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FUNDAO EDSON QUEIROZUNIVERSIDADE DE FORTALEZA UNIFORCENTRO DE CINCIAS JURDICAS CCJPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO CONSTITUCIONALDissertao de Mestrado em Direito Constitucional
O DIREITO FUNDAMENTAL PARTICIPAO POPULAR E A CONSOLIDAO DA DEMOCRACIA DELIBERATIVA NA
ESFERA PBLICA MUNICIPAL
ROBERTA LAENA COSTA JUC
Matrcula n 0324234/0
FortalezaJulho - 2007
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ROBERTA LAENA COSTA JUC
O DIREITO FUNDAMENTAL PARTICIPAO POPULAR E A CONSOLIDAO DA DEMOCRACIA DELIBERATIVA NA
ESFERA PBLICA MUNICIPAL
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito Constitucional como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre em Direito Constitucional, sob a orientao da Professora Doutora Ana Maria Dvila Lopes.
Fortaleza Cear2007
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A todos aqueles que, conscientes do dever de cidadania, contribuem para a efetivao dos direitos fundamentais e para o fortalecimento do regime democrtico por meio da participao popular.
A Breno Gualberto Lopes.
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AGRADECIMENTOS
professora orientadora Ana Maria DAvila Lopes, pelos ensinamentos de vida
e de Direito, mas, sobretudo, pela compreenso.
Aos membros da Banca Examinadora, Professor Doutor Francisco Luciano
Lima Rodrigues e Professor Doutor Newton Menezes Albuquerque, pela
disponibilidade e cortesia.
Ao Programa de Suporte Ps-Graduao de Instituies de Ensino Particular
- PROSUP - da Coordenao de Aperfeioamento Pessoal de Nvel Superior
CAPES, pela oportunidade de cursar o Mestrado.
Aos professores Martonio MontAlverne Barreto Lima, Francisco Luciano Lima
Rodrigues, Jos de Albuquerque Rocha, Paulo de Menezes Albuquerque, Newton
de Menezes Albuquerque e Llia Maia de Morais Sales, e amiga Virgnia Batista,
pela confiana e ateno.
Aos queridssimos Carlos Eduardo dos Santos e Luis Carlos Oliveira,
funcionrios do Curso de Mestrado em Direito da Unifor, e ao Luciano Sousa, da
Fortlivros, pela pacincia e pelo apoio operacional, e, ainda, Lvia Manzolillo, do
Oramento Participativo da Prefeitura de Fortaleza, pela presteza.
Desembargadora Maria Celeste Thomaz de Arago, pelas lies de justia
social e humanidade, pela generosidade e pelo incentivo.
Aos familiares amados, em especial Igncio Juc, Walma Laena Costa, Raquel
e Rebeca Laena, Natlia Alcntara, Carmen Ceclia Costa e Roberto Barreto, pela
fora, pelo amor e pela torcida, sem os quais nada seria possvel.
amiga-irm Denise Almeida de Andrade, pela presena constante, pela ajuda
fiel e pela amizade incondicional, e aos estimados Marcos Aurlio Freitas de
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Oliveira, Andria da Silva Costa e Ana Katarina Fonteles Soares, pela lealdade, pelo
companheirismo e pelo auxlio na reviso do texto.
Aos amigos leitores do virtual Dirio de um Confinamento primeira e segunda
temporada -, por compartilharem das alegrias e aflies vivenciadas no decorrer da
elaborao deste trabalho: Cristina Palhano, Daniella Alencar, Davi Saraiva, David
Gouveia, Fbio Galvo, Helder Braga, Heloisa Helena, Izabel Gurgel, Michele
Camelo, Michele Machado, Pedro Ciarlini, Sheila Alves, Tercina Dias e Vanda
Barbosa, alm dos j e adiante citados.
Aos admirveis e, felizmente, tambm amigos - Celina Feitosa, Maria Lcia
de Castro Teixeira, Gabrielle Bezerra Sales, Alexandre Bruno da Silva, Paulo
Roberto C. Queiroz, Plnio Baima de Almeida, Maria do Carmo Moreira Conrado,
Igor Moreira Pinto, Rodrigo de Medeiros, Rodrigo Vieira e Alexandre Linhares, pelas
mostras de que , sim, possvel fazer a diferena e acreditar na luta pela
transformao social.
E, por fim, aos companheiros de militncia, em especial aos ex e atuais
membros do Servio de Assessoria Jurdica Popular da UNIFOR SAJU, do Centro
Acadmico Pontes de Miranda do Curso de Direito da UNIFOR CAPM, da Rede
Nacional de Advogados e Advogadas Populares RENAP e do Comit da Meia
Cultural em Fortaleza, pela oportunidade de colocar em prtica o ideal da
participao popular.
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Como difcil acordar calado, se na calada da noite eu me dano, quero lanar um grito desumano, que uma maneira de ser escutado. Esse silncio todo me atordoa, atordoado eu permaneo atento, na arquibancada pra a qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa.
Chico Buarque de Hollanda
Mos obra da reivindicao de nossa perdida autonomia; mos obra da nossa reconstituio interior; mos obra de reconciliarmos a vida nacional com as instituies nacionais; mos obra de substituir pela verdade o simulacro poltico da nossa existncia entre as naes. Trabalhai por essa que h de ser a salvao nossa. Mas no buscando salvadores. Ainda vos podereis salvar a vs mesmos. No sonho, meus amigos; bem sinto eu, nas pulsaes do sangue, essa ressurreio ansiada. Oxal no se me fechem os olhos, antes de lhe ver os primeiros indcios no horizonte.
Rui Barbosa
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RESUMO
O presente trabalho tem por objeto de estudo o direito fundamental participao popular como instrumento de concretizao do Estado Democrtico de Direito. Prope averiguar de que modo os mecanismos participativos podem contribuir para a efetividade da cidadania e para a reduo da excluso e das desigualdades sociais que caracterizam os pases em desenvolvimento, como o Brasil. Para tanto, discorre sobre o processo de evoluo do Estado de Direito e dos direitos fundamentais at o advento do Estado Democrtico, quando a democracia consolida-se como o nico regime poltico capaz de assegurar o real exerccio do poder pelo povo e o estabelecimento de uma cidadania mais inclusiva e abrangente. Versa, tambm, acerca da definio, finalidade, classificao, espcies e previso constitucional da participao popular, enfatizando sua natureza principiolgica de direito fundamental, que reflete a dignidade da pessoa humana. Confronta a participao do povo com a teoria da democracia deliberativa proposta por Jrgen Habermas, no intuito de analisar a possibilidade de aperfeioamento das prticas participativas por meio da implantao de procedimentos de deliberao pblica, alicerados no dilogo racional e argumentativo entre cidados livres e iguais. Por fim, observa as condies da participao de cunho deliberativo no municpio, a partir da verificao das peculiaridades da esfera pblica municipal e da legislao atinente matria, assim como do exame de decises judiciais e experincias vivenciadas em alguns municpios brasileiros.
Palavras-chave: Participao popular. Direito Fundamental. Cidadania. Democracia Deliberativa. Municpio.
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ABSTRACT
The present paper aims to study the fundamental right of popular participation as na instrument of substantiation of the Democratic Rule of the Law. It proposes to inquire which manner the participative mechanisms can contribute to the citzenship efectivity and to the elimination of the social inequalities that characterize the underdeveloping countries, such as Brazil. In order to do so, it discourses on the process of the Rule of the Law and fundamental rights evolution, up to the advent of the Democratic State, when democracy consolidates itself as a unique political regime that can be able to assure the real exercise of power by the people and the establishment of a more extensive and embracing democracy. It also crosses on the definition, function, classification, species and constitutional prevision of popular participation, emphasizing its logical-principle nature of fundamental right, that reflects the dignity of the human being. It confronts the participation of the people with the deliberative democracy theory, proposed by Jrgen Habermas, in order to analyze the possibility of improvement on the participative practices by manners of implantation of deliberative public proceedings, based on rational and argumentantative dialogue between free and equal citzens. Finally, it observes the participation conditions of deliberative imprint in the country, from the examination of the particularities on the public and municipal esphere and the legislation concerning the matter, such as the examination of judiciary experiences endured by some Brazilian counties.
Key-words: Popular Participation. Fundamental Right. Citzenship. Deliberative Democracy. County.
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SUMRIO
INTRODUO..................................................................................................................................................... 11
1 ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO: ESPAO DE CIDADANIA E PARTICIPAO............... 15
1.1 DO ESTADO DE DIREITO LIBERAL AO ESTADO DE DIREITO SOCIAL .........................................................................15
1.2 ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO.................................................................................................................... 20
1.2.1 Democracia.......................................................................................................................................... 241.2.2 Cidadania ............................................................................................................................................ 31
2 A PARTICIPAO POPULAR COMO DIREITO FUNDAMENTAL......................................................40
2.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS...................................................................................................................................40
2.1.1 Definio.............................................................................................................................................. 412.1.2 Caractersticas e classificao.............................................................................................................432.1.3 Estrutura ..............................................................................................................................................442.1.4 Funo..................................................................................................................................................452.1.5 Direitos Fundamentais na Constituio Federal de 1988................................................................... 46
2.2 PARTICIPAO POPULAR .................................................................................................................................... 48
2.2.1 Definio.............................................................................................................................................. 482.2.2 Classificao e espcies....................................................................................................................... 512.2.3 Natureza............................................................................................................................................... 532.2.4 Finalidade............................................................................................................................................ 572.2.5 Previso constitucional........................................................................................................................ 602.2.6 Ordem internacional............................................................................................................................ 63
3.1 A DEMOCRACIA DELIBERATIVA PROPOSTA POR JRGEN HABERMAS......................................................................... 67
3.1.1 Conceito............................................................................................................................................... 673.1.2 Caractersticas..................................................................................................................................... 71
3.2 A EFETIVAO DA PARTICIPAO POPULAR E DOS PROCEDIMENTOS DELIBERATIVOS NO MUNICPIO.................................. 75
3.2.1 A esfera municipal................................................................................................................................753.2.2 Realizao nos municpios brasileiros.................................................................................................813.2.3 Experincias brasileiras.......................................................................................................................91
CONCLUSO..................................................................................................................................................... 101
ANEXOS................................................................................................................ 127
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INTRODUO
Cada vez mais, os nefastos efeitos do neoliberalismo e da globalizao
transformam as sociedades do mundo atual em cenrios de desigualdade, excluso
social e misria. A histria de grande parte dos pases mostra que o abismo entre
ricos e pobres s tem aumentado nos ltimos tempos, deixando margem de uma
vida minimamente digna um nmero considervel de pessoas.
