o jogo e a infância - entre o mundo pensado e o mundo vivido
TRANSCRIPT
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
1/72
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
2/72
FICHA TCNICA
TTULO
O JOGO E A INFNCIAentre o mundo pensado e o mundo vivido
ORGANIZADORES
-
AUTORES
Luciene SilveiraAntnio Camilo Cunha
TRADUO DE TEXTO
-
REVISO DE TEXTO
Sara Silva
CAPA E DESIGN
Carlos Gonalves
IMPRESSO E ACABAMENTO
Printhaus
DEPSITO LEGAL
-
ISBN
-
Reservados todos os direitos.Esta edio no pode ser reproduzida nem transmi-tida, no todo ou em parte, sem prvia autorizaoda editora.
EDIO
WHITEBOOKS
www.defactoeditores.pt
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
3/72
OJOGOEAINFNCIAENTREOMUND
OPENSADO
EOMUNDOVIVIDO
AUTORESLUCIENESILVE
IRA
ANTNIOCAMILOCUNHA
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
4/72
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
5/72
A materializao desta pequena obra tem
como principal objetivo conhecer e apro-
fundar o movimento humano. Para tal,
perscrutando, em ltima instncia, o lugar
da teoria, foi feita uma viagem terica aos
universos da brincadeira, do jogo, do corpo
e da cultura, seguindo os passos da infn-cia, como meio orientador Nesse contexto,
vamos encontrar dois caminhos de entendi-
mento e de prxis a vida pensada e a vida
vivida, aqui entendidas como itinerrios
seguros/securizantes para o entendimento
do ato pedaggico.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
6/72
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
7/72
INTRODUO
A CONSTATAO DE PARTIDAO MOVIMENTO HUMANO: ENTRE OMUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO
O Imprio da Razo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
O Retorno da Razo Fenomenologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
CAPTULO I
A CULTURA E O CORPO1 - A CULTURA E O CORPO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Sobre cultura: algumas caractersticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Cultura: uma forma dinmica do pensamento e do
conhecimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
Antropologia do corpo: uma cincia ao servio da
cultura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
O corpo: locusprimeiro da comunicao humana. . . . . . . . . . . . . 28
CAPTULO IIO JOGO, AS BRINCADEIRAS E A CULTURA
2 - O JOGO, AS BRINCADEIRAS E A CULTURA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
A qza a fxbla a alaa jogo
bcaa: coxo o. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37
O jogo a bcaa coo xo clal. . . . . . . . . . . . . . 42
O jogo, a bcaa a caa:o incio da cultura (ldica) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
O jogo a bcaa acoa oa o
seu papel no desenvolvimento infantil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
8/72
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
9/72
9 12
INTRODUO
Trilhar pelo universo humano reconhecer que o fazer depende
necessariamente de um corpo em ao, um corpo que sente, age,
reage e constri.
Essa ao exercida pela criana desde o nascimento, porquea criana nasce brincando, ao transformar seu corpo no primeiro
brinquedo, o que a torna autora e criadora desse movimentar pela
intuio, imaginao, signicao e/ou simbologia.
Deste modo, o jogo assume a sua indispensvel contribuio
para o universo infantil, j que este leva a criana ao conhecimento
de tudo o que a rodeia de uma forma tranquila, consolidando o
seu desenvolvimento atravs das experincias vividas, sentidas
e incorporadas.Cientes de que a conquista infantil se d atravs do experimento
vivido e sentido, preciso buscar alternativas, visto que estamos
diante de uma considervel reduo do tempo e do espao destina-
dos brincadeira da criana. Esta situao traduz-se num dos gran-
des problemas a ser enfrentado no futuro, pois presenciamos um
mundo em acelerado processo de transformaes, abarrotado pela
industrializao, pelas novas tecnologias, pelo crescente processo
de urbanizao que vem inuenciado fortemente o modo de vidada sociedade, modicando consideravelmente o comportamento
infantil no que diz respeito s atividades livres de movimento.
A esse prposito, podemos armar que o crescimento desequili-
brado dos grandes plos industriais, alm de implicar numa srie de
imperfeies, decincias e retardamento na vida social1, deixou de
levar em conta, em particular, o problema do lazer. E sendo o lazer
1 Dumazedier, Jore . Valores e contedos culturais do lazer.S. Paulo: ServioSocial do Comrcio. Administrao Regional no Estado de S. Paulo, 1980,p. 47.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
10/72
O JOGO E A INFNCIA10
INTRODUO
um suporte indispensvel, um direito incontestvel do Homem, em
particular da criana, torna-se imprescindvel que novas polticas
surjam para suprirem as necessidades infantis de espaos, de modoa favorecer as suas possibilidades de jogo e brincadeira. Dentro
dessa tica, as oportunidades de espaos para brincar so cada
vez mais limitadas, esmagando progressivamente a autoexpresso e
promovendo modelos de controlo e direo, seguindo atitudes e valores
considerados socialmenteadequados2.A criana aprende pelo jogo
e, sendo o jogo livre um convite ao movimento, indispensvel a
criao de espaos apropriados para que possa exercer o seu direito
de brincar/jogar em favor do seu desenvolvimento.O certo que as incessantes transformaes correntes condu-
zem construo natural de uma nova cultura dos tempos livres.
Importa reconhecer a cultura como um estado da prpria presena
humana, na sua maior caracterstica, j que atravs daquela
que o homem alcana a seu autntico signicado3. importante
concebermos que o tempo e o espao em que acontece o jogo pode
ser o fenmeno que melhor dene ou se aproxima da denio de
jogo, na medida em que o mesmo antecede a prpria cultura, a
civilizao no provm do jogo como um beb nasce do tero: tem
origem no jogo e enquanto jogo, nunca deixa de ser4.
As culturas infantis carregam os sinais dos tempos, revelando
a sociedade nas suas incoerncias/oposies, nas suas camadas
sociais e na sua totalidade5. importante compreendermos que
vivenciamos um perodo de profundas transformaes histricas,
onde as concees de infncia sofrem signicativas alteraes
sociais e culturais.
Sendo o ato de brincar inato na criana, torna-se inadivelreabilitar na sociedade contempornea uma cultura de rua com
2 Neto, Carlos. A Famlia e a institucionalizao dos tempos livres. Ludens,1994, (1), p. 6.
3 Fernandes, Antnio. Para uma sociologia da cultura.Coleo campo dascincias -4. Campos das letras Editores, S.A.,1999, p. 13.
4
Huizinga, Johan. Homu Ludens: um estudo sobre o elemento ldico dacultura. Edies 70, 2003, p. 10.5 Sarmento, Manuel. Imaginrio e culturas da infncia- Projeto As Marcas
do tempo: A interculturalidade nas culturas da infncia, 2002, p. 4.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
11/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 11
INTRODUO
segurana6 para esta, para que o seu direito de brincar seja res-
guardado, em favor da grande potencialidade que o mesmo desperta
no crescimento infantil. Efetivamente, o brincar a linguagempela qual as crianas estabelecem a comunicao e alimentam seus
primeiros vnculos.
Tais questes exigem uma maior reexo acerca do brincar
na infncia contempornea, uma vez que o brincar de hoje est
condicionado pelas constantes transformaes e apelos do mundo
moderno, que vem impondo um consumo exagerado de brin-
quedos eletrnicos, acabando por favorecer o individualismo e o
sedentarismo. No que o brincar de hoje seja de toda a forma ouintegralmente mau, pois ele acaba por levar a criana a adquirir
algumas competncias. Mas, no que diz respeito criatividade,
motricidade e sociabilidade deixa muito a desejar. Em contra-
partida, o brincar de ontem um constante desao para a criana,
acabando por lhe permitir mltiplas competncias, gerando um rico
e integral aprendizado e, nesse contexto, quem faz o prprio corpo,
quempensa tambm o corpo. As produes fsicas ou intelectuais
so, portanto, produes corporais. Produes estas que se do nas
interaes do indivduo com o mundo7.
Seguindo esta linha de pensamento, nada poderia ser maiscompreensvel do que alcanar o corpo como uma forma cultural
de produzir a prpria cultura, apoiados por uma nova tendncia
universal de valores e normas emergentes, remetendo-nos a uma
ocidentalizao mundial. Na verdade, existe uma invaso do culto
do corpo e uma profuso das suas signicaes8.
Podar a criatividade da criana impedir que o seu prprio corpo
exera a sua naturalidade de ser, de estar e de sentir ou de alimentar
a sua credibilidade de existncia.
6 Neto, Carlos. Tempo e espao de jogo para a criana: Rotinas e mudanassociais. In: Carlos Neto (editor).Jogo & desenvolvimento da criana.Lisboa:Edies FMF, 1997, p. 21.
7 Freire, Joo. Educao de corpo inteiro: Teoria e prtica da ao fsica (5
ed.). Coleo: Pensamento e ao na sala de aula. So Paulo: Scipione,2009, p. 123.8 Gil apudLacerda, Teresa. Uma aproximao esttica ao corpo desportivo.
Revista Portuguesa de Cincias do Desporto, 2004, 7, (3), p. 394.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
12/72
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
13/72
13 16
A CONSTATAODE PARTIDAO movimento humano: entre omundo pensado e o mundo vivido
Podemos armar, com algum acerto, que existemdois mundosde vero movimento humano e o corpo (corporeidade):omundo da
exterioridade,materializado na cincia, na objetividade, no nmero
- representantes do mundo pensado;e o mundo dainterioridade,
substantivado/espiritualizado no ser (ontologia), na subjetividade,
na experincia, na fenomenologia - representantes do mundo vivido.
Far-se-, neste intrito, o elogio s dinmicas fenomenolgicas do
mundo vivido, seus caminhos estruturantes e cheios de signicado,
bem como a abertura brincadeira, ao jogo e cultura dentro do
sentido do mundo pensado.
O Imprio da Razo
A passagem do mito razo (na cultura ocidental) foi um marco
determinante para um outro entendimento da realidade. Com a
razo, deu-se incio a uma nova forma de entender o mundo. A razo
contribuiu para a elevao do mensurvel, do nmero, das leis, dageneralizao, do entendimento da causa - efeito, da previso, da
tcnica, da tecnologia e da cincia.
