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Fernando Ilídio da Silva Ferreira O ESTUDO DO LOCAL EM EDUCAÇÃO Dinâmicas Socioeducativas em Paredes de Coura Instituto de Estudos da Criança UNIVERSIDADE DO MINHO Braga – Janeiro de 2003

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  • Fernando Ildio da Silva Ferreira

    O ESTUDO DO LOCAL EM EDUCAO Dinmicas Socioeducativas em Paredes de Coura

    Instituto de Estudos da Criana

    UNIVERSIDADE DO MINHO Braga Janeiro de 2003

  • II

    Fernando Ildio da Silva Ferreira

    O ESTUDO DO LOCAL EM EDUCAO Dinmicas Socioeducativas em Paredes de Coura

    Dissertao de Doutoramento

    em Estudos da Criana

    Instituto de Estudos da Criana

    UNIVERSIDADE DO MINHO Braga Janeiro de 2003

  • III

  • IV

    Agradecimentos

    Um percurso de investigao de mbito de doutoramento contm perodos

    longos de recolhimento, principalmente na fase de escrita da dissertao. Porm, tal

    no significa que o percurso se converta num empreendimento solitrio, por maioria de

    razo, tratando-se, no presente trabalho, de uma investigao etnogrfica, que , na

    sua essncia, colectiva e colaborativa. Neste tipo de pesquisa de terreno, o relatrio

    final conta uma histria, na qual o investigador o narrador-escritor, mas tambm

    um actor que contracena com outros actores no palco da aco concreta. Neste

    sentido, o trabalho tem as marcas da colaborao de muitas pessoas, a quem deixo

    aqui expresso o mais profundo reconhecimento.

    Agradeo, em primeiro lugar, a abertura e disponibilidade manifestadas por

    diversos profissionais, servios e instituies que desenvolvem, ou desenvolveram, a

    sua actividade no concelho de Paredes de Coura. No podendo nome-los a todos,

    agradeo, de uma maneira geral, aos professores do 1 ciclo do ensino bsico e

    educadores de infncia, aos profissionais e dirigentes que trabalham ou trabalharam

    no OUSAM, ao Centro de Formao das Escolas de Paredes de Coura, aos membros

    do Conselho Executivo do Agrupamento Territrio Educativo de Coura, aos

    profissionais envolvidos no Projecto de luta contra a pobreza e a excluso social

    Terras de Coyra, a outros profissionais que trabalham no Centro de Sade e nos

    servios locais do Centro Regional de Segurana Social, Cmara Municipal de

    Paredes de Coura e a vrias Juntas de Freguesia. Agradeo, em particular, ao Manuel

    Monteiro, pois foi ele quem, em grande medida, facilitou o acesso e a ligao

    prolongada ao terreno, principalmente, no mbito do Centro de Formao, do OUSAM

    e do Projecto Terras de Coyra, tendo-se cimentado ao longo do processo de

    investigao laos de amizade, com muitas pessoas, que perduram para alm dele.

    Finalmente, destaco o papel de familiares, amigos e colegas, com quem tenho

    partilhado este e outros caminhos. Dirijo um agradecimento especial a Joo

    Formosinho, meu orientador, pelos diversos projectos em que temos estado

    envolvidos e que tm constitudo importantes factores de desenvolvimento

    profissional. Ao meu irmo Jos Ferreira, agradeo a disponibilidade que prontamente

    revelou para fazer uma reviso do texto desta dissertao. Isabel, Dnia e ao

    Daniel, dedico este trabalho, pela sua presena constante e afectuosa e por terem

    sabido conviver com a minha presena, algumas vezes ausente, diante do

    computador.

  • V

    N D I C E

    INTRODUO .. 1

    PRIMEIRA PARTE

    CONSTRUINDO UMA PROBLEMTICA E UM OBJECTO DE ESTUDO: O LOCAL COMO UNIVERSO COMPSITO

    CAPTULO I As trs ltimas dcadas do sculo XX: o local e o global nas sociedades contemporneas

    1. Sinais de um tempo de transio: a mudana de paradigma 19

    2. Dois temas em debate: as classes sociais e as instituies .... 30

    2.1. O tema das classes sociais: das desigualdades excluso . 32

    2.2. O tema das instituies: o caso da escola pblica . 41

    3. O local, o global e o nacional em recomposio . 48

    3.1. Os fenmenos de globalizao e de localizao 51

    3.2. A questo do Estado nacional, da poltica e da democracia 58

    3.3. A anlise das polticas e da aco pblicas 63

    CAPTULO II Para o estudo das polticas e das dinmicas socioeducativas a partir de um contexto de aco concreta

    1. O estudo do local em educao . 69

    1.1. A educao no apenas a escola e o local no apenas o lugar ................. 75

    1.2. A territorializao das polticas e da aco educativas 91

    2. Posicionamento epistemolgico: prioridade descoberta do terreno .. 101

    2.1. Os conceitos de autonomia relativa e de lgicas de aco . 106

    2.2. Prioridade descoberta do terreno .. 114

    3. O contexto e a metodologia do estudo .. 123

    3.1. O mtodo: o estudo de caso etnogrfico . 124

    3.2. O dispositivo de colheita e anlise de dados .. 132

    3.3. Um contexto e dois pontos de entrada para a realizao do estudo 137

    3.3.1. O contexto: o concelho de Paredes de Coura ................................................ 137

  • VI

    3.3.2. Primeiro ponto de entrada: o OUSAM e as dinmicas locais de animao

    infantil e comunitria ..

    152

    3.3.3. Segundo ponto de entrada: a escola rural e as dinmicas locais de

    reordenamento da rede escolar .................

    159

    SEGUNDA PARTE

    O CONTEXTO E A NARRATIVA: ESTUDO DAS DINMICAS SOCIOEDUCATIVAS NO CONCELHO DE

    PAREDES DE COURA

    CAPTULO III O OUSAM e as dinmicas de animao infantil e comunitria

    1. A gnese do OUSAM como Projecto: descoberta do ser criana

    construindo a comunidade no meio rural .

    169

    2. De projecto a servio: a institucionalizao .. 190

    3. Desafios e tenses de um processo de mudana ................. 209

    4. Excesso de passado e dfice de presente: o fim dos militantes? . 238

    5. A impregnao do social pela forma escolar ....... 253

    6. O trabalho de educao de infncia: entre a sala e a comunidade .... 262

    7. O trabalho social: entre o projecto e o programa ... 288

    CAPTULO IV A escola rural e as dinmicas de reordenamento da rede escolar

    1. No princpio era a EBI: o Projecto da Escola Bsica Integrada .. 317

    2. Do projecto Comisso de Reestruturao da Rede Escolar: as

    ambiguidades da participao ......................

    333

    3. Da EBI ao Agrupamento de Escolas: excesso de futuro e dfice de presente 353

    4. O Agrupamento de Escolas Territrio Educativo de Coura: a azfama

    burocrtica ..

    370

    5. As mudanas vistas pelos professores: o imaginrio da forma escolar disciplinar 386

    6. A concentrao vista: a controvrsia .............. 405

  • VII

    TERCEIRA PARTE

    TRS PROBLEMTICAS, TRS PALAVRAS-CHAVE: ANIMAO, GESTO E PARCERIA

    CAPTULO V Educao e desenvolvimento local. Palavra-chave: animao

    1. O conceito de desenvolvimento e a abordagem do Desenvolvimento Local ... 431

    2. Um debate sobre o mundo rural, a partir da anlise crtica de um estudo de

    oportunidades de desenvolvimento realizado em Paredes de Coura .

    438

    3. Uma anlise crtica da viso escolocntrica da relao entre educao e

    desenvolvimento .

    451

    4. Palavra-chave: animao .. 460

    CAPTULO VI As reformas educativas dos anos 80-90. Palavra-chave: gesto

    1. A propagao de um esprito gestionrio: a onda neoliberal e a ideologia da

    modernizao .......................................

    473

    2. A persistncia da lgica de reforma, no contexto das polticas de autonomia e

    gesto da escola ..

    488

    3. Palavra-chave: gesto .................. 503

    CAPTULO VII O novo esprito das polticas sociais pblicas. Palavra-chave: parceria

    1. A formao de um mundo conexionista: a metfora da rede . 517

    2. A poltica do dilogo, no perodo de governao do Partido Socialista 531

    3. Transformaes na esfera do Estado e da aco pblica: a lgica contratual 536

    3.1. As novas estratgias de aco estatal ... 537

    3.2. A lgica contratual das polticas sociais pblicas . 542

    4. Palavra-chave: parceria . 552

    CONCLUSO ... 567

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS . 593

    RESUMO/ABSTRACT... 631

  • 1

    INTRODUO

    O objecto: o estudo do local em educao

    As trs ltimas dcadas do sculo XX foram palco de um renovado

    interesse pelo local, em termos polticos e cientficos. Este interesse no

    novo, pois trata-se de um ressurgimento, ou de uma redescoberta, num

    contexto em que se verifica, por um lado, uma crise de legitimidade do Estado

    nacional e de procura, por parte deste, de novas estratgias de relegitimao e,

    por outro, a ocorrncia de fenmenos simultneos de globalizao e de

    relocalizao. Este renovado interesse pelo local est associado, igualmente,

    crescente complexidade dos problemas sociais do desemprego, da pobreza, da

    excluso e da sua tambm crescente visibilidade social, poltica, cientfica e

    meditica , os quais emergiram ou se agravaram durante este perodo, e

    incapacidade demonstrada e reconhecida pelos prprios poderes pblicos

    centrais de encontrarem solues para os mesmos. Assim, se, por um lado, o

    renovado interesse pelo local dos prprios actores locais, fomentando o

    associativismo e desencadeando diversos tipos de iniciativas, por outro, do

    prprio Estado, que tem vindo a assumir-se como uma instncia de regulao e

    de mobilizao, procurando veicular a mensagem de que passa a

    desempenhar um papel mais perifrico e a conferir o papel central aos actores

    locais tradicionalmente perifricos.

    Neste perodo em que o Estado se proclama como regulador,

    animador, supervisor e avaliador, renunciando, tendencialmente, ao uso da

    noo de controlo e utilizando, preferencialmente, noes como pilotagem,

    superviso e monitorizao, torna-se necessrio que a anlise sociolgica

    se interesse pelas novas estratgias de aco estatal, designadamente pelas

    que tm vindo a fazer apelo descentralizao, territorializao e

    contratualizao das polticas pblicas. Associadas a estes fenmenos,

    diversas noes, como, autonomia, participao, projecto, contrato, parceria,

    partenariado, territrio e comunidade, tm sido abundantemente utilizadas,

    quer no plano da aco local quotidiana, quer ao nvel das polticas pblicas

    que se tm voltado para o local como forma de relegitimao da aco estatal.

