o eu e o outro no filme documentário: uma possibilidade de

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O Eu e o Outro no Filme Documentário: uma possibilidade de encontro * Sarah Yakhni Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Artes Índice 1 Resumo 1 2 Résumé 2 3 Introdução 2 4 Motivação 3 5 Realidade e Representação 7 6 Realidade e Representação no Docu- mentário 10 6.1 Documentário Expositivo .... 11 6.2 Documentário de Observação . 12 6.3 Documentário Interativo ou Ci- nema Direto ........... 12 6.4 Documentário Reflexivo .... 14 7 Espectador - Identificação e Repercus- são 15 8 Arte e Intuição 17 9 O Encontro 21 10Realidade x Experiência – Uma abor- dagem dialógica 24 11A Fala 30 12Representação da Fala – Cinema di- reto 33 13O Tempo 35 14Representação do Tempo 37 * Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Multimeios sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Passos. 15O Tempo Real 40 16Conclusão 41 17Bibliografia 42 17.1 Revistas ............. 43 À Fernando Passos Pelo olhar sempre atento ao que há de único e singular em cada um de nós À Jean Louis Leonhardt Pelas primeiras idéias que me levaram a percorrer esse caminho 1 Resumo Nosso trabalho situa-se dentro do contexto dos documentários que se constituem através do encontro entre o realizador e o sujeito do filme. Partimos do pressuposto de que a quali- dade da presença do realizador é fundamen- tal para a relação que acontece durante as fil- magens no sentido de trazer para o plano da representação elementos marcantes da obra como um todo. O objetivo do nosso trabalho é investigar a relação que se estabelece entre o realizador cinematográfico e o sujeito que se constitui no tema do filme documentário. A nossa pre- ocupação é investigar as condições para que

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Page 1: O Eu e o Outro no Filme Documentário: uma possibilidade de

O Eu e o Outro no Filme Documentário: umapossibilidade de encontro∗

Sarah YakhniUniversidade Estadual de Campinas - Instituto de Artes

Índice

1 Resumo 12 Résumé 23 Introdução 24 Motivação 35 Realidade e Representação 76 Realidade e Representação no Docu-

mentário 106.1 Documentário Expositivo. . . . 116.2 Documentário de Observação. 126.3 Documentário Interativo ou Ci-

nema Direto . . . . . . . . . . . 126.4 Documentário Reflexivo . . . . 147 Espectador - Identificação e Repercus-

são 158 Arte e Intuição 179 O Encontro 2110Realidade x Experiência – Uma abor-

dagem dialógica 2411A Fala 3012Representação da Fala – Cinema di-

reto 3313O Tempo 3514Representação do Tempo 37

∗Dissertação apresentada ao Curso de Mestradoem Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMPcomo requisito parcial para a obtenção do grau deMestre em Multimeios sob a orientação do Prof. Dr.Fernando Passos.

15O Tempo Real 4016Conclusão 4117Bibliografia 4217.1 Revistas. . . . . . . . . . . . . 43

À Fernando PassosPelo olhar sempre atento ao que há deúnico e singular em cada um de nós

À Jean Louis LeonhardtPelas primeiras idéias que me levaram apercorrer esse caminho

1 Resumo

Nosso trabalho situa-se dentro do contextodos documentários que se constituem atravésdo encontro entre o realizador e o sujeito dofilme.

Partimos do pressuposto de que aquali-dadeda presença do realizador é fundamen-tal para a relação que acontece durante as fil-magens no sentido de trazer para o plano darepresentação elementos marcantes da obracomo um todo.

O objetivo do nosso trabalho é investigara relação que se estabelece entre o realizadorcinematográfico e o sujeito que se constituino tema do filme documentário. A nossa pre-ocupação é investigar as condições para que

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esse encontro aconteça de maneira autênticae reveladora e perceber a sua contribuição narealização dessa representação artística que éo documentário.

2 Résumé

Notre oeuvre se situe dans le context des do-cumentaires Qui se composent à travers larencontre entre le réalisateur et le sujet dufilm. Nous partons du pressuposé que laqua-lité de la présence du réalisateur est fonda-mentale pour le rapport Qui se passa durantles filmages dans le sense d’apporter au plande la représentation des éléments marquantsde l’oeuvre dans sa totalité.

3 Introdução

O pressuposto básico dessa pesquisa é a per-cepção, adquirida através da experiência pro-fissional na realização de documentários, deque a qualidade da presença do realizador édeterminante para a relação que se instauraentre esse e o sujeito que é o tema do filme.O contexto desse pressuposto se refere aosdocumentários que trabalham com o encon-tro de dois sujeitos – o realizador e o outroque se constitui no assunto do filme.

Esse tipo de documentário situa-se, neces-sariamente, na fronteira onde acontece o en-contro entre duas pessoas, no domínio dointer-humano, sendo que o caráter dialógicoda relação que se estabelece entre o reali-zador e o outro pode ser considerado comomatéria que se constitui no centro nevrálgicopor onde passam muitas das ramificações docorpo do filme como um todo. Dentro dessecontexto, o nosso interesse é explorar o uni-verso desse encontro, as suas peculiaridades,no sentido de desvendar as condições para

que esse encontro se dê de forma integral eautêntica.

Buscamos como referência para nossa dis-cussão a filosofia dialógica de Martin Buberque inaugura uma investigação profunda einovadora sobre o que denominou de “esferado inter-humano”, onde o diálogo acontece.O autor considera que o diálogo verdadeiropassa a existir quando contém a “palavra ver-dadeira’ que nasce do encontro genuíno en-tre os homens.

De Carl Rogers, psicoterapeuta próximoao pensamento existencial fenomenológico,tomamos os conceitos de “congruência” e“autenticidade” enquanto condições que tor-nam as relações humanas mais facilitadorasde crescimento, de aperfeiçoamento e de ma-turidade dos indivíduos.

O documentário que tem o outro comotema quase sempre tem a entrevista ou de-poimento como base da sua narrativa. Den-tro dessa perspectiva recorremos a MerleauPonty que faz uma distinção entre “fala au-têntica”, aquela que formula pela primeiravez e a “expressão segunda”, aquela cons-tituída de uma fala sobre falas, que repete oque já foi ouvido e não implica na presençatotal da pessoa que fala.

Consideramos o cinema como obra esté-tica tanto no momento da sua criação quantono momento da fruição por parte do espec-tador. Este é o elo de ligação da obra com omundo. No momento da fruição abre-se umanova fronteira do inter-humano, na qual rea-lizador e espectador dialogam e se vinculampor meio do filme. Nesse encontro de subje-tividades é que se define o destino da obra dearte.

O ato de criação apresenta elementos fun-damentais para o entendimento da transubje-tividade da obra de arte, ou, em outras pa-

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lavras, da sua comunicabilidade. A obra dearte é feita de subjetividades e dialoga atra-vés dessas subjetividades. A amplitude dessediálogo depende da obra alcançar um caráteruniversal, de conseguir “falar” à outras sub-jetividades. Essa possibilidade de comunica-ção inerente à obra de arte é considerada soba ótica dos conceitos de ressonância e reper-cussão desenvolvidos por Bachelard em suainvestigação sobre a imagem poética.

Apontamos para o caráter pré-lógico epré-conceitual da arte tendo como parâme-tros a teoria da estética formulada por Bene-detto Croce, filósofo, historiador e crítico li-terário italiano, para o qual, a intuição exerceum papel fundamental na criação artística.Nesse sentido, a representação artística for-mula de maneira individual, única e singular.

No contexto da criação e realização de umobra como o documentário aqui analisado,consideramos que o encontro com o outro,o conhecimento profundo entre duas subje-tividades que se dão a conhecer, traz em sielementos que farão parte da matéria feita deimpressões e afetos, nesse todo coeso que éa intuição, em que o realizador do filme mer-gulha, num primeiro momento, para que seconcretize a expressão artística em suas di-ferentes formas e matizes que traduzem a in-dividualidade e a subjetividade do artista.

O encontro com o outro torna-se, assim,parte fundamental da subjetividade do reali-zador, da maneira singular com que intuiti-vamente, escolherá a forma de contar a suahistória.

Uma vez definidas algumas das condiçõesessenciais para que se instaure uma relaçãodialógica entre o realizador e o outro e de-finida a sua importância na realização dofilme, a questão é saber como passar da rela-

ção, propriamente dita, para a sua represen-tação cinematográfica.

Consideramos essa questão tendo comoponto de partida o ritmo, que expressa ofluxo de tempo no interior do fotograma.Tarkovski, cineasta russo, considera que otempo específico que flui através das toma-das cria o ritmo do filme, o ritmo não é deter-minado pela extensão das peças montadas,mas, sim, pela pressão do tempo que passaatravés delas. Essa observação do cineastanos remete à principal característica da artecinematográfica – o movimento em sua du-ração, ou, em outras palavras, o movimentotranscorrido em um intervalo de tempo.

No tipo de documentário aqui analisadoesse fluir do tempo é muito marcado pela falado outro. O conteúdo da fala, a sua expres-são, marca o seu tempo.

O fluxo do tempo precisa ser filmado eprecisa ser representado. A duração de umplano não pode ser arbitrária. Essa decisãoestá ligada à percepção desse tempo internoem cada tomada.

O tempo real do acontecimento em lin-guagem cinematográfica se traduz através doplano seqüência, sem cortes, como a melhormaneira de representar o fluxo do tempo esua vibração.

A qualidade do encontro segue sendo a re-ferência principal também no plano da repre-sentação, no sentido de determinar as deci-sões do realizador na construção da narrativafílmica.

4 Motivação

O interesse dessa pesquisa não partiu de umaidéia e sim de uma sensação que se delineavaa partir da experiência profissional ao longodos anos na realização de documentários. O

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que nos primeiros tempos era uma intuiçãofoi se firmando como uma percepção claraconforme a experiência ia se acumulando - apercepção de que a qualidade da presença dorealizador é determinante para a relação quese instaura durante as filmagens e o para oque fica registrado seja na película, no casodo filme, seja na fita, no caso do vídeo.

Uma das características básicas do docu-mentário é a de representar um fragmento domundo histórico, o espaço documental é his-tórico e o realizador se situa como parte inte-grante desse mundo. Nesse sentido, o pontode partida do realizador está sempre referidoa alguém, a um grupo de pessoas, instituição,a um lugar ou manifestação cultural. O “ou-tro” está sempre presente como representado, revelando o compromisso social e pessoaldo cineasta com esse “outro”. Nesse sen-tido, o filme é sempre um registro da singu-laridade do realizador na sua relação com ooutro e com o mundo.

Essa relação sempre me pareceu crucial edeterminante. Hoje, acredito que o encontrocom o outro só se revela em sua totalidadequando ele acontece entre duas subjetivida-des, entre dois(ou mais) sujeitos singulares epresentes inteiramente, com a totalidade deseu ser.

O documentário que está em questão nessapesquisa é aquele em que o “outro” é o temado filme. A característica principal desse do-cumentário é se constituir dentro do domíniodo inter-humano, da relação que o diretor es-tabelece com as pessoas que está filmando.

A percepção de que essa relação é funda-mental nesse tipo de documentário foi se for-mando ao longo dos meus encontros com asmais diferentes pessoas que serviram de re-ferência para os filmes ou vídeos. Eu perce-bia que existiam encontros verdadeiros, ge-

nuínos, e outros nem tanto.... As explicaçõespodiam ser muitas e diversas, mas havia acerteza de que quando acontecia um verda-deiro encontro, isto certamente se traduzianas imagens gravadas, nos depoimentos obti-dos. Os depoimentos vinham carregados deum “quê” a mais, de algo que todos perce-biam, algo como uma sinceridade no olhar,um tom pessoal, uma transparência na falaque tocava quem via e ouvia de maneira maisprofunda.

Como pretender falar do outro semconhecê-lo e sem dar-se a conhecer? - essasempre foi uma questão que me acompa-nhou. Os documentários mais tocantes, ascenas que nunca esquecemos são exatamenteaquelas que traduzem, que refletem essa ver-dade subjetiva de cada um, fazendo dessapessoa alguém singular, diferente de todosos outros seres humanos. Quando essa sub-jetividade consegue ser transmitida na telaé sempre um bom momento, um momentode partilha com alguém que se deu a conhe-cer, alguém que se entregou de corpo e almanaquele momento quando, certamente, haviaum realizador atento e presente a seu lado,que por sua vez, também se deu a conhecernesse encontro.

O verdadeiro encontro tem uma qualidadeluminosa, elétrica, energética, pertence aomundo das coisas vivas, que respiram, quenos transportam para um mundo cheio designificado interior, que alimenta e dá sig-nificado à existência de cada um. Nessesmomentos o mundo se abre para além dasaparências e sentimos a comunhão entre osseres. Esses são instantes preciosos - comoaquela sensação que tive (estava realizandoum programa para televisão) ao conhecer umagricultor , já de idade avançada, seu rostomarcado pela lida na terra e pelo sol que vin-

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cara sua pela curtida, me contando da sua re-lação com a terra, o quanto era fundamen-tal para sua existência plantar e colher, ver aterra brotar e dar os seus frutos... E que aliele queria acabar os seus dias - feliz comoquando tinha começado ainda criança... Osseus olhos transparentes marejaram... E eume senti inundada por uma emoção que car-rego até hoje....Ou ainda aquele menino queme disse, olhos nos olhos, e com um grandesorriso estampado em seu rosto, que as árvo-res eram suas amigas e que só faltava elassaírem andando...Os exemplos são muitosmas a emoção é sempre muito parecida - écomo uma conexão direta com tudo que évivo...

O trabalho do realizador do documentá-rio cujo tema é o outro, situa-se, necessari-amente, na zona do encontro onde a recipro-cidade da ação é que vai determinar o rumodos acontecimentos e esse percurso precisaser captado e traduzido em linguagem cine-matográfica. Cada decisão do diretor em re-lação à linguagem envolvida no processo -posição da câmera, presença ou não do reali-zador no quadro, microfone direcional, semfio ou lapela, plano seqüência ou cortes, per-guntas em off ou não, etc. - determina oponto de vista dentro do qual os aconteci-mentos irão se desenrolar, também reflete otipo de aproximação e envolvimento que seterá com o outro; determina a qualidade dapresença que terá esse realizador em relaçãoao outro. A utilização de diferentes recur-sos da linguagem cinematográfica é, a cadamomento, uma opção do realizador, opçãona qual os valores como presença, reciproci-dade, integridade e comunhão, precisam serlevados em conta a cada instante, a cada cena, a cada gesto. Em última instância, essasopções fazem parte da construção artística

do realizador, da expressão sensível que daráforma à obra de maneira subjetiva e singular.

Essas constatações me levaram a formularum itinerário de pesquisa:

1) como desenvolver uma relação ver-dadeira, como fundamentar um encontroentre duas subjetividades que partilhemprofundamente um momento onde surja onovo, o que antes não se sabia, o inesperado.Um momento onde o singular se manifesteem sua plenitude, tendo como pressupostobásico a autenticidade dos parceiros.

2) quais os requisitos básicos para quehaja uma conversa ou uma fala genuínasem cair na repetição de idéias e conceitospré-determinados antes mesmo do encontro.

3) como conciliar a utilização dos elemen-tos narrativos à disposição do realizador comessa postura voltada para o inter-humano,que caminhos será preciso percorrer parase conseguir atravessar o mundo prontodas aparências e desvendar o horizontesempre mutável que permeia um verdadeiroencontro e de alguma maneira traduzir outranspor essa qualidade para as telas.

No caminho percorrido na formulaçãodessas questões foi tomando corpo a percep-ção da proximidade existente entre elas e afilosofia dialógica de Martim Buber (1878 -1965)1 . Sua obra inaugura uma investigaçãoprofunda e inovadora sobre o que denominou

1Martin Buber nasceu em Viena em 1978. Seusestudos sobre a Bíblia e o judaísmo tiveram uma in-fluência decisiva na teologia contemporânea. A suafilosofia do diálogo encontrada no livro Eu e Tu, pu-blicadoem 1923, situa-se como relevante contribuiçãono âmbito das ciências humanas em geral e da filoso-

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de “esfera do inter humano”, onde o diálogoacontece. O fato primordial de seu pensa-mento é a relação, o diálogo na atitude exis-tencial do face-à-face. Buber considera queo diálogo verdadeiro passa a existir quandocontém a “palavra verdadeira” que nasce doencontro genuíno entre os homens. A filoso-fia buberiana evoca no pensamento contem-porâneo a urgência do resgate daquilo queo homem tem de mais característico – a suahumanidade.

