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O LUGAR DO AUTOMÓVEL EM SÍTIOS COM INTERESSE DE PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL: O caso de Ouro Preto ARCIPRESTE, Cláudia M. (1); FURLAN, Elis (2); AGUIAR, Tito F. R. (3). 1. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Departamento de Arquitetura e Urbanismo DEARQ. UFOP, Escola de Minas, Campus Morro do Cruzeiro, DEARQ, Ouro Preto MG. [email protected] 2. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Curso de Arquitetura e Urbanismo Escola de Minas. Rua Tomé Afonso, nº 178 A, Água Limpa, Ouro Preto - MG [email protected] 3. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Departamento de Arquitetura e Urbanismo DEARQ. UFOP, Escola de Minas, Campus Morro do Cruzeiro, DEARQ, Ouro Preto MG. [email protected] RESUMO Este trabalho discute as interfaces entre os modos de vida das sociedades contemporâneas e as demandas de preservação patrimonial dos sítios com interesse para preservação. Tomou-se como objeto de estudo o uso e a guarda do automóvel em Ouro Preto, Minas Gerais, em um trecho do lado oeste da estrada tronco, ou seja, o caminho de formação da cidade. Através da pesquisa de campo foram levantadas tipologias de garagens existentes ao longo do trecho, assim como foram observadas as dinâmicas da mobilidade urbana e a relação entre a população local e os órgãos de preservação. Os dados obtidos confirmam a insuficiência dos espaços privados para a guarda de automóveis e as percepções contraditórias sobre a preservação do patrimônio edificado, além da aplicação, na adaptação das edificações para a guarda dos automóveis, de técnicas pouco adequadas à preservação patrimonial. Indicam, também, ser necessário repensar as condições de mobilidade urbana para reduzir o impacto dos automóveis no centro histórico. Uma permanente revisão da legislação patrimonial é também importante, de modo a conciliar a preservação com as transformações dos modos de vida atuais, buscando-se compatibilizar preservação e desenvolvimento, agregando-se ao sítio tombado o valor de cidade real e viva, privilegiando-se o olhar do habitante local como estratégia para preservação patrimonial mais sustentável. Palavras-chave: Patrimônio cultural edificado; preservação patrimonial; centros históricos; mobilidade urbana; Ouro Preto MG.

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O LUGAR DO AUTOMÓVEL EM SÍTIOS COM INTERESSE DE PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL:

O caso de Ouro Preto

ARCIPRESTE, Cláudia M. (1); FURLAN, Elis (2); AGUIAR, Tito F. R. (3).

1. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DEARQ.

UFOP, Escola de Minas, Campus Morro do Cruzeiro, DEARQ, Ouro Preto – MG. [email protected]

2. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Curso de Arquitetura e Urbanismo – Escola de Minas.

Rua Tomé Afonso, nº 178 A, Água Limpa, Ouro Preto - MG [email protected]

3. Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP. Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DEARQ.

UFOP, Escola de Minas, Campus Morro do Cruzeiro, DEARQ, Ouro Preto – MG. [email protected]

RESUMO

Este trabalho discute as interfaces entre os modos de vida das sociedades contemporâneas e as demandas de preservação patrimonial dos sítios com interesse para preservação. Tomou-se como objeto de estudo o uso e a guarda do automóvel em Ouro Preto, Minas Gerais, em um trecho do lado oeste da estrada tronco, ou seja, o caminho de formação da cidade. Através da pesquisa de campo foram levantadas tipologias de garagens existentes ao longo do trecho, assim como foram observadas as dinâmicas da mobilidade urbana e a relação entre a população local e os órgãos de preservação. Os dados obtidos confirmam a insuficiência dos espaços privados para a guarda de automóveis e as percepções contraditórias sobre a preservação do patrimônio edificado, além da aplicação, na adaptação das edificações para a guarda dos automóveis, de técnicas pouco adequadas à preservação patrimonial. Indicam, também, ser necessário repensar as condições de mobilidade urbana para reduzir o impacto dos automóveis no centro histórico. Uma permanente revisão da legislação patrimonial é também importante, de modo a conciliar a preservação com as transformações dos modos de vida atuais, buscando-se compatibilizar preservação e desenvolvimento, agregando-se ao sítio tombado o valor de cidade real e viva, privilegiando-se o olhar do habitante local como estratégia para preservação patrimonial mais sustentável.

Palavras-chave: Patrimônio cultural edificado; preservação patrimonial; centros históricos; mobilidade urbana; Ouro Preto – MG.

