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MESTRADO
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
O Democrático – oposição à Ditadura Militar/Estado Novo e representações de Vila do Conde (1926-1936) Cláudia Alexandra Neves Vieira
M 2019
Cláudia Alexandra Neves Vieira
O Democrático – oposição à Ditadura Militar/Estado Novo e as
representações de Vila do Conde (1926-1936)
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História Contemporânea, orientada pela
Professora Doutora Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Setembro de 2019
O Democrático – oposição à Ditadura Militar/Estado Novo e
representações de Vila do Conde (1926-1936)
Cláudia Alexandra Neves Vieira
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História Contemporânea, orientada pela
Professora Doutora Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira
Membros do Júri
Professor Doutor Jorge Fernandes Alves
Faculdade de Letras – Universidade do Porto
Professor Doutor Gaspar Manuel Martins Pereira
Faculdade de Letras – Universidade do Porto
Professora Doutora Maria da Conceição Coelho de Meireles Pereira
Faculdade de Letras – Universidade do Porto
Classificação obtida: 18 valores
À minha avó Amélia.
Sumário
Declaração de honra ....................................................................................................... 9
Agradecimentos ............................................................................................................ 10
Resumo .......................................................................................................................... 11
Abstract ......................................................................................................................... 12
Introdução ..................................................................................................................... 13
1. O Democrático – história de um periódico republicano ........................................ 18
1.1. Fundação e papel enquanto órgão do Partido Republicano Português .................... 18
1.2. Características gerais, equipes diretivas e editores .................................................. 20
1.3. Órgão da reação republicana à Ditadura Militar e ao Estado Novo ........................ 23
1.4. A morte de O Democrático ..................................................................................... 24
2. Das origens da Ditadura Militar aos primeiros anos de afirmação do Estado Novo
– breve contextualização histórica .............................................................................. 28
2.1. Do golpe de Estado à instauração e queda da Ditadura Militar............................... 28
2.2. O Estado Novo – a formação da nova ordem .......................................................... 36
2.2.1. A ascensão de Salazar........................................................................................... 36
2.2.2. Ideário e mecanismos de afirmação do salazarismo ............................................. 38
3. O 28 de Maio e a Ditadura Militar – a posição de O Democrático ....................... 43
3.1. O golpe armado e a oposição à Ditadura Militar e seus governantes ...................... 43
3.2. A crítica aos monárquicos e o apelo à união dos republicanos ............................... 58
3.3. A crítica ao Integralismo Lusitano .......................................................................... 66
3.4. O apoio ao movimento reviralhista ......................................................................... 69
4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-1936) e críticas ao
Estado Novo .................................................................................................................. 75
4.1. Salazar e as Finanças ............................................................................................... 75
4.2. A crise do trabalho ................................................................................................... 79
4.3. A ética republicana face aos valores do regime ditatorial ....................................... 83
4.3.1. Catolicismo e laicidade ......................................................................................... 83
4.3.2. “Educar, eis o problema!” .................................................................................... 86
4.3.3. Recusa do nacionalismo exacerbado .................................................................... 94
4.3.4. A permanente defesa dos valores democráticos ................................................... 97
7
4.3.5. A oposição do semanário ao Movimento Nacional Sindicalista ........................ 100
4.4. Praxis política do Estado Novo – crítica ao regime repressivo ............................. 103
4.4.1. União Nacional ................................................................................................... 103
4.4.2. Constituição de 1933 .......................................................................................... 106
4.4.3. Censura ............................................................................................................... 107
4.4.4. Polícia Política .................................................................................................... 109
5. A reação republicana ao Estado Novo – o apoio de O Democrático à luta contra a
Situação ....................................................................................................................... 113
5.1. Figuras republicanas – Afonso Costa .................................................................... 113
5.2. Aliança Republicana e Socialista .......................................................................... 115
6. O Democrático e as representações de Vila do Conde ......................................... 119
6.1. Características e potencialidades da vila ............................................................... 119
6.1.1. A beleza e singularidade da beira-mar e paisagem............................................. 119
6.1.2. O património histórico, monumental e artístico ................................................. 121
6.1.3. Tradição e cultura em Vila do Conde ................................................................. 123
6.2. Carências, atrasos e problemas regionais .............................................................. 127
6.3. Principais melhoramentos e reivindicações locais ................................................ 130
6.3.1. A importância da conservação e embelezamento da zona balnear para a promoção
da atividade turística ..................................................................................................... 130
6.3.2. Os deficientes cuidados de higiene: uma ameaça à saúde pública ..................... 133
6.3.3. A questão da linha telefónica: ligar Vila do Conde ao Porto ............................. 140
6.3.4. “Trevas, não. Luz, sim” ...................................................................................... 147
6.3.5. Água potável e saneamento básico ..................................................................... 151
6.3.6. A degradação do porto e da barra numa terra de marinheiros ............................ 156
6.3.7. Reorganização e aproveitamento das potencialidades das feiras locais ............. 159
6.3.8. “O Hospital vai fechar?”..................................................................................... 162
6.3.9. O flagelo da mendicidade ................................................................................... 166
Conclusão .................................................................................................................... 171
Fontes ........................................................................................................................... 177
Bibliografia .................................................................................................................. 178
Anexos .......................................................................................................................... 181
Anexo 1 – “Ao Começar”. O Democrático, nº 1, 18/05/1913, p. 1. ............................ 182
Anexo 2 – “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. ....................... 183
Anexo 3 – “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. ............................. 184
8
Anexo 4 – “O Perigo”. O Democrático, nº 647, 08/11/1926, p. 1. ........................... 185
Anexo 5 – GUSMÃO, Duarte Vilhena – “Sufrágio Universal”. O Democrático, nº 867,
12/06/1931, p. 1. ....................................................................................................... 186
Anexo 6 – GUSMÃO, Duarte de Vilhena – “A mocidade académica e a política”. O
Democrático, nº 878, 11/09/1931, p. 1. .................................................................... 187
Anexo 7 – GUSMÃO, Duarte de – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932,
p. 1. ........................................................................................................................... 188
Anexo 8 – PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p.
1. ............................................................................................................................... 189
Anexo 9 – ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático,
nº 2030, 30/10/1936, p. 1. ......................................................................................... 190
Anexo 10 – “Problemas a resolver”. O Democrático, nº 765, 26/04/1929, p. 1. ..... 191
Anexo 11 – SILVESTRE, Rosa – “Vila do Conde civilizada?!”. O Democrático, nº
921, 22/07/1932, p. 1. ............................................................................................... 192
9
Declaração de honra
Declaro que a presente tese é de minha autoria e não foi utilizado previamente noutro
curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores
(afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e
encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo
com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-
plágio constitui um ilícito académico.
Porto, 25 de novembro de 2019
Cláudia Alexandra Neves Vieira
10
Agradecimentos
A elaboração desta dissertação de mestrado contou com fundamentais apoios e
incentivos sem os quais não se teria tornado uma realidade e aos quais ficarei eternamente
grata.
Um agradecimento especial à Professora Doutora Conceição Meireles Pereira,
pela sua orientação exemplar pautada pelo rigor, pelo total apoio e irrestrita
disponibilidade. O conhecimento que transmitiu, as opiniões e críticas com que contribuiu
e a absoluta colaboração na resolução de problemas e dúvidas que surgiram, foram
verdadeiramente fundamentais para concretização deste estudo.
Ao professor José Emídio Lopes pela importante cedência de bibliografia
fundamental para esta investigação, pelos conselhos e pela disponibilidade.
À Isabel, minha amiga e colega de percurso académico, que esteve sempre do meu
lado durante esta fase, com paciência, sentido de companheirismo e disponível para
ajudar em todos os momentos, especialmente nos mais difíceis.
Ao Bruno, por ser a retaguarda de todas as opções, pela confiança inabalável que
depositou em mim neste desafio a que me propus, pelas palavras de incentivo e pelos
incontáveis abraços apertados de força.
À minha família pelo apoio absoluto que sempre demonstrou perante a minha
vontade de realizar os meus objetivos académicos, pela incomensurável generosidade e
pela compreensão.
11
Resumo
O presente estudo tem como objetivo analisar o periódico republicano vila-
condense O Democrático (fundado em 1913) no decénio final da sua existência – 1926-
1936 – percecionando as suas representações de Vila do Conde mas também o ambiente
de profunda transformação política que o país então vivia, desde a eclosão do golpe
militar do 28 de Maio aos primeiros anos de afirmação do Estado Novo.
Pretende-se, assim, além de estabelecer as características fundamentais deste
semanário – desde sempre alinhado pelo Partido Republicano Português/Partido
Democrático –, perceber a sua visão sobre Vila do Conde, a sua gestão municipal, bem
como as suas potencialidades e vulnerabilidades num quadro socioeconómico, político e
cultural na década em destaque, perscrutando nas suas críticas e propostas a ideologia
fundamental que o orientava. Esta observação à escala local é precedida de uma análise
a nível da política nacional, visando compreender os parâmetros de reação versus
aceitação do jornal relativamente ao processo de mudança de paradigma político – do
liberal ao ditatorial – que o país então viveu, na junção da crise política nacional e
económica mundial, e destacar as formas de afirmação democrático-republicana do
semanário até à sua extinção, à semelhança de tantos outros títulos da imprensa
democrática em Portugal, no ano de 1936.
Palavras-chave: O Democrático, Vila do Conde, Ditadura Militar, Estado Novo,
resistência republicana
12
Abstract
The main purpose of this research is to analyze Vila do Conde’s republican
newspaper O Democrático (founded in 1913) in its final decade of existence – 1926-1936
– perceiving its representations of Vila do Conde as well as the environment of deep
political transformation that the country endured, since the military coup that occurred on
May 28th 1926 until the first years of the Estado Novo’s (New State’s) ruling.
Therefore, it is intended to, besides establishing the fundamental features of this
newspaper – since its beginning aligned with the Portuguese Republican
Party/Democratic Party –, understand its vision about Vila do Conde, its local authority
management, as well as its potentialities and vulnerabilities in a socioeconomic, political
and cultural framework during the highlighted decade, peering in its criticism and
proposals the fundamental ideology that guided the newspaper. This observation on a
local scale is preceded with an analysis of the national policy, aiming to understand the
newspaper’s reaction parameters versus its acceptance regarding the political paradigm
change – from liberal to dictatorial – that the country lived, in the midst of both the
national political crisis and the world economic crisis, and highlight the newspaper’s
democratic-republican affirmation ways until its extinction, just like so many other
democratic newspapers in Portugal, in the year of 1936.
Keywords: O Democrático, Vila do Conde, Military Dictatorship, Estado Novo,
republican resistance
13
Introdução
Esta dissertação de Mestrado centra-se na análise de um semanário republicano vila-
condense – O Democrático – na fase final da sua existência, mais exatamente no decénio
compreendido entre 1926 e 1936. Como o local de publicação do jornal e o arco temporal
sugerem, pretende-se estudar as suas representações sobre o ambiente político nacional
em transformação – desde a instauração da Ditadura Militar até aos primeiros anos de
afirmação do Estado Novo – mas também as representações de Vila do Conde sob o ponto
de vista socioeconómico, político-municipal e cultural.
A motivação da escolha deste tema prende-se, principalmente, com a minha ligação
a Vila do Conde, visto que sou natural da cidade. Assim, o interesse pela sua História e a
contribuição para o enriquecimento da mesma sempre foram parte dos meus interesses de
investigação. Por outro lado, a própria cronologia selecionada é bastante apelativa, visto
que encerra mudanças e acontecimentos históricos a nível nacional de elevada
importância que moldaram a História Contemporânea de Portugal. Tendo, também,
adquirido já alguma experiência na análise de fontes hemerográficas – assim como o
gosto e preferência pelo estudo das mesmas, através do trabalho de investigação realizado
no âmbito do Seminário em História Contemporânea – pareceu quase natural e adequado
desenvolver um estudo primordialmente documentado na imprensa periódica da cidade
em que nasci.
Embora se trate de uma investigação com forte vertente de História Local, apresenta,
na minha opinião, grande pertinência no panorama historiográfico atual. De forma a fazer
a História de um país é essencial não negligenciar o estudo aprofundado em escala menor
– dos concelhos, cidades, lugares e aldeias – que o constituem. Só desta forma se poderão
expor possíveis discrepâncias e particularidades, estabelecer comparações, colmatar
falhas na informação e, assim, criar condições de uma mais ampla compreensão dos factos
históricos. Norteou este estudo a dialética local versus nacional, que, aliás, a própria fonte
hemerográfica sugere.
Trazendo agora o foco para os objetivos de investigação, neste trabalho pretende-se
responder a um conjunto de questões que traçaram o rumo da pesquisa, criando assim a
14
problemática. Neste sentido, pretende-se conhecer melhor o periódico em análise, o seu
contexto de fundação, afiliação no espectro partidário da I República, objetivos e
programa editorial, bem como as personalidades que o mantiveram como órgão político-
partidário e defensor dos interesses locais (diretores, editores mas também alguns
colaboradores).
Sendo então O Democrático um periódico republicano, deseja-se saber como se
colocou sob o ponto de vista politico-ideológico após o 28 de Maio, que linha editorial
seguiu, que doutrinas visou como principais inimigas da República e que apelos fez em
sua defesa, que críticas e/ou elogios dispensou aos principais acontecimentos e
protagonistas neste período de acelerada mutação política.
Complementarmente, este estudo visa apurar como reagiu o periódico à governação
de Oliveira Salazar, desde a sua atuação no Ministério das Finanças até aos primeiros
anos do Estado Novo, que características destacou da sua personalidade, enfim, de que
forma condenou a praxis política que se seguiu à queda da República, que substituiu o
centenário paradigma liberal por um paradigma ditatorial e repressivo. Inclusive, num
momento de ascensão de várias doutrinas fascistas, pretende-se perceber a reação do
jornal ao Movimento Nacional Sindicalista.
Ainda no domínio da política nacional considera-se de extrema pertinência
compreender as formas e representações de apoio d’ O Democrático à luta contra a
Situação, designadamente o movimento reviralhista e a Aliança Republicana e Socialista.
Todavia, como já foi mencionado, este semanário não era exclusivamente um jornal
político-partidário, ostentava no seu cabeçalho a condição de “defensor dos interesses
locais”. Nesta conformidade, a problemática estabelecida para esta investigação não
podia alijar a questão local, isto é, discernir de que forma o semanário se debruçou e
dedicou sobre as questões do concelho da Vila do Conde, ao logo deste decénio, nos
grandes domínios da sociedade, economia, política local e cultura, designadamente em
matéria de património natural e histórico, monumental e artístico; turismo (então
florescente); higiene, saneamento e saúde pública; o porto e o comércio locais;
comunicações e eletrificação; pobreza e condições sociais. Enfim, que carências
15
fundamentais denuncia o semanário no seu concelho, quais os principais melhoramentos
que reivindica, que propostas e soluções avança para resolução dos problemas locais?
Relativamente ao Estado da Arte, foram selecionados estudos considerados
fundamentais para a compreensão dos temas em destaque. Primeiramente, considerou-se
basilar obter uma compreensão o mais alargada possível da história da Ditadura Militar e
do Estado Novo. Além de obras de caráter mais geral, pelas quais a leitura e interpretação
se iniciou, evidencia-se A crise da República e a Ditadura Militar de Luís Bigotte
Chorão1. Este autor expõe várias teorias que remetem para a reflexão sobre a
compreensão da crise que assombrou a I República, efetuando depois uma complexa
análise do golpe de Estado do 28 de Maio, dissecando e desconstruindo o programa dos
militares golpistas. Destaca-se, também, o artigo de Manuel Braga da Cruz, intitulado “A
Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à formação do Estado Novo”2,
precisamente por oferecer uma explicação detalhada das origens da insurreição militar do
28 de Maio que levou ao estabelecimento da Ditadura Militar e a difícil sobrevivência
desta que daria lugar, anos mais tarde, à formação do Estado Novo encabeçado por
Oliveira Salazar. Neste seguimento, evidencia-se o extenso estudo Salazar: uma
biografia política – da autoria de Filipe Ribeiro Meneses3 – que, apesar de se tratar de
uma obra com declarado foco na figura Salazar e no seu percurso pessoal e profissional,
apresenta-se também como um estudo aprofundado da ditadura do Estado Novo, inserido
na era dos totalitarismos, visto que expõe os principais momentos da sua evolução, desde
a sua institucionalização com a entrada em vigor da Constituição de 1933 até à morte do
ditador. Adicionalmente, constitui-se manifestamente importante o estudo da oposição
republicana tanto à Ditadura Militar como ao Estado Novo. Assim, O Reviralho. Revoltas
Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940 de Luís Farinha4 assume-se
como uma referência bibliográfica fundamental neste domínio. Trata-se de um estudo de
extrema importância para este trabalho, uma vez que o movimento reviralhista constituiu,
1 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar. Porto: Sextante Editora, 2010. 2 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo». Revista de História das Ideias. Coimbra: Instituto de História e Teoria das Ideias, 1985, n.º 7, p.
347-372. 3 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política. Lisboa: Dom Quixote, 2010. 4 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo 1926-1940.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
16
na cronologia em destaque, a mais importante frente de combate à Ditadura. Aquele
historiador explica a génese deste movimento, as revoltas organizadas contra a Situação
e a reação à implantação do Estado Novo.
No que concerne à história de Vila de Conde, embora a produção seja escassa,
sobressaem duas obras: a Nova História de Vila do Conde, de Carmo Reis5, e Vila do
Conde de Marta Miranda6. Quanto à primeira, apesar da sua pertinência para este trabalho
residir apenas no último capítulo, apresenta uma síntese de Vila do Conde no século XX.
Assim, embora breve, este estudo debruça-se sobre o concelho nas mais variadas
vertentes: aborda o progresso urbano ao longo das décadas; a evolução do comércio; as
instituições, estabelecimentos e serviços e suas respetivas funções; as inovações que o
avanço da tecnologia permitiu; a influência e efeitos da política nacional na cidade; os
altos e baixos da sua economia; a sua forma de organização social e as figuras notáveis,
entre outros aspetos. A segunda serve de suporte especificamente no que diz respeito à
história relativa aos monumentos e instituições históricas locais, como é o caso do
Mosteiro de Santa Clara, e aspetos muito característicos da cultura e tradição vila-
condenses, tais como as rendas de bilros e a atividade dos ranchos.
Dado que esta investigação tem como fonte primordial um periódico, a obra Imprensa
e Opinião Pública em Portugal, de José Tengarrinha7, constitui um recurso bibliográfico
indispensável, uma vez que fornece preciosa informação relativamente à censura aplicada
às folhas informativas desde o 28 de Maio de 1926 até ao 25 de Abril de 1974, tendo
inclusive um capítulo dedicado à imprensa e opinião pública no período do Estado Novo.
Relativamente à seleção da fonte hemerográfica, procedeu-se, inicialmente, à consulta
do catálogo de periódicos vila-condenses do século XX8. Após uma pesquisa
exploratória, selecionaram-se os semanários O Democrático e A República,
principalmente por apresentarem um maior número de edições publicadas na cronologia
em estudo e por não serem órgãos oficiais ou oficiosos do regime, eram periódicos que
5 REIS, A. do Carmo – Nova História de Vila do Conde. Vila do Conde: Câmara Municipal de Vila do
Conde, 2000. 6 MIRANDA, Marta – Vila do Conde. Lisboa: Editorial Presença, 1998. 7 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal. Coimbra: Minerva, 2006. 8 Este catálogo e respetivos periódicos encontra-se disponível em linha no sítio da Biblioteca Municipal
José Régio, através da plataforma “Biblioteca Digital”. Disponível em: <http://periodicos.bm-
joseregio.com/geadopac/search> [acesso em 06/09/2019].
17
mergulhavam as suas raízes no tempo e na ideologia republicana, tendo todavia
sobrevivido à Ditadura Militar e à fase inicial do Estado Novo. Decidiu-se então estudar
os dois títulos de imprensa periódica mencionados. Neste sentido, foi levada a cabo uma
breve análise de ambos, cotejando, entre outros aspetos, as suas características gerais, os
assuntos mais tratados e o estilo de redação. Contudo, chegou-se à conclusão de que não
seria particularmente vantajosa a utilização dos dois. Ou seja, ter-se-ia o dobro do trabalho
sem, necessariamente, se obter o dobro dos resultados. A intenção inicial visava
estabelecer uma comparação e cruzamento das informações dos dois jornais; todavia, os
periódicos apresentam posições deveras semelhantes (principalmente na defesa da
República e aversão a regimes ditatoriais), acabando a escolha por recair sobre O
Democrático, uma vez que se considerou mais inflamada, crítica, incisiva, forte e
destemida a abordagem aos temas que debateu nas suas colunas e que constam na
problemática que guia esta investigação.
Sob o ponto de vista metodológico, a recolha e tratamento de toda a informação
colhida na fonte foi inserida numa base de dados informática, organizada por datas, temas
e palavras-chave para mais fácil acesso, organização e agilização da análise ulterior. Esta
opção revelou-se acertada, pois este trabalho analisa os 522 números editados pelo jornal
entre 1926 e 1936, ficando patente a vastidão da fonte. Por outro lado, há que referir a
dificuldade inerente de trabalhar com a imprensa periódica, uma vez que, se todas as
fontes históricas são subjetivas e a sua informação manipulável, a imprensa periódica é-
o de forma mais flagrante. Tal implica vários cruzamentos de forma a obter uma
representação o mais objetiva possível dos factos, algo que muitas vezes pode ser
desafiador.
18
1. O Democrático – história de um periódico republicano
1.1. Fundação e papel enquanto órgão do Partido Republicano Português
A I República, proclamada após a revolução de 5 de Outubro de 1910, pôs fim a uma
Monarquia multissecular. Apesar da ambição e pretensões fortemente inspiradas no
ideário reformista demo-republicano, este regime conheceu vicissitudes várias
(pulverização partidária apesar da hegemonia do Partido Republicano Português/Partido
Democrático, dois momentos de ditadura, participação do país no primeiro conflito
mundial e suas prolongadas e profundas consequências, etc.) pelo que, principalmente
nos seus últimos anos, foi posto em causa por golpes e maquinações sobretudo
provenientes do setor militar (embora com apoios civis), acabando por sucumbir à
insurreição do 28 de Maio de 1926, perpetrada pelas Forças Armadas.
O regime republicano apresentava no seu ideário princípios e reformas deveras
ambiciosos (e até controversos para a época, como é o caso da laicização do Estado), num
país repleto de desigualdades sociais e carências de todo o género, mas que, na verdade,
grande parte deles nunca seriam aplicados na sua plenitude, revelando timidez na
materialização dos ideais9. O ideário do Partido Republicano Português incluía, por
exemplo, a pretensão do acesso de todos à educação, a livre associação e expressão de
opinião sem restrições, o reconhecimento do direito à greve, a regulamentação do horário
de trabalho, a implementação do Registo Civil obrigatório, entre outras medidas10.
Não obstante a revolução do 5 de Outubro, na capital, se ter deparado com poucos
obstáculos, mais complexo seria manter o novo sistema, legitimá-lo e garantir a sua
aceitação, tanto a nível interno como externo. Ela poderia ser proclamada no resto do país
pelo telégrafo, na célebre afirmação de João Chagas, porém os republicanos teriam de se
esforçar para que a sua mensagem se difundisse. Assim, a imprensa republicana não
9 WHEELER, Douglas L. – «A Primeira República Portuguesa e a História». Análise Social. Lisboa: ICS,
1978, vol. XIV, nº 56, p. 866. 10 TELO, António José – Primeira República. Vol. I. Do Sonho à Realidade. Lisboa: Presença, 2010, p. 11.
