a lua) Shamash (o sol) e Adad (a tempestade Senhor do

Ceacuteu e da Terra e filho do altiacutessimo Anu da triacuteade primaacuteria) No tempo de

Hamurabi Marduk filho de Ea substitui Bel e seus poderes levando Bel a um

segundo plano Nisso Hamurabi se considera um novo deus e soacute venerava uma

diacuteade Anu e Bel e por ser Hamurabi considerado um soberano divino

mensageiro de Anu e Bels e associa a eles criando nova triacuteade Anu

Bel

Hamurabi178

Assim como nesse exemplo vaacuterias culturas primitivas se utilizavam em

seus mitos de triacuteades divinas

178 JUNG1988par173-174

230

No entanto no Velho Testamento encontramos por diversas vezes um

Deus quase que uno pois onde surge o Espiacuterito a palavra vem acompanhada de

Espiacuterito de Deus Espiacuterito do Senhor o que se pode confirmar em

Gecircnesis cap 1 e 6

Nuacutemeros cap 24 e 27

Juiacutezes cap 36111314 e 15

I Samuel cap 1011 e 16

II Samuel cap 3

I Reis cap 18 e 22

II Reacuteus cap 2

II Crocircnicas cap151820 e 24

Assim como em Neemias Joacute Salmos Isaias Ezequiel Joel Miqueacuteias

Ageu e Zacarias

Somente no evento do Novo Testamento surge a segunda parte da

diacuteade Espiacuterito Santo

Ateacute esse momento se percebe principalmente em Joacute um Deus uacutenico

onipotente e onisciente poreacutem com caracteriacutesticas de uma dualidade na forma de

agir com o homem Existe aiacute um Deus justo e injusto doce e coleacuterico que cria e

destroacutei que necessitava de aplausos e reverecircncias e dado ao caraacuteter temiacutevel

fazia com que o homem se referisse constantemente a um Temor de Deus

231

De fato Javeacute tudo pode e se permite sem pestanejar um

momento Ele eacute capaz de projetar com impassibilidade feacuterrea o seu

proacuteprio lado sombrio e permanecer inconsciente disto agrave custa do ser

humano Eacute capaz de apelar para o seu poder supremo e promulgar

leis que para ele significam menos que o ar Os assasiacutenios os

morticiacutenios natildeo lhe causam preocupaccedilatildeo e quando lhe daacute na veneta

eacute capaz igualmente de qual um senhor feudal ressarcir

generosamente os danos provocados nos campos de cereais dos

servos Perdeste os teus filhos as tuas filhas e os teus escravos Natildeo

haacute de ser nada eu te darei outros em troca e melhores do que os

primeiros 179

Iahweh natildeo possui origem nem passado comparado com outros

deuses helecircnicos ou natildeo Seu primeiro filho sendo Adatildeo fez com que todos

fossem descendentes desse primeiro pai Mas os povos judeus atraveacutes do que foi

chamado de providentia specialis garante a si a semelhanccedila de Deus e para

aplacar essa ira divina propotildee um pacto Iahweh - Noeacute do qual surge nova alianccedila

de Deus com os homens

Somente no Novo Testamento surge a figura do Espiacuterito Santo e aiacute a

fixaccedilatildeo da imagem da diacuteade divina

No entanto ateacute este momento natildeo havia entendimentos entre Deus

Iahweh e os homens nem entre os homens e Deus Era necessaacuterio um

entendimento mais humano das coisas terrenas Parece que podemos entender

ser a criaccedilatildeo imperfeita e tambeacutem Deus natildeo pode atender plenamente os

179 JUNG 1990 par597

232

requisitos de sua tarefa era necessaacuteria a criaccedilatildeo de um intermediaacuterio que

entendesse das coisas divinas e das coisas humanas Um Deus mais humano e

que entendesse o logos Dei O Uno precisava ser substituiacutedo por outro O mundo

do Pai deveria ser substituiacutedo pelo mundo do Filho

Alguma transmissatildeo cultural deve ter havido advinda da Babilocircnia do

Egito e da Greacutecia pois esses siacutembolos fazem parte dos fundamentos das imagens

miacuteticas e arquetiacutepicas do pensamento humano Aqui discutimos apenas aquilo

que emanou natildeo de pressupostos filosoacuteficos (mesmo os platocircnicos) mas sim

dos pressupostos arquetiacutepicos inconscientes inerentes agrave natureza humana