Esta realidade, coincidente com a razo cientca, foi, assim,
paulatinamente tomando conta do reino do conhecimento, desde
o helenismo, tendo como grande representante Aristteles (pai da
cincia, defensor da observao e da experimentao), depois
expandido com o Renascimento, com Ren Descartes, Francis
Bacon, Galileu Galilei ou Nicolau Coprnico, estruturando-sea valorizao da conscincia, da atividade crtica e criativa, da
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
14/72
O JOGO E A INFNCIA14
A CONSTATAO DE PARTIDA O mOvimentO humAnO: entre O mundO pensAdO e O mundO vividO
experincia objetiva como fonte de conhecimento. Este facto veio
fazer uma rutura com o pensamento medieval de cariz teocntrico,
sustentado pelos dogmas e pelas verdades de Deus que, at ento,se revestia (tambm) como uma sbia estratgia de organizao
social. Mais frente, outras manifestaes se seguiram, como,
por exemplo, a Revoluo Industrial, o Iluminismo, a Revoluo
Francesa (igualdade, liberdade, fraternidade) que vieram propor a
elevao de um novo Homem.
A razo ou a cincia surge, assim, como paradigma do conhe-
cimento que prometia maior felicidade para o indivduo e para a
comunidade (polis), tomando como referncia o sentido interpreta-tivo e de aconselhamento (interpretar a histria, as singularidades,
as circunstncias), dando solues para o bem-estar individual
e social. No entanto, este iderio (da cincia), e contrariamente
ao que fora prometido, chamou a si a presuno de julgamento e
instrumentalizao, transformando-se numa ideologia ao servio
da poltica, da economia, da tcnica. Este facto tem contribudo
para um aumento das desigualdades sociais, econmicas e para a
explorao do Homem.
O Retorno da Razo Fenomenologia
A razo e o nmero parecem atrapalhar a busca da verdade e o
bem dapolis. neste contexto que emergem alguns pensadores
(teoria crtica) como Friedrich Nietzsche,que vem criticar a forma
rgida e sumria proposta pelos racionalistas leis, lgica, nmero,
mensurvel, generalizvel. O autor vem, ao contrrio dos positi-vistas, fazer o elogio fenomenolgico, ou seja, ao ser ontolgico,
a cada um, experincia do homem, aos impulsos, s emoes,
s vontades, s paixes que acabam por ser as fontes genunas do
conhecimento e da ao1.
Dando continuidade a estas constataes, podemos dizer que,
na nossa realidade, existem dois mundos distintos:
1 Nietzsche, Friedrich.A gaia cincia. Coleo Pensadores, So Paulo: abrilCultural,1977, p. 21.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
15/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 15
A CONSTATAO DE PARTIDA O mOvimentO humAnO: entre O mundO pensAdO e O mundO vividO
a. O mundo descrito pela cincia, pela matemtica e pela tcnica
que entende a realidade como verdades objetivas - verdades
da cincia.b. O mundo vivido entendido como ser-no-mundo, mundo-ex-
perincia, sensvel e subjetivo. O mundo vivido o primeiro,
contemplativo, fenomenolgico, surgindo antes da cincia,
ainda que tenha sido aprisionado por esta. A cincia moderna
surgiu para simplicar a realidade atravs da descrio exata
e da diferenciao de coisas que percebemos no mundo.
A cincia mostra possibilidades de pensamento e ao, mas
o mundo vivido d-nos mais que possibilidades: dar-nosns mesmos. Que a tcnica e a cincia existam sim, mas que
no nos retirem de ns mesmos!
A fenomenologia emerge, assim, como mtodo atravs do qual os
sujeitos se descobrem como seres no mundo e de uma comunidade
de sujeitos abertos aos demais e envoltos nas dimenses histricas
e culturais. O entendimento do mundo e das pessoas valorizado
pelas experincias subjetivas, pr-tericas, pr-reexivas que,depois, daro razo e cincia. A cincia apenas consegue tratar os
fenmenos e indivduos como algo objetivo, mas parece esquecer
a origem, que fenomenolgica e subjetiva. A cincia ignora a
grandeza da subjetividade, dos eus individuais, da cultura. S
acredita no mensurvel na regra, na generalizao. No entanto,
existe um primeiro mundo - mundo da fenomenologia - como o
primeiro viver; e, depois, o mundo da cincia como o segundo de
viver. No entanto, a cincia faz-nos crer que as coisas idealizadas
so melhores do que as coisas percebidas por ns de forma direta
e sentida. Mas as coisas parecem no ser assim!
Ns geometrizamos um objeto, acontecimento, fatoque foi uma
vez percebida e sentida no mundo2.Essas coisas idealizadas (obje-
tos, acontecimentos, factos), como so perfeitas luz da razo
(nmero, geometria), tendem a ser iguais em todos os lugares em
que se encontram, no existindo considerao pelas diferenas.2 Sokolowki, Robert. Introduo fenomenologia.So Paulo: Edies Loiola,
2004, p. 161.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
16/72
O JOGO E A INFNCIA16
A CONSTATAO DE PARTIDA O mOvimentO humAnO: entre O mundO pensAdO e O mundO vividO
Desta forma, entram em contraste com inmeras variaes que
existem nas nossas percees da realidade com a realidade total
e radical.Neste envolvimento, a fenomenologia vai reivindicar que as
cincias matemticas, o nmero, a frmula no podem armar (s
por elas) a prpria existncia. A fenomenologia estuda as coisas
como elas so, tendo a sua prpria preciso.
No caso daquilo que anima esta reexo - o corpo/corporeidade/
movimento humano -, eles tm sido predominantemente analisa-
dos do ponto de vista matemtico, cientco, biolgico, mecnico.
No entanto, a fenomenologia diz que o corpo e o movimento somais do que essas dimenses. O corpo (corporeidade) e o movimento
so intencionais e relacionais, no esquecendo o social, o cultural,
o histrico naquilo de que de objetivo, subjetivo, intersubjetivo
e sensvel congregam. A fenomenologia pretende-nos, assim,
mostrar um mundo diferente ao j visto/racionalizado, onde a sua
essncia/realidade se mostra como origem que espera ser mostrada.
Este facto diferente do mostrado pela razo.
Criar nada mais do que deixar que a obra acontea, que ela
siga seu ritmo. O grande artista, o criador da vida, sabe seguir
o uxo, sabe deixar-se conduzir prelo mundo3.
Haddock Lobo
3 Haddock -Lobo, Rafael. Os lsofos e a arte.Rio de Janeiro: Rocco, 2010,p. 12.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
17/72
17 32
CAPTULO IA CULTURA E O CORPO
1 - A CULTURA E O CORPO
A excelncia pela experincia do corpo atesta-se no facto do
indivduo perceber (intuio) antes de pensar. Neste mesmo plano,a criana faz aparecer um mundo anterior ao pensado no seu modo
de ser. A criana questiona tudo o que percebe sua volta, para,
depois, adquirir conscincia do mundo. Assim, podemos perceber
a procura de consciencializao. O mundo vivido inesgotvel
para a nossa conscincia. Cada rgo do sentido (corpo) interroga
o objeto sua maneira maneiras autnticas. legtimo colocar
a questo: Como podemos perceber o mundo vivido tal como ele
nos aparece? A resposta parece simples: pela experincia do corpo,pela corporeidade.
O sentir, o pensar, a subjetividade, a intersubjetividade, a comu-
nicao, a linguagem esto ali no mundo vivido (pelo corpo). O
mundo vivido valoriza o contexto histrico-cultural-poltico de
cada um. Cada um tem seu mundo vivido (o j dado anterior) e deste
mundo todos tm o que dizer. O mundo da cincia, pelo contrrio,
diz por todos.
Neste contexto, Merleau-Ponty refere que toda a experincia
neste mundo vivido corporal. O autor recupera o corpo esquecido
pela losoa clssica e coloca nele o fundamento de todo o conhe-
cimento. O corpo aqui entendido no apenas como mecnico ou
biolgico, mas como corpo animado por relaes imaginrias com
o mundo1. O corpo a origem e a natureza de toda a cultura. ,
na verdade e em ltima instncia, a prpria cultura, por fornecer
ao homem a oportunidade de viver, de criar e desvendar o mundo.1 Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da perceo. (2 ed).So Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 71.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
18/72
O JOGO E A INFNCIA18
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
Ele (corpo) no algo passvel como pensamos, mas o que nos
possibilita que nos coloquemos em contato com os outros e com o
mundo. Referimo-nos, pois, perceo e conhecimento do mundopelo corpo.
O mesmo autor desenvolve tambm a ideia de campo fenome-
nal pela experincia direta do corpo no mundo vivido, aqum dos
conceitos eu, o outro e as coisas. A relao inseparvel homem/
mundo faz-se pelo corpo que mostra a conscincia das relaes com
o mundo. no campo fenomenal quese pode ascender transcen-
dncia materializada/espiritualizada na contemplao do mundo,
pelo corpo prprio, pelo corpo experincia.
Sobre cultura: algumas caractersticas
A cultura por vezes apresentada como uma selva conceptual2.
MichelWieviorka
A histria cultural um campo dinmico e questionvel de
investigaes, de estudos e teorias. Trilhar uma investigao nestecontexto comprometer-nos-ia a lidar com perguntas delicadas e a
participar de grande desao. A cultura, tema de grande controvrsia,
que permeia o mundo acadmico na atualidade encontra em Da
Dispora Identidades e Mediaes Culturais, de Stuart Hall, uma
signicativa contribuio para esse debate. Nesta obra, o autordeclara que estamos continuamente em processo de desenvol-
vimento cultural e que a cultura no uma questo de ontologia,
de ser, mas de se tornar3. Nessa mesma linha de entendimento, a
cultura reconhecida como complexa, como uma rea em incessante
expanso4. No campo antropolgico, cultura um conjunto de
normas que nos diz como a sociedade pode e deve ser classicada.
Como bem denomina a antropologia social, cultura a prpriarepresentao da vida social, ou seja, o modo como pessoas de um
2
Wieviorka, Michel.A diferena. Lisboa: Edies Fenda, 2002, p. 25.3 Hall, Stuart. Da dispora. Identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2006, p. 43.
4 Wieviorka, Michel, op. cit., p. 26.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
19/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 19
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
determinado grupo atua, pensa e modica o mundo e a si mesmo5.
