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O ENSAIO, A CRÔNICA, A POESIA-CRÔNICA João Camillo Penna

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O ENSAIO, A CRÔNICA, A POESIA-CRÔNICAJoão Camillo Penna

O jornalista Carlos Drummond de Andrade constrói a sua obra poética paralelamente a uma atividade assídua de jornalista, ao longo de toda a sua vida. Vejamos um levantamento não exaustivo dos jornais em que escreveu: no Diário de Minas, na seção “Sociais” (1921-1926); no Diário de Minas, como redator-chefe (1926-1929); no Minas Gerais, órgão oficial do estado, como auxiliar de redação e como redator (1929-1934); em A Tribuna, como redator (1933); simultaneamente no Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da tarde como redator (1934); no Correio da Manhã e na Folha Carioca como colaborador do suplemento literário (1945); na Tribuna Popular, diário comunista, como co-editor (1945); no Minas Gerais de novo (1949-1953); e finalmente como cronista com atividade quase diária, no Correio da manhã, onde publica a coluna “Imagens” (1954-1969), e no Jornal do Brasil (1969-1984). No total foram 63 (ou 64 em sua conta) anos de trabalho jornalístico (DRUMMOND, 2006, p. lxxv-lxxxi). Flora Sussekind em ensaio de 1987 ressalta o embricamento entre a escrita jornalística e a poética em Drummond (SUSSEKIND, p. 262). É na atividade cotidiana de escrita em jornal que se estreitam os laços entre escritor e leitor. O cronista escreve ironicamente que suas crônicas “cheiram a reclamações e protestos”, e se assemelham a “cartas de consumidores, aborrecidos com a má qualidade dos eletrodomésticos que pifam” (DRUMMOND, apud SUSSEKIND, idem, ibidem). Essa proximidade com o leitor se manifestará na escrita poética pelo estabelecimento de uma escrita coloquial, conforme destaca Costa Lima, citado por Flora, uma “modalidade de percepção da realidade”, e uma desespiritualização da poesia que “abandona os temas sagrados”, para situar-se preferencialmente no âmbito do trivial (COSTA LIMA apud SUSSEKIND, idem, ibidem).

Na entrevista publicada em forma de crônica, “O jornal manuscrito e o de verdade”, Drummond refere-se ao jornalismo profissional como a “única coisa na vida que eu faria com certo prazer [...] e que não pude fazer como desejava, pois a burocracia tomou conta de mim, fiquei sendo jornalista bissexto” (DRUMMOND, 2003, 1221). A relação entre o trabalho jornalístico e os postos sucessivos na “burocracia”, no entanto, não é a mesma ao longo dos anos. Entre 1930, data em que inicia a sua carreira de funcionário público, como auxiliar de Gabinete do Secretário de Interior de Minas Gerais, Cristiano Machado, logo promovido a oficial de gabinete de Gustavo Capanema, que substitui Machado, até a sua saída do gabinete do mesmo Capanema, então ministro da Educação e da Saúde, em 13 de março de 1945, sua participação, embora frequente, e limitada aos suplementos literários, ainda pode ser chamada de bissexta, conforme sua própria denominação. Com a sua saída do gabinete de Capanema, no entanto, firmando-se nele o desejo de “’militar’ contra o ditador” Getúlio Vargas (CANÇADO, p. 194), sua participação jornalística se adensa, dando-se aí a significativa passagem da crônica literária ao comentário cada vez mais interventivo nos fatos cotidianos. Menos de um mês depois de deixar o Ministério da Educação e Saúde, ele é sondado por Paulo Bittencourt, diretor do Correio da Manhã. Drummond assim menciona o fato em seu diário: “Junto à colaboração literária, pretende fazer de mim jornalista político:

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editorial e tópicos”. Sua reação no entanto é ambivalente: “Meio atordoado, procuro sentir-me na pele de editorialista, mas falta alguma coisa na minha vontade de atuar politicamente: falta precisamente a vontade, a garra, a paixão; é uma atitude intelectual, contra a minha natureza. Veremos” (DRUMMOND, 2003, p. 982). O convite não se materializa. Mas, menos de um mês depois, em 1° de maio, ele aceita participar do Conselho diretor de O popular, convertido adiante em a Tribuna Popular, com compromisso de escrever com grande regularidade. Apesar do entusiasmo inicial, a sua participação dura muito pouco, pouco menos de dois meses. Em 22 de junho ele comunica a resolução de deixar o comitê da direção do Jornal. Quando começa a escrever crônicas três vezes por semana no Correio da manhã, em 1954, portanto, não mais como jornalista “bissexto”, ele ainda trabalhava na “burocracia”, junto com Rodrigo M.F. de Andrade, como chefe da Seção de História, na Divisão de estudos e Tombamento do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), posto que assumira ainda em 1945, e do qual se aposentará em 1962.

Em tudo e com tudo sublinha o seu prazer de escrever em jornal:

— A que espécie de jornalismo você se refere: ao assinado, com pretensão estilística?— Ao jornalismo no duro, que vai pela noite adentro ou pelo dia afora, conforme a pressão da notícia. Jornalismo suado e sofrido, com algo de embriaguez, pela sensa-ção de viver os acontecimentos mais alheios à nossa vida pessoal, vida que fica de-pendendo do fato, próximo ou distante, do imprevisto, do incontrolável, da corrente infinita de acontecimentos. [...] Sempre gostei de ver o sujeito às voltas com o fato, tendo de captá-lo e expô-lo no calor da hora. Transformar o fato em notícia, pro-duzir essa notícia do modo mais objetivo, claro, marcante, só palavras essenciais. Ou interpretá-lo, analisá-lo de um ponto de vista que concilie a posição do jornal com o sentimento comum, construindo um pequeno edifício de razão que ajude o leitor a entender a concluir por si mesmo: não é um jogo intelectual fascinante? E renovado todo dia! Não há pausa. Não há dorzinha pessoal que possa impedi-lo. O fato não espera. O leitor não espera. Então você adquire o hábito de viver pelo fato, amigado com o fato. Você se sente infeliz se o fato escapou à sua percepção (DRUMMOND, 2003, p. 1221).

É precisamente o tema de seu “Poema do jornal” de Alguma poesia (1930):

O fato ainda não acabou de acontecer

e já a mão nervosa do repórter

o transforma em notícia.

O marido está matando a mulher.

A mulher ensangüentada grita.

Ladrões arrombam o cofre.

A polícia dissolve o meeting.

A pena escreve (DRUMMOND, 2006, p.19)

Em sua última crônica no Jornal do Brasil, de 29/11/84, intitulada “Ciao”, Drummond relata o início de suas atividades jornalísticas, no “tempo de Epitácio Pessoa”:

Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jor-nal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:— Sobre que pretende escrever?— Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qual-quer outro possível.O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.

A crônica drummondiana está às voltas com os fatos históricos. Ela assiste aos fatos narrados nas notícias de jornal, em páginas vizinhas. É interessante explorar a relação entre a notícia da manchete e a matéria de sua crônica. Ao passar em revista os anos de atividade jornalística, na mesma crônica do JB, “Ciao”, ele escreve o seguinte, em terceira pessoa, como toda a crônica de resto:

Assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de onze presidentes da República, mais ou menos eleitos (sendo um, bisado [Getúlio Vargas]), sem contar as altas patentes mili-tares que se atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a 2ª Guerra Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os movimentos populares, frustra-dos mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia, anotou as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lu-tando a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano,

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abertas a qualquer um e que são certamente as melhores. Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar menos nos temperamentos mais aguados.

Importante a especificação do tom da crônica, o humor, que se acentua e se transforma com o tempo. Menos marcado em suas primeiras crônicas, bem humorado mas interventivo no período intermediário, mais leve e descompromissado nas últimas décadas. E a correspondência desse tom a uma escrita mais arejada, que “não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista”, uma escrita, portanto, de traje de passeio. O cronista drummondiano é por definição o não especialista e nisso se diferencia do repórter:

Procurou extrair de cada coisa, não uma lição, mas um traço que comovesse ou dis-traísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que os outros o façam.Crônica tem esta vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a fez o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico, etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determi-nado ponto-de-vista não ortodoxo e não trivial, e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação. [...]

O espaço de atuação da crônica é, conclui ele, bastante limitado: “minutos no café da manhã ou à espera do coletivo”. Na entrevista com sua filha, Maria Julieta, no item dedicado ao assunto, “A crônica é um gênero engraçado”, ele sublinha esse aspecto restrito, mundano, da crônica, afirmando inclusive que a crônica “não tem importância”. A função da sua crônica, explica ele, situada no segundo caderno do jornal, é de “corrigir o que há no primeiro caderno. O primeiro caderno é um estoque fabuloso de terremotos, assassinatos, intrigas, misérias, pobreza, desabamento de favelas, tudo isso. A gente acorda, lê o jornal da manhã e sai para rua com um péssimo começo de dia. [...] Eu considero o meu ofício de cronista o de uma espécie de palhaço, de jongleur, que dá cabriolas, dá saltos, faz molecagens, para distrair um pouco o leitor comum”.

No entanto, suas crônicas nem sempre foram publicadas no segundo caderno, o chamado caderno cultural, como quando ele faz a declaração acima, em 22/01/1984, nem tinham unicamente como finalidade entreter o leitor. Elas o são no JB (1969-1943), onde elas eram situadas no Caderno B, mas já no Correio da manhã (1954-1969), elas apareciam nas páginas 3 ou 5 do primeiro caderno. Como versavam essencialmente sobre o cotidiano da cidade, estariam hoje provavelmente num caderno Cidades, longe das matérias culturais e dos horários de cinema, ao contrário do que afirma na entrevista com sua filha. Em todo o caso, é evidente que o tom das crônicas entre os dois jornais muda, no período do JB elas se conformam mais à caracterização que delas faz na entrevista, de distração e espécie de antídoto contra o “estoque fabuloso” de catástrofes contidas no primeiro caderno. Já no período do Correio da manhã, o comentário bem humorado do cotidiano vem sempre misturado com um apelo sério, interventivo. Não deve tampouco nos escapar a ironia de sua auto-desqualificação: a crônica é tanto mais eficaz quanto mais ela não se leva a sério, sendo essa mesmo a grande lição do Drummond cronista.

Em uma entrevista concedida um ano depois (01/09/1985) ao jornal O Estado de São Paulo, Drummond retoma alguns desses pontos, distinguindo a escrita da prosa de ficção da atividade de escritor de crônicas, e a escrita da crônica da poética: “Não me considero propriamente um ficcionista. Eu fui mais um cronista, um amigo e companheiro da hora do café da manhã que um escritor. Um homem que registrava o cotidiano e o comentava com o possível bom-humor para não aumentar a tristeza e a inquietação das pessoas. Considerava o jornal um repositório de notícias tremendas. Então, o meu cantinho do jornal era aquele cantinho em que procurava distrair as pessoas dos males, dos aborrecimentos, das angústias da vida cotidiana. A poesia não é uma atividade que exerço continuamente. Pelo contrário, exerço pouco. Passo semanas, meses sem fazer um poema. E só o faço quando sinto uma necessidade íntima muito grande, enquanto que a prosa é feita por encomenda (em função da atividade profissional) ou pelo prazer, simplesmente. A poesia tem uma particularidade especial. Ela não vem na hora que quer. Por um mistério qualquer, ela surge ao acaso. Não quero dizer que seja algo divino, mas de qualquer maneira não é uma atividade cotidiana. É mais uma atividade esporádica.”

A escrita do cotidiano, sob encomenda, é aquela que se faz também cotidianamente; ao contrário da poesia que tem o seu próprio e misterioso ritmo, cuja ordem de nascimento — a marca daquilo que “vem” — Drummond ciosamente distingue da manifestação do divino, colocando-a sob a égide do acaso.