O Espiacuterito Santo anuncia o nascimento do Filius Dei e se completa

assim a Trindade a qual eacute nossa pesquisa para este tema

A Trindade Cristatilde natildeo tem a mesma origem das triacuteades divinas

babilocircnicas egiacutepcias ou gregas pois elas se diferem na concepccedilatildeo Por exemplo

enquanto a triacuteade platocircnica resulta de uma antiacutetese a Trindade ao contraacuterio eacute

totalmente harmocircnica entre si As denominaccedilotildees Pai Filho e Espiacuterito Santo natildeo

derivam absolutamente do nuacutemero trecircs e sim de um elemento uno

Apoacutes o Pai logicamente segue-se o Filho no entanto o Espiacuterito Santo

natildeo tem sua origem nem no Pai nem no Filho sendo portanto uma realidade

particular e de um pressuposto diferente Conforme se pode obter de Jung180 na

antiga doutrina Cristatilde o Espiacuterito Santo eacute vera persona quae filio et a patre missa

est [verdadeira pessoa enviada pelo pai e pelo Filho] O processio a patre filioque [o

180 JUNG 1988 par 197

233

ato de proceder do pai e do Filho] eacute uma inspiraccedilatildeo e natildeo uma geraccedilatildeo como no

caso do filho

De acordo com sua definiccedilatildeo o Pai eacute a prima causa o

creator o auctor rerum (o criador das coisas) o qual num determinado

estaacutegio cultural incapaz de reflexatildeo pode ser simplesmente o Uno 181

Mas se procurarmos a Matildee natildeo a encontraremos na Trindade e assim

natildeo poderemos entender a geraccedilatildeo do Filho Seria Trindade tambeacutem

transformada e quatro pontos e natildeo mais em trecircs Acontece que desde a Babilocircnia

ou do Egito a relaccedilatildeo pai-filho-vida com a exclusatildeo da matildee ou progenitora divina

constitui a foacutermula patriarcal que fazia parte da cultura desses povos o que vai

influenciar totalmente a mesma relaccedilatildeo patriarcal do periacuteodo do nascimento da

Trindade Cristatilde

No velho Egito e no Cristianismo a Matildee de Deus fica fora da trindade

No templo as coisas ritualiacutesticas eram exclusivas do homem e seus filhos Em

Lucas (2 40-49) Maria vai ao templo onde Jesus com 12 anos estava jaacute haacute trecircs

dias entre os mestres e lhe pergunta onde andava e ele lhe responde Porque me

procuraacuteveis Natildeo sabiacuteeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai

Desde os primoacuterdios os ritos iniciaacuteticos dos primitivos misteacuterios

sempre afastaram os jovens de suas matildees e os transformavam atraveacutes de um

181 idem par199

234

novo nascimento Essa ideacuteia miacutetica e arquetiacutepica continua viva ateacute os tempos de

hoje atraveacutes do celibato sacerdotal Mais uma vez a cultura e sua transmissatildeo de

forma educacional geram as fontes do mito A relaccedilatildeo sublimada pai-filho gera a

concepccedilatildeo de um espiacuterito que representa a encarnaccedilatildeo ideal da vida masculina

Outra possibilidade de transformaccedilatildeo da triacuteade em quatro pontos de

fundamento seria a da inclusatildeo do democircnio nesse grupo No entanto tambeacutem

isso natildeo seria possiacutevel pois o mal o democircnio as disposiccedilotildees morais soacute surgem

com um Cristianismo jaacute fundado em bases soacutelidas com o mito cristatildeo jaacute fazendo

parte e tendo efeito na vida da alma humana e cristatilde

Gostaria de lembrar que o mito se forma com as imagens primordiais

que possuem fatores que coordenam a psique humana e seratildeo reconhecidos

como formadores do mito apoacutes pertencerem e fazerem efeito na vida do homem

Novamente a cultura e a transmissatildeo da tradiccedilatildeo geram as fontes miacuteticas Se as

disposiccedilotildees morais natildeo estavam definidas como definir o mal Como definir o

democircnio

Mas a evoluccedilatildeo continua e a Trindade se fixa nos conceitos do homem

do mundo conhecido de entatildeo A vida do Homem-Deus faz com que seja revelada

a mais importante das revelaccedilotildees coisas que soacute podiam ser explicadas pelo

