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O ENSINO DE HISTÓRIA E O USO DE DIFERENTES LINGUAGENS: um estudo da temática do negro e da abolição da escravidão no Brasil sob novas abordagens. Muhana Mustapha Bon Nassif Introdução É muito comum entre os historiadores a discussão sobre o papel da História na atualidade. História “por que” e “para quem” são perguntas frequentes entre esses estudiosos, sendo geradoras de diferentes opiniões e instigantes debates. Na Antiguidade, por exemplo, como havia a preocupação em manter os costumes, cabia à História essa função, cujas tradições eram passadas de geração para geração. Com o passar do tempo, por sua vez, além de preservar a memória, a História passou a ser usada em seu caráter exemplar, servia para instruir e orientar, tornando-se um modelo a ser seguido ou até mesmo imitado, já que as transformações aconteciam em um ritmo tão lento que os exemplos do passado continuavam a ser proveitosos. No entanto, com a ocorrência de muitas mudanças, fatos desconhecidos, “as expectativas passaram a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então” (KOSELLECK, 2006, p. 314) e a História deixou de se voltar para o passado e passou a ter por base o futuro pretendido. Todavia, como este nem sempre podia ser previsto e alcançado, alguns estudiosos passaram a voltar a História para as questões relacionadas ao tempo presente. Assim, adotando a concepção proposta por Nicole Loraux (1992) de que se recorre ao passado com questões do presente para tentar entender certas inquietações do presente com o lastro do que se compreendeu do passado, defende-se neste artigo que a História deve ser útil à sociedade, e um meio de atingi-la é através da escola. Para tanto, faz-se necessário romper com algumas barreiras existentes, como os distanciamentos entre Escola e Universidade e História e Educação, frequente e equivocadamente abordadas como polos distintos e separados. A História e a Educação são indissociáveis, correspondem a saberes que se complementam, sendo essencial a aproximação entre teoria e prática de ensino. Assim como é Licenciada em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, Assis-SP. E-mail: [email protected]

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O ENSINO DE HISTÓRIA E O USO DE DIFERENTES LINGUAGENS: um estudo da

temática do negro e da abolição da escravidão no Brasil sob novas abordagens.

Muhana Mustapha Bon Nassif

Introdução

É muito comum entre os historiadores a discussão sobre o papel da História na

atualidade. História “por que” e “para quem” são perguntas frequentes entre esses estudiosos,

sendo geradoras de diferentes opiniões e instigantes debates.

Na Antiguidade, por exemplo, como havia a preocupação em manter os costumes,

cabia à História essa função, cujas tradições eram passadas de geração para geração. Com o

passar do tempo, por sua vez, além de preservar a memória, a História passou a ser usada em

seu caráter exemplar, servia para instruir e orientar, tornando-se um modelo a ser seguido ou

até mesmo imitado, já que as transformações aconteciam em um ritmo tão lento que os

exemplos do passado continuavam a ser proveitosos.

No entanto, com a ocorrência de muitas mudanças, fatos desconhecidos, “as

expectativas passaram a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”

(KOSELLECK, 2006, p. 314) e a História deixou de se voltar para o passado e passou a ter

por base o futuro pretendido. Todavia, como este nem sempre podia ser previsto e alcançado,

alguns estudiosos passaram a voltar a História para as questões relacionadas ao tempo

presente.

Assim, adotando a concepção proposta por Nicole Loraux (1992) de que se recorre ao

passado com questões do presente para tentar entender certas inquietações do presente com o

lastro do que se compreendeu do passado, defende-se neste artigo que a História deve ser útil

à sociedade, e um meio de atingi-la é através da escola. Para tanto, faz-se necessário romper

com algumas barreiras existentes, como os distanciamentos entre Escola e Universidade e

História e Educação, frequente e equivocadamente abordadas como polos distintos e

separados.