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A críticA

Davi Arriguchi em “Fragmentos sobre a crônica” delineia a história do gênero. Começando pelo sentido da palavra crônica, “associad[a] à noção de tempo, presente no próprio termo, que procede do grego chronos” (ARRIGUCHI, p. 51). As crônicas são as precursoras da historiografia moderna. Conhecemos, por exemplo, as Crônicas de Fernão Lopes (1378/1390-1459?), cronista medieval português, historiador dos reinados de D. Pedro I, D. Fernando e Dom João I. Conhecemos da mesma forma os dramas históricos de Shakespeare, centrados na biografia de reis ingleses, escritas por cronistas, como Ricardo III, baseado em crônica escrita por Thomas More (1478-1535), autor da Utopia.

O sentido contemporâneo de crônica é, no entanto, bem diferente. “Agora se trata simplesmente de um relato ou comentário de fatos corriqueiros do dia-a-dia, dos fait divers, fatos de atualidade que alimentam o noticiário dos jornais desde que estes se tornaram instrumentos de informação de grande tiragem, no século passado” (idem, p. 52-53). Essa relação da crônica com a história da imprensa precisa ser meditada. A relação é, no entanto, de tensão: não se trata de um “apêndice do jornal”, mas adquire autonomia literária e estética. Além desta tensão percebe-se uma segunda, entre dois tipos de história: a crônica oficial dos fatos e a narrativa oral, do contador de causos interiorano, transportado para a metrópole, e fazendo dessa contradição um veio profícuo. É o caso de nosso cronista mais emblemático, Rubem Braga, como veremos.

“[A] crônica é ela própria um fato moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, às inquietações de um desejo sempre satisfeito, à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna, tal como esta se reproduz nas grandes metrópoles do capitalismo industrial e em seus espaços periféricos” (idem, p. 53). A forma da crônica se estrutura nessa tensão entre o contingente e o perene.

A relação entre a história e a narração oral mostra-se em Machado, grande apreciador de Fernão Lopes, ou no Bandeira de Crônicas da Província do Brasil (1937). Por exemplo, na crônica sobre Ouro Preto, intitulada “De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos estudantes”, nota-se uma sutil transição entre a apreciação da arquitetura das velhas casas intactas e sobradões, e o relato de um contador de histórias, que se fixa nos gestos de pessoas humildes e anônimas, como a do mulato anônimo que descobriu o ouro de aluvião, ao pegar um pouco de água para beber.

“Muito próximo do evento miúdo do cotidiano, o cronista deve de algum modo driblá-lo, se não quiser naufragar agarrado ao efêmero” (ARRIGUCHI, p. 55). Instaura-se uma tensão entre o fato e seu tratamento propriamente literário, a contingência da notícia é um desprendimento que frequentemente faz a crônica se tornar lírica e subjetiva. Quando surge no Brasil no século XIX, o cronista é também o folhetinista. O folhetim ocupava um pedaço da

página do jornal, onde eram publicados romances, em capítulos, de forma muito semelhante às telenovelas atuais, que elaboram por sua vez o modelo da radionovela, de que são herdeiras diretas. É como folhetim, isto é, como publicação serializada veiculada em jornal que foram publicados grande parte dos romances no século XIX brasileiro. O folhetinista era ao mesmo tempo o cronista, como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e França Jr. Além é óbvio do próprio Machado.

O caráter heterogêneo e discrepante da crônica é sintetizado na contradição entre materiais “do passado, herança persistente da sociedade tradicional,” e as “novidades burguesas trazidas pelo processo e modernização do país, de que o jornal era um dos instrumentos” (idem, p. 57).

Grande parte dos escritores modernistas são cronistas. Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Alcântara Machado, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Eneida, Rachel de Queiroz. O que estes autores têm em comum é “no plano expressivo, a decisiva incorporação da fala coloquial brasileira, que se ajusta perfeitamente à observação dos fatos da vida cotidiana, espaço preferido da crônica, por tudo isso cada vez mais comunicativa e próxima do leitor. Na verdade, ela se tornava um campo de experimentação de uma linguagem mais desataviada, flexível e livre, adequando-se à necessidade de pesquisa da realidade brasileira que passara a se impor à consciência dos intelectuais, sobretudo a partir da Revolução de 30, e atingia, por essa via simples, também a consciência do grande público dos jornais. Seguindo a tendência do momento e de outros gêneros, a crônica se convertia num meio de mapear e descobrir um país heterogêneo e complexo, largamente desconhecido de seus próprios habitantes, caracterizado pelo desenvolvimento histórico desigual, de modo que o processo de modernização podia ser acompanhado pelos contrastes entre bolsões de prosperidade e vastas áreas de miséria, e o próprio mundo moderno parecia nascer de mistura com traços remanescentes de velhas estruturas da sociedade tradicional” (idem, p. 62-63, itálico meu).

A crônica de Rubem Braga se adequa perfeitamente à descrição feita por Davi Arriguchi. Ele também situa tematicamente a sua crônica na “escruzilhada entre o ambiente rural e o urbano, entre a província querida da infância e o vasto mundo moderno”. “O mistério da poesia” — título de uma crônica de Braga, que dialogava com a poética de Bandeira — consiste, nas palavras de Bandeira, em “dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia” (idem, p. 65).

Antonio Candido, em artigo intitulado “Drummond prosador”, sublinha, como Flora Sussekind, a imbricação entre poesia e prosa na obra do autor (o artigo de Candido é de 1984, e o de Flora de 1987). No que toca especificamente à crônica, para início de conversa, trata-se de conjunto multifacetado, uma espécie de resto onde parece caber tudo: “Drummond chama de crônica ao resto dos seus escritos em prosa” (CANDIDO, 2004, p. 19). Acompanhemos o

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percurso de suas coletâneas de “crônicas”. Confissões de Minas (1944) contém “crítica literária, estudos de personalidade, comentário lírico e anedótico sobre o quotidiano, mostrando que ele não é um cronista no sentido estrito, como são Rubem Braga, ou Rachel de Queiroz e Fernando Sabino quando fazem crônica” (idem, p. 16). Há elementos ficcionais narrativos evidentes na poesia de Drummond, como há elementos poéticos igualmente evidentes na prosa. Para tirar a teima, Candido lista os traços destoantes que alteram uma codificação estrita de gênero em obras conhecidas: a tonalidade do romance popular aparece no poema O caso do vestido; A morte do leiteiro é algo como um poema notícia; há efabulação, em O padre e a moça; ou a projeção pessoal, no poema A morte no avião (idem, p.17). Por outro lado, no conto “Beira-rio”, de Contos de aprendiz (1951), Candido demonstra como a narração se inicia com uma acentuada marca metafórica, ao mesmo tempo que o elemento referencial, no caso, o despertar miserável de um apontador da usina, remete à crônica do cotidiano (idem, ibidem).

A rigor não se pode propriamente falar de crônica nos dois primeiros livros de prosa, Confissões de Minas e Passeios na ilha. Mesmo nas crônicas mais próximas do que usualmente se associa à definição do gênero, a gratuidade ocasional característica é substituída pelo poema, o estudo a autobiografia, ou por uma atitude reflexiva, embora bem disfarçada.

Esta última modalidade leva a pensar que ele pratica ao seu modo aquilo a que Mon-taigne chamava ensaio, ou seja, o exercício em profundidade do pensamento, a par-tir de estímulos aparentemente fúteis, ou desligados do que acaba sendo a matéria central. É em Montaigne que penso quando vejo Drummond, numa prosa que se apresenta como algo irrelevante, deslizar do papo para reflexões de um alcance e densidade que nos fazem incluí-lo na família mental dos que ensaiam o pensamento, a pretexto de motivos inesperados; mesmo quando ele volta de repente a algo que parece insignificante, como se quisesse, por meio desse particular corriqueiro, que-brar o ensaio e refazer a crônica. Ainda nisso lembra Montaigne, que pode partir da dor de dentes de um guerreiro antigo, em seguida filosofar sobre o estoicismo e acabar contando pormenores da sua administração doméstica ou dos seus males de entranha. Por isso, quando na crônica “Antigo” fala em “humana contingência”, o leitor pressente alguma afinidade no ar e acaba lembrando a humaine condition. E aí concluímos que a designação crônica pode ser tão arbitrária em Drummond quanto ensaio em Montaigne. Num caso e noutro, os movimentos livres do pensamento e da imaginação vinculam estreitamente o detalhe insignificante à reflexão cheia de conseqüências, de um modo que escapa às classificações (idem, p. 21).

Candido problematiza a classificação da prosa de Drummond como crônica. Em Drummond os gêneros fixos de ficção, crônica e poesia são desestabilizados. Candido conclui com uma completa saturação de cada gênero pelo seu outro, ou outros. “Por isso, é claro que na sua poesia há ficção e crônica; na sua crônica, poesia e ficção; na sua ficção, crônica e poesia — tudo formando o que para ele decerto são tentativas, mas para nós são realizações completas e exemplares” (idem, p. 22).

Talvez a dificuldade de Candido possa ser resolvida pelo menos em parte. Um auxílio, digamos, interno poderia nos vir da Bibliografia da Poesia Completa de Drummond, revista pelo autor (?), onde uma parte da sua prosa é classificada de “ensaio”, precisamente Confissões de minas e Passeios na ilha, os dois livros que para Candido mais fogem da forma-tipo da crônica, pelo seu conteúdo reflexivo. O ensaio, gênero inventado por Michel de Montaigne, muito bem definido por Candido, deve ser entendido, no momento de seu nascimento, como uma experimentação inconclusa, infinita, algo próximo do sentido teatral do termo ensaio em português, como preparação para uma estréia sempre adiada e que afinal nunca ocorre, ou em que o próprio ensaio se transforma em estréia. Como se pode depreender dos sentidos dicionarizados do termo em francês. Essai= tentativa; do latim exagium (pesado), de exigere, expulsar, depois medir, regular; 1) experimentar, testar, por exemplo, em português, em tubo de ensaio, ou em ensaiar, no sentido teatral; 2) ação de tentar sem estar certo do resultado; 3) obra literária em prosa, de fatura bastante livre, tratado de um assunto que não esgota ou que reúne artigos diversos (sentido fixado em 1580, ano da publicação do primeiro volume dos Ensaios de Montaigne).1

Portanto, não é justo afirmar que a designação ensaio é arbitrária em Montaigne. Já que ensaio designa precisamente o que os ensaios de Montaigne realizam, ao enfeixar temas diversos de forma aparentemente desordenada, saltando de maneira disjuntiva de grandes a pequenos temas, de uma dor de dentes a uma reflexão sobre o estoicismo, como bem coloca Candido.

José Guilherme Merquior, em carta a Drummond, de 8 de novembro de 1972, enviada de Bonn, corrobora a colocação de Candido: “Se, como quer Afrânio Coutinho [?], a crônica — certa crônica, é claro — faz entre nós as vezes do ensaio no sentido inglês (e montaigneano), a sua crônica, o melhor dela, que é fantasia admiravelmente partilhada entre o narrar e o refletir, entre contar e interrogar. Tem, me parece, um lugar do mais absoluto relevo na evolução de nossa prosa literária. Até porque o romance vai, em muitos pontos e vários autores, se transformando em essay, o senhor não acha? [...] Já correu muita tinta sobre a volta do fantástico na ficção, mas pouco se estudou a metamorfose da ficção não tanto no fantástico e

1 Adaptado do Petit Robert.

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sim no fantasioso, que é o ânimo estético da crônica-ensaio. É preciso reumanizar a etiqueta “ensaio”, repristiná-la, recarnavalizá-la... Ensaísta não são os chato-boys como eu, são os cronistas-mores como o senhor. A crônica anti-Pongetti e a crônica que retoma e atualiza a pena do Bruxo [Machado de Assis]. Por outro lado, nada impede que o ars narrandi ajude nisso: seu valor como contista, por exemplo, transparece nas crônicas ensaios.