Carl Rogers, psicoterapeuta, que em suasinvestigações esteve sempre próximo ao pen-samento existencial fenomenológico, no sen-tido de resgatar a experiência subjetiva,aponta para as condições que tornam qual-quer relação, seja em terapia ou numa rela-ção interpessoal, mais facilitadora do cresci-mento, da abertura, do aperfeiçoamento e damaturidade dos indivíduos.

Nesse sentido, Rogers caminha numa di-reção complementar à de Buber, acrescen-tando elementos importantes na discussãoque aqui nos empenhamos, que é a de en-contrar fundamentos para o encontro verda-deiro entre duas subjetividades na realizaçãodo documentário.

Merleau Ponty2 é outro autor que se apre-sentou no caminho de nossas indagações.Ele foi aluno de Husserl, fundador da fe-nomenologia, e abordou com profundidadea questão da linguagem num enfoque feno-menológico Ele faz uma distinção entre “falaautêntica”, aquela que formula pela primeiravez e a “expressão segunda”, aquela consti-tuída de uma fala sobre falas, que compõea linguagem empírica ordinária, é a fala que

fia antropologia filosófica. A filosofia de relação é otema central de toda a sua reflexão.

2Ponty, M. Merleau, Fenomenologia da Percep-ção, Livraria Freitas Bastos, São Paulo, 1971.

repete o que já foi ouvido, pensado e não im-plica na presença total da pessoa que fala.

Em sua rápida incursão pelo cinema, naconferência de 1945, “O Cinema e a NovaPsicologia” Merleau Ponty afirma uma fe-nomenologia que se distancia daquela bazi-niana fundamentada na crença na dimensão“ontológica” do processo fotográfico, suaobjetividade essencial, e a conseqüente cre-dibilidade que cerca a imagem. A essa idéiaMerleau Ponty irá se contrapor, afirmando aambigüidade vinculada à negação de qual-quer absoluto, à admissão de uma incom-pletude fundamental da percepção, dada acondição do homem como ser mergulhadono mundo. O interesse do filósofo pelo ci-nema estará vinculado ao filme como objetode percepção.

Para ele, a imagem cinematográfica apre-senta uma figuração do comportamento doshomens – o estar-em-situação, inserido den-tro de condições determinadas. No cinematorna-se manifesta a união entre mente ecorpo, mente e mundo, e a expressão de umno outro.

Nossa pesquisa está centrada nos docu-mentários que trabalham com o encontro dedois sujeitos – o realizador e o outro que seconstitui no assunto do filme. O nosso inte-resse é explorar o universo desse encontro, assuas características, saber quais são as condi-ções para que esse encontro se dê de formaintegral possibilitando a revelação da essên-cia desse outro e a descoberta do que há desingular e único naquela pessoa.

Acreditamos que a qualidade da relaçãoque o realizador empreende com o sujeitodo filme, no sentido de fazer emergir umarelação verdadeira, de descoberta genuína,aquela que introduz o novo, é bastante rele-vante porque traz em si elementos imprescin-

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díveis que serão introjetados pela intuição doartista na sua matéria subjetivada e que esta-rão presentes no momento de sua expressãoartística.

5 Realidade e Representação

O cinema, desde a sua criação, sempre es-teve associado à noção de realismo, uma vezque a sua imagem reproduz uma caracterís-tica essencial ao mundo visível, que é o mo-vimento.

A relação entre discurso cinematográficoe a realidade foi e continua sendo uma dasgrandes discussões entre as diferentes postu-ras estético-ideológicas desde o surgimentodo cinema. Ismail Xavier3, aponta para ofato de que o eixo das discussões está justa-mente no modo como devem ser encaradasas possibilidades oferecidas pelo processocinematográfico - desde o momento da fil-magem até o processo de montagem. O au-tor aponta o fato de que, no caso do cinema, atradicional celebração do “realismo” da ima-gem cinematográfica é mais intensa dado odesenvolvimento temporal de sua imagem,capaz de reproduzir, não só mais uma pro-priedade do mundo visível, mas justamenteuma propriedade essencial à sua natureza –o movimento.

O desenvolvimento da semiótica à par-tir da década de 60 se deu justamente pelaconstatação da iconicidade e indexalidade daimagem na fotografia e no cinema.

A impressão de realidade no cinema,desde a primeira projeção cinematográficaem 1985 até os dias de hoje, sempre foi oponto de partida para as discussões teóricas

3Xavier, Ismail, A Experiência do Cinema , Edi-tora Graal Embrafilme, Rio de Janeiro, 1983.

na área, principalmente a polêmica desenvol-vida na França entre Jean Mitry e ChristianMetz de um lado, e as revistas Cahiers du Ci-néma e Cinéthique do outro.

O movimento efetivo dos elementos visí-veis, como considera o autor, será respon-sável por uma nova forma de presença doespaço “fora da tela” . A imagem estende-se por um determinado intervalo de tempo ealgo pode mover-se de dentro para fora docampo de visão ou vice-versa. Essa é umapossibilidade específica da imagem cinema-tográfica, graças à sua duração.

Nesse sentido, a dimensão temporal quecaracteriza o cinema, como aponta IsmailXavier, define um novo sentido para as bor-das do quadro, não mais simplesmente limi-tes de uma composição, mas ponto de tensãooriginário de transformações na configura-ção dada. O movimento de câmera reforça aimpressão de que há um mundo do lado de lá,que existe independente da câmera em con-tinuidade ao espaço da imagem percebida.Esse aspecto fez com que se associasse o re-tângulo da tela à moldura da pintura, permi-tindo a identificação do retângulo da imagemcomo uma espécie de “janela” que apresentaum universo que existe por si mesmo, apesarde separado do nosso mundo pela superfícieda tela.

O autor chama a atenção para o fato deque o salto estabelecido pelo corte de umaimagem e sua substituição brusca por outraimagem, é um momento em que pode serposta em cheque a “semelhança” da repre-sentação frente ao mundo visível e, mais de-cisivamente ainda, é o momento de colapsoda “objetividade” contida na indexalidade daimagem.

Esse fato nos remete à intervenção e ma-nipulação humana no processo da montagem

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cinematográfica e abre o campo da discussãoem relação a representação frente à realidadena prática da realização cinematográfica.

A descontinuidade inerente ao processo demontagem será o ponto de partida na dis-cussão e concepção de como se deve con-siderar a relação imagem-som na prática ci-nematográfica. Por um lado, estão aque-les que consideram a montagem uma espé-cie de heresia frente à objetividade do regis-tro cinematográfico e a correlata “impressãode realidade”, por outro lado a montagem évista como fundadora do discurso cinemato-gráfico - a manipulação das imagens tem oobjetivo explícito de romper com o ilusio-nismo vislumbrado pela “janela” do cinema,afirmando-se como condição básica da nar-rativa.

Essas alternativas se traduzem, na prática,na opção entre buscar a neutralização da des-continuidade resultante da substituição dasimagens ou buscar a explicitação dessa des-continuidade, sendo que essa articulação sedará, principalmente, no momento da mon-tagem.

As vertentes que optam pela continuidadenarrativa se utilizam do método da Decupa-gem Clássica, elaborado segundo regras enormas que apontam para a continuidade vi-sual que procura manter o espectador den-tro da “janela da ilusão”. Nesse padrãorealiza-se uma combinação dos planos nosentido de se conseguir uma seqüência flu-ente e contínua das imagens que “camufla” adescontinuidade real das imagens processa-das na montagem, reconstituindo a continui-dade espaço-temporal através da lógica die-gética. Na decupagem clássica a montagemsegue regras específicas para tornar-se invisí-vel enquanto processo – a impressão que re-sulta é que o espectador encontra-se frente à

frente com a própria realidade dos fatos apre-sentados.

Nesse sentido, a atenção e identificaçãodo espectador são garantidas pela sintaxede uma narrativa contínua que obedece auma demanda de motivações psicológicas.Essa linha de representação narrativa tem emGriffith o marco de quem primeiro sistemati-zou esse modelo seguido por Pudovkin, prin-cipal discípulo de Kulechov, que deu uma di-mensão teórica e didática aos fundamentosdesse cinema fundado numa montagem quecria a continuidade, ritmo e sucessão lógicada narrativa.

O cinema alinhado à “janela de ilusão”que segue as regras da decupagem clássicatem sua representação maior na filmografiaque se consolidou nos Estados Unidos de-pois de 1914. Aliado a um método de re-presentação dos atores no modelo natura-lista, filmagens em estúdios e estruturaçãoem gêneros narrativos bem precisos, o ci-nema hollywoodiano se apoia na identifica-ção, por parte do público, do mundo repre-sentado com o mundo real, como se o dis-curso cinematográfico não tivesse sido cons-truído, já que tudo é feito de maneira a tornarinvisível qualquer vestígio dos meios de pro-dução da obra cinematográfica.

Em relação aos documentários, a narra-tiva que mais se aproxima dessa abordagemé aquela que se utiliza de elementos narrati-vos da ficção na reconstituição de fatos, nautilização de atores numa perspectiva natu-ralista de representação que contribuem paraa diluição dos contornos entre a ficção e odocumentário. Filmes como “Iracema” deJorge Bodanski, “O Velho” de Toni Venturie “Corisco e Dadá” são alguns exemplos dedocumentários brasileiros mais recentes rea-lizados nessa linha.

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Os caminhos alternativos ao cinema natu-ralista foram muitos e muitas vezes identifi-cados com as vanguardas ao longo dos tem-pos. Citaremos só alguns que consideramosmais representativos.

Um dos caminhos alternativos ao cinemanaturalista foi trilhado, como lembra IsmailXavier, pelo expressionismo, tendência quecomeçou a fazer uso de recursos estilísticosque se afirmaram à partir de “O Gabinetede Dr. Caligari” , de 1919. Sua caracte-rística maior é a elaboração de um espaçodramático artificialmente construído por umtrabalho cenográfico que procura os mais di-versos efeitos que instauram uma ordem vi-sual muito distante da ilusão de profundi-dade dada pelas leis da perspectiva. Dos seuscenários mais utilizados, o expressionismolançava mão de distorções, linhas curvas eformas que se distanciavam do espaço natu-ral.

Com a perspectiva distorcida, a desconti-nuidade do espaço, as sombras exageradas,o cinema expressionista quer chamar aten-ção para o mundo invisível, desmascarandoo mundo visível. “Ancorado na idéia de ex-pressão como encarnação direta do espíritona matéria, tal cinema não discursa, nem se-quer fotografa o real; ele tem visões.”4

A vanguarda francesa do começo dos anos20 também aponta para outros caminhos quenão o naturalismo, como considera ainda Is-mail Xavier. Esse cinema tem como pers-pectiva a expressão do essencial e a emer-gência da dimensão poética da imagem, queorigina-se nas virtudes da própria imagemluminosa e numa relação mais sensorial como mundo. O importante é cada imagem sin-gular e seu poder gerador de uma nova ex-

4Xavier, Ismail, op. cit.

periência do mundo visível, num elogio àsvirtudes plásticas de cada relação câmera-objeto particular.

Dentro de tal perspectiva de realização, oreferencial musical é assumido de perto porcineastas como Delluc, V. Eggeling e HansRichter que trabalham com a dinâmica da luze os seus efeitos geométricos e rítmicos nasuperfície da tela, se aproximando do dese-nho animado. Dissolve-se assim, a narrativae o espaço dramático da ação e qualquer re-ferência a um espaço-tempo natural exteriorao filme.

Na Rússia, também na década de 20, Ei-senstein preconizava o cinema revolucioná-rio, que caminhava, como coloca Ismail Xa-vier, rumo a uma estrutura francamente dis-cursiva, baseada na combinação de elemen-tos e comentários em torno de uma situa-ção factual básica, assumindo o princípio deMaiakovski: sem forma revolucionária nãohá arte revolucionária.

Eisenstein propõe a “montagem figura-tiva” – uma montagem que interrompe ofluxo dos acontecimentos e marca a interven-ção do sujeito do discurso através da inser-ção de planos que destróem a continuidadedo espaço diegético, se transformando emparte integrante da exposição de uma idéia.

Para o cineasta russo trata-se de construiridéias e pensamentos através do que ele de-fine por justaposição de imagens que irão seconstituir no discurso do filme. A sínteseproduzida por tal montagem faz com que ocinema passe da “esfera da ação” para a “es-fera da significância, do entendimento”, as-sumindo a sua qualidade de discurso, comoaponta Ismail Xavier.

No campo da realização documental,Dziga Vertov, outro cineasta russo marcoupresença fundamental à partir da década de

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20. A sua proposta é captar a vida em seuimproviso, em sua autenticidade, principal-mente a vida que acontece nas ruas. A mon-tagem é marcada, é o lugar privilegiado ondeas imagens se articulam tendo em vista aconstrução e a revelação da verdade. A suaunidade de trabalho é o fotograma, e é a par-tir do choque entre as imagens que o discursoé articulado. Esse choque é dado pelo en-contro dos vários procedimentos estilísticoscomo ângulos escolhidos, movimento, luz,velocidade que vão potencializar a dimensãoorgânica da vida captada em sua autentici-dade.

O cinema surrealista da década de 50, quetem em Luiz Buñuel o seu maior represen-tante, preconizava a liberdade e sua imagensdeveriam obedecer a outros imperativos quenão os da verossimilhança e os do respeitoàs regras da percepção comum. Nessa pers-pectiva, ainda segundo Ismail Xavier, a mon-tagem obedecia aos imperativos únicos daimaginação, numa postura de agressão diretaà decupagem clássica. Dentro da ótica sur-realista, a montagem se distancia da ilusãode continuidade , criando uma cadeia asso-ciativa entre as imagens, muitas vezes, semreferências de espaço e tempo claras. O en-cadeamento das imagens obedece ao princí-pio da “associação livre” que tem como refe-rência o modelo de composição das imagensoníricas.

O cinema da década de 60 vem ampliaro leque da gramática cinematográfica e suaspossibilidades narrativas. Na França é o mo-mento da ascensão da Revista Cinéthique ea substituição da perspectiva existencial –fenomenológica pelo retorno a Eisenstein eVertov e o cinema de montagem. Abrem-seas possibilidades narrativas do discurso cine-matográfico no sentido de revelar o próprio

aparato técnico da realização cinematográ-fica.

A preocupação maior não é mais esconderou camuflar a descontinuidade presente emcada corte mas sim revelar que se trata deuma narração, chamar a atenção do especta-dor para o processo e assim ir de encontroà identificação afetiva com o filme, que nãomais se confunde com a realidade, se revelacomo objeto. É a época do surgimento dosom direto e de câmeras portáteis que per-dem o apoio do tripé e ganham vida pelasmãos do cinegrafista. As experimentaçõesde linguagem estão na ordem do dia tantono documentário como na ficção. Godardé um bom exemplo desse cinema reveladorde seus mecanismos internos quando utilizaa narrativa de maneira diversa e descontínuatrazendo para o primeiro plano a própria lin-guagem cinematográfica.

Essas diferentes linhas de abordagem darepresentação cinematográfica, apesar demais presentes em determinados períodos dahistória do cinema, não se apresentam demaneira cronológica mas convivem lado alado dentro da cinematografia mundial até osdias atuais.

6 Realidade e Representação noDocumentário

A “impressão de realidade” é duplamentesignificativa para o gênero documentário, jáque um dos princípios que fundamentam suanarrativa é estar referido diretamente a fatoshistóricos. Nesse sentido, a primeira impres-são que o filme causa no espectador é que é aprópria realidade que “fala” através dos sonse imagens e não a sua representação. Outropressuposto de autenticidade do documentá-

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rio é passar a impressão da não manipulaçãodos sons e imagens.

Mas todo e qualquer cinema, independen-temente do gênero à que pertença é um dis-curso, uma interpretação da realidade. Desdeo momento em que se escolhe o que filmar,de que ponto de vista, qual a duração doplano, quem entrevistar, o que perguntar aoentrevistado, como editar o material, enfimtodas as decisões que envolvem a realizaçãode um documentário constróem uma inter-pretação da realidade, traduzem um deter-minado ponto de vista subjetivo e singular.Todos os elementos constitutivos da lingua-gem cinematográfica revelam sempre a po-sição do realizador frente aos fatos que estánarrando. Isto não significa dizer que o do-cumentário não possa ser fiel à verdade dedeterminadas realidades.

Nesse sentido, podemos lançar um olharpara a trajetória que o documentário tem per-corrido tendo como referência as diferentesmaneiras como tem se dado a relação reali-dade x representação. Os modos de repre-sentação diferem entre si por empregaremos elementos da narrativa cinematográfica demaneiras distintas e historicamente datadas.

