o desafio da bimusicalidade - mantle hood

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O desafio da “bi-musicalidade” 1 Mantle Hood (Tradução 2 : José Alberto Salgado) No mundo da música, ouve-se falar às vezes do mecânico altamente habilidoso que se imagina um intérprete, do inventor sagaz que se faz passar por compositor, do historiador diligente que acredita ser um musicólogo e do educador profissional que confunde método com música. Com o risco de simplificar demais, digamos pelo menos que todos esses diversos representantes do campo da música parecem ter um traço em comum – uma falta de musicalidade. E o que queremos dizer com “musicalidade”? Primeiro, notemos que o Harvard Dictionary of Music espertamente pula de “Musical Glasses” para “Musical offering”, e sendo assim – novamente com o risco de simplificar demais – passemos ao Webster’s Unabridged Dictionary, onde “musicality” é definida como “musicalness”, uma forma substantivada do adjetivo “musical”, sob o qual, afinal, a definição número três pode ser citada: “Que gosta de, ou é apreciador inteligente de, música (…); que tem uma aptidão natural para a música”. Embora a essa altura possamos ver certa sabedoria no procedimento adotado pelo Harvard Dictionary, vamos presumir que uma aptidão natural para a música é essencial para o músico. O estudo e treinamento básico que desenvolve a musicalidade é conhecido por vários nomes: musicalização (“musicianship”), fundamentos da música, solfejo. Nunca ouvi um músico dizer que este sine qua non deve ser ignorado, que o iniciante deva começar pela análise musical ou praticando a crítica. O treinamento dos ouvidos, dos olhos, das mãos e da voz, e a fluência que se ganha nessas habilidades garantem uma compreeensão real dos estudos teóricos, que por sua vez preparam o caminho para as atividades profissionais do intérprete, compositor, musicólogo e educador musical. Talvez não seja necessário lembrar ao leitor que estamos falando do mundo da música, que o treinamento em musicalização básica (“musicianship”) de um tipo ou de outro é característico da música culta onde quer que se a encontre, e até certo ponto está presente inconscientemente na prática da música não-estudada. Pode ser um alívio para o estudante de música do Ocidente saber que o estudante chinês, javanês ou indiano também deve passar por uma corrida de obstáculos musicais. Mas se esse tipo de treinamento é de fato essencial, o músico ocidental que deseja estudar a música do Oriente e o músico oriental que se interessa pela música ocidental enfrentam ambos o desafio da “bi-musicalidade”. (…) 1 Comunicado no Quarto Encontro Anual da Society for Ethnomusicology, em Chicago, 29 e 30 de dezembro, 1959. Publicado em Ethnomusicology, vol.4, n.2, p.55-59, 1960. 2 Foi feita tradução parcial, com seleção de trechos do comunicado que pudessem apresentar mais geralmente a proposta teórico-metodológica de Hood, omitindo-se outras partes com detalhamento de nomenclatura e técnica musical, que o autor utilizou para exemplificar em contextos específicos e sublinhar seus argumentos.

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O desafio da “bi-musicalidade”1

Mantle Hood(Tradução2: José Alberto Salgado)

No mundo da música, ouve-se falar às vezes do mecânico altamente habilidosoque se imagina um intérprete, do inventor sagaz que se faz passar por compositor, dohistoriador diligente que acredita ser um musicólogo e do educador profissional queconfunde método com música. Com o risco de simplificar demais, digamos pelo menosque todos esses diversos representantes do campo da música parecem ter um traço emcomum – uma falta de musicalidade. E o que queremos dizer com “musicalidade”?Primeiro, notemos que o Harvard Dictionary of Music espertamente pula de “MusicalGlasses” para “Musical offering”, e sendo assim – novamente com o risco de simplificardemais – passemos ao Webster’s Unabridged Dictionary, onde “musicality” é definidacomo “musicalness”, uma forma substantivada do adjetivo “musical”, sob o qual, afinal,a definição número três pode ser citada: “Que gosta de, ou é apreciador inteligente de,música (…); que tem uma aptidão natural para a música”.

Embora a essa altura possamos ver certa sabedoria no procedimento adotado peloHarvard Dictionary, vamos presumir que uma aptidão natural para a música é essencialpara o músico.

O estudo e treinamento básico que desenvolve a musicalidade é conhecido porvários nomes: musicalização (“musicianship”), fundamentos da música, solfejo. Nuncaouvi um músico dizer que este sine qua non deve ser ignorado, que o iniciante devacomeçar pela análise musical ou praticando a crítica. O treinamento dos ouvidos, dosolhos, das mãos e da voz, e a fluência que se ganha nessas habilidades garantem umacompreeensão real dos estudos teóricos, que por sua vez preparam o caminho para asatividades profissionais do intérprete, compositor, musicólogo e educador musical.

