o ensino do direito na frança

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REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO 6(1) | P. 059-066 | JAN-JUN 2010 059 : 11 RESUMO O PRESENTE ARTIGO TEM POR OBJETIVO ANALISAR O ENSINO JURÍDICO NA FRANÇA. NOSSO OLHAR É GUIADO POR UMA DUPLA PERSPECTIVA: A DISTINÇÃO ENTRE FACULDADES CRÍTICAS E MUNDANAS E A NOÇÃO DE CRISE, TRAZIDA DA CIÊNCIA POLÍTICA. APÓS BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO HISTÓRICA, DEMONSTRAREMOS COMO, NAS DUAS METADES DO SÉCULO XX, O ENSINO JURÍDICO SE DESENVOLVEU E PRODUZIU O QUE CHAMAMOS DE modelo clássico de ensino do direiTo. NOSSO FOCO, A PARTIR DESSA DUPLA PERSPECTIVA, APONTA PARA UMA DINÂMICA EM QUE GRANDES TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS CAUSAM SIGNIFICATIVO IMPACTO NA UNIVERSIDADE FRANCESA, E, EM CONTRAPARTIDA, PARA COMO O CORPO DE JURISTAS, A FIM DE SE MANTER NA POSIÇÃO DOMINANTE, CONSEGUE TRANSMITIR, ATRAVÉS DAS CRISES, OS ELEMENTOS QUE GARANTEM ESSA DOMINAÇÃO, CALCADOS NAS especiFicidades da ciência jurídica. O CONCEITO-CHAVE PARA COMPREENDER ESTA DINÂMICA E QUE AO FIM PRODUZIRÁ O MODELO CLÁSSICO É O DE HERANÇA, TAMBÉM TRAZIDO DA CIÊNCIA POLÍTICA. EM CONCLUSÃO, TENTAREMOS CONFRONTAR ESSA DINÂMICA COM AS QUESTÕES QUE O ENSINO JURÍDICO FRANCÊS ENFRENTA HOJE MORMENTE RELACIONADAS À PERDA DE CENTRALIDADE DA DISCIPLINA –, LANÇANDO O QUESTIONAMENTO DE COMO ESSA NOVA CRISE SERÁ ENFRENTADA PELAS FACULDADES DE DIREITO. PALAVRAS-CHAVE ENSINO JURÍDICO; CRISE POLÍTICA; FACULDADES MUNDANAS; HERANÇA POLÍTICA; CAMPO UNIVERSITÁRIO. Michel Miaille e Fernando de Castro Fontainha O ENSINO DO DIREITO NA FRANÇA ABSTRACT This arTicle aims To analyse The legal Teaching in France. our approach is guided by a double perspecTive: The disTincTion beTween criTical and mundane schools and The noTion oF crisis, broughT From poliTical science. aFTer a brieF hisTorical inTroducTion, we will demonsTraTe how, in The TwenTieTh cenTury, The legal Teaching developed iTselF and produced whaT we call “classical legal Teaching model”. our Focus, deparTing From ThaT double perspecTive, aim To a dynamics where greaT social TransFormaTions cause sTrong impacT in French universiTy and, on The oTher hand, how The body oF law scholars, To keep Their dominaTion posiTion, geT To TransmiT Throw The crisis The elemenTs ThaT guaranTee ThaT dominaTion, on The legal science speciFiciTiespreTexT. heriTage is The poliTical science broughT key-concepT To undersTand ThaT dynamics and The classic model producTion. our conclusion is an aTTempT To conFronT ThaT dynamics wiTh The issues ThaT The legal Teaching Faces nowadays specially The discipline loss oF cenTraliTy asking The quesTion oF how This new crisis will be Faced by The law schools. KEYWORDS legal Teaching; poliTical crisis; mundane schools; poliTical heriTage; universiTy Field. 1 LegaL teaching in France INTRODUÇÃO O tema ensino jurídico poderia ser objeto de várias lógicas e disciplinas, como a histó- ria, a sociologia da educação ou a ciência política. Igualmente, o direito objeto deste