Filho visto que o Pai em seu estado original de uno natildeo tinha como revelar ao

homem a existecircncia do Espiacuterito Santo que conforme foi visto anteriormente apoacutes

a morte do Filho apoacutes ter abandonado o espaccedilo terreno desce sobre a alma dos

homens e envolve a todos com sua bondade e benevolecircncia para fazer mais

235

pelos homens do que fez o Pai ou o Filho o elemento miacutetico que completa

definitivamente a Trindade e reconstitui a unidade

Assim se lecirc na primeira carta de Clemente 466 Temos

um soacute Deus e um soacute Cristo como tambeacutem um soacute Espiacuterito 182

Ou como pode ser lido no Credo batismal chamado o Symbolum

Apostolicum atestado por documentos a partir do seacuteculo IV

Creio em Deus Pai todo poderoso em Jesus Cristo seu

filho unigecircnito nosso Senhor o qual doacutei concebido pelo Espiacuterito

Santo e nasceu de Maria Virgem foi crucificado sob Pocircncio Pilatos e

sepultado ao terceiro dia ressurgiu dos mortos subiu aos ceacuteus estaacute

sentado agrave direita da Deus Pai de onde haacute de vir a julgar os vivos e os

mortos e no Espiacuterito Santo na santa Igreja na remissatildeo dos

pecados na ressurreiccedilatildeo da carne 183

Por mais que qualquer racionalidade cultural pudesse tentar explicar

esse conceito de Trindade sempre permaneceu incoacutelume principalmente porque

apoacutes um mito ter sido fundado por seu poder criador ele passa a pertencer a um

mundo arquetiacutepico que natildeo pode ser atingido pela racionalidade pois o arqueacutetipo

o mito por residir por emanar do inconsciente humano adquire um caraacuteter

numinoso que torna impossiacutevel enquadraacute-lo no mundo da racionalidade tendo

182 JUNG 1988 par 207 183 JUNG 1988 par 211

236

muitas vezes sim gerado em na histoacuteria discussotildees vazias disputas verbais e

ateacute violecircncia na tentativa de se explicar o dogma da Santiacutessima Trindade

O conceito de santidade indica que uma determinada

coisa ou ideacuteia possui valor supremo cuja presenccedila leva o homem

por assim dizer ao mutismo A santidade eacute reveladora eacute a forccedila

iluminante que dimana da forma arquetiacutepica184

Somente o termo santiacutessima jaacute nos faz entender que o arqueacutetipo se

tornou ativo e que o mito impregnou a alma do homem poacutes cristianismo ou como

denomina a psicologia tambeacutem racionalista de presenccedila psiacutequica extra-

consciente

Para onde entatildeo foi o homem Jesus como poderiacuteamos definir ou contar

sua histoacuteria enquanto homem Natildeo havia mais Jesus o homem foi substituiacutedo

pelo mito mesmo nas palavras de Paulo por exemplo pois nunca uma palavra de

Jesus foi citada em qualquer de seus discursos O que se falava de Jesus se

falava do mito do arqueacutetipo sempre representado pela figuras de O Senhor dos

Democircnios o Salvador Coacutesmico etc Nunca mais surge na histoacuteria o humano de