Agora, o que me consterna é essa mania de decidir se Carlos Drummond de Andrade é maior poeta ou maior contista... Por que as pessoas teimam em pensar em termos aut/aut, quando podem fazê-lo em et/et? A poesia é o lado intensivo, e a crônica o extensivo, da sua produção (mas se cruzam várias vezes, não é mesmo?).”

O dilema classificatório de Candido se resolveria se chamássemos de ensaio os textos contidos nos dois primeiros volumes? Apenas parcialmente. Mesmo nas crônicas menos ensaísticas, as crônicas tout court, há elementos reflexivos que se interpõem subrepticiamente ao dado corriqueiro, material característico da crônica. Há algo como um ensaísmo drummondiano que se infiltra na leveza da crônica cotidiana, emprestando-lhe repentinamente ares de meditação filosófica.

O trecho de “Antigo” a que Candido faz referência, em que Drummond fala da “humana contingência”, é exemplar, nesse sentido (DRUMMOND, 1975, p. 17-20). O ensaio, não incluído na Prosa Seleta da Nova Aguilar, foi coligido em Passeios na ilha. Divagações sobre a vida literária e outras matérias (1952), na seção “Província, minha sombra”. O pretexto do ensaio é uma viagem de avião que Drummond teve que fazer à sua cidade natal, Itabira, e o seu objeto é o centenário da criação da vila de Itabira, mais precisamente da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Itabira do Mato Dentro, ocorrida em 21 de maio de 1833 (OLIVEIRA NETTO, p. 10). Drummond dedicara anteriormente à sua cidade natal um outro ensaio, escrito em 1933, justamente por ocasião da comemoração do centenário de sua elevação a vila, “Vila de utopia”.2 “Antigo” é, no entanto, posterior à efeméride, já que Drummond menciona as “casinhas catitas que a Companhia Vale do Rio Doce fez construir para seus funcionários, no bairro Pará”. Ora, a Vale do Rio Doce se instalou em Itabira em 1942.3 Drummond opõe aqui os índices da transitoriedade do progresso, as casas de operários “onde até alguns anos só se erguiam pequenas construções de taipa e chão de terra batida”; o campo de aviação “ao pé do pico venerável” do Cauê; a azáfama dos caminhões contornando a montanha, dos vagões de trem carregados de hematita, das explosões que desintegram os “blocos milenários” — ao

2 O ensaio foi publicado inicialmente em A Tribuna e Minas Gerais, em 7 de outubro de 1933, com o título de “Centenário da vila de utopia”, reintitulada simplesmente “Vila de utopia”, quando recolhida no volume Confissões de Minas (1944) (PY, p. 181).

3 A Vale do Rio Doce foi criada em 1° de junho de 1942, pelo Decreto-Lei nª 4.352, assinado por Getúlio Vargas.

tempo, à “continuidade do tempo semelhante a si mesmo”. Todos esses índices efêmeros da transitoriedade são apenas “a franja do tempo, não são o tempo”. Não o tempo diferente a sim mesmo, mas o tempo “indiferente ao vão escoamento das modas e técnicas”. Itabira, conclui Drummond, nos dá a sensação de uma cidade “insculpida no tempo e indene, por isso mesmo, à erosão, à política, à instabilidade econômica, ao romantismo, ao americanismo, à luta de classes e a outras vicissitudes de humana contingência” (DRUMMOND, 1975, p. 18). A cidade literalmente esculpida, talhada, escrita na pedra pelo tempo é “indene”, isto é invulnerável, aos danos da erosão, da economia, e da própria indústria de ferro, a tudo o que ele resume como a “humana contingência”, de que falara Candido.

O ensaio é trabalhado pela oposição entre o perene, o velho, o imutável, e o efêmero, o mutável, este último pólo sendo resumido gaiatamente por Drummond como a “alternativa de nossos amores e gripes” (idem, ibidem). Em suma, os três grandes ciclos econômicos que se desenvolveram em Itabira, o ciclo do ouro, do ferro e do gado, todas as modernizações sucessivas que assolam a cidade, tentando desfigurá-la, não logram no entanto “anular a essência desse chão pastoril, meigo, reservado, meditativo e grave” (idem, ibidem).

O termo essência pertence ao léxico filosófico, o que de antemão permitiria uma primeira leitura da oposição que estrutura o ensaio em termos de essência X aparência. A essência imutável, perene, indene, por oposição à aparência contingente, à história natural (a erosão) e humana (a política, a economia, a luta de classes...). Drummond parece confirmar essa hipótese, ao rematar, próximo da conclusão: “Já terei deixado perceber que as cidades me interessam antes por certas características profundas do que pela sua evidência econômica, histórica, social, jornalística” (idem, p. 19). A cutucada no jornal fecha o ensaio: as notícias perenes, daquilo que não muda, quase não muda ou muda pouco quando tudo em volta muda, “[s]ão as verdadeiras notícias, e não saem nos jornais” (idem, p. 20). É bem verdade que o ensaio saiu em um jornal (?), mas essa é apenas uma das contundentes contradições que movem a noção drummondiana de tempo. Um tema conexo, que parece ser sugerido aqui pela oposição entre a “notícia verdadeira”, e a “profunda”, a que diz respeito à essência do tempo , por oposição à “franja” do tempo, de fatos contingentes e efêmeros, veiculados pelo jornal, e materialmente ligados à sua circulação serial, poderia ser abordado a partir da oposição formulada por Walter Benjamin entre reprodutibilidade técnica, no caso, da imprensa, e a unicidade da aura da obra de arte. É verdade que Benjamin fala da reprodutibilidade da obra de arte, e Drummond fala do jornal, duas coisa diferentes. Porém, na publicação literária em jornal se coloca a mesma questão da perda do testemunho das coisas, atestada pela aura. Veja-se, nesse sentido, uma citação do texto de Benjamin: “A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde. Sem dúvida, só esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional” (BENJAMIN, p. 168).

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Drummond pede perdão ao leitor por, ao visitar a cidade em que passou a infância depois de muitos anos de ausência, não falar do espetáculo do dinamismo do progresso, mas fixar-se justamente no contrário, naquilo que permanece. Como “a água que escorria trêfega”, isto é, astuta, sagaz, que nos seus tempos de menino formava uma banheira em que ele e seus amigos se banhavam, agora é “cativa de um rego de cimento” (DRUMMOND, 1975, p. 20). Mas, continua Drummond: a frescura da água “sorvida sobre a relva” “é a mesma de 1924, de 1914”, e opera naqueles que a bebem, fato confirmado por seu irmão, José, um “brusco sortilégio sensorial”. Esse sortilégio é o mesmo descoberto por um romancista, Marcel Proust, não nomeado no ensaio,“no fundo de uma xícara de chá e de um bolo de madalena”. Tudo mudou, e nada mudou. As coisas mudam, mas a “via poética” sublinhada pelo ensaio, que abre o acesso à imutabilidade das coisas em um mundo transitório, mostra que nada mudou. A referência ao Proust da “memória involuntária”, e à redescoberta do tempo passado na cena da prova da madalena com chá, descrita no primeiro volume de Em busca do tempo perdido, de que Drummond traduzirá alguns anos depois (1956) um dos volumes, A fugitiva [Albertine disparue], é a senha para toda uma discussão sobre o motivo do tempo, em termos que merecem ser aprofundados. Retornaremos a Proust.

A propósito justamente do motivo do “fluxo incessante das coisas”, e da reconciliação da mudança-permanência, em sua bela leitura de “Os bens e o sangue”, Marlene de Castro Correia alinhava uma série de exemplos de versos de Drummond, em que se destacam os versos famosos do poema “Sabará” sobre as águas do rio (ROCHA, p. 91.):

A água que corre

já viu o Borba.

Não a que corre,

mas a que não pára nunca

de correr (DRUMMOND, 2006, p. 10-11).

O Borba do poema é o tenente-coronel Manuel de Borba Gato, fundador de Sabará, no final do século XVII. Marlene associa o motivo da mudança-permanência aqui contido ao tema da mudança tal qual tratado pelo filósofo pré-socrático Heráclito, em que aparece justamente com tanta força a cena da travessia do rio (“não é possível descer duas vezes no mesmo rio”, citada por Marlene). No entanto, seria preciso aprofundar ainda um pouco essa relação. Heráclito é claro quando afirma: “tudo muda nada permanece”, panta rei ouden menei. Enquanto que o que afirma Drummond é, traduzido em português canhestro, tudo muda e ao mudar permanece na mudança. “Não a que corre,/ mas a que não pára nunca/

de correr.” Trata-se da mudança, do transitório, da aparência decantada no imutável, no que permanece, na essência, por meio da “via poética”. O ensaio dá elementos para se pensar essa operação de essencialização do tempo pela poesia. Discorrendo no início sobre os centenários, ele distingue os centenários de homens, geralmente já mortos, que não chegam a completar 100 anos, e por isso nos suscitam tristeza, dos centenários de cidades ou instituições. Nesse caso, não sentimos tristeza: esses centenários nos apresentam “uma face clara, de permanência, de vida em elaboração”. Nas velhas cidades, as coisas não mudam, temos a percepção do tempo estático. Por isso Drummond diz, numa crônica que leremos adiante, “Viagem de Sabará”, que as cidades mortas mineiras são as mais vivas (DRUMMOND, 2003, p. 218). E aqui no caso da cidade de sua infância, deparamo-nos com um paradoxo: “as velhas cidades são precisamente as mais novas, elas que assistem à nossa meninice, presidem à nossa madureza, e nos sepultam a nós como ao nosso bisavô lendário”. As pessoas passam, como a nossa vida passa, mas as cidades permanecem, nos espiando, nos “assistindo”, de suas ruas, muros, portas e janelas.

O problema da memória individual surge nesse velho texto, que prepara o projeto memorialístico de Boitempo (1968, 1973, 1979). Como justificar do ponto de vista literário a elucubração narcísica sobre o próprio passado? A quem interessará esse fragmento particular de passado? “E no caso particular da terra onde nasceu o escriba, pede ele vênia para amar sobretudo o invisível,o esvoaçante, o esquivo”. O escriba não reproduzirá portanto os fatos, os acontecimentos, as coisas, “mofinos episódios, que só para nós se identificam com a mais louca fantasia”, cujo alcance limitado não ultrapassa o interesse estritamente pessoal, ao narcisicamente espelhar unicamente a particularidade, mas dedica-se a indicar as coisas “profundas”, invisíveis, esvoaçantes, esquivas, a “louca fantasia”. Nada que possa ser descrito factualmente. “O mundo da infância é sempre murado”, isto é, estático, protegido em sua essência imutável, depositada nas velhas coisas. E é apenas pela poesia que se pode acessar esse invisível, a essência decantada do tempo.

Entendamos melhor as duas referências literárias mencionadas até agora: Montaigne, por Candido, e Proust, pelo próprio Drummond. A famosa expressão humaine condition aparece no ensaio “Do arrependimento”, (volume III dos Ensaios). É aqui que ele explicita o cerne do projeto autobiográfico de sua obra.

Exponho uma vida vulgar e sem brilho, isso não importa. Ligamos toda a filosofia moral tão bem a uma vida comum e privada quanto a uma vida de mais rico estofo: cada homem porta em si a forma integral da condição humana (MONTAIGNE, III, p. 28).