  • 2

    O seu uso tem-se generalizado de tal modo que parece ter-se tornado num

    vocabulrio obrigatrio para formular, descrever e analisar os problemas

    sociais e educativos contemporneos.

    certo que a mudana dos tempos costuma trazer consigo novas

    linguagens, mas o que mais caracterstico neste perodo o seu alargamento

    aos mais diversos domnios da aco humana, a sua utilizao pelos mais

    diversos actores sociais e a sua no circunscrio a um pas ou sector

    especfico. Trata-se de um fenmeno que atravessa os discursos oficiais, os

    media e o debate pblico, em diversas partes do mundo, nomeadamente, na

    Europa. Para alm disso, este vocabulrio tem sido abundantemente utilizado,

    quer pelos actores que intervm nas esferas nacional e europeia, quer pelos

    actores locais; quer no domnio cientfico, quer na linguagem comum,

    revelando um aparente consenso sobre a realidade social. necessrio, por

    isso, analisar as lgicas que subjazem utilizao destas noes e

    compreender no apenas o que elas revelam, mas tambm o que escondem.

    As polticas socais pblicas, ditas territoriais e contratuais, tm vindo

    a fazer apelo iniciativa local e ao trabalho em rede e em parceria, quer no

    domnio escolar, atravs, por exemplo, das polticas de autonomia e de gesto

    local da escola, quer noutros domnios da aco social, atravs de projectos de

    luta contra a pobreza e a excluso, de iniciativas de desenvolvimento local, de

    polticas municipais, de dinmicas de animao comunitria. O local parece ter-

    se tornado, assim, o horizonte privilegiado das polticas e da aco

    socioeducativas.

    , em grande medida, em resposta s crticas ao centralismo e

    burocratizao do Estado, reproduo das desigualdades e a outras crticas

    que durante os anos 60 e 70 tiveram como alvo as instituies em geral e, em

    particular, a Escola, que surgem as ideias descentralizadoras e os apelos aos

    dinamismos locais. Porm, a proclamada devoluo de poderes ao local no se

    traduz, de forma linear, como entendido e sugerido frequentemente, num

    reforo do princpio da comunidade, em detrimento dos princpios do Estado e

    do mercado. O mesmo fenmeno abre caminho, sobretudo a partir da dcada

    de 80, a uma propagao das polticas neoliberais. Se bem que proliferem,

    desde ento, os apelos autonomia, participao, democracia e

  • 3

    cidadania locais, isso acontece num contexto dominado por uma vaga de

    reformas educativas assentes em lgicas de compatibilizao problemtica,

    como a democratizao, a modernizao e o neoliberalismo (Lima e Afonso,

    2002).

    At aos anos 60, o acordo sobre as questes da Educao no era

    difcil de alcanar, pois o Estado era reconhecido como a nica instncia

    legtima de definio do bem comum, com base num nico princpio de justia

    a igualdade de oportunidades. A partir do final dos anos 60, os princpios de

    justificao pluralizaram-se, a legitimidade do Estado comeou a ser posta em

    causa e tornou-se visvel a dificuldade de o acordo ser alcanado a nvel

    nacional. neste contexto que se difundem as ideias de devoluo de poderes

    ao local, supondo-se a possibilidade de o designado sistema educativo

    nacional funcionar a partir de reajustamentos e compromissos locais, isto , a

    partir da definio de um bem comum local. No entanto, tal como comeara a

    revelar-se difcil alcanar o acordo a nvel nacional, tambm comeou a

    verificar-se a dificuldade de ele ser alcanado a nvel local, pois este

    atravessado igualmente por uma pluralidade de mundos os mundos cvico,

    domstico, industrial, de mercado, da comunidade.

    Tendo em conta esta complexidade, que caracteriza as sociedades

    locais de hoje, Jean-Louis Derouet (2000) sustenta que uma das questes

    essenciais que se coloca investigao sociolgica a da natureza das

    montagens que se recompem localmente a partir dessa pluralidade de

    mundos. Neste sentido, o estudo do local em educao j no pode ser feito

    num registo de justificao simples, em torno de dicotomias como Estado e

    mercado, centro e periferia, actor e sistema. Em grande medida, estas

    dicotomias derivam de uma abordagem tradicional estadocntrica, quer em

    termos polticos, quer em termos cientficos, e a superao desta abordagem

    implica a utilizao de um registo de justificao compsita que articule a

    observao local com a reflexo sobre os aspectos mais globais do mundo em

    que vivemos, incluindo a dimenso scio-histrica, de modo a contextualizar,

    no espao e no tempo, o estudo das polticas e da aco educativas.

    Do mesmo modo como se operaram, ao longo das trs ltimas dcadas,

    profundas mudanas societais, tambm se verificaram mudanas do ponto de

  • 4

    vista epistemolgico, com implicaes na anlise, interpretao e explicao

    das dinmicas sociais e educativas. A reemergncia da problemtica do local

    na investigao sociolgica em educao, a partir dos anos 70 e, sobretudo,

    durante os anos 80, est vinculada, por um lado, s transformaes

    econmicas e sociais e do prprio Estado e da aco pblica, e, por outro, a

    transformaes internas prpria disciplina, com o retorno do actor, o

    interesse pelos estudos microssociolgicos, o desenvolvimento do trabalho de

    terreno e a passagem de uma abordagem causal para uma abordagem

    Interpretativa (Van Zanten; Derouet e Sirota, 1987a e 1987b). Sobretudo

    atravs de abordagens etnogrficas, assiste-se a uma renovao dos estudos

    empricos e constituio de novos problemas e objectos cientficos

    transestatais, transnacionais e transeducativos, que fazem apelo a um novo

    registo em que os microfenmenos, embora possam ser encarados como micro

    do ponto de vista geogrfico, no o podem ser do ponto de vista analtico.

    Como tal, o seu estudo pode tornar-se possvel operando analiticamente

    atravs de uma descoincidncia articulada entre uma problemtica terica

    extensa e um objecto emprico intenso (Correia, 1998). Para alm disso, como

    diz Sousa Santos, os objectos tm fronteiras cada vez menos definidas; so

    constitudos por anis que se entrecruzam em teias complexas com os dos

    restantes objectos, a tal ponto que os objectos em si so menos reais que as

    relaes entre eles (2000: 70). Trata-se, portanto, de um registo hbrido que

    define os objectos mais pela mestiagem do que pela pureza terica e analtica

    (Ardoino, 1992).

    Apesar de se tornar cada vez mais visvel esta hibridez e mestiagem no

    campo educativo, designadamente, nos territrios locais, onde se organizam

    dinmicas associativas, relaes inter-institucionais, redes e parcerias

    envolvendo profissionais de diversos sectores, a Escola e as suas questes

    internas continuam a manter um lugar preponderante nos estudos

    educacionais. Num trabalho sobre as Cincias da Educao em Portugal,

    Antnio Nvoa (1991) conclui que os estudos mais interiores ao campo

    educativo revelam uma clara predominncia das questes do ensino e da

    formao de professores, fazendo das Cincias da Educao sobretudo

    cincias da escolaridade e do ensino. Os temas mais abordados passam pela

  • 5

    sala de aula (o ensino-aprendizagem, as didcticas, a relao pedaggica),

    pela formao de professores e por um discurso genrico em torno dos

    fundamentos da educao e do sistema educativo, verificando-se, no entanto,

    a ausncia de uma reflexo sistemtica sobre os campos no-escolares das

    Cincias da Educao. Antnio Nvoa considera, por isso, que constitui um

    desafio para as Cincias da Educao o reforo da interveno nestes campos,

    que vo desde as Cincias da Formao at s problemticas da Educao

    e Desenvolvimento ou da animao comunitria e educativa. No mesmo

    sentido, Rui Canrio (1996) defende que a territorializao das prticas e das

    polticas educativas pode construir-se a partir de distintos pontos de entrada

    e no, necessariamente, a partir da escola. Entre outros exemplos, a

    interveno no campo da sade, a reabilitao de ofcios tradicionais, a luta

    contra a pobreza, o combate e preveno da iliterao, o apoio criao de

    emprego, constituem outros tantos pontos de partida para construir dispositivos

    integrados de educao e formao, a nvel local, com a emergncia do

    carcter estratgico e estruturante de modalidades educativas no formais e

    informais.

    A incluso, no presente trabalho, dos temas da animao comunitria e

    do desenvolvimento local, bem como das relaes entre as dimenses sociais

    e educativas, formais e informais, numa perspectiva de globalizao da aco

    educativa (Pain, 1990), tem em vista, exactamente, provocar uma

    descentrao do universo escolar, no o ignorando, mas analisando-o em

    confronto com outras lgicas, pretendendo-se, assim, questionar e superar a

    tradicional viso escolocntrica, da qual tem estado prisioneira, em grande

    medida, a abordagem dos fenmenos educativos. De igual modo, ao optar-se

    pela realizao do estudo num concelho rural Paredes de Coura pretende-

    se questionar uma viso urbanocntrica que tem remetido o mundo rural, em

    termos polticos, sociais e cientficos, para a periferia. Considera-se que o

    questionamento e a superao desta viso cntrica pode tornar-se possvel

    atravs de um pensamento reticular crtico que permita analisar, interpretar,

    compreender e explicar as dinmicas sociais em diferentes escalas e nas suas

    interconexes.

  • 6

    Assim, num contexto em que se afirma o ressurgimento do local como

    palco das polticas e da aco socioeducativas e a emergncia da parceria e

    da rede como modalidades de interveno, necessrio, por um lado,

    compreender como se comportam os centros tradicionais, designadamente, o

    Estado e a Escola, e, por outro, como se desenvolvem novas dinmicas e

    interconexes entre os domnios escolar e social e entre os nveis local,

    nacional-estatal e global.

    Embora diversos autores defendam que as profundas mudanas

    operadas ao longo das trs ltimas dcadas geraram um novo mundo um

    mundo conexionista, organizado em rede (Castells, 1998; Boltanski e

    Chiapello, 1999), a viso cntrica estadocntrica, urbanocntrica,

    escolocntrica parece continuar a dominar o modo de agir e de pensar sobre

    os fenmenos sociais contemporneos. Tomemos como exemplo trs centros

    historicamente consolidados, cuja legitimidade comeou a ser posta em causa

    a partir dos anos 60: o Estado, a Sociedade e a Escola. A ideia de sociedade,

    tal como a de Estado, surgiu e desenvolveu-se com base numa viso unitria e

    homognea, do mesmo modo que a de Escola, que se tornou de tal modo

    central que passou a confundir-se a noo de educao com a noo de

    educao escolar. Face a esta crise de legitimidade das instncias constitudas

    historicamente como centros, foi conferida uma nova centralidade ao local

    e ao estabelecimento de ensino, mas, aparentemente, sem se operar uma

    desvinculao de um pensamento cntrico.