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  • REVISTA DIREITO GV, SO PAULO6(1) | P. 059-066 | JAN-JUN 2010

    059:11

    RESUMOO PRESENTE ARTIGO TEM POR OBJETIVO ANALISAR O ENSINOJURDICO NA FRANA. NOSSO OLHAR GUIADO POR UMA DUPLAPERSPECTIVA: A DISTINO ENTRE FACULDADES CRTICAS EMUNDANAS E A NOO DE CRISE, TRAZIDA DA CINCIA POLTICA.APS BREVSSIMA INTRODUO HISTRICA, DEMONSTRAREMOSCOMO, NAS DUAS METADES DO SCULO XX, O ENSINO JURDICO SEDESENVOLVEU E PRODUZIU O QUE CHAMAMOS DE modelo clssico

    de ensino do direiTo. NOSSO FOCO, A PARTIR DESSA DUPLAPERSPECTIVA, APONTA PARA UMA DINMICA EM QUE GRANDESTRANSFORMAES SOCIAIS CAUSAM SIGNIFICATIVO IMPACTO NA

    UNIVERSIDADE FRANCESA, E, EM CONTRAPARTIDA, PARA COMO OCORPO DE JURISTAS, A FIM DE SE MANTER NA POSIO DOMINANTE,CONSEGUE TRANSMITIR, ATRAVS DAS CRISES, OS ELEMENTOS QUEGARANTEM ESSA DOMINAO, CALCADOS NAS especiFicidades dacincia jurdica. O CONCEITO-CHAVE PARA COMPREENDER ESTADINMICA E QUE AO FIM PRODUZIR O MODELO CLSSICO O DE

    HERANA, TAMBM TRAZIDO DA CINCIA POLTICA. EM CONCLUSO,TENTAREMOS CONFRONTAR ESSA DINMICA COM AS QUESTES QUE

    O ENSINO JURDICO FRANCS ENFRENTA HOJE MORMENTERELACIONADAS PERDA DE CENTRALIDADE DA DISCIPLINA ,LANANDO O QUESTIONAMENTO DE COMO ESSA NOVA CRISE SER

    ENFRENTADA PELAS FACULDADES DE DIREITO.

    PALAVRAS-CHAVEENSINO JURDICO; CRISE POLTICA; FACULDADES MUNDANAS;HERANA POLTICA; CAMPO UNIVERSITRIO.

    Michel Miaille e Fernando de Castro Fontainha

    O ENSINO DO DIREITO NA FRANA

    ABSTRACT

    This arTicle aims To analyse The legal Teachingin France. our approach is guided by a doubleperspecTive: The disTincTion beTween criTical andmundane schools and The noTion oF crisis, broughTFrom poliTical science. aFTer a brieF hisToricalinTroducTion, we will demonsTraTe how, in TheTwenTieTh cenTury, The legal Teaching developediTselF and produced whaT we call classical legalTeaching model. our Focus, deparTing From ThaTdouble perspecTive, aim To a dynamics where greaTsocial TransFormaTions cause sTrong impacT in FrenchuniversiTy and, on The oTher hand, how The body oFlaw scholars, To keep Their dominaTion posiTion, geTTo TransmiT Throw The crisis The elemenTs ThaT

    guaranTee ThaT dominaTion, on The legal sciencespeciFiciTies preTexT. heriTage is The poliTical sciencebroughT key-concepT To undersTand ThaT dynamics andThe classic model producTion. our conclusion is anaTTempT To conFronT ThaT dynamics wiTh The issues ThaT

    The legal Teaching Faces nowadays specially Thediscipline loss oF cenTraliTy asking The quesTion oFhow This new crisis will be Faced by The law schools.

    KEYWORDS

    legal Teaching; poliTical crisis; mundane schools;poliTical heriTage; universiTy Field.

