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O Homem e o seu Duplo * Alexandre Figueiredo Índice 1 Prólogo 1 2 Genealogia das Criaturas Artificiais 6 2.1 Nos Antípodas das Criaturas Ar- tificiais .............. 7 2.2 A Temática das Criaturas Artifi- ciais na Literatura do Séc. XIX . 9 2.3 As Criaturas Artificiais no Qua- dro do Nosso Tempo Moderno – Séculos XX e XXI ........ 13 2.3.1 As Criações Artificiais no Ci- nema e na Literatura ...... 13 2.3.2 As Criaturas Artificiais nos La- boratórios Científicos e Cen- tros de Investigação ...... 18 3 Virá o Duplo do Duplo a Assumir-se Enquanto o Original Único? 21 4 Bibliografia 25 “[. . . ] tirar do limo da Ciência Humana actual um ser feito à nossa imagem, e que será para nós, em consequência disso, o que somos para Deus.” Villiers de L’Isle-Adam 1 * Este trabalho foi realizado no âmbito do mestrado em Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciên- cias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lis- boa. 1 L’ISLE-ADAM, Auguste Villiers de; A Eva Fu- “Oh! Ninguém poderia suportar o horror daquele rosto. Uma múmia que ressuscitasse não seria tão hedionda. Vira-o inacabado, e já era feio, mas, quando o animei, tornou-se algo que o próprio Dante não teria podido imaginar.” Mary Shelley 2 1 Prólogo Neste momento, apercebi-me da silhueta de um homem que avançava para mim a uma veloci- dade sobre-humana. Saltava por cima das fendas, entre as quais eu caminhara com precaução; a sua altura, à medida que se apro- ximava, parecia ultrapassar a de um homem. Fiquei perturbado. Os meus olhos velaram-se e jul- guei desmaiar, mas logo fui re- animado pelo vento frio das mon- tanhas. Vi, horrorizado, dirigir- se para mim o miserável que tinha criado. Tremia de cólera e de horror, mas decidi aguardá-lo e acabar de uma vez para sempre tura, Trad. de Écila Azeredo, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 141. 2 SHELLEY, Mary; Frankenstein, Trad. de João Costa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2003, p. 70.

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O Homem e o seu Duplo∗

Alexandre Figueiredo

Índice

1 Prólogo 12 Genealogia das Criaturas Artificiais 62.1 Nos Antípodas das Criaturas Ar-

tificiais . . . . . . . . . . . . . . 72.2 A Temática das Criaturas Artifi-

ciais na Literatura do Séc. XIX. 92.3 As Criaturas Artificiais no Qua-

dro do Nosso Tempo Moderno –Séculos XX e XXI. . . . . . . . 13

2.3.1 As Criações Artificiais no Ci-nema e na Literatura. . . . . . 13

2.3.2 As Criaturas Artificiais nos La-boratórios Científicos e Cen-tros de Investigação. . . . . . 18

3 Virá o Duplo do Duplo a Assumir-seEnquanto o Original Único? 21

4 Bibliografia 25

“[. . . ] tirar do limo da Ciência Humanaactual um ser feito à nossa imagem, e que

será para nós, em consequência disso, o quesomos para Deus.”

Villiers de L’Isle-Adam1

∗Este trabalho foi realizado no âmbito do mestradoem Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciên-cias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lis-boa.

1 L’ISLE-ADAM, Auguste Villiers de;A Eva Fu-

“Oh! Ninguém poderia suportar o horrordaquele rosto. Uma múmia que

ressuscitasse não seria tão hedionda. Vira-oinacabado, e já era feio, mas, quando o

animei, tornou-se algo que o próprio Dantenão teria podido imaginar.”

Mary Shelley2

1 Prólogo

“Neste momento, apercebi-meda silhueta de um homem queavançava para mim a uma veloci-dade sobre-humana. Saltava porcima das fendas, entre as quaiseu caminhara com precaução; asua altura, à medida que se apro-ximava, parecia ultrapassar a deum homem. Fiquei perturbado.Os meus olhos velaram-se e jul-guei desmaiar, mas logo fui re-animado pelo vento frio das mon-tanhas. Vi, horrorizado, dirigir-se para mim o miserável que tinhacriado. Tremia de cólera e dehorror, mas decidi aguardá-lo eacabar de uma vez para sempre

tura, Trad. de Écila Azeredo, São Paulo, Editora daUniversidade de São Paulo, 2001, p. 141.

2 SHELLEY, Mary; Frankenstein, Trad. de JoãoCosta, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2003, p.70.

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2 Alexandre Figueiredo

com ele. Aproximou-se. Lia-se-lhe no rosto um grande medomisturado com desdém e crueza,a sua fealdade fora do humanotornava-o demasiado horrível dever. Mas mal reparei em tudo isto.A raiva e o ódio tinham-me tiradoao princípio a palavra, e só me do-minei para esmagá-lo com cólera edesprezo:

— Demónio! — exclamei. —Ousas aproximar-te de mim? Nãotemes a vingança selvática do meubraço levantado por cima da tuamiserável cabeça? Desaparece,vil criatura! Ou, antes, fica, paraeu poder reduzir-te a pó! Oh, sepudesse, suprimindo a tua miserá-vel existência, devolver a vida àsvítimas que tão diabolicamente as-sassinaste!

— Contava com este acolhi-mento — respondeu o demónio. —Todos os homens odeiam os infe-lizes; como sou odiado, eu, maismiserável do que qualquer ser hu-mano! Contudo, tu, o meu criador,detestas e repeles com desprezo atua criatura, a quem estás ligadopor laços que só a morte de um denós pode quebrar. Queres matar-me! Como te atreves a brincar as-sim com a vida? Cumpre o teu de-ver para comigo, que eu cumpri-rei o meu para contigo e para como resto da humanidade. Se quise-res subordinar-te às minhas con-dições, deixar-te-ei em paz; mas serecusares, saciar-me-ei no sanguedos amigos que te restam!

— Monstro detestado! Demó-

nio que és, as torturas do In-ferno são uma vingança dema-siado suave para os teus crimes!Censuras-me por ter-te criado;aproxima-te então, para poder ex-tinguir a centelha de vida que tedei tão imprudentemente!

A minha raiva não tinha limi-tes. Atirei-me a ele, impelido portodos os sentimentos que podemarmar um homem para matar ou-tro.

Afastou-me sem dificuldade edisse:

— Acalma-te! Ouve bem antesde dares livre curso ao teu ódio!Não sofri eu já o bastante para queainda procures aumentar o meu in-fortúnio? A minha vida, a minhatriste vida ainda me é querida edefendê-la-ei. Não esqueças queme fizeste mais forte do que tu;mas não quero lutar contigo. Soua tua criatura e serei meigo e dó-cil para com o meu amo e senhor,se quiseres desempenhar o papelque te cabe. Oh!, Frankenstein, seés justo para todos, não me esma-gues, a mim a quem deves não sóa tua justiça, mas a tua demênciae o teu afecto. Eu deveria ser oteu Adão; mas sou, antes, o anjocaído em descrédito que banes doParaíso. Vejo em todo o lado umaventura de que estou irrevogavel-mente excluído. Eu era benevo-lente e bom; a mágoa fez de mimum demónio! Torna-me feliz e vol-tarei a ser virtuoso...

— Desaparece! Não queroouvir-te. Não temos nada em co-

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O Homem e o seu Duplo 3

mum, somos inimigos. Desapa-rece, ou mediremos forças numcombate em que um de nós sucum-birá.

— Como posso eu comover-te? Nenhum dos meus rogos lo-grará fazer-te encarar com umolhar favorável a tua criatura queimplora a tua bondade e a tuapiedade? Acredita-me, Franken-stein, eu era bom, a minha almatransbordava de amor e de cari-dade; mas não estou só, desespe-radamente só? Tu, o meu cria-dor, detestas-me; que posso espe-rar dos teus semelhantes que nãome devem nada? Repelem-me eodeiam-me. As montanhas deser-tas e os tristes glaciares são o meurefúgio. Errei aqui durante inúme-ros dias; as grutas de gelo, quesou o único a não temer, consti-tuem a minha casa, a única que oshomens não me recusam. Saúdoo céu inclemente porque é melhorpara mim do que os teus semel-hantes. Se todos os humanos con-hecessem a minha existência, fa-riam como tu, armar-se-ia paradestruir-me! Como não hei-de euodiar os que me detestam? Nãopouparei os meus inimigos. To-davia, está em teu poder prestar-me justiça. Deixa-te enternecer enão me desdenhes. Ouve a minhahistória; quando a tiveres ouvido,abandona-me ou lastima-me, masouve-me. Os culpados que aindatêm as mãos cobertas de sanguesão autorizados pelas leis huma-nas a defenderem-se antes de se-

rem condenados. Frankenstein,acusas-me de ter assassinado e, noentanto, matar-me-ias, a mim, atua criatura, com uma consciênciatranquila. Bela justiça a do ho-mem!

— Porque me lembras — repli-quei — acontecimentos em que sópenso estremecendo? Maldito sejao dia em que viste a luz! Malditassejam as mãos, as minhas, que teformaram! Tornaste-me mais infe-liz do que pode exprimir-se. Nãome deixaste a força de saber se soujusto ou não para contigo. Desa-parece, livra-me da tua presençahorrível!”3

O trecho da popular obra de horror do sé-culo XIX que acabamos de convocar consti-tui apenas uma das muitas referências que aolongo da história da criação literária ficcionalpoderão ser encontradas no que à produçãode criaturas artificiais diz respeito.

Com efeito, o processo ascensorial do Ho-mem à categoria de divindade com todos ospredicados que a esta entidade estão adstri-tos constitui um dos mais antigos projectosda humanidade, anterior mesmo à noção daprópria divindade na forma e conceito hojeassumidos nas sociedades ocidentais.

Na realidade, “o tema das criaturas artifi-ciais construídas pelo homem à sua imagemé abordado por um conjunto de narrativasque recorrem tanto à linguagem da litera-tura, da religião ou da arte, como à lingua-

3 SHELLEY, Mary; Frankenstein, Trad. de JoãoCosta, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.119-122.

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4 Alexandre Figueiredo

gem das ciências e das técnicas”4 e que seestendem “por cerca de dois mil anos”5.

O artificial é, todavia, ainda que criado àimagem e semelhança do homem6, tal comoo Homem o fora já em relação à divindadesua criadora, na esmagadora maioria dasobras produzidas acerca da temática, enten-dido enquanto uma entidade ética, moral eontologicamente inferior ao seu criador nãoobstante ser dotado de todos os artifícios ne-cessários a suplantar a imperfeição originale fundadora humanas, sendo também capazdos maiores feitos e prodígios de todo im-possíveis ao limitado corpo carnal do cria-dor.