    Sobretudo a partir dos anos 80, diversos estudos passaram a focalizar-

    se no local e no estabelecimento de ensino, mas ignorando ou

    desvalorizando a aco estatal e outros dinamismos macro, bem como as

    interconexes entre diversos fenmenos sociais que se revelam, tambm

    escala local, cada vez mais reticulares ou conexionistas. Um dos objectivos

    principais do presente trabalho , pois, proceder ao questionamento deste

    modo cntrico de olhar o mundo, que a cincia moderna criou e que ainda

    hoje est enraizado nas nossas representaes. Defende-se que no

    possvel compreender as dinmicas sociais do nosso tempo utilizando os

    mesmos instrumentos conceptuais e analticos construdos no tempo em que o

  • 7

    funcionamento da sociedade, do Estado e das instituies era encarado luz

    de uma viso cntrica, unitria e homognea.

    O presente estudo desenvolve-se, pois, luz de um pensamento

    reticular crtico e em torno de duas coordenadas: uma coordenada temporal,

    luz da qual se discutem e analisam as profundas mudanas societais e

    epistemolgicas operadas a partir do final dos anos 60, e uma coordenada

    espacial, ou territorial, que corresponde ao contexto de aco concreta onde se

    realiza o estudo das dinmicas socioeducativas locais o concelho de Paredes

    de Coura. No se pretende realizar um estudo sobre o concelho, enquanto

    unidade geogrfica e administrativa, nem se ambiciona estudar todas as

    dimenses econmica, social, cultural e poltica das dinmicas locais.

    Trata-se de um estudo de dinmicas socioeducativas que nele se tm

    ancorado e desenvolvido ao longo das dcadas de 80 e 90, constituindo-se o

    concelho como o contexto ou a plataforma de estudo das mesmas. Para o

    efeito, foram definidos dois pontos de entrada. O primeiro diz respeito s

    dinmicas locais de animao infantil e comunitria, que tiveram incio nos

    anos 80 a partir do Projecto OUSAM1, e o segundo s dinmicas locais de

    reordenamento da rede escolar, que tiveram incio nos anos 90 a partir de um

    Projecto que comeou por envolver o Centro de Formao das Escolas de

    Paredes de Coura e os professores, passando depois a ser conduzido e posto

    em prtica pela autarquia municipal.

    O mtodo: o estudo de caso etnogrfico

    A presente investigao decorre de uma ligao ao concelho de Paredes

    de Coura que ultrapassa a durao formal do projecto de doutoramento, que

    teve incio em 1999. Ao longo de quase uma dcada, a observao e a escuta

    do terreno foram sugerindo diversas pistas de investigao, temas para anlise,

    perplexidades, contrastes e contradies, que iam remetendo o investigador

    para um maior aprofundamento das questes de pesquisa, quer atravs da

    continuidade da ligao ao contexto e da multiplicao e triangulao das

    1 O OUSAM uma Instituio Particular de Solidariedade Social (IPSS), cuja sigla significa Organismo Utilitrio e Social de Apoio Mtuo, mas, como nos disseram alguns fundadores, foi pensada, tambm, como forma do verbo ousar.

  • 8

    fontes de informao, quer atravs da leitura de obras de reflexo terica,

    epistemolgica e metodolgica e de trabalhos empricos, os quais, por sua vez,

    no apenas ajudavam a compreender as dinmicas sociais em estudo, como

    tambm suscitavam novas perplexidades e novas questes de pesquisa. A

    teoria e a empiria interpelam-se, portanto, mutuamente, ao longo de todo o

    trabalho.

    O mtodo utilizado o estudo de caso etnogrfico. Uma das

    caractersticas principais deste mtodo tem a ver com o facto de implicar a

    presena prolongada do investigador nos contextos sociais em estudo e o

    contacto directo com as pessoas, as situaes, os acontecimentos. Trata-se de

    um mtodo de pesquisa de terreno, cuja essncia a observao participante,

    mas recorre-se, tambm, na presente investigao, entrevista e anlise

    documental. Embora algumas das caractersticas que permitem distinguir este

    mtodo de outros mtodos de investigao decorram do facto de envolver um

    conjunto especfico de tcnicas, estratgias e procedimentos, as maiores

    diferenas so, no entanto, de ordem paradigmtica. Contrariamente ao

    paradigma positivista em que assenta a investigao do tipo estatstico-

    experimental, o paradigma interpretativo em que se insere o estudo de caso

    etnogrfico no tem em vista a verificao de regularidades, mas a anlise de

    singularidades. Enquanto que o primeiro est orientado para a prova e para a

    generalizao, o segundo est orientado para a descoberta e constitui-se

    como uma cincia do singular e do concreto. Por outro lado, enquanto que o

    paradigma positivista postula a distino entre o sujeito e o objecto de

    conhecimento, o paradigma interpretativo postula a interdependncia do sujeito

    e do objecto, atravs de um trabalho de interaco entre o investigador e os

    demais actores sociais.

    Relativamente ao primeiro ponto de entrada, o estudo desenvolve-se

    em torno de uma Instituio Particular de Solidariedade Social o OUSAM;

    quanto ao segundo, desenvolve-se em torno de uma pluralidade de actores

    individuais e colectivos, como o Centro de Formao das Escolas de Paredes

    de Coura e o seu director, a Cmara Municipal, grupos de professores em

    formao, o agrupamento de escolas Territrio Educativo de Coura, entre

    outros. Porm, em ambas as situaes no uma entidade que se pretende

  • 9

    estudar, mas antes a rede de relaes que se tece num determinado contexto

    e que se consubstancia como um processo ou dinmica social. O que define o

    caso como unidade de anlise , pois, o espao social concelhio e, se bem que

    cada um dos referidos pontos de entrada possa ser considerado um caso

    diferente, ambos se desenvolvem em torno de um conjunto de actores, de

    relaes e interaces ancorados num territrio e ambos concorrem para a

    anlise e interpretao das diversas lgicas de aco e para a compreenso

    holstica, e ao mesmo tempo heterognea, do universo local.

    A estrutura da dissertao

    Como se disse, a teoria e a empiria interpelam-se mutuamente, ao longo

    de todo o trabalho, mas em cada captulo essas dimenses surgem de um

    modo ora mais explcito ora mais implcito. A dissertao est organizada em

    trs partes e cada uma delas em diferentes captulos, tal como a seguir se

    apresentam, de forma sinttica.

    A primeira parte composta por dois captulos, comeando-se, no

    primeiro, por analisar as profundas mudanas operadas no mundo a partir do

    final dos anos 60, em termos societais e epistemolgicos, e prosseguindo-se,

    no segundo, a discusso e a elucidao conceptual e metodolgica tendentes

    realizao do estudo das dinmicas socioeducativas em Paredes de Coura.

    O trabalho desenvolve-se numa perspectiva sociolgica, mas considera-se que

    o que mais distintivo de uma investigao no tanto o seu registo disciplinar

    mas essencialmente as opes epistemo-metodolgicas tomadas, que so,

    neste caso, o paradigma interpretativo e crtico e a pesquisa qualitativa

    etnogrfica.

    nesta primeira parte que se inicia o processo de construo da

    problemtica e do objecto de estudo. Como explica Rui Canrio (1995a), o

    objecto de estudo no preexiste nem se situa numa relao de exterioridade

    relativamente aos investigadores, pois se assim fosse estaramos perante uma

    espcie de catlogo de objectos de estudo disposio do investigador para

    que ele pudesse fazer a sua opo. A construo do objecto de estudo

    intrnseca a cada processo de investigao e, por isso, a cada investigao

  • 10

    concreta corresponde um objecto de estudo especfico, construdo com base

    num olhar terico particular e enformado por um corpo articulado de teorias e

    de conceitos, isto , por uma problemtica. Uma problemtica terica ,

    portanto, um conjunto articulado de questes que estabelece um corte e

    delimita zonas de visibilidade, fornecendo um cdigo de leitura e de traduo

    da realidade que se pretende estudar.

    No caso da presente investigao, o estudo do local em educao

    refere-se ao estudo das polticas e da aco socioeducativas que tm vindo, ao

    longo das trs ltimas dcadas, a fazer apelo e a sustentar-se, em termos de

    discursos e de prticas, na dimenso local e territorial e na mobilizao dos

    actores locais para a resoluo dos problemas que as nossas sociedades

    enfrentam actualmente.

    Argumenta-se, no entanto, que o local no apenas o lugar e que a

    educao no apenas a escola. O local , hoje, penetrado e modelado por

    influncias sociais muito distantes e, embora os processos educativos ocorram

    entre pessoas e em situaes, grupos e instituies inseridos num determinado

    contexto, as caractersticas deste entrelaam-se com caractersticas dos

    contextos nacionais e transnacionais e com influncias do presente e do

    passado (Stoer e Corteso, 1999). De igual modo, no campo educativo

    participam hoje diversos profissionais, tais como, mdicos, enfermeiros,

    terapeutas, psiclogos, socilogos, professores e educadores de infncia,

    animadores socioculturais e comunitrios, tcnicos das reas de servio social,

    da sade e da justia, trabalhando de uma forma individual ou em equipa. A

    educao tem lugar em diversos contextos escolar, familiar, comunitrio e

    esto ao seu servio, com finalidades educativas e sociais, diversas

    instituies, servios, associaes, projectos, comisses, tais como escolas,

    jardins de infncia, centros de sade, bibliotecas, ATLs, IPSSs, associaes,

    autarquias, projectos de luta contra a pobreza e excluso social, comisses de

    proteco de crianas e jovens, entre outros. Estes novos fenmenos colocam-

    nos, portanto, num terreno mais hbrido e mestio do que o que nos

    tradicionalmente proporcionado pela escola.

    Contrariando-se uma lgica de justificao simples e alguns lugares-

    comuns que tendem a encarar o local como sinnimo de comunidade

  • 11

    identificando-o, frequentemente, com as ideias de colaborao, consenso e

    harmonia em oposio a um Estado dito centralista e burocrtico e a um

    mercado concorrencial, conceptualiza-se o local como um universo compsito,

    onde se entretecem lgicas de aco e de justificao diversas e se cruzam

    influncias dos processos de globalizao e das polticas do Estado. Tal

    implica perspectivar o local como palco de contrastes e contradies, sendo

    necessrio submeter estes fenmenos ao escrutnio da anlise emprica. Neste

    sentido, defende-se, de acordo com J. A. Correia (1998), uma epistemologia

    da controvrsia, a qual, ao considerar a objeco e o conflito como elementos

    essenciais de anlise, permite superar uma tendncia que aparentemente se

    tem vindo a instalar nas lgicas das polticas sociais pblicas e da aco local,

    designadamente, no campo da educao e de outros campos de interveno

    social, com base na ideia de que o local o espao da redeno, onde o

    acordo e o bem comum so consensualmente alcanados pelos actores

    locais autnomos, atravs de modalidades flexveis de trabalho em

    parceria, em rede e em projecto.