Bill Nichols5 destaca quatro modalidadesde representação dominantes possíveis nodocumentário.

6.1 Documentário ExpositivoA modalidade expositiva se dirige ao espec-tador diretamente através de letreiros ou vo-zes em over (não diegéticas) que expõemuma argumentação acerca do mundo histó-rico, prevalecendo o som não sincrônico do

5Nichols, Bill. La Representacion de la Reali-dad, Editora Paidós Comunicacion Cine, Buenos Ai-res, 1997.

comentário sonoro e imagens servem comocontraponto ou ilustração. Filmes como“Night Mail” de Harry Watt e Basil Wright(1936), “The Battle of San Pietro de JohnHuston (1945),e “Victory at Sea de HenrySalomon e Isaac Kleinerman(1952-53) sãoapontadas pelo autor como representantes domodo expositivo pela utilização da narraçãoover, extra diegética.

Filmes institucionais e de propagandasempre se utilizaram dessa estrutura narra-tiva. No Brasil, podemos situar o início dessaprodução com o aparecimento dos cinejor-nais do Departamento de Imprensa e Propa-ganda (DIP), criado em 1939 durante o go-verno de Getúlio Vargas com exemplo carac-terístico do documentário expositivo.

O Instituto Nacional de Cinema Educa-tivo (INCE) dirigido pelo cineasta HumbertoMauro, produziu, à partir da década de 30,centenas de filmes educativos, institucionaise de reconstituição histórica marcados pelaestrutura do modo expositivo.

Nos documentários expositivos, a lógica édada pelo texto que argumenta em função deidéias que vão sendo expostas ao longo dofilme. A montagem obedece à essa lógicano sentido de manter a coerência dessa ar-gumentação em detrimento da continuidadeespacial e temporal.

“Nanook do Norte’ realizado em 1922 porRobert J. Flaherty é um dos clássicos domodo expositivo. A estrutura principal detodo o filme é a continuidade, composta porcenas arranjadas de forma lógica e coerente.O fluxo cronologicamente linear da imagemda obra de Flaherty e da maioria dos filmesexpositivos, são estruturados com base nalógica de causa-efeito, premissa-conclusão,problema-solução.

Ainda dentro da perspectiva expositiva de

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narração, John Grierson instaura a preocupa-ção com a narrativa no documentário de cu-nho institucional e educativo que vai caracte-rizar o documentarismo inglês da década de20 até meados da década de 40.

A presença de entrevistas, quando exis-tem, no modo expositivo, estão subordina-das à lógica da argumentação textual, sem-pre para lhe respaldar o sentido ou justificaralgum item da narração que carrega consigoa responsabilidade exclusiva da argumenta-ção.

6.2 Documentário deObservação

Bill Nichols denomina como modalidade deobservação e modalidade interativa o ci-nema que ficou conhecido como cinema di-reto ou cinéma verité e que vamos analisarcom maior profundidade por se tratar do tipode documentário com o qual estamos traba-lhando nessa pesquisa. Por ora, iremos ca-racterizar a sua estrutura narrativa em linhasgerais.

Segundo o autor, a modalidade de obser-vação atua no sentido da não intervenção dorealizador nos acontecimentos questão sendofilmados. São eles que determinam o anda-mento temporal do filme. A montagem sem-pre tem em vista a temporalidade autênticados acontecimentos. Em sua vertente maisradical, essa estrutura narrativa não com-porta narração over, música extra diegéticae até entrevistas.

A existência do som sincrônico faz comque o discurso esteja estruturado em ima-gens definidas historicamente no tempo e noespaço. Cada cena situa o espectador den-tro da especificidade daquele lugar e daqueledeterminado momento. Bill Nichols consi-

dera que, nessa modalidade de representa-ção, cada corte e conseqüente edição tem afunção principal de manter a continuidadeespacial e temporal da observação no sentidode manter o “tempo presente” sempre ligadoao momento da filmagem.

O autor ressalta que o modo de observaçãotem sido utilizado como ferramenta etnográ-fica, já que permite aos realizadores obser-var atividades e costumes de maneira direta,sem as mediações textuais do documentárioexpositivo. O que é representado é a expe-riência vivida e as características peculiaresde seu cotidiano, no qual diferentes relaçõessociais são apreendidas, linguagens diferen-tes são ouvidas e identificadas em seus res-pectivos contextos culturais.

6.3 Documentário Interativo ouCinema Direto

A modalidade interativa de representaçãovem eliminar a ausência ilusória do reali-zador colocada pelas outras formas narrati-vas. Dziga Vertov, na década de 20, em “ OHomem da Câmera” já tinha revelado umapresença mais significativa do realizador aocolocar na tela a figura do realizador e suacâmera, anunciando, assim, as possibilida-des que o cinema direto viria desenvolvermais explicitamente a partir da década de 50.A partir desse momento, o desenvolvimentotecnológico permitiu uma maior intervençãodo diretor no filme, no sentido de explicitara sua presença no processo de realização –a sua voz pode ser ouvida e revelada assimcomo a voz do outro, a sua presença físicatambém pode ser revelada assim como a pre-sença do outro.

O documentário que está em questão nestapesquisa, aquele que se fundamenta pelo en-

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contro de dois sujeitos, o realizador e o su-jeito do filme, segue a trilha do “cinema di-reto” que se definiu com o surgimento dosom direto.

Esse foi um momento fundamental na tra-jetória do documentário marcado por umanova interação do realizador com a realidadea ser representada – a distância entre o re-alizador e o outro (sujeito e tema do filme)se encurtou em função das possibilidades dosom direto. Pela primeira vez era possíveldeixar de falarpelo outro, através de umanarração over, e falarcomo outro. A terceirapessoa do singular cede seu lugar para a pri-meira pessoa, aquela que fala por si própria,de corpo presente, com a gestualidade e en-tonação de voz que tornam o seu depoimentovivo e presente como nunca antes tinha sidopossível. O documentário adquire um cará-ter de tempo presente, de tempo flagrado emsua continuidade. O ponto de vista torna-semóvel, todos podem dar o seu depoimento, apalavra torna-se acessível.

Os documentários realizados até fins dadécada de 50 tinham como característica oformato expositivo. Numa perspectiva his-tórica , a possibilidade do som sincrônico éfruto, por um lado, da evolução tecnológicados meios de produção que propiciaram agravação do som em sincronia com a ima-gem e o aparecimento de câmeras mais levese, por outro lado, é fruto também da eferves-cência cultural e política presente nesse mo-mento em vários países do mundo.

Essa confluência de fatores favoreceu umaabordagem mais participativa por parte dorealizador, que busca e é testemunha de umafala até agora inacessível. Nesse sentido,novas possibilidades marcam a realizaçãodo documentário – entrevistas, depoimentos,câmera na mão, uma montagem de caráter

mais seletivo do que construtivista – e apon-tam para uma maior aderência à realidade.

A nova forma de realização cinematográ-fica foi batizada na França primeiramentecomo “Cinéma Verité” dentro do contexto deprodução do filme etnográfico tendo à frenteJean Rouch e Edgar Morin como realizado-res de “Chronique d’un Été”, apresentado emCannes em 1961. Em 1963, Mário Ruspolipropõe uma substituição do termo para “Ci-nema Direto” por considerá-lo menos res-tritivo e por possibilitar uma definição maispróxima a esse cinema que se relacionava demodo mais direto frente à realidade.

“Cinema Direto” acabou traduzindo essanova postura mais participativa e direta den-tro da produção documental de diversos paí-ses: Office National du Film, no Canadá;Candide Eye, também no Canadá; LivingCamera do Grupo Drew Associates, nos Es-tados Unidos.

O cinema direto trouxe uma nova dimen-são ao documentário trazida pela palavra fla-grada em sua espontaneidade, a dimensão daverdade no plano das relações humanas. “Ocinema direto é, em sua essência, um cinemada comunicação.”6 A partir de então a câ-mera capta um homem dotado de sua própriapalavra, a sua voz vem trazer uma perspec-tiva mais pessoal e direta ao filme.

Para Bill Nichols, essa modalidade intro-duz uma sensação de parcialidade, de pre-sençasituadae de conhecimentolocal quederiva do encontro do realizador com o ou-tro.

A qualidade de tempo presente é intensae a sensação de contingência é bem clarano sentido que os acontecimentos podem to-

6Marsolais, Giles, L’Aventure du Cinéma DirectRevisitée, Cinéma Les 400 Coups, Québec, 1997.

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mar diferentes rumos dependendo da intera-ção entre o realizador e o outro.

6.4 Documentário Reflexivo

Nesse tipo de documentário a representaçãodo mundo histórico se converte ela mesmano tema do filme. O processo de representa-ção se torna a principal preocupação da nar-rativa cinematográfica, como considera BillNichols.

Nessa modalidade há uma mudança deenfoque no sentido de privilegiar a relaçãorealizador-espectador em detrimento da re-lação realizador-sujeito. O acesso realista aomundo, a argumentação irrefutável, a capaci-dade de oferecer provas convincentes, o nexoentre a imagem e aquilo que representa, to-das essas referências do cinema documentalsão colocadas em questão no sentido de pro-blematizar a própria representação.

O filme reflexivo aponta para uma ênfasena intervenção deformadora do aparato cine-matográfico, no processo de representação,questionando seu próprio status e conven-ções narrativas.

Uma vez esclarecidas as possibilidadesnarrativas do filme documentário e tendo si-tuado essas diferentes maneiras de represen-tação, cabe ressaltar que, muitas vezes essasformas se apresentam imbricadas, mistura-das ao longo da narrativa do filme. Essasmodalidades apontam para maneiras diferen-tes de narrar uma história ou, em outras pa-lavras, para modos diferentes de estruturar anarrativa de um documentário e que se entre-laçam na constituição de um documentário.

A identificação dessas possibilidades trazconsigo o entendimento de que o filme é umdiscurso e que esse discurso é sempre uma

opção do realizador permeada pela sua visãode mundo e pela sua sensibilidade artística.

Tendo em vista o tipo de documentárioque estamos analisando aqui, a qualidade doencontro entre o realizador e o outro é tam-bém parte constituinte da subjetividade dorealizador que se dará a conhecer através dofilme. É só na medida em que o realizadorconsidera e atua com a totalidade de seu serque a possibilidade de um encontro autênticose estabelece, um encontro que possibilite oconhecimento profundo, que se revela paraalém das aparências.

Para Buber “o principal pressuposto parao surgimento de uma conversa genuína (ouum encontro verdadeiro) é que cada um vejaseu parceiro como precisamente esse homemé ... Experienciá-lo como uma totalidade econtudo, ao mesmo tempo, sem abstraçõesque o reduzam, experienciá-lo em toda a suaconcretude.”7

Entendemos que o momento do encontrocom o outro, quando se inaugura o espaço dointer-humano, é crucial na realização dessetipo de documentário pois é nesse momentoque se definirá o quanto o realizador irá seconectar de maneira a alcançar um pleno co-nhecimento do conteúdo que constituirá ofilme.

Não nos referimos aqui a um conheci-mento objetivo que atinge maiores ou meno-res graus de veracidade, não se trata de al-cançar uma verdade já estabelecida e embu-tida nas entranhas do real, trata-se aqui doconhecimento que nasce da verdadeira en-trega, daquela que nos leva para a revelaçãodo que antes não era conhecido, daquilo quenos é dado a conhecer quando abrimos mão

7Buber, Martin, Do Diálogo e do Dialógico, Edi-tora Perspectiva, São Paulo, 1982.

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de todo conhecimento anterior para encon-trar a revelação do novo. A essência da sub-jetividade só se dá a conhecer dessa maneira,se não for por essa via ficaremos sempre nonível da aparência, nesse caso, no nível do jáconhecido, do já dito, do já visto. Ultrapas-sados os limites das aparências, entra-se noterreno das descobertas, aquelas que afloramdo desconhecido, trazendo luz a algo que an-tes não existia. A qualidade da presença dorealizador é que estabelece a relação propici-adora desse conhecimento.

7 Espectador - Identificação eRepercussão

O cinema, como obra estética, destina-se aoespectador. É com ele que o filme dialoga, énele que as imagens e sons ecoam numa re-lação reveladora de significados, sensações esentimentos. O espectador é o elo de ligaçãoda obra com o mundo - é através dele que aobra irá acontecer.

Nesse sentido, podemos considerar um se-gundo momento de encontro, mesmo que in-diretamente, entre duas subjetividades - a dorealizador, por um lado, e a do espectador,por outro lado. Abre-se uma nova fron-teira para o inter humano, onde realizador eespectador dialogam por meio do filme, sevinculam por meio dele e é nesse encontrode subjetividades que se define o destino daobra de arte.

A relação obra - espectador é tanto fun-dadora como reveladora de muitos aspec-tos da obra cinematográfica. Edgar Mo-rin 8 utilizando-se de conceitos oriundos docampo da psicologia e carregados de uma

8Morin, Edgar, A Alma do Cinema, cap.IV – OCinema ou o Homem Imaginário, in A Experiência

perspectiva freudiana, aponta para um me-canismo de projeção-identificação na origemda percepção cinematográfica. Para ele, aidentificação constitui a base do cinema.

Segundo o autor, o espectador encontra-sefora da ação, privado de participações prá-ticas. Não podendo exprimir-se por atos,a participação do espectador interioriza-sepelo processo de projeções - identificações.

A ausência de participação prática deter-mina portanto uma participação afetiva in-tensa na qual se operam verdadeiras trans-ferências entre a alma do espectador e o es-petáculo da tela.

Nesse sentido, Edgar Morin caracteriza ocinema como “um sistema que tende a in-tegrar o espectador no fluxo do filme. Umsistema que tende a integrar o fluxo do filmeno fluxo psíquico do espectador.”9 Ele con-sidera a participação afetiva como estado ge-nético e fundamento estrutural do cinema,dada as semelhanças entre as característi-cas da imagem cinematográfica e determi-nadas estruturas mentais. Morin escreveu olivro “O Cinema ou o Homem Imaginário”em 1958 e teve como referência básica o ci-nema narrativo de Hollywood, mas a ques-tão identificação-projeção dentro da lingua-gem cinematográfica e mais tarde a televi-siva, depois dos anos cinqüenta, sempre foiuma questão presente para o entendimentoda relação do espectador com a obra.

McLuhan, na década de 60, no contexto dasociologia da comunicação de massa, distin-gue o processo de identificação que acontececom os meios frios - a televisão, por exem-

do Cinema, org. Ismail Xavier, Editora Graal Embra-filme, Rio de Janeiro, 1983.

9Morin, Edgar, op. cit.

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plo, e o processo de projeção que ocorre nosmeios quentes, como o cinema.

No caso da identificação, o espectador te-ria uma atitude de atenção para com o meioem contrapartida à uma atitude projetiva queacontece no cinema, na qual o espectador seconfunde com o personagem, vivência a his-tória do personagem como sendo a sua pró-pria.

Christian Metz também retoma a discus-são sobre a experiência do espectador carac-terizada pela “impressão de realidade” e peloprocesso de identificação. Numa perspectivafenomenológica, ele vai buscar uma descri-ção das características da imagem e das con-dições de projeção do espectador que consti-tuem a relação de identificação e o forte ilu-sionismo. Numa outra perspectiva, a psica-nalítica, ele vai buscar na estrutura psíquicado espectador as explicações para o processode envolvimento no cinema.

A obra de arte é feita de subjetividades edialoga através dessas subjetividades. A am-plitude dessa interação, a possibilidade de“dialogar” de perto com a humanidade emdiferentes épocas e lugares, de atingir umaconexão direta com os mais diferentes tiposde pessoas ao longo do tempo é uma das ca-racterísticas que fundamentam a obra de arte.

Bachelard10 em sua investigação sobrea comunicabilidade de uma imagem singu-lar, sobre a sua transubjetividade, vai bus-car essa medida na fenomenologia da ima-ginação, ou, em outras palavras, no estudodo “fenômeno da imagem poética, quando aimaginação emerge na consciência como umproduto direto do coração, da alma, do ser dohomem tomado em sua atualidade.”

10Bachelard, Gaston, A Poética do Espaço, EditoraMartins Fontes, São Paulo, 2000.