Parecendo convocar a rebelião original daespécie humana contra o seu próprio cria-dor no momento em que Adão e Eva são ex-pulsos do Paraíso por terem desrespeitado aimposição divina de não tocarem/provaremdos frutos da árvore do conhecimento7, tam-

4 BRETON, Philippe,À Imagem do Homem – DoGolem às Criaturas Virtuais, Instituto Piaget, Lisboa,1995, p.15.

5 Idem,ibidem.6 Cf. “[. . . ] tirar do limo da Ciência Humana

actual um ser feito à nossa imagem, e que será paranós, em consequência disso, o que somos para Deus”.Vd. L’ISLE-ADAM, Auguste Villiers de;A Eva Fu-tura, Trad. de Écila Azeredo, São Paulo, Editora daUniversidade de São Paulo, 2001, p. 141.

7 Vd. A.A. V.V.; A Bíblia Sagrada para o TerceiroMilénio da Encarnação, Fátima, Difusora Bíblica, Ja-neiro de 2003. A este propósito não deixa de ser cu-rioso o profundo paradoxo que representa a questãoda colocação por parte do criador da árvore do con-hecimento no Jardim do Éden. Ora, se foi o Homemcriado à imagem do criador, e foi dotado de inteligên-cia/capacidade de reflexão, a colocação da árvore doconhecimento e a consequente interdição de “uso” damesma parecem configurar um estranho e perversodesejo punitivo do criador em relação à criatura pois,nas suas infinitas potencialidades por certo não seriadesconhecida ao Senhor a imensa tentação que repre-

bém no caso das criaturas artificiais é fre-quente a insurreição destes contra o géniocriador, neste caso, com efeitos particular-mente destrutivos, uma vez que na genera-lidade destas narrativas o engenho humanotende para a fatal mitigação das suas fal-tas e fraquezas fundadoras, donde decorremcriações/existências infinitamente mais po-derosas que o ser gerador e, consequente-mente, amplamente mais perigosas para aprópria manutenção e preservação do “pai”.

Ironicamente a espécie humana parece seraqui alvo de uma dupla punição pela sua “ar-rogância” intelectual. A primeira resulta daexpulsão do Paraíso; a segunda decorre doterror e tormento das perseguições movidaspelas criaturas aos criadores. Sendo as pri-meiras mais completas e potentes que os se-gundos, é frequente a criatura superar e ani-quilar o criador. A materialização da ironiaacima enunciada parece configurar um impe-dimento formal de Deus em relação à dupli-cação/geração de “vida” pelo homem. Nãoserá permitida à criatura do supremo criadora criação das suas próprias criaturas.

Dos postulados acima enunciados ressaltauma evidência: seja na sua qualidade decriatura ou criador, o Homem, parece fatal-mente convergir para a condição de vítimade uma justiça negra que se perpetua e centranaquele que constitui o seu principal activo –o património intelectual.

sentariam para o Homem os frutos da árvore proibida,exemplo aliás a que recorre Mikhail Bakunine no seuEnsaio “Deus e o Estado” como justificativo da suaprofunda aversão aos dogmas da eclesia. Na verdade,o cumprimento da directiva divina de não profanaçãodos frutos da árvore do conhecimento só poderia re-presentar a negação da própria condição e naturezahumanas e o livre-arbítrio de que havia sido providono momento da sua geração.

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O Homem e o seu Duplo 5

De tudo o que atrás se disse, conclui-seentão que, a maioria das criaturas artificiais,emanadas do génio e engenho criadores doHomem, aparentam concorrer para uma ne-gatividade essencial, que julgamos ter ori-gem na presença dos múltiplos dogmas ori-undos da tradição moral cristã (que vedamà Humanidade a possibilidade de ascensãoà categoria de criadores), e se encontramainda fortemente presentes na criatividadedos escritores, enquanto constrangimentosformais.

Desta conclusão decorrem duas realidadesdistintas: o artificial, ainda que duplo do hu-mano é sempre e em qualquer circunstânciaentendido enquanto “outro” e apresentadocomo algo de pecaminoso ou ilegítimo. Poroutro lado, o “outro” representa por norma asuperação física e material do humano8. Arebelião da criatura convoca todos os “fan-tasmas” e medos humanos derivando a nar-rativa dramaticamente para algo de terrífico,monstruoso e medonho onde o Homem surgeconfrontado com os seus terrores mais pro-fundos. Fruto de uma moral e intelecto supe-riores o criador acaba também por, invaria-velmente, derrotar e destruir a criatura, factoque, apresenta novo paradoxo, (que consiste,sumariamente, num primeiro momento nointenso esforço e investimento que são rea-lizados em prol de uma criação que, num se-gundo estágio, se constituirá como o alvo dafúria e empenho humanos visando a inversãodesse instante gerador donde decorre a pos-terior e inevitável aniquilação da criatura).9

8 Inclusive no aspecto moral: as criaturas artifi-ciais não vêem as suas acções constrangidas por im-perativos de índole moral – uma vez que esta é umapropriedade dos fracos.

9 A problemática será aqui ignorada em virtudede não ser esse o intuito desta reflexão. Refiram-se,

Neste contexto, a temática que serve debase ao presente trabalho de investigaçãocentra-se essencialmente na reflexão e con-frontação entre o Homem e o “Outro” atrásenunciado, assim como na procura de ele-mentos que possam justificar a repetida apre-sentação do “Outro” que afinal resulta deum trabalho de reprodução do próprio e pelopróprio, enquanto monstro terrível e, comode resto, enuncia Mary Shelley, como o“inimigo” 10.

Deste modo será proposta uma viagemde âmbito genealógico à eclosão das cria-turas artificiais e sua consequente evo-lução/apresentação nas diferentes épocashistóricas para, posteriormente, recentrar-mos, já no epílogo da presente investigação,o enfoque na polémica em torno da qua-lificação/classificação deste Outro no con-junto das categorias humanas. Será o outro,vida? Existência? Representará uma meraextensão do humano ou, poderá, em breve,ser incluído na definição de humano, en-quanto legítimo constituinte de uma humani-dade em transformação e evolução(?)? Será

contudo, alguns de entre os inúmeros exemplos daficção. O esforço do Dr. Frankenstein na criação doseu monstro que depois despreza e procura destruir.Recordem-se os cyborgs de Terminator, os Replican-tes de Blade Runner, os andróides de Inteligência Ar-tificial, os robots da mais recente produção do género,(I, Robot), etc.. O elemento comum em todos estesprojectos de ficção consiste no empenho colocado noprojecto de duplicação da vida e geração das criaturasartificiais para, mais tarde, se cair no extremo oposto,onde a criatura é encarada enquanto inimiga da “hu-manidade” e, em consequência, deverá ser aniquilada.Em todas as produções do género, a criatura artifi-cial é, não raras vezes, apresentada como monstruosa,diferente, poderosa e potencialmente perigosa para apreservação do criador.

10 SHELLEY, Mary; Frankenstein, Trad. de JoãoCosta, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2003.

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o outro ainda outro? Ou, poderá o outro vira assumir-se enquanto próprio do próprio?Ou estará, pelo contrário, condenado à eternacondição de um outro ou, se preferirmos, deum próprio menor ou de segunda categoria?

2 Genealogia das CriaturasArtificiais

“As narrativas que evocam afabricação de criaturas à imagemdo homem inscrevem-se assimnuma genealogia particular[. . . ].Elas estendem-se por cerca de doismil anos e ocorpuspor elas consti-tuído é formado por cerca de umadúzia de grandes textos, que põemem cena seres tão distintos comoPigmalião, ogolem, os autómatosde Jacques de Vaucanson, a cria-tura do Dr. Frankenstein, os robotsda ficção científica e o computa-dor. [. . . ] evoca-se o projecto pre-cedente de construção de uma talcriatura, mas criticam-se os seusmétodos primitivos e inadequados.Cada época introduz a sua “so-lução moderna” para o problemacolocado por essa construção. Amodernidade será, assim, suces-sivamente assumida pela magia,pela mecânica, pela automação,pela informática[. . . ] pela biolo-gia (e, pela nanotecnologia, acre-scentamos nós – que constituiráa “solução moderna” para o pro-blema na viragem do século XXIe, pelo menos até meados deste –assim o projecto actual seja efecti-vamente cumprido). O projecto em

si mesmo faz prova de uma notávelpermanência através do tempo.”11

Os cinco momentos/abordagens, marcantesde outras tantas épocas, à problemática emcausa identificadas por Philppe Breton, (aoqual ousámos acrescentar uma sexta, en-quanto actualização do próprio trabalho deBreton, e que consiste no fenómeno aindaembrionário da nanotecnologia que, repre-sentará possivelmente a superação da visãobiológica antes mesmo desta ser efectiva-mente esgotada), constituem, efectivamente,a recolha de diferentes soluções para ummesmo e perpétuo problema, cuja soluçãopoderá emergir nesta nossamodernidade.Todavia, aquele que consideramos o pontomais importante da questão reside justa-mente na alargada escala temporal que omesmo tem ocupado no pensamento e ciên-cia humanas que, nas palavras de Breton,será mesmo superior a dois milénios.

Porém, destes dois milénios de história doprojecto de duplicação humana, emerge umaconcepção comum a todos os momentos eque, apenas a nossa “modernidade” pareceprocurar (ainda que tenuemente) mitigar, dizrespeito à concepção do duplo sempre en-quanto outro e, nunca, enquanto próprio oumesmo extensão do próprio. Ponto assente:o artificial é sempre e, em qualquer caso, ooutro, o diferente, o monstruoso, o perigoso,o “sombrio” e cuja natureza tende natural,inevitável e fatalmente para a rebelião con-tra o criador, quase como se de uma inves-tida divina punitiva se tratasse sobre a ousa-dia humana de procurar imitar o seu própriocriador.

11 BRETON, Philippe,À Imagem do Homem – DoGolem às Criaturas Virtuais, Instituto Piaget, Lisboa,1995, pp. 15-17.

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O Homem e o seu Duplo 7

2.1 Nos Antípodas das CriaturasArtificiais

As primeiras referências a criaturas não hu-manas animadas encontram-se nas históriasdo Golem e Pigmalião12 , ainda que o temaque tratam possa já ser encontrado quase ummilénio antes nos escritos de Platão a propó-sito do pretenso carácter vivo e animado dealgumas estátuas que careciam de ser acor-rentadas de modo a impedi-las de partir du-rante a noite.