A História e a Educação são indissociáveis, correspondem a saberes que se

complementam, sendo essencial a aproximação entre teoria e prática de ensino. Assim como é

Licenciada em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Faculdade de Ciências e

Letras, Assis-SP. E-mail: [email protected]

de extrema relevância que se criem pontes entre escolas e universidades para que a História

cumpra a sua função.

3

Nesse sentido, este trabalho sugere a combinação da teoria à prática de ensino

utilizando algumas fontes alternativas, tendo em vista que a abordagem tradicional empregada

no ensino de História, baseada na memorização de fatos e datas, deteriorou-se com o passar

do tempo e perdeu completamente o sentido nos dias de hoje, encontrando-se extremamente

ultrapassada. Pois, muito além de ser decorada, a História deve ser compreendida e promover

reflexões no estudante, quer enquanto indivíduo quer enquanto cidadão.

Nessa perspectiva, considerar-se-á a temática do negro somada à abolição da

escravidão no Brasil, não só pela afinidade com o tema, mas por serem questões interligadas e

ainda em pauta na história brasileira, contendo, por sua vez, algumas lacunas.

O presente artigo, portanto, constitui-se em uma proposta de analisar e problematizar a

abordagem contida nos livros didáticos sobre a abolição da escravidão e a questão do negro

no Brasil incorporando linguagens alternativas na prática docente a ser desenvolvida em sala

de aula com alunos do 8º ano do Ensino Fundamental II. Pretende-se, assim, desconstruir a

ideia preconcebida acerca do tema proposto, fornecer bases para a formação da consciência

histórica dos estudantes e apresentar novas possibilidades pedagógicas para o ensino de

História.

Do uso de linguagens alternativas

É muito comum a noção de que a História se faz com documentos. Mais

especificamente, o entendimento de que as fontes históricas correspondem aos documentos

escritos. Esta visão – proveniente da Escola Metódica, a qual defendia a escrita da História

baseada na busca pela verdade e no apego ao “dado positivo” – ganhara tanta força que até

hoje se faz presente seus resquícios, como é perceptível na própria adoção por muitos livros

didáticos da linha do tempo dividida em Pré-História (que faz menção ao período não escrito)

e História (referente ao período escrito), cujas classificações sugerem equivocadamente que

somente aquilo que é escrito possui valor e faz parte da História. Assim, fica nítida a reserva

existente entre os historiadores para com as fontes não escritas, bem como a resistência ao seu

uso.

Entretanto, com a defesa por Marc Bloch de que a História se faz a partir da

produção/ação humana em seu tempo, em que qualquer produção do homem – desde que seja

analisada com olhar crítico, problematizada e historicizada – pode ser considerada um

documento histórico, ampliaram-se as fontes utilizadas pelo historiador. Com o alargamento

4

dos objetos históricos, houve uma “profunda alteração do uso e conceito de documento

histórico” (KARNAL; TATSCH, 2009, p. 15).

Isso, por sua vez, acabou por influenciar a metodologia de ensino de História e as suas

práticas pedagógicas realizadas nas escolas, as quais foram paulatinamente incorporando

novas fontes, a exemplo de fontes orais, sonoras, materiais, visuais e imateriais.

De acordo com Selva Fonseca (2003), durante muito tempo, pensava-se que o papel da

escola consistia na reprodução de conhecimentos, valores morais e cívicos, cabendo ao

professor transmiti-los. Todavia, com algumas mudanças de cunho social, político e

econômico, abarcaram-se novas percepções quanto ao papel por elas exercido. Observou-se

que, além de reproduzir, as escolas também produziam saberes, cabendo ao professor adquirir

novas posturas nos modos de transmissão e recepção do conhecimento.

Nesse sentido, a introdução de novas fontes no ensino de História, segundo Maria

Auxiliadora Schmidt (2004), contribui para que o aluno adquira uma postura crítica em

relação a essa disciplina e auxilia para que o professor deixe de ser um “professor

enciclopédico” (mero reprodutor que transmite de forma mecanizada o conhecimento),

passando a ser um “professor construtor” (responsável pela difusão de senso crítico entre os

alunos).