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4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Introdução: a estrada tronco

A cidade de Ouro Preto é considerada o mais significativo conjunto urbano da

arquitetura colonial brasileira, tendo sua origem no século XVII com a exploração do ciclo do

ouro. Sua povoação se deu a partir de pequenos arraiais de mineradores localizados em

torno das antigas capelas do Antônio Dias e do Pilar. O processo de formação da Vila Rica

se deu em parte de forma linear, ao longo de uma via, denominada estrada tronco por Sylvio

de Vasconcellos, que conectava estes arraiais ligando as três elevações características do

território: Morro de Santa Quitéria, Cabeças e Vira e Sai, ou de Santa Efigênia.1

A urbanização de Ouro Preto foi realizada por colonizadores portugueses que,

apesar destes serem homens do Renascimento, implantaram a povoação em moldes

medievais, respeitando a topografia acidentada configurando um traçado orgânico, tanto

linear quanto polinuclear, como pode ser observado na FIGURA 1. O nivelamento do

terreno, devido a dureza do solo, se deu em apenas alguns pontos, como no Morro de Santa

Quitéria para dar origem ao centro administrativo que foi a Praça Tiradentes. As vias

acompanhavam as meias encostas e as residências se ajustavam ao perfil da rua, assim

como aos limites laterais dos terrenos, criando um cenário de casas enfileiradas. A cidade

* Este trabalho é o resultado das atividades do Programa de Iniciação Científica da categoria Programa de Iniciação à Pesquisa (PIP) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), desenvolvida no curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Minas. 1 VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento, residências. São Paulo: Perspectiva,

1977. p. 71 – 82.

FIGURA 1: Mapa da ocupação residencial linear e polinuclear ao longo da estrada

tronco em meados do século XVIII, segundo Sylvio de Vasconcellos. Fonte: http://espacospublicosbarrocos.blogspot.com.br/2012/05/historia-de-ouro-preto-mineracao-no.html (2015), baseado em VASCONCELLOS, 1977, p. 78.

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correspondia a sua demanda local do século XVIII de expansão mineradora, comercial,

política e social.2

O esgotamento das jazidas de ouro, no fim do século XVIII, e a mudança da capital

de Minas para Belo Horizonte em 1897, permitiram à cidade chegar às primeiras décadas do

século XX sem grandes transformações. A antiga Vila Rica atraiu a atenção dos intelectuais

modernistas que, nos anos 1920, buscavam compor uma identidade nacional. Por influência

desses modernistas Ouro Preto foi declarada Monumento Nacional em 1933, por força do

Decreto nº 22.928.3

A partir da década de 1930, diversas políticas de preservação do patrimônio foram

implantadas. Todas elas partindo do Estado, que também encontrou na cidade uma forma

de criar uma identidade nacional e reforçar sua ideia de nação. Mas diferente dos

modernistas, que na cidade destacaram seu valor estético e artístico do Barroco e do

colonial, o Estado encontra na Inconfidência Mineira a criação de um herói nacional.

Diversas práticas de preservação foram impostas a Ouro Preto, deixando sempre

sua população subordinada à uma visão externa idealizada. Ações diretas como a

homogeneização de fachadas ao estilo colonial, retirando marcas do neoclassicismo e

ecletismo, correntes típicas do século XIX, ceifando a memória social coletiva depositada

em lugares como o Largo do Coimbra foram práticas amplamente adotas na cidade. Neste

largo havia, durante o século XIX, um importante centro comercial e social, conhecido como

Mercado do Antônio Dias, uma edificação originalmente rústica de tropeiros (FIGURA 2) e

depois substituída por uma eclética (FIGURA 3), que na década de 1940 foi demolida para

“ressaltar” a contemplação da Igreja São Francisco de Assis e atualmente abriga a Feira de

Pedra Sabão (FIGURA 4). Desta forma, Ouro Preto viu o século XIX ser apagado da sua

cidade, sem qualquer respeito a sua memória local. 4

A história local, a intrincada teia de relações sociais, econômicas e culturais, que compõem a fisionomia de um lugar e a vida de uma cidade, desaparece, assim para dar lugar a um símbolo nacional idealizado. Não é de se estranhar, portanto, que também desapareça a ‘memorabilidade’ do lugar para a população local, sistematicamente excluída da formulação das políticas de preservação. No caso de Ouro Preto vamos assistir mesmo a curiosa inversão: o Estado assume a condição de ‘guardião local’ e o morador passa a ser visto como um opositor da preservação e um virtual transgressor. (CASTRIOTA, 2009, p.145-146)

2 CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo: Annablume;

Belo Horizonte: IEDS, 2009. p. 131 – 132. 3 Ibidem, p. 136 – 141.