A lgica do mercado globalizado rege as decises polticas acerca do futuro
das sociedades, fazendo com que critrios econmicos prevaleam sobre os sociais.
O discurso conservador insiste na defesa de que a democracia deve ceder espao
governabilidade (LIMA, 2003, p. 213). O sistema capitalista prioriza o
desenvolvimento da economia em detrimento das polticas verdadeiramente aptas a
enfrentar os males suportados pela grande massa oprimida, provocando uma
constante violao aos mais bsicos direitos dos cidados e, em conseqncia, o
freqente desrespeito dignidade da pessoa humana.
Essa inverso de valores faz com que se cristalize no seio das sociedades, de
um lado, um estado de descaso e irresponsabilidade por parte dos governantes e,
do outro, uma condio de submisso e indolncia por parte do povo, ao qual
negado o acesso a elementos vitais, como sade, educao, moradia e trabalho,
dificultadondo seu desenvolvimento e sua emancipao.
A assuno dos postulados neoliberais acarreta a imposio de medidas
elitistas e conservadoras que, por no primarem pela educao e pela incluso, s
fortalecem os sentimentos de desamparo e incapacidade dos cidados e a distncia
abissal entre as classes sociais.
A situao agrava-se em pases pouco desenvolvidos, como o Brasil,
assinalado por um elevado ndice de concentrao de renda, instabilidade
econmica, pobreza, fome, analfabetismo, violncia, corrupo etc. Em tais esferas,
o nvel de excluso e pobreza assustador, mormente quando se constata a
resignao dos indivduos com as desumanas e indignas condies de vida que se
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lhes so impostas, no sendo incomum, por exemplo, a banalizao de ilegalidades,
a aceitao de injustias e a conformao de uma considervel parcela da
populao com polticas pblicas discriminatrias.
Na verdade, no mbito desses Estados que se acentuam os entraves. As
precrias condies de vida de populaes to histrica e culturalmente atrasadas
no s dificultam a implementao das medidas mais eficazes superao dos
problemas sociais, como desestimulam a luta pela modificao do status quo e pela
consolidao de um regime democrtico. A necessidade de se lutar primeiramente
pela prpria sobrevivncia justifica a inrcia do povo e o seu descrdito para com os
processos decisrios de interesse da coletividade; quando somada falta de
informao e de educao, deficincia cultural e carncia de investimentos em
polticas de incluso e acesso justia, explica a estagnao social e o
assentimento popular s condies impostas pelo capitalismo.
Diante da urgncia de se buscar meios hbeis para abrandar to infausto
quadro, a participao popular emerge como instrumento preponderante. A
interveno do povo nas decises do Estado revela-se como fator primordial para a
transformao dessa realidade, na medida em que oportuniza tanto um diagnstico
mais fiel dos problemas sociais como a identificao das mais prementes solues,
alm de possibilitar a fiscalizao e o controle dos cidados sobre a gesto da coisa
pblica e a legitimao das decises coletivas.
A mobilizao social, nessa perspectiva, apresenta-se como meio de canalizar
a vontade do povo e realizar o Estado Democrtico de Direito, propiciando o
fortalecimento de uma cultura democrtica e a prtica dos ideais republicanos. Esse
tipo de organizao proporciona o surgimento, na sociedade, de uma conscincia
crtica apta a desencadear processos de enfrentamento que visem incluso de
grupos minoritrios e efetivao de direitos fundamentais.
No caso do Brasil, o direito participao, previsto na Constituio Federal de
1988, desponta como recurso determinante na luta pela melhoria da qualidade de
vida da maior parte da populao. Os processos coletivos participativos autnomos,
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alicerados no dilogo racional, mostram-se hbeis a operar mudanas significativas
em um ambiente to desigual e complexo como o brasileiro, ainda dominado por
uma cultura clientelista, corporativista e oligrquica.
Nessa ordem de idias, resta justificada a proeminncia de se aprofundar o
conceito de participao, assim como sua natureza e suas caractersticas,
finalidades e espcies. Igualmente, faz-se mister examinar de que modo e em que
esfera o direito participao deve ser efetivado para que contribua para a
realizao de um Estado Democrtico de Direito digno, justo e legtimo, no qual a
vontade popular seja, de fato, respeitada.
Para tal, o presente trabalho versa inicialmente sobre a evoluo histrica do
Estado de Direito, desde a instaurao do Estado Liberal burgus, aps a Revoluo
Francesa, em 1789, passando pelo Estado Social do Welfare State, at o
estabelecimento do Estado Democrtico, ao fim do sculo XX. Reporta-se,
concomitantemente, conquista dos direitos fundamentais da pessoa humana no
decorrer desse processo, ao tempo em que se aborda o regime democrtico,
enfatizando-se sua forma participativa e a concepo atual de cidadania.
Emps, no segundo captulo, investiga-se o significado da participao popular
sob vrios aspectos, na tentativa de se delimitar um conceito mais consentneo com
os fins e princpios do Estado Democrtico de Direito. Aponta-se funo, espcies e
classificao da participao, salientando-se, ainda, com arrimo na Constituio
Federal de 1988 e na ordem internacional, sua natureza de direito fundamental.
Alfim, confronta-se a concepo de participao popular com a teoria da
democracia deliberativa proposta por Jrgen Habermas, com o escopo de analisar
as possibilidades de efetivao do Estado Democrtico de Direito. Ou seja, procede-
se ao exame das nuances da tese habermasiana, com vistas ao aprimoramento das
prticas participativas, tencionando averiguar de que maneira os processos
deliberativos, assentados no dilogo argumentativo e racional entre pessoas
conscientes e iguais, podem servir ao desenvolvimento social, efetivao de
direitos e ao fortalecimento da democracia.
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No item subseqente, enfrenta-se a temtica municipal, examinando-se as
caractersticas, as vantagens e os obstculos do municpio enquanto espao
democrtico, assim como os instrumentos de participao e deliberao
preconizados na legislao infraconstitucional.
Por ltimo, faz-se meno a decises dos tribunais brasileiros e elenca-se, a
ttulo exemplificativo, experincias fundadas na participao popular e na
deliberao pblica, realizadas em municpios brasileiros.
Em sntese, tem-se por escopo demonstrar a imprescindibilidade da
compreenso do direito fundamental participao popular como condio de
realizao do Estado Democrtico de Direito, mormente a partir da persecuo por
espaos e procedimentos capazes de propiciar uma construo coletiva de
consensos justos e racionais que representem, de fato, o que igualmente bom
para todos, de modo a satisfazer os anseios populares, amenizar as mais pungentes
dificuldades enfrentadas pelo povo na atual conjuntura, e, sobretudo, resguardar os
direitos fundamentais dos cidados, oportunizando-lhes uma vida mais digna e justa.
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1 ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO: ESPAO DE CIDADANIA E PARTICIPAO
1.1 Do Estado de Direito Liberal ao Estado de Direito Social
Precede o estudo do Estado Democrtico de Direito e de sua evoluo
histrica uma breve meno ao Estado de Direito e seus modelos.
Em regra, associa-se o termo Estado de Direito ao Estado surgido aps a
Revoluo Francesa, em 1789. Regido primordialmente pelos princpios da primazia
da lei, soberania popular, separao de poderes, laicidade e garantia de direitos
individuais dos cidados poca restritos classe burguesa, o Estado de Direito
caracterizou-se pela contraposio ao poder absoluto e ilimitado do prncipe
soberano, prprio do perodo absolutista antecedente, transferindo a titularidade do
poder ao povo e o seu exerccio a representantes eleitos.
Tal expresso representa, pois, o Estado em que, para garantia dos direitos
dos cidados, se estabelece juridicamente a diviso do poder e em que o respeito
pela legalidade [...] se eleva a critrio de aco dos governantes (MIRANDA, 1997,
p. 86). Ou, como assevera Prez Luo (2005, p. 226), o Estado de Direito nasceu
como forma de unir diversas garantias formais proclamadas por uma constituio
que consagrava la divisin de poderes y el principio de legalidad, con una serie de
garantas materiales, ya que el primado de la ley reposaba en su carcter de
expresin de la voluntad general y en su inmediata orientacin a la defensa de los
derechos y libertades de los ciudadanos.
Partindo dessa idia, e considerando seu aspecto histrico, pode-se listar trs
espcies de Estado de Direito: o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado
Democrtico. E, como discorrer sobre essa evoluo do Estado de Direito
expender o processo de conquista dos direitos fundamentais haja vista serem
idias entrelaadas, que se complementam e at mesmo se confundem , a anlise
concomitante uma necessidade1.
1 Nesse sentido: PREZ LUO (2005, p. 218-219); LOPES (2001b, p. 62).
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O Estado Liberal caracterizava-se pela omisso do Estado frente s demandas
sociais, pela prevalncia do individual sobre o coletivo e pelo inteiro alheamento e
ausncia de iniciativa social (BONAVIDES, 2004, p. 41), identificando-se, na
expresso do constitucionalista portugus Jorge Miranda (1998, p. 22), pela postura
individualista abstracta, de [...] um indivduo sem individualidade; e o primado da
liberdade, da segurana e da propriedade, complementadas pela resistncia
opresso. A sociedade era regulada por princpios normativos racionais, formulados
a partir da razo humana e focados no indivduo.