Diante das novas concepções pedagógicas e teórico-metodológicas da História, o

trabalho com fontes ou documentos em sala de aula, além de tornar as aulas mais atraentes e

permitir maior aproximação com a realidade do jovem, faz-se imprescindível ao processo de

conhecimento histórico, auxiliando na reflexão e contribuindo para o desenvolvimento de

uma postura mais crítica do aluno, tendo competências para aflorar uma consciência histórica

que, segundo o historiador e filósofo alemão Jörn Rüsen, pode ser entendida como “a soma

das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução

temporal de seu mundo e de si mesmos de forma tal que possam orientar, intencionalmente,

sua vida prática no tempo" (RÜSEN, 2001, p. 57).

Ademais, segundo Katia Maria Abud (2005), as linguagens alternativas são

importantes recursos didáticos para a aprendizagem de História, pois, a seu ver:

As chamadas linguagens alternativas para o ensino de história mobilizam conceitos

e processam símbolos culturais e sociais, mediante os quais apresentam certa

imagem do mundo. Imagem esta que acarreta outras instâncias de referências,

como comportamentos, moda, vocabulário. Elas provocam uma atividade psíquica

intensa feita de seleções, de relações e com representações criadas e expressas por

outras formas de linguagem (ABUD, 2005, p. 310-311).

5

Da temática

A escravidão perdurara por séculos na América Portuguesa, sendo a sua manutenção

facilitada, muitas vezes, por ser aceita e justificada pelas pessoas que compunham a classe

dominante – que a consideravam um favor concedido aos negros que viviam em condições

precárias – e por setores da Igreja, os quais alegavam que a condição de cada indivíduo estava

associada à vontade divina. Assim, “justificada pela religião e sancionada pela Igreja e pelo

Estado – representantes de Deus na terra –, a escravidão não era questionada. A Igreja

limitava-se a recomendar a paciência aos escravos e a benevolência aos senhores” (COSTA,

2008, p. 13).

A escravidão, desse modo, pode ser considerada um marco na história do Brasil, não só

por fazer parte de um passado sombrio e doloroso para os escravizados, mas por ainda se

fazer sentir suas consequências na sociedade, sobretudo, por meio da mentalidade em torno

dos negros. Pois como afirmou Suely Robles Reis de Queiroz, “a escravidão negra foi a mola

mestra da vida econômica brasileira durante praticamente quatro séculos, marcando assim, de

modo profundo, as instituições e a cultura do País” (QUEIROZ, 2010, p. 259).

Embora tenham sido longas e sinuosas as tentativas e a jornada que levaram à sua

extinção total, permaneceram alguns resquícios, a situação do negro nos dias de hoje pode ser

considerada uma consequência da longa existência da escravidão durante a América

Portuguesa e o Brasil imperial.

Contudo, é notório em livros didáticos e/ou materiais trabalhados em sala de aula que a

abolição da escravidão no Brasil se resume a um conjunto de leis, especificamente, Lei

Eusébio de Queiróz (1850), a qual proibia o comércio da escravatura realizado no oceano

Atlântico com destino ao Brasil; Lei do Ventre Livre (1871), que declarava livres os filhos de

escravas nascidos a partir da data da promulgação da lei; a Lei dos Sexagenários ou Lei

Saraiva-Cotejipe (1885), que concedia liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade1

e; por fim, a Lei Áurea (1888), assinada pela princesa Isabel, a qual declarava oficialmente o

fim da escravidão no Brasil.