Jesus Transformou-se o homem em sua expressatildeo miacutetica pois o Homem-Deus

o Deus Eterno natildeo tem histoacuteria do ponto de vista humano somente alegorias da

iconografia da Idade Meacutedia

184 JUNG 1988 par 235

237

Como pastor Ele eacute o condutor e o centro dos rebanhos Eacute

a videira Enquanto os que o seguem satildeo os ramos Seu corpo eacute patildeo

que se come e seu sangue eacute vinho que se bebe Ele eacute tambeacutem

Corpus mysticum formado pela uniatildeo dos crentes Como

manifestaccedilatildeo humana eacute o Heroacutei e o Homem-Deus sem pecado por

isso mais completo e perfeito do que o homem natural que Ele

ultrapassa e abrange e que estaacute pra Ele na mesma relaccedilatildeo de uma

crianccedila para o adulto ou da ovelha pra o homem 185

Ele eacute o Arqueacutetipo da Cristandade ele eacute o mito Cristatildeo

185 JUNG 1988 par 229

238

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Fontes

ANCHIETA Joseacute de Cartas

Informaccedilotildees Fragmentos Histoacutericos e

Sermotildees

1534-1597 Belo Horizonte Itatiaia S Paulo Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1988

__________ Diaacutelogos da Feacute

obras completas 8deg vol

introduccedilatildeo e notas

Pe Armando Cardoso Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988

__________ Feitos de Men de Saacute Paraacute de Minas Virtual Books 2000

__________ Auto de Satildeo Lourenccedilo - Paraacute de Minas Virtual Books 2000

BETTENDORF Joatildeo Felipe Pe 1627-1698

Crocircnica dos padres da

Companhia de Jesus do Estado de Maranhatildeo Beleacutem Fundaccedilatildeo Cultural do

Paraacute Tancredo Neves 1990

CARDIM Fernatildeo

1540-1625

Tratados da terra e gente do Brasil Belo

Horizonte Ed Itatiaia Satildeo Paulo Ed Da Universidade de Satildeo Paulo 1980

COLOacuteNCristoacutebal - Carta a los Reyes Catoacutelicos - 2000 virtualbookscombr -

Editora Virtual Books - Online MampM Editores Ltda

CAMINHA Pero Vaz de

A Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de

Portugal - Ministeacuterio da Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional

Departamento Nacional do Livro

(Coacutepia obtida via internet) e Carta de Pero

Vaz de Caminha

A certidatildeo de Nascimento da Naccedilatildeo Brasileira

Brasil 500

Anos Bradesco - 2000

NAVARRO Azpicuelta e outros - Cartas Avulsas 1550-1568 Belo Horizonte

ItatiaiaSatildeo Paulo Edusp 1988

NOacuteBREGA Manuel da Cartas do Brasil Belo Horizonte - ItatiaiaSatildeo Paulo

Edusp 1988

SALVADOR Frei Vicente do A Histoacuteria do Brasil

1500-1627 5a Ed Satildeo

Paulo Melhoramentos 1965

239

STADEN Hans Duas Viagens ao Brasil Belo Horizonte Ed Itatiaia Satildeo

Paulo Ed da Universidade de Satildeo Paulo [1557] 1974

VIEIRA Pe Antonio Sermotildees

Obras Completas

vol V- Sermatildeo do

Espiacuterito Santo Lisboa Lelo e irmatildeo Editores 1951

OUTRAS REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ABREU J Capistrano de

Capiacutetulos da Histoacuteria Colonial - Ministeacuterio da

Cultura - Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro

versatildeo para e-books [httpwwwbnbrbibvirtualacervo]