19
poderia suster o seu ímpeto, teria de continuar alerta e ativa, sobretudo fora das grandes
cidades. É neste contexto que nasce em Vila do Conde um novo jornal com esse propósito.
A primeira edição de O Democrático data de 18 de maio de 1913 – em pleno primeiro
Governo de Afonso Costa – e no seu cabeçalho “dizia ao que vinha”, apresentando-se
como “defensor dos interesses locais e do Partido Republicano Português”11.
Originalmente administrado por Manuel Barbosa Marques, e tendo como diretor e
editor Bernardino Justino dos Santos Andrade, este semanário abriu o primeiro número
com um artigo de apresentação dos seus ideais e objetivos de redação. Reiterou a calorosa
defesa dos princípios do Partido Democrático, assim como a luta pelos interesses e
progresso de Vila do Conde.
Como seria de esperar, enquanto defendeu a República e manutenção das suas
instituições, declarou a sua profunda oposição à Monarquia o que, de resto, seria tema
recorrente ao longo de toda a década de 1926-1936.
O seu objetivo de fundação foi, assim, claro. Inerente à criação do semanário estava
o objetivo de uma representação regional de apoio ao recém-instalado regime
republicano, com uma orientação mais à esquerda no espetro político – a fação do Partido
Republicano Português/Partido Democrático – e de luta pela manutenção desse mesmo
regime.
Como se sabe, a I República apresentou-se como um período verdadeiramente
paradoxal e conturbado. Na sua breve existência de cerca de 16 anos viu subsistirem
“quarenta e cinco Governos, oito eleições gerais e oito presidentes”, revelando-se “o
regime parlamentar mais instável da Europa Ocidental”12.
Neste contexto, é clara nas colunas do periódico a profunda ânsia por estabilidade e
coerência política, que os responsáveis do jornal consideravam a única forma de se
contrapor “aos processos indecorosos de fazer política que caracterizaram os últimos
tempos da Monarquia”13.
Atendendo às diferentes correntes políticas existentes durante a I República e às
discórdias que o pluripartidarismo poderia causar, O Democrático reivindicava para si
11 O Democrático, nº 1, 18/05/1913, p. 1. Ver Anexo 1. 12 WHEELER, Douglas L. – «A Primeira República Portuguesa e a História», p. 865. 13 “Ao Começar”. O Democrático, nº1, 18/05/1913, p. 1. Ver Anexo 1.
20
uma posição de tolerância e respeito pelos princípios dos outros, mas forte e intransigente
na defesa dos seus:
Nós teremos pelos nossos adversários republicanos o máximo respeito, certos que
estes igualmente respeitarão a boa-fé dos nossos desígnios, não esquecendo um
só momento de que todos, embora com planos diferentes e ideias contrárias,
lutamos para o mesmo fim – o engrandecimento da Pátria pela consolidação da
República14.
Desta forma, reconheceu as claras divergências partidárias e os desígnios políticos
de cada fação, enfatizando que a causa era comum: a manutenção da República para a
prevenção total de um Portugal monárquico uma vez mais.
1.2. Características gerais, equipes diretivas e editores
Com uma periodicidade semanal, O Democrático deu à estampa 522 edições na
década em análise.
Estruturalmente, o jornal apresentou determinadas características que se
conservaram ao longo da sua história. Possuía uma média de quatro páginas por número
e uma secção especificamente dedicada à publicidade que, ocupando a última página de
cada edição, geralmente oferecia destaque aos negócios locais e anúncios de emprego.
Iniciando cada número com um artigo de abertura, entende-se que este espaço
ficava reservado a notícias e/ou textos com mais relevância à data. Habitualmente,
referiam-se a problemas locais concernentes a Vila do Conde que O Democrático
entendia necessitarem de rápida resolução por parte das autoridades competentes, ou a
notícias à escala nacional (e até internacional, embora mais raramente) que eram
consideradas determinantes na ordem do dia.
Compreende-se, neste seguimento, que, apesar de se tratar de um periódico
regional não abdicava de se pronunciar, muitas vezes de forma efusiva e detalhada, acerca
14 “Ao Começar”. O Democrático, nº1, 18/05/1913, p. 1.
21
de assuntos de ordem política, económica, social e cultural a nível geral, de forma a
melhor informar os leitores.
Nas segunda e terceira páginas de cada edição continuava a divulgação de outras
notícias que, na maioria dos casos, se referiam a Vila do Conde. Estas tomavam a forma
de divulgação de eventos ou ações de relevância, problemas e carências da localidade,
entre outras.
Com efeito, encontram-se determinadas secções que se mantiveram ao longo do
decénio, como é o caso de “Pelas aldeias”. Esta coluna era dedicada à divulgação de
notícias sobre as freguesias que integravam o concelho de Vila do Conde. Normalmente,
as informações eram enviadas ao jornal através de correspondência redigida por
colaboradores residentes nas aldeias. Difundiam-se assuntos como as importantes e
populares festividades religiosas ou de lazer; reivindicações de progressos urgentes e
necessários a executar e consequente notícia se os mesmos se efetuassem;
desentendimentos dentro das comunidades; falecimentos de personalidades distintas da
região. Note-se que, se as festividades fossem de grande visibilidade ou importância para
o concelho, em grande parte dos casos teriam direito à sua própria coluna.
O jornal deu grande peso à divulgação das iniciativas culturais típicas da vila,
tentando incentivar à máxima afluência e contribuição da população para tais eventos, de
forma a enaltecer o concelho e despertar a curiosidade turística.
Por outro lado, O Democrático reservou espaço permanente para o seu “Boletim
Semanal”, destacando aniversários e casamentos (uma vez mais, das elites da vila), assim
como regressos, visitas e partidas de famílias ou pessoas mais conhecidas da terra.
Outra das secções que se manteve ao longo dos anos foi “Literatura” ou “Secção
Literária”, na qual se publicavam maioritariamente textos poéticos, cumprindo desta
forma a função instrutiva e cultural que também assumia. Na mesma linha, o jornal
anunciava os saraus culturais, a projeção de filmes e a representação de peças de teatro a
realizar no Teatro Afonso Sanches.
No que diz respeito às várias equipes responsáveis pela manutenção deste
semanário é de referir que, ao longo do decénio 1926-1936, este se viu sob o comando de
vários homens. Pelas equipes diretiva e editorial passaram João Canavarro Crispiniano
22
da Fonseca15; Herculano Augusto Pereira Ramalho, Francisco de Barros Barbosa16 e
António Lopes de Macedo. Ao longo desses dez anos, o jornal manteve-se propriedade
da viúva de António José de Campos. Relativamente aos autores dos artigos, uma parte
significativa dos textos era assinada por pseudónimos ou apenas iniciais, sendo difícil
apurar a verdadeira identidade dos colaboradores e redatores do periódico, sendo de
admitir que os sucessivos diretores tenham também redigido alguns dos textos
publicados. No entanto, como se verá ao longo do trabalho, alguns artigos de grande
significado político encontravam-se assinados, menção que será feita caso a caso,
verificando-se que alguns nomes, por exemplo Duarte de Gusmão, estavam
profundamente ligados à oposição à Ditadura e ao Estado Novo, chegando a conhecer os
seus cárceres. Por outro lado, para ilustrar determinadas matérias e opiniões, O
Democrático reproduziu textos de outros órgãos da imprensa, identificando sempre a sua
origem.
Em suma, O Democrático manteve uma estrutura coerente e estável entre 1926-
1936, situação que faz parelha com a consistente defesa dos ideais que preconizou nas
suas colunas.
15 Foi funcionário público e diretor da Escola de Reforma do Porto/Reformatório de Vila do Conde; em
outubro de 1910 foi nomeado administrador do concelho de Resende e, em 1912, administrador do concelho
de Vila do Conde; foi também deputado ao Congresso da República (1915-1917) (João Canavarro
Crispiniano da Fonseca (1881-1958). Biografias. Centenário da República (1910-2010). História &
Memória. Disponível em <http://hm.centenariorepublica.pt/biografias/193-joao-canvarro-crispiniano-da-
fonseca.html> [acesso em 06/09/2019]). 16 Um dos fundadores do Rancho da Praça (A Praça – Publicação comemorativa do 70º aniversário do
Rancho da Praça Rendilheiras de Vila do Conde. Vila do Conde. 08/12/1990, nº 0, p. 9).
23
1.3. Órgão da reação republicana à Ditadura Militar e ao Estado Novo
Oriundo de setores progressistas da República, O Democrático patenteou natural
rejeição a regimes ditatoriais e repressivos que inibissem a prática dos ideais
republicanos.
Após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, e perante o desenrolar dos
acontecimentos, o semanário criticou o movimento e seus participantes, visto que os
objetivos e promessas do programa da revolução não estariam a dar os frutos esperados
– temática que será explorada mais à frente.
Neste ambiente de descontentamento, o jornal defendia a ideia de que a Ditadura
Militar deveria ser encarada apenas como um período transitório e de reflexão. Assim,
apelava à união dos republicanos de todas as diferentes fações políticas para que
reconhecessem o que se havia feito de errado e o que seria possível melhorar, numa
constante busca de soluções para que novamente se fizesse a República. Ao mesmo
tempo, e perante a sua visão e análise dos acontecimentos, considerava que o período de
Ditadura Militar servira apenas o propósito de provar que só a República seria o regime
adequado à governação do país.
Neste sentido, assiste-se a uma constante defesa dos ideais proclamados pelos
homens da I República e até o reforço da propaganda republicana ao quotidiano da
população através da imprensa, apesar do periódico reconhecer a dificuldade de
concretização deste último objetivo, devido à ação repressora da censura.
No âmbito de apoio ao republicanismo, o jornal conferiu grande ênfase, durante
este período de Ditadura Militar, a assuntos como a urgência do combate ao flagelo do
analfabetismo para a criação de uma sociedade mais informada e a necessidade de apoios
sociais do Estado aos mais necessitados.
A transição para o novo regime, o Estado Novo, não impediu O Democrático de
continuar a proclamar o apoio à República e as reformas que ficaram por concretizar. As
malhas da repressão e da censura demonstravam-se mais fortes do que nunca, contudo
este semanário local persistia na crítica e oposição à Situação.
Efetivamente, neste período dos primeiros anos de consolidação do Estado Novo,
o jornal focou a sua crítica de forma incisiva contra os mecanismos de repressão das
24
liberdades instituídos ou consolidados pelo regime, tais como, por exemplo, a existência
e métodos de ação da polícia política e a censura do lápis azul.
Adicionalmente, contestou veementemente alguns princípios doutrinários do
Estado Novo. A título de exemplo, o periódico via o enaltecimento dos grandes feitos do
passado e o incentivo ao amor cego à Pátria como um mecanismo destinado a travar o
progresso das mentalidades e a formação de uma sociedade informada, a par com a
evolução dos tempos, recusando, deste modo, o nacionalismo exacerbado e imposto.
Verifica-se, assim, que não obstante a sua esfera de influência ser regional e se
encontrar sujeito à revisão da censura, não deixava – de forma inteligente e hábil ao
mesmo tempo que incisiva e subtil – de demonstrar a sua oposição frontal à repressão das
liberdades e inibição do progresso veiculados tanto pela Ditadura Militar como pelo
Estado Novo.
1.4. A morte de O Democrático
Apesar da sua tenacidade e persistência de ação, o periódico sucumbiu passados
vinte e três aniversários de existência.
Em 1936, a 4 de dezembro, O Democrático publicou a sua derradeira edição. O
aprimoramento da máquina da censura, na forma de leis de imprensa cada vez mais
restritivas aplicadas pelo poder, primeiro durante o período da Ditadura Militar e, depois,
ainda mais musculadas pelo Estado Novo, ditou o fim do jornal.
É relevante relembrar que, com o advento da proclamação da República, o país
passou a dispor de uma nova Lei de Imprensa “que proibia a censura por parte de qualquer
autoridade”, se bem que a censura não esteve completamente ausente nesse regime, pois
além dos dois momentos ditatoriais (pimentismo e sidonismo) a censura de guerra foi
também instituída durante o primeiro conflito mundial. No entanto, e de forma geral, o
contexto foi favorável à criação de novos jornais e à prosperidade dos mesmos17.
Porém, a Ditadura Militar, em consequência do movimento do 28 de Maio de
1926, plantou de novo as sementes da privação da liberdade de expressão e imprensa em
Portugal. Tais só voltariam a ser repostas após a revolução do 25 de Abril de 1974.
17 PIZARROSO QUINTERO, Alejandro – História da Imprensa. Lisboa: Planeta Editora, 1996, p. 364.
25
Assim, logo em junho de 1926, foi estabelecida a censura aos jornais, não através
de um diploma oficial, mas por comunicação aos diretores dos jornais, justificada como
uma situação excecional inerente à revolução:
E logo a 22 de junho os receios confirmavam-se com a publicação, em todos os
jornais de Lisboa, de uma simples comunicação assinada por um 2º comandante
da polícia pela qual se fazia saber estar estabelecida a censura à Imprensa e, por
isso, não ser autorizada a saída de qualquer jornal sem que, previamente, tivessem
sido enviados 4 exemplares de cada número ao Comando-Geral da GNR para
análise do seu conteúdo18.
A situação não só não foi temporária como se agravou. Seguiu-se, em julho e
outubro de 1926 e em maio e junho do ano seguinte, uma série de decretos que
endureceram o aparelho censório.
O decreto de 5 de julho de 1926, não estabelecendo a censura prévia, preconizou
uma “mais apertada vigilância […] sobre as publicações gráficas, periódicas, ou não”,
que passariam “a ser reguladas por este diploma”. Consequentemente, os “comentários
críticos ao Governo e ao regime de censura foram diminuindo ao longo do mês de julho
e, no mês seguinte, eram ainda muito mais comedidos”19.
Resultado da escalada repressiva, o decreto de 29 de julho foi ainda mais rigoroso
do que o anterior. Permitia que o julgamento das infrações fosse feito apenas com a
intervenção do júri, exceto em casos especiais que necessitassem da intervenção de um
tribunal coletivo. Ainda assim, apontava um “conjunto tão amplo, vago e diversificado
de razões para apreensão dos jornais que os tornava extremamente vulneráveis perante as
autoridades administrativas e judiciais”20.
Destacam-se outras medidas nos decretos posteriormente promulgados. O decreto
de 30 de outubro de 1926 referia-se aos “inquéritos que podiam ser pedidos pelos
magistrados judiciais ou do Ministério Público quando acusados pela Imprensa”; o
18 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 55. 19 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 56. 20 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 56.
26
decreto de 27 de maio de 1927 aludia à “propriedade literária”, enquanto o de 27 de junho
incidia sobre a liberdade de imprensa nas colónias21.
O cerco da censura apertava e o poder não olhava a meios para atingir o fim de
influenciar a opinião pública, ocultando/manipulando informação e restringindo cada vez
mais os órgãos de imprensa.
Com a institucionalização do Estado Novo, legitimado pela Constituição de 1933,
assistiu-se a um caso verdadeiramente singular e paradoxal. Se, por um lado, este
documento determinava que, entre os direitos e garantias dos cidadãos portugueses,
vigorava a total liberdade de expressão e pensamento, pelo outro, previa a instituição de
um regime de censura prévia. Esta determinação acabou por ser concretizada com a
promulgação do decreto de 11 de abril de 1933, justamente a data de entrada em vigor da
referida Constituição.
A esta forma de censura estavam sujeitos, obrigatoriamente, por lei: “a imprensa
periódica devidamente autorizada como jornais, revistas, ilustrações, magazines e
publicações semelhantes, independentemente da sua periodicidade”, entre outros22.
Não obstante os fortes entraves criados à liberdade de imprensa, continuava a
verificar-se a intensificação da repressão. O decreto de 14 de maio de 1936 demonstra,
precisamente, o aumento do alcance da censura prévia, que se revelou a “machadada
final” para muitos periódicos, incapazes de se manter em funções, dadas as restrições
impostas pela lei:
Pela primeira vez no Estado Novo são conferidos poderes ao Governo para
aplicar sanções (multas e apreensões ou suspensões de publicações) sem
intervenção prévia dos tribunais; o que podia acontecer quando o jornal recusava
divulgar as “notas oficiosas” do Governo ou publicava textos sem autorização e,
através de arranjos gráficos da paginação ou por outros meios procurava iludir a
censura23.
21 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 56. 22 GOMES, Joaquim – Os Militares e a Censura. A Censura à Imprensa na Ditadura Militar e Estado Novo
(1926-1945). Lisboa: Livros Horizonte, 2006, p. 69. 23 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 60.
27
Neste contexto, note-se que O Democrático já aparecia como um periódico
incómodo nos radares do regime.
A verdade é que certa imprensa em Vila do Conde inquietava o regime,
designadamente a que lhe era desafeta. Esta fação era precisamente representada por
semanários como A República (“perigoso porque é um jornal de valor”) e pelo próprio O
Democrático que, “era preciso vigiar fortemente”24, acusado de ter ligações à Maçonaria.
Este conjunto de condições originaram a receita letal que resultou no encerramento da
redação de O Democrático e na sua inevitável extinção.
24 TENGARRINHA, José – Imprensa e Opinião Pública em Portugal, p. 191.
28
2. Das origens da Ditadura Militar aos primeiros anos de
afirmação do Estado Novo – breve contextualização
histórica
2.1. Do golpe de Estado à instauração e queda da Ditadura Militar
É consensual, no atual panorama da historiografia portuguesa, considerar o período
decorrente entre o movimento militar de 28 de Maio de 1926 e os primeiros anos de
afirmação do Estado Novo e formação das suas instituições basilares como “um dos mais
agitados e politicamente complexos da história nacional do século XX” porque se assistiu
à “liquidação de mais de um século, quase ininterrupto, de experiência liberal (sob a
forma monárquica e republicana) e o parturejamento de um novo regime autoritário,
corporativo, antiparlamentar e anticomunista, destinado a durar 41 anos”25.
No que diz respeito ao golpe militar propriamente dito, vários são os autores que
salientam a sua falta de estruturação, planeamento e horizonte.
Manuel Braga da Cruz aponta a “intenção sobretudo negativa” que esteve na origem
do movimento militar do 28 de Maio. Segundo este autor, o levantamento militar não foi
fundamentado por um “plano previamente concebido”, foi antes forjado pelas mãos das
próprias Forças Armadas, “sem um ideário preciso”, sem propósitos ideológicos assentes
na contenda pelo parlamentarismo democrático, numa tentativa desesperada de lutar
contra a insustentável situação política da época. Assim, este golpe resultou de uma
revolução que depressa tomou a forma de uma Ditadura Militar e que, mais tarde, abriu
portas à formação do Estado Novo26.
Por sua vez, Bigotte Chorão considera que o Exército, “cansado da situação aviltante
a que a política então dominante conduzira o País estava disposto a intervir para pôr termo
a uma situação que era afrontosa”, apontando a falta de um programa claro de revolução
e apresentando diferentes perspetivas para criar uma reflexão sobre o assunto. Coloca-se
25 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1936), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, vol.
VII. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, p. 151. 26 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 347.
29
uma interrogação fundamental: afinal, existiu ou não um “programa [legítimo] do 28 de
Maio”? O autor recorre ao testemunho de George Guyomard que revela ter conhecimento
do programa do 28 de Maio através dos próprios colaboradores do Governo e de uma
“declaração”. Todavia, Guyomard acaba por concluir que “não se tratava de um
«programa» e que da sua análise resultava a impossibilidade de ser compreendido o
sentido de acordo com o qual deviam ser realizadas as reformas anunciadas, as quais,
porém, não tinham passado de «letra morta»”27.
Por outro lado, também segundo Bigotte Chorão, Manuel Rodrigues Júnior – Ministro
da Justiça – afirmou que o programa do 28 de Maio nunca havia sido publicado mas que
o tinha em seu poder. Desta forma, ficou confirmado que o programa transcrito na
Política Nacional não seria de facto o programa afeto ao movimento. Tendo o documento
em sua posse, Rodrigues Júnior declarou, em entrevista ao Diário de Lisboa, edição de
28 de julho de 1927, que, dentro do possível, o Governo tinha cumprido o estipulado no
programa do golpe militar. O Ministro acrescentou que o programa havia sido
apresentado pelo General Gomes da Costa, durante um Conselho de Ministros do
Comandante Cabeçadas. Contudo, esta apresentação pareceu pouco formal. Havia-se
tratado mais da “indicação de algumas medidas a tomar” que não seriam até da autoria
do próprio, convidando os colegas à sua leitura e a aproveitarem o que lhes parecesse
conveniente e apropriado. Seguindo estas indicações, os restantes membros do Governo
repeliram muitas das medidas e nunca se soube quem era o autor do documento28.
Assim, o tal programa que Rodrigues Júnior referiu como tendo “aparecido” no jornal
A Época, tratava-se apenas do “programa de providências do Governo”, apresentado por
Gomes da Costa ao Conselho de Ministros a 14 de julho. Relativamente ao “verdadeiro
programa”29, o Ministro da Justiça dizia tê-lo em sua posse, acabando por citar na
entrevista dois dos seus artigos mais determinantes:
O Governo que sair deste movimento será constituído por indivíduos civis e
militares de reconhecido valor intelectual e moral, ficando desde já assente que o
27 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 140-141. 28 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 142. 29 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 143.
30
Presidente seja um oficial General ou superior do Exército ou da Armada, de
republicanismo indiscutível e de carácter impoluto; o Governo constituído
manter-se-á no poder pelo tempo necessário para proceder ao saneamento moral
e administrativo do país, conforme as bases ou linhas gerais indicadas no
documento apenso a este compromisso e que dele faz parte integrante, pelo que
será assinado pelos oficiais que assinem este30.
Ainda nesta entrevista, o Ministro esclareceu algumas das “linhas gerais indicadas no
documento”, revelando que uma das mais importantes já havia sido cumprida, sendo esta
a entrega das “Empresas particulares dos Caminhos-de-Ferro ao Estado”. Rodrigues
Júnior fazia, nestas declarações, referência a um documento redigido pelo advogado
Adriano Vieira Coelho, “constituído por um «Compromisso» e umas «Bases», assinado
em Coimbra por Mendes Cabeçadas, na qualidade de chefe do movimento”31.
O autor menciona Ernesto Castro Leal e as suas interrogações relativamente ao facto
de se poder considerar o referido “Compromisso” e “Bases” como o “Programa (comum)
do 28 de Maio”. Ora, Bigotte Chorão considera que sim, “tanto mais porque tem
correspondência com aquele que Manuel Rodrigues Júnior afirmou ser o «autêntico», e
pode bem ter sido o único «comum»”. Debruçando-se sobre o conteúdo desses
documentos, o historiador indica a hipótese de, “nas origens do movimento, ter estado o
projeto de constituição de um Governo extrapartidário, destinado a exercer
transitoriamente o poder, com vista a realizar uma ditadura que ambos os textos revelam
como de acentuado carácter administrativo”32.
Para além disso, este autor realça o facto de o “programa comum” não abordar o
problema das relações entre o Estado e a Igreja ou a questão constitucional. Assim, acaba
por considerar que o mesmo programa não passou de um “logro”, servindo “como
instrumento mobilizador da força armada, cujo real alcance, porém, se desconhece”.
Realmente, algumas das suas “Bases” foram concretizadas durante a Ditadura Militar,
30 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 143. 31 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 143-144. 32 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 152.
31
contudo o programa foi insubsistente e “nunca publicamente assumido na sua
integralidade ou oficialmente divulgado”33.