No Estado liberal, definia-se a soberania a partir dos conceitos histricos de
Jean Bodin, para quem o Estado detinha a summa potestas de forma absoluta e
perptua, e de Sieys, segundo o qual a nao, ou seja, a classe social burguesa
por ele chamada de terceiro estado, era a detentora do poder absoluto2.
Assim, o Estado interferia o mnimo possvel na vida dos cidados, os quais,
livres das arbitrariedades do Regime Absolutista e dos percalos dele decorrentes,
detinham o controle do poder3. Tinha-se um Estado abstencionista, no qual,
inexistindo o monoplio do poder econmico, vigorava o princpio da livre iniciativa.
Abordando tais caractersticas do Estado Liberal, afirma Norberto Bobbio
(2006, p. 129):
O Estado liberal o Estado que permitiu a perda do monoplio do poder ideolgico, atravs da concesso de direitos civis, entre os quais sobretudo do direito liberdade religiosa e de opinio poltica, e a perda do monoplio do poder econmico, atravs da concesso da liberdade econmica.
E Jos Afonso da Silva (2002, p. 119):
O Estado Liberal de Direito informado, desde o incio, por uma concepo individualista, necessariamente utilitarista, na medida em que concebe uma economia de mercado que deve guiar-se pelo interesse do lucro, pela idia,
2 Acerca do tema, importa registrar a crtica feita por Jorge Miranda aos conceitos de soberania do povo e soberania nacional. Segundo ele, tais expresses, ainda bastante utilizadas nas constituies, no podem significar um poder ilimitado do povo, sob pena de se ter uma identificao da democracia com os regimes absolutistas fundados no poder do Rei ou de Deus (MIRANDA, 1998, p. 10-12).3 Poder este que era exercido apenas pela classe burguesa em ascenso.
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enfim, do maior proveito possvel do indivduo, idia que assim se manifesta como valor superior, que justifica toda ao individual e poltica [...].
Nesse perodo, direitos individuais e polticos foram formalmente assegurados
aos cidados. Nominados pela doutrina constitucional de direitos de primeira
dimenso4, os direitos conferidos pela ordem liberal possuam carter negativo, na
medida em que representavam uma oposio frente ao Estado, sendo tambm
chamados de direitos de defesa ou resistncia (SARLET, 2004, p. 54), contendo
como ponto comum a titularidade identificada no indivduo (LOPES, 2001b, p. 63).
Ademais, fazem tambm ressaltar na ordem dos valores polticos a ntida
separao entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separao,
no se pode aquilatar o verdadeiro carter antiestatal dos direitos da liberdade [...]
(BONAVIDES, 2006, p. 564).
No Estado Liberal, vislumbrava-se, ainda, um definido sistema de separao de
poderes como tcnica de proteo das liberdades, alm da submisso do povo ao
imprio da legalidade. Como explicita J.J. Canotilho (1999, p. 91), o Estado Liberal
servia para a submisso do direito do poder poltico sob um duplo ponto de vista: (1) os cidados tm a garantia de que a lei s poder ser editada pelo rgo legislativo, isto , o rgo representativo da vontade geral (cfr. Dclaration de 1789, artigo 6); (2) em virtude da sua dignidade obra dos representantes da Nao a lei constitui a fonte de direito hierarquicamente superior (a seguir s leis constitucionais) e, por isso, todas as medidas adoptadas pelo poder executivo a fim de lhe dar execuo deviam estar em conformidade com ela (princpio da legalidade da administrao).
Havia, desse modo, e contrariamente ao que existia no Antigo Regime, uma
subordinao do povo e dos governantes s normas jurdicas postas, como meio de
controle do poder e garantia da paz social.
No campo da Filosofia, foi John Locke um dos mais expressivos tericos do
Estado liberal5. Locke advogava a superioridade do Poder Legislativo, alegando
4 Opta-se pelo termo dimenso, defendido por Ingo Sarlet, porque o tradicional gerao sugere a falsa idia de que o perodo subseqente substituiu o antecedente, deixando de resguardar direitos j conquistados. 5 A opo pelo pensamento de Locke no desmerece nem ignora as contribuies de outros filsofos, como Kant e Montesquieu, para a formulao de uma teoria liberal.
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serem as leis os instrumentos mais apropriados ao resguardo da paz e da
segurana, sem descartar a necessidade dos poderes Executivo cuja funo era
de execuo das leis -, Judicirio, por meio do qual era assegurada comunidade
uma sentena justa - e Federativo6 que tinha por escopo gerir as relaes entre as
pessoas da comunidade e as controvrsias delas oriundas.
Ressaltava o filsofo, sem embargo, em perfeita harmonia com a ideologia do
liberalismo, que tais poderes, inclusive o Legislativo, eram limitados pelo poder
soberano do povo. Ora, todo poder concedido como encargo para se obter certo
objetivo limitado por esse mesmo objetivo, e sempre que este for desprezado ou
claramente contrariado, perde-se necessariamente o direito a este poder, que
retorna s mos que o concederam [...] (LOCKE, 2004, p. 109).
Evidencia-se, pois, ter o pensamento de John Locke servido de sustentao
concepo liberal e aos princpios a ela inerentes, mormente no que tange ao
primado da lei e ao resguardo dos direitos fundamentais de propriedade e liberdade.
O Estado liberal, no entanto, no se mostrava capaz de solucionar as
dificuldades enfrentadas por uma parte da sociedade excluda do poder burgus.
Como explica Paulo Bonavides (2004, p. 188):
O velho liberalismo, na estreiteza de sua formulao habitual, no pde resolver o problema essencial de ordem econmica das vastas camadas proletrias da sociedade, e por isso entrou irremediavelmente em crise.A liberdade poltica como liberdade restrita era inoperante.No dava nenhuma soluo s contradies sociais, mormente daqueles que se achavam margem da vida, desapossados de quase todos os bens.
Assim, nos sculos XIX e XX, novas reivindicaes emergiam de uma classe
oprimida, insatisfeita com o poder da burguesia, na procura de novos direitos que lhe
assegurasse um mnimo de igualdade social e econmica.
Nessa conjuntura, o Estado Liberal de Direito transformava-se em Estado
Social de Direito, voltado garantia material dos denominados direitos sociais, cuja
6 Como adverte Paulo Bonavides (2004, p. 46), o Poder Federativo representava a manuteno de um certo poder real.
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expresso normativa vislumbrou-se primeiramente na Constituio Mexicana, de
1917, e na Constituio Alem de Weimar, de 1919.
De absentesta, o Estado passava assistencialista, estabelecendo, alm dos
j conquistados direitos individuais e polticos, prestaes positivas aos cidados,
que, traduzidas no resguardo dos direitos sociais, econmicos e culturais,
proporcionassem o bem-estar da populao. Tais direitos, intitulados de direitos de
segunda dimenso, detinham uma feio positiva, denotando a atuao estatal em
benefcio do povo e a conscincia da necessidade de proteger no apenas o
indivduo, mas a sociedade na qual ele se desenvolve como ser social (LOPES,
2001b, p. 64).
No se pode deixar de reconhecer aqui o nascimento de um novo conceito de direitos fundamentais, vinculado materialmente a uma liberdade objetivada, atada a vnculos normativos e institucionais, a valores sociais que demandam realizao concreta e cujos pressupostos devem ser criados, fazendo assim do Estado um artfice e um agente de suma importncia para que se concretizem os direitos fundamentais de segunda gerao (BONAVIDES, 2006, p. 567).
Como esclarece Prez Luo (2005, p. 233), o Estado Social revelava o fim da
separao entre Estado e sociedade, donde se infiere la posibilidad y la exigencia
de que el Estado asuma la responsabilidad de la transformacin del orden
econmico-social en el sentido de uma realizacin material de la idea democrtica
de igualdad.
Paralelamente, havia a expanso de alguns direitos polticos e a tentativa de
realizao de justia social, por meio da compatibilizao de dois elementos: o
capitalismo, como forma de produo, e a consecuo do bem-estar social geral,
servindo de base ao neocapitalismo tpico do Welfare State (DAZ apud SILVA,
2002, p. 118). Isso, claro, sem desprezar os princpios do Estado Liberal; o Estado
Social era, antes de mais nada, um Estado de Direito, norteado pela legalidade e
provedor das mesmas garantias formais e dos mesmos direitos individuais e
polticos institudos no Estado Liberal7.
7 Cf. PREZ LUO, 2005, p. 234.
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Na obra Do Estado Liberal ao Estado Social, Paulo Bonavides (2004, p. 186)
define Estado Social:
Quando o Estado, coagido pela presso das massas [...] confere [...] os direitos do trabalho, da previdncia, da educao, intervm na economia como distribuidor, dita o salrio, manipula a moeda, regula os preos, combate o desemprego, protege os enfermos, d ao trabalhador e ao burocrata a casa prpria, controla as profisses, compra a produo, financia as exportaes, concede crdito, institui comisses de abastecimento, prov necessidades individuais, enfrenta crises econmicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependncia de seu poderio econmico, poltico e social, em suma, estende sua influncia a quase todos os domnios que dantes pertenciam, em grande parte, rea de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justia, receber a denominao de Estado social.
No obstante tenha, poca, representado um avano, na medida em que
materializava direitos antes previstos apenas formalmente, o Estado Social servia,
tambm, justificao de regimes totalitrios. O poder de controlar e interferir em
todos os setores sociais, ao ser desvirtuado pelos governantes, acarretava
conseqncias devastadoras, como as ocorridas na Itlia fascista e na Alemanha
nazista.