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    LegaL teaching in France

    INTRODUOO tema ensino jurdico poderia ser objeto de vrias lgicas e disciplinas, como a hist-ria, a sociologia da educao ou a cincia poltica. Igualmente, o direito objeto deste

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  • ensino, pode ser visto sob diversas ticas, como a tradicional (as disciplinas jurdicas,onde o direito explicaria a si mesmo), a da sociologia ou a da cincia poltica. Nestebreve ensaio, no pretendemos tudo dizer, mas pretendemos construir uma proble-mtica capaz de servir de fio condutor, sob uma dupla perspectiva:

    a) Segundo a distino elaborada por Kant (1973) e retomada por Bourdieu em seulivro Homo academicus, h que se distinguir as faculdades entre as crticas e as mun-danas. Entre as faculdades crticas estariam os cursos de letras, filosofia e cinciasnaturais. Eles merecem essa denominao pelo carter de liberdade e autonomiaintelectual. Por outro lado, as faculdades mundanas, como o direito e a medicina,so profundamente marcadas pela consolidao de um corpo sempre ligado aopoder estabelecido, como demonstrado por Arnaud no seu livro Les juristes face lasocit o que nos remete ideia de crise.b) Tomamos emprestado de Michel Dobry o conceito de crise desenvolvido noseu livro Sociologie des crises politiques. Para o autor, entende-se por crise osmomentos em que a continuidade e a estabilidade da reproduo da organizaosocial, sobretudo da que nos parece automtica, encontram-se ameaadas.

    Pretendemos demonstrar como, sempre a servio dos dominantes, o ensino jur-dico obrigado a reformular suas condies de sobrevivncia e seu destino meio aum emaranhado de obstculos que destroem os antigos modos de proceder, semindicar claramente quais as possibilidades futuras.

    1 BREVE HISTRIA DO ENSINO JURDICO NA FRANADatando dos sculos XI e XII, o ensino jurdico conhecer em Paris e Montpelliersua primeira gerao de faculdades (no mbito europeu, citamos tambm Bolonha eOxford). Na Idade Mdia e no Antigo Regime, as faculdades de direito, extrema-mente ligadas ao direito cannico e apegadas aos textos romanos, cumpriro o papelde formao das elites, sobretudo as elites de Estado.

    A Revoluo de 1789 vai extinguir as faculdades existentes, e Napoleo I refunda-r o ensino universitrio sob bases autoritrias: assim como o exrcito, a Universidadeimperial era um todo dirigido de forma rgida e uniforme, como as demais instituiesimperiais. As universidades do Antigo Regime daro lugar a faculdades monodiscipli-nares e autnomas do ponto de vista intelectual. unio administrativa de quatrofaculdades deu-se o nome de universidade. Para as faculdades de direito, especificamen-te, foi reservado o papel de prestar uma formao tcnica e prtica, sobretudo aps aunificao do direito nacional pelas codificaes napolenicas.

    Assim, o ensino jurdico francs no sculo XIX ser marcado por um duplomonoplio: o das faculdades de direito como um aparato estatal monoplio este

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  • baseado na exclusividade da certificao dos profissionais em direito e o das disci-plinas puras e duras, como o direito civil e romano.

    Desde a Idade Mdia at o perodo revolucionrio o ensino jurdico francs viveucrises. Nosso foco ser o sculo XX, sendo a descrio anterior necessria para acompreenso de como esse ensino chega ao incio do sculo.

    2 A CRISE DO SCULO XX (PRIMEIRA METADE)A primeira metade do sculo XX foi marcada por duas tmidas porm relevantesreformas, embora elas no tenham transformado sensivelmente o antigo modelo.