Será aliás em torno da problemática dasestátuas que a produção ficcional a propó-sito das criaturas artificiais tem na verdadeo seu início. A história de Pigmalião e Ga-lateia retoma o tema da vida nas estátuas jáanteriormente “observado” por Platão. Nestanarrativa impregnada de crenças e “magia”,segundo a investigação de Philippe Breton,um jovem rei de Chipre, Pigmalião teria es-culpido, em marfim branco, com arte e su-cesso extraordinários, uma mulher artificial àimagem daquela que pretendia como esposa.Após a intervenção de Afrodite a estátua ter-se-ia animado, sendo então elevada à cate-goria de ser artificial fundador, concebidopelo homem à sua imagem. Não obstanteo seu carácter vincadamente primitivo, bempatente aliás na necessidade de recurso à ma-

12 “[. . . ] é um rei de Chipre que se apaixonoupor uma estátua de marfim representando uma belamulher, que ele próprio teria esculpido, segundo umadas versões da lenda. Abrasado pela paixão, pediua Arfodite que lhe enviasse uma mulher semelhante àestátua. As súplicas dirigidas à deusa numa das fes-tas em sua honra foram ouvidas: ao chegar a casa,Pigmalião apercebeu-se de que a figura de marfimganhara vida. Desposou-a e dela teve uma filha cha-mada Pafo, mãe de Cíniras.” GRIMAL, Pierre; Di-cionário da Mitologia Grega e Romana, Trad. de Vic-tor Jabouille, Lisboa, Difel, s/ D..

gia/intervenção divina para conferir vida àobra de Pigmalião, concluindo deste modoo seu trabalho, não poderá, contudo, serignorada enquanto objecto inaugural na pro-blemática da duplicação/reprodução da vidae forma humanas em seres “artificiais”.

O golem inicial, produzido num contextoreligioso específico e, as suas diferentes va-riações ao longo dos séculos (a figura dogolem perdurou até ao início do século XX– sempre com grande proximidade à dou-trina judaica), marcam já uma evolução re-lativamente à criação de Pigmalião, nomea-damente ao nível do processo gerador de taisexistências e, mesmo no respeitante à próprianatureza das mesmas que poderiam ser in-vocadas por meio da oração, substituindoainda o homem em algumas tarefas concre-tas. Assinale-se, neste particular, a intro-dução de uma conceptualização deveras in-ovadora. Com efeito, o golem introduz nagenealogia das criaturas artificiais a noção desubstituição do seu análogo humano em tare-fas específicas e contextos concretos. “Eles(homens judeus, mas em casos acarretadostambém cristãos)fabricam, depois de deter-minadas orações e alguns dias de jejum, aforma de um homem em barro e quando pro-nunciam sobre ele a fórmulahamephorasch,a figura anima-se e, embora não saiba falar,compreende o que se lhe diz e ordena e exe-cuta toda a espécie de trabalhos domésticos;mas não deve sair de casa.”13

Como se pode inequivocamente aferirpelo trecho acima transcrito, o Golem, aindaque tenda a perpetuar a longínqua tradiçãodas estátuas animadas, é convocado para

13 ARNOLD, Christophe;cit in BRETON, Phil-ippe;À Imagem do Homem – Do Golem às CriaturasVirtuais, Instituto Piaget, Lisboa, 1995, p. 42.

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8 Alexandre Figueiredo

junto dos homens com uma intenção con-creta: a de auxiliar/executar todo o tipo detarefas domésticas, elemento que, estamosem crer inaugura toda concepção do artificialenquanto substituto do homem, num quadroem que as semelhanças se encontram apenasno foro físico e, nunca no domínio intelec-tual, excesso próprio do humano como refereNietzsche14 e, necessariamente inalienável,visão que imperou até pelo menos ao séculoXIX.

Deve ainda salientar-se que a história dascriaturas artificiais é de algum modo paralelaà do Golem, chegando mesmo, em momen-tos concretos a confundir-se, uma vez queo Golem constitui a única configuração ar-tificial que acompanha todas as etapas desteprojecto, desde os seus antípodas até plenoséculo XX. Com efeito, se o Golem surgereferido pela primeira vez em escritos quedatam de um tempo próximo da fábula dePigmalião, o seu registo estende-se pela An-tiguidade Clássica, Idade Média, Renasci-mento, Modernidade e século XX, sendo quea invocação de tal criatura não acompanhoua evolução das diferentes concepções do ar-tificial, uma vez que o procedimento surgesempre associado a um quadro mesclado quecombina magia com crença e práticas reli-giosas.

Os primeiros autómatos, concebidos àimagem do homem datam, nos termos enun-ciados por Philippe Breton, do século XIII,época, à qual Albert Le Grand terá alega-damente construído um homem artificial re-correndo para tal ao metal, madeira, couro ecera. Idêntica foi a obra de Roger Bacon quetambém neste mesmo século terá desenvol-

14 NIETZSCHE, Frederich;O Livro do Filósofo,Porto, Rés Editora, s/ D., p. 90.

vido, a partir do ferro, um projecto análogoaos robots, projecto que lhe teria valido in-clusive a acusação de práticas de magia.

Embora não totalmente ausente no Ren-ascimento, mormente por meio dos trabal-hos de Leonardo Da Vinci (que se preo-cupou com o estudo do funcionamento docorpo humano) e do inevitável Golem (aindaque, numa franja bastante restrita da culturae sociedades presentes) é, contudo, na Mo-dernidade que a questão adquire toda umanova actualidade. Com efeito, os séculosXVII e XVIII marcam a ascensão do pensa-mento mecanicista e o entendimento da na-tureza e do corpo humano enquanto as má-quinas por excelência. “É nesta perspec-tiva que os mecanicistas do Iluminismo sãofrequentemente citados, nomeadamente Jac-ques de Vaucanson (1709-1782) que tenta,desde 1730, a realização de “anatomias mó-veis” que reproduzam as principais funçõesda vida: respiração, digestão, circulação. Oséculo XVIII é incontestavelmente o grandeséculo do autómato. O desejo de criar umhomem artificial incorpora-se então clara-mente no seio do mundo das realizações téc-nicas. E, em particular, da mecânica, entãoem grande expansão. Este projecto é con-siderado, graças a estas novas tecnologias,como estando prestes a realizar-se.”15

São exemplos desta geração criadora, osautómatos de Pierre Jaquet-Droz e seu filho,o escritor, o desenhador ou a tocadora de mú-sica. Já no final do século são efectuadas ten-tativas mais arrojadas que incidem sobre areprodução da voz humana. Neste domíniodestacam-se o abade Mical, autor das “ca-

15 BRETON, Philippe;À Imagem do Homem – DoGolem às Criaturas Virtuais, Instituto Piaget, Lisboa,1995, p. 38.

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O Homem e o seu Duplo 9

beças falantes”, o barão Von Kempelen coma sua “máquina falante” ou ainda e, prin-cipalmente, Jacques de Vaucanson que con-struiu vários autómatos antropomorfos, cujointuito final seria o da realização de um pro-jecto superior e amplamente mais grandioso:o de construir um homem artificial, empresaessa decorrente das realizações anteriores.

2.2 A Temática das CriaturasArtificiais na Literatura doSéc. XIX

O século XIX trás por outro lado, imbuídodo espírito fantasmagórico que caracterizao período, três importantes transformaçõesimportantes; a primeira inscreve-se no des-velamento de novos trilhos no que à pro-blemática em epígrafe diz respeito (as con-cepções maquínicas dos séculos imediata-mente precedentes evoluem e actualizam-separa a era da electricidade16 – no caso da EvaFutura de Auguste Villiers de L’Isle Adam,ou tendem para uma biologia emergente17

16 “[. . . ] Isto é o braço de uma andróide à minhamaneira, movida pela primeira vez por esse fantásticoagente vital a que chamamos Electricidade, que lhedá, como vê, todo o natural, toda a maciez, toda ailusão da vida!”. Vd. L’ISLE-ADAM, Auguste Vil-liers de;A Eva Futura, Trad. de Écila Azeredo, SãoPaulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2001,p. 136.

17 A referência a uma biologia emergente prende-se com a ausência de uma explicação tão detalhadado funcionamento da criatura do Dr. Victor Franken-stein à imagem do que é realizado por Villiers quejustifica passo a passo “segredo” capaz de vivificare animar a criatura do Engenheiro Edison. Na ver-dade, Mary Shelley, apenas revela, fugazmente, que acriação do Dr. Frankenstein, resulta da justaposição eunião de diferentes componentes carnais, resultandonuma criatura de aspecto horrível, concebida a par-tir da união de diferentes partes de corpos de diver-

– altamente ingénua, irreal e ficcional – noexemplo da criatura do Dr. Victor Frankens-tein que encontramos na história de horrorde Mary Shelley, podendo também assumira recuperação do tema das estátuas animadasda antiguidade através do romance de ErnstHoffmann). A segunda poderá ser enqua-drada numa mutação que identificamos en-quanto metamorfose de registo: na realidade,as criações técnicas mecânicas cedem o seuespaço a criaturas mais evoluídas mas semexistência material, porquanto se encontramunicamente (a excepção conhecida consisteno texto de Heinrich Von Kleist18) presentesno domínio da ficção literária.

Por último ocorre também uma transmu-tação ao nível das implicações do próprioprojecto de construção de criaturas artifi-ciais. Com efeito, o século XIX abandonaum certo ideal de optimismo e esperança nacriação de seres análogos ao homem (queaté então parecia ter vigorado – ou pelo me-nos, não eram equacionados potenciais efei-tos negativos nesta demanda) para desem-bocar no espírito fantasmagórico, críptico,pessimista, céptico e profundamente negati-vista relativamente ao artificial, encarnando

sos dadores. De igual modo, em momento algumsão referenciados quaisquer elementos não biológicosna concepção da criatura. O “Monstro” resulta port-anto, daquilo a que convencionámos aqui apresentarenquanto um biologia ingénua, precisamente por oresultado derivar unicamente de componentes orgâni-cos, não sendo, contudo, revelado o segredo que per-mite a posterior animação da carne, pese embora, amenção também quase imperceptível a agentes quí-micos. Vd. SHELLEY, Mary;Frankenstein, Trad. deJoão Costa, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2003.

18 KLEIST, Heinrich Von;Über das Marionetten-theater – Sobre o Teatro de Marionetas, trad. de JoséFilipe Pereira, Estarreja, Instituto de Arte Dramática,1998.

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na verdade o essencial do espírito e pensa-mentos desse período.