4 Ibidem, p. 143 – 146.

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FIGURA 2: Mercado da Freguesia de Antônio Dias, século XIX. Fonte: http://arquivopublicoop.blogspot.com.br/ (2015)

Figura 3: Ilustração do Mercado de Antônio Dias do início da década de

1940. Fonte: http://arquivopublicoop.blogspot.com.br/ (2015)

Figura 4: Feira de Pedra Sabão que atualmente ocupa o vazio deixado

pela demolição do Mercado do Antônio Dias. Fonte: Elis Furlan, abril 2014.

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Além dessa inversão indicada por Castriota, pode ser percebida a desarticulação da

ação dos três níveis de poderes – municipal, estadual e federal -, que muitas vezes tomam

posições antagônicas entre si e para com a sociedade ouro-pretana. Um exemplo, são

posições adotadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pela

Secretaria Municipal de Cultura e Patrimônio da Prefeitura Municipal de Ouro Preto para

aprovação de projetos arquitetônicos e fiscalização de reformas e mudanças nos edifícios

localizados no perímetro tombado da cidade. Assentada sobre princípios de valorização

estética dos padrões coloniais, as leis e regulamentos que orientam as ações desses órgãos

dificultam e, muitas vezes, impedem a adaptação física das edificações às demandas e

necessidades trazidas pelos modos de vida contemporâneos da sociedade, como, por

exemplo, a implantação de garagens, entre outros espaços.

Políticas públicas de preservação

No Brasil, as políticas públicas destinadas à cidade e sua urbanização começam a

ser institucionalizadas a partir da década de 1960 com a criação do Serviço Nacional de

Habitação e Urbanismo (SERFHAU) e o Banco Nacional da Habitação (BNH). Na

Constituição Federal de 1988, há a inclusão dos artigos 182 e 183 sobre a “Política Urbana”.

Em 1989, é proposto o Estatuto da Cidade, mas este só se transforma em lei em 2001 (Lei

nº 10.257, de 10 de julho de 2001). Um de seus capítulos é sobre o Plano Diretor, uma

ferramenta para auxiliar no planejamento e na gestão municipal. Desta forma, os governos

municipais passaram a ter responsabilidade direta sobre o desenvolvimento do Plano

Diretor, assim como estabelecer a Lei de Uso e Ocupação do Solo.5

Em janeiro de 2012, foi aprovada a Lei nº 12.587 que obriga os municípios com mais

de 20.000 habitantes, no prazo de três anos, a estabelecerem o Plano de Mobilidade

Urbana integrado ao Plano Diretor. Chamada de Política Nacional de Mobilidade Urbana,

tem como objetivo principal contribuir para o acesso universal a cidade, incentivando a

integração de políticas públicas e a promoção de uma cidade socialmente inclusiva e

voltada para a recuperação e conservação do habitat. Este Plano de Mobilidade deve estar

ainda de acordo com a Política Nacional de Participação Social de 2014, a qual promove a

participação da sociedade na gestão pública, já sendo um direito constitucional.6

5 PEÇANHA, Carolina F. Mobilidade urbana no município de Ouro Preto: um estudo de caso interdistrital e

diretrizes para a melhoria da qualidade nos deslocamentos. (Trabalho Final de Graduação) Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, 2014. p. 25 – 26. 6 Ibidem, p. 35.

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Na década de 1970, a Fundação João Pinheiro gerou o “Plano de Conservação,

Valorização e Desenvolvimento de Ouro Preto e Mariana”, com uma grande equipe

multidisciplinar, porém não implantado. O Plano Diretor de Ouro Preto foi decretado apenas

em 2006 (Lei Complementar nº 29 de 28 de dezembro de 2006) e a Lei de Uso e Ocupação

do Solo em 2011 (Lei Complementar nº 93 de 20 de janeiro de 2011) sob forte pressão do

Ministério Público e da UNESCO, devido a ameaça de perder o título de Patrimônio da

Humanidade.

Em março do ano passado, a prefeitura iniciou uma ação conjunta entre o IPHAN, o

Instituto de Mobilidade Sustentável Rua Viva e a Fundação Gorceix para elaboração do

Plano de Mobilidade Urbana. Ocorreram diversas reuniões públicas e uma página na

internet foi criada para ampliar a participação da população, porém o prazo estabelecido em

lei venceu em janeiro de 2015 e o plano ainda não foi concluído, assim como a revisão do

Plano Diretor, que têm prazo estabelecido em lei de 5 anos para ser revisado.