1907

obtida em

2004

BACHELARD Gaston

A Terra e os Devaneios do Repouso

Satildeo Paulo

Martins Fontes 1990

BIacuteBLIA ELETROcircNICA 252 RK Soft Desenvolvimento

BIacuteBLIA SAGRADA - Nova traduccedilatildeo na linguagem de hoje

Barueri-SP

Sociedade Biacuteblica do Brasil 2000

BUENO Silveira

Vocabulaacuterio Tupi-Gurani

Portuguecircs

Satildeo Paulo Eacutefeta

Editora 1998

CALMON Pedro

Histoacuteria do Brasil

Seacuteculo XVI

As origens e Seacuteculo

XVII

Formaccedilatildeo Brasileira - Vol 1 e 2

Rio de Janeiro - Livraria Joseacute

Oliacutempio Editora 2a ed 1963

CALLOIS Roger Les jeux et les hommes

le masque et le vertige Paris

Galiimard 1985

CAMPBELL Joseph com Bill Moyers

O Poder do Mito - Satildeo Paulo Ed

Palas Athena 1990

240

CARDOSO Armando (Trad) O Teatro de Anchieta

Obras Completas - 3o

Volume - SPaulo Loyola 1977

CARNOT Sady A destribalizaccedilatildeo da Alma Indiacutegena

Brasil Seacuteculo XVI

uma visatildeo junguiana

Prefaacutecio de Joseacute Maria de Paiva - S Matheus

ES

Memorial 2005

CAROTENUTO Aldo

Eros e Pathos Amor e sofrimento Satildeo Paulo Ed

Paulus 1994

CASSIRER Ernest

Antropologiacutea Filosoacutefica

Meacutexico Fondo de Cultura

Econoacutemica 1945

CHAIN Iza G C

O Encontro de Dois Mundos In O Diabo nos Porotildees das

Caravelas Tese de Mestrado texto obtido atraveacutes da Internet 2003

CRIPPA Adolfo

Mito e Cultura Satildeo Paulo Conviacutevio 1975

DEWEY John

Democracia e educaccedilatildeo Breve tratado de Philosophia de

Educaccedilatildeo Biblioteca Pedagoacutegica Brasileira

Companhia Editora Nacional S

Paulo 1936

DOURLEY John P A doenccedila que somos noacutes

A criacutetica de Jung ao

cristianismo trad Roberto Girola - Satildeo Paulo Paulus 1987

EDINGER Edward F

O Arqueacutetipo Cristatildeo

Um comentaacuterio junguiano

sobre a vida de Cristo Satildeo Paulo Cultrix 1988

__________ - A Criaccedilatildeo da Consciecircncia

O mito de Jung para o Homem

moderno Satildeo Paulo Cultrix 1999

FERNANDES Florestan

A funccedilatildeo social da guerra na sociedade

Tupinambaacute - Satildeo Paulo Livraria Pioneira Editora 1970

FREYRE Gilberto - Casa Grande e Senzala - Rio de Janeiro Livraria Joseacute

Oliacutempio 1984

__________- Casa Grande e SenzalaRio de Janeiro Rio Filmes com apoio

da Fundaccedilatildeo Joaquim Nabuco e Fundaccedilatildeo Gilberto Freyre

narrado por

241

Edson Nery da Fonseca amigo pessoal e bioacutegrafo de Gilberto Freyre Capiacutetulo

II A cunha matildee da Famiacutelia Brasileira 2000

GAMBINI Roberto

O espelho iacutendio os jesuiacutetas e a destruiccedilatildeo da alma

indiacutegena - Rio de Janeiro Espaccedilo e Tempo 1988

GAcircNDAVO Pero de Magalhatildees

Tratado da Terra do Brasil

Histoacuteria da

Proviacutencia Santa Cruz - Belo Horizonte Itatiaia 1980

GINZBURG Carlo Mitos Emblemas Sinais - Satildeo Paulo Schwarkz 2002

GODINHO Vitorino Magalhatildees A estrutura social do Antigo Regime In

GODINHO VM A estrutura na Antiga Sociedade portuguesa Lisboa Arcaacutedia

1971

GUSDORF Georges Mito y Metafiacutesica Buenos Aires Editorial Nova 1959

HERNANDES Paulo Romualdo O Teatro de Joseacute de Anchieta Arte e

Pedagogia no Brasil Colocircnia

Campinas Biblioteca de Educaccedilatildeo da

UNICAMP 2001

HOELLER Stephan A A Gnose de Jung e os Sete Sermotildees aos mortos

Satildeo Paulo Cultrix 1991

__________ Jung e os evangelhos perdidos

Uma apreciaccedilatildeo junguiana

sobre os manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi - Satildeo

Paulo CultrixPensamento 1993

HOLLIS James

Rastreando os Deuses

O lugar do mito na vida

moderna Satildeo Paulo Paulus 1998

JAFFEacute Aniela

O Mito do significado na Obra de C Gustav Jung- Satildeo

Paulo Cultrix 1995

JACOBI Jolande Complexo Arqueacutetipo Siacutembolo na Psicologia de CG

Jung Satildeo Paulo Ed Cultrix 1991

JECUPEacute Kakaacute Weraacute A Terra dos mil Povos Satildeo Paulo Editora Fundaccedilatildeo