Esta desconfiança e cinzentismo essen-ciais, se questionáveis na ficção de Villiersjá o não serão seguramente na obra de MaryShelley, que parece ser representativa dosmais profundos receios humanos relativa-mente à duplicação do próprio, ao mesmotempo que aparenta recuperar uma certa mo-ral de índole religiosa, sempre ciosa e al-tamente interventiva na defesa da supremacriação, como dom exclusivo e inalienávelda sua própria Criatura. Neste contexto, me-rece especial referência o afastamento cadavez mais evidente entre o Humano criador eo objecto da sua criação. Também, a este ní-vel a obra de Mary Shelley é inequívoca.

Na mesma linha é apresentada Hadaly Ha-bal, a obra/produto do engenho inventivode Thomas Edison para o nobre britânicoLorde Ewald, se bem que, neste caso, a re-ferência seja amplamente mais rica do queno primeiro exemplo citado. A escolha donome Hadaly Habal, para designar a cria-tura a que o génio literário de Villiers dácorpo e “alma”, em A Eva Futura, não é aliásinocente e, procura mesmo, convocar essamesma ruptura fundadora ente o humano ea sua cópia/duplo. Hadaly e Habal consti-tuem respectivamente os termos iraniano ehebraico para designar Ideal e Ilusão, emsuma, a realidade à qual a Andróide está con-denada por materializar uma mera cópia deMiss Alicia Clary por cuja singular beleza eatributos físicos, Lorde Ewald se apaixonou,desprezando, porém, a sua componente ima-terial e a suamuipouco nobre alma.

Ainda que, no final da obra os sentidosapurados e as dúvidas de Lorde Ewald rela-tivamente a Hadaly sejam testados e fracas-sem perante a realidade de uma cópia/ilusão

tão fiel no seu aspecto material quanto o ori-ginal, o que não é possível ignorar é o temarecorrente ao longo das várias centenas depáginas da ficção de Villiers, na profundasclivagens que se estabelecem entre o ele-mento humano e a sua cópia, entre a carnee a sua duplicação, entre a pele e as suasréplicas, entre a alma e a alma que Hadalyirá encarnar, em suma, entre a alteridade e amesmidade, entre o próprio e o não-próprio.

Ao longo de todo o extenso diálogo entreos dois principais protagonistas da saga,Lorde Ewald e Thomas Edison, acompanha-mos as dúvidas do primeiro quanto à “natu-ralidade”/”realidade”/”fidelidade” da cópiade Miss Alicia Clary, relativamente ao ori-ginal, e as garantias fornecidas pelo segundosob juramento, das quais abaixo se reproduzum dos trechos mais marcantes, em jeito desúmula da temática central nesta obra geniale como conclusão à ilustração que se pro-curou fazer às criaturas artificiais no séculoXIX:

“[. . . ] Isto é o braço de umaandróide à minha maneira, mo-vida pela primeira vez por essefantástico agente vital a que cha-mamos Electricidade, que lhe dá,como vê, todo o natural, toda amaciez, toda a ilusão da vida!

- Uma Andróide?- Uma Imitação Humana, se

preferir. A dificuldade a ser evi-tada é não fazer o fac-simile ul-trapassar, fisicamente, o modelo.Está lembrado, meu caro lorde,desse cientistas de outrora que ten-taram forjar simulacros humanos?[. . . ]

- Mas hoje, prosseguiu,

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o tempo passou! A Ciênciamultiplicou as suas descober-tas! As concepções metafísicasaperfeiçoaram-se. Os instrumen-tos de cópia, de identidade, sãohoje de uma precisão perfeita.[. . . ] Agora podemos realizarfantasmas espantosos, misteriosaspresenças mistas com as quaisnossos antecessores nem ousa-vam sonhar, pois teriam sorridodolorosamente diante dessa ideiadecretada impraticável! [. . . ]– Ainda uma experiência: querapertar esta mão? Quem sabe?Talvez lhe responda.

Lorde Ewald pegou os dedos eapertou-os levemente.

Que assombro! A mão corre-spondeu a essa pressão com umaafabilidade tão suave, que o ra-paz pensou que talvez fizesse partede um corpo invisível. Tomado deuma profunda inquietação deixoucair aquela coisa das trevas. [. . . ]

Vou demonstrar-lhe, matema-ticamente, e agora mesmo comos formidáveis recursos actuais daCiência — e isso de maneira fria,talvez, mas indiscutível — possoapoderar-me de graça, da pleni-tude de seu corpo, do odor de suacarne, do timbre sua voz, da fle-xibilidade de sua cintura, da lu-minosidade de olhos, das carac-terísticas de seus movimentos e deseu andar, personalidade de seuolhar, de seus traços, de sua som-bra no de sua aparência, do reflexode sua Identidade, enfim. — as-sassino de sua animalidade triun-

fante. Primeiramente vou reencar-nar toda essa exterioridade, que,para o senhor, e deliciosamentemortal, em uma Aparição cuja se-melhante a encantos HUMANOSultrapassarão sua esperança e to-dos os seus sonhos! Em se-guida, no lugar dessa alma quelhe repugna na moça de carneosso, insuflarei uma outra espé-cie de alma, menos consciente desi mesma, talvez (aliás, que im-portância tem isso? Como va-mos saber?), mais sugestiva deimpressões mil vezes mais belas,mais nobres, mais elevadas, istoé, revestidas desse toque de eterni-dade sem o que tudo não passa decomédia19 entre os que vivem. Re-

19 A referência neste contexto ao termo comédianão deixa de constituir, tomando por base a elevadaerudição de Villiers, facilmente aferível ao longo daleitura da obra, uma clara referência à comédia clás-sica, género que, após a ascensão da mesma a institu-ição do Estado, conheceu substanciais modificaçõesestruturais. “Finalmente, no momento culminante dasua evolução, a comédia adquiriu, por inspiração datragédia, clara consciência da sua missão educadora.Toda a concepção de Aristófanes acerca da essênciada sua arte se encontra impregnada desta convicção epermite colocar as suas criações, pela dignidade ar-tística e espiritual, ao lado da tragédia do seu tempo”(Vd. JAEGER, Werner;Paideia, Lisboa, EditorialAster, 1979, p. 388). Este mesmo paradoxo que co-loca a comédia num patamar idêntico ao da tragédiaparece ser aqui convocado por Villiers relativamenteà sua criação. Assim, tendem a lançar-se aqui algu-mas trevas sobre a “mulher” de Edison, recuperando,por meio de uma aparentemente inocente referênciaà comédia, as dúvidas que o estádio último destaarte, muito próximo da Tragédia parece invocar. Comefeito, na mesma obra, surge indissociável da Tragé-dia a referência a Ate, por exemplo emSete ContraTebas: “Mas por fim as maldições divinas entoaram

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o claro canto da vitória, quando a raça inteira foi vo-tada ao extermínio. Em frente da porta junto à qualforam derrubados, ergue-se o monumento que come-mora o triunfo deAte; [. . . ] ” (Vd. JAEGER, Wer-ner; Paideia, Lisboa, Editorial Aster, 1979, p. 283).A referência que aqui concretizamos aAtenão é ino-cente, nem tão pouco o excerto reproduzido. Na ver-dade, pretendemos invocar o castigo divino perante ainsolência humana de usurpação do Seu dom, convo-cando para esta reflexão (“as maldições divinas queentoaram o canto da vitória quando a raça inteirafoi votada ao extermínio”) a temática das visões apo-capípticas e proféticas que têm vindo a anunciar a ani-quilação do homem às mãos das suas criaturas, comose Villiers tivesse neste ponto sido acometido de umadas tão “lúcidas” predicções de Nostradamus. Julga-mos que este raciocínio poderá ainda ser enquadradono célebre complexo de Édipo que segundo reza alenda “à nascença, Édipo estava já marcado por umamaldição. [. . . ] trata-se de um oráculo que teriadeclarado que o filho gerado por Jocasta(a mãe deÉdipo) “mataria o pai”. [. . . ] Laio ( o rei pai deÉdipo)não quis saber deste aviso e Édipo nasceu, oque levaria mais tarde à punição do rei.” (Vd. GRI-MAL, Pierre; Dicionário da Mitologia Grega e Ro-mana, Trad. de Victor Jabouille, Lisboa, Difel, s/D., p. 127). Esta mesma profecia, julgamos, é in-vocada por Villiers no sentido de precaver a Huma-nidade para a possibilidade de análoga repetição domito edipiano, agora no respeitante à dicotomia cria-dor/criatura, para tal servindo a metáfora apresentada,isto é, a possibilidade de que as criaturas artificiaiscriadas pelos humanos possam vir, num futuro, a de-terminar o seu próprio extermínio/aniquilação, temaaliás recorrente, na saga dosTerminators. Quanto aAte a referência é ainda mais clara.Ate incarna “apersonificação do erro. Divindade leve e ágil, seuspés poisam sobre a cabeça dos mortais sem que elesse apercebam. Aquando do juramento de Zeus, emque este se comprometeu a dar a supermacia “ao pri-meiro descendente de Perseu que ai nascer” e sub-meteu desse modo Héracles a Eristeu, foiAte quem oenganou. Zeus vingou-se, precipitando-a do Olimpo.Ate caiu na Frigia sobre uma colina que recebeu onome de colina do Erro. Foi ali que Ilo construiu acidadela de Ilión (Tróia). Zeus, precipitandoAte doalto do céu, cortou-lhe para sempre a possibilidadede residir no Olimpo. É por isso que o Erro con-

produzirei fielmente e, desdobrareiessa mulher com a ajuda sublimeda Luz! E, projectando-a sobresua MATÉRIA RADIANTE, ilumi-narei com sua melancolia, mil-orde, a alma imaginária dessanova criatura, capaz de maravil-har os anjos. Aniquilarei a Ilusão!Fá-la-ei prisioneira. [. . . ]

Enfim, para resgatar-lhe o ser,pretendo poder – e provar-lhe pre-viamente, ainda uma vez que, real-mente, posso fazê-lo: tirar do limoda Ciência Humana actual um Serfeito à nossa imagem, e que serápara nós, em consequência disso,O QUE SOMOS PARA DEUS.

E o cientista jurou, levantandoa mão. [. . . ]

A essas palavras, Lorde Ewaldficou como que desvairado diantede Edison. Parecia que não queriacompreender o que lhe era propo-sto.