Ainda assim, Bigotte Chorão explica o motivo deste programa ser, de certa forma,
“clandestino”. É que, atendendo ao seu conteúdo, a sua divulgação “oferecia risco efetivo
de comprometer certos apoios ao movimento”34. Neste contexto, é possível afirmar que,
regido por um programa mínimo e contando com um apoio máximo, o 28 de Maio
constituiu uma insurreição marcada por ambiguidades35.
Segundo Veríssimo Serrão, os chefes do movimento nunca colocaram em causa a sua
fidelidade à República, defendendo que a mudança a operar tinha por fim salvaguardar a
pureza do regime36. Efetivamente “para muitos dos militares que aderiram ao
movimento” o que estava em causa era o saneamento e reforma do regime republicano e
não a sua supressão e substituição. Apesar de esta ser a premissa base, denotava-se um
claro contraste de intenções nos “propósitos enunciados nas primeiras proclamações
políticas dos revoltosos”. A comprovar esta situação, Braga da Cruz estabelece uma
comparação entre as intenções expostas no Manifesto da Junta de Salvação Pública
(encabeçada pelo General Cabeçadas e por Gama Ochoa) e os propósitos manifestados
nas proclamações de Gomes da Costa produzidas de Braga no próprio dia do golpe. Este
autor considera que, basicamente, enquanto Mendes Cabeçadas “procurava assegurar a
continuidade e a legitimidade constitucional, Gomes da Costa exigia a rutura com a
legalidade constitucional”. Assim, o desígnio de Mendes Cabeçadas seria libertar o país
da governação do Partido Democrático, considerada miserável e corrupta, e o objetivo de
Gomes da Costa seria fazer do Exército o grande dirigente político, através da formação
de um Governo constituído pelos próprios membros do movimento, proceder à dissolução
do Parlamento e conseguir a demissão do Presidente da República37.
33 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 153-154. 34 CHORÃO, Luís Bigotte – A Crise da República e a Ditadura Militar, p. 155. 35 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
152. 36 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo (1926-1935), vol.
XIII. Lisboa: Editorial Verbo, 1997, p. 19. 37 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 349-350.
32
Na luta consequente a este dualismo de propósitos fundamentais, Mendes
Cabeçadas, logo no dia 28 de maio de 1926, escreveu ao Presidente da República,
Bernardino Machado, “em nome da grande maioria do Exército”, pedindo-lhe que
“nomeasse um Governo de carácter extrapartidário constituído por republicanos que
merecessem a confiança do País”. Reconhecendo o apoio expresso pela opinião pública
ao movimento armado e numa tentativa de “salvar a continuidade do regime”, o Governo
apresentaria a sua demissão, passando Mendes Cabeçadas “a concentrar na sua pessoa,
interinamente, todas as pastas do Ministério”38. Por sua vez, e perante este
desenvolvimento, Gomes da Costa, “senhor do apoio da maioria das divisões militares do
país, fez saber que o Governo de Cabeçadas” não merecia “a confiança do Exército” e
deu “ordem de marcha sobre Lisboa”39. Esta resposta de Gomes da Costa às manobras da
capital produziu os seus efeitos. A 31 de maio foram encerradas as Câmaras e Bernardino
Machado viu-se forçado a apresentar a demissão. Considerando que a “sua missão” se
encontrava “esgotada”, entregaria o poder nas mãos de Cabeçadas, dizendo-lhe em carta
que, em conformidade com a Constituição, o Ministério em conjunto assumiria “a
plenitude do poder executivo”. Neste seguimento, Cabeçadas deslocar-se-ia a Coimbra
para uma tentativa de conciliação de atuações com Gomes da Costa. Deste encontro, a 1
de junho, entre os dois chefes das duas vertentes do movimento, saiu “a resolução da
formação de um triunvirato militar” – composto por Mendes Cabeçadas, Gomes da Costa
e Gama Ochoa – que distribuiria as pastas entre si. Regressado a Lisboa, Mendes
Cabeçadas, “na qualidade de Presidente do Ministério”, fez publicar o decreto referente
à nomeação do novo Governo, “deixando Gomes da Costa e o Exército em minoria”.
“Insatisfeito com os resultados do acordo de Coimbra”, Gomes da Costa resolveu
“marchar sobre Lisboa para impor definitivamente os seus pontos de vista”. No dia 3
chegava “com as tropas do Norte e do Alentejo a Sacavém, às portas de Lisboa, obrigando
Cabeçadas a novo encontro”. Saiu daqui uma nova resolução, que consistia na
“designação de uma junta governativa” composta agora por Cabeçadas, por um lado, e
38 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 350-351. 39 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
160.
33
por Gomes da Costa e Carmona, por outro, e na “formação de um novo Governo”, onde
além de Cabeçadas (Presidência e Interior), Gomes da Costa (Guerra e Colónias),
Carmona (Estrangeiros) e Jaime Afreixo (Marinha), apareciam quatro civis: Salazar nas
Finanças, Mendes dos Remédios na Instrução, Almeida Ribeiro na Justiça e Ezequiel de
Campos na Agricultura e Comércio. Ainda nesse mesmo dia, seria publicado o decreto
de nomeação do Governo, aparecendo já com uma alteração: Manuel Rodrigues no lugar
de Almeida Ribeiro40.
A validação do novo acordo foi feita solenemente com um “desfile militar na
Avenida da Liberdade” e uma “parada no Campo Grande no dia 6 de junho”. Os militares
“foram saudados apoteoticamente pela população de Lisboa”. Contudo, “impunha-se com
rapidez” a formação de um novo Governo41. Assim, a 7 de junho, iniciava-se novamente
a atividade governativa com a “posse de alguns Ministros (aparecendo o General Alves
Pedrosa na pasta da Agricultura, no lugar de Ezequiel de Campos, cujo nome suscitara a
oposição da Associação Central de Agricultura) e com a realização do primeiro Conselho
de Ministros”. Porém, só a 12 de junho “o elenco governativo ficaria completo com a
posse relutante de Salazar (nas Finanças) e a posse tardia de Passos e Sousa (no
Comércio)”. Ficava estabelecido o novo Governo, no qual se continuavam a confrontar
“surdamente as duas tendências do movimento”42 e novas resoluções fraturantes não
tardariam.
A 9 de junho, ficou decidida “a dissolução do Parlamento sem serem anunciadas
e marcadas novas eleições, numa clara violação das disposições constitucionais”, o que
acentuou “decididamente a tendência ditatorial do novo poder”, enfraquecendo a posição
que nele continuava a ocupar Cabeçadas, “em quem os partidos” viam “o último arrimo
de legalidade”43. Contudo, a 14 de junho, Mendes Cabeçadas ver-se-ia confrontado, “em
Conselho de Ministros, com um programa apresentado por Gomes da Costa e preparado
40 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 351-352. 41 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo (1926-1935), p.
32-33. 42 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 352. 43 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 352-353.
34
pelos seus conselheiros integralistas (fora redigido por Trindade Coelho)”. Tratava-se de
um “projeto presidencialista autoritário […] e de raiz claramente corporativista e
antiliberal/individualista quanto à futura organização do Estado”. Como seria de esperar,
Mendes Cabeçadas recusou-se a aceitar as disposições de Gomes da Costa e foi deposto
a 17 de junho44.
Empossado na presidência do Ministério, a 16 de junho, Gomes da Costa fez as
devidas mudanças no Governo: Mendes dos Remédios viu-se substituído por Ricardo
Jorge (Instrução); para o lugar de Salazar foi chamado Filomeno da Câmara (Finanças);
as Colónias ficavam ocupadas pelo Comandante Gama Ochoa e a pasta do Interior foi
entregue a António Claro. “Nas restantes pastas permanecem Carmona, Jaime Afreixo,
Alves Pedrosa, Passos e Sousa e Manuel Rodrigues”45. A 18 de junho, Mendes Cabeçadas
rendeu-se “sem luta, apresentando a sua demissão”. No dia seguinte daria mesmo posse
a Gomes da Costa, a quem nomearia “Presidente do Ministério, transmitindo-lhe os
poderes recebidos de Bernardino Machado”46. Adicionalmente, no dia 26, “por um
decreto que atribui ao Presidente do Conselho de Ministros, provisoriamente, todas as
prerrogativas de Presidente da República, Gomes da Costa” passaria “também a ser Chefe
de Estado”47.
Contudo, a instabilidade governativa não tinha ainda fim à vista. Denotava-se já
no Executivo o aumento da influência da fação monárquica/conservadora e o
enfraquecimento do bloco republicano. A remodelação governativa empreendida por
Gomes da Costa a 7 de junho ilustra bem esta situação, visto que levou à exoneração do
Governo de Óscar Carmona (Negócios Estrangeiros), Gama Ochoa (Marinha) e António
Claro (Interior), “com os quais se solidarizaram, abandonando as respetivas pastas, todos
os restantes políticos, à exceção de Filomeno da Câmara”. Consequentemente tomaram
conta da pasta dos Estrangeiros e das Colónias, “duas conhecidas figuras monárquicas”:
44 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1936), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
161. 45 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 353-354. 46 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
162. 47 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 353-354.
35
Martinho Nobre de Melo e João de Almeida, “tendo o primeiro, entre as suas primeiras
medidas, demitido significativamente Afonso Costa de Presidente da Delegação
Portuguesa à Sociedade das Nações”48.
Ora, a reação a estas demissões não tardaria. Logo no dia 8, apresentavam-se em
Belém os comandantes das guarnições de Lisboa. Manifestavam-se “contra as demissões”
e exigiam que “Gomes da Costa, ainda que permanecendo como Presidente da
República”, abandonasse a chefia do Ministério. O General recusou a proposta e, na
madrugada do dia 9, foi “decidida a demissão de Gomes da Costa das suas funções e
ordenada a sua prisão no Palácio de Belém”. A 11 de julho seria mesmo conduzido ao
exílio nos Açores, em Angra do Heroísmo49.
Consequentemente, Carmona seria “colocado pelo Exército na presidência do
novo Ministério”, no qual Manuel Rodrigues, Jaime Afreixo, Passos e Sousa e Alves
Pedrosa mantinham as pastas e via-se aparecer Ribeiro Castanho no Interior, Sinel de
Cordes nas Finanças, Silvério Botelho na Instrução, Bettencourt Rodrigues nos Negócios
Estrangeiros e João Belo nas Colónias. “Com a transição, meses mais tarde, de Passos e
Sousa para o Ministério da Guerra”, entraria “a substituí-lo no Comércio o Major
Carvalho Teixeira”50.
Neste seguimento, Carmona seria designado Presidente da República pelo
Conselho de Ministros a 16 de novembro de 1926, tomando posse no dia 29 deste mês.
Seria eleito, mais tarde, em março de 1928. “Até abril de 1928, até à entrada de Salazar
para o Governo, Carmona” colocaria “o seu peso de Chefe de Estado, do Exército e da
Ditadura, de supremo e respeitado árbitro das suas funções, sobretudo do lado da linha
republicana predominante nos comandos”51.
48 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 354-355. 49 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
163. 50 CRUZ, Manuel Braga da – «A Revolução Nacional de 1926. Da Ditadura Militar à Formação do Estado
Novo», p. 355. 51 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
165.
36
2.2. O Estado Novo – a formação da nova ordem
2.2.1. A ascensão de Salazar
António de Oliveira Salazar foi um dos ministeriáveis logo no primeiro Governo da
Ditadura Militar, começando por recusar o cargo, uma vez que considerava não estarem
“reunidas as condições de avançar” e que a Ditadura era “ainda um desnorte sem destino
certo”. Mas, “pressionado por Cerejeira e pelos círculos católicos”, acabaria por aceitar.
Contudo, só se manteve nas Finanças menos de duas semanas: entre 3 e 17 de junho de
192652.
Em 1928, apenas dois anos passados sobre a tomada de poder pelos militares, a
situação financeira do país havia-se tornado um problema que “atingia proporções que
assustavam o espírito mais audacioso”. O défice aumentava rapidamente, “a inflação
transforma-se em calamidade” e “a dívida pública esmagava um país pobre e sem
indústria”. Após o golpe da não aceitação do apoio da SDN, a situação financeira tornara-
se insustentável. Seria, portanto, cada vez mais visível a impotência do Governo na
resolução da crise financeira53.
Consequentemente, numa Europa que paulatinamente ia sendo tomada pelos
totalitarismos (como era o caso da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler), Portugal,
perante a instabilidade, adotava o mesmo caminho: “a identificação de todo um
«Movimento» com um único homem”. Salazar, aparentemente apenas Ministro das
Finanças, “graças aos plenos poderes que obteve”, controlava todos os Ministérios, os
quais não podiam tomar “qualquer responsabilidade de qualquer despesa sem a sua
autorização”. Nem sequer podiam tomar qualquer decisão ou medida que exercesse
influência direta sobre as despesas ou receitas do Estado sem que Salazar concedesse
permissão54. No seu discurso de posse como Ministro das Finanças, a 28 de abril de 1928,
afirmou “lapidarmente” que sabia o que queria e para onde ia, considerando a “ditadura
52 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de
História do Estado Novo. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, vol. II, p. 862. 53 CAMPINOS, Jorge – A Ditadura Militar 1926/1936, Lisboa: Publicações Dom Quixote, cop. 1975 p.
148. 54 CAMPINOS, Jorge – A Ditadura Militar 1926/1936, p. 151-154.
37
financeira” o “primeiro passo para a conquista da hegemonia na Ditadura e para a
instauração de um novo regime”55 .
O equilíbrio orçamental seria logo alcançado “a partir do ano económico de 1928-
1929, designadamente através da reforma orçamental de 1928 e das reformas tributárias
de 1928 e 1929”. Tais medidas permitiriam a estabilização da moeda a longo prazo,
“reformar o crédito”, “baixar as taxas de juro, liquidar a dívida pública flutuante e dotar
o Banco de Portugal dos meios necessários ao apoio regulador do sistema bancário em
crise”. Adicionalmente, o “crescimento da receita tributária (sem agravamento dos
impostos diretos sobre os rendimentos das atividades económicas)” permitiu o fomento e
investimento nas obras públicas. De forma a escapar ao impacto da Grande Depressão de
1929, Salazar optou pelo estabelecimento de políticas de autarcia e protecionismo
económico, aumentando o “papel da regulação autoritária do Estado na economia”. Estas
medidas traduziram-se no “condicionamento industrial (leis de 1931 e 1937)”, na
“cartelização corporativa dos setores mais problemáticos (trigo e moagem, conservas,
vinho do Porto, lanifícios, cortiça, resinosas…)”, na “concentração administrativa” de
atividades, como os “lacticínios ou fabrico mecânico do vidro” e no “estabelecimento dos
primeiros monopólios de exploração (refinação do petróleo)”. Este tipo de regulação
reger-se-ia durante muito tempo “pelo sagrado princípio da manutenção dos equilíbrios
financeiros, económicos e sociais estruturantes da pax salazarista e da durabilidade do
regime: um desenvolvimento industrial que não” subvertesse “o mundo rural tradicional
ou o universo de coisas económica e socialmente pequenas do Portugal de então”, nem
precipitasse “processos de urbanização «perniciosos»”; um regime salarial que não
afetasse os preços e repusesse as taxas de lucro, enfim, que não alterasse “o viver
habitualmente”, mas que não gerasse “tensões incontroláveis”56.
Depois de provas dadas, a 5 de julho de 1932, Salazar seria empossado como chefe
do último Governo da Ditadura Nacional, cargo que ocuparia até 11 de abril de 1933.
Nesta fase, seria aprovada a nova Constituição, “plebiscitada em março e promulgada a
55 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de
História do Estado Novo, vol. II, p. 865. 56 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de
História do Estado Novo, vol. II, p. 865.
38
9 de abril de 1933” que trazia “a direita militar e civil republicana à plataforma
viabilizadora do Estado Novo que a União Nacional iria consagrar”57. Através deste
documento entende-se que “o chefe de Estado (o General Carmona) era, teoricamente, a
figura mais dominante”, sendo que, por exemplo, tinha a autoridade para nomear e
exonerar o Presidente do Conselho e os restantes Ministros. Mas, na verdade, a
Constituição de 1933 “instituía uma ditadura do Presidente do Conselho de Ministros”.
Salazar podia, na prática, “propor Ministros e Subsecretários de Estado ao Presidente da
República que os nomearia oficialmente”, ao mesmo tempo que “coordenava e dirigia a
atividade de todos os Ministros, que perante ele respondiam politicamente pelos seus
atos”. Logo, “a Constituição de 1933 era um instrumento da vontade de Salazar”, sendo
que este “explorou cada artigo a seu favor, interpretou as suas ambiguidades como muito
bem entendeu e reescreveu artigos quando já não lhe convinham”58. Por esta altura,
Oliveira Salazar era já o líder incontestado e omnipotente, ocupando o cargo de Presidente
do Conselho de Ministros desde 5 de julho de 1932 até 18 de janeiro de 1936 (segundo
Governo) e desde aquela data até 27 de setembro de 1968 (o seu terceiro e último
Governo) sendo então exonerado por incapacidade física59. Foi substituído por Marcelo
Caetano, vindo Salazar a falecer em julho de 1970.
2.2.2. Ideário e mecanismos de afirmação do salazarismo
Efetivamente, António de Oliveira Salazar foi uma personalidade extremamente
conservadora. Grande ativista, enquanto estudante, do Centro Académico da Democracia
Cristã e, mais tarde, do Centro Católico, sempre repudiou os exageros republicanos,
procurando manter uma amigável relação com os monárquicos e com os adeptos do
Integralismo Lusitano. Esta faceta de Salazar teve evidentes repercussões no sistema
político que liderou. As suas ideias provinham de “doutrinas católicas e
contrarrevolucionárias, na sua maioria retiradas de encíclicas papais e de pensadores
57 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de
História do Estado Novo, vol. II, p. 868. 58 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 131-133. 59 ROSAS, Fernando – «Salazar», in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.) – Dicionário de
História do Estado Novo, vol. II, p. 876.
39
franceses como Gustave Le Bon e Charles Maurras [ideólogo da Action Française], sendo
mais tarde atualizadas por Henri Massis e Jacques Bainville”60.
Na verdade, o Estado Novo distinguiu-se, entre os demais fascismos, pelo seu
caráter profundamente conservador e tradicionalista. Valorizou conceitos e ideais de
moralidade que jamais poderiam ser questionados, tais como a conhecida trilogia
salazarista “Deus, Pátria, Família”. O regime enalteceu o mundo rural, visto como um
refúgio seguro da virtude e moralidade numa sociedade consumida pelos vícios típicos
dos grandes centros urbanos e industriais. A mulher – por exemplo – viu-se reduzida a
um papel passivo dos pontos de vista económico, social, político e cultural, devendo ser
uma mãe e esposa submissa que vivesse apenas em função do marido e dos filhos, ao
mesmo tempo que cuidasse do lar.
Por outro lado, a evocação de tempos e glórias históricas do passado sobressai na
doutrina salazarista. “A sociedade medieval foi escolhida como o ideal a aspirar”
realçando-se eventos como a “reconquista cristã” e a importante ideia de que “ao longo
da Idade Média se desenvolvera uma sociedade bem organizada e hierárquica, na qual
considerações espirituais eram tidas, tanto por governantes como por governados, como
o cerne da existência humana”. Isto comprova-se com o investimento por parte do Estado
“na conservação e restauro de monumentos medievais, elos vivos com uma época que
segundo Salazar, tinha lições importantes para o presente”61.
Ainda de acordo com as tendências então em voga, o Estado Novo perfilhou um
nacionalismo exacerbado. Erigiu em desígnio supremo da sua atuação o “bem da Nação”,
expresso no slogan “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. Assim, o nacionalismo era
tido necessário para “manter a sociedade portuguesa unida face às dificuldades”, tal como
seria um mecanismo fundamental para “ultrapassar a luta de classes”62.
Seguindo a mesma linha, também o corporativismo se revelava fundamental para
manter a unidade da Nação e para fortalecer o Estado, negando o divisionismo fomentado
pela luta de classes marxista e a noção de “indivíduo” consagrada pelo liberalismo
político. O corporativismo concebia a Nação representada pelas famílias e por organismos
60 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 107. 61 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 108. 62 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 109.
40
específicos, à guarda dos quais os indivíduos se agrupavam conforme as funções que lhes
competissem desempenhar na sociedade em prol do bem comum. As corporações
incluíam, por exemplo, instituições de assistência social e caridade, as universidades e
associações científicas, literárias e desportivas, as Casas dos Pescadores, as Casas do
Povo, os Sindicatos Nacionais e os Grémios63.
Em termos políticos, o corporativismo não criou grande impacto, visto que “as
suas organizações nunca foram capazes de falar pela nação”. No campo da economia, os
trabalhadores foram tomados pela máquina corporativa na forma dos sindicatos
nacionais, ou seja, viram-se desprovidos da sua independência. De facto, “a máquina
corporativa tinha como funções prioritárias exercer uma forma de controlo social,
desenvolver o capitalismo nacional e reforçar o papel do Estado64.
Por outro lado, o corporativismo era também parte de um “programa político
católico” que Salazar muito prezava. O objetivo primordial seria, após a perseguição da
República à Igreja, “reconquistar a adesão da população” à religião, “permitindo à Igreja
liberdade de ação espiritual”65.
Neste contexto, a longevidade do Estado Novo pode explicar-se pelo conjunto de
instituições e processos que, de forma mais ou menos eficaz, conseguiram enquadrar as
massas e obter a sua adesão ao projeto do regime.
Em primeiro lugar, destaca-se o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN),
criado em setembro de 1933, tendo o Estado Novo criado o seu “mais diversificado,
profundo e duradouro instrumento” de penetração nos vários espaços de produção
cultural. Habilmente dirigido por António Ferro, concebeu um projeto totalizante que fez
de artistas e escritores instrumentos privilegiados da inculcação e da propaganda do
ideário do Estado Novo66.
Recorreu-se, também, a organizações milicianas, entre as quais se destaca a
Mocidade Portuguesa. A inscrição era obrigatória para todos os estudantes dos ensinos
63 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,
A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, vol. XII. Lisboa: Editorial Presença, 1992, p. 97. 64 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p.113. 65 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p.113. 66 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,
A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 395-398.
41
primário e secundário e destinava-se “a estimular o desenvolvimento integral da sua
capacidade física, a formação do caráter e a devoção à pátria, no sentimento da ordem,
no gosto da disciplina e no culto do dever militar”67.
Realmente nada escapava à esfera do Estado Novo e a criação da Fundação
Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), em 1935, prova exatamente isso. Tinha
como finalidade controlar os tempos livres dos trabalhadores, providenciando atividades
recreativas que possuíam como pano de fundo a moral oficial defendida pelo regime68.
Por outro lado, como outros regimes ditatoriais, o Estado Novo rodeou-se de um
aparelho repressivo que amparava e perpetuava a sua ação.
A censura prévia à imprensa, ao teatro e à rádio, enfim, a todas as áreas de
produção cultural e informativa, abrangeu assuntos políticos, militares, morais e
religiosos. Era ao “lápis azul” da censura que competia a proibição e difusão de palavras
e imagens consideradas subversivas para a manutenção da ideologia do Estado Novo.
Efetivamente, pouco ou nada escapava às malhas apertadas deste sistema de repressão:
De tão lavados pela censura, os jornais chegavam às mãos dos portugueses como
se viessem de um país em que não acontecia nada, e daí que se parecessem todos
uns com os outros, a ponto de podermos dizer que, na monotonia, todos eram
iguais, porque todos publicavam apenas o que lhes era consentido pela Censura69.