O autor afirma que nos poemasmanifestam-se forças que não passampelos circuitos de um saber e aponta aalma e o espírito como indispensáveis paraestudar os fenômenos das imagens poéticasdesde o devaneio até a sua execução. Oespírito pode relaxar-se, mas no devaneiopoético, considera Bachelard, a alma está devigília, sem tensão, repousada e ativa. Parafazer um poema completo, bem estruturadoserá preciso que o espírito o prefigure emprojetos. Mas para uma simples imagempoética não há projeto, não lhe é necessáriomais que um movimento da alma. Numaimagem poética a alma afirma a sua pre-sença. O autor cita o poeta Pierre-Jean Jouveque coloca com toda clareza o problemafenomenológico da imagem poética quandoafirma que a poesia é uma alma inaugurandouma forma.

Bachelard continua sua análise apontandoque a comunicabilidade de uma imagem éum fato de grande significação ontológica eassocia dois conceitos à percepção psicoló-gica de um poema sobre o leitor – a repercus-são e a ressonância. Na ressonância, afirma oautor, ouvimos o poema; na repercussão o fa-lamos, ele é nosso. Parece que o ser do poetaé nosso ser . A multiplicidade das ressonân-cias sai, então, da unidade de ser da repercus-são. Pela repercussão é que sentimos, aindasegundo o autor, erguer-se um poder poéticodentro de nós. É depois da repercussão quepodemos experimentar ressonâncias, reper-cussões sentimentais, recordações de nossopassado. A imagem atingiu as profundezasantes de emocionar a superfície.

Acreditamos poder fazer um paralelo en-tre a imagem poética e a imagem cinemato-gráfica. Primeiramente, no sentido de tam-bém atribuir à alma a morada da sua criação

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e ao espírito a sua execução enquanto obra.Nesse sentido, situamos a criação artística noplano da subjetividade e da singularidade.

Num segundo momento, podemos con-siderar a questão da transubjetividade e daidentificação do espectador com a obra nosparâmetros da repercussão e ressonânciaapresentadas por Bachelard. A imagem ci-nematográfica repercute nas profundezas denosso ser e somos como que transportadospara dentro do filme, enraíza-se em nós,tornando-se parte da nossa própria lingua-gem, instaurando uma nova dimensão emnosso repertório criativo. É porque uma ima-gem repercute em nós que nos identificamoscom ela. Nas palavras de Bachelard, a ima-gem torna-se um ser novo da nossa lingua-gem, expressa-nos, tornando-nos aquilo queela expressa, ela é ao mesmo tempo um devirde expressão e um devir do nosso ser. Aqui,a expressão cria o ser.

8 Arte e Intuição

Consideramos a relação obra-espectadorcomo um dos fundamentos da expressão ar-tística e situamos o espectador numa daspontas do eixo da criação. Na outra pontadesse percurso estaria a criação mesma daobra, a sua revelação. Caberia notar aqui acircularidade desse eixo na medida em quea obra e o sujeito que frui essa obra se en-contram e se interpenetram. A projeção-identificação e a repercussão são fenômenosque se desenvolvem na relação direta com oespectador.

Nos deslocando para o outro ponto dessepercurso circular, o ato da criação, encontra-mos alguns elementos fundamentais para oentendimento da intersubjetividade da obra

de arte, da sua comunicabilidade, em outraspalavras, da sua universalidade.

A obra de arte é feita de subjetividades edialoga através dessas subjetividades. A am-plitude desse diálogo depende da obra alcan-çar um caráter universal, que consiga “falar”a outras individualidades. É só na medidaem que a arte traduz em toda a sua plenitudea expressão de um singular, de um único,contido na experiência individual, é que elaatinge o universal. É só pelo reconhecimentoda experiência pessoal e única, de sua singu-laridade, que a obra é capaz de traduzir a suainspiração universal.

Essa capacidade que a obra de arte tem deemocionar, de repercutir em muitas almas eespíritos dos mais diversos tempos e lugaresé o fundamento mesmo da arte e traz consigoa chave de sua origem enquanto expressão.

Benedetto Croce11, filósofo, historiador ecrítico literário italiano, em sua teoria da es-tética formulada e sistematizada em “Bre-viário de Estética” de 1912 e Aesthetica innuce” de 1928, procura compreender a pe-culiaridade da arte face às demais atividadessimbólicas do ser humano.

No seu percurso para caracterizar a obrade arte Croce aponta para o caráter pré-conceitual e pré-lógico da elaboração artís-tica. Nesse sentido o autor avança em rela-ção as concepções estéticas elaboradas ante-riormente. Por um lado, Croce considera queo modelo racionalista trazia consigo a con-cepção da arte como signo ideológico, resul-tado da manipulação sensível das idéias, ale-goria de conceitos e valores. Por outro lado,o ponto de vista irracionalista tratava a artecomo fenômeno passional, inconsciente, re-

11Croce, Benedetto, Breviário da Estética. Prefáciode Alfredo Bosi, Editora Ática, São Paulo,1977.

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sultado da sensibilidade tomada em sentidolato.

Croce avança no sentido de distinguir aarte tanto do conceito como da pulsão in-consciente. O núcleo da sua obra é a teoriada arte como intuição: “a intuição do artistaproduz imagens, que estão aquém do julga-mento de realidade; aquém, portanto, da per-cepção que distingue o real histórico do ima-ginário”.12

Esse conceito da arte se contrapõe ao es-quema determinista de causa e efeito entreo historicamente acontecido, o socialmentepensado e o poeticamente imaginado. A obrade arte livra-se das amarras e liberta-se parao livre exercício da fantasia que Croce de-nomina “forma autoral do conhecimento” jáque a intuição prescinde do discurso concei-tual para figurar-se através das imagens.

A obra de arte situa-se, então, no plano dasubjetividade, da manifestação do único, doindividual que brota da intuição de cada um:“é esse tesouro da experiência pessoal, feitade impressões e afetos, que permite o jogodiferenciador das intuições. Sem essa maté-ria subjetivada, a intuição careceria de obje-tos que lhe facultassem desempenhar a suafunção intencional de ver por dentro e, daí,exprimir.”13

Para Croce, a arte é intuição pura ou puraexpressão, não intuição intelectual à maneirade Schelling, não logicismo à maneira deHegel, não juízo como na reflexão histórica,mas intuição totalmente isenta de conceito ede juízo, a forma auroral do conhecer, sem aqual não é dado entender formas sucessivase mais complexas.

Cabe aqui nos determos na definição do

12Croce, Benedetto, op. cit.13Croce, Benedetto, op. cit.

que seja a intuição. Para tanto vamos recor-rer à definição dada por Jung14 no estudoque faz sobre os tipos psicológicos, quandoelabora a sua caracterologia através da aná-lise dos traços constitutivos da personalidadehumana.

Segundo o autor a intuição é a função psi-cológica que se ocupa de transmitir percep-çõesatravés do inconsciente(grifo do autor).A peculiaridade da intuição reside no fato denão ser percepção sensorial, nem sentimento,nem conclusão intelectual, se bem que possaapresentar-se sob essas formas. Na intui-ção, qualquer conteúdo nos é oferecido comoum todo coeso, sem que sejamos capazes dedizer ou averiguar, de imediato, como teriachegado a formar-se. À semelhança da per-cepção, seus conteúdos possuem o caráter doque está dado, em contraste com o caráterdo que é “derivado”, ou do que é “gerado”,próprio do sentir e do pensar. Daí resulta ocaráter de segurança e de certeza do conheci-mento intuitivo, o que levou Spinoza a con-siderar a “scientia intuitiva” como a formasuprema de todo o conhecimento. A intuiçãotem em comum com a percepção essa quali-dade, cujo fundamento físico serve de base ecausa à sua certeza. Igualmente se baseia acerteza da intuição num determinado estadopsíquico de coisas, cuja constituição e dispo-nibilidade ocorrem inconscientemente.

A definição apresentada por Jung escla-rece vários aspectos da intuição principal-mente no que tange a sua ligação com o in-consciente, por um lado, e o seu caráter deinteireza, de totalidade, por outro.

Acreditamos ser essas características queenvolvem a definição dada por Croce ,

14Jung, C. G., Tipos Psicológicos, Zahar Editores,Rio de Janeiro, 1976.

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quando ele parte da observação de que a re-presentação da arte, mesmo em sua formamais altamente individual, abraça o todo ereflete em si o cosmos. E também quandoafirma que, na intuição pura ou representa-ção artística, o singular palpita pela vida dotodo e que toda representação artística autên-tica é ela mesma e o universo, o universo na-quela forma individual, e aquela forma indi-vidual enquanto universo.

Nesse sentido, a representação artísticaformula de maneira individual, o artista dáforma à sua obra de modo único e singular.Em cada criação artística, em cada palavrado poeta, afirma Croce, está todo o destinohumano, todas as esperanças, as ilusões, asdores, as alegrias, as grandezas e as misériashumanas. Para o autor, dar forma artísticaao conteúdo sentimental é dar-lhe a marca datotalidade, assim, universalidade e forma ar-tística se fundem numa só coisa. Em outraspalavras, a forma artística, individualizando,harmoniza a individualidade com a universa-lidade, e portanto, nesse mesmo ato, univer-saliza.

Consideramos que o encontro com o ou-tro, o conhecimento profundo entre duas to-talidades que se tocam mutuamente, no con-texto de realização do documentário que es-tamos analisando, é parte constitutiva dessamatéria subjetivada feita de impressões eafetos em que o realizador do filme mer-gulha, num primeiro momento, nesse fluxocontínuo de impressões, nessa corrente deestímulos que atingem o seu corpo e suaalma para que se concretize a expressão ar-tística em suas diferentes formas e matizesque traduzem a individualidade e a subjetivi-dade de cada artista.

É através dessa subjetividade que o filmeirá tomar forma, é desse caldeirão feito de

impressões individuais, que emergirá a obracomo um todo. As escolhas (talvez mesmonão conscientes) que envolvem a estruturanarrativa do filme - posicionamento da câ-mera, utilização de grandes planos abertosou primeiros planos, o uso de entrevistas ounarração, a presença ou não do realizadorem quadro, utilização da câmera na mão outripé, a inserção musical - têm suas raízes fin-cadas nessa terra fértil que é a intuição do ar-tista, matéria prima de sua expressão única esingular.

Para avançarmos na nossa análise, é pre-ciso considerar, primeiramente, algumas ca-racterísticas que fundamentam e delimitamo documentário enquanto gênero. Bill Ni-chols15 em sua análise sobre a representaçãoda realidade no documentário, coloca que amotivação primordial, nesse caso, é o rea-lismo, sendo que uma das expectativas fun-damentais no gênero é que os sons e as ima-gens tenham uma relação indicativa com omundo histórico. Nesse sentido, prevalece apremissa de que o que ocorreu na frente dacâmera não tenha sido representado em suatotalidade para a câmera.

Lembrando o que colocamos no início,uma das principais particularidades do filmedocumental é a de se relacionar diretamentecom os fatos históricos. O ponto de partidado realizador está sempre referido a alguém,a um grupo de pessoas, uma instituição, umlugar ou manifestação cultural.

Para Bill Nichols, o ponto de vista da câ-mera, no caso do documental, carrega em siduas operações distintas – a mecânica, deum dispositivo para reproduzir imagens, eo processo humano, metafórico, de olhar omundo, e que revela a subjetividade e os va-

15Nichols, Bill, op. cit.

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lores de quem a manipula. O estilo, nessecaso, estaria ligado não só a uma “visão”ou perspectiva do mundo como também se-ria um testemunho da qualidade ética dessaperspectiva e da argumentação que ela car-rega consigo.

Podemos acrescentar o ponto de vista ar-tístico que nos parece de fundamental impor-tância quando se pensa a realização do docu-mentário, no sentido de considerá-lo semprecomo obra carregada de significado estético.Lembrando Benedetto Croce, “toda expres-são pressupõe alguma impressão subjetiva,individual. Expressões particulares pressu-põem impressões particulares. Mas esse pré-requisito genérico não reduz a palavra, ouimagem(grifo meu), poética à mera repro-dução dos estímulos que chegam ao indiví-duo. A expressão concretiza-se em imagensverbais, oufílmicas(grifo meu), formas sig-nificantes que interpretam o estímulo, o qualbateu sem nome à porta do artista.”16

O ponto de vista do realizador será sem-pre subjetivo, único, mediado pela sua visãode mundo e sua sensibilidade artística. A re-lação subjetiva, singular, do realizador como mundo histórico, objeto do seu discurso, éfundamental na configuração do documentá-rio, pois é através dela que irá se delinear aobra.

Do ponto de vista do espectador esse nexocom o mundo histórico se configura na ex-pectativa fundamental de que os sons e asimagens tenham sempre uma relação indi-cativa com os fatos. Como espectadores,aponta Bill Nichols, confiamos que o queocorreu na frente da câmera tenha sofridopouca ou nenhuma modificação para ser re-gistrado. A literalidade no documental está

16Croce, Benedetto, op. cit.

centrada em torno do aspecto que as coisastem no mundo como um índice de signifi-cado. O espectador estabelece um modo ca-racterístico de compromisso ligado ao reco-nhecimento da realidade histórica, por umlado, e o reconhecimento de uma argumen-tação sobre essa realidade, por outro lado.

Considerando o documentário comosendo fundamentalmente o resultado dainteração do realizador com determinadarealidade, com um outro com quem ele entraem relação, podemos dizer que a fonte ondebebe o documental se encontra no âmbito dointer-humano. É dentro desse território queo filme irá se tecendo enquanto narrativa,sendo que cada escolha no entrelaçamentodos elementos de linguagem é uma opçãosingular do realizador, que dependerá de suasensibilidade artística. É na dinâmica darelação do cineasta com o outro que o filmese instaura e se fundamenta.

Acreditamos que a relação que se estabe-lece entre o realizador e o sujeito do filmeserá uma das fontes importantes na qual aintuição do artista irá mergulhar para trazerà tona conteúdos e percepções que irão par-ticipar efetivamente de sua criação artística.

Um dos nossos objetivos nessa pesquisa édelinear e discutir os pressupostos e as con-dições para que se estabeleça um verdadeiroencontro na realização do documentário, nosentido de fazer emergir uma relação verda-deira, de descoberta genuína, aquela que in-troduz o novo, que será lançada e introjetadapela intuição do artista na sua matéria subje-tivada e que estará presente no momento desua expressão.

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9 O Encontro

“Qualquer que seja em outros campos osentido da palavra verdade , no campodo inter-humano ela significa que os ho-mens se comunicam um-com-o-outro talcomo são. Não importa que um digaao outro tudo que lhe ocorre, mas im-porta unicamente que ele não permitaque entre ele e o outro se introduza sub-repticiamente alguma aparência.” Mar-tim Buber

Iremos buscar, primeiramente, em MartimBuber algumas referências para trazer luz ànossa discussão sobre as condições para queum “ diálogo genuíno” se estabeleça entre oshomens. Sua filosofia do diálogo, da rela-ção, "não é constituída por conceitos abstra-tos mas é a própria experiência existencial serevelando. Buber efetua uma verdadeira fe-nomenologia da relação, cujo princípio on-tológico é a manifestação do ser ao homemque o intui imediatamente pela contempla-ção. A palavra, como portadora do ser, éo lugar onde o ser se instaura como revela-ção.”17

Em seu primeiro livro, “Eu e Tu” , edi-tado em 1923, Buber lança as bases de suafilosofia dialógica, se debruça na investiga-ção do “inter-humano”, onde o diálogo acon-tece. Para o autor, a palavra proferida é umaatitude efetiva, eficaz e atualizadora do serdo homem. Ela é um ato do homem atra-vés do qual ele se faz homem e se situa nomundo com os outros. A intenção de Bu-ber é desvendar o sentido existencial da pa-lavra que, pela intencionalidade que a anima,é o princípio ontológico do homem como ser

17Buber, Martin, Eu e Tu, Tradução de NewtonAquiles Von Zuben, Editora Moraes, São Paulo,1974.

dia-logal e dia-pessoal e é através dela que oser se revela.

Buber faz uma distinção entre uma con-versação genuína e o palavreado – “a maiorparte daquilo que se denomina hoje entre oshomens de conversação deveria ser desig-nado, com mais justeza e num sentido pre-ciso, de palavreado”.

“Em geral os homens não falam real-mente um ao outro mas, cada um, emboraesteja voltado para o outro, fala na ver-dade a uma instância fictícia, cuja exis-tência se reduz ao fato de escutá-lo.”18

Para o autor, a palavra dirigida instaura ointer - humano , o campoentre duas totalida-des que se tocam mutuamente. Uma fala sóé verdadeira se nela descubro o outro e nessamedida ele se constitui para mim, eu o en-contro e o confirmo, coloca Buber. É na re-lação que os seres se revelam e se confirmame é a partir da linguagem que o encontro serealiza. É no dinamismo concreto que se ins-taura na conversação, no movimento desen-cadeado entre o falar, responder e o escutarque os seres se conhecem a si mesmos e aosoutros, se revelam e são revelados.