Depois de um minuto de as-sombro:

- Mas. . . uma tal criatura sem-pre seria apenas uma boneca in-sensível e sem inteligência!

stitui a triste partilha da Humanidade.” (Vd. GRI-MAL, Pierre; Dicionário da Mitologia Grega e Ro-mana, Trad. de Victor Jabouille, Lisboa, Difel, s/D., pp. 52-53). No fundo, estamos em crer que Vil-liers procura aqui com uma “inocente” referência àsua criatura enquanto comédia convocar toda a vastaprofusão de fantasmas e criaturas terríficas que en-sombram o espírito do Homem e a Humanidade noseu conjunto. Até porque, o proejcto de duplicaçãodo Homem pelo Homem está intrinsecamente mer-gulhado numaβρζς (hybris)que representa afinal umaambição desenfreada, desmedida, impetuosa, enfim,um desespero que se poderá vir a revelar fatal.

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— Milorde, respondeu Edi-son gravemente, juro-lhe: presteatenção para que, ao comparar omodelo e ouvindo as duas, nãoseja a humana que lhe pareça oautómato.

Ainda não tendo voltado com-pletamente a si, o rapaz sorriaamargamente, com uma espécie depalidez um tanto constrangida.

— Vamos esquecer isso, disse.O projecto é estarrecedor: o re-sultado será sempre uma máquina!Ora! O senhor não irá criar umamulher! [. . . ]

— Juro que não distinguiráuma da outra! [. . . ]

IMPOSSÍVEL, Edison. [. . . ]— O senhor pode reproduzir a

IDENTIDADE de uma mulher? Osenhor, nascido de uma mulher?

— Mil vezes mais idêntica aela..., do que ela própria! [. . . ]

— O senhor seria capaz dereproduzi-la com toda a sua be-leza? sua carne? sua voz? seuandar? seu aspecto, enfim?

— Com o Eletromagnetismoe a Matéria-radiante enganaria oinstinto de uma mãe, quanto maisa paixão de um amante. — Veja!irei reproduzi-la de tal forma quese, daqui a uns doze anos, ela ti-ver oportunidade de ver sua só-sia ideal, que ficou imutável, der-ramará lágrimas de inveja – e deassombro! [. . . ]

- Mas empreender a criaçãode um tal ser, murmurou LordeEwald, pensativo, parece-me queserá afrontar. . . Deus. [. . . ]

- Dar-lhe-á uma inteligência?- Uma inteligência? não: a IN-

TELIGÊNCIA, sim.”20

2.3 As Criaturas Artificiais noQuadro do Nosso TempoModerno – Séculos XX e XXI

Neste nosso percurso genealógico eis-nos,enfim, chegados ao século XX, pioneirona apresentação de um projecto científicocoerente e credível no sentido do solucio-namento do projecto da duplicação do ho-mem ou, se preferirmos, da assumpção dopapel de criador por parte do homem, man-tendo, todavia, no capítulo da produção fic-cional, as características mais marcantes dasobras emblemáticas que dominaram o séculoantecessor e o mesmo timbre/registo crítico,céptico e profundamente sombrio relativa-mente ao projecto da criação de vida artifi-cial e de duplicação do humano.

Observemos então, mais detalhadamentecada uma destas categorias:

2.3.1 As Criações Artificiais no Cinemae na Literatura

Este será com efeito o registo, tanto nodomínio cinematográfico quanto na litera-tura da ficção científica. Ninguém, por certo,desconhecerá pelo menos uma de entre avasta profusão de criações artificiais com quea criatividade de argumentistas e escritoresvem desde há décadas povoando o nossoimaginário colectivo.

20 L’ISLE-ADAM, Auguste Villiers de;A Eva Fu-tura, Trad. de Écila Azeredo, São Paulo, Editora daUniversidade de São Paulo, 2001, pp. 136-143.

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“As criaturas artificiais àimagem do Homem estão abun-dantemente presentes na literaturade ficção científica ou de ante-cipação. A riqueza sobre estedomínio é tal sobre a questãodos robots, dos andróides, ou doscyborgs, que é difícil escolherentre as múltiplas histórias queevocam a criação e a existência detais seres21. Tanto mais que, paraa maioria dos autores de ficçãocientífica, a questão da criaturaartificial é ponto assente e a suaexistência considerada frequente-mente um facto adquirido, sobre oqual nada há a explicar. O robottornou-se de tal forma num lugarcomum neste tipo de literaturaque, muitas vezes é a sua presençaque permite identificar o géneroliterário de um texto.”22

21 Não deixa de ser curioso o emprego nestecontexto do termo ‘seres’. Estamos em crer, comefeito, que Philippe Breton aceita já a presença detais existências como inevitável – na realidade, asunidades industriais, particularmente as destinadasà montagem de veículos automóveis, encontram-sedesde há muito repletas e mesmo super-povoadasdesta tipologia de existências, ainda que a sua aparên-cia seja largamente distante da humana e, a suaacção/”alma”, amplamente deterministas e condicio-nadas por meio de programas informáticos – apa-rentando de igual modo preparado para a sua acei-tação, enquanto iguais, posição ousamos inferir doemprego do já enunciado termo. Tal leitura das pa-lavras de Breton, justifica-se pelo sentido/conotaçãopor norma atribuídos ao termo ‘ser’ que, tende a desi-gnar propriedades e atribuições subjectivas e, portantopróprias de um sujeito – leia-se, do humano.

22 BRETON, Philippe;À Imagem do Homem – DoGolem às Criaturas Virtuais, Instituto Piaget, Lisboa,1995, pp. 24-25.

Ainda seguindo a investigação de Breton sãoconvocados para o seio da discussão dois dosmais populares autores de ficção científica:Philip K. Dick e Isaac Asimov23, enquantocontendores numa mesma causa, ainda queadvogando posições manifestamente opo-stas. O primeiro prossegue a linha pessimistado século XIX; Asimov, ao invés, procura re-unir um conjunto de criaturas dóceis, respei-tadoras da sua condição existencial e, pro-jectando, por conseguinte, uma imagem ne-cessariamente diferente das demais. Aliás,como advoga Breton “o trabalho de Asimovinscreve-se menos no contexto da literaturapropriamente dita, do que numa tentativamais militante de fazer o mundo partilharde uma certa forma de optimismo tecnoló-gico.”24

Será, contudo, no período que se seguiu àIIa Grande Guerra Mundial, especialmente apartir das décadas de 60 e 70, com especialincidência nesta última, que o tema das cria-turas artificiais na literatura e cinema adquireuma actualidade e preponderância avassala-doras.

Esta situação é directamente decorrentedos espantosos avanços científicos que se re-gistaram a este nível, demasiadamente op-timistas e que se inscrevem na emergênciade novas disciplinas científicas, que se de-dicam exclusivamente a esta temática: pelamão de Norbert Wiener surge primeiro acibernética, ainda durante a década de 40,para, anos mais tarde, já nos meados dos

23 Este último alvo de renovado interesse for forçada recente estreia do filme de Alex Proyas, I Robot,baseado, justamente numa das obras de Asimov quedata da década de 50.

24 BRETON, Philippe;À Imagem do Homem – DoGolem às Criaturas Virtuais, Instituto Piaget, Lisboa,1995, p. 25.

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anos 60 emergir uma ramificação da áreamãe que visava explicitamente a criação de“seres”/máquinas inteligentes (baseadas nosprogresso obtidos no campo das ciências in-formáticas) dispondo de capacidades senãosuperiores, pelo menos, análogas às dos hu-manos. Referimo-nos, concretamente, à In-teligência Artificial, que será objecto de umaanálise mais exaustiva em capítulos próxi-mos.

Estava então inaugurada a época de ourodas criaturas artificiais. Impulsionados pelasdescobertas científicas e por uma outra áreaque trilhava também os seus primeiros pas-sos (a divulgação científica – de que ArthurC. Clarke, Isaac Asimov e Carl Sagan são ospercursores mais conhecidos), os autores dogénero ficção científica (que, não raras ve-zes construíam histórias e enredos tomandocomo ponto de partida as suas próprias in-vestigações – qualquer um dos nomes atráscitados constituem exemplos esplendorososdessa mesma realidade25), lançam-se na pro-dução em massa de seres artificiais, não ne-cessariamente com fisionomias análogas àhumana.

A este nível, poderão ser referenciadosos exemplos dosandróides26 e cyborgs27 dasaga de George Lucas – AGuerra das Estre-las (ainda não concluída, decorridas maisde três décadas do lançamento do primeirofilme), o supercomputador presente a bordode nave espacialVoyager, HAL 9000, em

25 Apenas a título ilustrativo, atente-se nos se-guintes exemplos:Contacto– de Carl Sagan;2001 –Odisseia no Espaço– de Arthur C. Clarke;Eu, Robot– de Isaac Asimov, para citar apenas os mais conheci-dos.

26 C3PO e R2D2, respectivamente.27 A personagem de Darth Vader constitui o exem-

plo mais esclarecedor desta mesma realidade.

2001 – Odisseia no Espaço, a saga dosTer-minatorsque Arnold Schwarzenegger incar-nou28, mas também as narrativas em tornodosReplicantsdeBlade Runner, o andróideData e a civilizaçãoBorg29 da popular sérietelevisiva e cinematográficaStar Trek, as di-ferentes existências deInteligência Artificialde Steven Spielberg e, por fim, a mais re-cente produção do género materializada naadaptação de Alex Proyas à obra de IsaacAsimov,Eu, Robot.

A curta lista que aqui apresentamos pode-ria ser facilmente alargada quase até ao in-finito, tal é a vasta profusão de seres artifi-ciais presentes tanto na literatura como nocinema. Não constituindo, todavia, esse, oobjectivo central desta investigação, recen-tremos a nossa atenção na análise e enqua-dramento de cada uma destas criações numcontexto específico de positivo/negativo.

Deste modo, os andróides dos contos deGeorge Lucas representam claramente umavisão do artificial, não só enquanto extensãoe substituto do próprio homem como tam-bém até no modo em como a sua ligação,afinidade e relacionamento com o elementohumano é apresentado, uma visão construt-iva e altamente positiva na abordagem a estatemática, características, aliás, bem eviden-tes no tratamento do elemento supra-humanoenquanto uma existência colocada em planode igualdade. De entre os exemplos mais po-

28 Triologia que representa a mais conseguida dasabordagens a uma problemática também ela não detodo recente ou, mesmo, original – a confrontação dohomem com a rebelião de criaturas por si concebidaspara a superação desse mesmo criador e, por conse-guinte, a tentativa da criatura escravizar e aniquilar ocriador e o desespero deste face à perda do controlosobre as suas criações.