Também a criação de uma polícia política foi vista como indispensável para a
manutenção do regime. Em 1933, nascia a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do
Estado), que posteriormente seria transformada em PIDE (Polícia Internacional e de
Defesa do Estado) e, finalmente, DGS (Direção Geral de Segurança). Este organismo
ficaria responsável por perseguir, prender e interrogar qualquer possível opositor à
ditadura salazarista, sendo a sua atuação caracterizada “pelo uso permanente de meios
67 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,
A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 400-401. 68 ROSAS, Fernando (coord.) – Portugal e o Estado Novo (1930-1960), in SERRÃO, Joel; MARQUES,
A. H. de Oliveira (dir.) – Nova História de Portugal, p. 400. 69AZEVEDO, Cândido de – A Censura de Salazar e Marcelo Caetano: imprensa, teatro, televisão,
radiodifusão, livro. Lisboa: Caminho, 1999, p. 70.
42
violentos e por uma contínua e permanente violação da legalidade”. Efetivamente, o
recurso à tortura “assumiu um carácter sistemático, constituindo uma forma regular de
obter informações para os processos por crimes políticos”70.
Assim, foi através do pulso forte de Oliveira Salazar e dos mecanismos
ideológicos e politico-repressivos aqui sucintamente expostos, entre numerosos outros,
que o Estado Novo vigorou em Portugal durante 41 anos, sobrevivendo ao próprio ditador
que o criou. Não obstante as várias crises que necessariamente o abalaram (uma das
últimas e mais determinante para o seu fim foi a Guerra Colonial, iniciada em 1961),
permaneceu invicto desde a aprovação da Constituição em 1933 até ao 25 de Abril de
1974, quando foi derrubado pela Revolução dos Cravos, sendo então instauradas em
Portugal as liberdades inerentes a uma Democracia.
70 RIBEIRO, Maria Conceição – “Polícias Políticas”, in ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Brandão de (dir.)
– Dicionário de História do Estado Novo, vol. II, p. 749.
43
3. O 28 de Maio e a Ditadura Militar – a posição de O
Democrático
Após a eclosão do movimento revolucionário do 28 Maio de 1926, O Democrático
passou a apresentar, semanalmente, a sua reação aos desenvolvimentos e acontecimentos
chave subsequentes ao golpe (isto porque nada publicou sobre a sua preparação e
concretização), na qual se denota sempre – clara e firmemente – a defesa dos interesses
do Partido Republicano Português e o seu regresso ao poder, apesar de ter apontado
críticas à atuação desta formação partidária, sempre que entendeu ser pertinente.
A sua posição assumiu-se coerente e focada. Após a queda do PRP e a tomada do
poder pelos militares, o periódico apelou veementemente à união de todos os
republicanos, mobilizando-os para a luta pela manutenção do regime e seus valores, que,
antes de mais, passaria pelo derrube da Ditadura instaurada. Não se conteve na crítica aos
protagonistas deste golpe de Estado e apontou as barreiras e dificuldades que deveriam
ser combatidas para que a República fosse novamente uma realidade, fazendo questão de
relembrar sempre os baluartes celebrados pelo 5 de Outubro de 1910.
3.1. O golpe armado e a oposição à Ditadura Militar e seus governantes
Cerca de uma semana depois da eclosão do golpe militar apareciam as primeiras
reações. Na edição de 5 de junho de 1926, o jornal publicou uma nota oficiosa do PRP
que, apesar de breve, se apresentava recheada de incerteza no futuro e se traduzia num
apelo à continuação da defesa da República:
O Diretório do Partido Republicano Português, na hora grave que passa, entende
dever aconselhar a todos os seus correligionários a máxima serenidade.
O PRP tem a consciência de ter sempre procurado servir com lealdade e
dedicação a Pátria e a República. A situação em que hoje se encontra não diminui
a inabalável decisão em que continua a defender o regime sempre que este careça
dos seus esforços e sacrifícios.
44
E neste momento é-lhe grato saudar o povo republicano e todos aqueles que têm
defendido e continuem a defender o prestígio das instituições71.
Ainda na mesma edição foram partilhadas outras primeiras impressões relativamente à
triunfante insurreição militar. De facto, a incerteza e a dúvida são os sentimentos que
melhor definem as “reações a quente” deste semanário republicano. Considerou que o
“movimento militar nacional” que prevalecia “veio modificar profundamente a vida
política” vigente desde 1910. Consequentemente, o jornal apontava “o momento político
atual” como “difícil e delicado”, apesar de depositar a sua confiança nas capacidades do
General Gomes da Costa e nos propósitos por ele anunciados, já que o via como “um
militar valente e brioso, animado de um ardente patriotismo”72.
Por outro lado, o periódico – com o objetivo de proceder à defesa dos estadistas
do PRP – fez questão de refutar a informação, que alguma imprensa vinha veiculando, de
que António Maria da Silva, ex-Presidente do Ministério, escondera a verdadeira situação
política do Presidente da República, Bernardino Machado, sobre a iminência da queda do
regime. O periódico transcreveu o comunicado à imprensa do Chefe de Estado, no qual
Bernardino Machado afirmava que o Governo de António Maria da Silva “chegara à
convicção de que não podia dominar o movimento” e, por isso, pedia a sua demissão,
com o receio de derramar sangue73.
Na edição seguinte, O Democrático abriu com um artigo que transcreveu
integralmente de O Rebate, órgão das comissões do PRP em Lisboa. Neste texto
afirmava-se que quem pensava que o Partido Republicano Português ia extinguir-se após
ter sido “arrancado, violentamente do poder” estava enganado, pois a vida dos organismos
políticos e sociais era cíclica, desenvolvendo-se “através de alternantes ascensões e
depressões”, ou seja, de altos e baixos74. Desta forma, não se deveria avaliar a possível
extinção de um partido político tendo em conta apenas um episódio da sua existência,
teoria que foi reforçada relembrando-se a turbulenta história do PRP e sua governação
face às constantes tentativas do seu derrube: a crise de 1914, relativa ao pimentismo, que
71 “Partido Republicano Português – Nota Oficiosa”. O Democrático, nº 626, 05/06/1926, p. 2. 72 “Situação”. O Democrático, nº 626, 05/06/1926, p. 2. 73 “Para a História”. O Democrático, nº 626, 05/06/1926, p. 2. 74 “ Firmes!”. O Democrático, nº 627, 11/06/1926, p. 1.
45
“tomou, como pretexto, a intervenção dos elementos partidários na vida das instituições
militares”, tendo o PRP adotado “uma atitude de neutralidade política perante o exército”;
nova crise em 1917, em que o sidonismo apresentara como justificação, “a pretensa tirania
do PRP”. A partir de então o partido praticaria “uma política de transigências e
contemporizações”: de 1919 a 1925, subsistiu um clima de cooperação entre o PRP e as
restantes fações políticas, à exceção dos defensores da Monarquia, mas apesar de todos
os esforços e contendas, em 1926 rebentaria a terceira crise. É neste contexto que o
periódico apontou uma das falhas do PRP: os resultados desastrosos que surgiram da
união com outros grupos políticos. Assim, chegou à conclusão de que o caminho do
partido, daí em diante, deveria ser solitário, sem recorrer a cedências nem alianças. Seria
esta a receita que, segundo o semanário, permitiria ao PRP seguir firmemente, sem
hesitações.
Defendendo pois a continuidade do PRP/PD, O Democrático demonstrou a sua
incredulidade perante uma notícia redigida pelo “órgão da situação governamental”, A
Revolução Nacional, que informava que seria assinado um “decreto estabelecendo a
extinção pura e simples do Partido Democrático”, considerado “uma quadrilha
antinacional”. Refutando tais declarações com ironia, O Democrático replicou: “E já
agora, para a obra ficar completa, consta também que vai ser publicado novo decreto
determinando que o sol não possa iluminar as pessoas que são democráticas, ficando
assim os esbirros sabendo quem elas são para as pôr à sombra quando se tornar preciso e
sem grande trabalho”75.
Cerca de um mês após o movimento revolucionário, surgia um artigo cujo título
é, por si só, revelador do estado de espírito da equipa deste semanário: “Horas Tristes”.
Apontava-se um clima pesado e de discórdia entre os republicanos, com uma crise política
sem fim em vista. Neste seguimento, o jornal manifestou prontamente o seu
descontentamento com a atuação dos líderes do golpe militar, que prometeram
estabilidade e trouxeram tumulto. A demissão do “valente oficial” Cabeçadas, “que tanto
75 “Único!”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 2.
46
concorreu para o advento da República”, surgia como motivo de preocupação, pois só
ampliava “os receios de tempestade, do perigo iminente”76.
Sendo Gomes da Costa o líder que a direita conservadora encontrara para liderar
a revolução de 28 de Maio de 1926, não caiu nas “boas graças” deste jornal, que passou
a tecer duras críticas ao General e seus apoiantes que sequestraram Cabeçadas e
impuseram “a entrada no Governo de um outro político, mas este violento e faccioso” e
que não oferecia “garantia alguma de amor e dedicação à República como sucedia com o
Comandante Cabeçadas”77.
Apesar de muitos republicanos terem demonstrado confiança na “figura ereta de
militar valente” e que não receava “perigos” de Gomes da Costa, o jornal afirmava que
este oficial, rodeado pela direita extremista, não teria força suficiente para reagir, em
conformidade com as aspirações da República, contra “essa nefasta camarilha que desde
Braga até ao atual momento” o cercava, o guardava, o sequestrava, o inspirava, o
dominava, o torcia, o vergava, o obrigava a mudar de ideias78.
De facto, a maior crítica apontada ao General Gomes da Costa era a inconstância
e contradição constante patente nas suas decisões: “são todas as palavras, são todos os
atos do General Gomes da Costa que se contradizem, que se modificam diariamente, a
causa do receio em que vive a opinião republicana do país pela incerteza do dia de
amanhã…”79. Neste contexto, o jornal apresentou um exemplo específico e demonstrativo
da pressão que considerava estar a ser exercida sobre Gomes da Costa e que comprometia
gravemente a sua credibilidade. Tratou-se da exoneração de Ferreira do Amaral,
Comandante da Polícia de Lisboa, ordenada por Gomes da Costa, quando, no dia anterior,
o General tinha garantido ao Comandante que pretendia mantê-lo naquele cargo. Dito
isto, surgia uma “revelação gravíssima”: corriam rumores de que o próprio Ferreira do
Amaral tinha pedido a demissão quando, na realidade, havia sido exonerado do seu cargo
por Gomes da Costa80.
76 “ Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. Ver anexo 2. 77 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. 78 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. 79 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1. 80 “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 2.
47
A conduta governativa de Gomes da Costa era de tal maneira motivo de
preocupação para O Democrático que a edição de 3 de julho abriu com a notícia de que
este General, “o mais categorizado membro do Ministério”, tinha “posto nos lugares de
maior destaque dos vários serviços públicos autênticos monárquicos, sob o rótulo de
competências, demitindo os homens de funda fé republicana”. Por outro lado, é de realçar
a apreensão demonstrada pelo periódico relativamente à posição de Filomeno da Câmara
no Governo, pois temia que Sinel de Cordes, “o General de ideias monárquicas bem
definidas”, se reaproximasse do poder e ameaçasse a reconstrução da República.
Adicionalmente, o semanário constatava com tristeza e ressentimento o facto de altas
figuras republicanas, “que ao regime e à Pátria” tinham “prestado assinalados serviços”,
estarem a ser conduzidas ao exílio e “cujo crime” consistia “em não se deixarem dominar
por estes salvadores de marca bera”81.
Também nesta edição se faz um balanço, trinta dias após a eclosão do movimento
militar, que “derrubou o ministério presidido por António Maria Silva”. O periódico
esperava “um Governo forte, inteligente e experimentado”, que “executasse o programa
da revolução ou, por outra, resolvesse os assuntos pendentes e os que surgissem com
desusado critério, honestidade e firmeza...”. Porém, não era este o cenário em que o país
se via mergulhado quatro semanas após o triunfo golpe militar. Em vez disso, assistia-se
a um caos instalado:
Em 30 dias temos assistido a paradas militares, muitas paradas, banquetes e
movimento de tropas. Ministros que entram hoje e saem amanhã, quando não
saem no mesmo dia, substituição de comandos, de autoridades e corporações
administrativas e, para que a fita esteja completa, até já houve um golpe de
Estado82.
Por vezes, O Democrático apontava decisões mais ou menos irrelevantes da
Situação para a depreciar e desacreditar; por exemplo, criticou com sarcasmo uma medida
aprovada pela nova administração: a autorização do casamento a crianças com 14 anos,
81 “Confissão insuspeita – o perigo monárquico”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 82 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. Ver Anexo 3.
48
“uma medida acertadíssima, porque a população estava a diminuir
assustadoramente!...”83.
De uma forma geral, O Democrático considerava que, perante a evolução da
situação, todos saíram a perder: o povo, “sobrecarregado com uma despesa” que devia
“aproximar-se de cem mil contos, feita com o movimento de tropas e banquetes”; o país
que se viu afetado com a uma “interrupção forçada na marcha dos negócios públicos”;
“os políticos perderam porque o Governo de [...] Gomes da Costa” era “uma miscelânea”
que não servia “a nenhum dos grupelhos existentes” e “os monárquicos perderam porque
contavam com um pássaro na mão e ele fugiu-lhe para nunca mais voltar”. O periódico
considerava, numa atitude simultaneamente desesperada e inusitada, que só tinha saído a
ganhar o PRP, “cuja força ninguém” seria “capaz de destruir”84, embora tivesse sido
derrubado em consequência do golpe militar, como se sabe.
Fiel às suas origens e convicções, o semanário insistiu na defesa do Partido
Democrático que se via atacado por várias frentes, sendo apontado como o principal
responsável pelos “males da Nação”. O Democrático contestava esta teoria, desafiando
os críticos a considerarem a problemática “situação política da Europa”, nomeadamente
os casos de Espanha e França. Desta forma, afirmava que a “ruína do país” se deveria a
“um certo número de fatores inevitáveis” – comuns às situações de outros países – “e não
à política do PRP”. Portanto, tirada a exclusiva carga de responsabilidade ao PRP pelo
fracasso da política republicana, o jornal questionava os leitores e os críticos sobre o
porquê da situação do país mesmo assim, e segundo esta lógica, não melhorar85.
Ao mesmo tempo que ia relatando “a quente” os desenvolvimentos do movimento
militar, o jornal referenciou que em Vila do Conde os “acontecimentos políticos” tinham
sido “o assunto de todas as conversações, sendo os jornais lidos com interesse”86, estando
o propósito da imprensa periódica local a ser cumprido: garantir que a população se
mantivesse informada.
83 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 84 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 85 “Razão Claríssima”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 1. 86 “Pelas aldeias. Labruge”. O Democrático, nº 631, 09/07/1926, p. 3.
49
Sem surpresa, o desmantelamento da estrutura republicana impunha-se como
matéria fraturante. Uma das primeiras oposições consistiu na resistência à decisão dos
Governos da Ditadura Militar em dissolver as corporações administrativas locais. O
periódico não encontrava, nesta medida, quaisquer benefícios para os municípios.
Considerava-a um ataque ao PRP e suas resoluções, que retirava poder e autonomia de
ação “aos homens que dentro das povoações dirigiam os partidos ou tinham influência
política”. Alterações na lei como a aprovação de um novo encargo atribuído às Câmaras
Municipais, que ficavam doravante responsáveis pelo pagamento do vencimento dos
“empregados das administrações dos concelhos e a aquisição de casas devidamente
mobiladas, para residência do juiz da comarca e o respetivo Delegado do Procurador da
República”, só traziam pesados encargos financeiros às respetivas Câmaras Municipais,
o que provavelmente resultaria na criação de novos impostos ou agravamento dos
existentes87.
Relativamente a este assunto, com impacto nas localidades do concelho de Vila
do Conde, o semanário publicou as primeiras impressões dos correspondentes na
freguesia da Junqueira: “em virtude do decreto que dissolve todas as corporações
administrativas, lá se vai também a nossa Junta de Paróquia, que há anos, a contento de
todos, vem gerindo os negócios da freguesia”. Enumeraram-se os feitos da junta em prol
da freguesia e esperava-se, num misto de preocupação e insegurança, que a alternativa
que lhe sucedesse fizesse tão bom ou melhor trabalho88.
A 13 de agosto deste ano, apareciam as primeiras referências à censura instaurada
pelo regime de Ditadura Militar. O autor do artigo de abertura desta edição (que assina
apenas com a inicial “A.”) começou por se declarar contra a censura à imprensa aplicada
pelo Governo: “sou como toda a gente intransigente adversário dessa tirania, porque ela
impede-nos de dizer todas as verdades e obriga-nos a situações deprimentes”. Mas,
rapidamente, apresentou razões que fundamentavam a aplicação da censura na imprensa
portuguesa, convidando o leitor a pôr a mão na consciência. Defendia que a censura podia
e devia ser utilizada na imprensa se esta servisse de motor para a “desmoralização do
87 “Razão Claríssima”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 1. 88 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 3.
50
povo” ou se diminuísse “a autoridade dos homens por uma intensa e premeditada
campanha de descrédito”. Por outras palavras, o autor afirmava que a imprensa não tinha
“servido os propósitos da sua criação”, pois havia-se transformado num instrumento sem
moral e sem princípios que não instruía, não informava, não moralizava. Assim, a censura
parecia-lhe “não só uma medida justa e oportuna, mas também de necessidade
permanente”, chegando mesmo a afirmar: “para que a imprensa seja correta, é preciso
impor-lhe a censura. Só assim ela é o que deve ser. Abençoada censura!”89. Contudo,
como mais adiante se verá, esta posição relativamente à censura sofrerá uma modificação.
Em finais de agosto de 1926, noticia-se – de forma irónica – a queda e o exílio de
Gomes da Costa para os Açores, que chegara à Ilha Terceira em meados do mesmo mês:
“O Sr. Gomes da Costa, novo Napoleão de cartolina, em breve conheceu a tristeza da
aprazível Santa Helena dos Açores. O seu sonho de dominar teve a duração de um
instante”. Ao mesmo tempo, quando o General Carmona assumiu o poder, o tom taciturno
e pessimista do jornal relativo ao estado do país transforma-se, pelo menos em algumas
linhas deste artigo, demonstrando que depositava confiança no novo estadista e na sua
ação salvífica:
Veio a seguir o Sr. Carmona, homem de grande prestígio, e a atmosfera
desagradável que se ia criando em volta do movimento desanuviou-se um tanto.
E Sua Excelência, um homem de grandes virtudes, e se não é um sábio, um
estadista, um grande homem, impõe-se por sólida cultura e até certa elegância
espiritual. Nós acreditamos mesmo na grande virtude do seu civismo, do seu
imenso amor pátrio. Não duvidamos um instante que ele seria contente de realizar
uma obra de salvação nacional90.
Sobre este desenvolvimento político, chegaram por correspondência à redação de
O Democrático algumas reações dos vila-condenses. Em Gião, por exemplo, haviam
89 “Censura”. O Democrático, nº 636, 13/08/1926, p. 1. 90 “Per Omnia Saecula”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 1.
51
causado “verdadeira surpresa os últimos acontecimentos de Lisboa, principalmente o
passeio forçado do General Gomes da Costa até aos Açores. Ninguém previa tanto”91.
Paralelamente, o jornal apontou os “problemas gravíssimos” nas várias pastas do
Ministério que continuavam “sem solução e sem […] probabilidades de se solucionarem”.
Na pasta da Instrução, o semanário considerava urgente a efetuação da republicanização
do ensino nacional, “porque de facto em todas as escolas” se sentia “ainda a influência de
um velho jesuíta coimbrão”. Não deixa de ser curiosa esta opinião de O Democrático,
pois se em algum campo a obra da República se fez sentir com particular acuidade foi
justamente no da educação; por essa razão a Ditadura Militar e o Estado Novo (nos seus
primeiros tempos) porfiariam durante anos na destruição do ensino republicano e seus
valores. O periódico referia também o gabinete das Finanças que continuava numa
situação crítica, sendo que nas outras pastas nada se via ainda “de útil e bom”. Assim,
apesar de se erguer uma nova esperança na governação, o país – cerca de três meses após
o golpe armado – continuava “moribundo”92.
Como seria de prever, visto ser mais uma forma de enaltecer a República e fazer
oposição à Ditadura Militar, O Democrático não deixava que o aniversário do 5 de
Outubro de 1910 passasse em claro nas suas páginas. Para além dos inúmeros “Vivas à
República” e elogios a feitos passados, a mensagem principal do semanário era que se
deveria fazer “menos ruído nas festas e mais firmeza nos propósitos tantas vezes
afirmados, de emendar os erros tão repetidamente cometidos”. Resumidamente, ao
mesmo tempo que o periódico clamava que se recordasse e celebrasse sempre a
República, suplicava para que se trabalhasse de maneira a melhorá-la para torná-la digna
da Nação93. E este tom manter-se-ia durante toda a década, sempre que o calendário
marcava a efeméride da implantação da República, com O Democrático a abordar o
assunto, uma vez que a esperança pelo retorno do republicanismo esmorecia no horizonte.
Nos inícios de 1927, o periódico deu grande destaque à questão do reordenamento
do território, que se traduzia, nas palavras deste semanário, na dissolução e criação “de
distritos, concelhos e deslocamento de freguesias de um lado para o outro”. Apresentando
91 “Pelas aldeias”. O Democrático, nº 633, 24/07/1926, p. 3. 92 “Per Omnia Saecula”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 1. 93 “Na Hora de Festa”. O Democrático, nº 643, 05/10/1926, p. 1.
52
a sua oposição a estas medidas, o jornal prosseguiu com a crítica ao novo regime: “não
há dúvida nenhuma que a Ditadura está fazendo uma sementeira de ódios por esse país
fora”, visto que os “protestos fazem-se continuamente por parte dos povos prejudicados”
que veem, de um momento para o outro, “os seus direitos seculares postergados, em
benefício, na mais das vezes, de interesses de povoações que desejam prosperar e
engrandecer-se à custa do vizinho”. Nota-se, portanto, que o grande objetivo do
semanário com a redação deste artigo era fazer ver que a Ditadura Militar não tinha em
conta o supremo interesse da Nação nem procurava saber se era “da vontade dos povos a
deslocação para os concelhos absorventes”94. Sobressai neste artigo, com efeito, o
imperativo de respeitar a vontade da população e de conferir uniformidade na aplicação
das medidas, se estas viessem, de facto, a ser implementadas. Quer isto dizer que se estas
medidas fossem aprovadas, deveriam ser obrigatoriamente executadas em todo país e não
só em algumas regiões. Efetivamente, como já foi referido, a falta de critérios de
uniformização dera azo a exemplos concretos de indignação que proliferavam pelo
território nacional: “Para Santo Tirso estavam designadas duas localidades do concelho
de Famalicão. Os famalicenses bateram o pé, falaram alto e de chapéu na cabeça. E a
Ditadura houve por bem desistir de levar por diante o atentado contra o concelho de
Famalicão”95. Adicionalmente, ainda sobre esta matéria, O Democrático evidenciou a sua
inquietação relativamente ao seu próprio concelho, afirmando que a sua integridade se
encontrava ameaçada “e a gente de Vila do Conde” estava “adormecida” e não dava “o
apoio devido aos homens” que trabalhavam para que o “atentado” não se efetivasse96.
Na edição publicada a 28 de maio de 1927, o semanário apresentou a análise da
situação política nacional, compilando os acontecimentos de maior visibilidade,
precisamente um ano depois da eclosão do movimento militar. É, mais uma vez, notória
a crítica à Ditadura que, doze meses após o golpe, segundo o periódico em apreço,
nenhuma melhoria trouxera a Portugal. Recuando até ao período monárquico, O
Democrático afirmou neste texto que, “durante muitos anos”, o país viveu numa
“passividade absoluta” e que apenas com a proclamação da República em 1910 se
94 “Porque se espera?”. O Democrático, nº 656, 15/01/1927, p. 1. 95 “Porque se espera?”. O Democrático, nº 656, 15/01/1927, p. 1. 96 “Porque se espera?”. O Democrático, nº 656, 15/01/1927, p. 1.