Trata-se, pois, da legitimidade da prtica humana, imprescindvel
ao entendimento do fenmeno cultural.Deste modo, torna-se fundamental reconhecer a cultura como
um estado da prpria presena humana, na sua maior caracterstica,
j que atravs da cultura que o homem alcana a seu autntico
signicado6. Na viso antropolgica e social, a cultura subsiste
na prpria sociedade, oferecendo aos seus membros exemplos de
conduta.
imprescindvel compreendermos que atravs das diversidades
e diferenas que se constri o conceito mais consistente da palavracultura. Na contemporaneidade, deparamos com um conceito
aberto, mutvel, visto que a cultura, nos dias atuais, encarada
como elemento fundamental na discusso da vida social. A cultura
, sobretudo hoje, usada como recurso poltico. Partindo destadenio, defrontamos com a armao de Michel Wieviorka de
que a cincia e a prtica poltica resultam de um conhecimento
emprico sobre os atuantes e suas reivindicaes, que devem ser
levadas em considerao7.Quem elabora uma hiptese necessita alcanar os limites de sua
experincia e, em esforo de imaginao, de abstrao, comunicar-se
alm delas8. A procura de novas ferramentas tericas brota tambm
das provocaes com as quais os estudiosos deparam9.
, pois, evidente que habitamos numa sociedade complexa, plural
e desigual, facto este que acaba por originar diversas e singulares
culturas. Esta diversidade expressa-se de forma lmpida e marcante
nos dias que se seguem, desaguando numa percetvel desigualdade
social, que acaba por gerar conitos sociais entre as diferentesclasses, que lutam pela conquista dos seus direitos e pelo respeito
5 Matta, Roberto. Voc tem cultura?Rio de Janeiro: Jornal da Embratel, 1981,p. 4.
6 Fernandes, Antnio. Para uma sociologia da cultura. Coleo campo dascincias -4.Campos das letras. Editores, S.A.,1999, p.13.
7
Wieviorka, Michel, op. cit., p. 22.8 Hall, Stuart, 2006, p. 16.9 Mattelart, Armand & Neveu, rik. Introduo aos estudos culturais.So
Paulo: Parbola Editorial, 2004, p. 77.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
20/72
O JOGO E A INFNCIA20
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
diferena. a partir da divergncia cultural que uma pessoa age-
lada socialmente ou agela o outro10. O inerente percurso histrico
da multiplicidade cultural , em si mesmo, o grande problema parase discutir o papel a ser desempenhado pelas polticas pblicas no
combate s desigualdades fundamentadas em diferentes etnias,
gnero, geraes, entre outras11.
Cultura: uma forma dinmica dopensamento e do conhecimento
Conhecer no o ato atravs do qual um sujeito transformado
em objeto, recebe dcil e passivamente os contedos que outro
lhe dar ou lhe impe. O conhecimento pelo contrrio, exige uma
presena curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ao
transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante.
Implica inveno e reinveno12.
Paulo Freire
um equvoco ignorar o multiculturalismo e seus visveis por-menores. A questo multicultural merece ser analisada com muita
cautela. Tendo em vista que o termo ainda carece de conceitos mais
complexos que nos permitam reetir melhor sobre esta temtica, o
que nos resta fazer uso e continuar interrogando o prprio termo13.
importante assinalar que a cultura de uma sociedade ou de
um grupo essencialmente caracterstica, pois tem peculiaridades
prprias. o que se percebe em Stuart Hall, quando toma, por
exemplo, a temtica racismo e declara que o racismo especco em
cada sociedade, agurando-se de forma pessoal e singular, gerando
efeitos particulares o que acaba por distinguir uma sociedade da
outra. Ainda o mesmo autor acresce que os estudos culturais devem
ser reconhecidos e ensinados no plural e no no singular, tendo
10 Wieviorka, Michel, op. cit., p. 47.11
Gonalves, Luiz & Silva, Petronilha. O jogo das diferenas. O multicultura-lismo e seus contextos.Belo Horizonte: Editora Autntica, 1998, p. 32.12 Freire, Paulo. Extenso ou comunicao? (9 ed.). Paz e Terra, 1977, p. 12.13 Hall, Stuart, op. cit., p. 49.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
21/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 21
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
em vista a maneira individualizada e peculiar como cada sociedade
trata e encara seus assuntos14. , alis, o que bem exemplica Ana
Canen, quando declara que no adianta desenvolver estratgias paracombater o preconceito contra os ndios se no forem levados em
conta a complexidade cultural de cada comunidade indgena, com
suas mltiplas lnguas, seus costumes, suas crenas etc15.
A teoria cultural teve o seu surgimento a partir da Segunda Guerra
Mundial, onde a poltica da esquerda usufruiu de um curto apogeu,
antes de se sumir quase por completo16. As inovadas ideias culturais
voltavam-se para os direitos civis. Nasce a sociedade de consumo
onde os media, a cultura popular, as subculturas desencadeiam asforas sociais, atacando as hierarquias sociais e os hbitos tradi-
cionais de forma satrica. Da decorre uma crescente transforma-
o, onde um generalizado descontentamento se fez presente. No
entanto, perspetivava-se algo de positivo ou uma esperana. Havia,
de um modo geral, uma perceo de que o presente traria consigo
um novo futuro com innitas possibilidades. Apesar de cultura ter
tradicionalmente um sentido antagnico ao capitalismo, as inovadas
ideias culturais adquiriram fora num capitalismo onde a culturase tornava cada vez mais relevante.
, portanto, necessrio compreender que a falta de crena da pr-
pria sociedade, as dvidas, as diculdades nanceiras e o nascimento
do capitalismo foram fatores que desencadearam e exigiram um
novo olhar que acabou por incidir sobre as desigualdades culturais,
afetando sobretudo o seu processo de formao17. Deste modo,
podemos assegurarque as denominadas migraes livres e fora-
das18so processos que modicam de formao, diferenciando e
pluralizando as culturas e as identidades culturais de todo o planeta.
14 Hall, Stuart. Raa, cultura e comunicao: Olhando para trs e para frentedos estudos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 18.
15 Canen, Ana. O multiculturalismo e seus dilemas: Implicaes na educao.Rio de Janeiro: Comunicao e poltica, 2007, 25 (2), p. 95.
16
Eagleton, Terry. Depois da teoria: Um olhar sobre os estudos culturais e ops-modernismo.Rio de Janeiro:Editora Civilizao Brasileira.2005, p. 44.17 Wieviorka, Michel, op. cit., p. 49.18 Hall, Stuart, 2006, p. 43.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
22/72
O JOGO E A INFNCIA22
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
Os recentes surgimentos das identidades culturais caracteri-
zam-se por duas circunstncias fundamentais: a primeira remete
para a imagem de armaes culturalmente marcadas, mas poucodiferenciada socialmente. O reconhecimento uma das exigncias
destas identidades, embora os seus atores s sejam caracterizados
socialmente de forma vaga; a segunda marcada pelas suas exign-
cias culturais e reclamaes sociais feita por atores rejeitados, por
grupos em processo de inclinao social, ou por atores dominantes
que fazem uso da sua ascendncia sobre a sociedade19. Na atualidade,
vai vencendo a aspirao pelo novo, em rutura com a tradio e a
ordem20. Os mediavm marcando um relevante contributo nestaprocura pelo novo, atravs da percetvel e banal publicidade, dos
programas de entretenimento e do modo de vestir. A globalizao
cultural, como os demais processos globais, vai alm das fronteiras
nos seus efeitos. As suas presses lugar/tempo, acelerados pelas
modernas tecnologias, reduzem os vnculos entre a cultura e o
lugar21. Apesar de as culturas terem os seus locais, difcil apontar
as suas origens.
forte a ideia de que, no perodo industrial ingls, se desenvolveuuma discusso onde a cultura foi considerada como ferramenta
de reestruturao de uma sociedade invadida pelo mecanismo e
civilizao dos resultantes grupos sociais como alicerce de um
conhecimento global. Essa discusso deu origem a uma coerente
reexo terica, passando a ponderar-se a amplitude da cultura
no sentido antropolgico, deixando de ser uma considerao cen-
tralizada numa cultura-nao22para uma abordagem cultural dos
grupos sociais.Levados por essa compreenso, podemos dizer que
as concees de cultura diversicam, de acordo com o universo
sobre o qual incidem, necessitando contemplar as coisas no seu
prprio contexto histrico23.
19 Wieviorka, Michel, op. cit., p. 47.20 Fernandes, Antnio, op. cit., p. 19.21
Hall, Stuart, 2006, p. 36.22 Mattelart, Armand & Neveu, rik. Introduo aos estudos culturais. SoPaulo: Parbola Editorial, 2004, p. 13.
23 Eagleton, Terry, op. cit., p. 43.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
23/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 23
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
A educao multicultural um direito de todos. Um dos seus alvos
mais imprescindveis auxiliar todos os estudantes na obteno de
saberes, habilidades e posturas para uma ao efetiva e democrticadentro da sociedade plural na qual se encontram inseridos, de modo
a facilitar uma maior e melhor interao entre os diferentes grupos,
criando uma comunidade que trabalhe para um bem comum24. Neste
contexto,podemos realar queo multiculturalismo crtico focaliza
no s a diversidade cultural e identitria, mas tambm os processos
discursivos pelos quais as identidades so formadas25.
Visualizamos, nas novas prticas fsicas e desportivas, formas
dos jovens evidenciarem as suas culturas especcas e respetivasformas de sociabilidade. Neste sentido, podemos considerar que,
no modo de ser, pensar e fazer do Homem, se encontra a essncia
cultural de uma sociedade e da sociedade em geral, j que, com a
globalizao geral, e, em particular, com a globalizao cultural,
caminhamos para a padronizao e hegemonizao mundial. Neste
contexto, emerge a ideia de quea formao de uma sociedade de
leitores a preparao para o autoentendimento para a inquietao
diante da realidade, para despertar a importncia da interpretao
e da transmisso do olhar26. por meio desta viso ampla, aberta,
humana que comea o verdadeiro caminho, o caminho de aceitao e
de respeito pelas caractersticas prprias de cada grupo ou sociedade,
entendendo que a diferena acaba por ser uma forma de ganho.
Neste contexto, imprescindvel considerarmos que a cultura
local e global se entranham e, por isso, torna-se necessrio que
reconheamos a cultura do Outro to legtima quanto a nossa,
apesar das diferenas. Desta forma, aprendemos no s a respeitar
o Outro como como tambm a conviver em harmonia com o Outro
e com tudo o que nos envolve. nesta tica que antevemos, com
esperana, a construo de um mundo mais humanizado.
24 Bennett apud Gonalves, Luiz & Silva, Petronilha. O jogo das diferenas.O multiculturalismo e seus contextos.Belo Horizonte: Editora Autntica,
1998, p. 55.25 Canen, Ana, op. cit., p. 96.26 Paiva, Flvio. Eu era assim: Infncia, cultura e consumismo. So Paulo:
Cortez, 2009, p. 156.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
24/72
O JOGO E A INFNCIA24
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
Portanto, um equvoco desprezar a cultura passada no presente
e ignorar, no futuro, a sua forma dinmica e inacabada de ser.