Talvez não seja necessário lembrar ao leitor que estamos falando do mundo damúsica, que o treinamento em musicalização básica (“musicianship”) de um tipo ou deoutro é característico da música culta onde quer que se a encontre, e até certo ponto estápresente inconscientemente na prática da música não-estudada. Pode ser um alívio para oestudante de música do Ocidente saber que o estudante chinês, javanês ou indianotambém deve passar por uma corrida de obstáculos musicais. Mas se esse tipo detreinamento é de fato essencial, o músico ocidental que deseja estudar a música doOriente e o músico oriental que se interessa pela música ocidental enfrentam ambos odesafio da “bi-musicalidade”.

(…)

1 Comunicado no Quarto Encontro Anual da Society for Ethnomusicology, em Chicago, 29 e 30 dedezembro, 1959. Publicado em Ethnomusicology, vol.4, n.2, p.55-59, 1960.2 Foi feita tradução parcial, com seleção de trechos do comunicado que pudessem apresentar maisgeralmente a proposta teórico-metodológica de Hood, omitindo-se outras partes com detalhamento denomenclatura e técnica musical, que o autor utilizou para exemplificar em contextos específicos e sublinharseus argumentos.

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O desafio inicial, certamente, é o desenvolvimento de uma capacidade paraescutar. A tendência dos ocidentais para “corrigir” intervalos não-familiares, usualmentesem consciência desse procedimento, pode ser corrigida ela mesma somente porexposição repetida à escuta e por meio do canto. Esse estágio inicial de treinamento sedirige à percepção auditiva mais do que à produção vocal, esta envolvendo problemasespeciais a serem considerados em seguida. Ao liberar sua percepção auditiva, oestudante que não tem nenhum treinamento anterior pode levar uma ligeira vantagemsobre o estudante avançado de música; mas o fator mais importante nessa conexão éprovavelmente a definição minima do Webster para “musicalidade” – uma aptidãonatural para a música. O preconceito cujo condicionamento é mais difícil de superar entremúsicos ocidentais é o sentido do ouvido absoluto. Um tal indivíduo deve chegar acompreender que, num mundo de infllexões microtonais, o seu senso de afinação é naverdade imperfeito. A menos que consiga deixar de lado seu padrão preconceituoso, eleterá que deixar o campo para aqueles que sabem dar uma abordagem mais democrática aomundo do som.

Na fase inicial de treinamento, métodos tradicionais de imitação e aprendizagempor memorização [“by rote”] são bem mais compensadores que o uso da notação, emrelação tanto ao tempo como à retenção. Mesmo no gagaku japonês, onde livros departituras bastante detalhados são acompanhados pelos músicos, uma peça nova éaprendida de início cantando-se as partes dos instrumentos. O gamelão javanês e balinêsnunca é tocado a partir de notação; o estudante canta e toca simultaneamente enquantoaprende uma peça frase por frase. A pessoa sem treinamento musical prévio mais umavez leva vantagem sobre o estudante de música que sente falta da página impressa e que,no começo, acha frustrante não poder “ver” para onde está indo. A fim de evitarbloqueios psicológicos, aos estudantes que são novatos nesses estudos dá-se amplaoportunidade de demonstrar para si mesmos a validade de métodos tradicionais. Porexemplo, no início do ano acadêmico, quando cinquenta por cento ou mais do grupo é derecém-chegados, entrega-se, a cada um, uma peça em notação cifrada. Depois de umanoite inteira de ensaio sobre essa peça, todos (a não ser os mais experientes) se sentemconfiantes de conhecê-la bem. No ensaio seguinte, a notação é retirada, e então começa adiversão. Caracteristicamente, todos iniciam com força, mas após umas poucas frases, amemória falha e por fim a peça claudica e morre. Nesse ponto, são sugeridos métodostradicionais. Se uma maioria ainda prefere usar a notação, o experimento é repetido. Noensaio seguinte, um começo confiante, um olhar confuso quando a peça repentinamentedesenvolve variações, e finalmente todos concordam que vale a pena tentar alguma outraabordagem. Nós músicos no Ocidente somos deficientes em memória tonal, e tambémnão temos a prática de memorizar as peças a partir da página impressa. Por meio demétodos imitativos, uma melodia razoavelmente complexa e longa pode ser aprendida emuma noite e retida por um número indefinido de anos. Recentemente um ex-membro dogamelão javanês retornou depois de uma ausência de três anos. Para seu assombro, asantigas melodias ainda estavam frescas em sua mente.

Esse tipo de treinamento aguça a percepção auditiva, desenvolve a memória tonale começa a liberar o músico ocidental, com seu condicionamento, da dependência de umregente visível. Movimentos de braço e mão não são usados pelo professor, mas apenas osom de palmas metrificadas ou percussão básica, de modo que desde o início o estudantedeve confiar inteiramente em seu ouvido como guia. Mais tarde, quando a melodia

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javanesa se torna apenas um fio na tapeçaria polifônica de quinze ou vinte estratos desom, o estudante deve ser capaz de acompanhar as pulsações básicas que governam oconjunto inteiro.