53
começou a interessar e manifestar “pelos acontecimentos políticos” da Nação, com um
novo fôlego e “procurando de armas na mão impor ao país um novo Governo” que
satisfizesse “a aspiração de todos os portugueses”. Consequentemente, esta mudança
originou, entre outras, a revolução do 28 de Maio de 1926 que instaurou uma Ditadura
Militar com o apoio de muitos e a oposição de outros tantos. Mas, ao invés de assegurar
a reposição da paz e estabilidade em todas as frentes, o movimento revolucionário trouxe
um “constante desassossego, com a vida interina todos os dias a agravar-se de uma
maneira assustadora”. Ficaram os seguintes reparos e o apelo:
As paixões políticas que, por vezes, parecem obcecar os espíritos mais lúcidos,
têm contribuído ainda mais para a confusão nacional, pondo o país e a República
num perigo iminente. É tempo de entrarmos num período de paz, de realizações
e de trabalho. É o apelo que neste lugar fazemos de todo o nosso coração e oxalá
que este nosso desejo tenha em breves dias a sua realização97.
Em julho, foi indiretamente retomado o tópico da aplicação da censura à imprensa.
Desta vez, o jornal admitiu não tratar assuntos relacionados com política com a frequência
pretendida devido à lupa atenta da censura. No entanto, provavelmente numa tentativa de
aligeirar esta afirmação, acrescentou que o principal motivo pelo qual não trazia a política
às suas páginas era para não criar mais divergências do que as que já existiam entre os
vila-condenses, o que permite inferir das divisões de opiniões que este período de
transição provocava: “há bastante tempo que não temos tratado de política, não só devido
à censura que não nos permite a publicação dos mais ligeiros comentários, mas muito
especialmente para não criarmos maiores desinteligências entre filhos da mesma terra”98.
Mesmo assim, em agosto de 1927, num artigo intitulado “A Situação”, O
Democrático fez novamente o ponto da situação política. Mais uma vez, o
descontentamento é gritante, sendo realçada a oposição a um regime ditatorial, bem como
a falta de entendimento entre os “republicanos”, que, segundo este texto, eram também
os homens da Situação. Isto porque o jornal não desferia críticas contundentes aos
97 “Já é tempo”. O Democrático, nº 673, 28/05/1927, p. 1. 98 “Pela Pátria e pela República”. O Democrático, nº 679, 15/07/1927, p. 1.
54
políticos no poder, adotando antes a postura de os ver como republicanos (e tantos tinham
sido, efetivamente, homens do republicanismo), preferindo acusar, sem pejo ou artifícios,
a situação ditatorial que se instalara no país. Nesta conformidade, relembrava que os
“membros do Governo” que detinham “o poder” eram “na sua maioria republicanos
sinceros” e que, como tal, deveriam “repudiar, no seu íntimo, esta situação abjeta a todos
os sentimentos liberais”. De facto, uma República e uma Ditadura dificilmente poderiam
andar de mãos dadas simultaneamente, visto que são “correntes essencialmente
heterogéneas”99.
Por outro lado, o periódico recorda que no programa do movimento militar do 28
de Maio, a grande prioridade era o “saneamento da República”, de forma a remediar os
erros cometidos pelos “antigos maus políticos” – que não haviam conseguido cumprir as
suas funções competentemente e se achavam desacreditados pela população – tendo
sempre como prioridade os “sagrados interesses da Nação”. Assim, numa conjuntura
propícia, a revolução saíra vitoriosa e implantara-se a Ditadura Militar, vista como a
melhor forma “de depurar e eliminar o regime republicano das deficiências dos políticos”.
Entretanto, ocorreu um golpe de Estado, “sendo Gomes da Costa preso e deportado, sob
acusação da sua política não corresponder ao programa do exército revolucionário” –
dando-se então o primeiro grande choque entre os homens no poder; desde então, era
impossível não constatar a falta de homogeneidade entre os membros do Governo. Este
artigo encerra com uma conclusão coerente com a doutrina que defende: a única solução
residia na união de todos os “republicanos” das várias fações, através da formação de “um
Governo constitucional sem cor política em substituição do atual”100. Por outras palavras,
havia ainda como salvar a República, corrigindo a rota do movimento ditatorial, isto é,
retomar o caminho do liberalismo pela via constitucional.
Entretanto, o PRP subsistia, sobretudo por atos simbólicos, designadamente de
culto pelas suas figuras mais eminentes. O assassinato de Luís Derouet – “um velho e
valioso democrata” que se tornara o primeiro diretor republicano da Imprensa Nacional101
99 “A Situação”. O Democrático, nº 683, 12/08/1927, p. 1. 100 “A Situação”. O Democrático, nº 683, 12/08/1927, p. 1. 101 Luís Carlos Guedes Derouet (1880-1927) está profundamente ligado à história da Imprensa Nacional,
onde trabalhou desde 1902, tendo sido nomeado seu diretor pelo Governo Provisório no próprio 5 de
Outubro de 1910 e tomado posse no dia seguinte, mantendo-se no cargo até 31 de outubro de 1927.
55
– por um tipógrafo, que reclamava o pagamento salarial alegadamente em atraso102, levou
o periódico a deplorar amargamente este “atentado”, considerado “uma perda
irremediável para o interesse coletivo”, para a imprensa e para a República, informando
ainda que o próprio PRP decidira, em sessão ordinária, “lançar uma ata de voto de
sentimento pela morte do velho e dedicado republicano e prestante servidor do Estado,
Sr. Luís Derouet, e protestar contra o execrável crime que o vitimou”, assim como
“recomendar a todos os correligionários o maior espírito de conciliação, solidariedade e
colaboração com os outros republicanos”, numa época de divisão e conflito, a bem da
República103. Este apelo do PRP à conciliação e colaboração espelha a sua conduta,
marcada pela hesitação face à Ditadura. E O Democrático parece ter-se visto na
necessidade de justificar a ação (ou falta dela) do partido perante o regime de Ditadura
Militar. Esclarece, assim, que o PRP se tinha já habituado a ver as suas intenções e ações
deturpadas pelas fações opostas, mas reiterou que o partido não apoiava, de forma
alguma, a Ditadura Militar vigente. Contudo, reconheceu que, tal e qual como numa
tourada, também não podia “arremeter contra ela às cegas, com a imprudente fereza de
um toiro bravo na arena”, pois o resultado seria catastrófico. Depois desta metáfora
taurina, mas que encerra uma posição cautelosa, O Democrático tentou clarificar a difícil
posição do PRP na cena política do tempo, optando pela dupla negativa que traduziu a
recusa da polarização que marcou os anos 1920-1930, tanto em Portugal como no mundo
ocidental: “O nosso partido [...] [não] pode aproximar-se da Ditadura, nem entender-se
com o comunismo. Fica no meio, no seu lugar”104.
A propósito do pedido de empréstimo à SDN, feito por Sinel de Cordes, Ministro
das Finanças, o jornal publicou uma carta de Francisco da Cunha Leal, fundador na União
Liberal Republicana (ULR) a Óscar Carmona, Presidente da República. A ideia principal
que o texto pretendia passar era a de que a promessa de Sinel de Cordes em conseguir
contrair o empréstimo no estrangeiro se revelara um fracasso, facto aliás incontestado
pela historiografia. Mas, talvez mais importante do que isso, é o facto de utilizar a missiva
102 BRANDÃO, Fernando Castro – A Ditadura Militar 1926-1933: uma cronologia. Lisboa: Europress,
2007, p. 43. 103 “Um atentado”. O Democrático, nº 694, 04/11/1927, p. 1. 104 “Perguntas e Respostas”. O Democrático, nº 695, 11/11/1927, p. 2.
56
de Cunha Leal, um republicano conservador que passara por vários partidos republicanos,
sempre em conflito com os democráticos do PRP; portanto, enfatiza-se aqui a crítica de
um republicano conservador à política da Ditadura Militar105.
Visando abordar a pretensão de Sinel de Cordes com mais profundidade, o
periódico abriu a edição de 16 de março de 1928 com um artigo intitulado “O
Empréstimo”. Como se sabe, a SDN concedeu “o empréstimo pretendido por Portugal
mas sob duas condições consideradas inaceitáveis para o pundonor nacional”, que se
traduziam na nomeação de um alto funcionário para controlar a atividade económica e
financeira do Governo português e, no caso de este não cumprir o protocolo do
empréstimo, o envio a Lisboa de uma comissão de três membros para administrar as
receitas consignadas ao serviço do empréstimo. Perante esta conjuntura, o Ministro
Interino das Finanças, Ivens Ferraz, não aceitou “em Genebra as condições impostas pela
SDN para a concessão de um empréstimo”106. Esta recusa de um empréstimo humilhante,
que auxiliaria à resolução do problema financeiro, foi apresentada como uma salvaguarda
da honra nacional. Desta maneira, a Ditadura Militar conseguiu transformar um fracasso
diplomático numa glória política. Ivens Ferraz chegaria a Lisboa, regressado das
malogradas negociações com a SDN em Genebra, sendo recebido com manifestações de
apreço e aplauso107.
Confrontado com as circunstâncias, o jornal considerou que felizmente se salvou
a honra da Pátria e que “essa figura já histórica do General Ivens Ferraz, protótipo da
honra nacional soube levantar bem alto a honra de Portugal”. Porém, e mais uma vez, o
semanário deixaria a sua posição muito clara: “embora este jornal não comungue na obra
da Ditadura”, parabeniza a ação de Ivens Ferraz, “esse português de lei” que, em Genebra,
“se transfigurou na imagem sagrada da nossa pátria querida”108.
Adicionalmente, ainda no contexto do empréstimo pedido à SDN, o periódico
publicou um excerto de um artigo do jornal A União de crítica à Liga de Paris (conjunto
105 LEAL, Francisco Cunha – “Um notável documento”. O Democrático, nº 701, 24/12/1927, p. 1. 106 Nas palavras de O Democrático, “a Sociedade das Nações, o bluff de Genebra, o baluarte do poderio das
grandes potências, hipocritamente mascarada de protetora dos países pequenos, concedia ao nosso país o
empréstimo de doze milhões de libras, mas impunha o controlo na distribuição desse dinheiro” (nº 712,
16/03/1928, p. 1). 107 BRANDÃO, Fernando Castro – A Ditadura Militar 1926-1933: uma cronologia, p. 50. 108 “O Empréstimo”. O Democrático, nº 712, 16/03/1928, p. 1.
57
de políticos da I República maioritariamente exilados em Paris). Considerava,
ironicamente, que os seus leitores poderiam “apreciar este bocadinho de prosa”, uma vez
que o A União era um periódico afeto ao regime e O Democrático era apoiante fervoroso
de todas as convicções republicanas. Portanto, neste texto do colega rival, os membros da
liga eram considerados “maus portugueses”, “criminosos de lesa-pátria” que conseguiram
que a SDN “nos ferisse naquilo que temos de mais sagrado: no nosso brio e na nossa
dignidade”, tentando por todos os meios impedir o empréstimo e, consequentemente a
salvação do país109. O Democrático não teceu comentários, sendo já conhecida a sua
posição: total apoio ao PRP e à República.
Em 1929, e já após Oliveira Salazar tomar as rédeas do Ministério das Finanças,
o jornal perseveraria na sua defesa do PRP e oposição à manutenção da Ditadura. No
artigo de abertura da edição publicada a 24 de agosto, o Partido Republicano Português
foi caracterizado como “um partido de boa e completa organização, facto a que sempre
se deveu, principalmente, as suas inegáveis glórias e retumbantes vitórias”. Assim, apesar
de se encontrar afastado do poder em consequência da vigência da Ditadura, não se punha
de lado a hipótese do retorno do PRP à vida política nacional. Por outro lado, o jornal
enfatizou uma ideia fundamental: a Ditadura deveria ser apenas “uma mera transição
política, uma forma de Governo temporária”. Portanto, seguindo esta ideia, “logo que os
homens da Ditadura” entendessem “terminada a sua função política”, seria “o Governo
de Portugal entregue aos partidos políticos novamente”, que para outra coisa não existiam
nem serviam110.
O derradeiro desejo de voltar a ver o PRP a governar o país permanecia, como
igualmente permanecia a esperança do retorno à ordem demoliberal, pluripartidária, e,
em jeito de balanço final, o periódico concluiu que “a Ditadura serviu para demonstrar
que a República e só a República” poderia “governar em Portugal”111.
109 “Arquivando”. O Democrático, nº 713, 24/03/1928, p. 3. 110 “Organização”. O Democrático, nº 781, 24/08/1929, p. 1. 111 “Organização”. O Democrático, nº 781, 24/08/1929, p. 1.
58
3.2. A crítica aos monárquicos e o apelo à união dos republicanos
Após o sucesso do golpe do 28 de Maio e a instauração da Ditadura Militar, O
Democrático reconheceu a Monarquia (e a atividade dos seus apoiantes) como um dos
principais inimigos da República, pelo que condenou sistematicamente o regime
monárquico, os seus ideais e adeptos. Ao mesmo tempo, e de forma a combater e derrotar
esta ameaça iminente, o periódico apelou à união numa só família de todos os
republicanos, independentemente das suas fações e sensibilidades, exortando-os a não
desistirem de espalhar e praticar os ideais do republicanismo, pois só assim o inimigo
realista perderia a força, permitindo que a República resistisse.
Logo em novembro de 1926, o periódico fez questão de acentuar que “o perigo
monárquico” existia e um dos erros dos republicanos era precisamente o ato de subestimar
ou desprezar a fação monárquica, num momento crítico de conturbação política. O
período pós-golpe foi comparado à conjuntura que dera azo à contrarrevolução da
Monarquia do Norte, altura em que “Paiva Couceiro, com os seus sequazes à frente, se
encaminhava para o Monte Pedral para aquela obra de felonia bem conhecida”. Apesar
de tudo, o perigo tornava-se agora maior, visto que, depois da Traulitânia, “o inimigo […]
se refez do susto e retemperou as forças”, encontrando-se “bem organizado, forte,
decidido e apto” a dar “batalha”. Tornava-se, portanto, prioridade máxima proclamar “na
imprensa, nas associações, na rua, nos centros de conversa, em toda a parte” que a
República se encontrava perigosamente cercada112.
De forma a expor as diferenças entre Monarquia e República, o semanário
reproduziu um artigo de O Mundo, o histórico órgão de imprensa do PRP, obviamente
muito crítico das outras fações republicanas. No texto tratou-se uma contenda com o
Correio da Manhã (órgão oficioso da Causa Monárquica publicado entre 1921 e 1928)
que tinha como objetivo mostrar o grande abismo que separava monárquicos e
republicanos: os primeiros eram traidores, pois tinham considerado a hipótese de abrir as
portas a uma intervenção estrangeira (nomeadamente se a revolução republicana
eclodisse), enquanto os republicanos jamais cometeriam esse atentado à independência
do país, fosse em que circunstância fosse. Tudo isto vinha a propósito da exploração pelos
112 “O Perigo”. O Democrático, nº 647, 08/11/1926, p. 1. Ver Anexo 4.
59
jornais monárquicos sobre o caso da Nota dos Diretórios dos Partidos Republicanos – que
informava as legações dos países estrangeiros que não reconheciam qualquer empréstimo
contraído por Portugal no estrangeiro sem que essa decisão fosse aprovada pelo
Parlamento, como previa a Constituição republicana. Uma vez que o Parlamento estava
suspenso, o mesmo é dizer que esse empréstimo, a realizar-se, era “contra a lei”113.
Por outro lado, O Democrático denunciou a feroz campanha que a fação afeta à
Monarquia fazia contra os republicanos: “crescem em audácia, em ferocidade, em vileza,
as hostes realengas, a ponto de nas suas gazetas não hesitarem pedir ao Governo da
Ditadura o fuzilamento dos republicanos como seres que têm de ser eliminados por
completo da sociedade”. Neste seguimento, o jornal apelidou os monárquicos de
“assassinos” e “carrascos sedentos de sangue republicano”, esperando que a Ditadura não
apoiasse tais desígnios: “apesar de acalentados pela Ditadura, que tomam já como um
passo para a Monarquia, os seus criminosos intentos não passarão de projetos
sanguinários”114.
Numa tentativa de fazer ver aos republicanos que necessitavam de ser mais
persistentes na sua defesa da República, o jornal fez o cotejo dos esforços de propaganda
dos monárquicos e dos republicanos, constando que os monárquicos apostavam “numa
ativa e audaciosa propaganda contra a República”, enquanto a fação republicana não
tirava proveito deste meio de reação. O periódico justificou esta situação, afirmando que
os republicanos tinham deixado para segundo plano os seus princípios para darem
prioridade aos seus interesses pessoais – “de facto, os políticos da República têm cuidado
pouco da República, talvez por terem cuidado muito de si” – não investindo tempo
suficiente nas necessidades do regime. O Democrático reconheceu com tristeza esta quase
apatia por parte dos republicanos, que deveriam espelhar o seu comportamento nos
homens que fizeram o 5 de Outubro, mas que se descuidaram nos seus propósitos:
Perderam o hábito da propaganda e da luta. Desprezaram o contacto sempre
necessário com a massa popular. Não tentaram guiar no sentido da Democracia,
que outrora pregaram, a gente moça das escolas, que aí vemos a ter a Democracia
113 “Os monárquicos pediram a intervenção estrangeira”. O Democrático, nº 657, 21/01/1927, p. 1. 114 “Verdugos! Assassinos!”. O Democrático, nº 658, 28/01/1927, p. 2.
60
como um pecado irresgatável. E levados pelas suas ambições, pelas suas
vontades, pelos seus ódios, têm feito destes dezassete anos de República um
encandeamento de motivos que a têm desacreditado e arruinado115.
O jornal recusava aceitar como desculpa a objeção de que a Ditadura vigente fosse
impedimento total à propagação e luta pelos ideais republicanos, afirmando que mesmo
dentro de um regime ditatorial era possível a “propaganda dos princípios republicanos”,
era “possível a propaganda em prol de reforma de processos e costumes condenados”, era
“possível a propaganda por uma obra nova de regeneração moral, económica e financeira”
que consolidasse e impusesse a República. Este texto termina com uma pergunta
inquietante que reflete a frustração causada pela inação republicana: “andam os
monárquicos a anunciar o fim próximo da República. Onde estão os republicanos que não
sabem responder-lhe?”116.
Com efeito, nesta fase inicial da Ditadura Militar, O Democrático via a Ditadura
como uma “crise” da República, e, como atrás se sublinhou, também alguns protagonistas
da governação ditatorial foram incluídos nesse vasto conceito de “republicanos”, os quais
evidenciavam uma particular cisão com os “antigos” republicanos. Basicamente, quem
capitalizava da instabilidade vivida nas hostes republicanas eram os monárquicos que
aproveitavam para lutar por diversos meios pelos seus objetivos:
Por sua vez, os monárquicos, aproveitando a confusão das forças republicanas,
organizam-se e fazem concitar todos os seus ódios sobre os republicanos adversos
à Ditadura, levando o seu arrojo a pedirem ao Governo a reintegração no exército
dos oficiais monárquicos afastados há muito tempo, por pegarem em armas contra
a República117.
Com o intento de, uma vez mais, incentivar os republicanos a atuarem a uma só
voz, o periódico ressaltou o exemplo de Passos e Sousa, Ministro da Guerra, “como
baluarte inexpugnável da República”, uma vez que “nas suas constantes afirmações
115 “Propaganda republicana”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 116 “Propaganda republicana”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 117 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1.
61
políticas”, punha “sempre em relevo a sua fé republicana” e ia “alimentando a esperança
de que o perigo monárquico” deixaria “em breve de subsistir”. Por outro lado, esse
Ministro garantia que o Governo de que fazia parte com as medidas que ia sucessivamente
decretando salvaria Portugal “dos erros cometidos pelos antigos políticos e uma paz
duradoura” seria efetivada “entre todos os portugueses”118.
Importa salientar que o grande propósito de O Democrático era incutir ânimo e
motivação nos republicanos, alimentar-lhes a esperança no seu regime, apesar da
insurreição militar que provocara a queda do PRP, confiando na capacidade do Governo
em manter os monárquicos e as suas ambições sob controlo. Que não se desistisse da
República era a súplica permanente e sistemática.
Como não poderia deixar de ser, o semanário pronunciou-se relativamente ao
chamado “Golpe dos Fifis”, ocorrido a 12 de agosto de 1927, um movimento
revolucionário liderado por Filomeno da Câmara e Fidelino Figueiredo, com
características de radicalismo de direita. Esta tentativa, ainda que falhada, de restauração
do regime monárquico em Portugal, reforçava ainda mais os receios até agora expressados
pelo jornal: “os acontecimentos de Lisboa são uma consequência lógica de certos amigos
da Ditadura que a todo o custo se esforçam por isolá-la de todo o apoio e de todo o
sentimento republicano”. Neste sentido, o periódico retomou a já conhecida exortação:
os republicanos deviam manter-se juntos, visto que a luta não deveria ser travada entre
republicanos “que apoiam a Ditadura e republicanos que a combatem”, mas sim entre
republicanos e monárquicos119.
No que diz respeito ao panorama da imprensa nacional, O Democrático deu conta
da suspensão dos periódicos A Notícia e O Rebate, os dois únicos jornais republicanos na
capital, “em consequência dos últimos acontecimentos políticos”120. O jornal revelou
incredulidade ao constatar que, em “plena vigência da República”, a imprensa
republicana desaparecia “para florescerem folhas realistas e conservadoras”, oferecendo
exemplos como A Voz, Correio da Manhã e Novidades. Neste seguimento, apelava uma
118 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1. 119 “Uma advertência”. O Democrático, nº 684, 19/08/1927, p. 1. 120 O Mundo, por exemplo, tinha publicado a sua última edição diária (nº 8879) em 3 de fevereiro de 1927
e só “voltaria a sair anualmente para garantir o título”. (LEMOS, Mário Matos e – Jornais Diários
Portugueses do Século XX. Um Dicionário. Coimbra: Ariadne Editora, 2006, p. 442).
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vez mais à resiliência de todos os republicanos, neste caso particularmente no setor da
imprensa, visto que a República precisava urgentemente de ser defendida nas folhas dos
jornais121.
Todavia, e apesar de todos os golpes desferidos contra a República, o jornal
comunicou com entusiasmo a parada militar que em 1928 teve como palco a Avenida da
Liberdade, no aniversário do 5 de Outubro de 1910, presidida por Óscar Carmona.
Atestava-se, a partir deste ato simbólico, que a República continuava viva e que a família
republicana era ainda capaz de fazer frente às adversidades, sobretudo aos monárquicos:
As últimas manifestações levadas a efeito em Lisboa, por ocasião do 18º
aniversário da proclamação da República [...] vieram provar exuberantemente
que na alma do nosso povo está bem arreigado o sentimento da Democracia e que
a República tem elementos bastantes de másculas energias, para enfrentar os
monárquicos quando eles se dispuserem a passar à prática o que há longos meses
vêm dizendo122.
De forma a criar um ambiente de união e entendimento no seio republicano, o
periódico propôs que se fizesse uma espécie de “limpeza” e “saneamento” no Partido
Republicano Português, eliminando do seio deste órgão todos aqueles que não estavam
dispostos a dar tudo pela defesa da República. Assim, só “depois de limpinho o Partido
Republicano” é que poderia existir a “união sólida e duradoura da grande família
republicana” que encetaria então a “obra da República”123.