Antropologia do corpo: uma cinciaao servio da cultura
A conscincia a funo biolgica crtica que nos permite conhe-
cer a tristeza ou alegria, sentir a dor ou o prazer, sentir a vergonha
ou o orgulho, chorar a morte ou o amor que se perdeu27.
Antnio Damsio
Nada seria mais compreensvel do que indagarmos sobre a nossa
prpria existncia, levantando questes que certamente nos leva-
riam a uma maior perceo de ns mesmos e do meio que nosenvolve. Deste modo, a partir da formulao de algumas questes,
suscitaremos, aqui, a discusso relacionada com aspetos atinentes
a ns mesmos, enquanto seres humanos, tais como: Sendo o corpo
reconhecido como fonte da nossa prpria existncia o que seria a
nossa vida sem o nosso corpo? Como que nos reconheceramos sem
o nosso corpo? Sendo o corpo entendido como fonte de experincias
expressivas e via de contacto com o meio,de que forma vivenciara-
mos tais experincias e o contacto sem o nosso corpo? O certo que o
corpo a prpria expresso do ser, a sede da nossa existncia28e
desta constatao decorre a ideia de que a mente teve primeiro de
se ocupar de um corpo, ou nunca teria existido29.
Seguindo essa linha de entendimento, legtimo considerar que
o ato percetivo uma experincia corporal que estabelece um forte
elo entre o Homem e o mundo. O Homem um ser incompleto e
consciente de sua incompletude30,vivendo em busca permanente.
27 Damsio, Antnio. O sentimento de si: O corpo, a emoo e a neurobiologiada conscincia.Frum Cincia, Publicaes Europa Amrica, 2000, p. 23.
28 Garcia, Rui. A Evoluo do homem e das mentalidades: Uma perspetivaatravs do corpo. RevistaMovimento,1997, IV, 6, p. 61.
29
Damsio, Antnio. O erro de Descartes: Emoo, razo e crebro humano.Frum da Cincia, Publicaes; Europa Amrica. (18 ed.), 1998, p. 18.30 Freire, Paulo. Uma educao para a liberdade. (2 ed.), Textos Marginais,
1973, p. 9.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
25/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 25
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
No existe Homem sem busca, nem busca sem mundo. Homem e
mundo se entrelaam, interagem mutuamente, formando um corpo
consciente. Importa, pois, reconhecer que a existncia do Homemtem tanto a ver com desejo e fantasia quanto com a realidade e a
razo31.
A partir do imprescindvel reconhecimento do corpo como ine-
rente existncia humana foram reclamadas vrias abordagens que
segmentaram o corpo a m de que pudesse ser melhor representado,
analisado, discutido e compreendido dentro de cada ambiente
social e cultural, perspetivando o desenvolvimento do humano e
da sua mentalidade atravs do prprio corpo32. Com a crescenteimportncia que o corpo vem assumindo, os estudos da imagem
corporal exigida pela sociedade aprofundam-se, a partir dos seus
mltiplos componentes e das implicaes tanto ao nvel siolgico e
psicolgico como social, com o intuito de compreender melhor esse
fenmeno to antigo e, ao mesmo tempo, to emergente nos dias
de hoje. Vai-se revelando, pois, a grande importncia da imagem
corporal, o seu efeito benco no aumento da autoestima e a grande
inuncia que a nossa prpria imagem exerce sobre aqueles quenos cercam e vice-versa.
notrio que, com o passar dos anos, o corpo vem sendo dife-
renciado e valorizado de acordo com as normas culturais vigentes,
reetindo a sociedade qual pertence. Por outras palavras, a legiti-
midade do corpo encontra-se efetivamente vergado a uma cultura33,
onde o novo encontro do Homem com o seu prprio corpo assume
uma das caractersticas mais relevantes da contemporaneidade.
Deste modo, podemos assumir o corpo como resumo da cultura,
pois atesta elementos singulares da cultura na qual se encontra
inserido. Atravs do corpo, o homem assimila e apropria-se de
valores, regras e prticas sociais, num processo de inCORPOrao34.
31 Eagleton, Terry, op. cit., p. 17.32
Garcia, Rui, op. cit., p. 62.33 Ibidem, p. 61.34 Daolio, Jocimar. O signicado do corpo na cultura. Revista Movimento,1995,
2 (2), p. 25.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
26/72
O JOGO E A INFNCIA26
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
Indiscutivelmente, o Homem encontra-se enraizado na cultura,
j que o que acaba por diferenci-lo das demais espcies a sua
competncia de produzir a prpria cultura. O facto que a sobre-vivncia da prpria espcie foi a cultura, o que nos permite armar
que a natureza do homem ser um ser cultural35.
Sabemos que a imagem corporal um processo contnuo do
ser desde o nascimento at a morte, sujeito s acomodaes emodicaes do mundo, de acordo com a poca vivenciada. Na
sociedade atual, o cultivo do corpo torna-se o espelho da prpria
identidade, sendo visveis as presses culturais e sociais exercidas
sobre o Homem, presses estas que acabam por lev-lo em buscado corpo perfeito, a m de que possa sentir-se bem e inserido
dentro dos padres estabelecidos pela prpria sociedade - moda.
No entanto, muitas vezes, a busca incessante deste corpo ideal
pode traduzir-se numa grande insatisfao corporal, acarretando
baixa autoestima e adoo de prticas compulsivas e, at mesmo,
doentias, chegando, por vezes, a autoagelao: que se oferece
como provao para dignicar e elevar o homem36.Neste sentido,
sublinhe-se quea avaliao que cada um faz do seu prprio corpo
determina sentimentos e atitudes37.
De uma maneira muito clara, a sociedade contempornea consu-
mista instiga o corpo a seguir regras e padres determinados por
ela, com o intuito de escravizar as pessoas a possurem um corpo ideal,
por ela padronizado, com a nalidade de torn-las compulsivas ao
consumo. Na incessante busca de modicar ou remodelar o seu corpo
conforme as exigncias estabelecidas por essa sociedade, o Homem
passa a rejeitar a sua prpria imagem e procura, a todo custo, ser o
espelho el desses padres, tornando-se obcecado. E mesmo com essa
obsesso, muitas vezes, o indivduo no consegue alcanar o objetivo
35 Geertz apud Daolio, Jocimar, 1995,p. 25.36 Ribeiro, Maria. As marcas corporais: O corpo como depositrio das fantasias
inconscientes. Reverso, Belo Horizonte, 2010, 32, (60), p. 63.37 Vieira, Ricardo. Resumo da comunicao. Sade e Integrao Social. Corpos,diferenas, incluses e excluses. Leiria: 1. Colquio sobre Decincia Visual,2005, p. 1.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
27/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 27
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
pretendido, o que acaba por gerar uma insatisfao e frustrao total,
levando-o a comportamentos doentios38.
consensual que vivemos um momento de uma profunda trans-formao cultural do corpo, onde a aparncia jovem e saudvel se
encontra em alta. Com efeito, assistimos a uma extrema valorizao
esttica do ser e cada sociedade constri a sua imagem corporal, ou
seja, o seu modo particular de ver e sentir o corpo, comprovando-se,
assim, que a identidade do ser humano inuenciada pela aquisi-
o da imagem corporal. As imagens esto presentes no nosso dia
a dia, interferem no processo de signicaes, na construo do
sujeito, moldando a sua identidade39. Na realidade, o corpo umlugar onde possvel experimentar novas possibilidades de encontro
consigo mesmo40.
A cultura corporal do Homem d-se a partir das aes corporais
produzidas pelo mesmo no decurso da sua histria, atravs das suas
representaes simblicas, sofrendo alteraes ao longo de sua tra-
jetria. A mudana na imagem do corporal parte de uma avaliao da
nova situao comparada com as situaes vividas, vericadas pela
prpria conscincia41. De facto,o conceito de natureza humana vem se
alterando e se aproximando de um modelo em que a tcnica se tornou
o seu eixo norteador42.
Cada vez mais, os estudos reconhecem queo corpo outrora escon-
dido, feio e pecaminoso, torna-se nos dias de hoje exposto, belo e apra-
zvel, continuando contudo a obedecer a normas e regras sociais que
valorizam a forma, a beleza, a juventude e a competitividade ()43.
Ento, o Homem submete-se ao desejo do outro e, para isso, humilha
38 Russo, Renata. Imagem corporal: Construo atravs da cultura do belo.So Paulo: Movimento & Perceo,2005, (6), p. 81.
39 Lima, Joana. Corpo, identidade e linguagem nas cavernas de MoonPalace. In: Azevedo, Ana; Pimenta, Jos & Sarmento, Joo (orgs.). Geo-graas do corpo: Ensaios de geograa cultural. Figueirinhas, 2009, p. 159.
40 Nolasco, Scrates. Body Modication: O corpo e a experincia de si nocontemporneo.Revista Mal-Estar Subj.[online] 2006, 6 (2), p. 375.
41
Mataruna, Leonardo. Imagem Corporal: Noes e denies. Buenos Aires:Revista Digital, 2004, p. 1.42 Nolasco, Scrates, op. cit., p. 371.43 Vieira, Ricardo, op. cit., p. 6.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
28/72
O JOGO E A INFNCIA28
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
o seu corpo com as mais variadas prticas de agressividade, com a
nalidade de xar-se como sujeito de uma sociedade padronizada,
acabando por se perder a/de si mesmo44.Reconhecemos que um ser humano completo uma unidade bio
-psico-social, qual foi, recentemente relacionada, a dimenso
ecolgica. Como bem atesta Jocimar Daolio,o corpo humano fruto da
incorporao natureza/cultura, pois reconhecer o corpo simplesmente
biolgico consider-lo abertamente como natural. Como conceber
um corpo natural no atingido pela cultura?45Encontramos resposta
nas palavras de Santos no se pode esquecer da natureza necessa-
riamente social do uso do corpo46. Assim sendo, apenas praticvelpensar os novos usos corporais, j que a cultura suscetvel de novas
ideias e reprodues.
Sendo o ser humano por natureza corporal e sendo o corpo o ins-
trumento pelo qual ele assimila e interage com aquilo que o rodeia,
nada poderia ser mais compreensvel do que alcanar o corpo como
uma forma cultural de produzir a prpria cultura.