Essa visão simplista minimiza a complexidade do tema, além de suprimir o caráter

processual da escravidão no país2. O que, por sua vez, leva os alunos a perderem noções

quanto à dimensão que esse episódio, de fato, teve. Mais que isso, faz com que eles deixem de

1 É válido ressaltar que os escravos com mais de 60 anos – o que era raro acontecer, já que muitos morriam antes

devido à vida precária a qual estavam submetidos – conseguiam a liberdade, porém, tinham a obrigação de

trabalhar por mais três anos como uma forma de indenização ao seu proprietário. Somente o escravo com mais

de 65 anos estava dispensado de tais obrigações. 2 A abolição da escravidão no Brasil, inspirando-se na experiência portuguesa, ocorreu de modo gradual, sendo

tomadas medidas que rumavam aos poucos para a sua extinção total.

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apresentar um olhar crítico não só para o processo abolicionista, como também para questões

do presente, a exemplo da temática do negro, do preconceito racial ainda cultivado na

sociedade brasileira, em que muitos demonstram uma visão do senso comum, ao invés de

formarem suas próprias opiniões com bases argumentativas e sólidas.

Da Metodologia e das fontes

O êxito de uma sociedade está relacionado ao respeito à diversidade, sendo seu

desenvolvimento alcançado desde que todos os cidadãos tenham condições para uma vida

digna, com qualidade. E é nesse contexto que a educação adquire papel fundamental, pois a

escola é o espaço que, além de transmitir conteúdos acumulados e preparar jovens capacitados

para o mercado de trabalho – embora vivamos em uma sociedade capitalista e impere o

individualismo –, deve primordialmente possibilitar ao educando o acesso ao conhecimento

historicamente produzido pela humanidade e a apreensão de sua utilização no exercício da

cidadania.

Com esse intuito, cabe ao professor o papel de mediador do conhecimento, orientando

para uma postura mais crítica do aluno. Nesse sentido, deve-se evitar a denominada educação

“bancária” em que o professor deposita informações como se fosse o único detentor do saber,

enquanto o estudante se torna apenas um ouvinte. Assim, a presente pesquisa se situa na

perspectiva de que se deve adotar uma educação problematizadora, em que haja diálogo entre

educador e educando, possibilitando a troca de conhecimento e aprendizagem mútua.

Seguindo essa linhagem, nota-se que o livro didático é um importante instrumento para

nortear os procedimentos e conteúdos a serem adotados pelo professor. Contudo, não deve ser

considerado uma fonte única de conhecimento disponível para o educando. O professor deve

utilizá-lo como auxílio, conscientizar-se da necessidade de um trabalho diversificado,

buscando em outras fontes informações ou conteúdos que venham a complementar e

enriquecer este material.

Nesse sentido, além de seu uso para um possível direcionamento, os livros didáticos

serão analisados e adotados como fontes para problematizar o modo como a abolição da

escravidão e a questão do negro no Brasil são abordadas. Paralelamente, serão utilizadas

algumas linguagens alternativas a serem aplicadas dialogicamente com os alunos.

Desse modo, para a execução deste trabalho, serão selecionadas como fontes históricas

trechos de alguns livros escritos por autores da época, dentre eles, do magistrado e político

brasileiro João Severiano Maciel da Costa (1769-1833), do naturalista José Bonifácio de

Andrada e Silva (1763-1838) e do médico e fisiologista Louis Couty (1854-1884), que

7

defendem, em suas respectivas obras, que a escravidão deveria ser extinta gradualmente,

posto que seria necessário um tempo para a adaptação tanto dos futuros libertos, diante de sua

nova condição de vida, quanto dos fazendeiros, para que substituíssem o trabalho escravo, do

qual eram dependentes, sem serem prejudicados. Demonstrando, em contrapartida, trechos de

escritos daqueles que defendiam a abolição imediata da escravidão, como do ex-escravo e

rábula3 Luiz Gama (1830-1882) e do diplomata e político Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de

Araújo, que considerava tal instituição “repugnante e uma verdadeira ofensa ao patriotismo”

(NABUCO, 1982, p. 78).