O periódico tentou sempre estabelecer comparações entre os dois sistemas,
apontando os defeitos da Monarquia e exaltando as qualidades da República. Tome-se
como exemplo a edição de 21 de outubro de 1929, na qual se publicou um artigo que
procedia à dissecação do sistema monárquico e seus vícios ingénitos. Esse era
considerado o regime “dos privilégios, das extorsões, dos roubos”, bombeado pelo “poder
do escândalo, do patronato, do favoritismo” e encabeçado por “ladrões” e “salteadores
121 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 731, 03/08/1928, p. 4. 122 “Na defesa da República”. O Democrático, nº 743, 09/11/1928, p. 1. 123 O Democrático, nº 775, 03/07/1929, p. 1.
63
políticos”. A Monarquia seria ainda “uma ofensa ao direito natural” e ao “direito público”,
pois, ao contrário da República, não assegurava o “direito que iguala o homem pelo
nascimento e pela morte”, não garantia o “direito que iguala o cidadão pela lei” e não
tinha “por fundamentos a razão e a justiça”. Perante estes argumentos, o jornal
considerava, redutoramente, a escolha fácil: todos os portugueses deveriam optar pela
República124.
Nesta toada, as críticas à atuação dos monárquicos perante a Ditadura
prevaleceriam nos tempos subsequentes, considerando O Democrático que a conduta dos
realistas era pautada pela hipocrisia e pelo oportunismo:
Cercam e apoiam a Ditadura, em berratas de fingido entusiasmo, sem o menor
respeito pela própria honra que lhes imporia a obrigação de não servirem a
República, sem que previamente abdicassem dos seus apregoados princípios
monárquicos. Aplaudem hipocritamente, em exibições grotescas de um impudor
revoltante, um Governo de republicanos que todos os dias afirma a sua fé nos
destinos do regime e promete ao país defendê-lo e prestigiá-lo125.
Por outras palavras, o periódico não conseguia perceber como é que os
monárquicos se podiam considerar apoiantes da Ditadura se, no seu programa, esta se
comprometeu a “engrandecer e prestigiar as instituições republicanas”. O Democrático
foi ainda mais longe e defendeu que se a Ditadura experimentasse “correr com todos os
monárquicos, desalojá-los impiedosamente de todos os lugares de confiança e mando”,
veria grande parte, senão toda a opinião republicana “criar-lhe por todo o país uma
atmosfera de simpatia que lhe permitisse […] preparar a transição” que se anunciava
“para a normalidade constitucional”126. Claramente, este periódico enfatizava que
República e Monarquia eram dois mundos diferentes que nunca poderiam coexistir:
“Republicanos para uma banda, monárquicos para outra”127. E como se pode facilmente
124 “A Monarquia – A República”. O Democrático, nº 788, 21/10/1929, p. 1. 125 “Verdades”. O Democrático, nº 807, 14/03/1930, p. 1. 126 “Verdades”. O Democrático, nº 807, 14/03/1930, p. 1. 127 “Decididamente, não!”. O Democrático, nº 824, 28/07/1930, p. 1.
64
constatar, elegia a Monarquia e não a Ditadura como o seu principal adversário, o alvo a
abater, a doutrina a erradicar do país.
Na passagem do 39º aniversário da revolta do 31 de Janeiro de 1891 no Porto, o
primeiro movimento revolucionário “cheio de audácia e de nobreza” que teve como
objetivo implementar o regime republicano em Portugal, O Democrático aproveitou a
efeméride para compelir os republicanos à ação e à defesa dos ideais postulados pelos
que combateram pela República, relembrando aos republicanos do seu tempo que era por
estes desígnios que deviam lutar:
Amemos e defendamos a Liberdade, combatendo o despotismo dos reis e o
truculento fanatismo da reação clerical; asseguremos a igualdade dos cidadãos,
reclamando a promulgação e a execução de leis sábias e justas; e procuremos, no
domínio dos nossos instintos maus, na educação e na cultura do nosso espírito, a
conquista definitiva da paz, da eterna e fraternal harmonia entre os homens128.
Outra estratégia adotada para alertar o círculo republicano do perigo das investidas
monárquicas era o recurso ao passado histórico recente da I República. O jornal tomou
como exemplo o sidonismo, encabeçado por “ditadores” com o decidido propósito de
aniquilar definitivamente os partidos “contra os quais se haviam rebelado” , sendo “pouco
a pouco empurrados pelos monárquicos, perdendo todo o contacto com os republicanos”.
Efetivamente, sobressaia o medo de ver a Monarquia apoderar-se uma vez mais do
regime, embora o periódico retomasse as palavras do Ministro da Guerra, Passos e Sousa,
o mesmo que garantira que “a questão do regime” não estaria em causa129.
Neste quadro, o periódico tentava provar a incongruência dos monárquicos em
querer imiscuir-se no regime vigente, nomeadamente na formação partidária que se havia
formalizado recentemente130: “se quiséssemos admitir a possibilidade dos monárquicos
ingressarem, com boas intenções na União Nacional, teríamos de concluir, logicamente,
128 “31 de janeiro”. O Democrático, nº 801, 31/01/1930, p. 1. 129 “Há doze anos”. O Democrático, nº 849, 23/01/1931, p. 1. 130 A União Nacional foi anunciada ao país em 30 de julho de 1930, através de um manifesto lido pelo
Presidente do Ministério, General Domingos de Oliveira, e por um discurso do Ministro das Finanças,
Oliveira Salazar.
65
que haviam renegado a Monarquia, que muitos deles serviram em altos postos de
confiança, para abraçarem desiludidos e conversos, a causa republicana”. De forma a
melhor fundamentar esta sua posição, o semanário recordava: “quem serve a Ditadura,
afirma o Governo, consolida e prestigia a República, e quem consolida e prestigia a
República, afirma toda a gente, é republicano”131.
Deixava-se, portanto, bem claro que na vida política portuguesa não existia espaço
para defensores do regime monárquico, enquanto os desenvolvimentos do poder
ditatorial, designadamente a criação de uma organização de cariz partidário que se
propunha substituir o pluripartidarismo parecia ser considerada menos nefasta aos
desígnios dos defensores do anterior regime republicano. Isto porque não esmorecia a
esperança do retorno da República, após a Ditadura cumprir o seu propósito enquanto
regime transitório, afastando a Monarquia do poder. Esta esperança espelhava-se
claramente nas palavras de O Democrático, mais exatamente no artigo “Alerta!”, sendo
pertinente questionar se tal deriva de uma convicção sincera ou de um artifício de
propaganda: “terminado o período transitório da Ditadura Militar, voltaremos – como
tantas vezes os membros do atual Governo têm publicado e sonoramente afirmado – à
República constitucional. À República democrática, representativa. Sem oligarquias, sem
castas”. Segundo as asseverações do jornal, a República não havia cumprido ainda a sua
“missão renovadora” que consistia na “criação de um Estado nítida e insofismavelmente
republicano, capaz de acarinhar e defender […] as legítimas aspirações da soberania
popular”. Este artigo finaliza-se com uma advertência: “terminada a obra da Ditadura,
regressados de novo ao constitucionalismo – não esqueçamos o período da nossa história
(1918-26), em que a reação entravou a obra de ressurgimento e consolidação republicana!
Não esqueçamos… Evite-se o que trará consequências horríveis!”132
Como se verifica, o jornal evocou particularmente o período entre 1918 e 1926,
ou seja, do sidonismo ao golpe militar vitorioso, como o período mais conturbado da I
República cuja missão fora obstruída pela “reação” – reação monárquica, certamente, mas
também reação dos setores conservadores não monárquicos e do exército, que, após várias
131 “A mesma pergunta”. O Democrático, nº 839, 07/11/1930, p. 1. 132 “Alerta!”. O Democrático, nº 841, 21/11/1930, p.1.
66
sublevações, conseguira derrubar o regime. O Democrático tenderia a sobrestimar, nos
anos subsequentes à queda da República, o perigo monárquico, mas ao referir o período
1918-1926 tinha também em conta (além dos próprios erros dos próprios republicanos) a
ameaça conservadora e antiliberal, embora não a expressasse tão abertamente, por
motivos que se prenderiam com a ação da censura. Todavia, a sua mensagem de
contestação à Ditadura era clara pela reiterada reivindicação de regresso ao
constitucionalismo.
3.3. A crítica ao Integralismo Lusitano
O Integralismo Lusitano foi um movimento de combate – ativo e influente entre
1914 e 1932 – à República e à Monarquia Constitucional, ideologicamente “em prol da
Monarquia orgânica, tradicionalista e antiparlamentar”133.
Foi no pensamento de António Sardinha, Alberto de Monsaraz e Hipólito Raposo
que nasceu esta corrente. Combinaram a “publicação de uma revista para divulgar em
Portugal as teses da Action Française” e, em abril de 1914, saía em Coimbra a revista
Nação Portuguesa, órgão do Integralismo Lusitano134.
Atingir uma Monarquia orgânica significava defender um regime anti-
individualista, no qual os conceitos de família, freguesia ou município e corporação ou
grémio profissional – que evidenciam o espírito de coletividade da população – definiam
o movimento. Por outro lado, o poder não seria partilhado, uma vez que “a sua inteira
responsabilidade” ficaria nas mãos do monarca, recusando-se os conceitos de Parlamento
ou Presidente da República. Entre outros aspetos contrários ao republicanismo do 5 de
Outubro, destaca-se a promoção do renascimento do espírito católico na alma dos
portugueses, conferindo à Igreja “a mais ampla liberdade de propaganda, organização,
disciplina interna e ação social”. Adicionalmente, defendia a restituição de tudo o que lhe
havia sido “extorquido”135.
133 ASCENSÃO, Leão Ramos – O Integralismo Lusitano. Porto: Edições Gama, 1943, p. 109. 134 RAMOS, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1994, vol. VI, p. 541. Os três pensadores tinham-se inspirado na revista Alma
Portuguesa, publicada em Gand no ano de 1913 por Luís Almeida Braga e Rolão Preto, exilados nessa
cidade por motivo do seu envolvimento nas lutas couceiristas. 135 Cartilha Monárquica: Integralismo Lusitano. Lisboa: Anuário Comercial, 1919, p. 38.
67
Além de um movimento político-ideológico, o Integralismo Lusitano constituía
“um movimento de renovação intelectual”. Mais do que em qualquer outro movimento,
sentiu-se que este “rompia com os preconceitos ideológicos das gerações anteriores e
entrava no século XX como um mundo desimpedido e arejado”136.
Como previsível, e à semelhança dos setores republicanos, O Democrático
apresentou uma forte oposição a este movimento, contestando-lhe a doutrina e os valores,
a partir de 1931.
O artigo intitulado “A Soberania Popular” caracterizou o Integralismo Lusitano
como uma arcaica doutrina monárquica, criticando, principalmente, a sua “negação do
princípio da soberania popular” que, dentro de uma sociedade culta e dinâmica como se
mostrava a do século XX, não teria qualquer lugar. A soberania popular constituía “um
princípio básico” e absolutamente legítimo e indiscutível. “Aplicado por todas as
correntes do pensamento democrático, era até mesmo aceite pela monarquia
constitucional”. Neste sentido, o periódico defendia que era descabido “o sonho doirado
desses cadaverosos tradicionalistas” de “transformar outra vez o povo, de conjunto de
cidadãos com seus direitos e obrigações, num rebanho humilde de cordeiros”, pois era o
povo quem deveria ser a fonte do poder político137.
Já nos finais de 1932, ano em que por motivos de cisões internas o tema volta às
páginas da imprensa, um artigo sugestivamente intitulado “Intregralismomania”
dissecava a história e génese deste movimento, que o semanário necessariamente
desvalorizava e reprovava. Assim, O Democrático relembrou a curta vigência da
Monarquia do Norte “quando os monárquicos levantavam, no Porto, a bandeira odiosa da
Monarquia” e vinte e cinco dias após a queda desta contrarrevolução, “a parte mais
reacionária e conservadora das hostes manuelistas separou-se e fundou o Partido que teve
a designação de Integralismo Lusitano”. Contavam com António Sardinha como um dos
seus líderes mais destacados, “um homem que não era destituído de um certo talento”, e
assim “foram desenvolvendo a propaganda da sua doutrina”. Com o advento da Ditadura
Militar, os integralistas viram “as suas fileiras engrossadas, pois comungando o novo
136 RAMOS, Rui – A Segunda Fundação (1890-1926), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal,
p. 541. 137 “A soberania popular”. O Democrático, nº 873, 31/07/1931, p. 1.
68
regime nas ideias nacionalistas daqueles, lhes dispensou certa proteção”. Contudo, em
1932, esta fação encontrava-se dividida: de um lado ficavam “os que querem antes de
tudo D. Nuno como rei e do outro os Nacionalistas-Sindicalistas […] que procuram
realizar o impossível: a implantação em Portugal de um regime corporativista” como o
que estava “vigorando em Itália”. Em conclusão, o jornal afirmou que não havia espaço
no país para esses “tiranos” que davam entusiásticos “morras à Liberdade e vivas à
escravidão”138.
O periódico vai ainda mais longe ao afirmar que o Integralismo era “uma doença
que os psiquiatras de Portugal deveriam estudar com afinco, a fim de descobrir remédio
eficaz para debelar esse terrível flagelo que atrofia as faculdades mentais de alguns pobres
infelizes”. O Democrático justificou estas declarações esclarecendo que quem possuísse
uma opinião bem formada, adequada aos tempos, aspirando uma “verdadeira e
insofismável ânsia de liberdade”, jamais conseguiria conceber o conceito de Integralismo
Lusitano na sociedade139.
O tópico do Integralismo faz emergir a aparente incoerência d’O Democrático
face à Ditadura Militar. Com efeito, se em vários dos seus textos se persevera em afirmar
que muitos dos homens do regime iniciado em maio de 1928 eram republicanos, como
anteriormente se viu, no artigo atrás referido – “O Integralismo e a Nação” – foi
abertamente afirmado que os integralistas prosperaram com a chegada da Ditadura
Militar, pois partilhavam as ideias nacionalistas com o novo regime, que assim “lhes
dispensou certa proteção”. Nesta conformidade, verifica-se que as referências políticas e
ideológicas à Ditadura Militar exaradas nas páginas d’O Democrático são heteróclitas, o
que, aliás, é comum num periódico, cuja duração no tempo e diversidade de indivíduos a
escreverem os seus textos propicia a inexistência de total unicidade ideológica, mas pode
igualmente perceber-se que as representações do regime vigente são também construídas
em função de objetivos concretos e estrategicamente definidos em vários momentos.
138 “O Integralismo e a Nação”. O Democrático, nº 940, 10/12/1932, p. 2. 139 “Intregralismomania”. O Democrático, nº 942, 23/12/1932, p. 2.
69
3.4. O apoio ao movimento reviralhista
Como bem explica Luís Farinha, o “termo Reviralho teve um uso corrente e era
utilizado pelos prosélitos da Ditadura, normalmente com um sentido depreciativo”.
Contudo, foi também um vocábulo utilizado pelos revoltosos republicanos, democráticos
e liberais, estando associado “à ideia de um movimento revolucionário relâmpago, com
o objetivo imediato de reorientação democrática do regime político-militar em
vigência”140, desde 1926 até à Segunda Guerra Mundial.
O Reviralho, entre 1926-1927, carregava um duplo sentido. O primeiro objetivo
seria “revirar” a Ditadura Militar exercida pela direita e repor a legalidade constitucional.
Porém, a situação anterior ao golpe de 28 de Maio carecia de outra alteração: o reerguer
do regime republicano, evitando ao mesmo tempo o retorno a uma República de “partido
único”141.
Estrategicamente, o movimento alimentou-se da “instrumentalização das
unidades militares dos principais centros urbanos”, através da constituição de “núcleos
clandestinos de militares revolucionários” saídos do 28 de Maio com um sentimento de
atraiçoamento dos “legítimos anseios de regeneração da República que haviam
depositado na Ditadura”142.
De facto, a Ditadura não se mostrava capaz de obter a pacificação política e social
pretendidas e num “curto espaço de tempo, sucederam-se os golpes político-militares de
17 de junho, de 8 de julho e as intentonas revolucionárias de 11 de setembro em Chaves
e do Coronel João de Almeida em 21 de setembro”143.
Do ponto de vista económico e financeiro, a Ditadura era acusada de “levar por
diante uma política de facilidades que se repercutia no aumento da dívida pública e num
decréscimo das receitas”. Desde casos como o pagamento das dívidas de guerra à
Inglaterra até à política de privatizações, “que passava pela entrega de setores onde o
Estado era maioritário, tais como os Caminhos-de-Ferro, os Tabacos, e por saneamentos
140 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 18. 141 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 18-19. 142 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 19-29. 143 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 32.
70
financeiros no Banco Nacional Ultramarino”, a oposição democrática afirmava cada vez
mais a sua posição contra o Governo da Situação144.
A este assunto, juntava-se o facto de a Ditadura Militar ter aberto a brecha entre a
família republicana: o combate feroz ao Partido Democrático e o descerramento do
caminho à “direita antidemocrática, monárquica e fascizante”. Assim, a constituição do
“bloco político-militar reviralhista” assentaria, por esta razão, “numa difícil união e na
existência de muitos equívocos políticos”145.
Um dos líderes fundadores do bloco político-militar reviralhista, Jaime Cortesão,
afirmou num dos seus textos que o grande objetivo dos reviralhistas era “restaurar o
regime e a Constituição e formar um forte Governo nacional, composto por algumas
dentre as mais competentes e honradas figuras da República”. Tratava-se não de um
movimento apolítico, mas sim de um “movimento contra os políticos, ou seja, contra o
poder sustentado pelo partido do poder antes do 28 de Maio”146.
O “núcleo conspirador inicial do Reviralhismo”, segundo David Ferreira, “partiu
do grupo da Biblioteca Nacional/Seara Nova”, no qual se destacavam Jaime Cortesão,
Aquilino Ribeiro, Raul Proença, Rodrigues Miguéis, Manuel Mendes, Câmara Reis, além
do próprio David Ferreira. A constituição do grupo ficaria oficializada a 25 de junho de
1926, dias após o afastamento de Cabeçadas do poder147.
A organização revolucionária acabaria por se sediar no Porto, à qual se juntariam
o Capitão Sarmento Pimentel, o Tenente Pereira de Carvalho e o Capitão Nuno Cruz.
Seriam indicados para chefiar a Junta Revolucionária o General Sousa Dias e o Coronel
Freiria148.
Neste seguimento, deram-se vários movimentos revolucionários ao longo dos
anos: a revolta de 3 a 9 de fevereiro de 1927, que saiu do Porto para a capital; a insurreição
de 20 de julho de 1928; a revolta das Ilhas (4 de abril de 1931) e o levantamento de 26 de
agosto de 1931. Este constante despoletar de revoluções demonstra que Portugal viveu
144 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 33. 145 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 33-34. 146 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 34. 147 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 37. 148 FARINHA, Luís – O Reviralho. Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo, p. 37-38.
71
num clima de guerra civil entre 1927 e 1931149, que resultou em fracasso para a causa dos
seus defensores.
Uma vez que o reviralhismo defendia a luta pelos mesmos ideais propagandeados
pelo periódico em estudo, O Democrático noticiou e apoiou ferverosamente as investidas
do movimento de reação republicana.
O jornal começou por constatar, para além do já anteriormente referido exílio de
republicanos opositores da Situação, a prisão de republicanos acusados de conspirar. Esta
situação causou desconforto, visto que o periódico se questionava se seria crime conspirar
em Portugal no momento de crise generalizada que estava a ser vivido150.
A 5 de fevereiro de 1927, o periódico abriu com a notícia da primeira grande
revolta republicana armada à Ditadura Militar, ocorrida entre 3 e 9 de fevereiro, no Porto,
liderada pelo General Sousa Dias à frente dos soldados de Caçadores 9. Num momento
em que cidade se encontrava a ferro e fogo e o desfecho era ainda incerto, este semanário
referia-se ao “momento de ansiedade e nervosismo, em que na cidade do 31 de Janeiro,
valorosos soldados da República” combatiam “pela sua integridade e pelo
restabelecimento da Constituição”, e colocava-se sem reservas do lado dos revoltosos: “O
Democrático, animado pela mesma fé ardente da vitória, saúda-os”151.
No número seguinte, o jornal reconheceu a “vitória do Governo” após a revolta
republicana, garantindo que tal fracasso não significou “o triunfo da Monarquia” e
declarando o seu “respeito ante os vencidos e junto dos vencedores”.
Elogiou o “cavalheirismo” e “valentia” dos combatentes republicanos no
momento dos confrontos e fez uma avaliação, apesar de tudo positiva, da ação do
Governo da Ditadura perante a derrota dos atores da insurreição:
Paladinos da Constituição Republicana, os revoltosos mostraram
desassombradamente o seu valor e a sua coragem. Fiéis ao programa ditatorial de
28 de Maio, as forças governamentais, cumpriram o seu dever. Nem uns nem
outros vacilaram perante a luta tremenda que durante 5 dias encheu de luto e de
149 RAMOS, Rui – «O fim da República». Análise Social. Lisboa: ICS, 2000, n.º 153, p. 1059. 150 “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1. 151 “Depois da vitória”. O Democrático, nº 659, 05/02/1927, p. 2.
72
pavor a população citadina. E quando os revoltosos cederam à força irresistível
do número, os vencedores mostraram que eram portugueses e que tinham bem
radicado no seu espírito o culto da Pátria e da República152.
Contudo, o periódico reconheceu que pertencia ao grupo que o Governo não
suportava e a quem eram “atribuídas com incomensurável exagero as vicissitudes da
República”. Ainda assim, apelava “aos Ministros republicanos” que estavam no Governo,
que fizessem mais e melhor “em favor das instituições” e que não se cansassem “de
trabalhar para o bem do país” para que os “republicanos sinceros” jamais tivessem “de
recear pela integridade do seu ideal implantado em 1910”153.
Neste seguimento, o jornal considerou oportuno abordar a divisão gritante nas
hostes republicanas, num momento caótico a nível político, como não se via desde a
implantação da República:
As forças republicanas estão seriamente divididas: de um lado o General
Carmona com grande parte do exército, do outro lado os antigos políticos com a
grande massa do povo republicano e grande número de oficiais do exército que
tomaram parte no movimento revolucionário de 3 de fevereiro154.
No que diz respeito ao seu concelho, especificamente, o jornal condenou a atitude
dos vila-condenses apoiantes da Monarquia: “esquecidos ingratamente da afabilidade
com que foram tratados pelos republicanos em tempos passados e acreditando
parvamente que era chegada a ocasião de satisfazerem os seus ódios represados, têm
irritado [...] os republicanos que não lhe[s] reconhecem a menor autoridade para se
suporem dentro da atual situação”. No contexto da derrota da revolta republicana, o jornal
relembrou que o “Governo venceu a revolução, mas não fez triunfar a monarquia”,
obrigando os monárquicos a esperar por uma nova oportunidade de ação na realização
das suas convicções políticas. Por outro lado, elogiou a ação do Administrador do
152 “Viva a República – 13 de fevereiro”. O Democrático, nº 660, 13/02/1927, p. 1. 153 “Viva a República – 13 de fevereiro”. O Democrático, nº 660, 13/02/1927, p. 1. 154 “Ainda é tempo”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 1.
73
Concelho, João Gaio (embora reconhecendo que o criticava em muitas outras
circunstâncias) “pela maneira correta e enérgica” como os tinha sabido “conter [aos
monárquicos] na sua sanha truculenta de canibais” e felicitava-o por afirmar o seu
“indefetível republicanismo”155.