Peiroacutepolis 1999

242

______Tupatilde Tenondeacute Satildeo Paulo Peiroacutepolis 2001

JUDY Dwight H

Curando a Alma Masculina

O Cristianismo e a

Jornada miacutestica Satildeo Paulo Paulus 1998

JUNG C G A importacircncia dos sonhos In O Homem e seus siacutembolos

CG Jung MLvon Franz Joseph L Henderson Jolande Jacobi e Aniela Jaffeacute

Rio de Janeiro Nova Fronteira 1964

_______ Memoacuterias Sonhos e Reflexotildees Rio de Janeiro Ed Nova Fronteira

1975

_______ Psicologia e Religiatildeo - Obras Completas

Vol XI1 Petroacutepolis

Vozes 1978

_______ Aion - Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo Petroacutepolis

EdVozes 1982

_______ O Siacutembolo da Transformaccedilatildeo na Missa Obras Completas Vol

XI3 Petroacutepolis Ed Vozes 1985

_______ Mysterium Coniunctionis

Obras Completas- vXIV1 Petroacutepolis

Vozes 1988

_______ A interpretaccedilatildeo Psicoloacutegica do Dogma da Trindade Obras

Completas Vol XI2 Petroacutepolis Vozes 1988

_______ Siacutembolos da Transformaccedilatildeo Obras completas VolV Petroacutepolis

Vozes 1989

_______ Civilizaccedilatildeo em Transiccedilatildeo Petroacutepolis Ed Vozes 1993

_______ Resposta a Jocirc Petroacutepolis Ed Vozes 1990

LACOUTURE Jean Os Jesuiacutetas

A Conquista

vol 1

Lisboa Editorial

Estampa 1993

LANA Firmino Arantes e LANA Luiz Gomes

Antes o mundo natildeo existia

Mitologia dos antigos Desana-Kehiriacutepotilderatilde - Satildeo Gabriel da Cachoeira

AM

FOIRN Federaccedilatildeo das Organizaccedilotildees dos Indiacutegenas do Rio Negro 1995

243

MAGASICH-AIROLA Jorge e BEER Jean-Marc de Ameacuterica Maacutegica

Quando a Europa da Renascenccedila pensou estar conquistando o Paraiacuteso

Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

MAY Rollo A procura do mito Satildeo Paulo Manole1992

MENDES Antoacutenio Rosa A vida Cultural In MATTOSO Joseacute Histoacuteria de

Portugal Lisboa Estampa1992 tIII coord de Joaquim Romero Magalhatildees

MONTEIRO John M Tupis Tapuias e Historiadores- Estudos de Histoacuteria

Indiacutegena e do Indigenismo Tese apresentada pra o concurso de Livre

Docecircncia Aacuterea de Antropologia Campinas IFCH Unicamp 2001

MORENTE Manuel Garcia Fundamentos de filosofia e liccedilotildees preliminares

(metafiacutesica idealismo e positivismo)8a Ed Traduccedilatildeo e proacutelogo de Guilhermo

de la Cruz Coronado Satildeo Paulo Editora Mestre Jou 1930

NEVES Luiz Felipe Baeta

O Combate dos Soldados de Cristo na Terra

dos Papagaios

Colonialismo e Repressatildeo Cultural

Rio de Janeiro

Forense Universitaacuteria 1978

NOGUEIRA Carlos Roberto F O Diabo no imaginaacuterio cristatildeo Bauru Edusc

2000

PAIVA Joseacute Maria de Histoacuteria da Educaccedilatildeo Colonial

texto natildeo publicado

2002

_______ Religiosidade e Cultura

Brasil Seacuteculo XVI uma chave de

leitura Texto natildeo publicado 2002

_______ Catequese e Colonizaccedilatildeo Satildeo Paulo CortezAutores Associados

1982

PEacuteCORA Alcir Teatro do sacramento A unidade teoloacutegico-retoacuterico-

poliacutetica dos sermotildees de Antocircnio Vieira Satildeo Paulo-Campinas EduspEditora