O intuito é reforçar a existência do debate que perdurara durante o século XIX entre

escravocratas, emancipacionistas e abolicionistas4, demonstrando todo o processo envolvido

para extinguir a escravidão com a reunião dos mais variados fatores que contribuíram para

isso e de desconstruir a ideia limitada da abolição em meio a um conjunto de leis, bem como,

a associação de sua realização a um ato de generosidade da princesa Isabel5. Afinal, de acordo

com Lilian Moritz Schwarcz (1998), a abolição da escravidão já estava se consolidando sem a

interferência do Estado, por meio de escravos que fugiam e/ou se revoltavam e por iniciativas

particulares.

Para complementar essa ideia de caráter processual da escravidão serão utilizados ainda

trechos de alguns livros escritos por autores da época, dentre eles, do magistrado e político

brasileiro João Severiano Maciel da Costa (1769-1833), do naturalista José Bonifácio de

Andrada e Silva (1763-1838) e do médico e fisiologista Louis Couty (1854-1884), que

defendem, em suas respectivas obras, que a escravidão deveria ser extinta gradualmente,

posto que seria necessário um tempo para a adaptação tanto dos futuros libertos, diante de sua

nova condição de vida, quanto dos fazendeiros, para que substituíssem o trabalho escravo, do

qual eram dependentes, sem serem prejudicados. Demonstrando, em contrapartida, trechos de

escritos daqueles que defendiam a abolição imediata da escravidão, como do ex-escravo e

rábula6 Luiz Gama (1830-1882) e do diplomata e político Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de

Araújo, que considerava tal instituição “repugnante e uma verdadeira ofensa ao patriotismo”

(NABUCO, 1982, p. 78).

3 Indivíduo que pratica advocacia sem possuir o diploma. 4 A saber: escravocratas eram os defensores da escravidão, os emancipacionistas eram favoráveis à extinção

gradual de tal instituição, enquanto os abolicionistas almejavam a abolição imediata da escravidão. 5Por muito tempo, a historiografia tradicional que trata da abolição da escravidão no Brasil, considerou a

realização desta, um ato de generosidade da princesa Isabel, que por sua bondade assinara a Lei Áurea em 1888,

concedendo liberdade a todos os escravos. Todavia, esta visão encontra-se extremamente ultrapassada, porém,

em muitas escolas, livros didáticos, discursos proferidos pelos professores e na mentalidade de muitos alunos

ainda se faz presente. 6 Indivíduo que pratica advocacia sem possuir o diploma.

8

Com o mesmo intuito serão utilizados trechos de obras do magistrado e político

Domingos José Nogueira Jaguaribe (1820-1890), do jurista brasileiro Agostinho Marques

Perdigão Malheiros (1788-1860) e do político brasileiro Aureliano Cândido Tavares Bastos

(1839-1875) escritas na época e que apresentavam a imigração como proposta para substituir

a mão de obra escrava. Embora tenham registrado alguns entraves que dificultavam a vinda de

imigrantes para o Brasil, pontuaram possíveis soluções para que a imigração se tornasse um

meio viável nesta empreitada, ressaltando a preferência pelos europeus, já que estes eram

considerados seres “civilizados”7, sendo responsáveis por “civilizar” os demais seres

“inferiores”, sobretudo, os negros.

Nessa linha de pensamento, partindo da afirmação de Eduardo Neiva Jr. de que “a

imagem tem sempre uma história” (NEIVA JR, 2002, p. 6), será utilizado o quadro do artista

espanhol Modesto Brocos, A redenção de Cam (1895), cuja pintura faz um paralelo à

passagem bíblica sobre a maldição de Cam e demonstra a gratidão da senhora negra pelo neto

ser branco, transportando, assim, a realidade brasileira para o quadro.