As notícias do levantamento chegavam às freguesias do concelho, nomeadamente
a Labruge, onde “o assunto palpitante do dia” continuava “a ser os últimos
acontecimentos, sendo os jornais lidos com indivisível sofreguidão”. Era geral “o regozijo
por haver terminado as hostilidades, que tantas vítimas estava custando, sendo
constantemente louvada a nobre atitude do exército que pôs termo a uma horrorosa
carnificina entre irmãos” o que era “sumamente para lamentar”. Adicionalmente, “em
sufrágio das almas das vítimas da revolução” foram celebradas “duas missas a que assistiu
grande concorrência de fiéis”156.
A 20 de julho de 1928, apesar dos consecutivos fracassos, a oposição reviralhista
tentaria uma nova insurreição que “deveria eclodir por volta das 22h30 da noite”. Esta
investida teria “início na unidade de Metralhadoras I, localizadas no Castelo de S. Jorge”,
local de onde partiria o sinal de começo da nova operação, estando prevista ainda “a
sublevação em simultâneo de outras forças localizadas de norte a sul do país, bem como
a realização de atos de sabotagens e outros semelhantes como cortes de estradas, o corte
da linha férrea ou da linha telegráfica, entre outras”. Contudo, “pressões e hesitações mal
conhecidas no decorrer dos últimos detalhes da ofensiva por parte de alguns dos
intervenientes” levaram “ao precipitar da operação sem que houvesse tempo para
informar as restantes unidades, que esperavam o natural começo do novo golpe para as
21 horas, situação que contribuiu para a rápida desorganização da intentona e para o
naturalíssimo fracasso desta”. Assim que a Ditadura se deu conta das novas
movimentações revelou-se “extraordinariamente célere na desarticulação dos vários
núcleos conspirativos e na detenção e prisão de numerosos implicados no novo golpe,
155 “Viva a República – 13 de fevereiro”. O Democrático, nº 660, 13/02/1927, p. 1. 156 “Monárquicos rancorosos”. O Democrático, nº 661, 19/02/1927, p. 3.
74
que seriam na sua generalidade presos e sumariamente deportados para as prisões das
colónias e das ilhas atlânticas”157.
Por sua vez, embora de forma subtil, O Democrático não deixou passar em branco
esta tentativa republicana de derrube do regime ditatorial. Na edição de 3 de agosto de
1928, num artigo intitulado “Viva a República”, considerou que a República atravessava
um momento de “grave perigo” porque “tinha os seus mais fervorosos defensores
afastados para longínquas terras de África ou exilados no estrangeiro”, enquanto os seus
adversários procuravam “a todo o transe alcançar as situações mais predominantes e de
confiança para, em momento azarado, poderem, mais facilmente” dar “o golpe final”. Por
outro lado, apelou ao Governo da Ditadura Militar que tivesse, “mais do que nunca, bem
nítido o pensamento do exército republicano devendo, por isso, procurar uma plataforma
a fim de terminarem todas as lutas fratricidas” que deslustravam “a causa republicana e
até o próprio país”. Adicionalmente, o seu já largamente patenteado apelo por união
continuava: “Neste momento de infortúnio para a família republicana é necessário, mais
do que nunca, a união de todos, formando um bloco bem homogéneo contra as
arremetidas dos inimigos do regime”158.
Relativamente aos restantes movimentos revolucionários atrás mencionados –
ocorridos em 1931 – não se encontraram n’O Democrático referências aos mesmos. Tal
pode ter ficado a dever-se, uma vez mais, ao apertado controlo da censura que ia
ganhando cada vez mais força.
157 JESUS, Nuno Miguel Pereira de Sousa Ribeiro de – As Oposições ao Estado Novo entre 1926 e 1949.
Lisboa: [Edição do autor], 2008. Dissertação de Mestrado em Espaço Lusófono, Lusofonia e Relações
Internacionais apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, p. 33. 158 “Viva a República”. O Democrático, nº 730, 03/08/1928, p. 1.
75
4. Representações da figura e ação política de Salazar (1928-
1936) e críticas ao Estado Novo
Tomando em consideração os erros cometidos por anteriores Governos da
Ditadura Militar, nomeadamente no tocante à gestão dos dinheiros do Estado, O
Democrático opinou favoravelmente sobre a política de saneamento das finanças públicas
de Oliveira Salazar. Embora reconhecesse a exigência do programa, considerava as
medidas necessárias e, inclusive, apelou à paciência e colaboração da população que,
futuramente, veria os seus esforços recompensados. Assim, as críticas à atuação política
de Salazar não surgiram relativamente ao seu desempenho enquanto Ministro das
Finanças, mas sim enquanto Chefe de Estado e repressor das liberdades de pensamento,
de opinião e de ação. Efetivamente, embora necessitando de habilidade jornalística para
perfurar as malhas da censura, a transição para um novo regime não representou
impedimento para O Democrático continuar a proclamar as suas convicções de apoio e
defesa do sistema republicano e da Democracia (mais à esquerda do espectro político),
ao mesmo tempo que criticava os valores e práticas do Estado Novo.
4.1. Salazar e as Finanças
A primeira alusão a Oliveira Salazar nas páginas do semanário data de maio de
1928. Trata-se de uma reação ao discurso de tomada de posse da pasta das Finanças por
Oliveira Salazar (27 de abril) que, por sinal, causou algum impacto, devido à promessa
de uma firme gestão das finanças com o objetivo de obtenção de receitas e não dos
costumados défices. Além disso, a entrevista que o novo Ministro havia concedido no dia
seguinte à posse ao Diário de Notícias também não deixou indiferentes os republicanos
de Vila do Conde. Efetivamente, o jornal reconheceu a “enorme sensação” que produzira
no público e “em todos os meios” as “palavras altissonantes” pronunciadas por Salazar.
Teriam sido “palavras de desassombro” que “atingiram a própria administração do seu
antecessor, ou seja, da própria Ditadura”159. Ora, foi precisamente o impacto das
declarações de Salazar que o texto da última edição de maio de 1928 d’O Democrático
159 “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 721, 25/05/1928, p. 4.
76
comentou, principalmente naqueles que o antecederam. O jornal colocou em destaque a
seguinte passagem da entrevista de Salazar ao Diário de Notícias, que evidenciava falhas
graves, má gestão, corrupção inclusive, cometidas pelas administrações anteriores:
Desde que se encontra na gerência da pasta das Finanças tem notado a existência
de fisgas por onde se escoa pó, mas por onde podem passar libras e escudos, o
que quer dizer, dinheiro do Estado. Isto demonstra bem que uma rigorosa
administração dos dinheiros públicos pode fazer surgir receitas que até agora se
mantinham escondidas160.
Dada a franqueza destas palavras e a consequente “suspensão de alguns decretos-
leis” que haviam sido promulgados pelo anterior Governo, do qual faziam parte Vicente
de Freitas e Bettencourt Rodrigues (por esta data, “titulares das pastas do Interior e
Estrangeiros”), o jornal considerou que Sinel de Cordes, ex-Ministro das Finanças, se
teria “agastado e até franzido demasiado o sobrolho”, ao ler a “sensacional entrevista”161.
Ainda nesse ano, no mês de julho, o periódico fez um ponto da situação
relativamente à liderança de Salazar na pasta das Finanças. A primeira vez que tomara
posse deste cargo (3 a 27 de junho de 1926), fora “logo a seguir ao movimento salvador
do 28 de Maio […] onde pouco se demorou, sem pôr condições e sem fazer declarações
públicas” de que o estado das finanças, nessa ocasião, “fosse desesperado, embora todos
reconhecessem ser delicado”. Posteriormente, já em 1928, Oliveira Salazar tomaria
novamente as rédeas das finanças do país e tornou evidente a gravidade da crise financeira
nacional, promulgando “medidas excecionais de salvação pública”, que estavam, naquele
momento, a ser executadas. Note-se que o jornal não especifica as mencionadas “medidas
excecionais” de saneamento financeiro traçadas pelo Ministro162.
Fica evidente que, pelo menos num momento inicial, O Democrático apoiou a
conduta e políticas de saneamento financeiro de Salazar. Na edição de 21 de julho de
1928, o jornal não deixou de reproduzir as reclamações dos contribuintes relativamente
160 Note-se que o itálico presente neste excerto foi uma alteração efetuada pel’O Democrático. Cf. “Carta
de Lisboa”. O Democrático, nº 721, 25/05/1928, p. 4. 161 “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 721, 25/05/1928, p. 4. 162 “Medidas de salvação pública”. O Democrático, nº 728, 13/07/1928, p. 1.
77
“ao aumento extraordinário que tiveram as contribuições em pagamento”, mas afirmou
que se tratava de um sacrifício necessário que devia tocar a todos, pelo que os
“contribuintes queixosos” teriam de ser pacientes e cumprir o seu dever de cidadãos.
Visto que a conjuntura económica e financeira era, na altura, verdadeiramente
preocupante, muito por culpa de erros cometidos no passado, o semanário alertava os
leitores para a realidade de que “novos sacrifícios” continuariam a ser requeridos “à bolsa
do contribuinte”163 por ser absolutamente indispensável.
Em 1929, destaca-se a aprovação da autarquia vila-condense à permanência de
Salazar nas suas funções. Através da publicação dos trabalhos levados a cabo pela Câmara
Municipal na sessão de 29 de abril, o presidente da edilidade – Rui Vaz – propôs que
fosse enviado um telegrama de saudações a Salazar164. Consequentemente, na sessão de
13 de maio, informou-se que Salazar havia enviado uma correspondência de volta,
“agradecendo o telegrama de saudação que lhe foi enviado pelo aniversário da sua
permanência na pasta das Finanças”165.
Contudo, em 1932, após vários sinais de apoio e compreensão relativamente ao
Ministro das Finanças e suas medidas políticas, O Democrático publicou a sua primeira
crítica a Oliveira Salazar. Num artigo no qual se denota um tom bastante irónico –
estratégia frequente do periódico – o semanário começou por defender a liberdade de
expressão e partilha de ideias em todas as esferas da vida: “nada melhor para os
movimentos de ideias do que cada um dizer as ideias que tem”. Só este começo já pode
ser considerado uma crítica à contenção da liberdade de expressão empreendida pelo
Estado Novo. Assim, neste seguimento, o jornal dissecou algumas declarações proferidas
por Salazar, agora já na qualidade de Presidente do Conselho de Ministros, aquando da
posse da 1ª Direção da União Nacional. Focou-se, primeiramente, na passagem “os que
não concordam (com o programa de Governo) podem ser igualmente sinceros e dignos,
confessando a sua não concordância; são mesmo livres de proclamá-la”. Ora, perante esta
afirmação, os redatores do jornal logo asseveraram que eram “dos que pensam que a
liberdade de proclamar uma atitude política” se tratava “de uma regalia que se conquista
163 “O maior sacrifício”. O Democrático, nº 729, 21/07/1928, p. 1. 164 “Câmara Municipal”. O Democrático, nº 766, 03/05/1929, p. 2. 165 “Câmara Municipal”. O Democrático, nº 768, 18/05/1929, p. 2.
78
e não de uma concessão que se aceita”. Porém, “dadas as circunstâncias de todos
conhecidas” – ou seja, os parâmetros que regem uma ditadura – o periódico resignava-se
à obrigatoriedade de “aceitar os factos” sem, contudo, abdicar do direito à liberdade de
pensamento, já que a liberdade de ação estava irremediavelmente condicionada166. Posto
isto, as palavras de Salazar que mais incómodo despertaram na redação deste jornal
foram: “Não estão connosco os que preferem à obediência a sua liberdade de ação, nem
os que sobrepõem às diretrizes superiormente traçadas as indicações da sua inteligência,
ainda que esclarecida, ou os impulsos, ainda que nobres, da sua vontade”. Perante este
claro ataque ao global conceito de liberdade, O Democrático cimentava a sua oposição:
“Nós somos exatamente destes, dos que preferem a liberdade à obediência, dos que
sobrepõem a tudo as indicações da inteligência e os impulsos nobres da sua vontade”167.
Trata-se, portanto, do primeiro confronto com a Ditadura e com Salazar, num tom, diga-
se, forte e determinado.
Os comentários a este discurso continuaram, designadamente através da
transcrição de um artigo retirado do periódico A Voz da Justiça, da Figueira da Foz. Este
jornal evidenciou uma parte específica do discurso do ditador, na qual Salazar se dirigia
às forças partidárias, afirmando que, basicamente, não havia espaço para negociação, nem
“transição”, nem “transigências possíveis”. Ou seja, quem estava a favor da Situação
cumpria “um ato patriótico”, trabalhando abertamente com o regime; quem estava contra
seria livre de exprimir esses pensamentos, contudo a sua atuação política seria gerenciada
pelo regime da melhor forma para que não incomodasse “demasiadamente”. Perante,
estas declarações, A Voz da Justiça, também ele de tendências democráticas, posicionava-
se no grupo “dos que discordam”: “Somos livres de proclamar essa discordância.
Proclamamo-la desassombradamente mas leal e corretamente, com a liberdade expressa
nas palavras do Chefe do Governo”. Por outro lado, este jornal fazia uma reflexão
pertinente, constatando que defendia “princípios opostos aos da Ditadura”, o que
resultava, “logicamente”, na sua “oposição” à mesma168. Através da publicação deste
166 “Atitudes claras”. O Democrático, nº 939, 02/12/1932, p. 1. 167 “Atitudes claras”. O Democrático, nº 939, 02/12/1932, p. 1. 168 “Nós, os que discordamos”. O Democrático, nº 941, 16/12/1932, p. 1.
79
artigo nas suas páginas, compreende-se que O Democrático subscrevia toda a linha de
pensamento patenteada pelo seu congénere figueirense.
Por último, em 1933, o periódico publicou uma carta redigida por Rocha Martins
– por esta altura, ativo oposicionista do Estado Novo – dirigida a Salazar. Este documento
surgia na sequência de um ofício que Rocha Martins havia recebido, assinado por Alfredo
Ferreira Gil (2.º comandante da polícia), segundo o qual não seria “permitido qualquer
ato comemorativo da histórica data de 24 de Julho de 1833”, que levantou o Cerco do
Porto e pôs fim ao despotismo de D. Miguel. O ativista político e historiador tentou
convencer Salazar a dar permissão à celebração das comemorações daquela importante
data histórica169. O Democrático não chegou a revelar se existiu resposta por parte do
Presidente do Conselho.
4.2. A crise do trabalho
A crise mundial de 1929 fez-se sentir também na economia portuguesa ao longo
da década de trinta, mais gravemente nos seus anos iniciais:
Com a desenfreada concorrência dos produtos estrangeiros, muitos setores da
agricultura e do comércio entraram em crise, sem que o crédito bancário lhes
pudesse melhorar as condições de vida. Ao longo do[s] ano[s] foram muitas as
casas bancárias que deixaram de satisfazer os seus compromissos em
numerário170.
O desemprego desencadearia a fome e o desespero em muitos lares.
Em julho de 1931, surgiam as primeiras notícias relativamente à carestia de
trabalho que assombrava todo o país. Vila do Conde não foi exceção. O jornal atestava
que também na vila já se sentia o peso e as consequências do desemprego, apelando aos
responsáveis da autarquia para que “procurassem junto do Governo” os meios necessários
para atenuar este flagelo que se vinha a agravar. A solução passaria pela obtenção dos
169 ROCHA, Martins – “Carta ao Doutor Oliveira Salazar, Chefe do Governo Português”. O Democrático,
nº 971, 28/07/1933, p. 3. 170 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo, p. 194.
80
subsídios necessários para a efetuação de obras e melhoramentos necessários na
localidade que, por sua vez, estimulariam as oportunidades de emprego171. Contudo, em
época de crise generalizada, tal situação não se concretizou e, segundo as colunas d’O
Democrático, a situação piorava rapidamente por todo o concelho. Através de
correspondência enviada das freguesias, revelava-se que também por lá se encontravam
“bastantes operários sem trabalho, em consequência da grande crise” que avassalava “o
mundo” 172, sendo cada vez maior o número de lares em que a fome já era uma
realidade173. Apesar de tudo, constatava-se com alívio que dos muitos emigrados em
França nenhum havia ainda regressado “por escassez de trabalho naquele país”174.
Perante a difícil conjuntura, a autarquia tomou providências básicas. “Em
harmonia com o decreto 20.222 de 15 de agosto último”, enviaram-se “ao Instituto de
Seguros Sociais Obrigatórios, devidamente preenchidos, os boletins de desemprego de
todos os indivíduos” da vila e concelho que se encontravam sem trabalho175.
Em julho de 1932, o jornal noticiou com agrado que a Companhia de Tecidos Rio
Ave havia adquirido um terreno a norte das suas instalações “para ali ser construído um
grande bairro operário, de 80 prédios, uma escola com os mais requisitos exigidos, e uma
creche”176. As instalações foram inauguradas cerca de um ano depois e O Democrático
relatou os festejos com entusiasmo ao ver tal iniciativa social ser levada a cabo na vila,
com o objetivo de atenuar o problema do desemprego gritante177.
Numa crítica direta a colaboradores do Estado Novo, nomeadamente do setor da
Igreja, o jornal comentou sarcasticamente declarações feitas pelo Cardeal Cerejeira no
livro A Igreja e o Pensamento Contemporâneo. Nas palavras d’ O Democrático, “há uma
passagem, francamente, com a qual concordamos em absoluto e que não podemos deixar
de aplaudir com entusiasmo: a de S. Exª inculcar o jejum com tanta oportunidade para a
171 “Notas. A falta de emprego”. O Democrático, nº 872, 24/07/1931, p. 1. 172 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 4. 173 “A falta de trabalho”. O Democrático, nº 914, 03/06/1932, p. 2. 174 “Pelas aldeias. Junqueira”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 4. 175 “Desempregados”. O Democrático, nº 877, 04/09/1931, p. 2. 176 “Novas construções. A fábrica de tecidos Rio Ave vai construir um grande bairro”. O Democrático, nº
918, 02/07/1932, p. 1. 177 “No edifício da fábrica Rio Ave. Uma obra social que se impõe”. O Democrático, nº 979, 22/09/1933.
81
época de crise que atravessamos”178. Considerando o tema do jejum extremamente
inapropriado nos dias que corriam, o periódico escarneceu desse incentivo de índole
religiosa:
O jejum, porém, inculcado por sua Eminência, não teve só em vista, como devem
ter suposto muitos pedreiros livres, poder vir a prestar assim com ele, um
benefício enorme aos indivíduos que se encontrem desempregados, ou aos que
mal ganhem para se alimentarem convenientemente, beneficio que, como o leitor
deve ter compreendido, consiste em os fazer esquecer, ao jejuarem, as agruras
porque venham passando179.
Nos inícios de 1932, o semanário apresentou um artigo de Duarte de Gusmão180,
que apresenta uma análise geral sobre a crise que atravessava a Europa, revelando
algumas propostas de resolução, sobretudo para o caso português. A evolução industrial
era considerada um dos fatores que contribuíra para o aumento da amplitude das crises
de produção e desemprego. “Na indústria antiga o mal tinha menos importância”, visto
que, “dada a pouca extensão das oficinas e a escassa concorrência, as oscilações revestiam
menos amplitude e os estabelecimentos desapareciam lentamente dando ao operário
tempo para procurar colocação”. Porém, no século XIX, o desemprego depressa começou
a tomar proporções graves, devido à “concorrência mundial ativa que fez aparecer a
superprodução; à descoberta de novas máquinas, que deixaram, bem depressa” um
elevado número de operários sem ocupação, “com a agravante de que tornou
desnecessários os operários que se haviam especializado num trabalho determinado e que
não podiam dedicar-se, em muitos casos, a outra ocupação”; e, finalmente, devido “à
concentração de grandes massas de operários nas regiões e centros fabris”. Efetivamente,
o desemprego encabeçava a lista dos problemas de inícios dos anos 1930, para o qual
178 VAGUEIRO, H. M. – “Ao de leve. De bom humor”. O Democrático, 05/08/1932, p. 1. 179 VAGUEIRO, H. M. – “Ao de leve. De bom humor”. O Democrático, 05/08/1932, p. 1. 180 Foi um “académico” (O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p. 1) e opositor da Situação que chegou a ser
preso a 20 de fevereiro de 1936 (Duarte Vilhena Coutinho Feio Ferrery de Gusmão. Memorial aos presos
e perseguidos políticos, 45º aniversário do 25 de Abril. Disponível em
<https://www.memorial2019.org/site/presos/duarte-vilhena-coutinho-feio-ferrery-de-gusmao> [acesso em
19/09/2019]).
82
ainda não se havia colocado “em prática remédio algum”. Entre algumas das soluções
apresentadas por alguns teóricos mundo fora, o autor destacava a redução das horas de
trabalho e a supressão das máquinas pelos piores motivos. A seu ver, a redução do horário
de trabalho poderia, na realidade, “produzir resultados em determinadas indústrias, como
na dos transportes e naquelas em que o trabalho se executasse sem o auxílio de máquinas,
como na da edificação” mas, ainda mesmo nestas, oferecia “o inconveniente de elevar os
preços dos produtos, tornar mais difícil a vida dos operários ou restringir a produção”.
Por outro lado, defendia que a máquina, ao invés de ser destruída, deveria antes ser
aperfeiçoada, contudo, não deveria pertencer “ao patrão”, mas sim a quem a dirigia,
“como a terra a quem a trabalha”. Dado que tais premissas não tinham ainda “aplicação
prática viável”, invocava o importante papel do Estado no auxílio da população em
necessidade, neste caso os “sem trabalho”, através de duas medidas que considerava
justas: “pedir ao Sr. Ministro das Finanças que seja distribuído urgentemente […] [um]
subsídio [e] solicitar do Governo que os reformados que recebam mais de 300$00 mensais
não possam desempenhar outros cargos”. O artigo não terminava sem o seu autor afirmar
que as reivindicações dos desempregados eram justas, visto que estes pediam justiça e
não esmolas181. Este discurso espelha, claramente, como se pode constatar, uma posição
progressista, até socialista, que o semanário decide divulgar, embora essa não pareça ser
a sua posição ideológica predominante, se bem que o contexto de crise económico-social
profunda o leve a destacar a luta do movimento operário internacional no combate à crise
e às injustiças sociais. Noticiou, por exemplo, a contestação aguerrida dos operários em
Espanha que, perante a grave crise, procederam à criação de sindicatos extremistas numa
luta por melhores condições, assistindo-se então à formação de associações operárias
inspiradas no princípio da emancipação económica, adotando a forma de sindicatos
profissionais182:
Conforme vimos, os operários enfileiram-se, de preferência, nas agrupações
extremistas e lançam mão dos meios violentos para conseguirem o que os
181 GUSMÃO, Duarte de – “A crise do desemprego”. O Democrático, nº 910, 29/04/1932, p. 2. 182 “O movimento proletário espanhol”. O Democrático, nº 902, 04/03/1932, p. 1.
83
Governos prometem sempre para lhes inspirar confiança, mas nunca cumprem: a
proteção dos desempregados e inválidos183.
A situação vivida no Chile também foi realçada. À semelhança de Espanha, os
operários chilenos organizavam-se em sindicatos e reivindicavam junto do Governo
melhores condições de trabalho e mais direitos. A situação era deveras delicada, uma vez
que os tumultos se sucediam, assim como as deportações. Enfim “o descontentamento”
lavrava “entre o proletariado”184.
4.3. A ética republicana face aos valores do regime ditatorial
Sendo O Democrático um periódico defensor do ideário republicano, contrapôs
os seus valores aos princípios defendidos pelo Estado Novo. Pronunciou-se acerca da
influência da Igreja Católica, a propósito da incomensurável importância da educação na
sociedade moderna, e criticou o cego sentimento de nacionalismo que o regime
incentivava. Para além da crítica, a oposição deste semanário manifestou-se através de
uma postura ativa de divulgação, exaltação e defesa dos princípios da Democracia e da
Liberdade.