    A segunda parte apresenta, em dois captulos, o estudo realizado em

    Paredes de Coura, correspondendo cada um deles descrio densa

    (Geertz, 1973) ou anlise narrativa (Becker, 1992) das dinmicas locais, a

    partir dos dois pontos de entrada j referidos. Comea-se por analisar a

    gnese do OUSAM como projecto, na primeira metade da dcada de 80, e a

    forma como se desenvolveu at ao presente. Veremos que embora este

    desenvolvimento tenha sido atravessado por lgicas distintas de interveno,

    marcadas, designadamente, pela passagem progressiva, na esfera do trabalho

    social, de uma lgica de projecto a uma lgica de programa e pela

    tendencial fixao do trabalho de educao de infncia no espao da sala em

    detrimento do trabalho na e com a comunidade, a instituio mantm-se

    ainda hoje fiel a alguns princpios que nortearam a sua criao,

    designadamente o envolvimento de crianas e adultos nas suas actividades, a

    integrao das dimenses educativas e sociais, a interveno nas localidades

    mais dispersas do concelho numa lgica de proximidade e de globalizao da

    aco educativa. Em seguida, analisam-se as dinmicas de reordenamento da

    rede escolar, que esto em curso neste concelho desde a primeira metade da

  • 12

    dcada de 90, envolvendo sobretudo o 1 ciclo do ensino bsico e a educao

    pr-escolar. Veremos que, embora a problemtica da escola rural seja

    frequentemente encarada, em diversos discursos, como uma questo que ope

    apenas os poderes centrais aos poderes locais, pressupondo que os primeiros

    pressionam no sentido do encerramento das escolas e que os segundos

    promovem a sua defesa, o estudo levado a efeito em Paredes de Coura revela

    uma maior complexidade da questo, pois so os prprios actores locais,

    designadamente autarcas e professores, que decidem concentrar todas as

    crianas do concelho que frequentam o 1 ciclo do ensino bsico e algumas

    que frequentam a educao pr-escolar num nico edifcio escolar localizado

    na Vila, com o consequente encerramento de todas as escolas e de alguns

    jardins de infncia das freguesias.

    Na terceira e ltima parte, procede-se a uma re-problematizao

    alicerada nos resultados do estudo emprico, mas procurando-se ter em conta

    outros planos de anlise que ajudem a compreender, interpretar e explicar

    outros fenmenos associados ao ressurgimento do local nas sociedades

    contemporneas. Incorporando os planos da aco local e das polticas do

    Estado, os eixos sincrnico e diacrnico e, no menos importante, a

    experincia construda pelo investigador neste e noutros trabalhos de pesquisa

    dando expresso a um fenmeno que designamos por transversalidade

    metodolgica esta reflexo final desenvolve-se em torno de trs

    problemticas e trs palavras-chave: i) Educao e desenvolvimento local.

    Palavra-chave: animao; ii) As reformas educativas dos anos 80/90. Palavra-

    chave: gesto; iii) O novo esprito das polticas sociais pblicas. Palavra-chave:

    parceria. Com o desenvolvimento destas trs problemticas, pretende-se

    interpretar e compreender as dinmicas socioeducativas locais, mas tambm

    construir hipteses explicativas das lgicas que se inscrevem mais

    incisivamente em distintos perodos dos ltimos trinta anos. Salientaremos o

    surgimento da animao e do desenvolvimento local, nos anos 60-70, a

    difuso de uma lgica gestionria no mbito das reformas educativas dos

    anos 80-90 e a emergncia de um novo esprito das polticas sociais

    pblicas, nos anos 90, o qual obtm a mxima visibilidade, no nosso pas, no

    perodo de governao do Partido Socialista.

  • 13

    O percurso da investigao e do investigador

    A investigao sociolgica corresponde, na sua essncia, a um desejo e

    a um esforo intelectual de compreenso do mundo, que revela, ao mesmo

    tempo, a vontade de nos compreendermos a ns prprios. Neste sentido, ela

    profundamente autobiogrfica e expressa um olhar particular sobre o mundo

    em que vivemos.

    Embora a neutralidade almejada pelo paradigma positivista, supondo

    uma distino entre sujeito e objecto e entre factos e opinies, fosse, e seja

    ainda hoje considerada por muitos, como uma condio de cientificidade, a

    investigao social nunca neutra, pois sempre construda com base num

    olhar e num cdigo de leitura particulares. Acresce que estes no so sempre

    explicitados nas problemticas e nos objectos que se constrem, pois h

    aspectos implcitos que esto impregnados das nossas prprias

    representaes sociais e culturais. Por exemplo, as lentes com que, no

    presente trabalho, se analisam as dinmicas sociais, quer as referenciadas a

    uma escala mais global, quer as referenciadas empiricamente ao contexto

    local, so as de um investigador social que est inserido na cultura ocidental e,

    como tal, configuram um olhar culturalmente fundado.

    Na sua dimenso autobiogrfica, que aqui reforada por se tratar de

    uma investigao de longo curso, o trabalho contm as marcas de um trajecto

    experiencial do investigador. No perodo de quase uma dcada em que a

    investigao decorreu, estive envolvido em diversos projectos de investigao,

    em encontros pedaggicos e cientficos, em actividades de orientao e

    coordenao de projectos, em aces de formao contnua de professores,

    em actividades de avaliao e consultoria de centros de formao, no apenas

    no prprio concelho de Paredes de Coura, como tambm noutros locais. Todas

    estas actividades contriburam, de diferentes modos, para o trabalho de

    pesquisa, atravs de um intenso processo de impregnao.

    Como j disse, o projecto de investigao de doutoramento teve incio,

    formalmente, em 1999, mas o percurso que lhe subjaz mais longo e pode ser

    comparado a uma bola de neve. Desde 1993 que tenho estado envolvido, no

  • 14

    concelho de Paredes de Coura, em diversos trabalhos de investigao e

    interveno relacionados sobretudo com o centro de formao de associao

    de escolas, enquanto consultor de formao, avaliador e formador. Numa fase

    inicial, a ligao a este contexto no era sistemtica nem decorria de objectivos

    relacionados com a presente investigao2. Tal aconteceu, sobretudo, a partir

    da investigao que levei a efeito no mbito do mestrado em Cincias da

    Educao, concludo em 1998 na Faculdade de Psicologia e de Cincias da

    Educao da Universidade do Porto (Ferreira, 1998a)3, e em trabalhos de

    avaliao que se seguiram, no Centro de Formao das Escolas de Paredes

    de Coura (Ferreira, 1999b)4. Este carcter prolongado da investigao facilitou

    no apenas o acesso ao terreno, no mbito do projecto de doutoramento, como

    tambm o prprio processo de recolha e anlise de dados, tendo em conta a

    familiaridade entretanto estabelecida com as pessoas e o conhecimento que foi

    sendo progressivamente construdo. Portanto, o caso no foi escolhido

    aleatoriamente, com propsitos de generalizao, mas deliberadamente, com

    base quer no conhecimento anteriormente produzido quer na possibilidade de

    acesso ao terreno que a realizao desses estudos permitiu.

    Ao longo deste perodo de quase uma dcada, a minha ligao a este e

    a outros casos, em diversos projectos de investigao e interveno, foi

    consubstanciando o interesse aqui revelado pelo estudo do local em

    educao na dupla perspectiva das polticas e da aco educativas, do local

    e do global, dos campos escolares e no escolares, das dimenses educativas

    e sociais e, em particular, pelo estudo etnogrfico das dinmicas

    socioeducativas locais. Pela influncia que tiveram na emergncia deste

    interesse, destaco os trabalhos realizados e/ou publicados em co-autoria com

    Joo Formosinho, sobre polticas educativas (Ferreira e Formosinho, 1998 e

    Formosinho e Ferreira, 1999), com Manuel Sarmento, sobre comunidades

    educativas (Sarmento e Ferreira, 1995a e 1995b) e sobre a escola rural 2 O primeiro trabalho de investigao que deu incio a esta ligao ao concelho de Paredes de Coura foi

    realizado ao longo do ano de 1993, tendo envolvido um conjunto de Centros de Formao de Associao de Escolas, no perodo em que se estavam a formar, do qual fazia parte o Centro de Formao das Escolas de Paredes de Coura (Ferreira, 1994). 3 O Mestrado foi concludo com uma dissertao intitulada As Lgicas da Formao: um estudo das

    dinmicas locais, a partir de um Centro de Formao de Associao de Escolas. 4 Este trabalho tem o ttulo Formao e Envolvimento Local.

  • 15

    (Sarmento, Sousa e Ferreira, 1998), e com Antnio Sousa Fernandes, numa

    colectnea em que este autor aborda os temas da descentralizao e da

    regionalizao e onde incluo um texto intitulado O local, o global e a

    territorialidade educativa (Formosinho, Fernandes, Sarmento e Ferreira, 1999).

    Saliento, ainda, a publicao de um livro sobre Dinmicas Locais de

    Formao (Ferreira, 1998b)5 e de artigos intitulados As parcerias educativas e

    o caso da relao escola-famlias (Ferreira, 1999a) e A construo da

    autonomia em redes educativas (Ferreira, 2000)6, bem como a oportunidade

    de ter coordenado, ao longo do ano 2000, o Projecto de investigao-aco

    Criar Laos Dinmicas de Educao de Infncia em Comunidades Rurais,

    desenvolvido, tambm, em Paredes de Coura, no mbito do qual foram

    apresentadas duas comunicaes em congressos (Ferreira, Monteiro e Cunha,

    2000; Ferreira, 2000)7.

    Finalmente, saliento mais dois factores, aos quais no alheia, tambm,

    a biografia e a experincia do investigador, que contriburam para a

    emergncia deste interesse pessoal, profissional e acadmico pelo estudo

    do local em educao e, mais especificamente, pelas polticas sociais

    territorializadas, pelas dinmicas locais que envolvem as crianas e os seus

    mundos de vida, pela formao dos diversos profissionais que com elas

    trabalham. O primeiro decorre do facto de ter iniciado e desenvolvido, ao longo

    de quase dez anos, um percurso profissional ligado ao ensino primrio, que

    permitiu ter trabalhado em vrias escolas rurais, desenvolvido processos de

    animao comunitria e realizado uma experincia de alguns anos no campo

    do associativismo docente. O segundo tem a ver com o facto de trabalhar,

    desde 1992, numa escola universitria dedicada aos estudos da criana o

    Instituto de Estudos da Criana da Universidade do Minho , no mbito da qual

    tenho participado em diversos projectos e actividades de formao e

    5 Esta obra corresponde, embora no inteiramente, ao texto da dissertao de mestrado. 6 A obra em que este texto est publicado tem o ttulo Polticas Educativas e Autonomia das Escolas (Formosinho, Machado e Ferreira, 2000).