    A primeira delas ocorreu entre 1905 e 1924 e trouxe como principal inovao aobrigatoriedade da avaliao por exames orais e escritos, valendo ressaltar que, desde aIdade Mdia, as faculdades de direito utilizavam as provas orais como nico meio de ava-liao ( exceo das teses). Sem mencionar o quo mais difcil diferenciar umestudante sob o ponto de vista social, econmico e tnico em uma prova escrita que emuma prova oral, os juristas resistiram o quanto puderam a esta inovao a bem da espe-cificidade do ensino jurdico. A despeito dessa resistncia, a novidade foi incorporadanas faculdades de direito. O que se pde observar foi a designao dos professores maisjovens ou minoritrios para as tarefas de correo dos exames escritos.

    A segunda reforma, de 1954, pretendeu modificar o currculo do curso de direito,a fim de torn-lo mais crtico. Na verdade, o que ocorreu foi uma mudana do nomedas disciplinas. Ento, por exemplo: direito constitucional passou a se chamar direitoconstitucional e cincia poltica; em vez de direito administrativo passou a se adotardireito administrativo e cincia administrativa; e direito penal se tornou direito penal ecincias criminais. Podemos chamar as modificaes trazidas pela reforma de falso criti-cismo. No bastava tentar produzir do alto a discusso multidisciplinar, os professoresdeveriam abra-la. Fato que, ao contrrio, o corpo docente era extremamente resis-tente s disciplinas que consideravam como anexas ao direito. Uma interessantedemonstrao dessa resistncia pode ser dada a partir da prtica docente do jurista JeanCarbonnier, um dos mais progressistas de sua poca. Quando ministrava seu curso dedireito civil, ele usava a toga, porm no o fazia quando ministrava sociologia jurdica.

    Porm, no apenas demritos teve a reforma de 1954. Ela tambm instaurou ostrabalhos dirigidos como forma de curso. Vale salientar que o modelo tradicional decurso atravs de cursos magistrais se mantinha desde a Idade Mdia, sendo um cursomagistral uma aula em anfiteatro lotado, em ambiente impessoal, formal e teatral.Os trabalhos dirigidos, por outro lado, se davam num ambiente de mais proximida-de e dilogo. Se os cursos magistrais ainda existem na Frana, hoje comum quedoutorandos sejam recrutados para ministrar os trabalhos dirigidos.

    Mesmo as duas reformas no foram suficientes para gerir uma crise, provocadapor um modelo de ensino no adaptado nova conformao humana.

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  • 3 A CRISE DO SCULO XX (SEGUNDA METADE)A grande crise ocorrida no sculo XX se deve ao confronto de um modelo que poucomudou desde o sculo XIX com o fenmeno da massificao do ensino universitriona Frana.

    De todas as transformaes que o ps-guerra trouxe sociedade francesa, o gran-dioso aumento do nmero de estudantes uma das mais relevantes. Ademocratizao do acesso universidade NA Frana, que no dependeu de nenhumareforma ou ato formal e perdurou por todo o sculo, pode ser percebida por nmerosimpressionantes. Damos o exemplo da Faculdade de Direito de Montpellier, clebrebero de uma restrita elite local: na dcada de 1960 j recebia espantosamente trezen-tos alunos por ano e atualmente recebe mais de dois mil. Porm, essa massificao notrouxe apenas mudanas quantitativas no corpo estudantil. Duas mudanas qualitativasimportantes vo ocorrer e tornar violento o convvio do modelo antigo com a novaconfigurao humana. Houve uma enorme diversificao da origem de classe dos alu-nos. Um ambiente formador de uma pequena elite de filhos da aristocracia e daburguesia assiste entrada massiva da pequena burguesia e de setores do operariado nassalas de aula. Portanto, um setor majoritrio torna-se minoritrio, e a universidade sev confrontada com novos hbitos, valores e vises de mundo.