Outrossim, a marcante presena do Estado e a democratizao das relaes
sociais gerava uma excessiva demanda social, aumentando o aparato da mquina
estatal e a burocracia do servio pblico.
Nesse cenrio, exsurgia imperiosa a necessidade de formulao de um novo
modelo de Estado, capaz de garantir o real exerccio do poder pelo povo, por meio
da participao poltica, e a efetiva igualdade material entre os cidados.
1.2 Estado Democrtico de Direito
O Estado Democrtico de Direito surgiu no fim do sculo XX como resposta s
deficincias do Estado Social, para conferir ao povo o exerccio do poder de que
este titular. Marcado por oportunizar a ampla participao popular na formao da
vontade poltica frente s instncias pblicas de deciso, mostrou-se um Estado
mais legtimo, por viabilizar o amplo controle do poder por parte dos cidados.
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A soberania popular revelou-se, por conseguinte, como princpio basilar do
Estado Democrtico de Direito8, a influenciar seus elementos formadores e permear
o esprito de suas normas, diferenciando-o dos modelos anteriores de Estado ao
atribuir-lhe uma essncia mais democrtica.
O Estado constitucional mais do que Estado de Direito. O elemento democrtico no foi apenas introduzido para travar o poder (to check the power); foi tambm reclamado pela necessidade de legitimao do mesmo poder (to legitimize State power) [...] S o princpio da soberania popular segundo o qual todo o poder vem do povo assegura e garante o direito igual participao na formao democrtica da vontade popular. Assim, o princpio da soberania popular, concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados, serve de charneira entre o Estado de Direito e o Estado democrtico [...] (CANOTILHO, 1999, p. 95-96).
No mesmo sentido, Newton Albuquerque, ao defender o resgate do conceito de
soberania, destaca que, com o advento do Estado Democrtico de Direito, imps-se
uma articulao com a fixao de novas bases contratuais para o pensamento
democrtico, no intuito de reafirmar o sentido poltico do processo de formao da
vontade nacional e de sua fora incontrastvel sobre os demais poderes privados
que com ela colidem [...] (ALBUQUERQUE, 2001, p. 146).
A instaurao do Estado Democrtico traduziu uma organizao jurdico-
poltica, cuja realizao scio-econmica deveria ocorrer com a efetivao de
direitos, como a liberdade e a igualdade. Com o advento do Estado Democrtico, a
submisso lei formal transmudou-se em conscincia de justia social, passando a
proporcionar a prtica de direitos fundamentais e a possibilitar sua concretude,
garantindo, com isso, o resguardo da dignidade da pessoa humana (DAZ apud
PREZ LUO, 2005, p. 236).
Hoje, o Estado Democrtico de Direito apresenta-se como espao de justia,
legitimidade, igualdade, liberdade, controle de constitucionalidade das leis e
participao do povo no processo legislativo, bem como na formao dos atos dos
poderes Executivo e Judicirio. Afigura-se como espao plural9 de participao feita
com deliberao, respeito, tolerncia e reconhecimento das minorias, ambincia de
consenso e dissenso, argumentao e dilogo, solidariedade e incluso, e, 8 Para Canotilho (1998, p. 88), o Estado s pode ser concebido, hoje, como Estado Constitucional. 9 Ao que Norberto Bobbio (2006, p. 36) denomina sociedade centrfuga.
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principalmente, de luta pela dignidade. Ou seja, democrtico o Estado que, acima
de tudo, tem por valor supremo a dignidade humana.
O Estado Democrtico de Direito representa, outrossim, uma maior
possibilidade de controle do poder exercido pelos governantes. O povo, partcipe
ativo, detm condies reais de acompanhar mais de perto os atos de governo; a
constituio, em sua funo de norma fundamental, alm de prever mecanismos
mais eficazes de fiscalizao dos atos pblicos, possibilita a criao de ambientes
de participao e deliberao pblica.
Assim, so vetores do Estado Democrtico de Direito os princpios da
constitucionalidade (Estado fundado em uma Constituio), da democracia (Estado
cujo regime poltico a democracia), do sistema de direitos fundamentais (Estado
garantidor de tais direitos), da justia social (Estado que prioriza a ordem social e
cultural), bem como os postulados da igualdade, diviso de poderes, legalidade e
segurana jurdica (SILVA, 1999, p.126)
Tem-se, pois, um Estado que supera os modelos anteriores, sem, contudo,
deles se distanciar; um Estado, primordialmente, liberal e social, no sentido de
consagrador de postulados como o primado da lei e a separao de poderes e
garantidor de direitos individuais, polticos, sociais, econmicos e culturais.
A propsito, J. J. Gomes Canotilho (1999, p. 284) atribui aos direitos
fundamentais uma funo democrtica, na medida em que o exerccio do poder,
nesse tipo de Estado,
(1) significa a contribuio de todos os cidados [...] para o seu exerccio (princpio-direito da igualdade e da participao poltica; (2) implica participao livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exerccio (o direito de associao, de formao dos partidos, de liberdade de expresso [...]; (3) co-envolve a abertura do processo poltico no sentido da criao de direitos sociais, econmicos e culturais [...].
Aos cidados do Estado democrtico so garantidos igualmente direitos de
fraternidade ou solidariedade, cuja titularidade no recai sobre um s individuo, mas
sobre a humanidade, tais como o direito comunicao, ao desenvolvimento, paz,
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autodeterminao dos povos, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao
patrimnio cultural. Cuida-se, na verdade, do resultado de novas reivindicaes
fundamentais do ser humano, geradas [...] pelo impacto tecnolgico, pelo estado
crnico de beligerncia, bem como pelo processo de descolonizao do segundo
ps-guerra e suas contundentes conseqncias [...] (SARLET, 2004, p. 57).
Como pontua Paulo Bonavides, os direitos de terceira dimenso, dotados de
altssimo teor de humanismo e universalidade, tm por destinatrio no o indivduo
considerado isoladamente, mas o gnero humano mesmo, num momento
expressivo de sua afirmao como valor supremo em termos de existencialidade
concreta (BONAVIDES, 2006, p. 569).
Paulo Bonavides (2003, p. 59) frisa, tambm, como prprio do Estado
Democrtico, o direito democracia, pertencente a uma quarta dimenso de
direitos, e que tem por titular o gnero humano; o mais fundamental dos direitos da
nova ordem normativa que se assenta sobre a concretude do binmio igualdade-
liberdade (BONAVIDES, 2003, p. 160), apesar de entender que, na realidade de
pases em desenvolvimento, como o Brasil, a democracia participativa no passa de
direito de primeira dimenso, do ponto de vista de sua efetivao10.
Ainda acerca dessa quarta dimenso dos direitos fundamentais, declara
Bonavides (2006, p. 571):
A globalizao poltica na esfera da normatividade jurdica introduz os direitos da quarta gerao, que, alis, correspondem derradeira fase de institucionalizao do Estado social. So direitos de 4 gerao a democracia, o direito informao e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretizao da sociedade aberta do futuro, em sua dimenso de mxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relaes de convivncia.
Mesmo que no haja inteira concordncia com o entendimento do jurista
cearense quanto concretizao da democracia no Brasil - onde, apesar de longe
10 A verdade ftica nos ensina todavia que nos sobreditos pases e este tambm o caso do Brasil a democracia, enquanto forma participativa, quase naufragada, ainda permanece direito da primeira gerao, ou forma de governo em estado rudimentar, rodeada de escolhos, de transgresses, distante, muito distante, por conseguinte, de lograr, na contextura social, a concreo das expectativas polticas e jurdicas do regime (BONAVIDES, 2003, p. 59).
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de alcanar uma situao ideal, j se manifestam formas de participao e
deliberao -, o fato que a marca distintiva desse novo Estado est no seu carter
democrtico. O Estado passa a ser norteado pelos princpios da soberania popular e
da participao do povo no poder, no apenas como elementos de justificao do
regime poltico, mas, sobretudo, como possibilidade de realizao no mundo ftico.
1.2.1 Democracia
Do grego demokrata (demos, kratos), democracia significa poder do povo. Na
clssica conceituao de Abraham Lincoln, consiste no governo do povo, pelo povo
e para o povo: do povo, porque ele quem detm sua titularidade; pelo povo,
porque em seu nome exercido; e, para o povo, porque tem como fim ltimo
garantir a este os direitos fundamentais que lhe so prprios.
Primeiramente vivenciada na Grcia, a democracia foi sempre definida
comparativamente aos demais tipos de regime poltico. Em sua obra O que
democracia, Simone Goyard-Fabre cita alguns tericos para demonstrar que a
classificao dos regimes polticos acompanhou a anlise da democracia por quase
vinte sculos. Toms de Aquino, Jean Bodin, Rousseau, Maquiavel, Montesquieu,
Thomas More, John Locke etc., todos so citados para ratificar que o regime
democrtico sempre comparado com os outros regimes (GOYARD-FABRE, 2003,
p. 38) e que, at hoje, o valor da democracia est na sua distino dos outros modos
de governo.
A autora ressalta, porm, a inexistncia de uma ruptura total entre a
democracia antiga e a democracia moderna, mormente porque a constituio da
Antigidade possua a mesma finalidade e importncia de se constituir uma
plataforma de princpios, traduzindo o fundamento da poltica da Cidade-Estado.
Na democracia grega, tinha-se a participao popular nas decises de
interesse pblico. J naquela poca, as noes de povo e cidadania eram
consideradas fundamentais efetivao do regime democrtico, como ocorre no
Estado Democrtico de Direito.