    7 Este Projecto teve o apoio do IIE (Instituto de Inovao Educacional) e foi apresentado no Congresso Internacional Os Mundos Sociais e Culturais da Infncia, na Universidade do Minho, entre 19 e 22 de Janeiro de 2000, e na 10th European Conference on Quality in Early Childhood Education, no Instituto de Educao da Universidade de Londres, entre 29 de Agosto e 1 de Setembro de 2000.

  • 16

    investigao, que se exprimem, em grande medida, nesta dissertao, como

    uma sntese.

  • 17

    PRIMEIRA PARTE

    CONSTRUINDO UMA PROBLEMTICA E UM OBJECTO DE ESTUDO: O LOCAL COMO UNIVERSO COMPSITO

  • 18

  • 19

    CAPTULO I

    AS TRS LTIMAS DCADAS DO SCULO XX: O LOCAL E O GLOBAL NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

    1. Sinais de um tempo de transio: a mudana de paradigma

    Todos os tempos so de mudana, mas h perodos em que as

    transformaes so mais aceleradas e profundas. Pela sua dimenso e

    complexidade, as mudanas que tm vindo a operar-se desde a II Guerra

    Mundial e, particularmente, ao longo das trs ltimas dcadas, tm alimentado

    amplos debates sobre as condies e caractersticas do mundo em que

    vivemos. Boaventura de Sousa Santos (2000) argumenta que estamos a viver

    num tempo de transio paradigmtica, em termos societais e epistemolgicos,

    dizendo que a nossa sociedade uma sociedade intervalar, situada na

    transio do paradigma da modernidade ocidental, sedimentado ao longo dos

    ltimos duzentos anos, para um paradigma emergente ainda difcil de

    identificar mas do qual se vislumbram alguns sinais. Sobre este tempo de

    transio, o autor escreve, sugestivamente: H um desassossego no ar.

    Temos a sensao de estar na orla do tempo, entre um presente quase a

    terminar e um futuro que ainda no nasceu (Santos, 2000: 39).

    Este perodo tem sido objecto de muitas anlises, que procuram dar

    conta dos diversos fenmenos que tm vindo a ocorrer e que tm gerado

    profundas transformaes cientficas, tecnolgicas, econmicas, polticas,

    sociais, culturais. Em muitas destas anlises tem sido utilizada uma viso

    vinculada ao calendrio, mais propriamente mudana de sculo e de milnio,

    revelando essencialmente leituras profticas, apocalpticas ou esperanosas do

    mundo. Mas, como esclarece Sousa Santos, o desassossego que

    experienciamos neste perodo de transio nada tem a ver com lgicas de

    calendrio, mas antes com a desorientao dos mapas cognitivos,

    interaccionais e societais que nos eram familiares e que deixaram de o ser.

    Esta desfamiliarizao torna difcil a nossa interpretao e compreenso do

    mundo e dos fenmenos que nele tm lugar e mais difcil ainda a interveno

    activa e lcida sobre os mesmos.

  • 20

    Do ponto de vista cultural, o Maio de 68 tem sido assinalado como o

    incio deste perodo. O Maio de 68 simboliza a crise cultural, a concomitante

    recusa de um modelo de civilizao baseado nos valores materiais do

    consumo, a contestao radical da autoridade e a proclamao dos valores da

    autonomia, da autenticidade, da livre expresso8. Do ponto de vista econmico,

    a crise do petrleo da primeira metade da dcada de 70 e a crise financeira

    dela decorrente tm servido, tambm, para assinalar o fim do perodo que se

    seguiu II Guerra Mundial isto , o fim dos trinta gloriosos anos do fordismo

    e o incio de uma nova era, que tem sido frequentemente designada como a

    era da informao9. Portanto, no final dos anos 60, princpio dos 70, opera-se

    uma dupla ruptura cultural e econmica na viso optimista do progresso

    que se consolidara, com base numa ideologia desenvolvimentista, durante o

    perodo do ps-Guerra. Em consequncia, as transformaes geradas na vida

    social contempornea so profundas. As noes de sociedade ps-fordista ou

    ps-industrial10 e, mais recentemente, a noo de globalizao, passaram a ser

    muito utilizadas para dar conta destas transformaes.

    Coabitam, portanto, nas nossas sociedades duas geraes que viveram

    nos dois perodos distintos j referidos: o perodo que se seguiu II Guerra

    Mundial e o perodo mais recente das trs ltimas dcadas (Baudelot e

    Establet, 2000)11. Ambos esto marcados por acontecimentos que mudaram o

    mundo. Relativamente aos acontecimentos dos finais dos anos 60,

    protagonizados pelos movimentos de juventude, que proclamavam a libertao

    e se insurgiam contra a guerra do Vietname, contra os privilgios sociais e

    corporativos, contra os privilgios de classe, j conhecemos algumas

    8 Alain Touraine escreveu na altura o seguinte sobre o Maio de 68: a grande palavra de ordem dos tecnocratas que dirigem a sociedade : adaptai-vos. O movimento de Maio respondeu: exprime-te (1972: 11). 9 Sobre a era da informao ver a importante obra de Manuel Castells, organizada em trs volumes, intitulados a sociedade em rede, o poder da identidade e fim de milnio (Castells, 1998, 1999a, 1999b) 10 Dois dos primeiros autores a sugerir a ideia de uma sociedade ps-industrial emergente foram Alain Touraine, em Frana (Touraine, 1970) e Daniel Bell, nos Estados Unidos (Bell, 1973). 11 Nesta obra, Christian Baudelot e Roger Establet analisam a evoluo da sociedade francesa no intervalo compreendido entre o final dos anos 60 e o final dos anos 90 e tem precisamente como ttulo Ter 30 anos, em 1968 e em 1998.

  • 21

    consequncias12; relativamente aos acontecimentos iniciados nos anos 90,

    protagonizados sobretudo pelos movimentos antiglobalizao, ainda cedo

    para as conhecermos em profundidade. Estes movimentos incluem

    Organizaes No Governamentais (ONGs), pacifistas, ecologistas, activistas

    dos direitos humanos e radicais das mais diversas causas e intervm

    sobretudo quando as multinacionais, corporaes, instituies e grupos que

    representam o capitalismo globalizado, como a Organizao Mundial do

    Comrcio (OMC), o Fundo Monetrio Internacional (FMI), o Banco Mundial,

    entre outros, organizam cimeiras13.

    Embora sejam frequentemente designados por movimentos

    antiglobalizao, nos seus fundamentos eles configuram antes exemplos do

    prprio fenmeno da globalizao, pois os activistas obtm nos seus

    instrumentos (tecnolgicos, de comunicao, de transporte, etc.) um forte apoio

    para se organizarem. Organizam-se em rede e utilizam as tecnologias da

    globalizao, como a Internet, tal como os outros agentes, designadamente os

    que actuam escala mundial no plano econmico e financeiro. Em grande

    medida, portanto, os motivos da luta contra a globalizao no tm a ver com a

    globalizao em si mesma, pois esta tem diversas vertentes tecnolgica,

    econmica, financeira, cultural, poltica, etc. mas antes com uma forma

    especfica de globalizao a globalizao neoliberal. Protestando

    essencialmente contra os efeitos da globalizao econmica e financeira,

    assente na competio e no lucro, aquele movimento reclama uma

    globalizao justa que no produza a destruio do planeta e a misria da

    maioria da populao mundial.

    Podemos encontrar explicaes comuns para estes movimentos os

    movimentos de juventude do final dos anos 60 e os movimentos

    antiglobalizao do final dos anos 90 mas eles tm motivaes e objectivos

    12 Sobre o Maio de 68 e sobre os seus efeitos no perodo dos trinta anos que se lhe seguiram, ver a obra de Jean-Pierre Le Goff, publicada em 1998, na qual o autor argumenta que necessrio assumir de maneira crtica a herana do Maio de 68. Entre outros efeitos, incluem-se a fragilizao das instituies, como o Estado, a Escola, a Famlia, e a emergncia de novas formas de individualismo. 13 Recorde-se, por exemplo, as diversas manifestaes que tm vindo a ocorrer desde o final dos anos 90, designadamente, entre 1999 e 2001, as de Seattle, em torno da Conferncia da Organizao Mundial do Comrcio; de Washington, aquando da reunio do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional; de Davos, aquando do Frum Econmico Mundial; de Gnova, em torno da Reunio do G8.

  • 22

    muito diferentes. Enquanto que os movimentos de juventude do Maio de 68

    ocorreram num tempo de crescimento econmico e de pleno emprego e, como

    tal, no constituam uma reaco a uma crise econmica mas antes uma crtica

    aos valores tradicionais da sociedade, os movimentos antiglobalizao surgem

    numa altura de grande preocupao com o fenmeno do desemprego, com os

    problemas ambientais, com a situao de extrema pobreza em que vive uma

    grande parte da populao mundial e afirmam como seu objectivo principal

    denunciar a injustia e as desigualdades geradas pelo capitalismo globalizado.

    Os movimentos de juventude reclamavam, na poca, um modo de

    desenvolvimento regido pelos princpios da flexibilidade, da mobilidade, da

    autonomia no trabalho; protestavam contra as rotinas a que os trabalhadores

    estavam sujeitos, contra a organizao hierrquica do trabalho, contra o

    proteccionismo do Estado; valorizavam os valores da competncia e da

    competitividade e rejeitavam os valores do corporativismo e do proteccionismo.

    Entretanto, a partir dos anos 70, os valores associados ao Maio de 68 foram

    sendo apropriados e incorporados pelo capitalismo e este mesmo, hoje, que

    apregoa os princpios da polivalncia, da flexibilidade, da autonomia. Ora,

    actualmente, os activistas dos movimentos antiglobalizao protestam,

    exactamente, contra a precarizao e as novas formas de controlo e

    explorao associadas ao modelo de organizao do trabalho baseado na

    flexibilidade e na polivalncia e, de uma maneira geral, contra a injustia e as

    desigualdades geradas pela globalizao neoliberal. Em grande medida,

    portanto, os princpios e valores que eram defendidos no final dos anos 60

    como condio de justia social, so agora apontados como factores de

    desigualdade e injustia e contra eles que lutam, embora de modos e com

    objectivos muito diferentes, os activistas dos movimentos antiglobalizao.