Buber acredita que a linguagem só é au-têntica na relação, no encontro, quando elapossibilita o acesso ao ser, que se torna real-mente homem na revelação do encontro.

O que o autor chama de dialógico não éapenas o relacionamento dos homens entresi, mas é o seu comportamento, a sua atitudeum para com o outro, cujo elemento maisimportante é a reciprocidade da ação inte-rior, sendo que , numa situação dialógica, ohomem que está face à nós nunca pode ser

18Buber, Martin, op. cit., 1982.

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nosso objeto pois sempre estaremos na rela-ção com ele.

“ O maior mérito que cabe a MartimBuber está no fato de ter acentuado deum modo claro, radical e definitivo asduas atitudes distintas do homem face aomundo ou diante do ser , que se traduzempela palavra - princípio EU-TU e pela pa-lavra - princípio EU-ISSO. A primeira éum ato essencial do homem, atitude deencontro entre dois parceiros na recipro-cidade e na confirmação mútua. A se-gunda é a experiência e a utilização, ati-tude objetivante. Uma é a atitude cognos-citiva e a outra, atitude ontológica.”19

A atitude ontológica é aquela ligada à es-sência de cada um e aponta para o que existede singular, seja em cada um individual-mente, seja do ponto de vista da relação, quese traduz no encontro entre singularidades.A atitude cognoscitiva é aquela que objetiva,que atua no plano do particular, do mundoobjetivo, que pode ser analisado e quantifi-cado, do mundo onde se pode partir de aná-lises e se chegar a conclusões definidas.

Buber considera que a relação com o TUé imediata, não mediada. Entre o Eu e o TUnão se interpõe nenhum jogo de conceitos,nenhum esquema, nenhuma fantasia e a pró-pria memória se transforma no momento emque passa dos detalhes para a totalidade. En-tre o EU e o TU não há fim algum, nenhumaavidez ou antecipação, e a própria aspiraçãose transforma no momento em que passa dosonho à realidade. No modo EU-TU a en-trega é total, as alteridades se encontram e sereconhecem na conversação genuína e surgea palavra de cada um ou o silêncio, a espera

19Buber, Martin, op. cit., 1982.

silenciosa da palavra não formulada, indife-renciada, pré-verbal.

Cabe aqui introduzir algumas idéias queo psicoterapeuta Carl Rogers criou ao longodo seu trabalho de terapia centrada no clientedesenvolvido na década de 40. Ele acredi-tava que as pessoas necessitavam de uma re-lação na qual seriam aceitas, sendo que ashabilidades que o terapeuta rogeriano utilizasão a empatia e a consideração positiva in-condicional. Para Rogers, a fronteira entrea psicoterapia e a vida comum é necessari-amente tênue. Se a aceitação, a empatia ea consideração positiva constituem as condi-ções necessárias e suficientes para o cresci-mento humano, então, considerava que elasdeveriam da mesma forma estar presentesnas relações de ensino, amizade e vida fa-miliar.

Carl Rogers, ao discutir as posturas possí-veis na relação terapêutica, escolhe para siaquela em que os sentimentos e o conhe-cimento se fundiam numa experiência uni-tária que é vivida em vez de ser analisada,cuja consciência é não reflexiva e em que soumais participante do que observador.

Para o autor, a essência da terapia é umaunidade de vivência entre o cliente e o te-rapeuta. Quando há essa unidade completa,essa singularidade, essa plenitude de vivên-cia na relação, Rogers considera que, en-tão, “ esta alcança a qualidade defora dessemundo, uma espécie de sentimento de êx-tase na relação na qual o cliente e eu emer-gimos no fim da sessão como quem sai deum poço ou de um túnel. Dá-se nesses mo-mentos uma verdadeira relação Eu-Tu, paraempregar uma expressão de Buber , uma vi-

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vência atemporal da experiência que existeentre o cliente e eu.”20

Tanto Buber quanto Rogers apontam emdireção ao inter-humano, onde se instaura aentrega na relação, uma aceitação do outroem sua totalidade, a fluidez do encontro, euma abertura para a experiência, onde nadaestá previsto de antemão, onde tudo aconteceno aqui e agora, no processo de tornar-se.

A esfera do inter-humano nos interessa namedida em que consideramos a relação dorealizador do filme documentário e o sujeitocom o qual ele estabelece um contato, e queserá o fio condutor de seu filme, como umarelação entre duas totalidades que se dão aconhecer. Em se tratando do documentá-rio analisado aqui, que se refere diretamenteá alguém ou à um grupo de pessoas e quefundamenta a sua narrativa através de depoi-mentos e entrevistas, obtidas do contato di-reto do diretor com essas pessoas, o aspectodialógico dessa situação se torna fundamen-tal na investigação que aqui empreendemos.

Se consideramos que o documentário estáfundado na relação que se estabelece entreos sujeitos envolvidos no processo de sua re-alização é preciso fazer uma reflexão sobrea qualidade desse diálogo e sua natureza, ouem outras palavras, tentar desvendar a essên-cia que funda esse contato.

Argumentamos anteriormente que dessecontato depende, inclusive, as impressões eemoções que irão constituir o ponto de par-tida do artista ao buscar em sua intuição oscaminhos que darão forma à obra. Tambémafirmamos que a obra de arte é feita de sub-jetividades e dialoga através dessas subjeti-vidades quando abordamos a relação da obraacabada com o espectador. Mas podemos

20Rogers, Carl R., op. cit.

afirmar aqui que isso também é verdadeiroquando consideramos a relação do cineastae o sujeito do filme. Essas duas subjetivida-des têm de conhecer-se mutuamente para quedessa interação resulte algo novo, vivo, quetraga à tona uma descoberta, uma revelaçãoque dependa exclusivamente desse encontro.

Nesse sentido, a esfera do inter-humanono contexto do documentário e o caráter di-alógico da relação que se estabelece entre orealizador e o “outro” podem ser considera-dos como matérias que constituem o centronevrálgico por onde passam muitas das ra-mificações que constituem o corpo do filmecomo um todo.

E para que a qualidade desse contato nãofique na dependência do acaso ou de fatoresque, muitas vezes, nos passam desapercebi-dos, quando empreendemos a realização deum documentário é preciso percorrer consci-entemente esse terreno, iluminando os cami-nhos e atalhos que nos levam para o diálogoautêntico, para a relação dialógica propria-mente dita.

O encontro do realizador com o “outro”,no filme documental está impregnado poressa questão de maneira bastante profunda.Na medida em que nos dispomos a conheceruma determinada individualidade, diferenteda nossa, temos que estabelecer um contatodireto e verdadeiro, nos deixar impregnar poressa subjetividade sem conceitos preestabe-lecidos, para que através de nosso silênciointerior possamos nos vincular de maneiracriativa com esse outro. Se essa condiçãonão for estabelecida no encontro com o ou-tro, é grande a probabilidade de não encon-trarmos o que há de único e singular em cadaexperiência, em cada encontro.

Para Martim Buber, o fator decisivo dointer-humano é o não-ser-objeto, isto é, que

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o “outro” aconteça como parceiro num acon-tecimento da vida. “Por esfera do inter-humano entendo apenas os acontecimentosatuais entre os homens e que dêem-se emmutualidade ou sejam de tal natureza que,completando-se, possam atingir diretamentea mutualidade; pois a participação dos doisparceiros é, por princípio, indispensável. Aesfera do inter-humano é aquela do face aface, do um-ao-outro;é o seu desdobramentoque chamamos dialógico”.21

Quando consideramos a situação de en-contro na realização do documentário preci-samos levar em conta algumas peculiarida-des. Uma delas refere-se à qualidade do co-nhecimento entre o realizador e o outro. In-dependentemente da motivação que levou orealizador para o filme – seja um contrato ouuma iniciativa pessoal, ele entrará em con-tato, por um determinado tempo, com umarealidade diferente da dele, conhecerá pes-soas das mais diversas origens e culturas como intuito de realizar a filmagem. Isto posto,ele tem algumas alternativas em relação acomo se relacionar com a situação.

Geralmente os documentários prescindemde um roteiro preestabelecido anteriormente.O que acontece, na maioria das vezes é olevantamento de uma pauta e um contatoprévio com as pessoas que farão parte dofilme. Isso acontece exatamente porque nãoé possível fechar de antemão as situações, asfalas e o decorrer dos acontecimentos queestão por vir. O documentário pressupõeuma abertura para a realidade – é na relaçãocom essa realidade que o filme vai tomandoforma. Nesse sentido, quando o realizadorentra em contato com a situação e com aspessoas envolvidas ele geralmente não tem

21Buber, Martin, op. cit., 1982.

em mãos um roteiro definido e fechado, ca-bendo à sua iniciativa o modo como vai serelacionar e conhecer essa realidade.

10 Realidade x Experiência –Uma abordagem dialógica

É preciso lembrar que a realidade aqui nãoestá sendo considerada como algo pronto,acabado, definido de antemão e constituídapor uma materialidade externa ao realizadorjá que o tipo de documentário escolhido paraessa pesquisa, que se refere diretamente a al-guém ou a um grupo de pessoas e que se ba-seia em depoimentos e entrevistas, só podeser realizado com a participação direta do ci-neasta. É só na medida em que o realizadoracessar essa realidade com a sua experiên-cia, entrar em contato direto com os aconte-cimentos que a sua vivência poderá nortear aconstrução do filme enquanto discurso.

Num primeiro momento, a questão que secoloca é a de como ultrapassar a tênue li-nha que separa a aparência da verdadeira es-sência das coisas. No caso aqui, como en-trar numa relação que seja autêntica, na qualse estabeleça uma conversação genuína, umaconversação que pressupõe um encontro in-tegral das partes envolvidas.

Buber lança alguma luz sobre essa ques-tão quando aponta alguns dos pressupostospara o surgimento de uma conversação ge-nuína. O primeiro, como já foi dito, é o fatode que cada um veja o seu parceiro comoele precisamente é, de maneira única e pró-pria. Isso significa que cada um deve se co-locar de maneira autêntica, sem querer pare-cer aquilo que não é , sem se preocupar comsua imagem como confirmação de si. Essa

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postura implica em não ter expectativas pré-concebidas em relação a si e ao outro.

Analisada no contexto da realização dodocumentário essa colocação nos remete àsituação do realizador face a face com o(s)sujeito(s) envolvido(s) no filme. Se uma daspreocupações fundamentais é ultrapassar onível da aparência objetiva e descobrir a es-sência que se revela quando atingimos a sub-jetividade de cada um, a sua maneira singulare única de existir, então é preciso pensar naposturado realizador no seu encontro como outro como um ponto de partida determi-nante nos acontecimentos.

A abordagem dialógica requer uma mu-dança de comportamento frente ao outro nosentido de se desfazer de expectativas e no-ções preconcebidas à seu respeito e cami-nhar em direção ao que Buber aponta comoo principal pressuposto para o surgimentode uma conversação genuína – que cada umveja seu parceiro como precisamente é, des-cobrindo o outro enquanto totalidade, unici-dade e concretude, sem abstrações que o re-duzam.

Essa mudança de comportamento implicatambém numa postura integral, num olharnão redutor, e sim globalizante. Redutor se-ria o olhar que quer reduzir a multiplicidadeda pessoa à características desmembráveis.Globalizante, no sentido de uma percepçãototalizadora, que percebe o outro enquantosubjetividade única e independente. Dentrodessa perspectiva é que se concretiza a par-ceria entre as partes.

Tendo em vista a busca da conversação ge-nuína e de um encontro verdadeiro (no sen-tido buberiano) entre o realizador e o sujeitodo filme podemos considerar de fundamen-tal importância que as premissas apresenta-das por Buber – o não ser objeto, a parce-

ria entre as partes, e a autenticidade sejamincorporadas na postura do realizador frenteaos acontecimentos durante a realização dodocumentário.

Considerar o outro como sujeito e nãocomo objeto – dentro dessa perspectiva nosdiferenciamos de uma postura de distancia-mento científico, de não envolvimento como objeto de estudo, que teria como meta umapercepção objetiva e imparcial do outro, enos aproximamos de uma postura dialógicaque tem a interação como pressuposto de umconhecimento verdadeiro, da revelação dassingularidades de cada um. Do ponto devista dialógico, o sentido não está nas coisase nem tampouco ele está dentro das coisas, osentido aparece entre nós e as coisas.

Dessa maneira, o documentário se trans-forma em possibilidade de encontro, de con-versação genuína, de parceria. Para realizarum documentário o cineasta entrará em con-tato com pessoas que, na maioria das vezes,ele ainda não conhece pessoalmente, masjá tem alguma informação prévia a seu res-peito.

Esses dados preliminares podem ser con-fundidos com oconhecimentodo outro, nosentido de levar o realizador a acreditar queconhece o outro de fato, o que acaba contri-buindo para que ele incorpore idéias precon-cebidas ou hipóteses a serem confirmadas nodecorrer da relação. Nessa perspectiva, o re-alizador estaria apenas “enxergando” no ou-tro a possibilidade de confirmação de sua hi-pótese, ou, em última instância, um prolon-gamento de si mesmo.

Em outras palavras, o outro estaria sendoconsiderado como objeto, como um conjuntode dados que fazem dele uma abstração. Es-sas informações sobre a pessoa não podemser confundidas com o saber que se instaura

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na esfera do inter-humano, como revelaçãoa partir do face-à-face, e muito menos ser-vir de justificativa para qualquer relação depoder sobre o outro. O saber, o verdadeiroconhecimento, só acontecerá através do vín-culo, na conversação genuína. Seria ingenui-dade pensar que se conhece algo à respeitodo outro sem entrar em relação com ele. Anossa ignorância em relação ao outro (sejaesse outro uma pessoa, situação ou lugar) sócessa quando entramos em relação, quandonos abrimos para a interação. É só à partir dovínculo que poderemos ver o nosso parceirocomo ele realmente é, em sua totalidade.

Carl Rogers vem acrescentar alguns parâ-metros na consideração do inter-humano, dovínculo entre os homens, com alguns con-ceitos que se situam no plano de fenômenosque, segundo o autor, se revelam como im-portantes em todas as interações subjetivas.

O conceito de “congruência”, segundoRogers, foi elaborado para “indicar uma cor-respondência entre experiência e a consciên-cia. Pode ser ampliado de modo a abrangera adequação entre experiência, a consciênciae a comunicação.

Para Rogers, a experiência refere-se aoque é experimentado pelos sentidos, é o quese passa com a pessoa, no seu interior. A ex-periência corresponde ao vivido. O acesso àexperiência se dá por um conhecimento di-reto, não científico. A consciência estaria as-sociada à percepção desse ou daquele estadoexperimentado, que nos damos conta. Se-gundo o autor, a experiência, então, refere-seaquilo que temos consciência. A comunica-ção corresponde ao ato da fala, à expressãodaquilo que temos consciência.

O autor aponta para o fato de que a incon-gruência pode ocorrer entre a experiência e aconsciência configurando-se uma atitude de

defesa ou de uma recusa de consciência , ouainda, pode manifestar-se entre a consciên-cia e a comunicação, delineando-se , então,uma atitude de falsidade ou duplicidade. Seum indivíduo é, num dado momento, intei-ramente congruente a sua experiência podeser adequadamente representada na consci-ência e a comunicação estará em harmoniacom essa experiência. A pessoa, num deter-minado momento de congruência plena, co-munica necessariamente as suas percepçõese os seus sentimentos. Evidentemente, os in-divíduos diferem no seu grau de congruênciae, num mesmo indivíduo, esse grau é variá-vel conforme os momentos, dependendo doque está experimentando e da sua atitude deaceitar conscientemente a sua experiência ouse defender dela.

Quando Buber caracteriza o diálogo ge-nuíno, por oposição ao palavreado, ele nãoestá apenas se referindo ao diálogo como umcaso particular da fala, mas do próprio fenô-meno da palavra. A palavra é dialogal e, por-tanto, relacional. Ela nasce de um ouvir, eela é uma resposta.

O conceito de congruência se aproxima dosentido que Buber dá à conversação genuína,ao estado de totalidade e inteireza dos par-ceiros para que se estabeleça um verdadeirodiálogo, para que os homens se comuniquemum-com-o-outro dentro da verdade de cadaum, sem que se introduza alguma aparência.É só na medida em que os três planos apre-sentados por Rogers – o da experiência (oque estou experienciando nesse momento),o da consciência (ter a percepção da experi-ência) e a comunicação (a fala, a expressão)estejam em plena harmonia e que sejam re-cíprocas é que pode se dar o conhecimentoíntimo entre as pessoas.