29 Abrevitura do inglês para cyborg.

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pulares e, no âmbito da enumeração atrás ge-rada, o figurino das criaturas presentes nasproduções de George Lucas constituem clarae inequivocamente a visão mais afirmativaface à coexistência entre o elemento humanoe o artificial.

Ainda num quadro de projecção deum artificial encarado benignamente,surge o andróideData, que as sucessivasséries/temporadas televisivas deStar Trek,celebrizaram, enquanto membro da tripu-lação daEnterprise, aceite enquanto igualaos demais tripulantes desempenhandomesmo em alguns episódios o papel-chaveno solucionamento das sucessivas dificulda-des com que a nave se defronta na sua acção.O caso deData é, ainda merecedor de umaanálise mais profunda (que retomaremos nocapítulo final deste trabalho), tendo presentea questão da confrontação natural/artificialque constitui a essência desta criatura cujomais profundo desejo (o termo empregue– desejo – é o mesmo utilizado na obra enão é inocente) de se tornar um humano deverdade – incluindo, sentir e possuir carneque sangre.

Ainda no domínio deStar Trekuma ou-tra criatura artificial é convocada, sobretudonas produções mais recentes: trata-se do pro-grama holográfico da enfermaria – uma cria-tura com imagem (holográfica – sem existên-cia material, portanto) mas, capaz de inter-agir, tal como o andróideData, totalmentecom os membros da tripulação quando o seuprograma é activado.

Inversamente, porém, a quantidade deapresentações é substancialmente superior,reflectindo um vasto e diversificado con-junto de reflexões onde imperam essen-cialmente temores e receios num ambienteque poderemos classificar como amplifica-

dor das enormes apreensões humanas nãosó relativamente à dimensão artificial daprópria “vida” mas, também e, principal-mente, no respeitante à preservação e manu-tenção/conservação da humanidade.

As abordagens a criaturas artificiais inte-ligentes, materiais ou imateriais, fisicamenteanálogas ao Homem ou sem qualquer tipo decorrespondência a este nível, constitui umadas duas temáticas recorrentes no género daficção científica30. Com efeito, assim acon-tece num sem número de criações literáriasou cinematográficas, desde as mais conhe-cidas até outras que, embora, igual ou, porvezes, mesmo superiormente válidas, nãomereceram a aceitação junto do público ouda crítica sempre tão ciosa na obscura pro-moção de alguns dos “seus” protegidos, aexpensas dos superiores valores de uma pre-tensa intelectualidade, enquanto, simultane-amente, legiões de génios e visionários sãoostracizados apenas por não figurarem nolote dos “eleitos”.

Assim, optamos também aqui por concre-tizar uma rápida e fugaz referência aos casosmais populares, sendo certo que muitos ou-tros existirão, (alguns dos quais, por nós con-hecidos, embora inomináveis por força dessamesma lógica de mercado que quase apagaos registos que não obtiveram a aceitação dogrande público, e que, por conseguinte, co-loca insuperáveis obstáculos à reunião dosmesmos).

30 A outra é a existência de vida extraterrestre –e as visões catastróficas e apocalípticas, na maioriados casos, para a espécie humana decorrentes do con-tacto com formas de vida alienígenas incomensura-velmente mais desenvolvidas e na maioria das vezescom intenções pouco “cristãs” face aos inquilinos doplaneta Terra.

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Antes de referência adicionais, voltamosa convocar a mais longa e popular de to-das as produções de ficção científica –StarTrek. Na realidade, mesmo neste conjuntode narrativas, o tema do artificial enquantoalgo de negativo e sombrio é também alvode tratamento, nomeadamente, no filme in-augural (em que a naveVoyagerregressa àTerra a fim de se reunir com o criador apósvários séculos evoluindo e reunindo infor-mação, tendo-se tornado a tal ponto pode-rosa que retorna como uma sociedade demáquinas, infinitamente superior às criatu-ras de carbono que originalmente a haviamcriado de tal modo que, até que o enredoseja efectivamente cumprido, a humanidadeé ameaçada de extinção por acção de umasua produção).

O exemplo, contudo, mais interessante,encontra-se, na nossa perspectiva, numa civi-lização – osBorg31 (abreviatura de cyborg),

31 “Borg are humanoids of different races that areenhanced with cybernetic implants, giving them im-proved mental and physical abilities. The minds of allBorg are connected via implants to a hive, a collectivemind, orchestrated by the Borg Queen. According tothemselves, the Borg only seek to "improve the qua-lity of life in the universe"and add to their own per-fection. To this end, they travel the galaxy, improvingtheir numbers and advancing by "assimilating"otherspecies and technologies, and forcing captured in-dividuals under the control of the Hive mind by in-jecting them with nanoprobes.” [Online] available:http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Star%20Trek%2FBorg.

“Os Borg (abreviatura decyborgs) são humanói-des de diferentes raças que foram optimizados comimplantes cibernéticos, que lhes conferem capacida-des mentais e físicas melhoradas. As mentes de to-dos os Borg estão conectadas através de implantes auma colmeia, uma mente colectiva, orquestrada pelaRainha Borg. De acordo consigo próprios os Borgapenas procuram “aumentar a qualidade de vida noUniverso” e incrementar a sua própria perfeição.

cuja existência e finalidade resulta de umaevolução baseada na assimilação de outrasespécies e a hibridação destas com compo-nentes de índole artificial. Esta forma de vidaé apresentada como a mais sombria e escra-vizante existência a que qualquer forma devida poderá ser “condenada”, o que confi-gura, inequivocamente, uma concepção alta-mente negativa enquanto de uma forma devida, pretensamente, superior.

O tema do artificial enquanto cópia do hu-mano é explorado não só emInteligênciaArtificial de Steven Spielberg como tambémem Blade Runnerde Ridley Scott. Em am-bos os casos e, não pretendendo ir mais alémdo que uma mera análise superficial, (umavez que a multiplicidade das questões trata-das em ambas as obras não se circunscreveunicamente àquela que será aqui alvo de aná-lise), o tema central gira em volta da substi-tuição de humanos desaparecidos por cópiasartificiais. A visão negativa não é aqui tãovincada quanto nos exemplos que atrás re-ferimos ou nos que indicaremos em seguida.Na verdade, em ambos os registos o enredo eo nível de questões suscitadas pelas históriasà volta do tema da (des)humanidade destascriaturas substitutivas, uma vez que tudo giraem torno da dificuldade de aceitar o artificiale o duplo/cópiaenquanto, por mais conse-guida e fiel que seja a reprodução, idêntico,enquantoigual aooriginal.

Eu, Robot, por seu lado, constitui a abor-dagem a uma das mais reais e efectivasapreensões do humano face ao seu análogoartificial: a rebelião da criatura contra o seu

Para este fim, viajam pela galáxia, aumentando o seunúmero e prosperando pela assimilação de outras es-pécies e tecnologias, submetendo os indivíduos captu-rados sob o controlo da mente da Colmeia injectando-os com nano-sondas.” Tradução nossa.

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Deus criador, tema que tem acompanhadotodo o desenvolvimento da problemática doartificial desde os seus antípodas nos idos de50, retomando, ainda que, num contexto al-ternativo, a complexa teia de problemas pre-sentes naquela que consideramos como, detodas entre as que maior aceitação geraram,a mais genial trilogia propagandística anti-artificial – referimo-nos, obviamente, aosepisódios doTerminator.

Ainda que tendo cedido à lógica comer-cial que habitualmente desvirtua o bom tra-balho/reflexão inicial em favor da escravidãoprevalente do capital (esta ilação é válida so-bretudo para o terceiro filme – uma “som-bra”32, quando comparado com os dois pri-meiros – especialmente, com oTerminatororiginal, incarnado por Arnold Schwarze-negger33), sucede que esta temática resulta,como acima se referiu, na mais sombria dasabordagens à questão do progresso científicoem geral e, das criaturas artificiais em parti-cular.

Com efeito, a fobia e pânico generalizadosresultantes de um eventual, (mas sempre reale potencial), perigo de rebelião das máquinascontra o criador e tentativa de aniquilação domesmo, constituem o tema central da trilo-gia, argumento habilmente explorado pelosautores em favor da inculcação de valores nasociedade e na ciência que façam a humani-dade despertar para uma consciência comumface aos efeitos perversos da evolução cientí-

32 Convoquemos aqui o conceito de “sombra” pos-tulado por Villiers emA Eva Futuraque versa sobre aimpossibilidade real de reproduzir numa cópia toda a“vida” presente num original, por mais perfeccionistaque seja a duplicação.

33 Idêntica situação veio a acontecer mais tardecom as sequelas de outro dos filmes de culto da dé-cada de 90 –Matrix.

fica e que possam suscitar um amplo, acesoe rigoroso debate em torno destas questões.

2.3.2 As Criaturas Artificiais nos Labo-ratórios Científicos e Centros deInvestigação

Esta é também uma área onde as referên-cias são imensas, de uma importância avas-saladora, em função dos efeitos que estão jáa produzir e poderão (julgamos que a pro-posição correcta será irão – não se trata deestabelecer se, ou se, antes sim quando, istoé, qual a janela temporal em que tais efei-tos poderão ser desencadeados) ainda des-poletar num futuro próximo, pelo que, umaabordagem às mesmas, por muito incipientee superficial como a que ora iniciamos possaconstituir, se assume, ainda assim, enquantoum imperativo categórico.

Ainda que tenham existido algumas abor-dagens pouco conseguidas à concepção dascriaturas artificiais na primeira metade do sé-culo XX é, essencialmente, no período dopós IIa Guerra Mundial que esta temáticaadquire, enquanto ciência, uma projecçãoapreciável. Na verdade, o final da décadade 40 representa mesmo um dos períodosmais produtivos desta disciplina emergente:os nomes de John Von Nuemann, NorbertWiener, Alan Turing, Grey Walter e Her-bert Simon, entre outros menos conheci-dos tornam-se então célebres pelas suas in-venções/criações ou teorias relativamente aodomínio do artificial.

Em Junho de 1945, John Von Neumann,“descreve a arquitectura lógica de uma novamáquina, o EDVAC, que constituirá a basedo computador moderno”34. No ano se-

34 BRETON, Philippe;À Imagem do Homem – Do

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guinte, todavia, e após várias tentativas frus-tradas no sentido da compreensão e repro-dução do sistema nervoso humano, concluique a análise mais correcta ao problema con-figura uma abordagem da base para o topo,pelo que, se junta ao movimento que outrosinvestigadores haviam já criado, centrandoas suas pesquisas nos bacteriófagos, organis-mos vivos substancialmente mais simples.