    Simultaneamente, ocorre tambm uma transformao no tocante ao gnero: afeminizao. Um universo eminentemente masculino se v tomado por mulheres,que hoje compem a maioria esmagadora dos bancos universitrios nas Faculdadesde direito. Um dos impressionantes nmeros que servem para ilustrar e demonstraras consequncias desse fenmeno merece ser citado: mais de 80% da magistraturafrancesa hoje composta de mulheres, muito embora na Corte de Cassao suamais alta corte elas sejam menos de 20%. Para que se tenha uma ideia do cartermachista desse meio social, era comum o uso do ditado toga sobre vestido no vale(robe sur robe ne vaut),2 que caiu por terra, tendo em vista o desempenho das meni-nas na distribuio de prmios (em Montpellier, menos de 10% dos laureados eramdo sexo masculino), inclusive na do mais prestigioso: o prmio de tese. Os prmiospor mrito universitrio, tradicionais nas faculdades de direito, vale citar, conhece-ram um perodo de esquecimento no ps-68.

    De todas as manifestaes, revoltas e movimentos populares que agitaram aFrana no sculo XX, nenhum pode ser comparado ao ocorrido em maio de 1968.Em reao a mais de dez anos de hegemonia gaulista, em 13 de maio de 1968 o movi-mento estudantil parisiense organizou grandes manifestaes por toda a cidade. Seualvo: o capitalismo, o imperialismo, os valores da velha sociedade, o regime gaulistae a velha universidade. Esse movimento tratado por alguns como espontneo, poisganhou rapidamente dimenses no esperadas, recebendo prontamente a adesomacia do movimento sindical e no tardando a mobilizar vrios setores da socieda-de em todo o territrio nacional. Maio de 68, como ficou conhecido, imortalizou

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  • slogans tais qual proibido proibir. Alm de diversos outros, o movimento tambmadotou o slogan Fim da Universidade.

    De todas as transformaes que se passaram na Frana em decorrncia de Maiode 68, aquelas relativas s universidades esto entre as mais relevantes (e, sem dvi-da, mais pertinentes a este ensaio). Nada tardou para que a antiga estrutura dasuniversidades fosse radicalmente transformada. Em novembro de 1968 entra emvigor a Lei Edgard Faur, alterando a arquitetura do ensino universitrio francs. Deincio, o sistema nacional abolido e cada universidade passa a ser dotada de auto-nomia financeira, administrativa e, sobretudo, intelectual. As faculdades tambmveem seu fim, uma vez que as universidades se tornam centros multidisciplinares. Nolugar das faculdades a lei cria as Unidades de Formao e Pesquisa Units deFormation et Recherche (UFR).

    Mais uma vez, os juristas tentaram escapar da nova regra geral para as universi-dades sob o pretexto da especificidade do ensino jurdico. Em vo. O que sepratica, no entanto, um acordo de gesto em que uma UFR no interfere na outra(ou no dialoga com a outra). Christophe Charle (1994) chega a afirmar que a LeiFaur tornou evidente o fato de que o corpo de professores de direito se v e se com-porta como um corpo parte, e no como membro de novas universidades, demaneira que a insero das faculdades de direito nessas novas instituies as tornaimpossveis enquanto universidades.

    No tocante ao corpo docente, tambm deve ser exposta uma importante modi-ficao: a transformao dos mestres assistentes em mestres de conferncias. Diferentesdos seus predecessores, estes tm a si atribuda uma carga horria igual dos profes-sores agregados, nenhuma subordinao em relao aos mesmos, porm algumasprerrogativas a menos, como a de orientar teses. Essa transformao, bem como anacionalizao dos concursos de agregao, permitiram que a carreira do magistrioem direito fosse passo a passo permeada pela pequena burguesia e at mesmo porcamadas mais populares, em substituio a um corpo constitudo quase que exclusi-vamente por filhos de grandes famlias.

    Maio de 68 e suas consequncias transformaram a universidade francesa, mas noa ponto de impedir que um modelo de ensino jurdico clssico chegasse dcadade 1980 e aos nossos dias.