A redenção de Cam. – Modesto Brocos (1895)

Sabe-se que a imagem, assim como as demais linguagens, comunica e transmite sempre

alguma mensagem. De acordo com Martine Joly (1996), a imagem, por vezes, nos dá a

impressão de “passividade”, “intoxicação”. Todavia, isso é errôneo, pois ela nos permite

captar aspectos de convenções, história e cultura (JOLY, 1996, p. 10). Em complemento a

essa ideia, é válido tomar por base a afirmação de Adauto Novaes (2005) de que “as imagens

sempre exigiram de nós tempo para ver, o tempo lento da vidência e da evidencia, isto é, o

tempo necessário para o desenvolvimento das idéias contidas em cada uma delas” (NOVAES,

2005, p. 11). Ou seja, as imagens, as quais se fazem presentes com frequência em nosso

7 Embora o termo civilizado signifique “aquele que vive em cidade”, aqui está sendo empregado conforme o

sentido da época, de bem educado, instruído.

9

cotidiano, sempre têm alguma ideia contida, é preciso, no entanto, analisá-las, disponibilizar

tempo para ver além

As imagens são capazes de suscitar aos poucos quase todas as emoções e paixões

humanas, positivas e negativas, todas as emoções e paixões que as coisas ou as

pessoas reais que elas representam poderiam suscitar: amor, ódio, desejo, crença,

prazer, dor, alegria, tristeza, esperança, nostalgia, etc. (NOVAES, 2005, p. 19-20).

Desse modo, o quadro em questão permite evidenciar aspectos da realidade social

brasileira do final do século XIX, suscitando questões pouco abordadas pelos livros didáticos

sobre a imigração, o racismo científico, o embranquecimento e a identidade cultural no Brasil,

tornando-se uma arma poderosa em sala de aula. Contudo, conforme expôs Peter Burke

(2004), cabe ressaltar que apesar das imagens serem usadas como evidências históricas, uma

vez que fornecem elementos para aspectos da realidade social, não são reflexos puros da

realidade, são representações que podem distorcê-la. Assim, será realizada uma análise

cuidadosa desta imagem.

Por fim, sabendo que a música está presente no cotidiano das pessoas e contém

mensagens distintas – ora para relaxar, dançar, ora para se expressar, refletir –, utilizar-se-á o

samba enredo da Escola Estação Primeira de Mangueira, de 19888, Cem anos de liberdade,

realidade ou ilusão, composto por Hélio Turco, Jurandir e Alvinho, para problematizar o fim

da escravidão e a situação do negro no País, sua inserção na sociedade brasileira e todo o

preconceito envolto, além de suas conquistas.

A música, em geral, funciona como uma forma mais motivadora de ensinar, de

despertar maior interesse por parte do estudante, instigando a sua participação nas reflexões,

nos debates promovidos. Deve, portanto, de modo geral, ser compreendida não apenas como

arte, mas como conhecimento sociocultural. Assim, pode-se dizer que ela é um

(...) produto social (...) [que] representa modos de ver o mundo, fatos que

acontecem na vida cotidiana, expressa indignação, revolta, resistência, e mesmo

que tenha um tema específico, ela traz informações sobre um conjunto de elementos

que indiretamente participam da trama (ABUD; GLEZER, 2004, p. 12 apud

ABUD, ALVES, SILVA, 2010, p. 59).

Além disso, permite aos jovens, assim como as demais linguagens, desenvolverem

consciência histórica, aprimorarem a interpretação de textos e traçarem assuntos paralelos

com a atualidade, afinal

8 Data em celebração ao centenário da abolição da escravatura no Brasil.

10

Para que a criança alcance um “modo de pensar histórico” e possa ver-se como

sujeito ativo da História, é preciso escolher os conteúdos de ensino a partir do

tempo presente, estabelecer diálogos entre passado e presente, identificando neles

permanências e mudanças, simultaneidade e conexão temporal (MALATIAN,

2006, p. 16).

Soma-se a isso o fato das músicas serem, segundo Abud (2005), “representações [que]

não se constituem num discurso neutro, mas identificam o modo como, em diferentes lugares

e em diferentes tempos, uma determinada realidade social é pensada e construída” (ABUD,

2005, p. 312).