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Ao decidir retirar-se, no dia de seu aniversário de 38 anos, “da servidão da corte e dos empregos públicos”, ao “ventre dos virgens sábios”, ou seja, em sua biblioteca, e ali passar, os próximos 21 anos, até a sua morte, em “liberdade e ócio” imerso em suas leituras e na escrita de seus Ensaios, Montaigne precisa justificar a sua empresa diante de seus leitores. É justificável à sociedade essa dedicação exclusiva ao registro o mais detalhado possível de minhas mais íntimas transições de espírito, de minhas minuciosas percepções e comentários de leituras? Que interesse terá isso para os outros, que nada tem a ver comigo, que não têm a mesma vida que eu, que não pensam as mesmas coisas que eu? O aparente elitismo de Montaigne contém o seu reverso: a vida que descrevo, de Michel de Montaigne, é “vulgar e sem brilho”, não é dotada de absolutamente nada de especial que a notabilize, é uma vida qualquer. E ademais isso não é importante, já que o homem mais pobre tem exatamente o mesmo interesse do ponto de vista da filosofia moral do que o mais rico. Porque “cada homem porta em si a forma integral da condição humana”, isto é, a condição humana é realizada integralmente sem que falte nada em todo e qualquer ser humano. Essa declaração radicalmente não hierárquica, de um humanismo igualitário, expressa de maneira contundente o valor do “qualquer”, essencial para a constituição do pensamento político republicano moderno (todo homem é igual, etc.=qualquer homem). Além disso, ela contém a justificativa do projeto autobiográfico dos Ensaios como um todo. Se em qualquer homem, se em todo homem, tem o que importa no homem, em outras palavras, se a essência do homem está em todo homem, porque não falar sobre mim mesmo, já que tenho o que importa do homem, como qualquer homem, e, além disso, me conheço bem melhor do que os outros? Já que estou mais próximo da íntima verdade de todos ao perscrutar a mim mesmo, uma verdade que todos têm, por que não investigar a mim mesmo?

O problema da representação do eu está intimamente associado ao problema da mudança e do tempo:

O mundo não é mais que perene movimento. Nele todas as coisas se movem sem cessar [...] Não consigo fixar meu objeto [ou seja, eu mesmo]. Ele vai confuso e cam-baleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem; não a passagem de uma idade para outra ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia para dia, de minuto para minuto (MONTAIGNE, III, p. 27).

Montaigne declara que “não retrata o ser”, enquanto o projeto de Drummond é, ao contrário, retratar o ser, a “essência”. Há aparente contradição entre os dois projetos. A “condição humana” de que fala Montaigne é a essência que todo e qualquer homem tem em si mesmo; enquanto que a “humana contingência” de que fala Drummond é, ao contrário, precisamente,

o passageiro, o transitório, “a erosão, a política, a instabilidade econômica”, que precisa ser desbastada para se chegar à essência. Não a franja do tempo, mas o tempo, “semelhante a si mesmo”. Porém ao lermos com mais cuidado o projeto de Montaigne, percebemos que a contradição é apenas aparente. O registro da passagem do tempo, que, mal acabou de ser feito, já mudou, é o único que podemos fazer. Em cada um desses momentos está contido o ser, como “cada homem porta em si a forma integral da condição humana”. Formulado em termos dialéticos, teríamos algo como: em cada particular temos integralmente e sempre o universal.

E é precisamente nesses termos que Candido, em outro ensaio dedicado ao memorialismo de Drummond (com Pedro Nava e Murilo Mendes), e retomando o cerne do projeto da formação literária brasileira, vai abordar a universalidade do dado autobiográfico particular.

Foi sobretudo por obra do eixo universalizante dos clássicos (no caso brasileiro, li-gado de maneira decisiva à civilização urbana de Minas) que se desenvolveu em condições favoráveis a dialética da nossa literatura no correr do decisivo século XIX. Quando ela atingiu um ponto de maturidade, com Machado de Assis, foi possível ver que o local e o universal, o transitório e o permanente, o particular e o geral estavam devidamente tecidos na sua carne, como na de qualquer literatura que vale alguma coisa (CANDIDO, 1989, p. 52).

Portanto, o que interessa na autobiografia montaigneana, se podemos falar aqui de fato de autobiografia, como no memorialismo de Drummond, é o fato de que, no que Drummond denomina essência, o dado universal do homem, a maneira pela qual na particularidade de cada um, e desse homem em particular, Michel de Montaigne, ou Carlos Drummond de Andrade, está a verdade de um homem qualquer e de todo homem.

Vejamos agora a referência proustiana, que tanto importará para Drummond, adiante, no momento de realizar a sua busca do tempo perdido em Boitempo. A cena do gole de chá com pedaços de madalena aparece diversas vezes ao longo de Em busca do tempo perdido. Vejamos a primeira:

Havia muitos anos desde que, de Combray, tudo o que não fosse o drama de deitar não existia mais para mim, quando, num dia de inverno, ao voltar para casa, minha mãe, vendo que estava com frio, propôs-me fazer para mim, contra os meus hábitos, um pouco de chá. Eu recusei de início, e, não sei porquê, mudei de ideia. Ela mandou pedir um desses bolinhos achatados e redondos chamados de Pequenas Madalenas, que pareciam ter sido moldados pela concha sulcada de uma vieira. E logo, maqui-nalmente, abatido pelo dia sem graça e a perspectiva de um triste amanhã, levei aos

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meus lábios uma colherada de chá onde tinha deixado amolecer um pedaço de mada-lena. Mas no mesmo instante em que o gole misturado com os pedaços de madalena tocaram o meu palato, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Um prazer me invadiu, isolado, sem a noção de sua causa. Ele tornou imediatamente as vicissitudes da vida indiferentes, os desastres inofensivos, sua brevidade ilusória, da mesma maneira que opera o amor, ao me encher de uma essência preciosa: ou quem sabe essa essência não estava em mim, ela era eu. Eu tinha deixado de me sentir me-díocre, contingente, mortal (PROUST, tradução do texto on-line).

A degustação da madalena é apenas um desses momentos que se multiplicam em Em busca do tempo perdido: o badalar dos sinos, as árvores, o paralelepípedo, a toalha, as notas da sonata de Vinteuil, momentos em que o passado é resgatado do esquecimento, que reaparece, em cada caso com o sentimento de prazer e de desaparecimento da contingência da vida, preparando a revelação final da arte, em O tempo reencontrado. Ao final, o narrador de Em busca do tempo perdido descobre a insuficiência do modelo rememorativo, contido em todas essas experiência sensoriais. O passado encarnado nas lembranças ainda contém uma aderência material que deverá ser adiante depurada, na essência ideal do passado que apenas a escrita pode apresentar (DELEUZE, p. 21). A partir dessa distinção é possível fazer uma analogia entre os projetos de Drummond e de Proust. Em “Antigo”, o retorno ao passado na visão da cidade da infância, ao beber a mesma água do riacho da infância, requer um suporte material para ocorrer. Como na experiência sensorial da degustação da madalena, a “essência” — para usar o termo usado tanto por Drummond quanto por Proust — está colada à sensação. Em Boitempo, 25 anos depois, o passado voltará inteiro, mas como essência ideal, desmaterializada, pela força exclusiva da “via poética”, caminho já nomeado em “Antigo”.

A crônicA do pAssAdo

O ensaio “Viagem de Sabará”, escrito, segundo Fernando Py, em 1928, portanto bem anterior a “Antigo”, e publicado numa edição O Jornal, dedicada à Minas Gerais, com especial ênfase nas cidades históricas, editado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, contém talvez a primeira reflexão em prosa de Drummond sobre o motivo do passado.

Paremos um pouco nesse número de O jornal. Ele incluía, além de “Viagem de Sabará”, de Drummond, o poema “Romaria” também dele, o ensaio “De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos estudantes” (sobre Ouro Preto), de Manuel Bandeira, como vimos, “Aleijadinho.Posição histórica” de Mário de Andrade, “Itinerário de Mariana” de João Alphonsus, “Caminhos das Minas” de Paulo Prado, “Rio das Velhas, velho...” de Aníbal Machado, desenhos de Manuel Bandeira (o desenhista, não o poeta), além de “Um professor de intrepidez” do próprio Rodrigo, dentre outros. A edição de O Jornal não tem data, mas

tudo indica que seja de 24 de junho de 1929 (PY, p. 111; CASTAÑON, p. 265). É importante sublinhar a relevância desse projeto coletivo. Consolida-se aqui sob a forma de um projeto materialmente realizado o insight surgido na “viagem da descoberta do Brasil”, segundo a expressão de Mário de Andrade, de 1924, ou seja a viagem pelas cidades históricas de Minas feita pelos modernistas paulistanos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, junto com o poeta franco-suíco, Blaise Cendras, dentre outros, ocasião em que Drummond conhece Mário.

A viagem pelo interior de Minas funciona como uma espécie de complemento interno à Semana de Arte Moderna de 1922. Sobre ela Silviano Santiago escreve o seguinte:

Da varanda opulenta de café, os paulistas voltam os olhos para os veios exauridos de ouro. Onde há riqueza material falta riqueza artística. O ciclo do ouro ganha nova di-mensão histórica, ao emprestar peso e sentido às profecias sustentadas pelo otimismo ditado pela economia do café. Minas Gerais religiosa, interiorana e profunda, vira, na década de 1920, símbolo para os modernistas. Símbolo da nova produção artística implantada nos trópicos nos Setecentos, de que é exemplo Aleijadinho. Símbolo para a imitação vanguardista, que tem de ser redescoberta por um indispensável sentimen-to patriótico de independência, de que é exemplo Tiradentes, mártir e herói. A cafe-eira São Paulo, invadida por levas e levas de imigrantes europeus, sai proustianamente em busca do passado perdido (SANTIAGO, p. 17).

O ouro mineiro exaurido de nosso primeiro ciclo monocultural, e o barroco, a primeira forma de “produção artística implantada nos trópicos”, conferem espessura histórica para se entender o processo que deu no café paulista e no movimento modernista, de que são versões atualizadas. É essa a junção entre a “futura megalópole latino-americana” e a “região interiorana das Gerais” (idem, ibidem), entre o otimismo da economia do café, e a profundidade “negativa” dos ciclos de economia exportadora, sua verdade por vir, entre a riqueza material paulista do presente e a riqueza artística mineira do passado.

Em O jornal, o modernismo paulistano está representado por Mário e por Paulo Prado, a que se acrescenta Manuel Bandeira, poeta pernambucano radicado no Rio, também modernista, consolidando-se a colaboração com um grupo de intelectuais mineiros. Ao mesmo tempo, reúne-se ali pela primeira vez um núcleo de pessoas congregadas em torno de Rodrigo M.F. de Andrade, que formará adiante, em 1937, o Serviço do Patrimônio Histórico Nacional, o SPHAN, onde Drummond trabalhará por mais de 17 anos. Não é exagerado afirmar que nessa publicação podemos encontrar já o plano-piloto do SPHAN, nove anos antes de sua fundação. O jornal constitui assim o ponto intermediário entre a semana de arte moderna de

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1922 e a fundação do SPHAN, formulando-se pela primeira vez um projeto coletivo sobre o tema do patrimônio histórico e artístico brasileiro, que tem como modelo a patrimonialização dos monumentos das cidades históricas mineiras, o salvamento e a restauração da memória histórica brasileira. Nessa mesma linha de raciocínio, podemos concluir que o SPHAN, como um dos pontos-chave do projeto de Gustavo Capanema no ministério da Educação e Cultura do Estado Novo, só pode ser entendido como institucionalização do pensamento de 1922, transformado em programa de políticas públicas.