    Muitos analistas tm afirmado que as mudanas operadas a partir do

    final dos anos 60, princpio de 70, configuram a passagem de um modelo de

    organizao fordista para um modelo de organizao ps-fordista, de uma

    sociedade industrial para uma sociedade ps-industrial, de uma sociedade

    moderna para uma sociedade ps-moderna. Mas as correntes tericas em que

    estas perspectivas se baseiam no so homogneas. Enquanto umas tm

    procurado denunciar a indiferena, o vale tudo, o kitsch, a uniformizao

  • 23

    (Lyotard, 1979), que se mantiveram e agudizaram na sociedade dita ps-

    moderna, outras perspectivas tm apresentado uma verso mais doce desta

    sociedade, depositando nela todas as esperanas para a resoluo dos

    problemas do mundo. Os autores que rejeitam a ideia de que se operou uma

    transio que possa ser caracterizada em termos de uma passagem da

    modernidade para a ps-modernidade argumentam que as condies actuais

    no diferem fundamentalmente das que dominaram o mundo durante os

    ltimos dois sculos que estiveram na base da construo da modernidade.

    Autores como Giddens (1984), Habermas (1987a; 1987b) e Beck (1992) no se

    colocam na perspectiva da ps-modernidade, pois, segundo eles, as condies

    actuais da modernidade, ou da modernidade tardia, como refere Anthony

    Giddens, exprimem os mesmos traos tpicos da modernidade. Traos como a

    racionalizao, a burocratizao, a uniformizao mantm-se e tendem at a

    manifestar-se de uma forma mais radicalizada, aumentando as formas de

    colonizao do mundo de vida (Habermas, id., ib.).

    Assim, enquanto algumas perspectivas da ps-modernidade sustentam

    que o projecto da modernidade deve ser abandonado, sugerindo

    frequentemente que as promessas da modernidade, designadamente da

    igualdade de oportunidades, esto cumpridas ou esgotadas, Habermas sugere,

    pelo contrrio, que o projecto da modernidade contm ainda um potencial de

    emancipao que necessrio explorar pela via da aco comunicativa e de

    uma concepo deliberativa da democracia (Habermas, 1997). E, em casos de

    pases como o nosso, de desenvolvimento intermdio, da semiperiferia do

    sistema mundial (Santos, 1985; 1990) esta questo coloca-se de um modo

    particular, pois as promessas da modernidade no foram cumpridas como

    noutros pases centrais. Sousa Santos (1989) argumenta, porm, que a

    sociedade portuguesa embora tenha ainda de cumprir algumas das promessas

    da modernidade tem de as cumprir revelia da teoria da modernizao, pois

    enfrentamos problemas modernos para os quais no h solues modernas.

    Ora, este argumento vlido especialmente para as regies rurais como

    o caso da que serve de palco ao estudo emprico que mais adiante ser

    apresentado, pois nelas possvel observar hoje sinais de modernidade que se

    misturam com sinais de pr-modernidade e de ps-modernidade. Nestas

  • 24

    regies, muitos municpios tm vindo a desenvolver um trabalho de criao de

    infra-estruturas luz elctrica, gua e saneamento, estradas, plos industriais,

    centros culturais, etc. tendo em vista a criao de condies de modernidade

    nos seus concelhos. Mas quem observa estas regies por dentro depara-se

    com profundos contrastes.14 Por exemplo, as casas das aldeias compradas e

    recuperadas por pessoas das grandes cidades para passarem frias e fins de

    semana um sinal dos novos estilos de vida da ps-modernidade situam-se

    paredes meias com habitaes sem casa de banho, sem gua e saneamento,

    sem luz elctrica, com o piso interior da habitao em terra batida, com o frio e

    a chuva a cair dentro de casa, numa demonstrao viva da pr-modernidade.

    As escolas tambm espelham estes contrastes. Actualmente, no concelho de

    Paredes de Coura, como talvez noutras zonas rurais do pas, todas as escolas

    primrias esto equipadas com computador e com ligao Internet,

    permitindo aos alunos e professores viajarem pelo mundo, mas este cenrio

    contrasta com as condies fsicas das instalaes e do equipamento

    escolares, com as condies de vida de algumas pessoas que se dedicam

    agricultura de subsistncia, com a existncia de pessoas, sobretudo idosas,

    que vivem em redor da escola mas que no sabem ler nem escrever.

    Argumentando que nos encontramos num perodo de transio

    paradigmtica, Sousa Santos (2000) coloca-se na perspectiva da ps-

    modernidade, mas estabelece uma distino entre o ps-moderno

    celebratrio e o ps-moderno de oposio. A verso dominante do ps-

    moderno , como diz, o ps-moderno celebratrio, isto , a verso de uma

    ps-modernidade reconfortante, mas a perspectiva em se coloca a do ps-

    moderno de oposio ou da ps-modernidade inquietante, pois considera

    que ela permite articular a crtica da modernidade com a crtica da teoria crtica

    da modernidade. A teoria crtica moderna, apesar de ser uma forma de

    conhecimento-emancipao, ao negligenciar a crtica epistemolgica da cincia

    moderna que se converteu em conhecimento hegemnico acabou por se

    converter em conhecimento-regulao. Para a teoria crtica ps-moderna, pelo

    14 Baseamo-nos nas observaes feitas no decorrer do estudo emprico que mais adiante ser apresentado, mas sobretudo nas visitas domicilirias que tivemos oportunidade de fazer com a equipa do Projecto de Luta Contra a Pobreza e a Excluso Social do concelho de Paredes de Coura, que tem a designao Projecto Terras de Coyra.

  • 25

    contrrio, todo o conhecimento crtico tem de comear pela crtica do

    conhecimento. Enquanto que a cincia moderna se constituiu em oposio ao

    senso comum, o conhecimento-emancipao tem de converter-se num senso

    comum emancipatrio. Esta , pois, uma conceptualizao da actual condio

    scio-cultural que, embora admitindo o esgotamento das energias

    emancipatrias da modernidade, no celebra o facto, mas procura opor-se-lhe,

    traando um novo mapa de prticas emancipadoras. Em sntese, a

    complexidade da nossa posio transicional tem a ver com o facto de que

    enfrentamos problemas modernos para os quais no h solues modernas,

    pelo que, na perspectiva da ps-modernidade inquietante ou de oposio, esta

    disjuno entre a modernidade dos problemas e a ps-modernidade das

    possveis solues deve ser assumida plenamente. O que passa a definir a

    teoria crtica , pois, o facto de ela no reduzir a realidade ao que existe e de

    ser capaz de imaginar futuros possveis.

    A frequente utilizao dos prefixos neo e ps (neo-taylorismo, ps-

    taylorismo, ps-modernidade, neo-liberalismo, etc.) no vocabulrio das

    Cincias Humanas e Sociais bem o sinal deste tempo de transio, de

    incerteza e perplexidade em que nos encontramos; um tempo complexo, em

    relao ao qual no existem ainda noes prprias que o possam caracterizar.

    Abundam expresses como ps-modernidade, ps-industrial, ps-fordismo;

    neo-liberal, neo-taylorismo, que procuram mostrar novas realidades mas sem

    abandonar os termos mais antigos. O uso dos prefixos neo e ps de que a

    literatura sociolgica frtil em exemplos ilustrativo desta situao de

    encruzilhada. Alguns autores referem-se sociedade ps-moderna,

    sociedade ps-industrial, ao ps-fordismo, ao mesmo tempo que outros

    argumentam que os principais traos da modernidade se mantm, se

    reconfiguram e at acentuam, utilizando, nestes casos, o prefixo neo: neo-

    taylorismo, neo-liberalismo, etc. Os que advogam o fim do taylorismo baseiam-

    se no pressuposto de que houve mudanas que permitiram a passagem de um

    tempo em que predominavam os modos de produo manual, rotineira,

    taylorista, para um tempo outro, de natureza intelectual, criativa, autnoma,

    flexvel, polivalente e, como tal, ps-taylorista e ps-fordista. Para outros, trata-

    se mais de um conjunto de metamorfoses que se operam por efeito de uma

  • 26

    mera reconceptualizao ou ressemantizao (Lima, 1994b). Noes como

    as de modernizao, racionalizao e optimizao, por exemplo, tm

    servido, como argumenta este autor, para a introduo de perspectivas neo-

    taylorianas no campo da organizao e administrao da educao. Neste

    sentido, o que muitas vezes apresentado como novidade fruto

    essencialmente de invenes terminolgicas de algumas escolas que parecem

    sofrer de amnsia, ou at de regresso terica (Alaluf e Stroobants, 1994:

    53).

    tambm frequente, na actualidade, o uso do prefixo re (re-

    emergncia, re-valorizao, re-descoberta, re-surgimento, re-actualizao,

    etc.), procurando mostrar que so retomadas e transfiguradas, na actualidade,

    caractersticas de tempos anteriores. Ao longo das trs ltimas dcadas, o

    conceito de local, por exemplo, tem sido frequentemente utilizado no sentido

    de um re-surgimento, de uma re-descoberta, de uma re-localizao, o que

    pretende significar que o nvel local volta a emergir, volta a ser valorizado, aps

    ter sido abafado pelo centralismo do Estado. O renovado interesse pelo local

    pelo poder local, pelo desenvolvimento local, etc. corresponde, assim, a

    uma re-descoberta, no perodo em que se constata o esgotamento do modelo

    administrativo centralizado vinculado ao nvel nacional-estatal, do paradigma

    urbano-industrial de desenvolvimento e, de um modo geral, o esgotamento da

    teoria da modernizao.

    A ideia de que se opera este ressurgimento tem subjacente o

    pressuposto de que o nvel local surge de novo como nvel relevante da aco

    social, econmica, cultural, poltica, aps ter passado um perodo em que

    esteve submerso pelo nvel nacional. No entanto, este ressurgimento do local

    no corresponde a um regresso ao passado, pois o conceito de local surge

    hoje com um significado diferente do que tinha antes da formao das

    sociedades modernas. Enquanto historicamente o Estado se afirmou contra os

    particularismos locais, de modo a criar uma unidade e uma identidade

    nacionais, o local emerge actualmente atravs de um movimento de re-

    localizao, mas que ocorre em simultneo e numa relao dialctica com um

    movimento de globalizao. Face a este duplo movimento, o nvel nacional-

    estatal tem sido profundamente questionado nos seus fundamentos, tendo

  • 27

    suscitado abundantes debates sobre a crise do Estado-nao ou do Estado-

    providncia.

    O uso recorrente de expresses como nova ordem mundial, nova

    economia, nova era tecnolgica, da informao e do conhecimento so

    tambm exemplos do tempo de mudana em que vivemos. E o mesmo

    acontece em relao diversidade de termos que tm sido utilizados para

    caracterizar as sociedades contemporneas. Individualismo, risco,

    incerteza, todos eles procuram dar conta de um conjunto de caractersticas,

    apontando em diversos sentidos, chamando a ateno para aspectos

    diferentes, mas revelando em comum uma grande perplexidade face s

    mudanas que estamos a viver. Ttulos de obras recentes como A era do

    vazio (Lipovetsky, 1988), A grande ruptura (Fukuyama, 2000), A crise das

    identidades (Dubar, 2000), A crise do Estado-providncia (Rosanvallon,

    1992), O fim dos territrios (Badie, 1996), O fim da histria (Fukuyama,

    1992), O fim dos militantes? (Ion, 1997), O fim da escola (liard, 2000), O

    fim do trabalho (Rifkin, 1995), O fim das certezas (Beillerot, 1998), entre

    muitos outros, ilustram bem a situao de transio, encruzilhada e

    perplexidade em que nos encontramos.