Porém a investigação de Neumann estavalonge de ser solitária. Alan Turing, terá con-fidenciado junto dos seus círculos mais ínti-mos o projecto último da construção de umanálogo artificial do cérebro humano. Tu-ring vai mesmo mais longe, apresentando umconjunto concreto de regras a partir do qualsustenta ser possível à máquina “pensar”,reproduzir o comportamento cognitivo hu-mano e, em consequência disso mesmo, “en-ganar” o homem. Esta formulação ficou ce-lebremente conhecida como o Teste de Tu-ring35.

Golem às Criaturas Virtuais, Instituto Piaget, Lisboa,1995, p. 18.

35 “You are alone in the room, except for two com-puter terminals flickering in the dim light. You use theterminals to communicate with two entities in ano-ther room, whom you cannot see. Relying solely ontheir responses to your questions, you must decidewhich is the man, which the woman. Or, in ano-ther version of the famous “imitation game” propo-sed by Alan Turing in the classic 1950 paper “Com-puter Machinery and Intelligence”, you use the ans-wers to decide which is the human, which the ma-chine. One of the two entities wants to help you guesscorrectely. His/her/its best strategy, Turing sugges-ted, may be to answer your questions truthfully. Theother entity wants to mislead you. He/she/it will tryto reproduce though the words that appear in yourterminal the characteristics of the other entity. Yourjob is to pose questions that can distinguish verbalperformance from embodied reality. If you cannottell the intelligent machine from the intelligent hu-man, your failure proves, Turing argued, that ma-

Outro matemático, Norbert Wiener doMIT, sistematizou um conjunto de proble-mas que haviam sido identificados no con-trolo das armas de disparo de longo al-cance detectados no contexto da IIa GuerraMundial. Deste trabalho nasce, em 1948,a obra que inaugura a ciência cibernética,a qual retoma um termo grego habitual-mente usado para designar a figura de umpiloto/governador. A contribuição desta dis-ciplina introduz o conceito de feed-back po-sitivo enquanto reforço de um conjunto deinstruções pré-determinadas no sentido deassegurar um controlo eficaz de máquina eseres humanos. Aliás, no capítulo inicialda sua obra de 1948 Wiener define que “opropósito da Cibernética é o de desenvol-ver uma linguagem e técnicas que nos ca-pacitem, de facto, a haver-nos com o pro-

chines can think.” In HAYLES, Katherine;How WeBecame Posthuman?, The Chicago University Press,Chicago, 1998, p. xi.

“Está sozinho na sala à excepção de dois terminaisde computador tremeluzindo na luz sombria. Usaos terminais para comunicar com duas entidades naoutra sala, que não consegue ver. Guiando-se so-mente nas respostas delas às suas questões, deverádecidir qual é o homem, qual a mulher. Ou, nou-tra versão do famoso jogo da imitação, proposto porAlan Turing, no seu escrito de 1950 “Computer Ma-chinery and Intelligence”, deverá usar as respostaspara decidir qual é o humano, qual a máquina. Umadas entidades pretende ajudá-lo a adivinhar correc-tamente. A sua melhor estratégia, sugere Turing,será responder às questões verdadeiramente. A ou-tra entidade pretende guiá-lo erroneamente. Ela ten-tará reproduzir, pelas palavras que aparecem no ter-minal, as características da outra entidade. A suatarefa será colocar questões que possam distinguiruma performance verbal de uma realidade incorpo-rada/materializada(embodied reality). Se não conse-guir distinguir a máquina inteligente do humano in-teligente, o falhanço prova, defende Turing, que asmáquinas podem pensar”. Tradução nossa.

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blema do controlo e da comunicação em ge-ral, [. . . ] ”36. Esta ideia é válida tanto para ohomem quanto para as máquinas por si de-senvolvidas.

Gray Walter é outra das referências incon-tornáveis no âmbito dos antípodas das criatu-ras artificiais. O mais famoso de entre todosos criadores de “animais” artificiais, que de-senvolveu entre as décadas de 50 e 60 umaprofusão assinalável de criaturas artificiais,as mais famosas das quais, as tartarugas ci-bernéticas.37

A década de 50 marca ainda a afirmaçãoprofética de um dos mais distintos investiga-dores de uma nova disciplina que, nascida nocontexto da cibernética, rapidamente se viriaa assumir enquanto motor principal da inves-tigação em torno da criação de seres inteli-gentes: a Inteligência Artificial. Em 1957 oPrémio Nobel Herbert Simon sustentou que

36 WIENER, Norbert;Cibernética e Sociedade – OUso Humano de Seres Humanos, Trad. de José PauloPaes, Editora Cultrix, São Paulo, 1978, p. 17.

37 “De entre os pontos mais assinaláveis do es-forço cibernético destaca-se uma série de tartaru-gas electrónicas construídas na década de 50 porum psicólogo britânico, W. Grey Walter. As primei-ras versões, com cérebros electrónicos feitos de vál-vulas subminiaturizadas, olhos giratórios compostospor válvulas fotocatódicas, microfones em vez de ou-vidos e interruptores de contacto a servir de sensores,eram capazes de localizar as suas tomadas de cor-rente de recarga eléctrica quando as baterias esta-vam em baixo, bem como de evitar sarilhos enquantose moviam. [. . . ] Possivelmente, a mais impressio-nante criação dos ciberneticistas terá sido o mons-tro de Johns Hopkins. Construído por um grupo deinvestigadores cerebrais no início da década de 60,deslocava-se pelos corredores, guiado por um sonare uma célula fotoeléctrica específica, capaz de loca-lizar a tampa das tomadas de corrente das paredesonde se ligava a fim de se alimentar”. Vd. MORA-VEC, Hans;Homens e Robots, Trad. de José LuísLima, Lisboa, Gradiva, 1992, pp. 18-19.

“de agora em diante existem no mundo má-quinas capazes de pensar, de aprender e decriar. E mais, que o campo das suas possibi-lidades é levado a alargar-se rapidamente,até ao dia em que – num futuro não muitodistante – a gama dos problemas que elasestarão aptas a tratar, equivalerá à gama deproblemas que podem ser apreendidos peloespírito humano”.38

Porém, o paradigma da Inteligência Ar-tificial cujo consenso no seio da comuni-dade científica foi amplo até ao início dadécada de 90, começou, progressivamente,a ser ultrapassado por outro. Fruto desucessivos adiamentos e outras tantas cor-recções à matriz ideológica e tecnológicade um projecto que tarda em gerar resulta-dos que permitam combater alguma desmo-tivação que se instalou junto destes cienti-stas39 , as gerações mais recentes de inves-tigadores estão a enveredar por concepçõesinovadoras e que pressupõem, não a radicalsubstituição da carne por análogos cibernéti-cos, isto é, um efectivo abandono do corpocarnal/humano/biológico, em favor de umanova existência que se dividiria numa imate-rialidade a ter lugar dentro dos computado-res com alguns laivos de materialidade queocorreriam através do recurso a corpos arti-ficiais vazios (preparados portanto a receberuma programação ou, se preferirmos, uma“alma” humana previamente digitalizada),

38 Cit. In DREYFUS, Hubert;Intelligence Artifi-cielle, mythes et limites, Paris, Flammarion, 1984, pp21-22. Cf. BRETON, Philippe;À Imagem do Homem– Do Golem às Criaturas Virtuais, Instituto Piaget,Lisboa, 1995, p. 21.

39 A este propósito consultar: FIGUEI-REDO, Alexandre; Inteligência Artificial – Umanova Caixa de Pandora?, [online] available:http://www.islasantarem.pt/jornal/indexfactualidades.htm

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antes sim, um upgrading40 , muito menos ra-dical, mas bem mais eficaz cuja finalidadeseria a optimização de uma carne que, con-forme sustenta Stelarc, está obsoleta.41

A visão inovadora ao problema procuraesbater também a profunda clivagem que re-presenta para a Humanidade a superação doHomem pelo Homem que não é mais Ho-mem, que é um misto de Homem e de im-plantes cibernéticos/tecnologia, que consistenuma amálgama de interconexões artificiaise orgânicas, resultando num estranho con-junto de material/imaterial, donde emergeuma existência que não deixando de ser hu-mana o já não é também na sua totalidadeessencial.

Esta problemática que introduziu a pre-sente reflexão/investigação entre o artificiale o não artificial e que ora recuperamos,inscreve-se num registo de procurar aferir atéque ponto é ainda humano o cyborg, à se-melhança da análise concretizada por Gior-gio Agamben a propósito do grau de anima-lidade que restava ainda numa Humanidadeque representava já essa mesma ascensãoa um estádio superior ao da própria ani-malidade, afinal, condição primeira de talexistência.

3 Virá o Duplo do Duplo aAssumir-se Enquanto oOriginal Único?

A questão que titula esta reflexão final deíndole conclusiva que agora se pretende de-

40 Vd. FIGUEIREDO, Alexandre;Morte: Morta eEnterrada?, [online] available: http://www.islasantarem.pt/jornal/indexfactualidades.htm

41 Vd. STELARC, [online] available: http://www.stelarc.va.com.au/index2.html

senvolver, procura, desde logo, inferir acercada possibilidade de as criaturas artificiaisdo Homem (enquanto duplas do duplo ori-ginal de Deus, materializado no Homem),poderem ascender à condição de um origi-nal, representado mesmo uma afronta ao Su-jeito original da criação, por meio da criaçãode Sombras (retomando a terminologia em-pregue por Villiers), superiores à própriaSombra que as criou e, capazes elas tam-bém de gerarem novas sombras e, por con-seguinte, a Vida.

Na verdade, salvo raras excepções, (nemmesmo o teste de Turing que acima repro-duzimos poderá constituir uma), o análogoartificial do homem ou, se preferirmos, oseu duplo, da literatura ao cinema, da ciên-cia à tecnologia, da filosofia à religião (nesteúltimo caso a questão assume contornos dequase heresia) é sempre apresentado en-quanto ooutro. Outroeste que, não obstante,a fiel reprodução das características que dis-tinguem o homem das demais existênciascarbónicas, sejam dos seus traços físicos ouaté das suas capacidades/atributos (quandonão mesmo as supera), a verdade é que,nunca ooutro se poderá assumir enquantoexistência humana, por maishumanaqueseja a sua artificialidade.