É inegável que na edição de O Jornal se prefigura dentre outras coisas a articulação que levará à presença política de mineiros no governo de Getúlio Vargas. Também não podemos deixar de perceber a relação entre a criação do SPHAN e o Estado Novo. A proximidade de datas entre a regulamentação do SPHAN (criado em 13 de janeiro de 1937 e regulamentado pelo Decreto-Lei nº 25 em dia 30 de novembro do mesmo ano) e a declaração do Estado Novo (10 de novembro de 1937), não nos deixa mentir. Claro está que não quero afirmar com isso que a política cultural de Gustavo Capanema deva ou possa ser reduzida às propostas políticas do Estado Novo, nem que haja uma agenda autoritária no projeto estadonovista de Capanema para a cultura. Essa junção entre a arte e o serviço público deve ser entendida no contexto do que Mário de Andrade denominou, ao rever o papel histórico da Semana de Arte Moderna, “reverificação” ou “atualização da inteligência brasileira”, ou seja, a missão de coletivização dessa inteligência, de desindividualização do artista brasileiro, fazendo-o intervir na vida (ANDRADE, 1974, p. 231), construindo afinal algo como a esfera pública da cultura brasileira.4 É a essa militância que Mário dedicará com afinco a sua vida. O estado Novo precisa ser entendido em toda a sua complexidade, e a junção entre o programa de Capanema para a cultura e a semana de arte moderna é inegável. Apenas alguns exemplos: o Anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, programa do SPHAN, será redigido por Mário de Andrade (ANDRADE, 1981, 39-54); Villa-Lobos, presença musical central da Semana de 1922, dirigirá o projeto do Ministério relativo à música; Manuel Bandeira, além é claro de Drummond, integrarão a equipe. Junto com Rodrigo M.F. de Andrade trabalhará ainda Lúcio Costa, diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos (1937-1972), e responsável pelas diretrizes e normas de tombamento arquitetônico brasileiro. Entre Mário de Andrade e Lúcio Costa se resume a duplicidade do programa de Capanema para a cultura, com um olho para a preservação do passado e outro para a modelização do futuro, um olho para o arquivo e o museu do passado, e outro para o projeto de modernização. O próprio prédio em que o SPHAN será sediado, a partir de 1945, o atual Palácio Gustavo Capanema, projetado por Lúcio Costa (em colaboração com Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Oscar Niemeyer e outros), sob a direta influência de Le Corbusier, e emblema do advento da arquitetura moderna

4 Cf. Jüngen Habermas. Mudança estrutural e Esfera Pública.

no Brasil, cristaliza essa duplicidade (WISNIK, p. 52, 125). O plano piloto de Brasília, a cargo do mesmo Lúcio Costa, estabelece o elo entre o programa estadonovista de modernização do estado, sua materialização em uma nova capital, que espelhasse urbanisticamente essa modernidade, e a preservação da memória arquitetônica brasileira, programa central do SPHAN.

Em “Viagem de Sabará”, Drummond realiza a sua primeira meditação em prosa sob o motivo do passado.“O passado dói fisicamente quando nos aproximamos dele com os olhos cheios de presente. As linhas, cores e volumes de outrora, tão bruscamente distintos dos de hoje, ofendem, machucam a nossa sensibilidade (DRUMMOND, 2003, p. 218). Ele deve ser lido em conjunto com o poema “Sabará”, escrito na mesma ocasião, e transcrevendo em forma de poema a mesma visita à cidade histórica mineira. O drama de Sabará é, antes de mais nada, um drama comparativo: muito próxima da capital Belo Horizonte, permanecendo, no entanto, como que de costas para o progresso urbano da capital, de um lado, e uma cidade barroca que não tem a densidade e a importância histórica e artística de outras cidades, como Ouro Preto, São João Del Rei ou Diamantina, de outro. Desvantagem que se reverte, segundo o cronista, em vantagem: o maior povoamento de fatos históricos dessas cidades talvez atrapalhe a percepção estética autêntica. Nelas “a arte é curta e a história é longa”. “Em Vila Rica, e nas outras cidades ‘extintas’ de Minas é impossível esquecer o elemento histórico, que se insinua traiçoeiramente em toda conversam leitura, mirada, até mesmo nos momentos de gozo estético mais desabalado (idem, p. 219). A cada canto de rua a memória dos atos de protagonistas da história como que nos assombram: “aqui Tiradentes fez isso, Marília fez aquilo”, etc. A menor importância histórica, a menor densidade de fatos e personagens históricos memoráveis nos permite, por outro lado, admirar “a graça retorcida deste ornato”, o “colorido franco e ingênuo desta figura que deve ser a Arca da Aliança”, o púlpito, o chafariz, a “lanterna que não alumia mais”, a platibanda (idem, ibidem). Portanto, não são os lugares históricos ou pseudo-históricos que nos emocionam em Sabará. E Drummond emenda:

A melhor emoção, a mais cheia de pudor e a mais profunda, é para certas formas de beleza que o homem e o tempo criaram e vão destruindo de parceria; certas igrejas que envelheceram caladas e orgulhosas no seu incomparável silêncio; certos becos; certas ruas tristes e tortas por onde ninguém passa, nem a saudade; este chafariz, com uma cruz e uma data, como um túmulo; a sucessão dos Passos; muros em ruína mes-mo, sem literatura, inteiramente acabados; tudo que no passado não é nem epopéia nem romance nem anedota; o que é arte (idem, p. 220).

Sublinhe-se nesse belo trecho o essencial: a arte, a experiência estética, precisamente o que não é nem história, nem epopéia, nem romance, nem anedota — ou seja, a petite histoire —

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está contida em “certas formas de beleza que o homem e o tempo criaram e vão destruindo de parceria”. Estranho conceito de arte: as formas de beleza destruídas e construídas pelo homem e pelo tempo. A emoção estética surge precisamente quando a ação do tempo como que aflora na superfície das coisas: o silêncio, a saudade, o vazio das ruas onde ninguém passa, um túmulo de um desconhecido, uma ruína. Drummond comenta o belo mas falso poema de Oswald de Andrade que fala da simplicidade de “um largo de igreja”. Na verdade, completa ele, não há nada mais complicado do que “um largo de igreja dos bons”. E onde se situa a complicação? Drummond dá o exemplo da Igreja do Carmo de Sabará, onde “na exiguidade de alguns metros de terra cabem todas as melancolias, todas as deliqüescências, tudo o que não chegou a realizar-se e também uma grande calma e resignação cristãs” (idem, ibidem). A frase contrasta a exiguidade do espaço com o tanto de coisas que cabem nele: as melancolias, as deliqüescências, o que poderia ter sido e não foi... No largo da igreja o imperceptível silêncio das vidas que ali viveram transpira e torna-se como que palpável, ali o invisível se torna visível.

Na sombra tênue os pensamentos amadurecem como frutas, sem que a gente sinta necessidade de exprimi-los; o contagioso silêncio; saber que tudo está vivo e calado ao redor de nós; ou antes, não saber coisa nenhuma, estender-se no chão e olhar a cruz entre duas torres, o relógio inútil, sem corda, não marcando nenhuma hora, e a outra igreja, no fundo, sem nome, que importa o nome (idem, ibidem).

A visita a Sabará mostra aqui os seus frutos: os pensamentos inexprimíveis, ou seja, os sentimentos, o silêncio, a vida de tudo o que apenas aparentemente está morto, a visão de uma cruz, o relógio que não marca mais a hora, pois marca o tempo. Com em “Antigo”, a cidade “extinta” mineira, faz transparecer o tempo, depurada as suas “franjas”. Essa a essência que se vislumbra em Sabará, esta a preservação da cidade que o ensaio realiza, preservando-a precisamente, por assim dizer, na vitalidade de sua morte. Essa a maneira drummondiana de ler o programa do futuro Serviço do Patrimônio Histórico Nacional.

Mais uma vez há consonância clara entre Drummond e Walter Benjamin. Em Origem do drama barroco alemão, lê-se a seguinte passagem sobre as ruínas:

A fisionomia alegórica da natureza-histórica, posta no palco pelo drama, só está ver-dadeiramente presente como ruína. Como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As ale-gorias são no reino dos pensamentos o quês ao as ruínas no reino das coisas. Borinski, menos exaustivo na investigação que exato na descrição dos fatos, está consciente disso. ‘A fachada partida, as colunas despedaçadas, têm a função de proclamar o mi-

lagre de que o edifício em si tenha sobrevivido às forças elementares da destruição, do raio, e do terremoto. Em sua artificialidade, essas ruínas aparecem como o último legado de uma Antiguidade que no solo moderno só pode ser vista. De fato, como um pitoresco monte de escombros’ (BENJAMIN, 1984, p. 199, 200).

Não seria excessivo, portanto, avançar uma leitura alegórica do procedimento drummondiano de releitura do passado das cidades mineiras “extintas”. Se o barroco europeu, lido por Benjamin, vê na ruína da Antiguidade a escrita do tempo da história, que sobrevive como ruína, a leitura das cidades históricas, por um moderno, perscruta a mesma alegoria como ruína do Barroco (a nossa “Antiguidade”, por assim dizer).

A transição entre a percepção do tempo nas velhas cidades, seja da infância, sejam históricas (ou às vezes ambas, como no caso de Itabira), e a percepção do tempo na grande cidade, lugar específico da crônica, se dá ainda em um ensaio de Passeios na ilha, “Segredos”. “Na grande cidade, onde passou a residir, o homem da província guarda consigo a recordação do amigo morto há muitos anos e de que ninguém nunca ouviu falar, nesse meio novo” (DRUMMOND, 2003, p. 237). O tema do ensaio, dito logo no primeiro período, a modo de subtítulo, é: “Amigos mortos”. O ensaísta observa um paradoxo: à medida que se evapora a lembrança do morto, ele pensa mais nele. Com o tempo, na verdade, ao evaporar a lembrança, ao ser desanexado das circunstâncias, em suma, ao descartar as oscilações do “objeto vivo”, o amigo morto se transforma em “imagem”, isto é, em “indestrutível fantasma”, “a verdadeira essência do amigo” (idem, p. 236). A imagem consiste na essência depurada do amigo. O ensaio fornece uma definição rigorosa da imagem, análoga ao sentido benjaminiano de alegoria:

Apenas, essa imagem [do amigo morto], apurada no tempo, ficou reduzida aos seus traços essenciais, que daí por diante fornecem ao homem a idealização do amigo, não só daquele que morreu como de um amigo perfeito, incorruptível, abstrato, suma das especulações filosóficas sobre a amizade (idem, p. 237).

A essencialização ou idealização do amigo morto corresponde na sua transformação em ideal, em “amigo perfeito”. Nomeiam-se as “especulações filosóficas sobre a amizade”, a tradição que começa com a Ética a Nicômaco de Aristóteles, passando pelo De amititia de Cícero, para terminar no ensaio “Da amizade” de Montaigne. Vem de Aristóteles a definição da “amizade perfeita” a teleia phylia, referida por Drummond. Para ele há três tipos de amizade: a que visa o prazer e o agradável, a que visa o útil ou o próprio bem (onde estaria incluída a relação familiar), e a que visa ao bem do outro. Só esta última, a “amizade perfeita” é pautada pela virtude. Ela se dá necessariamente entre dois homens, igualmente virtuosos. Neste caso, amamos o outro “em si mesmo”, e não por qualquer qualidade extrínseca ou acidental, que

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poderia reverter em nosso benefício. E, como os dois amigos são igualmente bons, não há perigo de desigualdade, e a amizade é absolutamente livre. As outras formas de amizade, ao contrário, são desiguais, sobretudo aquela que visa o interesse, e que compreende, além da relação familiar, todos os vínculos comerciais ou de serviço (ARISTÓTELES, p. 154-157).5

Vem de Montaigne a antológica associação entre o ideal de amizade e a eulogia do amigo morto. No centro do primeiro volume de seus ensaios, no capítulo XXIX, a modo de um monumento funerário dedicado a seu amigo morto, Etienne de La Boétie, Montaigne publica 29 sonetos de La Boétie, o autor do panfleto subversivo, Da servidão voluntária. O capítulo anterior (XVIII), “Da amizade” constitui a mais poderosa homenagem já escrita a um amigo morto. Ali Montaigne escreve sobre os quatro anos em que conviveu com o amigo morto (1559-1563).