A regulamentação da preservação do patrimônio cultural brasileiro teve início com a

demanda dos intelectuais modernistas na década de 1920, com a criação da Inspetoria

Estadual de Monumentos Históricos de Minas Gerais em 1925, frente aos anseios da

Semana de Arte Moderna de 1922. Em 30 de novembro de 1937 é assinada por Getúlio

Vargas, então presidente do país, e Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e da

Saúde, o decreto-lei nº 25 organizando a preservação do patrimônio histórico artístico

nacional, no mesmo ano em que o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(IPHAN) foi criado. Em 1988, a Constituição Federal ampliou o decreto-lei nº 25 em seu

artigo 24, que promulgou a competência da proteção ao patrimônio histórico, cultural,

turístico e paisagístico compartilhada entre a União, os estados e os municípios, além de

definir o conceito de patrimônio:

Artigo 216: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL. Constituição, 1988)

Em 21 de setembro de 1980, foi concedido à cidade o título de Patrimônio Cultural da

Humanidade pela UNESCO. E em 20 de outubro de 2010, o IPHAN lançou a Portaria nº 312

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que regulamenta as intervenções nas áreas protegidas em nível federal, além de resolver os

critérios para preservação do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Ouro Preto. Esta

portaria e o Plano Diretor são hoje os principais geradores de conflito entre a população e as

instâncias de preservação, pois possuem olhares e posturas diferentes para um mesmo

objeto.

Enquanto que a Portaria nº 312 do IPHAN têm como foco a composição volumétrica,

a manutenção das faces de quadra e a indicação de materiais a serem utilizados para a

manutenção de um contexto de preexistência valorizado pelos processos de tombamento e

reconhecimento do valor do patrimônio edilício, o Plano Diretor e, principalmente, a Lei de

Uso e Ocupação do Solo possui um caráter mais quantitativo no que tange a taxa de

ocupação, coeficiente de aproveitamento, afastamentos, permeabilidade do solo e diretrizes

para o uso. Ambas as legislações criaram uma setorização do perímetro tombado. Desta

forma, o trecho analisado nesta pesquisa encontra-se tanto na Área de Preservação

Especial (APE) do IPHAN e quanto na Zona de Proteção Especial (ZPE) do poder municipal.

É relevante o caráter mais impositivo da Portaria, o que acaba ressaltando algumas

lacunas da Lei de Uso e Ocupação do Solo. Por exemplo, na Lei de Uso e Ocupação do

Solo, a Zona de Proteção Especial (ZPE) é o único zoneamento em que não é exigido vaga

de garagem e nem é definido a quota de unidade habitacional, ou seja, qualquer

empreendimento pode se abster da sua responsabilidade com o volume de tráfego gerado e

não há um controle sobre o adensamento populacional.

Para qualquer projeto ser executado no perímetro de tombamento de Ouro Preto é

necessário a aprovação tanto da instância federal quanto da municipal. A atual Secretaria

Municipal de Cultura e Patrimônio tomou a postura de centralizar o recebimento dos projetos

e assim encaminha-los internamente à secretária do IPHAN de Ouro Preto, reduzindo o

desgaste da população para os tramites da aprovação. Porém a aprovação continua sendo

avaliada separadamente por cada órgão. Ou seja, todo projeto está sujeito a ser aprovado

em uma instância e a ser reprovado na outra, o que acaba contribuindo para a percepção,

por parte da população, de que seu direito de propriedade é cerceado em nome da

preservação do patrimônio cultural.

Assim, atuam no mesmo perímetro de tombamento dois órgãos de preservação e

fiscalização, com legislações, setorizações e focos distintos sobre o mesmo objeto. E no

meio destes encontra-se a população local que não participou ativamente da composição

destas legislações e que não se reconhece nas políticas públicas de preservação.

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Ouro Preto e o automóvel: uma dinâmica em atrito

Não se pode negar que o automóvel é um símbolo da sociedade contemporânea.

Assim como cumpre uma função de transporte, sendo elemento importante no âmbito da

mobilidade urbana no Brasil, também se constitui como objeto de anseios pessoais,

vinculado até mesmo à ideia de realização individual e status nas sociedades

contemporâneas.