O elemento de ritmo na música não-ocidental apresenta outro tipo de desafio parao novato. No gamelão javanês, o ouvido deve seguir ritmos cruzados, tocados por um parde tambores masculino e feminino, enquanto a mão executa uma parte de um outro par deritmos cruzados. O estudante deve ser capaz de perceber sinais breves de tambor paramudanças abruptas de tempo ou dinâmica, assim como seguir um rubato executado porum conjunto de trinta integrantes. No gamelão javanês, o princípio de estratificaçãoapresenta muitas camadas de ritmos cruzados; e quando o tambor de dança [“dancedrum”] e o keprak (um tipo de bloco de madeira) acompanham a dança, produzem umritmo em volume alto, claro e às vezes amétrico, contra as pulsações regulares do resto doconjunto. No gagaku japonês, os longos intervalos de tempo do taiko (um tambor de somprofundo) subdivididos pelo kakko (um pequeno tambor em forma de ampulheta) e oshoko (um pequeno gongo) parecerão ao iniciante como sons aleatórios no conjunto.Uma gravação de gagaku em LP, acelerada para 78 rotações por minuto, convencerá onovato de que esses instrumentos formam uma estrutura métrica regular. A música persarequer um bom ouvido imitativo para registrar o espírito tradicional de seu metro livre.No estudo da música indiana, o estudante descobre que deve aprender um vocabuláriocomplexo de sons de tambores, chamados bols, que formam a base da improvisação datala.

As exigências técnicas de articulação oral ou manual variam em grau, de uminstrumento para outro, mas até o mais simples deles requer uma quantidadesurpreendente de estudo. Normalmente o iniciante leva alguns meses para acreditar nomúsico experiente que diz que não é coisa fácil aprender a bater um gongo ou umalâmina de metal da maneira certa. O relato a seguir pode ilustrar este ponto. Uma amigachinesa-indonésia me contou que antes da ocupação japonesa sua família possuía um belo[instrumental de] gamelão. Um dos membros de sua família, muito devotada àsperformances noturnas de gamelão, era seu avô cego, que sempre sabia dizer na primeirabatida do grande gongo quem, dentre vários músicos, o estava tocando.

(...)

A conquista que coroa o estudo de música oriental é a fluência na arte daimprovisação. Isto só é possível depois que o estudante se torna proficiente nasexigências técnicas da arte, de modo a ficar livre para seguir as invenções musicais de suaprópria imaginação. É desnecessário dizer que suas invenções devem ser guiadas atravésdo labirinto de regras tradicionais que governam a improvisação. Estas podem serconscientemente aprendidas mas só podem ser usadas artisticamente quando a tradiçãointeira foi assimilada. Isto significa uma compreensão e um “insight” a respeito não só damúsica e das artes relacionadas, mas também de idioma, religião, costumes, história –noutras palavras, da identidade completa de uma sociedade da qual a música, ainda queseja uma parte muito importante, é apenas uma parte.

Nessa altura, pode-se perguntar quão longe um músico ocidental pode ir nocaminho dos estudos de música oriental. Minha resposta a esta questão é: “tão longequanto seu objetivo o leve”. Se seu desejo é compreender uma expressão musical

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particular do Oriente, de modo que suas análises e observações como musicólogo nãosejam vistas como embaraçosas, ele terá que persistir nos estudos práticos até que suamusicalização básica esteja assegurada. Se ele escolher se tornar um cantor ouinstrumentista profissional competindo com outros no país de seu estudo (e estapossibilidade me parece remota), ele terá que persistir nos estudos práticos bem além damusicalização básica, até alcançar status profissional. Talvez a melhor resposta para apergunta “Quão longe ele pode ir?” seja “De quanto tempo ele dispõe?” Os grupos deestudo de performance na U.C.L.A. são uma atividade extra-curricular. Considerando aquantidade relativamente pequena de tempo que é dedicado a esses estudos práticos,parece seguro dizer que, pela compreensão e a performance, o estudante[norte]americano tem um verdadeiro potencial no estudo de música não-ocidental.

Uma questão que me parece implícita no título dado a este artigo aparece emconexão com o termo “bi-musicalidade”. Mencionei anteriormente a música do ocidente(“Western music”), a qual desalojou a música indígena, tida como evidência de uma“musicalidade alternativa”. Na U.C.L.A. temos vários estudantes avançados de pós-graduação que lidam de maneira muito capaz com várias culturas musicais diferentes.Devemos então falar de “tri-musicalidade” ou “tetra-musicalidade”? Talvez cheguemosmais perto do núcleo do assunto se voltarmos à definição básica do Webster e mudarmoso título deste artigo simplesmente para “O Desafio da Musicalidade”.

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(Tradução feita por José Alberto Salgado e Silva, em janeiro de 2011, e disponibilizada exclusivamentepara usos de estudo e pesquisa)