Pois, na verdade, se eu comparar todo o restante de minha vida, embora com a graça de Deus a tenha passado agradavelmente, confortavelmente e — exceto pela perda de um tal amigo — isenta de aflição grave, plena de tranqüilidade de espírito, conten-tando-se com minhas vantagens naturais e originais, sem procurar outras; se comparo toda ela, afirmo, com os quatro anos em que me foi dado desfrutar da doce compa-nhia e convivência desse indivíduo, ela é apenas fumaça, é apenas uma noite escura e tediosa. [...] [E] os próprios prazeres que se me oferecem, em vez de consolar-me redobram a tristeza de sua perda. Participávamos a meias de tudo; parece-me que lhe estou roubando sua parte [...] Já estava tão afeito e habituado a ser um de dois em tudo que me parece não ser mais do que meio (MONTAIGNE, I, p. 288, 289).

Aristóteles relaciona a amizade à justiça. “A amizade parece também manter as cidades unidas, e parece que os legisladores se preocupam mais com ela do que com a justiça. [...] Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam de amizade, considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa (ARISTÓTELES, p. 153, 154). Drummond faz uma passagem análoga entre o luto pela perda do amigo e a convivência na grande cidade. O que é a convivência social, o vínculo entre todos os que vivem na grande cidade, senão o compartilhamento nunca revelado entre os diversos lutos individuais, convertidos em segredos de cada um, as imagens depuradas do amigo morto?

5 Cf. Genealogias da amizade de Francisco Ortega.

Já então ele não cuidará de fazer os outros participarem do seu segredo. Admitirá que segredos iguais se cultivam na grande cidade e, mesmo, que uma cidade, exclu-são feita de prédios, veículos, objetos e outros símbolos imediatos, não é mais que a conjugação de inúmeros segredos dessa ordem, idênticos e incomunicáveis entre si, e pressentidos somente por poesia ou amor, que é poesia sem necessidade de verso (idem, ibidem).

A fixação do gênero

Drummond começa a escrever no Correio da manhã, em 9 de janeiro de 1954, uma coluna intitulada precisamente Imagens (Imagens da cidade, Imagens no cartório, Imagens do Brasil, Imagens maduras, econômicas, do tempo, etc.). Neste jornal ele permanecerá até 1969, escrevendo três crônicas por semana. É sem dúvida nesse período que se fixa a sua escrita propriamente cronística. A transformação é sinalizada na superfície pelo local da publicação no jornal. Os “ensaios” de Confissões de Minas e Passeios na ilha foram publicados em Suplementos literários de jornais e/ou revistas, enquanto que no Correio da Manhã o cronista passa a publicar no caderno cultural do jornal (?), ou segundo caderno (o caderno B, no caso do Jornal do Brasil). Ao desenvolver uma atividade de escrita quase diária o ofício do cronista se aproxima do jornalismo tout court, mas retrabalhado à sua maneira. As crônicas coligidas por Drummond em volumes ao longo dos anos não nos dão uma ideia exata do que eram elas, impressas dia sim dia não nas páginas do jornal. Ao antologizar suas crônicas em geral ele filtra algo do sabor jornalístico, do comentário efêmero do noticiário jornalístico, que as caracteriza. É precisamente no momento em que se fixa a forma-crônica drummondiana que surge paralelamente algo como um Drummond cívico, relacionado ao “poeta público”, cuja figura Carpeaux vira aparecer no Brasil com Drummond.6 É ele o cidadão morador da capital do Brasil, interessado nos acontecimentos da cidade, que utiliza a prerrogativa da escrita e do espaço de visibilidade que lhe é conferido para intervir nos negócios da urbe, falando do lugar republicano de qualquer um, e reivindicando os direitos de um qualquer — que se materializará nos anos seguintes na figura de João Brandão, espécie de figura genérica, vazia do cidadão.

As duas primeiras crônicas publicadas no Correio da manhã, “A pipa”, de 9 de janeiro de 1954, e “Relações de água”, de 10 de janeiro de 1954, giram em torno do problema sistêmico da falta de água na cidade do Rio de Janeiro em 1954, auge da crise de distribuição de água na capital, que só será sanada com a construção da estação de tratamento de água do Guandu

6 Carpeaux: “[N]asceu o primeiro grande ‘poeta público’ do Brasil e do ‘vasto mundo’...” (CARPEAUX, 1999, p. 438).

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por Carlos Lacerda quando governador do estado da Guanabara (1960-1965). A mesma falta de água naquele ano vai inspirar a marchinha de carnaval de 1954 de Vitor Simon e Fernando Martins:

Rio de Janeiro,

cidade que nos seduz,

de dia falta água,

de noite falta luz.

A pipa do título é a pipa d’água, solicitada pelos moradores do bairro de Copacabana, onde mora o cronista, para suprir a falta de água das torneiras de sua casa. O registro é irônico — a pipa é vista com humor como algo positivo, já que facilita a interação entre as pessoas, “torna[ndo]mais concreto o vínculo social, aproximando os vizinhos, e convidando-os à confraternização”. A pipa em suma “revigora a condição humana”, é um bem, e não um remédio precário para uma mazela social. O dado real da quase impossibilidade de se conseguir uma pipa a fim de desfrutar do luxo absoluto de se tomar um banho em que interferem inclusive as proverbiais “carteiradas” (ainda não denominadas como tal na época) de notáveis, é descrita hiperbolicamente como um “sonho, uma alegoria motorizada, e a suprema aspiração do vivente”. O termo “alegoria” não é inocente, e nos permitirá fazer a junção entre o projeto cronístico e a poesia drummondiana.

O cronista constrói de maneira cáustica uma “sociologia da pipa”, ou seja, a ciência que estudaria a forma pela qual os pobres cariocas, conformados à sua sorte, se relacionam estoicamente sem pronunciar um único queixume, diante do fato bruto da falta d’água cotidiana. A “A pipa” começa com a observação de que o morador da rua Joaquim Nabuco, onde mora Drummond, é “um feliz; há anos que não se queixa da falta d’água”. Felicidade irônica, para não dizer o contrário; eles não se queixam porque têm sua água fornecida pela pipa, o abastecimento regular de água nas torneiras e chuveiros das casas e apartamentos nem entrando no rol da realidade possível. Os moradores resignados à sua esplêndida “felicidade” se solidarizam uns com os outros, possibilitando uma verdadeira “sociologia da água”, que o cronista farsicamente se propõe a elaborar. A pipa é em suma uma virtude social. A filiação com a mordacidade de Machado de Assis é evidente. O cidadão não se revolta e não reclama pelo restabelecimento do fornecimento da água em sua casa. Estabelecido que o direito à água é um direito constitucional assegurado a todos pela carta magna, a água fazendo parte da res communis, da coisa comum, o cronista finge que o objeto do direito não é o restabelecimento do fornecimento de água corrente. Esse direito, por certo, inacessível e exagerado não é nem mencionado, transferindo-se a discussão constitucional do “todos são iguais”, etc., à distribuição de água por meio da pipa.

O cronista mora à rua Joaquim Nabuco, no posto 6 do bairro de Copacabana. Mas a sua particularidade é a do morador qualquer, de todo o morador da cidade do Rio de Janeiro. Ele toma a sua rua “entre muitas”, mas o que visa é precisamente o “comum” — o que é inscrito na própria topologia da rua-limite, situada entre Copacabana e Ipanema, o que faz dela uma “rua-padrão”. Os moradores nomeados ao final de “Relações de água” são também “pessoas-símbolo”, representantes ou stand-in de todos os cidadãos da rua, de todas as ruas de Copacabana, de todas as ruas do Rio de Janeiro, todas assolados pelo mesmo mal, a falta d’água. O escopo da reivindicação é reduzido com finalidade corrosiva: “forma-se o comitê da pipa” — fraseado próprio do Machado de Assis de “O alienista”, por exemplo — não para pleitear o direito à água corrente, que está fora de questão, junto às grandes instâncias políticas (a ONU, o Congresso, o presidente Getúlio Vargas, o prefeito, etc.), mas junto ao manobreiro da pipa, o Delfim. Só ele e apenas ele pode efetuar a desejada distribuição “equitativa e regular, imparcial, metódica e benfeitora”... da água da pipa.

O segredo do humor da crônica é a limitação kafkiana dos fins reivindicatórios, concentrando-se toda a verve na democrática e equânime distribuição da água, mesmo esta, praticamente improvável, mas pelo menos “pleiteável”, ou possível. A pipa, “o sonho, a alegoria motorizada” é uma figura da água. É alegoria no sentido forte de allegoria (do grego állos,é,on ‘outro, outra’ + rad. do v. gr. agoreúó ‘falar numa assembléia, falar em público, discorrer oralmente em público’). Alegoria éuma “outra fala”. A pipa é uma alegoria da água, ou melhor de sua ausência, prosopopéia da água possível, sempre em falta, símbolo da falta de cidadania constitutiva da sociedade civil brasileira. É dessa forma que Drummond faz a passagem entre a imagem como luto pela morte dos amigos, ao mesmo tempo compartilhado e não compartilhado, enquanto segredo, como vimos em “Segredos”, o “viver juntos” da sociedade compreendido como “conjugação de inúmeros segredos”, e a cristalização identicamente essencializada da razão mesma da sociabilidade como proposta de vínculo social, na alegoria da falta d’água. Ao invés da morte temos então, em veia sarcástica, e não melancólica, a falta d’água. Aproximamo-nos aqui das leituras de José Guilherme Merquior, Marlene de Castro Correia e Vagner Camilo da poética drummondiana a partir da alegoria benjaminiana. Lembremo-nos brevemente do percurso descrito no item “Um eu todo retorcido”, um dos Mundos de Drummond, aqui neste Projeto-memória. Trata-se da leitura da “prosa apologal” de “O enigma”, poema em prosa de Claro enigma, em que desemboca a cena da pedra e do impasse ontológico que teve em “No meio do caminho” a sua pedra fundamental, e em “A máquina do mundo”, o seu tratamento metafísico. Vagner Camilo vê neste poema uma tripla alegoria: 1) da imobilidade do poeta após a decepção com o seu projeto de participação política; 2) da dramatização histórico-metafísica do gesto reflexivo que a coletânea como um todo contém; 3) da situação do poeta e da poesia no mundo contemporâneo. Citemos a passagem de Vagner Camilo:

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Enquanto ‘metáfora encenada’ [a expressão é de Benjamin, de A origem do dra-ma barroco alemão], a alegoria das pedras parece dramatizar a situação (descrita pelo livro de 48) do poeta participante frustrado em seu empenho solidário, que se vê por fim relegado à condição de inação, à reflexão melancólica sobre seu intento malogrado e à falta de perspectivas (configurada pelo enigma) quanto a um outro caminho de atuação efetiva a seguir.” [...] Situação que, no caso de Drummond, além da frustração de seu projeto participante [da década de 1940] (que era uma forma de conferir ao literário uma atuação social mais efetiva), conta ainda com o agravante da especialização do trabalho intelectual no período que [...] levaria a literatura a retro-ceder de sua posição privilegiada como meio de conhecimento da realidade do país e a redefinir a especificidade de seu ofício (CAMILO, p. 145, 146)

Ora, entre o livro de 1948 (ano da publicação de Claro enigma) e o início da produção cronística do Correio da manhã (1954), o princípio aporético em que se encena a imobilidade da decepção com o projeto de literatura engajada parece ter-se deslocado. O princípio-corrosão de que fala Costa Lima, tão importante para a construção trágica da alegoria da inação política é substituído, com a participação do veículo de massa que é o jornal, pelo humor, igualmente corrosivo, em que a alegoria, no caso da pipa, a “alegoria motorizada”, corresponde a uma nova forma de engajamento, e de ação pública, é certo que bastante distinta da de A rosa do povo. A poesia sob a forma da prosa cronística passa agora a estar às voltas com o cotidiano urbano, e não mais com a utopia política. A forma degradada da utopia aparece como farsa: “a pipa é uma instituição moderna, disposta sobre pneus, e que dá ou promete água. É sobretudo um sonho, uma alegoria motorizada, e a suprema aspiração do vivente”. Sonho cáustico, mas, ainda assim, programa de ação, sem descurar da consideração dos motivos da sobrevivência do escritor profissional na sociedade de seu tempo. É importante, no entanto, sublinhar que nessa translação, digamos, “liberal” e reformista do programa de “empenho solidário”, passando a se preocupar com a pequena política e abandonando a luta revolucionária da grande política, a técnica permanece sempre a mesma da cristalização alegórica: a construção da imagem, agora de imagens do Rio de Janeiro, título de sua coluna no Correio da manhã.