Em sua função essencial como meio de transporte, o automóvel é hoje fundamental

em Ouro Preto para a locomoção e acessibilidade da população por terrenos acidentados e

vias íngremes e estreitas, próprias de outras dinâmicas de uso dos espaços urbanos. O

transporte público na cidade, por sua vez, é reconhecido como insuficiente pela população,

concentrando-se apenas nas vias principais. Privilegia algumas regiões, mas desconsidera

os usuários de inúmeras outras, sobretudo nas zonas periféricas. Assim, com a

precariedade do transporte público, a cidade, por um lado, depende do uso de automóveis

particulares. Por outro lado, esse uso acarreta inúmeros problemas urbanos ligados ao

tráfego excessivo e ao volume de carros que circula na cidade.

Como em Ouro Preto, o papel do automóvel tem sido cada vez mais decisivo e

controverso no contexto das cidades brasileiras. O incentivo ao uso do automóvel e à

indústria automobilística no Brasil, vem ocorrendo desde a década de 1930, com a entrada

dos primeiros modelos da era fordista. Na década de 1950, com a política

desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck, houve um expressivo aumento da frota de

veículos de passeio, assim como de outros modelos, mas nada comparado à significativa

expansão atual, quando subsídios governamentais e redução de impostos aliados ao maior

poder aquisitivo do brasileiro possibilitaram enorme crescimento do mercado e da frota de

automóveis, causando imensos impactos nas grandes cidades e também nas pequenas e

médias. Em 2006, Ouro Preto possuía 15.012 veículos, em 2012 a frota contava com 26.184

veículos, já em 2013 esse número saltou para 27.858 veículos e em 2014 o total de veículos

emplacados no município foi de 29.155, ou seja, em nove anos praticamente dobrou a

quantidade de veículos transitando na cidade.7

Apesar da dependência do automóvel nos processos de mobilidade urbana e de seu

valor simbólico como agregador de diversos signos contemporâneos, a cidade de Ouro

Preto nega ao cidadão, muitas vezes, as condições para possuir esse bem, para mantê-lo e

abrigá-lo nas edificações do centro histórico. A necessidade e o desejo de ter um automóvel

7 PEÇANHA, 2014, p.102 – 116.

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traz inúmeras dificuldades ao cidadão ouro-pretano, uma vez que as restrições impostas

pelas leis e regulamentos da Prefeitura Municipal de Ouro Preto e pelo IPHAN são muitas.

Contudo, dentro das normas ou transgredindo-as, as edificações vão sendo

transformadas e modificam a cidade a partir de diferentes estratégias arquitetônicas. As

cidades históricas também precisam ser compreendidas como organismos vivos, que

precisam, por diferentes razões e de diferentes maneiras, inserirem-se no contexto atual

para suprir as necessidades e os anseios de seus habitantes. Neste sentido, cabe aqui

considerar que as cidades se constituem em suas dinâmicas sociais, elas são um reflexo do

seu tempo, da sua política, da sua ideologia e da sua sociedade.

[...] o território urbano é produtor e produto das relações sociais ali existentes num determinado momento do tempo, no qual a sociedade e cada indivíduo de per si, inscreve suas demandas, projetos, e estilo de viver, sentir e pensar. (HONORATO, p.86)

As vozes da cidade

Para a análise do uso e da guarda do automóvel em Ouro Preto delimitamos um

trecho oeste da estrada tronco abrangendo as ruas Alvarenga, Bernardo Guimarães, Getúlio

Vargas, São José, Conde de Bobadela, até a Praça Tiradentes. Esse trecho pertence a

Zona de Proteção Especial (ZPE) do Plano Diretor do município de Ouro Preto e a Área de

Preservação Especial (APE) do IPHAN, por possuir a maior parte do seu traçado original,

com edificações erguidas a partir do século XVIII. Desta forma, neste trecho foram

realizadas pesquisas de campo, de natureza qualitativa, direcionada para a compreensão da

relação entre sociedade e legislação vigente, reconhecendo práticas, tipologias e aspectos

técnico-construtivos, por meio de um levantamento fotográfico e entrevistas.

As entrevistas semiestruturadas, ou também conhecidas como semidiretivas ou

semiabertas, foram realizadas com profissionais da área de preservação patrimonial,

trabalhadores dos órgãos de preservação, como IPHAN e Secretária Municipal de Cultura e

Patrimônio de Ouro Preto, e moradores do trecho delimitado. Para tanto foi elaborado um

roteiro abordando três temáticas: garagens, legislação patrimonial e tráfego de veículos. A

princípio levantamos as edificações que possuíam garagens e quais as técnicas e suas

tipologias construtivas, para então compreender de que forma esses projetos foram e ainda

são aprovados de acordo com a legislação e os órgãos de preservação, e por último

questionamos acerca da percepção da conjuntura atual do tráfego na cidade. A partir destas

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direções as entrevistas tomaram rumos diversos e algumas das opiniões mais relevantes

estão destacadas aqui.