da Unicamp 1994

RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro

A Formaccedilatildeo e o Sentido do Brasil

Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995

244

SEREBURAtilde e outros

Wamrecircmeacute Zaacutera

Mito e Histoacuteria do Povo Chavante

Nossa Palavra Satildeo Paulo SENAC 1998

TAVARES Eduardo e outros

Missotildees Jesuiacutetico- Guarani Satildeo Leopoldo

Unisinos 1999

TODOROV Tzvetan A Conquista da Ameacuterica A questatildeo do outro 3a Ed

Satildeo Paulo Martins Fontes 2003

WHITMONT Edward A Busca do Siacutembolo Satildeo Paulo Ed Cultrix 1990

WYLY James

A busca Faacutelica

Priapo e a Inflaccedilatildeo Masculina

Satildeo

Paulo Ed Paulus 1994

XAVIER Acircngela Barreto amp HESPANHA Antonio Manuel a Representaccedilatildeo da

Sociedade e do PoderIn MATTOSO Joseacute Histoacuteria de Portugal t IV Coord

de Antocircnio Manuel Hespanha Lisboa Estampa 1992

httpwwwflorestaufprbr~paisagemcuriosidadescurupirahtm

- 280905

This document was created with Win2PDF available at httpwwwwin2pdfcomThe unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only

Page 7: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 8: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 9: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 10: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 11: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 12: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 13: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 14: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 15: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 16: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 17: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 18: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 19: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 20: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 21: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 22: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 23: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 24: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 25: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 26: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 27: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 28: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 29: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 30: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 31: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 32: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 33: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 34: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 35: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 36: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 37: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 38: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 39: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 40: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 41: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 42: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 43: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 44: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 45: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 46: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 47: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 48: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 49: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 50: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 51: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 52: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 53: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 54: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 55: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 56: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 57: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 58: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 59: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 60: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 61: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 62: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 63: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 64: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 65: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 66: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 67: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 68: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 69: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 70: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 71: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 72: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 73: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 74: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 75: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 76: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 77: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 78: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 79: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 80: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 81: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 82: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 83: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 84: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 85: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 86: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 87: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 88: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 89: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 90: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 91: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 92: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 93: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 94: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 95: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 96: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 97: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 98: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 99: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 100: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 101: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 102: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 103: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 104: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 105: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 106: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 107: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 108: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 109: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 110: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 111: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 112: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 113: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 114: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 115: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 116: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 117: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 118: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 119: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 120: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 121: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 122: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 123: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 124: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 125: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 126: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 127: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 128: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 129: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 130: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 131: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 132: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 133: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 134: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 135: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 136: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 137: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 138: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 139: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 140: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 141: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 142: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 143: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 144: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 145: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 146: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 147: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 148: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 149: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 150: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 151: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 152: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 153: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 154: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 155: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 156: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 157: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 158: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 159: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 160: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 161: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 162: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 163: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 164: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 165: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 166: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 167: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 168: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 169: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 170: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 171: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 172: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 173: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 174: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 175: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 176: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 177: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 178: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 179: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 180: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 181: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 182: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 183: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 184: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 185: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 186: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 187: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 188: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 189: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 190: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 191: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 192: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 193: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 194: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 195: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 196: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 197: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 198: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 199: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 200: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 201: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 202: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 203: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 204: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 205: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 206: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 207: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 208: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 209: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 210: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 211: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 212: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 213: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 214: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 215: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 216: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 217: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 218: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 219: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 220: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 221: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 222: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 223: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 224: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 225: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 226: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 227: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 228: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 229: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 230: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 231: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 232: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 233: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 234: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 235: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 236: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 237: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 238: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 239: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 240: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 241: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 242: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 243: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 244: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão
Page 245: O Mito Cristão contra Guaixará e os outros diabos - versão