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Igualmente, a democracia da Grcia permitia o acesso cidadania a um
grande nmero de pessoas e, como cedio, quando a cidadania se define pela
participao nos poderes pblicos, deliberativo e judicirio, ela o principal indicador
da democracia (GOYARD-FABRE, 2003, p. 49), influenciando no desenvolvimento
de um sentimento de orgulho e honra. O conjunto desses cidados formava o povo
soberano, competente para decidir sobre os assuntos mais importantes da Cidade-
Estado. Dessa forma, em Atenas, o povo cidado no o povo-massa (GOYARD-
FABRE, 2003, p. 49), porque o exerccio da cidadania exigia um certo nvel de
conhecimento e um senso de responsabilidade maior.
Outro ponto em comum entre as democracias grega e atual reside no princpio
da legalidade. Goyard-Fabre explica que, na Grcia, o imprio das leis (nomos) era
um dos pilares da democracia, representando a garantia da ordem pblica. A lei
ateniense consistia em um acordo do povo com a Cidade-Estado e simbolizava o
caminho para a liberdade. O respeito legalidade era um imperativo; o desrespeito,
um crime inexpivel.
Dessarte, da mesma forma que o poder do povo, a cidadania e o imprio da lei
so pilares da democracia moderna, tambm o eram da democracia grega. Mutatis
mutandis, a essncia da cidadania continua sendo um parmetro invarivel da
democracia (GOYARD-FABRE, 2003, p. 50).
Em outras palavras: apesar das diferentes culturas, dos costumes, e das
peculiaridades de cada ordenamento jurdico, os regimes democrticos sempre se
fundamentaram - e ainda se fundamentam - no poder soberano do povo, na fora da
constituio e no imprio da lei.
Entretanto, se na acepo clssica, democracia era apenas um tipo de regime
poltico ou um conjunto de normas que se fundamentava na interferncia do povo,
titular soberano do poder, em outra perspectiva, na qual qualificada de
participativa, a democracia mais do que isso: consiste em um processo dialgico,
em um modo de vida, em uma forma de se viver em sociedade.
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Ao situar-se o conceito de democracia nas relaes cotidianas estabelecidas entre os homens, na sociedade e em sua atuao poltica, pensa-se a democracia como o processo de discusso e aperfeioamento axiolgico das aes humanas, resultando em uma reiveno de valores e atitudes em uma dada sociedade em um dado perodo de tempo (ALBUQUERQUE; MOREIRA, 2005, p. 85).
Por isso, Jos Afonso da Silva11 (2002, p. 43) assere que democracia, em seu
sentido moderno, no um valor fim, mas um processo inacabado de luta,
instrumento de realizao de valores essenciais de convivncia humana que se
traduzem basicamente nos direitos fundamentais do Homem [...] um processo de afirmao do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai
conquistando no correr da Histria.
Ao discorrer sobre uma teoria constitucional da democracia participativa, Paulo
Bonavides (2003, p. 44) esclarece que, com tal forma de democracia [...] o povo
passa a ser substantivo, e o por significar a encarnao da soberania mesma em
sua essncia e eficcia, em sua titularidade e exerccio, em sua materialidade e
contedo e, acima de tudo, em sua intangibilidade e inalienabilidade [...].
Logo, a democracia prpria do Estado Democrtico de Direito traduz-se na
participao ativa do povo nas tomadas de deciso, representa a efetivao de
direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos e, necessariamente,
considera o pluralismo inerente s complexas sociedades abertas e ativas da
modernidade.
Na viso clssica, as formas de exerccio da democracia so divididas em:
democracia direta em que o poder exercido diretamente pelo povo, sem
intermdios -, democracia indireta na qual o exerccio do poder cabe a
representantes eleitos e democracia semidireta, em que so conjugados
mecanismos de representao e participao.
11 Sobre o conceito de democracia, conferir a obra de Alexis de Tocqueville, Karl Marx e Antonio Gramsci.
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A democracia direta foi melhor defendida por Jean Jacques Rousseau, filsofo
da Revoluo Francesa. Para ele, os indivduos, dotados de liberdade e igualdade,
consentem na criao do Estado, por meio de um contrato social e organizam a
sociedade a partir da razo, sob o primado da soberania popular. Segundo o autor, o
povo totalmente soberano, razo pela qual sua vontade - a vontade geral - deve
prevalecer sempre, no sendo transmitida nem dividida.
Consoante Rousseau, apenas a vontade geral, ou seja, a vontade do povo
dirigida ao bem comum, deve fundamentar as decises do Estado. Para que haja,
pois, a exata declarao da vontade geral, importa no haver no Estado sociedade
parcial e que cada cidado manifeste seu prprio parecer (ROUSSEAU, 2004, p.
42).
Como meio de exerccio dessa soberania, Rousseau aponta a lei. Para ele, a
lei a forma de dar vida vontade geral do povo e efetivar a soberania. Por esse
motivo, as leis precisam ser aprovadas pelo povo e estar sempre de acordo com os
seus interesses. Nas palavras do prprio Rousseau (2004, p. 47): Pelo pacto social,
demos existncia e vida ao corpo poltico; trata-se agora de, com a legislao, lhe
dar movimento e vontade [...].
E ainda:
[...] elas [as leis] so atos da vontade geral, nem se o prncipe superior s leis, pois ele membro do Estado, nem se a lei pode ser injusta, pois que ningum injusto para si, nem como somos livres, e submetidos s leis, no sendo elas seno o registro de nossas vontades (ROUSSEAU, 2004, p. 48).
Destarte, Rousseau atribui aos representantes do povo a qualidade de meros
comissrios. Sem poder ou soberania, os deputados devem estar adstritos
vontade geral, no podendo, em hiptese alguma, contrari-la.
Rousseau defende o exerccio do poder pelo povo sem intermdios. E, mesmo
que em seu Contrato Social tenha colocado a democracia como governo de deuses,
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e, em outra obra12, tenha admitido a possibilidade da representao, no se pode
negar seu atributo de defensor da democracia direta.
Assim, se o povo soberano, e se a vontade geral no pode ser representada,
as leis no podem ser feitas em oposio a essa vontade geral, ou melhor, no
podem ser elaboradas sem a participao do povo. Nesse momento, declara o autor
que, apesar de feitas pelo legislador, as leis demandam a aprovao do povo para
existirem: nula, nem lei, aquela que o povo em peso no retifica (ROUSSEAU,
2004, p. 92).
Por seu turno, a democracia indireta ou representativa est relacionada
delegao do poder aos representantes, escolhidos mediante eleies peridicas,
por meio de um processo regido pelo princpio da separao de poderes. Na
expresso de Bobbio (2006, p. 56), as deliberaes coletivas concernentes aos
interesses de toda a coletividade so tomadas por pessoas eleitas com essa
finalidade especfica, e no diretamente pelo povo, verdadeiro detentor da
titularidade do poder.
Tal representao pode ou no estar vinculada s determinaes do povo, de
acordo com a opo pelo mandato imperativo ou livre. Por meio do mandato
imperativo, o representante eleito deve cumprir integral e fielmente a vontade
especfica de uma categoria de eleitores, sob pena de perda do mandato, como
enfatiza Fvila Ribeiro (1996, p. 36), ao dissertar sobre a origem da representao
poltica: [...] recebiam os mandatrios as instrues cahiers de dolances
emanadas de seus eleitores, aos quais estavam obrigados a prestar contas sobre o
desempenho do mandato recebido, e que podia ser suprimido se no fosse
cumprido satisfatoriamente. Patrocinam essa tese, por exemplo, Rousseau e
Bonavides.
J o mandato livre, ou fiducirio, no vincula os representantes, os quais, uma
vez eleitos, possuem autonomia para perseguir o interesse de toda a coletividade
e no apenas alguns interesses particulares. Baseado na confiana, o mandato livre,
12 Refere-se aqui obra Consideraes sobre o Governo da Polnia, de 1772.
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predominante nos Estados modernos, no pode ser revogado, como bem sustentou
Edmund Burke, em seu Discurso aos eleitores de Bristol: Parliament is a
deliberative assembly of one nation, with one interest, that of the whole where not
local purposes, not local prejudices, ought to guide, but the general good, resulting
from the general reason of the whole (BURKE, 1975, p. 96).
Ressalte-se que a diviso acima esposada entre as formas de exerccio da
democracia tem, hoje, uma finalidade meramente didtica, tanto porque a
representao deve ser conciliada com mecanismos participativos, como porque se
afigura ilusria a democracia direta nos moldes idealizados por Rousseau.
Na verdade, o mundo globalizado no tem mais ou pelo menos no deveria
ter espao para regimes totalmente representativos, nos quais o povo deixado
margem dos centros de poder, ao tempo em que se reconhece, em face da
complexidade caracterstica das sociedades atuais e dos grandes espaos
territoriais que circunscrevem os Estados, a impraticabilidade do exerccio do poder
direta e exclusivamente pelo povo.
Corroborando esse entendimento, pontua Bobbio (2006, p. 64) que entre a
democracia representativa e direta no existe um salto qualitativo, como se entre
uma e outra existisse um divisor de guas. Para ele, no so dois sistemas
alternativos (no sentido de que, onde existe uma, no pode existir a outra), mas so
dois sistemas que se podem integrar reciprocamente (BOBBIO, 2004, p. 65).
Nesse vis, a democracia semidireta13 ou participativa desponta como uma das
formas de exerccio da democracia que mais se coaduna com o Estado Democrtico
de Direito. Consolidado no sculo XX e seguido no sculo XXI ao que Paulo
Bonavides intitula sculo do cidado14 - esse modelo concretiza a democracia em
sua real significao de governo do povo, de regime poltico fundado na soberania
13 Nesse sentido: BONAVIDES (2003, p. 345); CANOTILHO (1998, p. 288). 14 O autor faz a seguinte comparao: o sculo XIX foi o sculo do legislador, o XX, o do juiz e, o XXI, ser o do cidado (BONAVIDES, 2006, on line).
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popular e na separao de poderes, ou, na j referida definio de Lincoln, de
governo do povo, pelo povo e para o povo.