Nesse sentido, o samba-enredo proposto contesta de fato a existência da liberdade na

atualidade, conforme pode ser observado nos trechos “Será que já raiou a liberdade ou se foi

tudo ilusão? Será que a lei Áurea, tão sonhada, há tanto tempo assinada não foi o fim da

escravidão? Hoje dentro da realidade, onde está a liberdade? Onde está que ninguém viu?”

Ao tratar da ausência de liberdade na realidade brasileira atual, faz-se menção à

existência do preconceito racial, possibilitando olhar para o papel do negro na sociedade

brasileira e questionar as visões apresentadas nos livros didáticos e que, em geral, respaldam-

se nas teorias dos sociólogos Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique

Cardoso de que os negros, despreparados para se inserir na sociedade competitiva que se

formava na época pós-abolição, foram entregues à própria sorte. Estas visões, no entanto,

segundo o historiador Álvaro Pereira Nascimento (2005), sem a apresentação de um contexto

apropriado, dão abertura para interpretações deturpadas por parte dos alunos com relação aos

negros, sendo taxados de “bêbados”, “prostitutas”, “ladrões”, “assassinos”, “miseráveis”.

Logo, Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão é um importante instrumento a ser

usado em sala de aula que contribui para romper com tais visões na medida em que, a partir

do trecho “Moço não se esqueça que o negro também construiu as riquezas do nosso Brasil”,

mostra os negros como agentes construtores das riquezas do Brasil, permitindo ainda tratar

dos avanços e conquistas obtidos durante essa longa caminhada, ressaltando também a

atuação do Movimento Negro Brasileiro.

Torna-se, assim, evidente que as linguagens alternativas constituem em importantes

recursos didáticos, sendo ferramentas atrativas e imprescindíveis para o ensino de História,

uma vez que possibilitam a ampliação de horizontes do aluno, estabelecendo conexões com o

tempo passado-presente. Entretanto, não devem ser usadas somente para a informação, “donas

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de identidades próprias, as linguagens exigem uma proposta didática e instrumental adequada

para sua exploração nas aulas de história” (ABUD, 2005, p. 311).

Segundo Abud (2005), é preciso diferenciar, ao utilizar qualquer das formas de

linguagens, a formação (uma série de ações que apontam para um resultado) da informação

(pensamento que existe em algum lugar no tempo e no espaço). Sendo a linguagem usada

para a formação somente quando a informação recebida se relaciona com um conjunto

individual de esquemas e de estruturas mentais, que transforma a informação em

conhecimento. Ou seja, as fontes alternativas não devem ser utilizadas apenas como

demonstrativos ou ilustrações, algo que tem sido cada vez mais comum e, por sua vez, acaba

deixando de ser vista como uma fonte histórica, já que não é historicizada nem

problematizada, perdendo a relevância e o sentido de seu uso.

Assim, considerando a realidade dos estudantes, serão aplicados certos procedimentos

como a leitura das fontes em diferentes momentos, seguindo a sequência proposta acima; será

feito o levantamento inicial de informações realizado em conjunto com os alunos, sendo

estimuladas as suas percepções pelo professor em seu papel de mediador. Prevê-se ainda a

análise do tema proposto; a verificação de elementos presentes nas fontes; a realização de

uma problematização das informações, obtendo leituras variadas das fontes; a verificação de

quais temas suscitados se relacionam com o conteúdo estudado; a realização de uma

contextualização da produção da obra em relação à época e uma releitura da obra com

problematizações em relação ao presente.

É válido ressaltar a pluralidade de interpretações existentes, evitando cometer o

equívoco de uma história única, que traz consigo a ideia de uma verdade absoluta e descarta

possíveis questionamentos, contestações. Pois, é responsabilidade do professor de História

Ensinar o aluno a captar e valorizar a diversidade dos pontos de vista. Ao professor

cabe ensinar o aluno a levantar problemas e reintegrá-los num conjunto mais vasto

de outros problemas, procurando transformar, em cada aula de História, temas em

problemáticas (SCHMIDT, 2012, p. 57).