São inúmeros os exemplos na literatura eno cinema de criaturas que, não obstante ocuidado desenvolvimento de que foram alvo,no sentido de se obter uma total e perfeitaverosimilhança com o ente duplicado, são,ainda assim, rejeitados pela sua dissemel-hança fundadora face ao original. É assimem A Eva Futura (num momento inaugu-ral, pelo menos), em que Lorde Ewald re-cusa a cópia e a despreza antes de compreen-der que está em presença de Hadaly Habal enão de Miss Alicia Clary e, idêntica ocorrên-

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cia, sucede também em Inteligência Artifi-cial, em que o andróide produzido para col-matar o desaparecimento precoce do seu ori-ginal humano, ainda que desconhecendo asua própria condição essencial de máquinaartificial (tal é a perfeição do labor que oseu criador investiu em si – a tal ponto deconseguir enganar e espantar os caçadoresde robots), é ainda assim recusado enquanto“filho” pela sua “mãe”, visto tratar-se afinalde uma (vilipendiosa e desprezível) cópia.

A concepção mais positiva do artificial esua afirmação não enquanto mesmo/próprio,antes sim, num contexto de plena, harmo-niosa e profícua coexistência consiste napersonagem do andróideData42, (de StarTrek) cujo exemplo retomamos agora, pelainclusão de alguns dos momentos mais mar-cantes davidade Data.

“ In 2364, Data discovered his"brother"Lore, a prototype crea-

42 “Data is an android, an advanced form ofartificial life, with a positronic brain. He isroughly the equivalent of Spock in the original se-ries, in that he has a logical mind, finds humanshard to understand yet is drawn to the concept ofhumanity. This desire combined with his appa-rent innocence about the reality around him char-med viewers and made him one of the most po-pular characters of the series.” [online] available:http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Data%20(Star%20Trek) “Dataé um andróide, uma formaavançada de vida artificial, com um cérebro positró-nico (o conceito foi originalmente desenvolvido porIsaac Asimov).Ele(Data)é aproximadamente o equi-valente de Spock nas séries originais, no facto de pos-suir uma mente lógica, acha os humanos difíceis deentender mas, ainda assim é sensível(aspira ascenderà condição de)ao conceito de humanidade. Este de-sejo combinado com a sua aparente inocência acercada realidade circundante encantou os espectadores etornaram-no numa das mais populares personagensda série.” Tradução nossa.

ted by Dr. Soong. However, Lorewas psychopathic and deactivatedData in an attempt to take over theEnterprise.

In 2365, cyberneticist BruceMaddox obtained permission tohave Data reassigned for study,wherein he would be deactiva-ted, disassembled, and duplicated.Data refused, and sought and wona legal judgment declaring him asentient life-form with the samerights as other Federation citizens.

Desiring to reproduce himself,Data created a daughter, in 2366;unfortunately, she suffered a cas-cade failure of her neural systemsand died shortly after being activa-ted.

In 2367, Data was taken overby a homing signal generated byDr. Soong, who intended to givehim an emotions chip which hehad perfected in secret after beingthought dead. Data was forcedto take over the Enterprise andbring it to Soong’s lab on TerlinaIII. Unfortunately, the homing si-gnal summoned Lore as well, whotricked Soong into giving him thechip and then killed him.

In 2370, Data met a womanwho appeared to be Dr. JulianaTainer the widow and collaboratorof Dr. Soong; in a sense, Data’smother. However, she turned out tobe an android, constructed by Dr.Soong after the original Dr. Tainerdied. Unlike Data, she had beenunaware of her nature as an an-

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droid, and had divorced Dr. Soongand remarried.

In 2371, Data chose to use theemotion chip he had obtained fromLore. Despite difficulties in adap-tation, Data successfully integra-ted the emotions chip.”43

43 “Em 2364Datadescobriu o seu “irmão”Lore,um protótipo criado pelo Dr. Soong. Contudo,Loreera psicótico e desactivouDatanuma tentativa paraassumir o controlo daEnterprise. Em 2365, o ciber-neticista Bruce Maddox, obteve permissão para terDatare-destacado para estudo, donde que ele(Data)seria desactivado, desmontado e duplicado.Datare-cusou, e travou e ganhou uma batalha judicial que odeclarou uma forma de vida sensível com os mesmosdireitos tal como os outros cidadãos da Federação.Desejando reproduzir-se,Data criou uma filha, em2366; infelizmente, ela sofreu uma falha em cascatado seu sistema neural e morreu pouco tempo depoisde ter sido activada. Em 2367,Data foi assaltadopor um sinal familiar gerado pelo Dr. Soong, cujaintenção era dar-lhe umchip de emoções que ha-via aperfeiçoado em segredo, depois de ter sido dadocomo morto.Datafoi forçado a assumir o controlo daEnterprisee conduzi-la até ao laboratório de Soongem Terlina III. Infelizmente, o sinal convocou tambémLore, que enganou Soong para que este lhe desse ochip, assassinando-o de seguida.

Em 2370,Data foi raptado porLore e coagido aauxiliar uma insurreição junto com osBorg. De-pois da ameaça com que a Federação lidou,Datafoiforçado a desmontar o seu irmão. DeLore,Dataob-teve o chip de emoções que Soong lhe tinha destinado.

Em 2370,Dataconheceu uma mulher que pareciaser a Dra. Juliana Trainer, a viúva e colaboradorado Dr. Soong; em certo sentido, a “mãe” deData.Contudo, ela acabou por se revelar ser também umandróide, construído pelo Dr. Soong, após a origi-nal Dra. Trainer ter falecido. Ao contrário deData,ela desconhecia a sua natureza enquanto andróide, ehavia-se divorciado do Dr. Soong tendo casado denovo.

Em 2371,Data decidiu usar o chip de emoçõesque havia obtido deLore. Apesar das dificulda-des na adaptação,Data conseguiu integrar comsucesso o chip de emoções.” [online] available:

Não deixa pois de ser sintomático osestranhos paradoxos que se desenrolam emtorno desta personagem, bem explorados nosepisódios de um “irmão”/duplo psicótico, naluta judicial pelo reconhecimento dos seusdireitos enquanto “ser sensível”, no que tocaà entrada em cena de uma andróide que,na realidade, desconhece a sua natureza44 e,por fim, mas sobretudo, a questão que giraem torno dochip capaz de conferir emoçõesanálogas às humanas. Ignoradas não poderãoser também as importantes discussões quepoderão ser suscitadas pela ambição da má-quina em se assumir enquanto humana e, noseu desejo (o termo não é também inocente– relembre-se que apenas o humano pode de-sejar) em produzir descendência.

A partir deste pontoData deixará de serencarado enquanto um ser (ainda que de-tentor de direitos sobre a sua existência e odom do livre-arbítrio), dissemelhante, paraser encarado enquanto a mais humana detodas as criações45. As questões levanta-

http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Data%20(Star%20Trek) Tradução nossa.

44 Idêntica ocorrência é também explorada por Rid-ley Scott emBlade Runner, quando ao caçador de se-res artificiais, incarnado por Harrison Ford, é apresen-tada uma andróide que desconhece essa sua mesmacondição.

45 A questão que aqui se levanta é também de talmodo complexa que optamos apenas pela sua referên-cia. No essencial, o humano enquanto tal e o artificial,não diferem tanto quanto se poderia esperar. A suacomposição primária resulta da combinação de umavasta panóplia de átomos. O que difere é o modocomo os mesmos são combinados. Por outro lado,também o “sentir” do homem não difere em termosformais do “sentir” da máquina. Trata-se apenas deinformação: electro-química no caso do Homem; di-gital e/ou binária no caso das criaturas artificiais. Na-turalmente que a controvérsia que aqui convocamosinscreve-se num registo de tal modo complexo que

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das pela existência de um andróide com aspropriedades intrínsecas deData são por sisó merecedores de uma reflexão que a meraenumeração que aqui concretizámos não po-derá, de modo algum, explorar, sob pena dea presente reflexão investigação assumir pro-porções proibitivas.

Por último e já em jeito de ensaiar umaconclusão, para uma investigação que, jul-gamos, levanta uma tal ordem de problemasque os mesmos não poderiam ser tratados deforma diferente da violência redutora da suaprópria riqueza que aqui cometemos, pro-curaremos estabelecer até que ponto a che-gada/emergência de uma nova categoria deexistências se poderá ainda designar de hu-mano ou se, ao invés, a humanidade camin-hará, na verdade, enquanto essência do seuser, para uma hibridização em torno do arti-ficial, dando origem aos tão temidos cyborgs.

A questão é tanto mais oportuna, quantoa tecnologia tem vindo progressivamente ainvadir o elemento orgânico humano46 e, asua ulterior difusão a escalas bastante alar-gadas irá provocar, conforme sustenta Ri-chard Dooling no seu ensaio ficcionalDiaryof an Immortal Man47 , não só, num pri-meiro momento uma enorme e insustentá-vel pressão sobre os sistemas de saúde eas gerações mais novas que terão de finan-ciar a preservação dos mais velhos e que jánão contribuem para a sustentabilidade fi-

comporta matéria suficiente para a redacção de umtratado unicamente consagrado à reflexão das múlti-plas questões daqui decorrentes.

46 A este propósito, consultar: FIGUEIREDO,Alexandre; Corpo – A Última Fronteira, [online]available: http://www.islasantarem.pt/jornal/indexfactualidades.htm

47 DOOLING, Richard; Diary of an Im-mortal Man, Maio de 2002, [online] available:http://www.kurzweilai.net/articles/art0003.html

nanceira dessas mesmas instituições como,também, num tempo subsequente, produzir aemergência de toda uma nova geração de hu-manos puristas, determinados em reclamara sua humanidade, nem que, para tal ten-ham de renunciar à família e a uma existên-cia (expectavelmente) mais confortável, re-cusando e combatendo toda a artificialidadee renegando para uma condição inferior (oumesmo agindo como se de inimigos se tra-tassem) todos quantos optaram pela conver-são ao hibridismo cibernético.

Em suma, como parece de algum modoantever Dooling, a humanidade parece, pa-radoxalmente, caminhar para uma cada vezmais evidente fractura entre a organicidadee a artificialidade quando, seja na ficção ouna ciência o trilho aparenta ser, justamente,o oposto.

Refira-se, todavia que, tanto a obra e di-fusão científicas, como a literatura ou o ci-nema de ficção científica pouco têm pro-curado combater esta tendência. Se, porum lado as suas produções anunciam comoinevitável a superação do homem pelo or-ganismo humano-cibernético, a verdade éque o trabalho que tem vindo a ser efec-tivado neste domínio a fim de mitigar as pro-fundas clivagens e justificadas apreensõesemergentes e decorrentes do projecto dapós-humanidade, tem sido insuficiente e emnada contribuído no sentido de uma gene-ralizada preparação da opinião pública paraum tempo que parece cada vez mais pró-ximo...

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