No Brasil, a democracia est cristalizada na Constituio Federal de 1988, que,
em seu artigo 1, caput, dispe:
Art. 1 - A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e dos Municpios, e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos [...].
Igualmente, o artigo 2 da Lei Maior preconiza a separao de poderes, ao
preceituar que So poderes da Unio, independentes e harmnicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judicirio, enquanto o artigo 3 estabelece como
objetivos da Repblica Federativa do Brasil a construo de uma sociedade livre,
justa e solidria, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicao da pobreza
e da marginalizao e a reduo das desigualdades sociais e regionais, e a
promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminao, assim como o Ttulo II dispe sobre os
direitos e garantias fundamentais do povo.
Com isso, a Constituio de 1988 imputa ao Estado de Direito brasileiro uma
natureza democrtica, erigindo o povo categoria de titular do poder soberano, e
garantido-lhe o exerccio desse poder por meio da participao ativa nas instncias
pblicas de deciso.
No entender de Martonio Mont Alverne Barreto Lima (2003, p. 233),
a aplicao do ordenamento jurdico brasileiro deve se guiar pela realidade constitucional instalada a partir de 1988, portanto, deve ser aplicado segundo os parmetros de um Estado Democrtico de Direito. Essa determinao, em razo de sua fora histrica normatizada e de sua posio logo no art. 1 da Constituio Federal, impe-se como princpio dos princpios.
Para Jos Afonso da Silva (2002, p. 125), referida normatizao
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revela a criao de um conceito novo que incorpora os princpios daqueles dois tipos de Estados, mas os supera na medida em que agrega um componente revolucionrio de transformao do status quo. E a se entremostra a extrema importncia do art. 1 da Constituio de 1988, quando afirma que a Repblica Federativa do Brasil se constitui Estado Democrtico de Direito, que tem como fundamento a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo poltico [...].
Portanto, a democracia brasileira deve consistir em um processo de
convivncia social, em que o poder emana do povo e por ele deve ser exercido,
juntamente com os seus representantes, e deve ter em sua essncia a participao
e o pluralismo, ambos significando influncia do povo nos processos de deciso do
Estado e respeito multiplicidade de idias, culturas, valores, pensamentos e
opinies.
Tem-se, no Brasil, por conseqncia, a previso de uma democracia
semidireta, ou seja, um misto de representao com formas de participao popular.
1.2.2 Cidadania
1.2.2.1 Definio
Elemento preponderante do Estado Democrtico de Direito a cidadania, a
qual figura, inclusive, como um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil
(artigo 1, II, da Constituio de 1988). Hodiernamente concebida como relao de
pertena do indivduo para com a sociedade, qual se atribui o direito a ter direitos e
o dever de participao ativa, a cidadania foi, outrora, conceituada como mero status
do cidado de possuir direitos e deveres polticos.
Com efeito, em 1949, Thomas H. Marshall, no clssico Cidadania e Classe
social, concebia cidadania como um status, ou seja, como condio de possuir
direitos e algumas obrigaes, a partir da concepo individualista do liberalismo. A
cidadania um status concedido queles que so membros integrais de uma
comunidade. Todos aqueles que so iguais com respeito aos direitos e obrigaes
pertinentes ao status (MARSHALL, 1967, p. 76).
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Marshall estabelecia uma tipologia dos direitos da cidadania, categorizando-os
em direitos civis (conquistados no sculo XVIII), polticos (conquistados no sculo
XIX) e sociais (conquistados no sculo XX):
O elemento civil composto de direitos dos direitos necessrios liberdade individual liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e f, o direito propriedade e de concluir contratos vlidos e o direito justia. [...] Por elemento poltico se deve entender o direito de participar no exerccio do poder, como um membro de um organismo investido da autoridade poltica ou como um eleitor dos membros de tal organismo. [...] O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mnimo de bem-estar econmico e segurana ao direito de participar, por completo na herana social [...] (MARSHALL, 1967, p. 63-34).
Mencionada concepo, reitere-se, detinha cunho individualista, nos moldes da
teoria liberal difundida nas revolues do final do sculo XVIII, como preleciona Ana
Maria Dvila Lopes (2006b, p. 85): Essa concepo individualista do cidado ser
reforada justamente na obra de Marshall, que vai afirmar que o cidado
praticamente no tem obrigaes para com a sua comunidade, salvo em situaes
excepcionais [...].
Repisa a mesma tese Vera de Andrade, que, analisando o conceito tradicional
de cidado, constata haver, na prtica, uma clara reduo da participao poltica ao
momento eleitoral, bem como uma identificao do poder com o poder estatal, o que
se justifica, segundo ela,
porque o conceito liberal de cidadania circunscreve-se ao mbito da representao em detrimento da participao.[...] o que estamos a sustentar que o Estado de Direito sedimentou um conceito restrito de cidadania porque traz em seu bojo um conceito tambm restrito do poder, da poltica e da democracia. Identificando o poder com o poder poltico estatal, a poltica vista como uma prtica especfica, cujo lugar de manifestao s pode ser o Estado e as instituies estatais e cujo objetivo s pode ser a ocupao do poder estatal [...] (ANDRADE, 1998, p. 127).
Entretanto, no mais se pode pensar a cidadania como mera qualidade de
possuir e exercer direitos polticos. Hoje em dia, as expresses cidadania ou
citizenship so empregadas, no apenas para definir pertena a uma determinada
organizao estatal, mas tambm para caracterizar os direitos e os deveres dos
cidados (HABERMAS, 2003, p. 285).
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Somers, citado por Liszt Vieira (2001, p. 35), rejeita o entendimento de que
cidadania consiste em um status, para defini-la como processo formado por uma
rede de relaes e idiomas polticos, do mesmo modo que Turner, tambm
mencionado por Listz, entende cidadania como prtica poltica, econmica e cultural
de uma pessoa da sociedade.
Listz alude, ainda, viso de Janoski, para quem cidadania a pertena
passiva e ativa dos indivduos em um Estado-nao com certos direitos e obrigaes
universais em um especfico nvel de igualdade (VIEIRA, 2001, p. 34), idia que
reivindica uma maior interao entre indivduo e Estado e uma slida atuao
coletiva nas instncias de deciso, como ocorre nos regimes intitulados sociais-
democrticos.
Na mesma linha, J. J. Calmon de Passos (2002, on line) arrola trs dimenses
da cidadania, a saber, poltica, civil e social. Para ele,
ser cidado implica na efetiva atribuio de direitos nas trs esferas mencionadas, porque careceria de sentido participar do governo sem condies de fazer valer a prpria autonomia, bem como sem dispor de instrumentos asseguradores das prestaes devidas, pelo Estado, em nome da igualdade de todos.
Atualmente, tem-se por cidadania o exerccio de determinados direitos, no se
resumindo na pertinncia a uma comunidade estatal ou possibilidade de
manifestar-se periodicamente por meio de eleies [...] (MELO, 1998, p. 78). A
evoluo dos direitos fundamentais foi essencial ao surgimento dessa nova
perspectiva de cidadania, porque constatou-se a ampliao evolutiva do conceito de
cidadania, que passou a compreender os direitos individuais, polticos e sociais, e
mais recentemente os direitos referentes a interesses coletivos e difusos [...]
(MELO, 1998, p. 78).
Faz-se imperiosa, pois, a construo de um novo horizonte para a cidadania
contempornea, significando a transmudao de uma dimenso que engloba
apenas direitos polticos para uma que considere o conjunto de direitos humanos,
institudos e instituintes; da cidadania reduzida representao ou nela esgotada,
cidadania fundada na participao como sua alavanca mobilizadora, o que envolve
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uma conscientizao popular a respeito de sua importncia [...] (ANDRADE, 1998,
p. 132).
Na mesma esteira de entendimento, destaca-se a anlise feita por Pierre
Amorim (2001, on line) de alguns dispositivos constitucionais, com o fito de
demonstrar a inconsistncia do posicionamento segundo o qual somente as pessoas
possuidoras de direitos polticos so cidads.
Exemplo disso a utilizao do termo cidado ou cidadania, pela Constituio da Repblica, em hipteses em que no seria inteligvel exigir-se a qualidade de eleitor como requisito, como no artigo 58, 2, inciso V, artigo 74, 2, e, principalmente, artigo 5, inciso LXXII e artigo 68, 1, inciso II.Quanto aos dois ltimos dispositivos arrolados, o primeiro dispe sobre a gratuidade dos atos necessrios ao exerccio da cidadania, regulado pela lei n. 9.265\96, que considera como atos de cidadania, dentre outros, os pedidos de informaes ao poder pblico, em todos os seus mbitos, objetivando a instruo de defesa ou a denncia de irregularidades administrativas na rbita pblica, bem como quaisquer requerimentos ou peties que visem s garantias individuais e defesa do interesse pblico. Como se v, para praticar ato de exerccio da cidadania e, portanto, ser considerado cidado, no necessrio estar no gozo dos direitos polticos, pois, do contrrio, poder-se-ia pensar que os condenados criminalmente no podem peticionar em defesa de seus direitos individuais ou requerer informaes a rgo pblico. J quanto ao ltimo dispositivo mencionado, h uma melhor distino quanto aos conceitos de cidadania e direitos polticos, quando afirma que no ser objeto de delegao ao Presidente da Repblica a elaborao da legislao pertinente nacionalidade, cidadania, direitos individuais, polticos e eleitorais. (Grifo nosso).
Logo, a cidadania no pode ser compreendida unicamente como a qualidade
de possuir direitos; cuida-se tambm de ao, de participao do povo, de
mobilizao de pessoas imbudas do sentimento de solidariedade. a conscincia
do povo da necessidade de se tomar parte na construo da esfera pblica e no
processo de deciso dos rumos da sociedade.