    4 O MODELO CLSSICO DE ENSINO DO DIREITO (A HERANA)Fazemos aqui o mesmo uso que Pierre Victor Tournier fez do conceito de herana napoltica. Diferente do que ocorre quando do uso corrente do termo, em direito dassucesses, o que se transmite entre as geraes nem so coisas, nem permanece omesmo. Na viso de Tournier tambm podem se chamar de herana hbitos, usos,ideias e sentimentos transmitidos atravs de geraes, mesmo se essa transmisso

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  • acarreta certo grau de modificao do que foi transmitido. por essa razo que sepode chamar o atual modelo de ensino jurdico francs de um modelo clssico. Essemodelo clssico pode ser mais bem demonstrado sob dois pontos de vista: o da orga-nizao dos estudos e o da summa divisio.

    Sob o ponto de vista da organizao dos estudos, o que podemos observar umpercurso inicitico e uma progresso, na transmisso do conhecimento, do simples aocomplexo. Dizemos percurso inicitico porque o currculo do curso de direito orga-nizado de forma rgida e estruturada. Rgida, pois o estudante pode ir do primeiroano de licena ao doutorado quase sem efetuar escolhas sobre a sua formao. A facul-dade o confronta com o que se precisa saber para ser um jurista; e estruturada, poisas disciplinas so encadeadas na forma de pr-requisitos umas das outras, como seuma fosse a base da outra. Esse encadeamento e a coeso pretensamente lgicos entreas matrias onde o direito privado e, sobretudo, o civil so os pilares centrais garantiriam a coerncia, a seriedade e a especificidade do diploma em direito. nasdisciplinas-base dessa cadeia que encontramos a chamada progresso do simples aocomplexo. No currculo do curso de direito, as disciplinas ditas introdutrias teriampor funo introduzir conceitos bsicos, como a famlia ou o Estado, para que estesfossem mais adiante tratados criticamente nas disciplinas mais avanadas, mais tc-nicas. Esta falsa simplicidade calcada no mtodo cartesiano j fora denunciada porBachelard no seu livro Le nouvel esprit scientifique.

    Nosso outro ponto de vista remonta aos tempos romanos: a tradicional summadivisio, diviso fundamental do direito em direito pblico e direito privado. O atualmodelo francs de ensino jurdico ultrapassa a questo de usar essa distino comoexplicao das coisas, como uma viso de mundo e como a imposio de uma ordemlegitima; ele vai alm. Pedaggica e administrativamente esta a diviso bsica nasfaculdades de Direito. A despeito da existncia dos departamentos de CinciaPoltica e Histria do Direito, desde cedo os alunos j comeam a formar uma iden-tidade de publicista ou privatista, o que j consolidado entre os docentes. apenasem algumas atividades de pesquisa em direito que, nos ltimos anos, podemos per-ceber tmidas iniciativas que unem publicistas e privatistas.

    A complexizao de categorias simples, como a famlia e o Estado, bem comoa insuficincia da summa divisio como explicao plausvel para as complexas questesque os dias de hoje trazem a ns apontam para uma crise contempornea do ensinojurdico na Frana.

    CONCLUSO: UMA CRISE CONTEMPORNEA DO ENSINO JURDICO?Sempre que se depara com uma crise, o corpo de docentes em direito usa o discur-so da especificidade da disciplina para tentar reduzir tanto quanto possvel opotencial de transformao dela. Ainda que os docentes sejam forados a incorporar

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  • mudanas, a resistncia cotidiana vai privilegiar os velhos hbitos e o status quo. Oensino do direito assim, condenado a viver crises, ou viver em crise. Talvez esta sejasua especificidade: um tipo bem peculiar de conservadorismo que se pe em mar-cha. Um conservadorismo o qual procura se fechar dentro de si, sendo um sistemaque, alm de precipuamente existir para explicar a si mesmo, tenta submeter asquestes do seu tempo e do seu espao sua lgica.