A correspondência entre a experiência, a

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consciência e a comunicação é outro dadoimportante quando analisamos a postura dorealizador na sua relação com o outro. Ofato do realizador se colocar de maneira inte-grada frente ao outro instaura a possibilidadede reciprocidade, no sentido de se estabele-cer um vínculo que tenha como base a confi-ança mútua e uma abertura para a entrega. Ésó dessa maneira que poderá acontecer umarelação autêntica que tanto Buber como Ro-gers apontam como um aspecto fundamentalda conversação genuína.

Carl Rogers, em sua experiência terapêu-tica, ressalta a questão da autenticidade doser como um dos objetivos da relação tera-pêutica. Ele parte da expressão tirada de Ki-erkegaard – “ser o que realmente se é” – paraconfigurar o desenvolvimento pleno da vidade uma pessoa.

Para o autor, o caminho em direção à au-tenticidade passa pela superação da ação quetem como referência o “dever ser” e o “agra-dar os outros”. Nesse percurso esses parâme-tros são substituídos pela busca de autodire-ção, uma maior abertura para a experiênciae uma maior confiança em si mesmo e nosoutros.

Rogers e Buber dialogam de perto no quese refere às condições para um verdadeiroencontro. Se para Buber, cada um devese colocar de maneira autêntica, sem que-rer parecer aquilo que não é, para Rogers,a perspectiva da autenticidade se dá pelasuperação das aparências e da preocupaçãocom idéias e expectativas pré-concebidas.Mesmo que Rogers não se refira à relaçãopropriamente dita podemos considerar a au-tenticidade como pressuposto de uma rela-ção dialógica , pois somente duas (ou mais)pessoas, livres das amarras da aparência e daexpectativa em relação à si mesmo e ao(s)

outro(s) são capazes de promover uma con-versação genuína.

Outra condição essencial para que se esta-beleça uma conversação genuína na perspec-tiva de Buber é “tomar conhecimento íntimode um homem” . Para Buber isso significaexperienciá-lo como uma totalidade e con-tudo, ao mesmo tempo, sem abstrações queo reduzem, experienciá-lo em toda a sua con-cretude.

Para que se entenda como chegar ao co-nhecimento íntimo de um homem é precisocompreender outros dois conceitos que Bu-ber utiliza. O autor distingue três maneiraspelas quais podemos perceber um homem -observar, contemplar e tomar conhecimentoíntimo.

“O observador está inteiramente concen-trado em gravar na sua mente o homem queobserva, em anotá-lo. Ele o perscruta e o de-senha. E na verdade ele se empenha em de-senhar tantos traços quanto possíveis.”22 Naobservação, nenhuma relação é necessáriaentre o observador e seu objeto, pois aqueleapenas reconstrói o objeto pelos seus traçoscaracterísticos.

O autor continua sua análise dizendo queo contemplador não está absolutamente con-centrado. Ele se coloca numa posição quelhe permite ver o objeto livremente e esperadespreocupado aquilo que a ele se apresen-tará. Só no início pode ser governado pelaintenção, tudo que se segue é involuntário.Não impõe tarefas à memória, confia no tra-balho orgânico desta, que conserva o quemerece ser conservado.

As duas atitudes têm em comum o fatode considerarem o outro um objeto separadodeles próprios e de suas vidas pessoais e

22Buber, Martin, op. cit.,1982.

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que pode ser percebido e apreendido de fora,através de uma percepção objetiva, não secolocando necessariamente a questão da re-lação, do vínculo. Nesse sentido, esses doismodos, se referem a acontecimentos fora demim.

Em outras palavras, “tomar conhecimentoíntimo” é a percepção da palavra dirigidaatravés dos signos. Para Buber, os signosnos acontecem sem cessar, viver significa seralvo da palavra dirigida, é preciso apenasperceber. Aquilo que me acontece é pala-vra dirigida. Enquanto coisas que me acon-tecem, os eventos do mundo são palavras queme são dirigidas. Os signos não são fatos ex-traordinários, são os fatos mesmos do dia adia, é o tomar conhecimento íntimo dessessignos que nos remetem às possibilidades dodialógico, do vínculo.

“Tomar conhecimento de um homem sig-nifica então, principalmente, percebersua totalidade enquanto pessoa determi-nada pelo espírito, perceber o centro di-nâmico que imprime o perceptível signoda unicidade e toda sua manifestação,ação e atitude. Mas um tal conhecimentoíntimo é impossível se o outro, enquantooutro, é para mim o objeto destacadoda minha contemplação ou mesmo ob-servação, pois a essas esta totalidade eeste centro não se dão a conhecer : oconhecimento íntimo só se torna possí-vel quando me coloco de uma forma ele-mentar em relação com o outro, portantoquando ele se torna presença para mim.É por isso que designo a tomada de co-nhecimento íntimo neste sentido especialcomo o tornar-se presente da pessoa.”23

23Buber, Martin, op. cit., 1982.

Para Buber, existe ainda uma terceira con-dição para que se estabeleça uma conver-sação genuína - é que nenhum dos parcei-ros queira impor-se ao outro. Na verdade,o não cumprimento dessa condição implica,necessariamente, numa atitude de manipula-ção, que não leva em conta a subjetividadedo outro.

Se não se levar em conta essa premissa narealização de um filme documental pode-sepercorrer o perigoso caminho da persuasão edo convencimento. Para isso existem, no de-correr do processo de filmagem armadilhasque, muitas vezes, nem nos damos conta.Só para citar alguns exemplos, quando entre-vistamos alguém, numa dada situação, bastauma pergunta formulada de maneira a conterem si uma determinada resposta para que seinterrompa o fluxo da autenticidade e da ver-dade. Outras vezes, o simples fato de estar-mos de posse do aparato técnico que acom-panha a filmagem - câmera, microfone, etc.- é motivo para intimidar as pessoas ou tor-nar a situação artificial, perdendo a natura-lidade que lhe era peculiar. É preciso en-contrar o caminho para que se instaure o en-contro verdadeiro, caso contrário, estaremosa meio caminho entre o simulacro e a dis-simulação já que, citando Buber, por ser aconversação genuína uma esfera ontológica,constituída pela autenticidade do ser, toda in-vasão da aparência pode prejudicá-la.

A reciprocidade na relação é uma carac-terística que vem se somar aos pressupostosapresentados por Buber. No diálogo, os par-ticipantes se confirmam mutuamente comopessoas, a relação é recíproca. É preciso quetodos os envolvidos se tornem presentes nasua totalidade, sua unicidade, no seu centrodinâmico, para que a conversação genuína seinstaure.

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O autor aponta ainda a imprevisibilidadecomo fazendo parte da conversação genuína,“ninguém pode saber de antemão o que é queele tem a dizer: não é possível pré ordenaruma conversação genuína. Ela obedece, éverdade, desde o início, a uma ordem básicaque lhe é inerente, mas nada pode ser deter-minado, o seu curso é o do espírito e algunssó descobrem o que tinham a dizer quandopercebem o apelo deste espírito.”24

Essas considerações implicam em ques-tões fundamentais quando transportadas parao plano da realização do filme documental.Uma delas é que o realizador tem que se co-locar como parceiro no vínculo, como umdos participantes da conversação genuína.Não adianta apenas estar receptivo para apresença do outro, ou deixá-lo à vontadedentro da situação colocada pela filmagem, épreciso estar plenamente presente e dispostoa sair de si, face ao outro e ao mundo, numaatitude de abertura, de deixar se manifestarem seu próprio centro dinâmico.

Portanto, para que se realize essa recipro-cidade de maneira verdadeira, é preciso queo realizador se destitua de qualquer relaçãode poder frente ao outro, seja esse poder re-sultado de uma falsa idéia do saber sobre ooutro ou de estar em vantagem em relaçãoao outro.

Dentro desse contexto, um dado a ser le-vado em conta nas relações que se estabele-cem entre o realizador e o outro durante asfilmagens, é o aparato técnico que acompa-nha a realização cinematográfica. A tecno-logia, está sempre associada ao saber e aopoder por parte de quem detém os meios deprodução, podendo se tornar um fator quecontribui para que as relações se estabeleçam

24Buber, Martin, op. cit.,1982.

num padrão de desigualdade entre as partesenvolvidas. Estar de posse da câmera podesignificar, para o realizador, um controle so-bre as pessoas, uma “sensação” de poder so-bre o outro, de estar numa posição de van-tagem sobre o outro. Mera ilusão, pois pen-sando assim se perde qualquer possibilidadede um contato verdadeiro e recíproco, já queo diálogo implica uma disposição da pessoapara fora, de encontro ao outro e ao mundo.

O modo como o realizador se relacionacom o aparato técnico pode ainda levar a ou-tro equívoco - o de se “esconder” atrás dacâmera e passar a olhar somente através daslentes, mediado por elas, como se a elas cou-besse a revelação da realidade. Também,nesse caso, se perde totalmente a possibili-dade de qualquer comunicação verdadeira egenuína, pois a relação fica restrita pela me-diação técnica e não há um contato genuínoe mútuo entre as partes.

Buber se coloca a questão de saber se sem-pre, numa relação, a reciprocidade é total.Em sua opinião, “todo o vínculo EU-TU, noseio de uma relação, que se especifica comouma ação com finalidade exercida por umlado sobre o outro, existe em virtude de umamutualidade que não pode ser total.”25

O autor aponta as relações do educador eseu discípulo, por um lado, e a do psicote-rapeuta e seu paciente, por outro lado, comorelações nas quais a mutualidade não podeser plenamente atingida.

No caso da relação do educador e aluno,que segundo Buber, tem como objetivo auxi-liar a realização das melhores possibilidadesexistenciais do aluno, o professor deve apre-ender o aluno como essa pessoa determinadaem sua potencialidade e atualidade, quer di-

25Buber, Martin, op. cit.,1974.

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zer, não como uma soma de qualidades espe-cíficas, tendências e obstáculos, mas comouma totalidade a ser afirmada. Isso só setorna possível quando o professor encontrao aluno como seu parceiro, em uma relaçãobipolar e, também, à medida que o profes-sor experiência essa situação não só de seulado mas também do lado do aluno, perce-bendo como tudo isso é para ele. A essa re-lação Buber chama de envolvimento. A limi-tação da mutualidade se encontra justamentenesse ponto, pois se a relação de envolvi-mento também atingir o discípulo, a relaçãoperde a sua especificidade, que reside justa-mente na diferenciação de papéis entre am-bos, e passa a ser uma relação entre iguais,totalmente aberta.

Dentro da relação terapêutica, “para o te-rapeuta favorecer de um modo coerente a li-bertação e a atualização daquela unidade, emuma nova harmonia da pessoa com o mundo,ele deve estar, assim como o educador, nãosomente aqui no seu pólo da relação bipo-lar, mas também no outro pólo, com todo oseu poder de presentificação e experienciar oefeito de sua própria ação. Porém, de novo, arelação específica de cura terminaria no mo-mento em que o paciente lembrasse e conse-guisse praticar, de sua parte, o envolvimentoexperienciando assim o evento no lado domédico. O curar como o educar não é pos-sível, senão àquele que vive no face-a-face,sem contudo deixar-se absorver.”26

Analisando a relação entre o realizador e ooutro dentro do contexto do documentário, aquestão que se coloca é saber se essa relaçãoé, a exemplo das relações terapeuta-pacientee professor-aluno, uma relação que se espe-cifica como uma ação com finalidade exer-

26Buber, Martin, op. cit.,1974.

cida por um lado sobre o outro e, portantolimitada na sua mutualidade.

Num primeiro momento, é preciso consi-derar que o cineasta procura o outro (ou osoutros) porque quer fazer um filme a seu res-peito. Nesse sentido, existe uma finalidadepré-estabelecida na relação por uma das par-tes envolvidas. Acontece que nesse caso, nãoexiste uma pretensão de mudança ou trans-formação como aquela que caracteriza as re-lações do terapeuta e seu paciente e a do pro-fessor e seu aluno. O realizador do documen-tário pretende conhecer o outro como ele é,seu objetivo é construir uma narrativa fílmicaque, de maneira singular, traduza esse outro,revele a sua história.

O tema de um documentário pode surgirde várias maneiras - uma delas é que ele sejadado ao realizador por encomenda, ou queele se apresente como escolha própria, outrasvezes, acontece que a idéia de um documen-tário surge depois de conhecer determinadapessoa ou grupo de pessoas com as quais orealizador teve algum envolvimento signifi-cativo e revelador. Em todos esses casos, ofato do cineasta ter como objetivo realizar oseu filme, não impede que se instaure o ver-dadeiro envolvimento, no sentido buberiano,entre o realizador e o outro, já que não des-caracterizaria nenhum dos componentes darelação.

11 A Fala

Iremos buscar em Merleau Ponty algumasreferências sobre o que ele considera a “falaautêntica” dentro de uma perspectiva feno-menológica para fazermos uma análise maiscompleta das possibilidades do uso da falano documentário.

Tomamos a fala como representativa e re-

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veladora por ser um dos pilares fundamen-tais sobre o qual se estrutura o filme docu-mentário aqui analisado já que o seu caráterinformativo tem como base, além do gesto,principalmente a palavra falada.

Em sua observação, o autor parte do fenô-meno da fala e reconhece, primeiramente,que o pensamento, no sujeito falante, não éuma representação, isto é, não coloca expres-samente objetos ou relações. Quem fala, nãopensa antes de falar, nem mesmo enquantofala – sua fala é o seu pensamento. A de-nominação dos objetos não ocorre depois doreconhecimento, ela é o próprio reconheci-mento. Nesse sentido, a palavra, longe deser o simples sinal dos objetos e das signifi-cações, habita as coisas e veicula as signifi-cações. A fala, naquele que fala, não traduzum pensamento já feito, mas o realiza.

Do ponto de vista fenomenológico, a falanão é “símbolo” do pensamento, se se en-tende por isso um fenômeno que anuncia umoutro, pois na verdade, eles estão englobadosum no outro, o sentido é tomado na palavrae a palavra é a existência exterior do sentido.É necessário que, de uma maneira ou de ou-tra, a palavra e a fala deixem de ser uma ma-neira de designar o objeto ou o pensamento,para tornar-se a presença deste pensamentono mundo sensível, não sua vestimenta, masseu corpo.

Segundo o autor, existe sob a significa-ção conceitual das palavras, uma significa-ção existencial, que não é somente traduzidapor elas, mas que as habita e é inseparáveldelas. A operação da expressão faz existira significação como uma coisa no coraçãomesmo do texto, quando se trata de obra li-terária, ela a instala no escritor ou no leitorcomo um novo órgão dos sentidos, ela abreuma nova dimensão à nossa experiência. Na

música, acrescenta o autor, a significaçãomusical de uma sonata, por exemplo, é inse-parável dos sons que a trazem – uma vez ter-minada a execução, só poderemos, nas nos-sas análises intelectuais da música, reportar-nos ao momento da experiência ; durante aexecução, os sons não são somente os “sím-bolos” da sonata, mas ela existe através de-les, ela descende deles. Nesse sentido, a ex-pressão estética confere ao que ela exprimea existência em si, ou, em outras palavras, aoperação expressiva realiza a significação enão se limita a traduzi-la. O pensamento ea expressão constituem-se, pois, simultane-amente. A palavra é um verdadeiro gesto econtém seu sentido como o gesto contém oseu. É o que torna possível a comunicação.

A intenção significativa que movimenta apalavra não é um pensamento explícito, masuma certa fala que procura se preencher, umamodulação sincrônica da existência de quemfala, uma transformação mesma do ser.

O autor chama a atenção para o fato deque, pela aparência das coisas, acreditamosser a palavra a expressão do pensamento. Oque nos faz crer num pensamento que exis-tiria por si antes da expressão, são os pen-samentos já constituídos e já exprimidos quepodemos lembrar e pelos quais damos a ilu-são de uma vida interior. Esses pensamen-tos já constituídos estão cheios de palavras,esta vida interior é uma linguagem interior.Nesse sentido, o pensamento “puro”, afirmao autor, se reduz a um certo vazio da consci-ência, a um voto instantâneo.