O corpo: locusprimeiro da comunicao humana.
A alma respira atravs do corpo, e o sofrimento, quer comece no
corpo ou numa imagem mental, acontece na carne47.
Antnio Damsio
As investigaes recentes lanam para a imponncia do corpo o seu
grande e inquestionvel potencial de comunicao. Encontramos na
obraO Corpo Fala,de Pierre Weil & Roland Tompakow, argumentos
indiscutveis sobre a grandeza da expresso corporal na comunicao
do Homem com ele mesmo e com o outro. Nesta obra, os autores fazem
uso de uma tradio antiga onde o corpo dividido em partes (boi,
leo e guia), a saber: o Boi (Abdmen) caracteriza a vida Intuitiva e
Vegetativa; o Leo (Trax) designa a parte Emocional e a guia (Cabea)
44
Ribeiro, Maria, op. cit., p. 61.45 Daolio, Jocimar, op. cit., p. 26.46 Santos apud Daolio, Jocimar, op. cit., p. 26.47 Damsio, Antnio, 1998, p. 19.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
29/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 29
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
desempenha a Vida Mental (Intelectual e Espiritual). O conjunto
das trs espcies representaria o Homem: conscincia, domnio dos
trs inconscientes anteriores, uma vez que a antiga tradio no sedesvincula da psicologia atual e este esquema facilmente se aplicaria
compreenso corporal, o que resultaria num maior entendimento por
parte dos leitores, ou melhor, numa maior perceo de si mesmo48.
No corpo, a linguagem atinge o seu pice. Dentro desta perceo,
podemos armar que o corpo fonte de expresso e de comunicao
uma vez que, transmite sinais que podem aproximar ou afastar os
outros49.Na verdade, expressar-se, expressando o mundo, implica o
comunicar-se50.O certo que o corpo exterioriza at aquilo que desejamos ocultar
o que torna impossvel no conceb-lo como a mxima expresso
humana, como to bemteorizam Pierre Weil & Roland Tompakow:
o corpo fala o que a mente contm51.Nesta mesma linha de enten-
dimento, reiteramos quea essncia de um sentimento (o processo de
viver uma emoo) no uma qualidade mental ilusria associada a
um objeto mas sim a perceo direta de uma paisagem especca: a
paisagem do corpo52.
A autenticidade do corpo como fonte de comunicao to grande,
to ntima, que o corpo consegue falar atravs do seu silncio, facto
que nos permite armar que o silncio uma das provas irrefutveis
de que no existe a no comunicao, poisa linguagem muda das
atitudes corporais prossegue, constantemente, com toda eloquncia da
prpria Vida que fala das suas relaes53.
Ao vivenciar lembranas, emoes e sentimentos, o corpo age e
reage de acordo com as sensaes, exprimindo, atravs da incorpo-
rao desse sentir, as mais variadas expresses que podem repre-
sentar momentos felizes ou infelizes, ou, ainda, sofrer alteraes
48 Weil, Pierre & Tompakow, Roland. O corpo fala.Petrpolis: Editora Vozes.(20 ed.), 1980, p. 27.
49 Vieira, Ricardo, op. cit., p. 8.50
Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. (2 ed.), Porto: Afrontamento, 1975, p. 22.51 Weil, Pierre & Tompakow, Roland, op. cit., p. 72.52 Damsio, Antnio, 1998, p. 16.53 Weil, Pierre & Tompakow, Roland, op. cit., p. 19.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
30/72
O JOGO E A INFNCIA30
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
instantneas mediante o estado de esprito, j que o corpo acaba
por ser sugestionado por ou suscetvel ao ambiente, ao momento
que vivencia. Na realidade, o certo queo corpo discursa sempre noIndicativo Presente,no aqui e agora54, e o que pronuncia pode resistir
apenas fraes de segundos. , assim possvel concluirmos que o corpo
exprime as mais variadas e fascinantes noes do comportamento,
conforme os estmulos.
imprescindvel, portanto, apreendermos que um simples olhar,
um acanhado gesto, um esboar de um sorriso, o rolar de uma lgrima
ou um pequeno movimento dizem mais do que milhes de palavras
poderiam dizer, porque exprimem o pensar da alma, o sentir, na suamais pura essncia. Nas palavras de PierreWeil & Roland Tompakow,
esta linguagem silenciosa do corpo que muitas vezes contradiz a palavra
falada mas diz a verdade nua e crua , (), completamente inconsciente55.
Aindaos mesmos autoresreferem que o homem um ser alta-
mente perceptivo e, certamente, percebe os seus semelhantes. Como no
haveria de perceber-lhes a diferena entre a atitude favorvel, neutra
ou francamente desfavorvel ao seu Eu? E de que maneira, seno pela
percepoda linguagem do corpo antes que inventassem as gramticas
e os dicionrios?56.
Neste sentido, podemos atestar que o corpo expressa o Eu, profe-
rindo as palavras que as cordas vocais teimam em no emitir, j que
a fora da alma contraria esse desejo, na medida em que a urgncia
de um corpo tem nsia para falar, para quebrar o silncio, fazendo
valer a aspirao do inconsciente que emerge das profundezas, das
entranhas, da alma. nessa circunstncia que o Eu surge e pode ser
diferente do meu ser57.
Torna-se, pois, fundamental ter uma viso mais alargada sobre a
comunicao corporal, porque a mente encontra-se incorporada, em
toda a acepoda palavra, e no apenas cerebralizada58. Em resumo,
54 Ibidem, p. 67.55
Ibidem, p. 141.56 Ibidem, p. 39.57 Ribeiro, Maria, op. cit., p. 62.58 Damsio, Antnio, 1998, p. 133.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
31/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 31
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
o corpo s fala a verdade59, talvez porque a sua urgncia ultrapasse
os limites da coerncia.
Indiscutivelmente, o corpo parte indissocivel de ns, acom-panha-nos desde o nascimento at a morte, sofrendo alteraes ao
longo de nossas vidas, e, nesse percurso, defrontamo-nos, por vezes,
com a satisfao e, mais ainda, com a insatisfao, j que somos
serem incompletos, em constante busca do nosso Eu. E, ainda, numa
anlise mais profunda, na busca do Eu exigido e padronizado pela
sociedade. Neste sentido, possvel armar que o corpo que temos
e somos resulta da fuso do que inato com o que construdo, do que
nos dado com o que alteramos, na procura de uma identidade una,
singular, prpria...60.
Em convergncia com esse pensamento, visvel quea experincia
do viver determina dois tipos de processos segundo os quais o Eu se
reconhece. Um deles pode ser identicado como conscincia primria e
um outro chamado de conscincia elaborada61.
Convocando a reexo deAntnio Damsio,o corpo contribui
para o crebro com mais do que a manuteno da vida e com mais
do que efeitos modulatrios. Contribui com um contedo essencial
para o funcionamento da mente normal62. Aqui, podemos conceber
a importncia que o corpo vem assumindo nos dias que decorrem,
pois, cada vez mais, as pesquisas aprofundam-se na busca de mais
compreenso, da complexidade dessa mquina biolgica e dos
seus surpreendentes mistrios. No entanto, a verdadeira essncia
dessa compreenso parece singular em cada ser. Ou seja, s atravs
do mergulho interior, o ser humano capazde se conhecer melhor
e, assim, consideramos que () perceber a linguagem do corpo mais
fcil do que escrever sobre ela!63.
Estamos diante de um corpo que vive vergado perante um universo
de novas verdades, onde o Eu entra em crise face a cada nova realidade
exposta pela sociedade, qual pertence, e, na inteno de se sentir
59 Weil, Pierre & Roland Tompakow, Roland, op. cit., p. 59.60
Vieira, Ricardo, op. cit., p. 5.61 Nolasco, Scrates, op. cit., p. 375.62 Damsio, Antnio, 1998, p. 234.63 Weil Pierre & Tompakow, Roland, op. cit., p. 42.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
32/72
O JOGO E A INFNCIA32
CAPTULO I A CuLturA e O COrpO
parte-integrante desse mundo, ele submete-se ao desejo dos outros
e no ousa, nem timidamente, expor a sua verdade. Deste modo, o
corpo acaba por no comunicar a sua mais latente verdade, cedendo vontade de uma maioria, pois teme ser excludo. No h como negar
que estamos diante de um corpo tmido emissor que tem de dar vazo
a um corpo recetor, exigido por uma classe dominante, com o ntido
propsito de fazer parte, de se sentir inteirado.
Vivemos innitas formas de comunicao e, ao analisarmos a
comunicao noeixo social, entendemos que o homem tem necessi-
dade do Outro para se situar dentro de um espao, de um grupo ou de
uma sociedade. Sabemos tambm que essa via de comunicao d-seatravs da interao do Homem com o Outro, tendo em vista quetodo
comportamento comunicao e, portanto, inuencia e inuenciado
por outros64.No entanto, percetvel que o ser humano no pode ir
alm dos limites estabelecidos pela sua prpria mente.
Dentro de uma lmpida e profunda viso, proferimos que o expressar
corporal muito ntimo e, por isso, no aceita condicionamentos
exteriores. Como exemplo disso, temos a criana que, na sua pureza
de ser, exala esse expressar na ntegra, pois consegue expor a alma,falando o seu mais autntico sentir, tal como certica Sigmund Freud
o Eu , primeiro e acima de tudo, um eu corporal65. Assim, impossvel
no relacionar intimamente o corpo como o primrdio da comunicao
humana. Portanto, torna-se fundamental que a existncia do homem
seja reconhecida numa relao ampla, complexa e ntima com a vida66.
Ainda nesse prisma, acrescente-se que preciso ver a Vida na sua
linguagem natural, que nasce da prpria percepodireta, para, s assim,
sentir-lhe a riqueza e harmonia. A linguagem do seu prprio corpo!67.
64 Watzlawick, Paul; Beavin, Janet & Jackson, Don. Pragmtica da comunicaohumana: Um estudo dos padres, patologias e paradoxos da interao. SoPaulo:Editora Cultrix,2007, p. 122.
65
Freud apud Sternick, Mara. A imagem do corpo em Lacan. Belo horizonte:Revista Reverso, 2010, vol.32 (59), p. 33.66 Watzlawick, Paul; Beavin, Janet & Jackson, Don, op. cit., p. 235.67 Weil Pierre & Tompakow, Roland, op. cit., p. 77.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
33/72
33 64
CAPTULO IIO JOGO, AS BRINCADEIRASE A CULTURA
2 - O JOGO, AS BRINCADEIRAS E A CULTURA
Como temos vindo a referir, no quadro da cincia positiva, o
corpo/corporeidade e o movimento humano so associados ao
mundo pensado, privilegiando o previsvel, a tcnica a ordemexterna, baseadas em leis e inteno de desempenho. Essa cons-
truo da cincia em modelos quantitativos traz-nos uma viso
parcializada do entendimento do movimento humano.