Nessa diretiva:
A cidadania deve ser concebida como um direito, sendo que, simultnea e paralelamente, a noo de dever deve ser inserida no seu contedo, j que no existem direitos sem seus deveres correlatos. O grande erro da concepo de Marshall foi ter conceituado a cidadania como um status, ou seja, como um estado que, uma vez concedido ao indivduo, no exige nada dele para conserv-lo. A viso esttica e individualista de cidadania deve ser superada, na medida em que a experincia histrica mundial de
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violncia, injustia e desigualdade tem comprovado a necessidade de uma participao mais ativa dos cidados na construo de uma sociedade justa, com base no valor solidariedade, essencial sobrevivncia de qualquer comunidade (LOPES, 2006b, p. 87).
Conclui-se, pois, que, no Estado Democrtico de Direito, no h espao para a
noo esttica e individualista de cidadania. A democracia moderna demanda, antes
de tudo, uma cidadania participativa, na qual aos direitos corresponda sempre
deveres, e em que a participao do povo, enquanto princpio maior da ordem
social, seja diariamente concretizada.
1.2.2.2 Titularidade
A questo de um novo conceito de cidadania perpassa tambm pela
necessidade de reviso de sua titularidade, ou seja, da redefinio de povo.
Jorge Miranda (1998, p. 7), ao precisar a democracia, acentua: Por
democracia entende-se a forma de governo em que o poder atribudo ao povo,
totalidade dos cidados (quer dizer, aos membros da comunidade poltica).
A seu turno, Paulo Bonavides (2003, p. 51) relaciona trs dimenses a partir
das quais o conceito de povo pode ser elaborado: definio poltica, que remete
participao nas decises do povo; definio jurdica, que considera o povo com
base na cidadania preconizada por uma determinada ordem jurdica; e, definio
sociolgica, por meio da qual o povo identificado com a nao.
Do mesmo modo, Pinto Ferreira (1977, p. 380) diferencia o cidado do
nacional:
O conceito de cidado um conceito restrito, devendo, discriminar-se, assim, as duas condies, a condio de cidado e a condio de nacional. So, destarte, duas coisas diferentes, a saber, a nacionalidade e a cidadania. A nacionalidade vincula a pessoa nao, a cidadania o vnculo que associa o indivduo ao Estado, atribuindo-lhe o direito de sufrgio ou o gozo dos direitos polticos [...] O cidado o brasileiro que tem a fruio legal dos direitos polticos.
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Percebe-se, dessa maneira, ainda prevalecer, no Brasil, a concepo clssica
de cidadania ligada nacionalidade. Grande parte da doutrina limita-se a enfocar a
questo sob esse prisma, restringindo a cidadania ao espao territorial da nao e
discorrendo acerca do critrio da nacionalidade, consoante o qual cidado brasileiro
aquele nascido no Brasil.
Contudo, o mundo globalizado e a complexidade das sociedades modernas
demandam uma nova abordagem acerca do assunto, incentivando a busca pela
elaborao de um conceito mais aberto e inclusivo de cidadania15. Nesse prisma,
merece destaque a teoria esposada na obra Quem o povo? A questo
fundamental da democracia, de Friedrich Mller.
Para o autor, o conceito ideal de povo o por ele denominado povo como
destinatrio das prestaes civilizatrias do Estado, assim entendido como todas as
pessoas que esto em um dado territrio, porque, segundo ele, os habitantes no
habitam um Estado, mas um territrio; isso vale tanto para titulares de outras
nacionalidades como aptridas, que pertencem populao residente (MLLER,
2000, p. 76), valendo, ainda, para os que ultrapassam o territrio do respectivo
Estado.
A funo do povo, que um Estado invoca, consiste sempre em legitim-lo. A democracia dispositivo de normas especialmente exigente, que diz respeito a todas as pessoas no seu mbito de demos de categorias distintas [...] No somente as liberdades civis, mas tambm os direitos humanos enquanto realizados so imprescindveis para uma democracia legtima [...] Idia do povo como totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisrios do poder estatal totalidade entendida aqui como a das pessoas que se encontram no territrio do respectivo Estado (MLLER, 2000, p.76-77).
Ao diferenciar as espcies de povo utilizadas para legitimar as constituies, F.
Mller (2000, p. 80) complementa:
ningum est legitimamente excludo do povo-destinatrio. Tambm no, e.g., os menores, os doentes mentais e as pessoas que perdem temporariamente - os direitos civis. Tambm eles possuem uma pretenso normal ao respeito dos seus direitos fundamentais e humanos.
15 Isso, claro, sem que haja malferimento s normas constitucionais.
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E, finalizando, Mller (2000, p. 100) responde ao questionamento principal de
sua pesquisa - quem o povo: Trata-se de todo o povo dos generosos
documentos constitucionais; da populao, de todas as pessoas, inclusive das (at o
momento) sobreintegradas e das (at o momento) excludas.
Desta sorte, se o povo legitima um Estado e constitui a razo de ser desse
Estado, no h como se ter um conceito restrito de povo. Do mesmo modo, no caso
do Brasil, se todo o povo, indistintamente, detentor do poder constituinte,
possuindo o direito de participar diretamente do governo, como preconiza o
pargrafo primeiro do artigo 1 da Constituio, desprovida de razoabilidade
qualquer conceituao que restrinja seu conceito ou limite sua atuao a alguma
esfera, e, por conseqncia, prejudique o exerccio da cidadania.
Sendo o povo titular do poder e, portanto, elemento legitimador do Estado, no
se pode admitir restrio ao direito de participao ativa, e, conseqentemente, do
exerccio da cidadania. Se o Estado existe enquanto representante do povo, e se a
constituio em nome dele elaborada, logicamente que o direito fundamental
participao poltica deve ser garantido a todos, porque a todo aquele que contribui
de algum modo para ampliar o patrimnio pblico brasileiro, e engrandecendo o
Pas, tem o direito de zelar por aquilo que, de certa forma, tambm lhe pertence
(ALMEIDA; ANTONIOLLI, 1997, p. 236). To somente aps essa reformulao,
poder-se- falar realmente em cidadania.
Nesse diapaso, Leonardo Avritzer examina as possibilidades de se ter um
padro de cidadania mundial16 e, conseqentemente, um conceito mundial de povo
-, a partir da anlise das teorias de Giddens, Habermas e Boaventura de Sousa
Santos acerca da globalizao.
Para Avritzer, o fato de se viver hoje em um mundo globalizado torna imperiosa
a construo de uma proteo cidad transnacional, para alm dos limites do Estado
nacional, que ir permitir o florescimento de um mundo da vida transnacional capaz
de se constituir em pano de fundo poltico-cultural para o processo de
16 No mesmo sentido, PAGLIARINI, 2006, p. 25.
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democratizao da expanso dos mercados e dos estados para o nvel
transnacional (AVRITZER, 2002, p. 52).
E conclui, discorrendo sobre a cidadania desterritorializada e a cidadania global
social mnima:
No campo civil e legal esta cidadania se expressaria pelo fato de os direitos legais j terem uma base normativa transnacional expressa no fato de os estados nacionais reconhecerem, no caso dos direitos humanos e dos direitos civis, a sua aplicao aos cidados no interior do Estado nacional. Desse modo, o elemento ps-nacional passa a estar ligado a uma dimenso normativa j presente na era dos estados nacionais, mas ir, apenas agora, adquirir uma formulao legal ps-nacional (AVRITZER, 2002, p. 53).
Partilha essa mesma tese Jean Cohen, citado por Leonardo Avritzer (2002, p.
53), que afirma ser necessria a superao do conceito de cidadania, a fim de que
todos os habitantes de um Estado sejam considerados cidados, assim como Liszt
Vieira (2002, p.31-32), ao abordar a questo da cidadania planetria:
Recentes concepes mais democrticas procuram dissociar completamente a cidadania da nacionalidade. A cidadania teria, assim, uma dimenso puramente jurdica e poltica, afastando-se da dimenso cultural existente em cada nacionalidade. A cidadania teria uma proteo transnacional, como os direitos humanos. Por esta concepo, seria possvel pertencer a uma comunidade poltica e ter participao independentemente da questo da nacionalidade.
E, ainda, Jrgen Habermas (2003, p. 304):
No quadro da constituio de um Estado democrtico de direito, podem coexistir, em igualdade de direitos, variadas formas de vida. Elas devem, no entanto, entrelaar-se no espao de uma cultura poltica comum, a qual est aberta a impulsos oriundos de novas formas de vida.Somente uma cidadania democrtica, que no se fecha num sentido particularista, pode preparar o caminho para um status de cidado do mundo, que j comea a assumir contornos em comunicaes polticas de nvel mundial.
O mesmo entendimento j fora defendido pela autora deste trabalho (JUC,
2003, p. 80), ao tratar do conceito de cidado previsto na Lei n 4.717/65, que dispe
acerca da legitimidade ativa para a propositura de ao popular.