Iniciamos as entrevistas ouvindo técnicos dos órgãos de preservação atuantes em

Ouro Preto, em que, todos os entrevistados relataram uma “falta de pensamento coletivo da

população local”, a qual estaria sempre denunciando e mediando em causa própria. O

ENTREVISTADO 1 ressaltou que existe uma relação de amor e ódio entre a população e a

preservação patrimonial, que ao mesmo tempo em que as pessoas “adoram” o fato de

morarem numa cidade patrimônio elas também “odeiam” a mesma condição, pois acreditam

que seus direitos são cerceados a partir do tombamento.

A variação da ação e das posturas do IPHAN ao longo do tempo também foi um

tema muito abordado pelos entrevistados que atuam nesta instituição, alertando para que

não ocorressem anacronismos nas análises desenvolvidas, já que nos deparamos em

campo com intervenções aprovadas em diferentes períodos de atuação do órgão.

Os funcionários dos órgãos de preservação municipal também destacaram os pontos

em comum e contrassensos das legislações adotadas ao longo do tempo. Na verdade,

segundo o ENTREVISTADO 2, a Portaria nº 312 do IPHAN foi desenvolvida em conjunto

com o município para complementar a atuação deste e acabar com as divergências entre

IPHAN e prefeitura municipal. Porém, o que foi observado é que algumas atitudes

assumidas, principalmente pelo IPHAN, que é mais restritivo, acabam gerando contradições

de posturas dos órgãos atuantes e confundindo ainda mais a população local.

Dentre os entrevistados que moram no trecho delimitado e possuem abrigos para

seus veículos em suas residências, foram encontrados posicionamentos articulados a

diferentes níveis de compreensão das políticas públicas de preservação. Alguns desses

entrevistados são professores de ensino superior e entendem claramente o papel que cada

órgão desempenha e até mesmo seu próprio papel para a preservação da cidade como um

todo. Estes entrevistados não relataram problemas para aprovação do projeto de adaptação

ou reforma e nem problemas diretos com os órgãos de preservação. Porém os moradores

que não compreendem ao certo o papel dos órgãos, assim como as políticas patrimoniais,

demonstraram certo rancor com relação a estas instituições e um sentimento exacerbado de

cerceamento do seu direito de propriedade.

O relato mais enfático foi do ENTREVISTADO 5 que narrou a imensa dificuldade em

arrecadar fundos para a execução da obra de restauro do seu imóvel, primeiramente devido

ao custo elevado e também pela enorme burocracia para conseguir um empréstimo na

Caixa Econômica Federal pelo programa Monumenta - IPHAN. Ele expôs ter entrado em

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contato com o Ministério Público, o Corpo de Bombeiros e a imprensa, a fim de pressionar

os órgãos públicos para que um financiamento fosse concedido para a realização da obra.

As insatisfações em relação à postura do IPHAN foram várias e ficou claro a falta de

comunicação entre o órgão e a família dona do imóvel. Aquele é visto como cerceador de

direitos sobre o bem particular que deveria “pertencer apenas ao proprietário” e como a

instância “que só coloca entraves para a vida deste”. Diversas vezes, o entrevistado

enfatizou o quão ruim era ter uma casa tombada. O apreço pelo bem é percebido por meio

das memórias da família e da infância, na residência onde foi criada. Porém, um sentimento

de usurpação de direitos é apreendido quando um órgão externo decide “sobre seu bem,

dizendo o que deve ou não ser feito”.

Ao mesmo tempo, percebe-se que a própria família desconhecia a história da

edificação e sua importância como patrimônio para a humanidade. Muito menos

compreendiam o cuidado especial que deveriam ter com o material e a técnica usada para

construir a casa, já que o baldrame da estrutura sofreu torção devido a inserção de um

banheiro com técnicas construtivas inadequadas, colocando peso excessivo na peça

estrutural que torceu e quase se rompeu.

Duas exigências do IPHAN despertaram indignação no entrevistado: a recusa em

autorizar a modificação da escada que dá acesso à cozinha e a ordem para trocar a cor da

pintura das fachadas externas. A escada é original, em madeira de lei, com vedação em

pau-a-pique, porém os degraus são pequenos e estreitos, com espelhos altos, além da

madeira já estar desgastada com o uso, configurando uma escada perigosa, com registro de

acidentes, o que no entendimentod o ENTREVISTADO 5 justificaria sua reforma. Já as

cores da fachada, segundo esse entrevistado, eram cores comuns, que já haviam sido

indicadas no projeto aprovado e que não agrediam o entorno. Contudo, após a execução, o

IPHAN não aprovou a pintura e o entrevistado “foi obrigado a trocar as cores que ele queria

por cores que o mandaram pintar.”