    As noes de ambiguidade, caos, desordem, incerteza, tm sido muito

    utilizadas para dar conta desta situao, mostrando que se vive hoje num

    tempo com caractersticas diferentes de perodos anteriores, mas difceis de

    apreender. Elas so reflexo de uma evoluo conceptual que se tem verificado

    nos diversos domnios, desde as artes plsticas, com a insistncia nas

    descontinuidades, nas incoerncias, nos laos aleatrios, nas associaes

    livres, na montagem e no bricolage; passando pela msica, onde se afirma o

    acaso e o aleatrio como princpio de composio; at s organizaes, onde

    as teorias passaram a incluir noes como ambiguidade, sistemas caticos,

    sistemas debilmente articulados, anarquia organizada. A fluidez destas

    noes no permite, porm, interpretar com lucidez as dinmicas sociais que

    tm lugar nas sociedades contemporneas, pois tanto podemos considerar que

    elas explicam tudo como no explicam nada.

    Esta situao tem conduzido frequentemente ao fatalismo e

    resignao. Como diz Paulo Freire, a ideologia fatalista, imobilizante, que

  • 28

    anima o discurso neo-liberal anda solta no mundo. Com ares de ps-

    modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a

    realidade social que, de histrica e cultural, passa a ser ou virar quase natural

    (Freire, 1997: 21). A este respeito, tambm sugestivo o ttulo que Sousa

    Santos atribuiu a uma das suas obras mais recentes, j citadas neste texto: a

    crtica da razo indolente. Diz o autor que no contexto actual o que novo

    que as classes dominantes se desinteressaram do consenso tal a confiana

    que tm em que no h alternativa s ideias e solues que defendem. Com

    isto, a hegemonia transformou-se e passou a conviver com a alienao social,

    e em vez de assentar no consenso passou a assentar na resignao: o que

    existe no tem de ser aceite por ser bom; bom ou mau, inevitvel, e nessa

    base que tem de se aceitar. tambm significativo que Luc Boltanski e ve

    Chiapello tenham includo na sua recente obra um post-scriptum intitulado a

    sociologia contra os fatalismos (Boltanski e Chiapello, 1999). A resignao e o

    fatalismo so, pois, uma consequncia das mudanas que ocorreram num

    ritmo acelerado no mundo contemporneo e que deixaram as pessoas

    desarmadas de instrumentos tericos e analticos que lhes permitam

    compreend-las e agir criticamente sobre as mesmas. Perante este sentimento

    de fatalismo, Eduardo Terrn (2000) recomenda uma linguagem da esperana

    e no da resignao. Na sua opinio, a ps-modernidade no deve significar,

    necessariamente, o fim da utopia educativa moderna, mas antes a sua

    actualizao, isto , a renovao do ideal de emancipao que constitui a sua

    essncia. Mais sucintamente, o que preciso no abandonar a utopia, mas

    fundament-la (2000: 10).

    Na obra j referida, que desenvolve e aprofunda trabalhos anteriores,

    Sousa Santos (2000) procura exactamente compreender as razes que tm

    conduzido resignao e ao fatalismo. O autor interroga por que razo se

    tornou to difcil produzir uma teoria crtica vivendo ns, no incio do milnio,

    num mundo onde h tanto para criticar. Como j se disse, este socilogo

    defende que, para fazer face aos fenmenos complexos do mundo

    contemporneo, necessrio produzir uma nova teoria crtica que no reduza

    a realidade ao que existe. Na sua opinio, deixou de ser possvel conceber

    estratgias emancipatrias genunas no mbito do paradigma dominante, j

  • 29

    que todas elas esto condenadas a transformar-se em outras tantas

    estratgias regulatrias (id., ib.: 16). Enquanto que para a teoria crtica

    moderna o objectivo do trabalho crtico criar desfamiliarizao, residindo a o

    seu carcter vanguardista, a tese que este autor defende que, luz de uma

    teoria crtica ps-moderna, o objectivo da vida no pode deixar de ser a

    familiaridade com a vida e, como tal, a desfamiliarizao deve ser concebida

    como um momento de suspenso necessrio para criar uma nova

    familiaridade. Isto , o objectivo ltimo da teoria crtica transformar-se num

    novo senso comum, um senso comum emancipatrio, do ponto de vista tico,

    poltico e esttico. tico, porque se trata de um senso comum solidrio;

    poltico porque se assume como um senso comum participativo; esttico,

    porque se configura como um senso comum reencantado.

    Como explica este autor, o projecto da modernidade foi definido, na sua

    matriz, por um equilbrio entre os pilares da regulao e da emancipao. O

    pilar da regulao constitudo por trs princpios: o princpio do Estado; o

    princpio do mercado e o princpio da comunidade. O pilar da emancipao

    constitudo pela articulao entre trs dimenses da racionalizao e

    secularizao da vida colectiva: a racionalidade moral-prtica do direito

    moderno; a racionalidade cognitivo-instrumental da cincia e da tcnica

    modernas e a racionalidade esttico-expressiva das artes e da literatura

    modernas. Porm, este equilbrio pressuposto pelo projecto da modernidade

    nunca foi conseguido. O desequilbrio entre regulao e emancipao e o

    consequente excesso de regulao em que veio a saldar-se resultou de

    desequilbrios, tanto no seio do pilar da regulao, como no da emancipao.

    No pilar da emancipao, a racionalidade cognitivo instrumental da cincia e da

    tcnica desenvolveu-se em detrimento das demais racionalidades e acabou por

    coloniz-las; no pilar da regulao, o desequilbrio consistiu no

    desenvolvimento hipertrofiado do princpio do mercado em detrimento do

    princpio do Estado e de ambos em detrimento do princpio da comunidade.

    Em suma, do lado do pilar da regulao, o princpio da comunidade foi o

    mais negligenciado, mas, em grande medida, por isso hoje o que est melhor

    colocado para criar uma dialctica positiva com o pilar da emancipao, em

    torno das dimenses da participao e da solidariedade. Do lado do pilar da

  • 30

    emancipao, tanto a racionalidade moral-prtica como a esttico-expressiva

    foram invadidas pela racionalidade cognitivo-instrumental, mas, na opinio do

    autor, a racionalidade esttico-expressiva resistiu melhor cooptao total,

    estando por isso em melhor posio para revalorizar o conhecimento retrico e

    os conceitos de prazer e de autoria que a cincia moderna tentou fazer

    esquecer, aproximando mais o discurso cientfico do discurso artstico e

    literrio. , pois, em torno do princpio da comunidade e da racionalidade

    esttico-expressiva que se vislumbram as possibilidades de mudana de

    paradigma, neste tempo de transio em que vivemos. Mas trata-se de uma

    mudana de paradigma que no busca o seu equilbrio entre os pilares da

    regulao e da emancipao, como o pretendeu na sua matriz o projecto da

    modernidade. Na prtica, esse equilbrio nunca foi conseguido, tendo-se

    saldado por um excesso de regulao e por um abafamento do pilar da

    emancipao. Depois de dois sculos de excesso de regulao em detrimento

    da emancipao, a soluo procurada no hoje, portanto, um novo equilbrio

    entre regulao e emancipao, mas antes um desequilbrio dinmico que

    penda para a emancipao.

    2. Dois temas em debate: as classes sociais e as instituies

    O pensamento sociolgico clssico pretendeu, atravs da ideia de

    sociedade, descrever e analisar a totalidade social como um conjunto ordenado

    e coerente: a sociedade trabalho, Escola, Estado-nao (Dubet e

    Martuccelli, 1998). Em grande medida, esta viso decorre de num modo

    cntrico de olhar o mundo um modo eurocntrico, escolocntrico,

    estadocntrico, urbanocntrico e est associada, por exemplo,

    emergncia e consolidao das sociedades e dos Estados nacionais,

    propagao de um modelo ocidental eurocntrico de desenvolvimento,

    gnese da escola pblica como instncia educativa central. Esta viso

    historicamente responsvel pela assuno, por parte do Estado, do controlo

    centralizado e burocrtico das polticas sociais e educativas, pelo enraizamento

    de uma representao homognea e unitria da sociedade, pela emergncia

    de um modelo urbano-industrial de desenvolvimento baseado em grandes

    concentraes.

  • 31

    Desde os fundadores da sociologia at aos nossos dias, esta

    representao tem influenciado fortemente o modo de encarar o mundo e a

    vida social, verificando-se ainda hoje, apesar das transformaes que

    entretanto ocorreram, uma forte resistncia intelectual a pensar a crise deste

    tipo de sociedade. Isto acontece, em grande medida, porque as prprias

    representaes dos tericos e analistas sociais se mantm muito vinculadas a

    esta viso cntrica uma viso nacional-estatal e urbano-industrial da

    sociedade. A prpria sociologia, enquanto disciplina, tem a sua gnese ligada

    passagem das sociedades agrcolas a industriais e, como tal, a uma ideia de

    sociedade vinculada ao processo de industrializao e urbanizao. Esta ideia

    de sociedade manteve-se inquestionvel at final dos anos 60 do sculo XX e

    de um modo particular no perodo desenvolvimentista que se seguiu II Guerra

    Mundial, alimentada pela crena na modernizao e no progresso, na cincia,

    na ordem, na estabilidade, na segurana.

    A partir dos anos 60, ocorreram profundas transformaes no mundo,

    que tm vindo a abalar esta representao unitria da sociedade (Dubet e

    Martuccelli (id., ib.)15. Quer a Sociedade, quer o Estado, quer outras

    instituies, como a Escola, no podem ser pensados hoje como eram at aos

    anos 60-70, face s profundas transformaes que tm vindo a ocorrer no

    mundo em que vivemos. As sociedades contemporneas tm sofrido

    mudanas profundas e aceleradas gerando uma grande incerteza e

    perplexidade e tornando difcil a sua compreenso. Estas mudanas no so

    apenas tecnolgicas; elas so visveis nos diversos domnios da actividade

    humana, desde o poltico ao social e econmico, do cultural ao ambiental, do

    pblico ao privado, do material ao simblico. A perplexidade com que olhamos

    15 Nesta obra, Franois Dubet reconhece que ele prprio participou, atravs de uma sua obra anterior (Dubet, 1994), de um movimento de desconstruo da ideia de sociedade, ao argumentar que o objecto da sociologia se deve constituir em torno do sujeito e da sua experincia, cabendo-lhe, portanto, a funo de descrever as experincias sociais, isto , as condutas individuais de cada um de ns. Nesta obra, onde o autor fala mesmo do desaparecimento da sociedade, Franois Dubet atribui grande centralidade ao sujeito e construo da sua experincia, numa assumida aproximao psicologia. Segundo o autor, luz de uma sociologia da experincia, o prprio objecto da sociologia muda: ela deve descrever as experincias sociais, isto , as condutas individuais de cada um de ns; condutas que combinam diversas racionalidades e lgicas, apresentando-se, pois, como a combinao de pertenas comunitrias, clculos de mercado e exigncias de uma autenticidade individual. Na obra mais recente (Dubet e Martucelli, 1998), Franois Dubet considera, no entanto, que as abordagens micro-sociolgicas, embora sejam frequentemente inventivas, apaixonantes e convincentes, no ajudam a explicar uma questo essencial que saber como se passa dos ajustamentos individuais aos mecanismos gerais.