Pegando nestas constataes e convocando, agora, a escola
e a educao fsica, vericamos que estas so tradicionalmenteestruturadas em funo do olhar, cognitivo-intelectual, afetivo
-emocional e motor. No entanto, o mundo cognitivo-intelectual
o mais trabalhado, pois corresponde ao mundo da razo e da
cincia. A escola um locusde legitimao da cincia e da razo,
xando o padro. As questes relativas ao afeto, emoo, ao
ldico, ao prazer, ao corpo que sente, vive e se manifesta (dados
pela educao fsica fenomenolgica e pelas artes) no se vericam,
ou se se vericam esto reduzidos a um mnimo. Assistimos a umaespcie de instrumentalizao dos corpos, o que, na realidade,
obsta expresso do intrnseco, daquilo que a criana/jovem tem
dentro de si, parecendo esquecer-se que todo o espao e o tempo
de criao so do campo da interioridade.
Slvio Santinquestiona essa viso moderna do movimento
humano, ao elogiar o sujeito/objeto, a matemtica, as frmulas,
(controlo social) perguntando como se pode pesquisar a vida ou
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
34/72
O JOGO E A INFNCIA34
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
a fenomenologia do vivo? Como decifrar a sua mensagem? Como
decifrar a linguagem da corporeidade?1
Neste contexto, eleva a defesa do conhecimento feito direta-mente, sem leis, medies, onde brincar, jogar e movimentar-se
so expresses de liberdade, criatividade, imaginao, originalidade,
esttica e arte. Em poucas palavras, dir-se-ia ser este o mundo
vivido pela expresso fenomenolgica. O fenmeno aquilo que
se oferece observao e prtica pura (ver, alcanar), sem
desvios, preconceitos, crenas. Em contrapartida, sublinhe-se, o
positivismo um sistema de crenas.
O movimento humano constitui-se, assim, como dilogo doHomem com o mundo expresso na intencionalidade (que diferente
de inteno) e na totalidade. Importa, pois, descrever a essncia,
atravs da reduo fenomenolgica dadora de signicados mate-
rializados e espiritualizados na inteno, essncia, subjetividade,
intersubjetividade, experincia e situao vivida.
Este facto, como temos vindo a referir, contrrio ao movimento
visto do ponto de vista cientco (tcnico), das regras, normas,
padres, onde a experincia vivida, sensvel, ldica ou do jogoparece ter uma importncia dispensvel. Esta a maior crtica
cincia positiva que oferece como base de investigao a anlise
emprico-analtica e que tende a reduzir a realidade quanticao,
percecionando o corpo que se desloca no tempo e no espao, a partir
de uma viso, anlise compreenso a partir do nmero e da frmula.
Neste contexto, Merleau-Ponty formula tambm uma crtica
cincia, ao dizer que todo o universo da cincia construdo sobre o
mundo vivido, mundo onde fazemos as nossas relaes e tomadas
de decises mais signicativas pelo sentir e perceber o mundono estdio originrio, mundo este que deve ser a nossa primeira
experincia e a cincia a segunda2.
O mesmo autor procura encontrar uma alternativa ao mundo
pensado, apresentando o mundo da experincia primeira que
1
Santin, Slvio. Educao Fsica: Uma abordagem losca da contempora-neidade.Iju: Uniju, 1992, p. 47.2 Merleau-Ponty, Maurice. Psicologia e pedagogia da Criana. So Paulo:
Martins Fontes, 2006, p. 22.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
35/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 35
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
subjetiva, transcendental. Faz, ento, o elogio ao retornar, reen-
contrar e restituir a experincia pr-consciente.
neste contexto que emerge a defesa do brincar, do jogo e domovimentar-se, tomando como referncia a ideia de parntesis
(mundo da vida e do vivido), onde se encontra a imaginao, a
criatividade, a sensibilidade, a autenticidade, a subjetividade, a
intencionalidade, o sentir, a esttica primeira. Este contexto
bem diferente do mundo padronizado da razo, onde as crianas
recapitulam aquilo que os adultos (escola) assim entendem.
O mundo vivido constitusse, assim, como solo primordial das
experincias humanas (experincias originais). Neste patamar,Edmund Hurssel refere que o mundo da experincia humana con-
siderado antes de qualquer tematizao conceptual. O mundo-da-
vida, o mundo da experincia originria, precede e fundamento
de todo o pensamento cientco e losco3.
O mundo da cincia anula o mundo da vida. Ainda no sabem
que o mundo da vida anterior ao da cincia. Este o nico (puro)
que existia e foi dominado pela cincia, fechando-se em si mesmo.
O mundo da vida o mundo das perfeies e imperfeies mani-festado em emoes e afetos. O mundo da cincia o mundo das
perfeies. A cincia, como reitera, Marleau-Ponty no gosta
das imperfeies4.
neste mundo da vida que experienciamos a felicidade, a alegria,
o brincar, o tempo e o espao.
Ainda neste domnio, refere-se ao retorno ao sensvel, con-
trariando a viso losca que sempre duvidou dos sentidos,
identicando-os como fonte de erros e de iluso. Este retorno
ao sensvel a forma primeira de existir no mundo e a que nos
percebemos atravs do nosso corpo. Sensibilidade e intuio esto
antes da reexo.
O corpo tem o poder intrnseco de dar existncia humana,expressa na sensibilidade, nas emoes, nos sentimentos, no
subjetivo que vo traduzir a intencionalidade que se encontra na
3 Husserl, Edmund.A Ideia de fenomenologia.So Paulo: Textos Filoscos,Edies 70, 1986, p. 17.
4 Merleau-Ponty, Maurice, 1999, p. 44.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
36/72
O JOGO E A INFNCIA36
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
interioridade. Este facto contrrio a uma exterioridade onde o
corpo se apresenta como mecnico, objetivo e homogneo.
A criana est (vive), assim, entre uma interioridade e umaexterioridade. No entanto, a escola/educao (fsica) parece sdar, estimular ou propor exterioridade. O prprio brincar, que a
excelncia onde se mostra intencionalidade, , agora, substitudo
por ordens vindas de fora exterioridade, baseadas em teorias
mecanicistas, idealistas, maturacionistas, onde tudo tem um tempo
e um espao de acontecimento (fases, etapas, progresses, erros a
evitar, componentes crticas a concretizar coisas da cincia). So
esquecidos os intervalos subjetivos e intersubjetivos, a perceodo mundo vivido, a relaes sujeito objeto, que constituem um
mesmo, sem olvidar a dimenso ecolgica a histria, a cultura,
a identidade
O movimento humano o Homem todo que age e se movimenta
com uma intencionalidade e a sua intencionalidade s dele e
apenas aele diz respeito. As crianas so autores e atores da sua
ao pela inveno, imaginao, criatividade, signicao, intuio,
fruio, smbolo, experincia, pr-reexo. aqui que se encontrao segredo de estimular e educar pessoas crticas e emancipadoras5.
Depois, depois sim, a dimenso ideolgica, poltica e cientca
podero entrar em cena e, com ela, a viso do movimento como
coordenao motora, atitudes mecnicas, deslocamentos fsicos,
articulaes motoras, ngulos biomecnicos-processos siolgicos
ou energticos, etc.
No devemos esquecer o facto de que pela passagem por aquele
primeiro tempo e espao que mais tarde se iro estruturar os gestos
tcnicos e tticos, a compreenso competitiva expressa no esforo,
no trabalho, na armao e na superao.
A criana (e no por aquilo que vai serainda no) um
sobressalto!
5 Kunz, Edmund. Movimentizao.Florianpolis: I Congresso de EducaoFsica da APEF, 1988, p. 13.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
37/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 37
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
A riqueza e a flexibilidade das palavrasjogo e brincadeira: contextos e usos
Saber por que usamos o mesmo termo em situaes diferentes
explorar a linguagem em seu funcionamento e, ao mesmo tempo,
reunir indcios que nos permitiro descobrir as representaes
associadas palavra jogo6.
Gilles Brougre
O que o jogo? Segundo Gilles Brougre, a necessidade de escla-
recer o conceito no anterior ao uso da palavra; seria at mesmoum transtorno passar sempre por isso antes de a pronunciar; a
compreenso entre dois interlocutores pode seguir caminhos
diferentes. O entendimento de cada um depende da diversidade
de usos e da sua perceo7.
Na sua marcante obra Homo Ludens, o historiador/antroplogo
Johan Huizinga dene o fenmeno jogo como sendo uma ao que
se desdobra dentro de determinados limites de durao e de lugar,
de acordo com as normas estabelecidas e adotadas, situando-se forado mundo da necessidade. Ou seja, o jogo, num primeiro momento,
assume um carter ldico (descontrado), embora, muitas vezes,
durante o seu percurso, se torne uma atividade sria e competitiva.
impretervel reconhecermos que a denio de jogo constitui
uma tarefa delicada, devido ao acervo de teorias esclarecedoras
que lhe vem sendo atribuda, e tendo em vista que esse fenmeno
resiste a compreenso casual8.
Jacques Henriot arma que o pensamento sobre o jogo desen-
volve antinomias que se traduzem, entre outros, pelo fato de que
mais fcil dizer o que no jogo do que o que ele 9. Seguindo esta
mesma linha de pensamento, deparamos com a explicao de que
6 Brougre, Gilles. Brinquedo e companhia,So Paulo: Cortez, 2004, p. 14.7
Brougre, Gilles.Jogo e educao.Porto Alegre: Artes Mdicas, 1998, p. 23.8 Piaget, Jean.A formao do smbolo: Imitao, jogo e sonho, imagem erepresentao. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971, p. 188.
9 Jacques Henriot apud Brougre , Gilles, op.cit. 1998, p. 26.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
38/72
O JOGO E A INFNCIA38
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
o contrrio do fenmeno jogo a classe negativa, o no-jogo10.