Vivemos num mundo onde a palavra éins-tituída,considera Ponty. Nesse sentido, paratodas as palavras do cotidiano possuímos emnós mesmos significações já formadas. Elassó suscitam em nós pensamentos segundos;estes por sua vez se traduzem em outras pa-

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lavras que não exigem de nós nenhum es-forço de compreensão. Assim, a linguageme a compreensão da linguagem parecem se-guir por conta própria e é no interior de ummundo já falado e falante que refletimos.Perdemos a consciência do que há de contin-gente na expressão e na comunicação, sejana criança que aprende a falar, seja no escri-tor que diz e pensa pela primeira vez algumacoisa ou em todos que transformam em pala-vras um certo silêncio.

Desse modo, Merleau Ponty distingue apalavra autêntica, que formula pela primeiravez, de uma expressão secundária, uma pa-lavra sobre palavras, que forma o comum dalinguagem empírica. Somente a primeira éidêntica ao pensamento. Se é palavra au-têntica, ela levanta um sentido novo, comoo gesto dá pela primeira vez um sentido hu-mano ao objeto, se é um gesto de iniciação.As significações adquiridas, nesse momento,são significações novas. É necessário reco-nhecer, pois, como um fato último essa forçaaberta e indefinida de significar – quer dizerao mesmo tempo apreender e comunicar umsentido – pelo qual o homem se transcendeem direção a um comportamento novo, ouem direção ao outro, ou ainda, em direção aseu próprio pensamento através de seu corpoe de sua palavra.

Nos interessa chamar a atenção para al-guns aspectos da fala autêntica apresentadapor Ponty já que estamos buscando identi-ficar o que seja um encontro pleno entre osseres. A palavra que é pensamento em ato(a palavra autêntica) só pode acontecer entreduas pessoas que se entregam mutuamentena conversação, cuja intenção significativa seencontra no estado nascente e formula pelaprimeira vez.

Dessa maneira, podemos aproximar a no-

ção de fala autêntica apresentada por Pontydo conceito de conversação genuína consi-derada por Buber e da formulação do queseja congruência para Rogers. Os três au-tores apontam na direção do autêntico, doque é formulado pela primeira vez, no sen-tido de fazer emergir algo novo entre os se-res, algo que não está dado de antemão, quetraz a marca do acontecimento pleno entreduas totalidades que se tocam mutuamente.

Lembremos da distinção que Buber fazentre uma conversação genuína e o palavre-ado quando chama a atenção para o fato deque, em geral os homens não falam real-mente um com o outro mas, cada um, em-bora voltado para o outro, fala na verdade auma instância fictícia, que se reduz ao fato deescutá-lo. Essa distinção é idêntica àquelaelaborada por Merleau Ponty quando dife-rencia a palavra autêntica da expressão se-cundária. Para Buber, na conversação ge-nuína voltar-se para o parceiro se dá numaverdade total, ou seja, é um voltar-se do ser.“O dizer é ao mesmo tempo natureza e obra,broto e formação, e onde ele aparece dialogi-camente, no espaço onde a grande fidelidaderespira, este dizer precisa realizar sempre denovo a unidade dos dois.”27

Ainda segundo o autor, a palavra nascesubstancialmente , vez após vez, entre ho-mens que, nas suas profundidades, são capta-dos e abertos pela dinâmica de um elementarestar-juntos. O inter-humano propicia aquiuma abertura aquilo que de outra maneirapermanece fechado.

Essa palavra que nasce entre os homensque estão conectados pela dinâmica da con-versação genuína considerada por Buber é o

27Buber, Martin, op. cit.,1982.

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que Ponty define como palavra autêntica emoposição a expressão secundária.

É Ponty quem afirma – Desde que o ho-mem se serve da linguagem para estabeleceruma relação viva com ele mesmo e com seussemelhantes, a linguagem não é mais um ins-trumento, não é mais um meio, é uma mani-festação, uma revelação do ser íntimo e dolaço psíquico que nos une ao mundo e a nos-sos semelhantes.

Essa afirmação de Ponty poderia ser assi-nada por Buber tal é a semelhança com assuas proposições. Os dois consideram a lin-guagem como fundadora e reveladora dos se-res. Em ambos a palavra pertence à esfera darelação entre os homens no sentido de reve-lar a condição humana na sua essência, é arevelação do ser íntimo como coloca Ponty,ou o conhecimento íntimo considerado porBuber.

O conceito de congruência elaborado porRogers para indicar uma correspondênciaentre a experiência, a consciência e a comu-nicação numa relação humana se refere, emúltima análise, ao florescimento de uma pa-lavra que integra essas três dimensões, umapalavra que brota do interior da pessoa comoalgo vivo e presente. Rogers afirma que, seum indivíduo é, num dado momento, intei-ramente congruente, sua experiência fisioló-gica pode ser adequadamente representadana consciência, nunca incluindo, portanto, aexpressão de um fato exterior. Isso porque,continua o autor, a consciência que está emconformidade com a experiência, sempre iráexprimir-se como sentimentos, percepções,significações derivadas de um quadro de re-ferência interno. Se uma pessoa for profun-damente congruente, toda a sua comunica-ção se situará necessariamente num contextode percepção pessoal.

O sentido da congruência aproxima-se dealguns aspectos tratados por Buber quandocaracteriza a conversação genuína – “ onde apalavra dialógica existe de uma forma autên-tica, é pela franqueza que se deve fazer-lhejustiça. Tudo depende da legitimidade da-quilo que tenho a dizer . Devo também estaratento para elevar ao nível de uma palavra in-terior e em seguida ao nível da palavra pro-ferida aquilo que tenho a dizer precisamenteagora mas que ainda não possuo sob a formade linguagem.”

A fala, assim considerada, toma uma di-mensão profundamente humana e existen-cial, onde revela-se o seu sentido relacional.Remonta ao seu sentido originário trazendouma vibração energética que, com a banali-zação de seu uso foi se perdendo ao longo dotempo.

A fala autêntica adquire, nessa perspec-tiva, uma posição fundamental dentro docontexto da relação que se instaura entreduas subjetividades na realização do docu-mentário. É ela que nos interessa alcançar.A fala que revela, aquela que é pensamentoem ato, aquela que brota das profundezas doser.

12 Representação da Fala –Cinema direto

O cinema direto foi um marco fundamentalna trajetória do documentário - a distânciaentre o realizador e o outro (sujeito e temado filme) se encurtou em função das possibi-lidades do som direto. Como consideramosanteriormente, começava ser possível deixarde falarpelooutro, através de uma narraçãooff , e falarcomo outro. A terceira pessoa dosingular deu lugar à primeira pessoa, àquela

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que fala por si própria, de corpo presente,com sua gestualidade e entonação de vozque tornam o seu testemunho vivo e presentecomo nunca antes tinha sido possível. Afala assume importância crucial na constitui-ção desse tipo de documentário, que adquireum caráter de tempo presente, de tempo fla-grado em sua continuidade. O ponto de vistatorna-se móvel, todos podem dar o seu de-poimento, a palavra torna-se acessível.

É nesse contexto que a relação do realiza-dor com o outro torna-se imprescindível noprocesso de produção do documentário , poisa interação entre as partes, que se dá princi-palmente na forma de entrevistas ou depoi-mentos, é um dos fatores que determinará ocurso da narrativa do filme. À partir dessemomento, o intercâmbio é flagrado dentro dopróprio filme, as imagens passam a ser o tes-temunho visual desse encontro.

A qualidade de tempo presente é bastanteintensa, os acontecimentos que irão partici-par do filme podem tomar caminhos diferen-tes segundo a interação dos agentes. Nessesentido, a relação entre o realizador e o outroé fundamental porque é ela que vai determi-nar o rumo dos acontecimentos.

As entrevistas dentro do filme interativo,em contrapartida ao filme expositivo estrutu-rado por uma narração over, são a prova dainteração do realizador e o outro envolvido.

As entrevistas podem se apresentar demuitas maneiras que delineiam formas nar-rativas diferentes ente si. Num primeiro mo-mento, podemos considerar a entrevista emque o realizador está presente, em quadro.A câmera, nesse caso, é testemunha do en-contro e o realizador torna-se personagem dofilme.

Num segundo momento, temos os casos

de entrevista em que o realizador está forado quadro:

Pode ser que o realizador não esteja emquadro porque ele também é o cinegrafista.Nesse caso, sua voz está sempre presente e osujeito do filme fala sempre olhando para acâmera.

Quando o realizador não acumula a funçãode cinegrafista, pode acontecer de sua voz es-tar presente, mas o sujeito que fala não olhamais para a câmera mas sim em sua direção.

Outra situação é aquela em que, além deestar fora do quadro, também não ouvimosa voz do realizador. Nesse caso, o caráterde entrevista empalidece e a fala do sujeitotoma a forma de depoimento.

O cinema direto não se caracteriza comoum bloco monolítico no que diz respeito àssuas possibilidades narrativas que resultamde diferentes modos de se relacionar com arealidade. Mas podemos afirmar que ele secaracteriza por uma atitude e uma técnica ci-nematográfica específicas em todas as etapasde realização do filme.

Para Gilles Marsolais28, o realizador dessetipo de documentário se caracteriza por umaatitude de observação e pesquisa. Ele en-contra a substância de seu filme na vida ena sociedade. Nesse caso, para o cineasta,não se trata de “fabricar” a priori uma his-tória e defini-la num roteiro fechado e decu-pado. Os próprios acontecimentos e a rela-ção do realizador com eles é que vão definiro andamento do filme.

É claro que essa atitude se traduz de diver-sas maneiras segundo cada realizador. Al-guns irão tomar notas sobre algumas idéiascentrais que poderão nortear o trabalho, ou-tros se preocuparão em delinear algumas

28Marsolais, Gilles, op. cit.

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ações possíveis que sejam representativas,outros ainda farão uma pesquisa exaustivasobre o assunto que será abordado ou pode-rão imaginar um tipo de linguagem que seadapte melhor ao tema, mas nenhum terá emmãos, antes da filmagem, um roteiro prontoe decupado.

A equipe do documentário direto é bas-tante reduzida, compondo-se de duas à qua-tro pessoas, em média – o diretor, o cinegra-fista, o técnico de som, um assistente. Vamostraçar, em linhas gerais, as atividades corres-pondentes a cada um.

O cinegrafista do documentário não tem asua atividade programada e definida comono caso da ficção. Ele não sabe de ante-mão oque vai acontecer ecomovai acon-tecer. Na maioria das vezes, ele tem de seadaptar às condições dadas pelo lugar e pe-las pessoas presentes. Poucas são as vezesem que será possível fazer uma iluminaçãoespecial e não existe a possibilidade de es-tar com a câmera posicionada de acordo comuma decupagem definida anteriormente. Arealidade é que será o seu ponto de partida.O seu esforço é múltiplo – estar atento aosacontecimentos, decidir muito rapidamentecomo enquadrá-los no sentido de obter umaimagem que capte o essencial e seja coerentecom as premissas do filme discutidas como diretor anteriormente, quando é impossí-vel para o diretor falar diretamente com ele,principalmente se está filmando em som di-reto.

A responsabilidade do técnico de som re-cai exatamente no que foi a inovação do ci-nema direto – a captação sincrônica entreimagem e som . A escolha do microfone ade-quado à cada situação é muito importante,sendo que o direcional é o mais usado porpermitir selecionar os sons que interessam.

O técnico de som precisa escolher os sonsque irá privilegiar à cada instante, seguindoos movimentos da câmera, para que esses te-nham uma presença que corresponda às ima-gens.

Nesse contexto, a principal função de umdiretor é traduzir suas intenções, transmitir oque considera essencial naquilo que irá serfilmado, no sentido de manter a equipe emsintonia com determinada idéia, sentimentoou percepção, criando uma coesão do pontode vista à ser perseguido.

Ao diretor cabe estar sempre atento aosacontecimentos e suas possibilidades dentroda trajetória do filme como um todo. Ele temde se relacionar, a todo instante, com a vidaque está em andamento e que se reinventa emfunção do próprio fazer fílmico. Ele não di-rige atores ou personagens definidos num ro-teiro, ele participa diretamente da realidadeque está em curso, de cada instante presentee é nesse sentido que a sua relação direta como outro é criadora e fundadora do filme.

Dentro do contexto de preocupação esta-belecido por essa pesquisa está exatamente arelação que o diretor instaura com o sujeitodo filme como determinante para a realiza-ção do documentário. A postura que ele as-sume perante o outro, o vínculo que ele esta-belece com ele é o cerne de nossa discussão,já que acreditamos que a qualidade dessa re-lação é fundamental no sentido do filme con-ter uma pulsação própria que traduza algo desingular e intransferível através de seus sonse suas imagens.

13 O Tempo

“Assim como o escultor toma um blocode mármore e, guiado pela visão interiorde sua futura obra, elimina tudo que não

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faz parte dela – do mesmo o cineasta, apartir de um “bloco de tempo” consti-tuído por uma enorme e sólida quanti-dade de fatos vivos, corta e rejeita tudoaquilo que não necessita, deixando ape-nas o que deverá ser um elemento do fu-turo filme, o que mostrará ser um compo-nente essencial da imagem cinematográ-fica.”Andrei Tarkovski

O cinema nasceu “como um meio de re-gistrar o movimento da realidade em suaconcretude e especificidade, no interior dotempo e único; de reproduzir indefinida-mente o momento, instante após instante, emsua fluida mutabilidade – aquele instante quesomos capazes de dominar ao imprimi-lo napelícula. É isso que determina o veículo ci-nematográfico. A concepção do autor torna-se uma testemunha viva, humana, capaz deemocionar e cativar o público só quando con-seguimos lançá-la na impetuosa corrente darealidade, que apreendemos com firmeza emcada momento concreto e tangível a que da-mos expressão – único e irrepetível em tex-tura e sentimento... De outra forma, o filmeestá condenado a morrer antes mesmo de ternascido.”29

Essa observação de Tarkovski, cineastarusso, nos remete à principal característicada arte cinematográfica – o movimento emsua duração ou, em outras palavras, o mo-vimento transcorrido em um intervalo detempo. Tempo e espaço se cruzam no ho-rizonte do cinema, formando a tessitura dofilme.

O cineasta, cuja obra está impregnada pela“discussão” da noção de tempo, aponta como

29Tarkovski, Andrei, Esculpir o Tempo, EditoraMartins Fontes, São Paulo, 1998.

obra inauguradora do cinema o filme ‘Lárri-vée d’un Train en Gare de La Ciotat, feitopor Auguste Lumière e resultado da inven-ção da câmera, da película e do projetor.Pela primeira vez na história das artes o ho-mem descobria um modo deregistrar umaimpressão do tempo.Tarkovski consideraque nesse momento surgia um novo princí-pio estético no sentido de que se instauravaa possibilidade de reproduzir na tela essetempo e de repeti-lo quantas vezes se dese-jasse, conquistara-se uma matriz do tempo,como coloca o autor.

“O tempo, registrado em suas formas emanifestações reais:é esta a suprema con-cepção do cinema enquanto arte, e que nosleva a refletir sobre a riqueza dos recursosainda não usados pelo cinema, sobre seu ex-traordinário futuro.” 30Foi esse o ponto departida de Tarkovski no caminho percorridopelo seu cinema - o tempo em forma deevento real.

Para o autor o cinema é capaz de operarcom qualquer fato que se estenda no tempo.A imagem cinematográfica consiste, basica-mente, na observação dos eventos da vidadentro do tempo, organizados em conformi-dade com o padrão da própria vida e semdescurar das suas leis temporais. O elementobásico do cinema, nesse sentido, é a observa-ção direta da vida.

Essa consideração de Tarkovski vem sesomar à caracterização que fizemos do filmedocumental como sendo uma representaçãodo mundo histórico onde o outro está sem-pre presente. Nesse sentido, ainda citando oautor, podemos afirmar que o cinema é, antesde tudo, um registro da impressão do tempo.

No filme documentário esse tempo está di-

30Tarkovski, Andrei, op. cit.

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retamente ligado ao tempo do outro, esse ou-tro real em carne e osso que se expressa demaneira única e singular. Podemos mesmoafirmar que, perceber e traduzir o tempo dooutro, é um dos fundamentos do documentá-rio.

Tarkovski aponta para o fato de que a con-cretude da imagem cinematográfica nos édada através das formas naturais e reais davida percebida pelos sentidos da visão e daaudição. A pureza do cinema está justamentena capacidade dessas imagens de expressarum fato específico, único e verdadeiro. O au-tor segue esse caminho afirmando que a ima-gem torna-se verdadeiramente cinematográ-fica quando não apenas vive no tempo, masquando o tempo também está vivo em seu in-terior, dentro mesmo de cada fotograma. Aforça do cinema reside no fato de ele se apro-priar do tempo, junto com aquela realidadematerial à qual ele está indissoluvelmente li-gado.