Na residência do ENTREVISTADO 5 encontramos uma garagem ocupando um vazio

lateral do lote, em alvenaria de tijolos cerâmicos e coberta com telhas de fibrocimento

(FIGURA 5). Não conseguimos informação sobre o licenciamento dessa construção,

parcialmente oculta atrás de muro alto e implantada abaixo do chalé préexistente. Essa

solução evidenciaria, possivelmente, alguma acomodação entre exigências das instâncias

responsáveis pela preservação do patrimônio e demandas dos moradores locais (FIGURA

6).

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O impacto do trânsito pesado da Rua Alvarenga é tão grande que em apenas três

anos após o término do restauro, esse chalé já apresenta na fachada frontal diversas

rachaduras, fissuras, despreendimento de argamassa na fachada frontal, assim como um

dos quartos da fachada posterior apresenta enormes rachos e fissuras, possivelmente

devido às vibrações dos veículos. De fato, todos os levantamentos encontrados, realizados

pelo próprio poder público há mais de dez anos, indicam as consequências do trânsito

pesado: “O imóvel apresenta rachaduras e trincas que comprometem a conservação e

estrutura, abaladas ainda mais pelo trânsito intenso no local.”(PROJETO MUSEU ABERTO

– CIDADE VIVA, 2004). Mesmo com diversos laudos acerca deste problema o trânsito na

Rua Alvarenga torna-se a cada ano mais intenso, com a circulação de veículos pesados

como: ônibus e caminhões, além das inúmeras vans, automóveis e motocicletas.

Figura 5: Garagem ocupando o vazio do terreno do imóvel do

ENTREVISTADO 5 com materiais e técnicas construtivas inadequadas. Fonte: Elis Furlan, novembro de 2014.

Figura 6: Fachada do imóvel do ENTREVISTADO 5 localizado na Rua

Alvarenga com garagem ocupando o vazio do lote à direita da edificação. Fonte: Elis Furlan, outubro de 2014.

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Tipologias de garagens

Por meio da pesquisa de campo foi possível observar as dinâmicas da mobilidade

urbana local, assim como realizar um levantamento fotográfico e mapeamento do trecho

para caracterizar as tipologias de garagens encontradas. Foram levantadas cinco tipologias

principais de guarda de automóveis, excluindo - se a via pública.

Intitulamos a primeira tipologia como “fachada à vista” pois esta abrange as garagens

inseridas diretamente nas fachadas frontais das edificações. Essas garagens são facilmente

vistas e reconhecidas, podendo ser uma apropriação de porões de pé direito alto, ou apenas

uma implantação diferenciada no corpo da edificação, como exemplificada pela FIGURA 7.

A segunda tipologia foi chamada de “fachada não vista”, já que utiliza um recurso

singular, em que as garagens estão inseridas na edificação de forma cênica e, para tanto,

foram utilizados de artifícios materiais e estéticos que dificultam sua identificação à primeira

vista, como pode ser observada nas FIGURAS 8 e 9.

Figura 7: Garagem de “fachada à vista” no Largo

da Igreja de N. Sr.ª do Rosário Fonte: Elis Furlan, outubro de 2014.

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A terceira e mais recorrente tipologia foi a que chamamos de “lateral”, na qual a

garagem é localizada no recuo lateral das edificações, se utilizando de um vazio do lote,

como pode ser observado na FIGURA 6 apresentada anteriormente. A quarta tipologia

intitulamos de “fundo de lote”, já que estas garagens ocupam o vazio posterior dos lotes, e

sua a entrada, geralmente, dá-se por uma rua do outro lado da quadra. E a quinta tipologia

levantada seriam os “estacionamentos” de uso coletivo em grandes vazios, ou mesmo em

fundos de lotes.

As tipologias que ocupam o vazio dos lotes aproveitaram-se da implantação das

antigas edificações e de suas remanescentes áreas de quintais, herança do período

colonial, em que possuíam grande importância para a produção de alimentos, com o cultivo

de pomares e hortas, além de animais para o consumo, como galinhas e porcos. Nas áreas

Figuras 8 e 9: Tipologia de garagem na “fachada não vista” na Rua Alvarenga. Fonte: Elis Furlan, novembro de 2008 e outubro de 2014.