Tais armaes sobre o fenmeno jogo acabam por desaguar em
uma carga excessiva e mltipla de signicados, dependendo do seuuso e do seu idioma, arma Huizinga, ao percorrer pacientemente
innitas lnguas, em busca de melhor apuraruma denio deste
fenmeno.
indispensvel, portanto, que haja uma reexo sobre os jogos
de um modo geral para considerar o jogo da linguagem, j que, para
analisar um termo, necessrio perceber o seu emprego, no seio
de diversos jogos, e se torna necessrio que a linguagem se revele
em si mesma, tomando as formas de existncia em que ela temsentido11. As palavras so atos12.
Gilles Brougre considera o jogo, nalmente, nada mais doque a denominao usual de emergncia visvel de um trao psico-
lgico profundo, ou seja, em termos piagetianos, a predominncia
da assimilao sobre a acomodao13. No h como edicar um
conceito de jogo, e sim vericar o que se chama de jogo, o fenmeno
psquico fundamental ao desenvolvimento da criana que permitir
qualicar, caracterizar os diversos tipos de jogos.O jogo pode assumir inmeros signicados/conceitos. Depen-
dendo tudo da sua utilizao e da razo dessa utilizao, no pode-
mos agir como se dispusssemos de um termo claro e transparente,
de um conceito construdo14. Estamos diante de uma noo aberta,
polissmica e, muitas vezes, indenida. O uso habitual do termo ou
da palavra jogo dever ser questionado, estudado e compreendido,
levando em conta o seu prprio exerccio, ou seja, para conceituar
o jogo preciso delimit-lo, j que o mesmo pode adotar sentidos
mltiplos, dependendo dos seus empregos. Por isso, preciso,
antes de tudo, estar atento ao vocabulrio e sua lgica.
10 Huizinga, Johan, op. cit., p. 8.11 Kishimoto, Tizuko. Froebel e a conceo de jogo infantil. In: Kishimoto,
Tizuko (org.). O brincar e suas teorias.So Paulo: Pioneira, 1998, p. 21.12 Witgenstein apud Kishimoto, 1998, p. 15.13 Brougre, Gilles, 1998,p. 25.14 Ibidem, p.14.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
39/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 39
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
preciso considerar a arbitrariedade da lngua para que ela no
nos impea de enxergar as suas diferenas, uma vez que atividades
distintas podem ser designadas atravs do mesmo termo. Exis-tem algumas contradies acerca do jogo que no se atribuem ao
distrbio dos discursos evocados, mas ao uso do termo jogo sem o
estudo de seu funcionamento na linguagem15.
importante, portanto, percebermos que o emprego de um termo
no uma ao solitria, visto que requer um grupo social para o
qual este vocbulo faa sentido, pois a palavra empregada deve ser
minimamente compreendida por parte de cada um. O facto de haver
jogo em alguma atividade no uma construo objetiva sobre oreal, mas o lanamento de uma hiptese, a utilizao experincia
de um grupo fornecido pela sociedade, transmitida pela lngua e
instrumentos culturais16. Nesta lgica, necessrio interpretar o
jogo de acordo com sua funo cultural17.
O vocbulo jogo vem sendo frequentemente mencionado e assu-
mindo mltiplas acees, encontrando-se, cada vez mais, presente
em nossas vidas. No mundo das telecomunicaes ou dos media,
por exemplo, assistimos a uma contnua e banal comparao dassituaes polticas a um jogo. Esta comparao atesta a diversidade
das utilizaes lingusticas que assume a palavra jogo. Aqui, vemos
claramente que a ideia de jogo no se encontra associada ao prazer,
diverso e distrao. A exemplo disso, temos os jogos desociedade que representam constantemente a gurao de um
aspeto da vida da sociedade, quando no esto relacionados a um
mundo ilusrio18.
Em alguns grupos de jogos, as analogias surgem e desaparecem,
vericando-se, assim, uma rede complexa de anidades que se
associam e se envolvem umas com as outras. imprescindvel
descrever o uso do jogo para o compreender atualmente, recusando
constituir antecipadamente uma denio do mesmo. A denio
do jogo uma tarefa complicada, pois, ao ser pronunciada, ela
15
Kishimoto, Tizuko, 1998, p. 17.16 Ibidem, p. 18.17 Huizinga, Johan, op. cit., p. 127.18 Brougre, Gille. Brinquedo e cultura.So Paulo: Cortez, 1995, p. 12.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
40/72
O JOGO E A INFNCIA40
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
poder atender a vrias nomeaes, mas, apesar de receber a mesma
designao, tem as suas especicidades. Os innitos fenmenos
considerados como jogo atestam a complexidade da tarefa dedeni-lo19. Esta complexidade toma uma amplitude cada vez maior,
quando alguns materiais ldicos so usualmente denominados de
jogo, outros, brinquedos.
Na psicologia, a ausncia do conceito jogo destacada por alguns
psiclogos mais crticos e radicais, j que a psicologia no estuda o
jogo em si, mas o que realizado pela criana nos comportamentos
ldicos. O jogo apenas testemunha de um procedimento e do seu
progresso. No parecer de Gilles Brougre, ela no poder estabelecerum ponto de partida rigoroso, dando-nos uma noo anada,
cientca, pois faz simplesmente uso do termo, remetendo-o ao
funcionamento usual lingustico20. Na verdade,s possvel chegar
a uma compreenso plena do fenmeno jogo ou de um simples
brinquedo, a partir de suas conexes ulteriores e a situao analtica
geral da qual se situam21.
O uso metafrico do jogo tem sido apropriado por vrias ativi-
dades. Isso possibilita-nos explicar como comportamentos todistintos podem assumir o nome de jogo e esto ligados ao facto
de que este contraria as atividades diretas e claramente teis e
fecundas, ou encaradas como tal para a sociedade. Atualmente,
testemunhamos, nos meios tecnolgicos, um crescimento pro-
gressivo e signicativo deste gnero de formulao ou discurso.
O certo que no h tarefas, por mais duras que sejam, que no
possam servir de razo para o jogo. A denio de jogo deve ser a
mesma que Immanuel Kant deu a arte: uma nalidade sem m22,
ou seja, uma execuo que tende a satisfazer-se apenas a si mesma.
Uma atividade que se torna til e se sujeita como meio, sem m,
perde o encanto e o carter do jogo.
19 Kishimoto, Tizuko, 1998, p. 22.20
Brougre, Gilles, 1998, p. 25.21 Klein, Melanie. Psicanlise da criana.So Paulo: Editora Mestre Jou, 1969,p. 31.
22 Kant apud Wallon, Henri, 1981, p. 77.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
41/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 41
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
O fenmeno jogo tem sido alvo de uma constante ateno por
parte de muitos estudiosos, que buscam, atravs de suas incan-
sveis investigaes, descrever este fenmeno inseparvel davida quotidiana do Homem, pois a essncia desse fenmeno e a
abundncia das tarefas nomeadas como tal embaraam o consenso
a respeito do tema23. O que torna a justicao sobre o jogo ampla e
abrangente a sua multiplicidade, as suas diversas linhas de inves-
tigao e os seus incontveis pontos de vista. Por outras palavras,
fcil identicar o comportamento ldico. Difcil deni-lo24. A
investigao acerca do jogo aparece como um fenmeno delicado
ou complexo. Na sua obra Psicanlise da criana, Melanie Kleinrefora essa complexidade, quando arma que, para conhecermos
o signicado do brinquedo durante o seu estudo, no devemos
simplesmente tentar compreender os signicados dos smbolos de
forma isolada, por mais denunciadores que sejam; preciso levar
em considerao todos os mecanismos e mtodos de representao
empregados no trabalho onrico, jamais perdendo a vista a relao
de cada fator isolado com a situao global25.
Existe uma constante tentativa de descrever e classicar o quedesignamos por jogo. O certo que necessrio apurar o que h de
anlogo em prticas aparentemente to distintas. Para aportar a
uma denio exata do jogo, ser necessrio procurar o seu maior
denominador comum. No podemos esquecer a sua importncia
afetiva: o jogo fonte de prazer; na sua origem, a palavra traduz,
exatamente, riso e barulho26.
Sendo o conceito de jogo um contedo tecido de linhas complexas
e profundas, torna-se difcil uma designao precisa, mas, quando
23 Pereira, Beatriz; Palma, Miriam & Ndio, Alberto. Os jogos tradicionaisinfantis: O papel do brinquedo na construo do jogo. In: Condessa, IsabelC. (org.), (Re)aprender a brincar: Da especialidade diversidade.PontaDelgada: 2009, p.103.
24 Neto, Carlos. A Criana e o jogo: Perspetivas de investigao. In Pereira,Beatriz & Pinto, Antnio (coord.).A escola e a criana em risco - intervir
para prevenir.Porto: Edies ASA., 2001, p. 2.25 Klein, Melanie, op. cit., p. 31.26 Bandet, Jeanne & Sarazana, Rjane.A criana e os brinquedos.Lisboa:
Editorial Estampa, 1973, p. 16.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
42/72
O JOGO E A INFNCIA42
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
se consegue alcanar a sua essncia, deparamos com um universo
de novas verdades, de relaes entre elas, de uma ordem lgica de
conceitos.
O jogo e as brincadeiras comoexpresso cultural
O jogo mais velho que a cultura, pois a cultura, ainda que ina-
dequadamente denida, pressupe a existncia de uma sociedade
humana e os animais no esperaram que o homem os ensinasse
a jogar. () Os animais brincam, tal como os homens. Bastaobservar os cachorros para se perceber que todos os elementos
essenciais do jogo humano se encontram presentes nas suas
alegres cabriolas27.
Johan Huizinga
na linha deste pensamento que surge a reexo de que asbrincadeiras so expresses culturais de um povo e, ao mesmo
tempo, as brincadeiras sustentam a prpria cultura.Portanto, legtimo armarmos que os jogos representam um
determinado momento histrico, pois, nas marcas de sua existn-
cia, so ntidas as diferentes inquietaes e tcnicas que os mesmos
traduzem culturalmente28. A este ttulo, acresce que a civilizao
surge e se desenvolve como um jogo29.
Nos anos que decorrem, so claras e profundas as alteraes
que o brinquedo vem sofrendo, acarretando uma transformao
desenfreada na cultura infantil. Vivemos diante de uma sociedade
tecnolgica, que se transforma a todo vapor, onde as aesabusivas e apelativas do mercado desenvolvem um acelerado e
contnuo processo de transformao na vida das pessoas, modi-
cando radicalmente os seus hbitos de vida e originando uma nova
cultura. Diante deste processo, como prever as mudanas futuras?