Em uma resenha de 1948 de Mafuá do malungo (Versos de circunstância) de Manuel Bandeira, coligido em Passeios na ilha, Drummond quem sabe localiza o mecanismo que se fixara em sua cronística do Correio da manhã, ao explicar, a propósito da intervenção do poeta na vida cotidiana, uma espécie de poder diabólico ou angélico que a poesia e ou poeta teriam.

O novo livro de Bandeira é mais uma demonstração de certo poder — diabólico? Angélico? — que o poeta leva consigo, para utilizá-lo nas situações da vida cotidiana em que menos poderíamos contar com a irrupção desse poder. Assim, vejamos por

exemplo o caso do indivíduo [trata-se de Bandeira, Drummond narra o episódio contido em “Poema-carta” de Bandeira] que mora num edifício de apartamentos, com um pátio interno que a Prefeitura ou o construtor se descurou de calçar. Mora-dores do edifício começam a despejar nesse pátio o lixo doméstico. Vem a chuva, e detritos acumulados se transformam em lama pútrida. Que fazer, diante da imundí-cie? A reclamação aos poderes públicos é, em geral, de efeito duvidoso. Leva-se uma nota ao jornal,e nada. Resta o consolo de dizer palavrões sem endereço, mas o lixo continua empestando o ar, e os olhos sofrem com aquela visão deplorável. Aí cessam os poderes de imaginação e invenção do indivíduo comum, para surgir o poder do poeta [...] que faz, de uma sujeira, um poema...

O “poder do poeta”, a que o individuo comum não tem acesso, consiste em escrever um poema endereçado ao Prefeito do Rio de Janeiro, Hildebrando de Góis:

Excelentíssimo Prefeito

Senhor Hildebrando de Góis,

Permiti que, rendido o preito

A que fazeis jus por quem sois... (BANDEIRA, 1967, p. 466)

O efeito do poema faz-se logo sentir, e isso é essencial: trata-se de uma poesia “de resultados”. Explica Drummond: “E se S. Ex.ª não ouve a reclamação do poeta, o sucessor de S. Ex.ª acabará por ouvi-la. Limpa-se o pátio, esse benefício público se fica devendo não a um vereador, a um jornalista, a um fiscal da municipalidade, mas ao poeta modernista” (DRUMMOND, 2003, p. 287). Drummond discute a categoria de “versos de circunstância”, colocando o Bandeira de Mafuá do malungo na linhagem dos versos de circunstância de Verlaine, Mallarmé e Baudelaire. Para em seguida questioná-la:

Versos de circunstância, intitula-os o poeta. Mas que circunstância, neste particular de versos? Se se incorpora à poesia, deixa de ser circunstância. Arte de transfigurar as circunstâncias, poderíamos rotular a poesia. A circunstância é sempre poetizável, e isso nos foi mostrado até o cansaço pelos grandes poetas de todos os tempos, sempre que um preconceito discriminatório não lhes travou o surto lírico (idem, ibidem).

A incorporação da circunstância, qualquer circunstância, à poesia faz com que a circunstância se transforme em poesia. Toda a poesia, parece-nos sugerir Drummond, é de circunstância, termo que passa então a nomear a realidade a ser transfigurada pela poesia. Drummond fará versos de circunstância em sua Viola de bolso. Porém, sua prosa cronística tem muito dessa

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“reclamação aos poderes públicos”, visando ao “benefício público”, à maneira de um vereador, jornalista ou fiscal da municipalidade, mas excedendo-os todos. O poder da poesia analisado aqui por Drummond é o mesmo de sua crônica, uma intervenção da poesia junto aos poderes constituídos, a serviço da poesia, conforme o exemplo do poema de Bandeira.

Um tema percorre a primeira coletânea de crônicas dessa época, Fala, amendoeira, de 1957, cobrindo os seus três primeiros anos de cronista no Correio da manhã: a condição de sobrevivência da coisa poética no espaço conflitante da urbe, sua sobrevida como coisa pública. Qual é o lugar possível do poema nessa nova paisagem que veio para ficar, a conturbada vida coletiva, exposta a toda sorte de reivindicações particulares ou públicas? O cronista coleciona então alegorias da poesia, como sobrevivência ou sobrevida da natureza submetida à destruição humana ou ao trabalho humano que corre o risco de ser privatizado ou tornado “público” de forma indiscriminada e destrutiva — ambas as opções correspondendo a riscos terminais que o cronista registra melancolicamente, protegendo-se pelo olhar da poesia, que é mantida no espaço circulante do jornal, convertido em um museu aberto, oxigenado, onde sobrevive a poesia como planta de estufa.

Na crônica que introduz o volume, não publicada em jornal, explica-se o título, de Fala, amendoeira, que sintetiza duas crônicas publicadas sobre amendoeiras (e não incluídas na coletânea).7 O cronista colhe na calçada pública o espécime raro de uma amendoeira, entrevisto de sua janela, que escolhera “outonear”, ou seja, amarelecer, avermelhar, e “amarronzar” suas folhas, variando as estações, coisa que nenhuma das outras amendoeiras da rua fazia. O cronista enceta um diálogo com o espécime único — fala, amendoeira. Questionada sobre a razão da diferença explica-lhe que era “21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono”, sugerindo o inesperado que é a sintonia natural entre o formalismo do calendário (as “folhinhas”) e suas folhas (DRUMMOND, 2003, p. 333). Essa adequação excepcional à natureza das estações, contrariando a norma estabelecida pelas outras amendoeiras de permanecerem sempre verdes, impermeáveis ao que diz as “folhinhas”, é um testemunho do tempo — o mesmo ofício do cronista que o nomeara na primeira linha de sua crônica — “esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo”. É essa afinidade de ofício que leva a árvore a explicar a sua condição atual, o desenho possível da sobrevivência tanto do humano quando da natureza — afinal ambas são a mesma coisa — em tempos difíceis.

7 As crônicas: “Conversa de amendoeira” (19/01/1954); “Árvore faladeira” (16/09/1955). E após a publicação de Fala, amendoeira, “As amendoeiras” (30/03/1958); “Na calçada” (13/05/1958);”Escolha de ministros” (20/05/1958). É sob a sombra de uma amendoeira, que o cronista descreve a experiência cívica da eleição, em companhia da boa comunidade de vizinhos, na seção instalada no pátio do Colégio S. Paulo, entre eleitores humanizados, agradavelmente exercendo a virtude cidadã. “Se houve eleição simples, com a r de conversa na calçada entre vizinhos, foi essa no fim da Rua Joaquim Nabuco, a dois passos do mar-oceano. Poucos paletós se faziam notar, e quase todos revestiam camisas-esporte” (“Eleição no bairro”, 05/10/1958).

“Anda tudo desorganizado”, explica ela. Constatação comprovada pelo fato de que ela própria não conseguia simplesmente “outonear”, mas suas folhas traziam confusamente a marca de todas as estações. Ao que o cronista responde que trata-se da natureza humana ou “natural”: sermos múltiplos. A amendoeira contesta alegando a diferença entre homens e natureza exemplificada pelo próprio interlocutor, que é “bem outonal”. A árvore nomeia o tempo do cronista e da crônica: “teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação de alma que de natureza” (idem, ibidem). A amendoeira fala ao mesmo tempo da idade do cronista que nesse momento tinha 55 anos, atingindo, como se diz o “outono de sua vida”, e do ofício da crônica: o de colher frutos poéticos no momento já não claro mas ainda não completamente, fazendo o registro preciso da sobrevivência do poético em “tempos sombrios”. A estação do outono é diferenciada: é uma “estação da alma” — concebida, portanto, como essência humana. A última palavra é da árvore: “sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal” (DRUMMOND, idem, p. 334). A amendoeira que assinala a variação das estações, mas que é antes de mais nada a amendoeira outonal, é um símbolo da poesia e do poeta, que registra as variações do humano. É ela que aconselha por fim ao cronista-poeta: “outoniza-te com dignidade, meu filho”.

É o tema de “Buganvílias” (DRUMMOND, idem, p.341-343). Em meio à destruição generalizada da natureza que caracteriza o espaço urbano, fincar o pé contra tudo e contra todos e não cortar o pé de buganvília, como faz a vizinha, é um símbolo da resistência da poesia: “...e eu senti que os imensos pés de buganvílias me agradeciam e pagavam dessa maneira a decisão de poupar-lhe a vida até a consumação dos séculos — ou da nossa velha casa, que eles vão destruindo poeticamente” (idem, p. 343). Observe-se a utilização cáustica do advérbio “poeticamente”, para designar a destruição mesma da poesia, cuja preservação e sobrevivência nas condições de precariedade urbana que são as nossas é simbolizada pela buganvília. Na coletânea Cadeira de balanço, novo símbolo da poesia e da humanidade em seu confronto cotidiano com a desumanização e a destruição: “Cadeira de balanço é móvel da tradição brasileira que não fica mal em apartamento moderno. Favorece o repouso e estimula a contemplação serena da vida, sem abolir o prazer do movimento. Quem nela se instale poderá ler estas páginas mais a seu cômodo” (DRUMMOND, 2003, p. 472). A crônica transforma-se em ponto de observação do mundo. Ela se localiza no apartamento moderno, mas tem a função de imprimir um outro ritmo, mais sereno, ao cotidiano citadino, que corre o risco de passar desapercebido. Presença provinciana no centro da cidade, ligeiramente antiquada, em defasagem com relação ao fluxo rápido das coisas, a crônica nos confere o tempo do olhar. Algumas crônicas publicadas no volume apareceram em outras coletâneas: o autor as compara a objetos emprestados a vizinhos, agora trazidos de volta ao próprio apartamento. As crônicas são móveis que manifestam a relação cordial da vizinhança, num mundo comunitário em que os empréstimos amicais são a regra da convivência.