  • 32

    hoje para o mundo resulta, portanto, de vrios fenmenos que tm vindo a pr

    em causa uma representao unitria e ordenada que a modernidade

    consolidou e que tem dominado as representaes sociais e cientficas ao

    longo de sculos.

    Ao longo dos ltimos trinta anos do sculo XX, e mais visivelmente

    durante os anos 80 e 90, esta representao ordenada tem vindo a ser posta

    em causa, de tal modo que se assiste mesmo ao declnio da prpria ideia de

    sociedade vinculada a um espao nacional-estatal. Como sustentam Dubet e

    Martuccelli (id., ib.), a ideia de sociedade moderna teve em vista descrever uma

    realidade social que se pretendia unitria, substantiva, mas a sociedade que

    hoje conhecemos j no pode ser pensada seno em funo da sua

    interrogao sobre ela mesma e com a conscincia crescente da

    impossibilidade de conseguir uma resposta definitiva. Assim, se possvel

    continuar a falar hoje de sociedade porque ela prpria se concebe como uma

    sociedade na sua vontade de ser uma sociedade (id., id.: 17). Neste sentido,

    importa compreender a sociedade mais como uma dinmica, uma

    autoproduo, do que como um todo societal.

    Este declnio da representao unitria, nacional-estatal, da sociedade

    responsvel, em grande medida, pelo esvaziamento de dois importantes temas

    da anlise sociolgica: o das classes sociais e o das instituies.

    Analisaremos, em primeiro lugar, as implicaes do esvaziamento do tema das

    classes sociais, procurando mostrar que o fenmeno est associado ao

    esboroamento da sociedade industrial-salarial e se traduziu num deslizamento

    da problemtica das desigualdades para a problemtica da excluso social. Em

    segundo lugar, analisaremos as implicaes do esvaziamento do tema das

    instituies, tomando como exemplo a instituio escolar.

    2.1. O tema das classes sociais: das desigualdades excluso

    Na sociedade industrial-salarial (Castel, 1995), o tema das classes

    sociais funcionou como um dos elementos federadores da anlise sociolgica.

    Porm, as transformaes do capitalismo que ocorreram a partir dos anos 60-

    70 contriburam para o debilitamento deste modelo. Antes, designadamente

  • 33

    entre a segunda metade dos anos 30 e os anos 60, a sociedade era encarada

    essencialmente como um conjunto de grupos socioprofissionais, sendo o

    Estado o garante das negociaes entre patronato e sindicatos e assumindo as

    convenes colectivas um papel federador. As correspondncias entre as

    posies sociais, os diplomas, os rendimentos e as origens sociais estavam no

    centro de uma concepo meritocrtica da sociedade que, embora j existisse

    anteriormente, se consolidou entre o fim da guerra e o final dos anos 60. Nos

    anos 70, as representaes em termos de classes sociais ainda so visveis

    nas cincias sociais, na literatura, nos media, no cinema, mas na segunda

    metade dos anos 80 elas j no esto presentes, o que parece significar que o

    modelo das classes sociais se esvaziou. Operou-se, pois, neste perodo, uma

    mudana profunda em que o fenmeno da lute des classes deu lugar ao novo

    fenmeno da lute des places (Gaulejac e Taboada-Lonetti, 1994). Num

    mundo que se tornou intensamente competitivo e sustentado por um ideal de

    sucesso, competncia, performance, realizao pessoal, apontando

    apenas na direco do indivduo e da responsabilidade individual, a noo de

    classe social, que fornecia uma representao de conjunto da vida social

    parece ter perdido sentido.

    Este esvaziamento do tema das classes sociais d-se com o prprio

    contributo da sociologia. Se at final dos anos 70 o debate sociolgico se

    estruturou sobretudo em torno do tema das classes sociais e das

    desigualdades16, pouco a pouco ele passou a estruturar-se em torno do tema

    da excluso. Ora, esta passagem do tema das desigualdades para o tema da

    excluso tem consequncias. Como argumentam Luc Boltanski e ve

    Chiapello, a excluso ignora a explorao (1999: 436), na medida em que a

    excluso tende a ser encarada como um destino contra o qual cada um tem

    que lutar e no como o resultado de uma assimetria social em que alguns

    homens tiram lucro em detrimento de outros homens. Dizem estes autores que

    contrariamente ao modelo das classes sociais, no qual a misria do

    proletariado repousava sobre a designao de uma classe (a burguesia, os

    detentores dos meios de produo) responsvel pela sua explorao, o 16 No campo da educao, este debate sobre as desigualdades, travado sobretudo a partir de meados da dcada de 60, deu origem a uma sociologia das desigualdades, de cujos resultados e orientaes nos do conta os trabalhos de Forquin (1979a, 1979b, 1980).

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    modelo da excluso permite designar uma negatividade sem passar pela

    acusao (id., ib.: 426). O tema da excluso releva, portanto, mais de um

    tpico do sentimento do que de um tpico da denunciao (Boltanski, 1993).

    Sem qualquer referncia s classes sociais, os excludos no so

    considerados seno uma coleco de indivduos. A excluso, como outros

    problemas sociais emergentes nas ltimas dcadas (o desemprego, a

    pobreza, a toxicodependncia, a sida, etc.) tendem, assim, a ser considerados

    como problemas pessoais e tcnicos, que fazem apelo implicao do

    indivduo e interveno dos profissionais de ajuda, e no como problemas

    estruturais, de natureza econmica, social e poltica.

    Na passagem dos anos 80 para os anos 90 opera-se um deslocamento

    das preocupaes com o fenmeno do desemprego para com o fenmeno da

    excluso (Wull, 1991). A noo de excluso impe-se no mbito da reflexo

    sociolgica sobre a questo social, deslocando o debate do tema da pobreza

    para o tema da excluso (Strobel, 1996)17. A temtica da nova pobreza,

    centrada nos anos 80 nos fenmenos econmicos e insistindo sobre os

    processos de precarizao do mercado de trabalho, cede lugar, no incio dos

    anos 90, problemtica da excluso, pondo em destaque o cmulo de

    handicaps (ruptura dos laos sociais, participao social extremamente

    limitada) e no apenas o aspecto econmico. Operou-se, assim, como diz

    Cdric Frtign, uma passagem de testemunho dos economistas aos

    socilogos (1999: 95). Alain Touraine (1992), o primeiro terico da excluso,

    explica que este tema passou a ocupar, nos debates sobre a sociedade, o

    lugar que era ocupado anteriormente pelas desigualdades na esfera produtiva.

    A abordagem piramidal, da estratificao social, que se traduzia na oposio

    alto/baixo, deu lugar, com a passagem de uma sociedade dita vertical para

    uma sociedade dita horizontal, oposio in/out. Mas, como assinala Touraine,

    enquanto que os in beneficiam de um movimento geral de elevao do nvel de

    17 O conjunto de obras publicadas na dcada de 90 ilustram bem a centralidade que o tema da excluso passou a assumir no campo das polticas sociais e da reflexo sociolgica. Reportando-se Unio Europeia, ver Eurydice (1995) e Room et al. (1992). Entre muitas outras, ver sobre o contexto francs a obra de Donzelot (1993) e sobre o caso do Reino Unido a obra de Geddes (1997). Em Portugal, podem referir-se as obras de Almeida (1992), Almeida et al. (1994a), Arajo, Santos e Seixas (Coord., 1998) e Costa (1998). Destacam-se ainda outras obras que, de uma forma mais geral, abordam as teorias da excluso (Xiberras, 1996), o estado dos saberes sobre a excluso (Paugam (Dir., 1995) e a construo crtica de uma sociologia da excluso (Frtign, 1999).

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    vida, ocupam um emprego, consomem os bens e servios e participam na vida

    social, os out so vtimas das mutaes do sistema econmico.

    O fenmeno contemporneo da excluso no se circunscreve, portanto,

    s margens da sociedade. Com o processo de industrializao e da

    modernidade liberal, a questo social deixou de se circunscrever a populaes

    marginais, assumindo a forma de uma vulnerabilidade de massa (Castel,

    1995: 160). Isto , embora a questo social se coloque explicitamente sobre

    as margens da vida social sobre os vagabundos antes da revoluo

    industrial, sobre os miserveis do sculo XIX, sobre os excludos de hoje

    ela inscreve-se numa dinmica social global. H como que uma espcie de

    efeito boomerang (Castel, id., ib.: 21), que faz com que os problemas postos

    pelas populaes encalhadas na periferia de uma formao social faam

    retorno para o seu centro. Esta vulnerabilidade de massa est, pois, associada

    crise da sociedade industrial-salarial. O salariado, que ocupa hoje a grande

    maioria dos activos e ao qual esto ligadas as proteces contra os riscos

    sociais, constituiu durante muito tempo uma das situaes mais incertas e das

    mais indignas e miserveis. Era salariado quem no tinha nada para trocar

    para alm da fora dos seus braos. Cair no salariado era cair na dependncia.

    Aps muitas transformaes, o salariado atingiu nos anos 60 o lugar de matriz

    de base da sociedade industrial-salarial moderna, na medida em que passou a

    envolver quase toda a populao e a definir a prpria identidade social a partir

    da posio ocupada pelas pessoas no salariado. Na sociedade industrial, o

    emprego salariado tornou-se, pois, o grande integrador (Barel, 1990).

    A centralidade que o trabalho assumiu como mecanismo integrador na

    sociedade industrial-salarial est, no entanto, fortemente abalada no mundo de

    hoje, pois a precaridade est em toda a parte (Bourdieu, 1998: 113). Ela age

    directamente sobre aqueles que toca (e que deixa sem condies de se

    mobilizarem) e indirectamente sobre todos os outros, pelo medo que suscita e

    que metodicamente explorado pelas estratgias de precarizao, como a

    introduo do princpio da flexibilidade. Embora os autores de management

    tenham comeado a proclamar, a partir dos anos 70, o fim do taylorismo,

    anunciando uma nova era de flexibilidade, autonomia e cooperao no

    trabalho, os analistas crticos tm vindo, no entanto, a chamar a ateno para