27 Huizinga, Johan, op. cit., p. 17.28 Dias, Isabel. O ldico. Educao e comunicao,(8), 2005, p. 125.29 Huizinga, Johan, op. cit., p. 15.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
43/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 43
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
Nas cartas, como em qualquer exerccio de vidncia30. O futuro
poder, talvez, carregar consigo traos do presente, mas, com
certeza, brotaro novas ramicaes e, assim, a cultura assume asua dinmica dentro de cada sociedade e de cada contexto prprio.
Isso permite-nos considerar que o jogo um produto que, pri-
meiramente, determina uma cultura, em particular, para, depois,
atingir a cultura de forma geral.
O facto que a rutura da economia clssica capitalista pela
economia empresarial permitiu a apresentao das empre-
sas como criadoras de consensos e, ao mesmo tempo, da prpria
identidade social, tanto para o indivduo, quanto para as entidadesprossionais31. Sendo assim, nada seria mais compreensivo do que
concebermos os mediacomo a mquina transformadora, em parte,
de todo o processo cultural.
Este facto acabou por desencadear diferentes situaes no comr-
cio contemporneo, criando novas oportunidades ldicas, o que
contribuiu para o aparecimento de uma nova cultura ldica. Deste
modo, torna-se percetvel que foi atravs da Barbie estimulado s
meninas o estilo sensual do corpo ou o uso instrumental do corpo,pois o corpo encontra-se ao servio da cultura32. Para Albino
Lopes &LusReto, a metfora cultural33, acima mencionada, no
se reduz simplesmente a um fenmeno de tendncia, pois apreende
a forte inteno de abrir caminho para um novo olhar em relao
s empresas e s instituies. Ainda, os mesmos autores salientam
que a antropologia da cultura aponta que a produo de bens pela
sociedade direciona que, a partir do simblico, a prpria sociedade
acaba por se estruturar.
Compreendendo o brincar/jogar como uma necessidade da
criana, a sua essncia de suma importncia na sua formao
e no seu desenvolvimento cultural e social. Entendemos que o
brincar nada mais do que o enriquecimento cultural, j que a real
30 Brougre, Gilles, 2004, p. 309.31
Lopes, Albino & Reto Lus. Identidade da empresa e gesto pela cultura.Lisboa: Edies Slabo, Lda, 1990, p. 19.32 Garcia, Rui, op. cit., p. 66.33 Lopes, Albino & Reto Lus, op. cit., p. 24.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
44/72
O JOGO E A INFNCIA44
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
cultura se constri atravs da liberdade criativa do ser humano,
recusando toda e qualquer imposio. Neste contexto,a sociologia
da criana, jovem disciplina em pleno desenvolvimento, mostra oquanto a infncia varia segundo os contextos, o quanto ela deriva,
no de uma essncia intemporal, mas de uma construo social, tanto
no nvel das representaes quanto no das condies reais de vida34.
Neste sentido, reconhecemos o brincar/jogar como uma aprendi-
zagem sociocultural, que vai se vai reestruturando e acomodando,
conforme as peculiaridades do meio, ou seja, o contexto no qual a
criana se encontra inserida o seu maior determinante cultural.
Este facto permite-nos antecipar que, antes de ser atingida pelacultura global, a criana invadida pela cultura local e que o modo
como os grupos se organizam socialmente o melhor caminho
para a compreenso da transmisso cultural.
A este ttulo, podemos acentuar que,na sua brincadeira, a criana
no se contenta em desenvolver comportamentos, mas manipula as
imagens, as signicaes simblicas que constituem uma parte da
impregnao cultura qual est submetida35.
Os jogos so reconhecidos como elementos constantes da culturahumana, que adota formas innitas e diversicadas de acordo com
o prprio contexto cultural36. E reconhece a forma universal do
jogo, designando-o como um elemento inseparvel do Homem. Tal
como confere Gusdorf, quase impossvel conceber na existncia
humana a ausncia total do jogo37.
Assim, o estudo do desporto torna-se um considervel campo
de investigao social, onde nos podemos confrontar com com-
ponentes que nos ajudem a compreender melhor as aspiraes e
motivaes humanas e o seu sentido de existncia, visualizando a
imagem da sociedade atual, como funciona, como enfrenta as suas
crises, as suas limitaes e as suas incoerncias, na esperana de
alimentar o sonho de um novo amanhecer.
34
.Brougre, Gilles, 2004, p. 14.35 Brougre, Gilles, 1995, p. 47.36 Costa, Silva. Desporto e anlise social. Sociologia, II, 1992, p. 101.37 Gusdorf apud Costa, Silva, 1992, p. 101.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
45/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 45
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
O jogo, as brincadeiras e a criana:o incio da cultura (ldica)
O homem no completo seno quando joga, mxima de
Schiller38.
Jean Chateau
Nas primeiras experincias do beb com a me, comea o jogo
infantil. Atravs de gestos que parecem fazer pouco sentido, h
uma preparao para a capacidade de andar e de agarrar; dos sons
vocais que simplesmente estimulam e enfeitiam a criana saira fala; dos rabiscos ir nascer a escrita e o desenho, visto que a
nalidade do jogo infantil , portanto, utilizar todas as foras nas-
centes, das quais no pode prever a utilizao posterior39. O beb
responde somente os estmulos que lhe esto disponveis; se no
h incentivos, ele no poder responder e aprender como responder
as novas coisas que surgiro, ou seja, preciso que haja estmulos
para que a criana desenvolva, na hora certa e de forma natural, a
linguagem, a motricidade e as relaes afetivas com os outros40.
Em relao a infncia, provvel que pais afetuosos interajam
mais com seus lhos e que, quanto melhores forem as atenes,
maiores sero as possibilidades de observaes e do aprendizado41.
E no sendo a educao um processo de direo nica, a criana
imita os pais por terem a certeza que isso ir estimular o aumento
deste afeto.
Jacques-Philippe Leyensdestaca, entre as principais funes
da imitao que dependem essencialmente do contexto social dos
sujeitos, as seguintes42:
A imitao pode acelerar a aprendizagem, sobretudo quando as
respostas a adquirir tm uma fraca probabilidade de ocorrncia
38 Schiller apud Chateau, Jean, 1975, p. 15.39 Bandet, Jeanne & Sarazana, Rjane, op. cit., p. 22.40
Bee, Helen.A criana em desenvolvimento.So Paulo: Editora Harper eRow do Brasil Ltda, 1977, p. 69.41 Leyens, Jacques-Philippe. Psicologia social. Lisboa: Edies 70, 1979, p. 53.42 Ibidem, p. 58.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
46/72
O JOGO E A INFNCIA46
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
espontnea e, portanto, poucas hipteses de serem reforadas
positivamente.
A imitao pode tambm desempenhar um papel de desinibi-o ou, inversamente, de inibio, relativamente a condutas j
aprendidas,mas habitualmente sancionadas de forma negativa
ou positiva pela sociedade.
Finalmente, a imitao pode facilitar o aparecimento de respos-
tas anteriormente adquiridas e socialmente no sancionadas.
No se trata aqui de aprendizagem ou de desinibio-inibio e
falar-se- de um papel de facilitao geral (no confundir com
a facilitao social).
Ainda, o mesmo autor acresce que a imitao certamente nomeia,
com rmeza, um dos meios de inuncia. Se ela no decerto
inata43, manifesta-se precocemente na vida, aparecendo em todas
as idades: a criana que no compreende as palavras que lhe so
transmitidas j capaz de imitar e, ao longo da vida, ir recorrer
a este processo.
importante, todavia, compreendermos que o primeiro brin-quedo da criana o seu corpo, j que o beb, ao sorrir agitando os
membros, encontra, no seu prprio corpo, o objeto das suas brinca-
deiras precoces44. a brincar a gargantear e olhar-se que a criana
experimenta brincadeiras funcionais, mas medida que ela recorre
repetio das suas aes em busca do prazer proporcionado pelos
movimentos. O efeito do ato torna-se inteno, fechando-se o circuito
inteno ato efeito45. Nesta lgica, consideramos que,quando a
criana age sobre o objeto e inicia uma nova reao secundria, num
contexto de interesse objetivo e de acomodao expectante, por vezes
de inquietao46, essa ao se denomina jogo, j que a explorao
do objeto percebido pela criana e no estimula mais interesse.
43 Ibidem, p. 66.44
Bandet, Jeanne & Sarazana, Rjane, op. cit., p. 30.45 Dantas, Heloysa. Brincar e trabalhar. In: Kishimoto, Tizuko (org.). O brincare suas teorias. So Paulo: Pioneira, 1998, p. 115.
46 Piaget, Jean, op. cit., p. 121.
-
7/25/2019 O Jogo e a Infncia - entre o mundo pensado e o mundo vivido
47/72
ENTRE O MUNDO PENSADO E O MUNDO VIVIDO 47
CAPTULO II O JOGO, As BrinCAdeirAs e A CuLturA
O jogo , antes de mais, o lugar de construo de uma cultura
ldica. A experincia ldica um processo cultural que desempenha
um papel fundamental no processo de socializao da criana,sofrendo inuncias do meio em que a criana est inserida. real
que a televiso e os jogos electrnicos apresentam-se como factores
altamente inuenciadores do jogo simblico da criana e ao mesmo
tempo como barreira dominante do jogo livre47. E sendo a criana
um ser ativo, espontneo e criativo por natureza, esse condiciona-
mento ao jogo livre torna-se prejudicial ao seu desenvolvimento,
na medida em que atravs da capacidade simblica que ela cria e
d signicaes ao mundo.Na realidade, o brincar uma atitude tpica da/muito frequente
na infncia, que acaba por conduzir a criana a um conhecimento
melhor de si mesmo e do mundo que a rodeia48, presumindo-se,
com isto, que a atividade ldica est profundamente ligada aodesenvolvimento infantil. , pois, necessrio reconhecer que
o jogo tem um papel imprescindvel na vida das crianas; elas
praticam-no de forma espontnea, no necessitam de auxlio. Esta
experincia ldica vivenciada pela criana imprescindvel paraque ela desenvolva o processo cultural, interacional e simblico em
toda a sua complexidade. Movida por essa mesma compreenso,
Peorevela quea criana, quando brinca, transcreve o que chamamos
de realidade para, assim, recriar o cotidiano49,preparando-se para
enfrentar a vida adulta de forma livre e criativa.
Numa viso profunda, podemos considerar queno brinquedo
os objetos perdem sua fora determinante50, ou seja, a criana
denomina e utiliza o objeto conforme seu desejo, sua necessidade,
independente d forma que o v. Alm disso, podemos ates