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É o motivo da destruição da convivência social que perpassa as duas crônicas contidas em Cadeira de balanço em que narra a venda e demolição de sua casa na rua Joaquim Nabuco (crônicas, “Vende a casa” [idem, p. 488-9) e “Assiste à demolição” [idem, p. 490-1]). Aqui o motivo do salvamento, isto é, da utilização do quadrado da crônica como espaço de preservação do que está prestes a ser destruído, e que permanecerá preservado, ou “tombado”, no espaço mesmo do quadrado de jornal, se junta ao gesto de intervenção pública, na denúncia da desumanização em marcha no programa de transformação imobiliária da cidade do Rio de Janeiro. O encontro no espaço mais público de todos, a calçada, na crônica homônima (“Na calçada”, idem, p. 499-501) com um escritor, contém o registro da prática da escrita desse amigo que permanece não nomeado pela crônica. Os exemplos são muitos.

poesiA-crônicA

A apresentação da sua primeira coletânea de crônicas Confissões de Minas, escrita em 1943, portanto contemporânea de alguns poemas de Rosa do povo, contém um pedido de desculpas disfarçado (e denegado) pelo conteúdo interiorano e interiorizado do livro, e um programa de reforma da prosa, a partir da noção central de tempo. “Não há muitos prosadores, entre nós, que tenham consciência do tempo, e saibam transformá-lo em matéria literária. Frequentemente a literatura se faz à margem do tempo e contra ele”. O sentido de tempo é dado pelas recorrentes inscrições de fatos da história mundial que estão ocorrendo ou ocorreram no momento em que se escreve a apresentação: “Escrevo estas linhas em agosto de 1943, depois da batalha de Stalingrado e da queda de Mussolini. [...] Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato (derrotado) a presidente da república e termina em 1943, com o mundo submetido a um processo de transformação pelo fogo. Os que tiveram a sorte de viver em tal período serão bem mesquinhos se se embriagarem com a vaidade do espectador de um drama exemplar ou com a do passageiro do transatlântico de luxo”. Estar à altura da vida, testemunhar sobre o tempo que se vive, eis o programa de reforma da prosa futura: “Rapazes, se querem que a literatura tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que, como todas as utopias, avança inexoravelmente), reformem o conceito de literatura. Já não é possível viver no clima das obras primas fulgurantes e...podres, e legar ao futuro apenas esse saldo dos séculos. Reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem o espetáculo novo de que estão participando.”O antídoto é resolutamente afirmativo e parte de uma percepção da singularidade única do acontecimento da história, do momento que se vive: “Se lhes disserem que nada disso é novo e que já houve guerras, e depois armistícios e depois outras guerras, etc., etc., não levem a sério essa falsa experiência histórica, que impede qualquer melhoria da história.” Eis dito, em todas as letras, o alvo da prosa reformada: melhorar o mundo e a história. E como se faz isso? Em primeiro lugar, merecendo o acontecimento, aprendendo um novo olhar sobre ele que precisa ainda ser inventado.

Natural que esta prosa tenha que se haver, para início de conversa, com a definição de poesia: “Mas a verdade é que se a poesia é a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e mais importantes da existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes, e há uma necessidade humana de que não somente se faça boa prosa como também de que nela se incorpore o tempo, e com isto se salve esse último.” Drummond retomará anos depois essa mesma distinção na entrevista dada ao Estadão, citada acima. Recusando-se a estabelecer qualquer hierarquia entre as duas escritas, ele faz em primeiro lugar uma distinção de frequência: a poesia é a linguagem de certos instantes enquanto a prosa é de todos os instantes. Mas a diferença de escala corresponde a um âmbito também diferente. Na prosa e não na poesia joga-se algo da “necessidade humana”, e o que se joga é nada mais nada menos do que o salvamento da experiência humana e seu tempo. Mais denso e importante, sem dúvida, o poema, embora tenha a mesma matéria, não atinge o mesmo alvo: mais seletivo, ele tem um acesso limitado, enquanto a prosa tem a vocação de salvar a totalidade da experiência humana, e não apenas seus momentos essenciais.

A apresentação é contemporânea de poemas como “Carta a Stalingrado”, de A Rosa do povo (1945) e de fato não estamos aqui muito longe dos versos:

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.

Os telegramas de Moscou repetem Homero.

Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo

que nós, na escuridão, ignorávamos.

Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,

na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,

no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,

na tua fria vontade de resistir.

Justifica-se assim a prosificação da poesia, a incorporação do tempo da prosa do mundo na poesia, como, na Apresentação de Confissão de Minas, se defendera a temporalização da prosa. Os movimentos são conexos. A reforma da literatura solicitará o engajamento social do autor em projetos diversos: a editoria de A tribuna popular, a fundação da ABDE (Associação Brasileira de Escritores), ambas em 1945, e suas respectivas e profundas decepções subsequentes. Anos depois, ao iniciar a sua carreira definitiva no periodismo, em 1954, no Correio da manhã, o movimento parece ser duplo. Em primeiro lugar, como vimos: a intervenção pontual e direta nos fatos do cotidiano, como retomada do princípio aporético de sua poesia em novas bases. Mas também o inverso: ao invés de prosificar a poesia, trata-se

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de reintroduzir na prosa, em sua versão jornalística, a poesia, como sobrevivência e imagem rarefeita de um mundo, ligeiramente defasado com relação ao nosso, em que ela ainda pudesse existir. É o tom que acabará prevalecendo na escrita cronística, não a prosificação da poesia, mas a poetização da prosa, com a instalação de um movimento híbrido, composto, a meio caminho entre a narração cotidiana do cotidiano e o vislumbre da exceção poética.

Ao coligir os versos publicados ao longo dos anos em jornal, Drummond se dá conta de que inventara um novo gênero, situado em um ponto arquimediano, eqüidistante, entre o verso e a prosa, e que para classificá-lo precisava de um neologismo, versiprosa: “crônicas que transferem para o verso comentários e divagações da prosa. Não me animo a chamá-las de poesia. Prosa, a rigor, deixaram de ser.” O poeminha bem-humorado “Saudação” em que conclama suas crônicas a saudar aquele que as preservara do tempo efêmero do jornal, o amigo Plínio Doyle, contém a descrição da cena da sua transmutação — poética — em objeto literário:

sAudAção

ou

de como o autor, ao folhear, sobre a mesa do editor

José Olympio, num álbum de recortes, muito se sur-

-preendeu ao encontrar aí seus miúdos escritos, pro-

-tegidos da consunção do tempo, e como  que benefi-

-ciados por via dos afetuosos cuidados

de Plínio Doyle.

Ó canhestras e vagas croniquetas,

quem vos salvou da poeira das gazetas?

Cada manhã, da minha maquininha

íeis saindo, em voo de andorinha,

e errando ao sol e à chuva, meio às tontas,

quem vos punha reparo, em fim de contas?

Talvez algum caixeiro de quitanda

ou vendedor de velas para Umbanda,

a dissolver meu drummondiano orgulho,

vos convertia em material de embrulho.

Senão, dançarináveis pela praia

ou pela rua, nesta sorte ingaia

de papel atirado aos quatro ventos,

de que a chuva não lê os argumentos,

e o gari vai tangendo com a vassoura

como quem varre casca de cenoura,

Esquecidas, pisadas... Quando muito

(a rima é de Camões) o doce fruito

de meu labor ia dormir no arquivo

do jornal, semelhante a um morto-vivo.

Mas, surpresa: que vejo? Estais vestidas

de roupa de domingo, e tão garridas,

neste álbum passeias a graça nova

que não vos transmiti, graça que prova

não a força do autor (é bem mofina)

mas a inventiva, generosa, fina

simpatia de alguém. Saudai-o, crônicas:

É Plínio Doyle. Improvisai sinfônicas

orquestrações e gratos dós de peito

em honra desse mágico perfeito (DRUMMOND, 2006, p. 386-369).

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Nos poemas de Versiprosa, que apareceram originalmente no espaço de suas crônicas de jornal, cristaliza-se o gesto de musicalização da notícia, ou de poetização da prosa. Veja-se este exemplo:

Balanço de agosto

Lá se foi agosto, composto

de mágoa e mel (é o ano inteiro!).

Demitiu-se, por mal dos índios,

Darcy Ribeiro

Entre quatro augustas paredes,

Tônia empolgando, no Dulcina.

Anedota: quase vai presa

a ópera China.

O dólar baixa dois milímetros,

que bom! Que mau, sonha o Senado

um projeto que impeça ao uísque

ser importado.

Pistola a gás lacrimogâneo

virou lei contra jornalista.

Acham pouco? O líder promete

algo nazista.

Mas chega Azul Profundo: o verso

De Henriqueta Lisboa, mágico,

Cerra-se em concha, e nos redime

Do instante trágico.

Regina Simone (São Paulo)

e seu Vôo Enterrado: livro

onde um pássaro subterrâneo

dorme, cativo.

Perdão se esqueço outros autores

agostinianos, com temor

de que não caibam neste metro

ou no louvor.

Vejo Isabel Monteiro,ansiosa

--pende uma lágrima dos cílios —

a procurar em vão e sempre

os seus dois filhos.

Onde estás, justiça dos homens

ou das pedras: não te comove

e a mãe errante, ludibriada?

É noite, e chove

sobre sentenças descumpridas

e sobre afetos sem destino.

Que alguém descubra essa garota

e esse menino.

Do tribunal fogem os gatos

à ordem severa do juiz.

Quando há ratos por toda parte...

Que é que me diz?

Vai abaixo o Hotel Avenida,

a Brasileira vira banco.

Esfarinha-se o Rio de ontem,

num solavanco.

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E nós, antigos moradores,

aguardando demolição,

onde esconder nossas memórias?

No ar ou no chão.

Mas agosto se foi, sol-posto,

encanto grave... O que relembro

zumbe cá dentro, inseto de ouro.

Viva setembro.

2-9-1956

Aqui se transforma em metro (“com temor/de que não caibam neste metro”) desde a demissão de Darcy Ribeiro da Pós-Graduação em Antropologia da Universidade do Brasil, à peça de Tônia Carrero que levava no Dulcina, à baixa do dólar, à notícia de lançamentos de livros, ao sumiço de duas crianças e a busca desesperada por eles de uma mãe, fait-divers que mobilizou a imprensa da época, às transformações na cidade, à destruição ou descaracterização de seus prédios importantes, resultando no “esfarinhamento do Rio”, que retoma o motivo da demolição, no caso também de sua própria casa, com a pergunta que ressoa ao final: “onde esconder nossas memórias?”, e repete o programa de salvamento da história, que acompanhamos em sua trajetória tanto de poeta quanto de cronista.

Resumindo esquematicamente essa intercessão entre poesia e prosa teríamos: no momento vanguardista que culmina com Rosa do povo (1945), de implosão das compartimentalizações das fronteiras constitutivas da sociedade burguesa, o museu e a rua, a arte e a mercadoria, a cultura alta e a cultura baixa, a norma culta e o coloquialismo, trata-se para Drummond de implodir também a seara da poesia, invadindo-a de prosa, produzindo uma poesia prosificada, em versos brancos e sem rimas, transformando a manchete de jornal em epopéia contemporânea.8 No momento posterior, que se configurará, na poesia, no retorno à sedimentação poética de Claro enigma (1951), desenha-se ao mesmo tempo, na escrita cronística, um movimento inverso e simétrico ao anterior, de implosão mais uma vez dos limites entre prosa e poesia, mas no sentido da poetização da prosa, que se cristalizará

8 Cf. Teoria da vanguarda de Peter Bürger.

na construção de imagens da sobrevivência da poesia no mundo prosaico que é o do jornal cotidiano. Ou seja: a uma prosificação do poema, na poesia, se segue uma poetização da prosa, na crônica, ao final confinada ao lugar limitado do entretenimento da arte, quadrado intervalar utópico, que reinscreve a divisão burguesa que o vanguardismo procurara implodir. O resultado mais acabado dessa intercessão são os poemas de Versiprosa: ao mesmo tempo prosificação do poema, e poetização da prosa.

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REFERÊNCIAS

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