Figuras 10 e 11: Tipologia de “estacionamento” localizado no fundo do lote na Rua Conde de

Bobadela, mais conhecida como Rua Direita. Fonte: Elis Furlan, agosto de 2015 e http://media-cdn.tripadvisor.com/media/photo-p/05/5d/bc/e6/hotel-pousada-solar-da.jpg (2015)

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mais centrais de Ouro Preto, como na Rua Conde de Bobadela e Rua São José, esses

vazios foram praticamente extintos a medida que a população da cidade aumentava a partir

da metade do século XX, com o aumento da demanda de mão-de-obra para a indústria e a

mineração. Desta forma, os vazios foram ocupados por inúmeros “puxadinhos”, que são em

sua maioria anexos de baixo padrão, baixa qualidade técnica e sem concordância estética

com a própria edificação e a paisagem urbana. Frente a essas modificações que alteraram

diretamente a relação de cheios e vazios, modificando a paisagem urbana de Ouro Preto, o

IPHAN adotou medidas mais restritivas para as faixas que podem ser edificáveis.

Enquanto que nas áreas centrais a ocupação dos lotes, no final do século XX, se deu

a fim de abrigar um número maior de habitantes, nas regiões periféricas muitos quintais

também deram lugar a garagens e estacionamentos. Alguns lotes com saída de fundo para

outras vias e outros poucos com afastamento lateral suficiente, tiveram seus quintais

adaptados para abrigar um ou mais veículos. Muitas dessas garagens funcionam como

estacionamento para diversos familiares ou mesmo vizinhos. Encontramos também ao longo

de todo o trecho selecionado muitos casos de garagens adaptadas para a oferta de ponto

comercial, já que a especulação mobiliária em Ouro Preto elevou os custos de aluguel,

tornando-se uma fonte de renda para diversas famílias na cidade.

Dentre as tipologias levantadas não há a aplicação de técnicas retrospectivas de

construção ou mesmo coerência com as teorias de restauro e conservação de bens

tombados. Na ocupação do vazio dos lotes, na maior parte, o chão é concretado e há

apenas uma cobertura, em sua maioria, de telha de fibrocimento ou metálica.

Conclusões

Os resultados analisados têm por finalidade traçar caminhos que conduzam à

diminuição dos conflitos de interesse na cidade, oriundos das relações entre gestão pública

de preservação e bens imóveis privados tombados. A demanda de moradores do centro

histórico por alterações de suas casas para a guarda de veículos é apenas uma faceta de

um leque maior de insatisfações e incompatibilidades entre as demandas sociais de

adaptação das edificações e as normativas para que estas ocorram sem a

descaracterização do conjunto histórico tombado pela UNESCO.

De modo amplo, através da metodologia proposta, buscou-se ampliar o olhar sobre a

questão, sobre as fissuras neste relacionamento que produzem um sentimento de

engessamento e, até mesmo, de cerceamento do pleno direito de posse do proprietário,

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habitante da cidade histórica, como apreendido no relato do ENTREVISTADO 5. Em

contraposição, dentro dos órgãos gestores do patrimônio criou-se um sentimento de que o

proprietário é um “opositor da preservação e um virtual transgressor” (CASTRIOTA, 2009,

p.146). Desta forma, este estudo questiona a interação entre a sociedade que habita os

sítios históricos e o Estado, com suas políticas de preservação.

Os mecanismos tradicionais hoje utilizados, construídos ao longo dos séculos para a

preservação monumental no Ocidente, já não se mostram suficientes para documentar,

proteger e conservar o patrimônio edificado contemporaneamente, necessitando ser

permanentemente questionados e atualizados. Neste sentido, este estudo colabora para

revisões metodológicas neste campo, uma vez que há uma insuficiência em estudos que

lidem a questão patrimonial e social na ótica proposta.

Os dados obtidos confirmam a insuficiência dos espaços privados para a guarda de

automóveis na Zona de Proteção Especial do município. Estes, em muitos casos são

deixados nas vias públicas, gerando impactos urbanos.

Conclui-se ser necessário repensar as condições de mobilidade urbana para reduzir

o impacto dos automóveis no centro histórico de Ouro Preto. Faz-se também necessária

permanente revisão da legislação patrimonial, de modo a conciliar a preservação com as

transformações dos modos de vida atuais, buscando-se compatibilizar preservação e

desenvolvimento, agregando-se ao sítio tombado o valor de cidade real e viva, privilegiando-

se o olhar do habitante local como estratégia para preservação patrimonial mais sustentável.

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