Aludida abordagem justificou-se no fato de a doutrina e jurisprudncia ptrias
manifestarem-se no sentido de considerar cidado apto propositura da ao
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popular apenas o eleitor, como mostram, por exemplo, as ementas abaixo
colacionadas:
PROCESSUAL CIVIL EMBARGOS DE DECLARAO AO POPULAR FALTA DE COMPROVAO DA QUALIDADE DE CIDADO (CPIA DE TTULO DE ELEITOR) ART. 1, 3 DA LEI 4.717/65 EXTINO DO PROCESSO NO SEGUNDO GRAU DE JURISDIO AUSNCIA DE CONDIO DA AO ART. 13 DO CPC: INAPLICABILIDADE ERRO MATERIAL QUE SE CORRIGE. 1. Indicao equivocada de que o julgamento teria ocorrido por maioria por considerar como voto vencido a manifestao do advogado de uma das partes. Erro material que se corrige para afastar-se a concluso de que ocorreu cerceamento de defesa e desobedincia ao art. 530 do CPC. 2. Tese em torno da aplicao dos arts. 13 e 284 do CPC analisadas expressamente pelo Tribunal a quo, o que afasta a negativa de vigncia do art. 535 do CPC. 3. O art. 5, LXIII da CF/88 e o art. 4.717/65 estabelecem que somente o cidado tem legitimidade ativa para propor ao popular. 4. Consideram-se cidados os brasileiros natos ou naturalizados e os portugueses equiparados no pleno exerccio dos seus direitos polticos. 5. Tratando-se a legitimidade ativa de condio da ao e no representao processual, afasta-se a aplicao dos arts. 13 e 284 do CPC, no sendo possvel permitir que a parte traga aos autos cpia do ttulo eleitoral ou documento que a ele corresponda.Correta extino do feito sem julgamento do mrito. 6. Embargos de declarao acolhidos, com efeitos modificativos, para negar provimento ao recurso especial. (Embargos Declaratrios no Recurso Especial n 538.240/MG. Rel. Mina. Eliana Calmon, Segunda Turma do Superior Tribunal de Justia, julgado em 17/04/07).
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. AO POPULAR. LEGITIMIDADE. TTULO DE ELEITOR. I - A ao popular destina-se a anular ato lesivo ao patrimnio pblico ou de entidade de que o Estado participe, moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimnio histrico e cultural, sendo legtimo para prop-la qualquer cidado, devendo ser comprovado estar no gozo de seus direitos polticos por meio do ttulo de eleitor, no bastando a apresentao da carteira de identidade ou do CPF para suprir tal falha, at mesmo porque aqueles que perderam seus direitos polticos ou esto com seus direitos suspensos no detm legitimidade para propor ao popular. II - No tendo o autor demonstrado a condio de cidado por meio do ttulo de eleitor, este no parte legtima a figurar no plo ativo da demanda. Remessa de ofcio improvida.(Remessa de ofcio n 0020150081800. Rel. Jeronymo de Souza, Terceira Turma Cvel do Tribunal de Justia do Distrito Federal e dos Territrios, julgado em 12/05/03).
Em razo disso, sustentou-se, na oportunidade, a necessidade de reviso do
termo, mormente em razo de seu carter restritivo:
De fato, permitir que apenas os eleitores ajuzem ao popular desconsiderar a importncia da participao poltica dos no eleitores e dos estrangeiros. Ora, as normas jurdicas no se destinam apenas aos eleitores, da mesma forma que no apenas eles os eleitores - tm deveres perante a sociedade e o Estado. Ento, se no-eleitores e estrangeiros so destinatrios das normas jurdicas, pagam os tributos e cumprem outros deveres, como os nacionais eleitores, qual o motivo dessa limitao? Por que vedar essa forma de
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participao poltica a no eleitores e estrangeiros, se eles tambm vivem e territrio nacional como os demais e integram o conceito de povo? No se tem explicao plausvel para a restrio em questo. Principalmente se for considerado que o povo, titular do poder constituinte, o conjunto de toda as pessoas residentes em um Estado. [...] Ademais, no se pode esquecer da condio humana como critrio de legitimao poltica. Na verdade, a condio de ser humano o argumento mais sensato para que se amplie o rol dos legitimados da ao popular. Porque, antes de serem nacionais e eleitores, os cidados so seres humanos, titulares de direitos fundamentais17, como o direito participao poltica, que refletem a dignidade humana. Ou seja, um estrangeiro e um no eleitor no so menos humanos que um eleitor, razo pela qual devem ter assegurado o direito de participao poltica da mesma forma que o eleitor o tem (JUC, 2003, p. 79).
Destarte, nos dias hodiernos, entremostra-se inadmissvel um conceito limitado
de povo, sendo inaceitvel tanto o fato de que apenas o exerccio de direitos
polticos seja considerado cidadania, como que esta seja restrita aos nacionais. A
clssica idia de cidadania no se coaduna com os princpios garantidores dos
direitos fundamentais, nem se amolda ao esprito da Constituio de 1988, que
assegura ao povo um Estado Democrtico de Direito.
2 A PARTICIPAO POPULAR COMO DIREITO FUNDAMENTAL
2.1 Direitos Fundamentais
No captulo anterior, a abordagem acerca da evoluo do Estado abrangeu as
etapas histricas da conquista dos direitos fundamentais do homem. Neste, o exame
especfico do direito fundamental participao popular requer sejam tecidas
consideraes preliminares sobre a definio desses direitos.
17 Ressalte-se que a titularidade dos direitos fundamentais no se limita aos seres humanos; as pessoas jurdicas tambm so titulares de direitos fundamentais.
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2.1.1 Definio
Muitos autores conceituam direitos fundamentais a partir da distino entre os
critrios formal e material de tais direitos. Carl Schmitt, por exemplo, considera-os
ora como os direitos assim denominados pela constituio ou como aqueles dotados
de um grau mais elevado de segurana (critrio formal), ora como os valores
ideolgicos de uma determinada constituio, em uma dada poca (critrio material),
como explicita Paulo Bonavides (2006, p. 561).
Jorge Miranda tambm parte dessa categorizao. Para ele, o conceito formal
de direitos fundamentais aquele que os considera como toda posio jurdica
subjetiva prevista na lei fundamental, ao passo que o conceito material consiste
naquele que leva em conta as idias da constituio, de Direito e do sentimento
jurdico coletivo (valores pr-constitucionais), a saber, aqueles inerentes ao homem
e que refletem sua dignidade, sendo direitos bsicos das pessoas, como os direitos
que constituem a base jurdica da vida humana no seu nvel actual de dignidade
(MIRANDA, 1998, p. 11).
Desta feita, os direitos fundamentais retratam proposies jurdicas que
asseguram uma vida com dignidade, liberdade e igualdade entre as pessoas, ou
seja, so os direitos sem os quais o homem no vive, no convive e, em alguns
casos, no sobrevive (BULOS, 2007, p. 401).
Para Ingo Sarlet (2004, p. 89):
Direitos fundamentais so, portanto, todas aquelas posies jurdicas concernentes s pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu contedo e importncia (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituio e, portanto, retiradas da esfera da disponibilidade dos poderes constitudos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu contedo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se Constituio material [...].
No obstante a variedade de concepes, opta-se pelo conceito de direitos
fundamentais que os trata como princpios constitucionais legitimadores do Estado,
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reveladores da dignidade humana de uma dada sociedade, em um determinado
perodo.
Nesse sentido, manifesta-se Dvila Lopes (2001b, p. 35): Os direitos
fundamentais podem ser definidos como os princpios jurdica e positivamente
vigentes em uma ordem constitucional que traduzem a concepo de dignidade
humana de uma sociedade e legitimam o sistema jurdico estatal.
Direito fundamentais so, portanto, aqueles direitos bsicos da pessoa
humana, intrnsecos sua dignidade, preconizados na constituio de um Estado
especfico, em um dado perodo histrico.
Essa idia de dignidade humana como valor social delimitado no espao e no
tempo enfatizada por Dvila Lopes (2001a, p. 39):
Os direitos fundamentais, como normas principiolgicas legitimadoras do Estado que traduzem a concepo da dignidade humana de uma sociedade -, devem refletir o sistema de valores ou necessidades humanas que o homem precisa satisfazer para ter uma vida condizente com o que ele . Com efeito, os direitos fundamentais devem exaurir a idia de dignidade humana, porm no mais uma idia de dignidade associada a uma natureza ou essncia humana entendida como um conceito unitrio e abstrato, mas como um conjunto de necessidades decorrentes da experincia histrica concreta da vida prtica e real.
Assim, os direitos fundamentais so prescries que espelham a idia de
dignidade da pessoa humana, seja porque resguardam valores mnimos
indispensveis a uma vida digna, seja porque constituem um meio de defesa do
homem perante o Estado e os particulares.
A dignidade humana afigura-se como nota caracterizadora de um direito
fundamental, em termos de contedo. Por isso, defender e lutar pela garantia de um
direito fundamental pugnar, primordialmente, pelo respeito dignidade humana,
sendo esta concebida como atributo intrnseco, da essncia, da pessoa humana
(SILVA, 2002, p. 146), que, na viso de Ingo Sarlet (2002, p. 62), consiste na
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[...] qualidade intrnseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condies existenciais mnimas para uma vida saudvel, alm de propiciar e promover sua participao ativa e co-responsvel nos destinos da prpria existncia e da vida em comunho com os demais seres humanos.
Na Constituio Brasileira, a dignidade humana est insculpida no artigo 1,
inciso III, como fundamento do Estado Democrtico de Direito:
Art. 1 - A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: [...]
III - a dignidade da pessoa humana.
Em sendo a essncia dos direitos fundamentais, a dignidade humana
entremostra-se tambm como valor supremo do ordenamento jurdico; [...] constitui
valor-guia no apenas dos direitos fundamentais mas de toda a ordem jurdica
(constitucional e infraconstitucional)[...] (SARLET, 2002, p. 74), sendo, pois, o
princpio constitucional de maior valor18.
2.1.2 Caractersticas e classificao
Sobre as marcas caracterizadoras dos direitos fundamentais, pronuncia-se
Dvila Lopes (2001b, p. 37), listando cinco caractersticas: a) funo dignificadora,
na medida em que eles tm por escopo a preservao do valor dignidade humana;
b) natureza principiolgica, vez que os direitos fundamentais so princpios, espcie
do gnero norma; c) elementos legitimadores, porque tais direitos legitimam o
Estado; d) normas constitucionais, considerando que os direitos fundamentais so
aqueles previstos constitucionalmente; e, e) historicidade, por refletirem os valores
de uma determinada sociedade, em um dado lapso temporal.
J a respeito da classificao, a doutrina constitucional apresenta critrios
divergentes. H autores que se limitam a distingui-los sob a perspectiva histrica das