    Em um mundo em que a economia, a religio, a famlia, o Estado, o trabalho,entre muitas outras categorias tratadas tradicionalmente pelo direito, encontram-sesofrendo profundas modificaes, outro cenrio de crise se anuncia. Um dos sinto-mas desta crise a perda de centralidade do direito. Isso se percebe no apenas pelaquebra do monoplio dos juristas na produo de discursos sobre o direito, mas tam-bm quando outras reas do conhecimento se tornam pioneiras na produo dediscursos sobre categorias tradicionalmente legadas aos juristas.

    Vemos os economistas como pioneiros e hegemnicos da discusso sobre regula-o, assim como os administradores no tocante gesto de instituies privadas epblicas, os cientistas polticos sobre a organizao do Estado e o direito da integra-o, e os socilogos no que se refere interpretao e ao uso das normas jurdicas etambm das novas formas de organizao do trabalho, inclusive do trabalho jurdico.Um caso interessante e que corrobora esta hiptese o da formao jurdica que seministra nos Institutos de Estudos Polticos (IEPs), sobretudo no de Paris, o SciencesPo Paris. Desde muito instituies dedicadas ao ensino e pesquisa em CinciaPolitica, nos ltimos anos os IEPs passaram tambm a formar juristas altamente com-petitivos, a julgar pelos resultados dos ltimos concursos para ingresso namagistratura francesa. No toa que desde 2004 o Sciences Po Paris est autorizadoa expedir diplomas de mestre em direito, e desde 2007 seus egressos podem seraprovados no exame de admisso para a profisso de advogado, o que causou certoconstrangimento entre os juristas.

    Ao que tudo indica, a resposta da especificidade do ensino do direito o mergu-lhar no anacronismo. No apenas a abertura multidisciplinaridade, mas tambm areviso das bases do ensino jurdico nos parece imperativa.

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    : ARTIGO APROVADO (19/07/2010) : recebido em 09/07/2009

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  • NOTAS

    1 Baseado no curso de mesmo nome ministrado por Michel Miaille no Rio de Janeiro (2007), em Roma e emIstambul (2008).

    2 Vale ressaltar que o ditado original era robe sur robe ne vaut (robe sobre robe no vale, numa traduo literal),sendo que a palavra robe usada, em francs, para designar tanto um vestido feminino quanto a toga dos magistrados edos professores de direito.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ARNAUD, Andr-Jean. Les juristes face la socit. Paris: PUF, 1975.BACHELARD, Gaston. Le nouvel esprit scientifique. Paris: Quadrige; PUF, 1991. BOURDIEU, Pierre. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.CHARLE, Christophe. La rpublique des universitaires: 1870-1940. Paris: Seuil, 1994.DOBRY, Michel. Sociologie des crises politiques: la dynamique des mobilisations multisectorielles. Paris: Presses de laFNSP, 1986.KANT, Emmanuel. Le conflit des facults. Paris: Vrin, 1973.

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    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO6(1) | P. 059-066 | JAN-JUN 2010

    20 rue de lUniversit 34000Montpellier France

    [email protected]

    Fernando de Castro FontainhaMESTRE EM SOCIOLOGIA E DIREITO PELAUNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    DOUTORANDO EM SCIENCE POLITIQUE PELAUNIVERSIT DE MONTPELLIER 1

    BOLSISTA DA CAPES

    MEMBRO DA EQUIPE DE RECHERCHE SUR LIDENTIT ETLA CITOYENNET - ERIC, VINCULADA COLE DOCTORALE

    DA FACULT DE DROIT

    ADVOGADO

    35 rue des Tresoriers de la Bourse34000 Montpellier France

    [email protected]

    Michel MiailleDOUTOR EM DIREITO PBLICO PELA UNIVERSIT DE MONTPELLIER 1

    PROFESSOR EMRITO DA UNIVERSIT DE MONTPELLIER 1

    LDER DA EQUIPE DE RECHERCHE SUR LIDENTIT ET LACITOYENNET - ERIC, VINCULADA COLE DOCTORALE DA

    FACULT DE DROIT

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