Por fim, com a finalidade de obter uma noção da qualidade da aprendizagem dos alunos

– reorientando para melhoria da mesma – e de repensar a prática docente – objetivando

melhorar o método de ensino –, será realizada a aplicação de uma atividade que promova a

reflexão do educando e que permita avaliar o conhecimento desenvolvido pelo mesmo. A

proposta é que os alunos analisem a primeira página do Jornal Extra do Rio de Janeiro,

publicada quarta-feira, 08 de julho de 2015, que teceu duras críticas à sociedade brasileira, ao

12

comparar a situação atual do país após o linchamento de Cleidenilson da Silva, com a vivida

na época da escravidão, como exposto abaixo.

Jornal Extra, Rio de Janeiro, p. 01, 08 de jul. de 2015

Após analisarem as imagens e registrarem suas impressões inicias, os discentes terão

acesso à legenda do jornal, reproduzida a seguir:

Os 200 anos entre as duas cenas acima servem de reflexão: evoluímos ou

regredimos? Se antes os escravos eram chamados à praça para verem com os

próprios olhos o corretivo que poupava apenas os 'homens de sangue azul, juízes,

clero, oficiais e vereadores', hoje avançamos para trás. Cleidenilson da Silva, de 29

anos, negro, jovem e favelado como a imensa maioria das vítimas de nossa

violência, foi linchado após assaltar um bar em São Luís, no Maranhão. Se em 1815

a multidão assistia, impotente, à barbárie, em 2015 a maciça maioria aplaude a

selvageria. Literalmente - como no subúrbio de São Luís - ou pela internet. Dos

1.817 comentários no Facebook do EXTRA, 71% apoiaram os feitores

contemporâneos. Jornal Extra, Rio de Janeiro, p. 01, 08 de jul. de 2015.

Em seguida, os estudantes farão uma releitura das imagens, estabelecendo associações

entre elas e a legenda, para somente então, produzirem um texto dissertativo com título, no

qual relacione o documento proposto para a análise com os conteúdos abordados em aula e

trace paralelos entre o passado e o presente.

Somente dessa forma, as diferentes linguagens poderão auxiliar na construção do

conhecimento histórico do aluno, pois “a sala de aula não é apenas um espaço onde se

transmite informações, mas onde uma relação de interlocutores constrói sentido” (SCHMIDT,

2012, p. 57).

Do “horizonte de expectativa”

Espera-se que o “espaço de experiência”, ou seja, a prática a ser realizada em sala de

aula sobre o tema discutido acima por meio do uso de linguagens alternativas e de toda

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metodologia empregada, enriqueça o processo de ensino-aprendizagem tanto do professor

quanto do aluno, atingindo o “horizonte de expectativa”.

Do ponto de vista dos estudantes, espera-se que estes ampliem suas noções acerca dos

documentos históricos, sendo capazes de aprender a ler diferentes registros escritos,

iconográficos, sonoros; apresentem novas concepções acerca dos temas suscitados; superem a

ideia de História como verdade absoluta, notando a existência de múltiplas interpretações e

desenvolvendo, assim, uma consciência histórica; questionem a sua realidade e respeitem a

diversidade.

Sob a ótica do professor, espera-se que este trabalho contribua para que o profissional

repense frequentemente a sua prática pedagógica, rompendo com o método tradicional de

ensino; estimule a incorporação das linguagens alternativas como proposta pedagógica para o

ensino de História, inspirando outros profissionais da área da educação na realização de

práticas pedagógicas semelhantes, desde que adequadas a sua área do saber; e, por fim, atue

como construtor do conhecimento, não se prendendo e se acomodando apenas aos livros

didáticos.

Para finalizar, almeja-se também romper com a visão dicotômica da relação entre

teoria e prática, aproximando uma da outra, na medida em que são trabalhadas

simultaneamente, afinal, a prática não se restringe apenas ao fazer, mas enriquece a teoria que

lhe deu base, sendo complementares.

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