Esse pulsar do tempo interno é que nos in-teressa. No tipo de documentário aqui ana-lisado, uma das marcas mais representati-vas da presença do outro acontece atravésda fala, seja por entrevistas, depoimentos ouainda por uma narração em off. A fala dooutro marca o seu tempo. A expressão deum rosto ou de um corpo enquanto a falaacontece, suas pausas para pensar, refletir,duvidar ou mesmo se contradizer configu-ram a dimensão da fala, instaura o tempodo inter-humano, o tempo do pensamento seformando, brotando e vindo à tona. Ouvir osilêncio é fundamental para se compreendera totalidade da fala.

A duração da fala no tempo precisa serrespeitada em sua integridade, é preciso le-var em conta o tempo da expressão que está

se formando, do pensamento que está sendoformulado.

Se, num primeiro momento o importantesão as condições para que se estabeleça umdiálogo verdadeiro, para que surja a palavraautêntica, aquela que formula pela primeiravez, num segundo momento, a importânciase desloca para a sua representação no filme.

A representação da fala precisa conter essepulsar interno da expressão de quem está fa-lando.

14 Representação do Tempo

Até agora nos preocupamos com as condi-ções necessárias para que se instaure uma re-lação dialógica entre o realizador e o outropor acreditarmos que a qualidade dessa re-lação é determinante para o processo de re-alização do documentário em questão. Porisso a postura do cineasta e sua relação como sujeito do filme foi analisada tendo comopano de fundo os conceitos de conversaçãogenuína, fala autêntica, congruência e auten-ticidade e parceria vistos pela perspectiva deBuber, Merleau Ponty e Rogers.

A questão que se coloca agora é como im-primir na película esse encontro, como pas-sar da relação, propriamente dita, para a suarepresentação cinematográfica? Como man-ter e representar esse pulsar interno das açõese falas dos sujeitos ?

Primeiramente, podemos apontar comofator dominante da imagem cinematográfica“o ritmo, que expressa o fluxo do tempo nointerior do fotograma.”31

Consideramos essa afirmação, feita pelocineasta no contexto do cinema de ficção, ab-solutamente válida em se tratando do filme

31Tarkovski, Andrei, op. cit.

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documentário, no sentido de considerar queem cada fotograma já está impresso o ritmodado pelo realizador dentro de cada tomada,cada enquadramento e na duração das açõesdentro de cada plano rodado. Dessa maneira,a imagem cinematográfica nasce durante afilmagem e existe no interior do quadro.

Tarkovski considera que o tempo especí-fico que flui através das tomadas cria o ritmodo filme, e o ritmo não é determinado pelaextensão das peças montadas, mas, sim, pelapressão do tempo que passa através delas.

Essa observação vem reforçar a importân-cia da qualidade da relação entre o realizadore o outro no documentário. Essa “química”entre os sujeitos se traduz, em termos cine-matográficos, em imagens prenhes de fluxotemporal. A transparência da imagem, suavibração interior depende da vibração do queestá acontecendo na realidade. A imagemnão inventa, traduz. Não podemos percebera totalidade do universo, mas uma imagemcarregada de poesia é capaz de exprimir essatotalidade.

O fluxo do tempo precisa ser filmado eprecisa manter-se representado. No mo-mento da filmagem, ele se instaura quandoo contato entre os sujeitos é genuíno, terrafértil onde brota apalavra autênticae onde acongruênciaé plena. É importante saber ini-ciar o plano no momento certo e, principal-mente, saber quando terminá-lo para manteracesa a energia que vibra.

Na filmagem, a decisão quanto à duraçãodo plano tendo em vista o seu fluxo de tempointerno, depende de vários fatores. Na hipó-tese do realizador ser também o cinegrafista,essa percepção depende somente de sua sen-sibilidade e percepção frente ao outro. Masnem sempre o realizador acumula a funçãode cinegrafista e quando isto não acontece

há que se criar uma sintonia bastante finaentre essas duas funções, já que, no docu-mentário, a questão da improvisação, da ne-cessidade de estar sempre atento aos acon-tecimentos e conseguir uma espécie de sin-tonia com eles, é fundamental para sua rea-lização. As decisões do diretor, muitas ve-zes, se confundem com as decisões tomadaspelo cinegrafista. O olhar do diretor, muitasvezes, se confunde, ou talvez seja mais pre-ciso dizer, funde-se com o do cinegrafista. Arelação entre ambos é fundamental para quehaja coesão na percepção do fluir do tempoem cada tomada. Na verdade, essa percep-ção é também construção desse fluir tempo-ral, pois a câmera estará sempre escolhendoum ponto de vista para “contar” os acon-tecimentos. Numa entrevista, por exemplo,durante o depoimento da pessoa, a câmeraflagra, ao se aproximar num plano mais fe-chado, um gesto da mão que revela uma ten-são e que traz uma conotação singular ao dis-curso. Quando a imagem volta ao rosto jáserá com outra significação. O gesto da mão,de alguma maneira, trouxe uma nova pers-pectiva ao rosto, acrescentou-lhe uma novavida. A conexão entre diretor e cinegrafistadeve sempre apontar na direção dessa pro-cura da vibração interna do tempo da açãopara que as suas decisões construam essaharmonia.

A comunicação entre diretor e cinegrafistapassa por olhares, gestos e mímicas que du-rante as filmagens representam verdadeiroscódigos facilitadoras da conversação mudaque necessariamente se estabelece. Intuiçãoe sensibilidade são ingredientes fundamen-tais que, tanto um quanto outro, precisar es-tar acessando, para que o filme se construacom um olhar coerente e definido frente aos

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acontecimentos e situações que vão transcor-rendo.

Não importa quais os procedimentos ado-tados durante a filmagem para que se decidaa duração de um plano. O mais importanteé que a referência para essa decisão esteja li-gada à percepção do fluxo de tempo internoao plano – esse deve ser sempre o parâmetro.

Em se tratando do documentário, o papelda montagem varia muito. As vezes, o filmeé construído na moviola; suas articulaçõesinternas, o encadeamento das situações, sãodeterminadas na sala de montagem ou edi-ção. Mas, mesmo assim, o fluxo do tempojá está dado, a pressão do tempo presente emcada plano já está impressa. Cabe à mon-tagem otimizar o potencial de cada tomada,perceber onde as coisas se encaixam pela suaprópria dinâmica interna; os planos comoque se procuram e se complementam, dandoforma ao filme como um todo. Esse filmeintuído, vislumbrado, antes do processo defilmagem e que agora emerge como unidadepronta e acabada.

Na verdade , o tempo impresso no foto-grama, como considera Tarkovski, é quemdita o critério da montagem. A duração deum plano já está organicamente traçada noseu interior.

No processo da montagem, é preciso estaratento à mesma questão – manter o temposempre numa leve linha de tensão para quepossamos senti-lo transcorrer. Tomemos umexemplo concreto de uma entrevista- ima-ginemos o rosto de uma mulher contandoalgo que para ela é difícil – ela fala, ela he-sita, pára e pensa, volta a falar, mais umapausa. É uma fala entrecortada, cheia desilêncios. Geralmente, as pausas sonoras,quando o rosto fica em quadro depois de fa-lar, ou antes, ou durante, são consideradas

tempo morto e cortadas na edição, princi-palmente em se tratando do padrão adotadopela televisão, onde pausa significa tempoperdido. O ritmo dessa “limpeza” é falso.Essas pausas são muito significativas, fazemparte do universo de quem fala, elas se so-mam ao que foi dito, deixam a imagem “fa-lar” por si, expressam a essência da imagemcinematográfica. Elas constituem o tempo dequem fala. A expressão de um rosto ou deum corpo, entre as falas, pode dizer muitomais do que a palavra, pode revelar algumaemoção intraduzível mas sensivelmente visí-vel.

A duração de um plano não pode ser umadecisão arbitrária. Acreditamos que ela es-teja organicamente ligada à percepção dessetempo interno de cada tomada. Tarkovski ar-gumenta que o tempo dentro de uma tomadase torna perceptível quando sentimos algo designificativo e verdadeiro, que vai além dosacontecimentos mostrados na tela; quandopercebemos, com toda a clareza, que aquiloque vemos no quadro não se esgota em suaem configuração visual, mas é um indício dealguma coisa que se estende para além doquadro, para o infinito: um indício de vida.Sempre há mais num filme do que aquilo quese vê, pelo menos se for um verdadeiro filme.Ao registrar fielmente na película o tempoque flui para além dos limites do fotograma,o verdadeiro filme vive no tempo, se o tempotambém estiver vivo nele.

O tempo real do acontecimento que, emlinguagem cinematográfica se traduz noplano seqüência, feito sem cortes, muitas ve-zes é a melhor maneira de representar o fluxode tempo e sua vibração contida na ação.

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15 O Tempo Real

De que forma o cinema imprime o tempo?Tarkovski responde a essa questão di-

zendo que é na forma de um evento con-creto. E um evento concreto pode ser cons-tituído por um acontecimento, uma pessoaque se move ou qualquer objeto material;além disso, aponta o autor, o objeto podeser apresentado como imóvel e estático, con-tanto que essa imobilidade exista no cursoreal do tempo.

O tempo em forma de evento real. Nessesentido Tarkovski aponta a essência do tra-balho de um diretor como sendo a atitude de“esculpir o tempo”. Ele compara o trabalhodo diretor ao do escultor que toma um blocode mármore e, guiado pela visão interior desua futura obra, elimina tudo aquilo de quenão necessita, deixando apenas o que deveráser um elemento do futuro filme, o que mos-trará ser um componente essencial da ima-gem cinematográfica.

O cinema, em sua essência, trabalha comsegmentos de tempos reais impressos na pe-lícula. Do ponto de vista formal, um filmeé uma sucessão de “ pedaços de tempo e depedaços de espaço.”32

Com o advento do som direto, possibili-tando a captação de som sincrônico na filma-gem, o cinema ganha maior consistência emrelação ao grau de indexalidade da imagem.

Consideramos “um índice como sendo umsigno que se refere ao objeto que ele denotaem virtude de ter sido realmente afetado poreste objeto.”33

No caso do cinema documental, a dimen-são sonora traz uma maior integração da

32Burch, Noel, Práxis do Cinema, Editora Perspec-tiva, São Paulo, 1992.

33Xavier, Ismail, op. cit, 1997.

imagem com a realidade que está sendo re-presentada. O som correspondente às ima-gens - não falseia, ao contrário, atesta todasas nuanças de uma expressão, de um aspectoda natureza, dando uma maior consistênciaao tempo real que transcorre dentro de umplano ou de uma seqüência.

O som direto dá à imagem a medida exatade seu tempo interno. Toda ação tem seu mo-mento final, o momento onde ela já não diz.Toda ação carrega em si uma sonoridade to-talmente integrada ao gesto. Toda ação pro-duz o seu som correspondente (que pode sero silêncio). Som e imagem se fundem car-regadas de sentido interno e registrados nofluxo interno de cada fotograma.

Se o trabalho do diretor é esculpir otempo, esse tempo impresso no fotograma,ele o faz tendo como referência o transcorrerda imagem e do som num determinado inter-valo de tempo.

No documentário em som direto, o outro,aquele que se constitui no sujeito do filme,é quem carrega as marcas do processo vitalinterno a cada fotograma.

A possibilidade do som sincrônico trouxeuma tensão interna a cada plano, tensão essadada pelo tempo real que flui em cada mo-vimento, gesto ou palavra filmada. O gestoencontrou a sua verdadeira dimensão, a suaverdadeira vibração interna e a palavra pro-ferida ganhou em autenticidade.

O cinema mudo exacerbava os seus ges-tos, acentuava a sua pantomima principal-mente como uma forma de compensaçãopara a lacuna que se instaurava pela falta dosom que correspondesse à imagem. “A vozausente re-emerge em gestos e em contor-ções do rosto, espalha-se sobre o corpo doator. O estranho efeito do cinema mudo naera do som está em parte ligado à separação,

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por meio de intertítulos, entre a fala de umator e a imagem do corpo dele ou dela”.34

Em sua análise sobre a voz no cinemaMary Ann Doane parte da relação entre voz ecorpo como sendo fundamental – quem podeconceber uma voz sem um corpo? – questi-ona a autora.

Se a dublagem permitia uma aproxima-ção maior do corpo e sua voz, o som di-reto trouxe à essa questão uma integraçãoreal entre o corpo que fala e a voz corres-pondente. A presença do corpo se torna maisintegrada e sua expressão mais carregada detempo presente, tempo que transcorre.

Mary Ann aponta para o fato de que oacréscimo do som no cinema introduz apossibilidade de representar um corpo maischeio e organicamente unificado e ainda deconfirmar o status da fala como um direitode propriedade individual.

Com o som direto isso se exacerba e o di-reito à voz se democratiza, o direito à palavrase torna a marca registrada do cinema direto.

Os procedimentos narrativos cinematográ-ficos estão sempre referidos à articulação doespaço e do tempo. Se no filme de ficçãoessa articulação é planejada através da “de-cupagem”, que vem a ser o último estágio doroteiro, no documentário, essa articulação éfeita durantea filmagem edurantea monta-gem. É no processo de realização que vão sedefinindo as posições de câmera, a duraçãodos planos, os enquadramentos, em funçãodos acontecimentos que vão se desenrolandoao longo das filmagens.

Não nos interessa aqui definir regras e pa-drões para as diferentes possibilidades de ar-ticulação entre os planos no filme documen-

34Doane, Mary Ann, A voz no cinema, in A Expe-riência do Cinema , op. cit.,1983.

tário. Nos interessa, sim, pensar em direçõesa serem perseguidas em função do que con-sideramos fundamental.

Podemos afirmar que o cinema, em ge-ral, e o documentário que trabalha com osom direto e que tem o outro como tema,em particular, carregam a marca do tempo nasua constituição. O tempo é o elemento quefunda o cinema, ele lhe pertence.

A imagem nunca pode deixar de ser umvislumbre da verdade e, no caso do cinema,essa verdade contem o tempo. Como colocaTarkovski, a imagem concretizada será fielquando suas articulações forem nitidamentea expressão da verdade, quando a tornaremúnica e singular – como a própria vida é.

16 Conclusão

A representação artística acontece num con-texto individual, o artista elabora sua obra demaneira única e singular.

Lembrando algumas das considerações deBenedetto Croce, a arte abraça o todo e re-flete em si o cosmos. Pela intuição pura arepresentação artística acontece, o singularse revela e se dirige ao todo, no sentido deque toda representação artística autêntica éela mesma e o universo, é aquela forma indi-vidual enquanto universo.

Singular e universal se fundem na obra ar-tística e aí é que se encontra a sua possibi-lidade de comunicação, a sua capacidade deemocionar diferentes pessoas em diferenteslugares e épocas.

A obra de arte só atinge essa grandeza seo artista está em conexão direta com a suaintuição. Como afirma Croce, a forma artís-tica, individualizando, harmoniza a individu-alidade, e portanto, nesse mesmo ato univer-saliza.

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Como atingir essa conexão entre o eu e ocosmos na realização do documentário, re-presentação artística escolhida por essa pes-quisa, e que depende necessariamente da re-lação com o outro, diferentemente de um po-ema ou um livro, que se caracterizam comocriação mais solitária?

Concluímos que, no caso do documentárioque trabalha com o encontro de dois sujeitos– o realizador e o outro, essa relação acon-tece no terreno do inter-humano e, portanto,implica numa abordagem dialógica, onde apostura do realizador é o ponto de partida de-terminante dos acontecimentos dentro da re-alização do filme. A qualidade dessa relaçãofoi amplamente discutida tendo como baseos conceitos dafilosofia dialógicade MartinBuber,congruência e autenticidadede CarlRogers efala autênticade Merleau Ponty.

A subjetividade do realizador, fundamentoda sua expressão artística, está necessaria-mente, prenhe de impressões e afetos quenascem da relação com o outro. A qualidadeda relação, a autenticidade do encontro, por-tanto, trazem elementos fundamentais paraque se dê o conhecimento entre realizador eo outro e para que o filme consiga a univer-salidade da forma artística. Nesse sentido, otipo de documentário analisado aqui começaa se constituir enquanto obra no momento doencontro.

A repercussão da obra no espectador, asua conexão com a obra depende dela dofato de atingir uma dimensão universal en-raizada na subjetividade do artista que en-contra ressonância na subjetividade do es-pectador. As imagens repercutem em nossaalma, tornando-se um ser novo da nossa lin-guagem.

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