4.3.1. Catolicismo e laicidade
As relações entre o Estado e a Igreja tiveram particular importância durante o
salazarismo. Segundo Manuel Braga da Cruz, o “regime autoritário instaurado em 1926
assumiu desde o início uma orientação ideológica dominantemente católica”, tendo sido
classificado como “um nacional-catolicismo”. Para esta situação, teria contribuído o facto
“de serem católicos muitos dos principais quadros dirigentes do regime” e “de ser Salazar
um dos principais dirigentes do partido católico durante a I República e amigo íntimo” de
Gonçalves Cerejeira, “Cardeal Patriarca de Lisboa desde 1929 até aos últimos anos do
regime”. Apesar das estreitas relações entre as duas entidades, Braga da Cruz considera
que, ao invés de um nacional-catolicismo, o salazarismo – do ponto de vista das relações
183 “O movimento proletário espanhol”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 1. 184 “O caso do Chile”. O Democrático, nº 917, 23/06/1932, p. 1.
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entre o Estado e a Igreja – pode ser caracterizado como um catolaicismo “em que à
laicidade do Estado se associou uma orientação católica dominante, à separação jurídica
se juntou uma estreita colaboração moral, com a independência dos poderes”,
verificando-se “um entendimento na prossecução dos interesses de ambos que, em muitos
aspetos, foram coincidentes”185.
Em 1928, o periódico publicou uma carta de Lisboa com relatos acerca da
peregrinação a Fátima realizada a 13 de maio do mesmo ano, realçando a sua
“grandiosidade espantosa”, tendo contado com cerca de duzentos mil peregrinos186. Estas
descrições não eram isentas de relevância dado que, em 1926, a peregrinação havia sido
proibida pelo regime anterior, facto que não desmotivou O Democrático a trazer o assunto
à colação. O autor da carta teceu duras críticas à República, na sequência dessa interdição:
Com mágoa o dizemos, há uns 3 anos, foi esta perseguição proibida. Por que
razões, não o sabemos […]. Podemos afirmá-lo afoitamente [que] com tal
proibição nenhum prestígio veio para a República. Antes pelo contrário. Cedeu-
se à pressão de uma ínfima minoria que agitou como espantalho a ofensa ao
espírito liberal. Foi um erro que se cometeu e votos fazemos para que não se
reincida nele187.
O redator deste artigo aproveitou a oportunidade para expor o seu ponto de vista:
a verdadeira liberdade, defendida também sob o ideário republicano, residiria na
possibilidade de todos os cidadãos serem livres de manifestar publicamente, “dentro do
maior respeito e compostura, as suas crenças religiosas”188.
Noutro passo, em clara reprovação à conduta da Igreja Católica, o periódico via
com “certa estranheza” uma nota semioficiosa que vinha a público na maioria dos jornais
diários, “com a chancela «Centro Católico Português»”, pedindo aos diretores desses
periódicos para solicitarem do público contribuinte o pagamento integral, no corrente mês
185 CRUZ, Manuel Braga da – O Estado Novo e a Igreja Católica. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1998, p. 11-
16. 186 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4. 187 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4. 188 ARIETE, José – “Carta de Lisboa”. O Democrático, nº 722, 01/06/1928, p. 4.
85
de julho, de todas as contribuições em que está coletado”, de forma a “facilitar a obra de
saneamento financeiro e económico” em que estava empenhado o Ministro das Finanças.
O Democrático opôs-se, de forma sarcástica, a esta situação, acusando o Centro Católico
Português e o seu presidente de oportunismo:
Muito nos apraz registar uma tão grande, desinteressada e louvável solicitude
pelas coisas públicas por parte do CCP [Centro Católico Português] e não será de
admirar que lá para o fim do mês, no caso de não terem sido ouvidas as súplicas
daquela pia, utilíssima e patriótica instituição, tão intimamente ligada à corte
celestial, sejam ordenadas preces benditas e procissões de pertinência para que o
Altíssimo possa inspirar o espírito dos cidadãos portugueses ao cumprimento dos
seus deveres de contribuintes, porque, caso contrário, lá os espera … o relaxe, as
excomunhões do papa Lino Neto189 e o inferno de novos aumentos de décimas190.
Já em 1936, o semanário publicou um artigo a propósito da colocação de
crucifixos nas escolas primárias191. O autor do texto mostrava-se claramente a favor desta
medida, embora reconhecesse que ela havia sido recebida com estranheza pela
generalidade da população, tanto por “diplomados” como por “instruídos sem diploma”.
Justificava a sua posição recorrendo a exemplos da Bíblia e da vida de Jesus Cristo, que
considerava um exemplo de tolerância, bondade e superação. Assim, a seu ver, seria uma
boa inspiração e modelo a seguir pelas crianças que iniciavam o seu percurso escolar de
preparação para a vida adulta. Nas suas palavras, se fosse professor primário, o autor do
artigo diria aos seus alunos que Jesus se encontrava simbolicamente na sala de aula não
para que rezassem como rezariam na igreja, mas sim para que seguissem os bons
ensinamentos que este revelou: amor e ajuda ao próximo; amor e respeito pelos pais; bons
hábitos de trabalho que, neste caso, seriam de estudo para um dia mais tarde os aplicarem
ao emprego e ganharem o pão de cada dia e respeito ao “Estado e aos Poderes legalmente
189 Presidente do CCP entre 1919 e 1934. 190 “Contribuintes! Cuidado”. O Democrático, nº 728, 13/07/1928, p. 1 191 Tratou-se da lei n.º 1941, de 11 de abril de 1936, promulgada pela Assembleia Nacional, que remodelava
o conjunto do sistema educativo e estabelecia os propósitos do regime expressando-os num conjunto de
catorze “Bases”.
86
constituídos”192. Posto isto, note-se, em primeiro lugar, o itálico aplicado nesta frase, visto
que pode ser considerado uma crítica subtil à legitimidade legal do aparelho do Estado
Novo. Em segundo lugar, não deixa de ser discutível se este último ensinamento poderá
ser incluído nos ensinamentos deixados por Jesus Cristo, como o autor sustenta. Esta
presença simbólica que visava ensinar as crianças a respeitarem a lei e o Estado podia,
obviamente, ser vista como uma manobra política de utilização da religião em benefício
do poder estatal. Contra este possível argumento e outros que se pudessem levantar, o
autor defendia-se, replicando que as suas declarações apenas traduziam uma “sincera
opinião”193. Certo é que O Democrático publicou este texto, o que pode ser visto como
manifestação de tolerância mas também se deve atentar que os tempos eram já outros,
com o regime ditatorial a apertar o cerco e a jugular opiniões contrárias, muito
concretamente órgãos de imprensa que lhe eram tradicionalmente desafetos, como
aconteceu a este periódico e tantos outros, neste mesmo ano de 1936.
Através da análise destes exemplos de referências à Igreja Católica no Estado
Novo, pode-se verificar que este semanário – embora absolutamente defensor da
República – não embarcou numa perseguição feroz e aleatória à religião. Os comentários
mais veementes que foi produzindo não se relacionavam com a legitimidade da prática
das crenças católicas, mas sim com a hipocrisia e/ou oportunismo das suas instituições,
muitas vezes de mãos dadas com o poder, face a uma população maioritariamente
católica.
4.3.2. “Educar, eis o problema!”194
Segundo Ribeiro de Meneses, “Salazar via a educação como uma poderosa
ferramenta capaz de transformar os seus concidadãos”. Contudo, ainda que “ a educação
fosse um importante foco de ação para o Estado Novo, permaneceu, tal como todas as
outras áreas de ação do Estado, subordinada aos condicionalismos financeiros impostos
por Salazar”. Existiu efetivamente “uma expansão continuada, ainda que lenta da rede de
escolas primárias, mas o ensino ia sendo esvaziado, tornando-se cada vez menos
192 JÚNIOR, J. R. Costa – “A propósito de Cristo nas escolas”. O Democrático, nº 2005, 24/04/1936, p. 3. 193 JÚNIOR, J. R. Costa – “A propósito de Cristo nas escolas”. O Democrático, nº 2005, 24/04/1936, p. 3. 194 VIANA, Mário Gonçalves – “Educar, eis o problema!”. O Democrático, nº 2002, 03/04/1936, p. 3.
87
académico e mais moralista e abertamente político”. Com Salazar no poder, “a
escolaridade obrigatória baixou dos cinco para os três anos” e “o curriculum foi limitado
à leitura, escrita, aritmética e aquisição de princípios religiosos e morais básicos”,
insistindo-se na “necessidade de um livro único para todas as disciplinas”195.
Sendo um periódico republicano, O Democrático sempre tomou a alfabetização
como um dos seus maiores baluartes na busca do progresso e modernização da sociedade.
Desta forma, denunciava o atraso intelectual de grande parte da população (facto que, de
certa forma, em Ditadura era encorajado, uma vez que quem não sabe não questiona), e
propunha formas de solução que, a seu ver, o Estado deveria aplicar para combater, desde
logo, o flagelo do analfabetismo e o genérico atavismo que impedia a evolução do país.
Em meados de 1932, o jornal destacou o atraso intelectual do país, que vivia
agarrado “a velhos preconceitos” que já não se coadunariam “com a vida moderna”.
Efetivamente, apontava que os portugueses haviam conservado, “através dos séculos, a
mesma mentalidade rotineira, conservadora, incapaz de compreender os mais instantes
problemas”. Como antídoto para tão profundo mal, preconizava a adoção do ensino
racionalista que consistia “em educar a criança ministrando-lhe apenas os conhecimentos
que a sua inteligência facilmente aprende”, algo que “nunca passou de uma doce quimera”
em Portugal. Dado que a laicização do ensino fora um dos princípios amplamente
defendido por dirigentes da República proclamada em 1910, o autor deste texto via-se na
necessidade explicitar as diferenças entre os conceitos de escola racional e escola laica,
uma vez que considerava que muitas pessoas ainda confundiam os dois termos. Na sua
elucidação, indicava os vários defeitos e falhas mais prementes do ensino laico, realçando
a superioridade da escola racionalista. Assim, a escola laica reconhecia “todas as mentiras
sociais, com exceção da mentira religiosa”. Por outro lado, conduzia “a criança à mais
degradante subserviência a formas político-sociais, dispensando-se do mais importante:
o desenvolvimento crescente do seu raciocínio”, sendo neste aspeto que mais se
distanciava da escola racionalista. Posto isto, o autor constatava que o ensino português
não era nem laico nem racionalista – “apenas neutro”. Era nesta corroboração que residia
o verdadeiro problema: “no ensino não há nem pode haver neutralidade aceitável”, porque
195 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 182.
88
esta conduzia o professor a uma situação paradoxal, em que “não ensina a superstição e
o fanatismo”, por ser neutro; mas também “não ensina a verdade guiada pela ciência,
porque continua a ser neutro”. Este seria o impasse que obstaculizava o progresso nas
escolas, uma vez que não se ensinava a mentira, mas também não se ensinava a verdade.
No final, o autor concluiu – sem surpresa – que o ensino racionalista seria a hipótese
válida, sendo o único, de facto, científico, e, por consequência direta, verdadeiro196.
Ainda no mesmo ano, outro artigo apresentava uma crítica direta e engenhosa ao
excessivo enaltecimento dos feitos do passado e incentivo ao amor cego à Pátria,
fortemente instilados pelo ideário do Estado Novo. Recorria a uma das personagens
criadas pelo dramaturgo João Gonçalves Zarco da Câmara (1852-1908) para retratar,
“com maior fidelidade, o carácter teórico” da raça portuguesa: um “fidalgo arruinado por
libertinagens incontáveis” que “encolhe placidamente, serenamente os ombros, ante a
sombra da fome que o espreita, sofrendo os seus ímpetos, com a esperança vã da chegada
de um filho ausente, carregado de ouro pedrarias”197. Servia esta descrição com recurso
à literatura para que o autor fosse ainda mais longe no seu raciocínio:
Todos nós temos, afinal, um pouco do velho fidalgo da novela desde que
confiamos aos deuses celestiais e terrestres, ao acaso, às lotarias e à fortuna, o
nosso destino glorioso de povo guerreiro, conquistador marítimo, colonizador
valentaço e patrioteiro. E desde quatrocentos, desde as arremetidas heroicas das
Índias e das Áfricas, em cujas plagas germinou, como um anátema, a nossa
miséria, alguém tem velado por nós, pelo nosso futuro198.
Através desta reflexão, O Democrático pretendia demonstrar que os portugueses
heroificados nas grandes epopeias e valerosas conquistas históricas nunca foram senhores
de si próprios, nunca comandaram o seu próprio destino, deixando-o ao arbítrio dos
deuses: enquanto “outros povos, atingida já a meta da idade positiva, comandam bem ou
mal a sua atividade, nós mais felizes estacionamos na idade teológica e deixamos aos
196 GONÇALVES, Alexandre Jorge – “Escola Laica e Escola Racional”. O Democrático, nº 912,
20/05/1932, p. 1. 197 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1. 198 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1.
89
mitos e aos ídolos esse pesado e difícil encargo”. Esta asserção positivista-comtiana, tão
entranhada na ética republicana lusa – se bem que já um pouco ultrapassada
filosoficamente nos anos 1930 – não condenava a leitura “em adoração mística” das
maravilhas da história do país, mas ela teria de ser feita com a consciência de que os
“antolhos não […] deixam ver as realidades da vida moderna”. Esta é, efetivamente, a
ideia basilar do artigo em apreço: a História nacional e os feitos heroicos das suas
personalidades deviam ser estudados e admirados por todos, contudo era fundamental não
permitir que o “elogio da raça” – elemento axial da propaganda nacionalista do regime
em ascensão – significasse a estagnação do presente, alimentado apenas pela mirada do
passado. Isto porque, “como raízes de heras apegadas à rigidez dos basaltos”, a Nação
encontrava-se agarrada, “há seculos, à Índia e ao Gama”, vivendo no passado sem
solucionar os problemas do presente199. Numa profética e acertada antecipação do que
seriam os tempos futuros, mesclando ironia e fina crítica política, o artigo abordava a
Situação e o seu ideário nestes termos:
Somos um povo ignorante e inculto? Que importa? Temos Os Lusíadas…
A nossa instrução é uma miséria? Descobrimos o Brasil.
A educação infantil é um crime. Não possuímos escolas onde modernos métodos
pedagógicos incitem e desenvolvam as atividades embrionárias. Liceus,
Faculdades, Universidades arejadas, amplas, donde dimane livre e irradiante a
luz da ciência? Temos sebentas…200
Três anos volvidos, em 1935, o periódico publicou um artigo reproduzido d’ O
Eco de Pombal acerca da imprescindível necessidade de extinção do analfabetismo,
avançando eventuais soluções para extirpar esse mal profundo e estrutural da sociedade
portuguesa. O seu autor, Lucas Alonso, abre com a constatação de que já haviam sido
experimentadas “muitas tentativas […] para se conseguir, quando não a suspensão
completa, pelo menos uma diminuição sensível na desoladora percentagem da população
analfabeta de Portugal”, porém eram “cada vez mais alarmantes e cada vez mais
199 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1. 200 “Elogio da Raça”. O Democrático, nº 936, 04/11/1932, p. 1.
90
profundas e mais desalentadas as lamentações e censuras estigmatizadoras dessa suposta
úlcera social que, longe do caminho da cura” mais se alastrava e expandia, “mau grado
de quantos na sua destruição” se empenhavam e indicavam projetos de resolução. O autor
acreditava, portanto, que as abordagens ensaiadas não haviam apresentado os resultados
desejados. Assim, propunha soluções que, num país como Portugal, poderiam ser vistas
como “estravagâncias”, mas que em alguns outros países haviam sido convertidas em
leis. Sugeriu, então, a isenção “do serviço militar aos mancebos que na devida altura
demonstrassem ter o conhecimento de leitura e escrita”, assim como o impedimento do
“matrimónio às mulheres que não pudessem fazer aquela demonstração”. Revelados estes
expedientes, o autor não deixou de reconhecer-lhes perigos potenciais, que se traduziam
na forma de “dificuldades no recrutamento de homens para o exército e um provável
desenvolvimento de lares, irregularmente constituídos”. Contudo, tais fragilidades seriam
ultrapassadas através da “transformação do serviço militar numa missão honorífica ou,
então, suficientemente remunerada” e através da “amputação de todos os direitos e foros
cívicos aos componentes de lares imperfeitos ou fora das leis correspondentes”. Desta
forma, as possíveis preocupações volver-se-iam em “coisas nulas e sem valor”, pelo que
as hipóteses induzidas seriam merecedoras de uma análise demorada e atenta, para que
pudessem, no final, ser postas em prática201. Por outro lado, e no que diz respeito aos
elementos básicos que permitissem o exercício da instrução, o autor acreditava
encontrarem-se já reunidos, embora precisassem de se tornar mais eficazes, conferindo
ao ensino generalizado das primeiras letras a natureza de uma missão que, embora
espinhosa e difícil não podia deixar de se cumprir:
Professores numerosíssimos e edifícios adrede e profundamente distribuídos.
Povoem-se convenientemente estes e dê-se ocupação a todo aquele dispondo-o
para uma vida móvel, ambulante, nómada para ir, junto dos que dela precisam,
levar a luz das primeiras letras em vez de estar na sáfara expetativa de aguardar
na escola os que, quase sempre constrangidos, a ela venham202.
201 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4. 202 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4.
91
Adicionalmente, o texto defendia que o problema não residia na construção de
mais escolas, uma vez que as alternativas e opções de lugares para a prática da
alfabetização eram vastas, embora pouco convencionais:
Em toda a parte há ou uma igreja ou a casa de um benemérito. A igreja não se
macula. Não é uma religião também a aquisição de um pouco de pão para o
espírito? E a casa do benemérito não se amesquinha; dignifica-se e por isso
ninguém a recusará se edifício próprio não existir no lugar. E os jardins, e as
matas, e os recantos de uma planície, plenos de sol brilhante e fartos de ar puro
[poderão ser aproveitados] como fontes de uma missão santa203.
Todas estas considerações e propostas surgiam na sequência de um projeto de lei
reproduzido no Jornal do Comércio e das Colónias, da autoria de Araújo Correia
(deputado e engenheiro), “tendente à extinção do analfabetismo”. A proposta consistia na
criação de uma “Junta de Cultura Popular”, que procedesse à fixação das matérias que
deviam integrar o “curso completo de instrução rudimentar”; instalação de “40.000 postos
de cultura popular”; e criação de uma “cota de analfabetos de mais de 12 e menos de 50
anos”. Observavam-se ainda neste projeto, “disposições tendentes a aproveitar o concurso
de pessoas particulares, hábeis para o intento e a galardoar, por meio de determinadas
vantagens, os alunos que hajam obtido o respetivo certificado de instrução”204.
Fica aqui explícita a primeira grande manifestação de preocupação d’O
Democrático – através da transcrição de um artigo publicado por outro periódico – no
que diz respeito aos elevados níveis de analfabetismo em Portugal, assim como a procura
de soluções para este flagelo. A partir daqui, o discurso permaneceu carregado da mesma
dose de preocupação, sempre com uma particular insistência em demonstrar a
importância da educação na sociedade.
Em 1936, o semanário debateu nas suas colunas o “vasto e complexo” caminho
que, em plena primeira metade do século XX, existia ainda por percorrer no campo da
203 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4. 204 ALONSO, Lucas – “Extinção do Analfabetismo”. O Democrático, nº 1049, 22/02/1935, p. 4.
92
educação infantil. Defendia que as bases do ensino primário infantil deviam iniciar-se no
lar, sendo “tremenda”, nesse domínio, “a responsabilidade dos progenitores”. A complexa
missão de educar não deveria pertencer única e exclusivamente aos professores, uma vez
que “na família, na escola, na sociedade – em toda a parte” se poderia “realizar alguma
coisa de útil e de construtivo em benefício da juventude e da mocidade”. O jornal
considerava que este não era um assunto que pudesse ser deixado para segundo plano,
pois “os pequeninos de hoje – homens de amanhã” – mereciam “ser vigiados e orientados
com o maior carinho, desde a idade da razão”. Neste contexto, o periódico criticava a
educação dada às crianças de famílias católicas que, embora procedessem de “boa-fé”,
limitavam-se a “uma instrução formalista” que “poucos resultados úteis traria”. Mais do
que incentivar os mais novos a decorar certas noções ou conceitos, o mais importante
seria compreendê-los, senti-los e depois praticá-los em conformidade. Quer isto dizer que,
na visão d’O Democrático, era fundamental a formação de cidadãos informados, aptos e
competentes para desempenhar um papel válido, ativo e responsável na sociedade.
Contudo, considerava que os suportes básicos do ensino falhavam: a família raras vezes
cumpria a sua obrigação, a escola atraiçoava muitas vezes a sua missão e a sociedade
nunca cumpria o seu dever, deixando assim o futuro comprometido205.
Neste seguimento, não surpreende que o semanário tenha publicado outro artigo
do mesmo pedagogo, Mário Gonçalves Viana206. No texto aqui em destaque, Gonçalves
Viana afirmava que a educação era, efetivamente, o problema máximo no país. O autor
admitia que “o problema económico e a própria questão social” que Portugal atravessava
seriam os grandes fatores propiciadores dessa situação. Numa aceção que se aproximava
mais dos valores ideológicos que o país abraçava à época, insistia na importância da
educação como pedra angular na sustentação de qualquer sociedade moderna:
205 VIANA, Mário Gonçalves – “O problema das gerações novas”. O Democrático, nº 1096, 21/02/1936,
p. 2. 206 Foi professor e formador de professores, assim como autor de uma obra vasta nas áreas da pedagogia,
psicologia e biografia. Embora “próximo do regime autoritário e do nacionalismo conservador então
prevalecentes”, defendeu “um projeto humanista de formação integral dos jovens”. (PINTASSILGO,
Joaquim – «Uma reflexão entre o passado e o presente: os contributos do pedagogo português Mário
Gonçalves Viana». Educação em Foco. Belo Horizonte: Editora UEMG, vol. 22, nº 2, mai./ago., 2017, p.
37).
93
Sem educação não pode haver nem disciplina, nem ordem, nem respeito. Com
cidadãos maus, destituídos de caráter não se pode edificar uma economia sã. É a
educação que adoça e nobilita as relações sociais, assim como são os indivíduos
deseducados que pervertem e desorientam a sociedade, praticando toda a sorte de
injustiças, abusos e desvarios. Isto é uma verdade que, ninguém de boa-fé, pode
contestar207.
Uma vez mais, fazia referência ao facto de, apesar de várias soluções já terem sido
estudadas e conhecidas, tardavam em ser aplicadas208.
Por outro lado, e de forma a comprovar o atraso intelectual de Portugal, o jornal
comentou um artigo publicado no semanário lisbonense O Diabo, no qual se criticava a
baixa afluência da população às bibliotecas públicas e se apontavam como as maiores
causas a ainda elevada percentagem de analfabetismo – “apesar do aumento” que se
registava “no número de escolas” – o abandono escolar voluntário por parte dos que
preferiam “ficar iletrados” e o desinteresse generalizado pela instrução e cultura, apesar
da fixação do horário de trabalho nas oito horas diárias que, supostamente, alargaria a
possibilidade de se passar mais tempo a investir no crescimento educacional e intelectual.
Contudo, tal não se verificava em Portugal, ao contrário de outros países da Europa. A
frequência às bibliotecas públicas continuava a ser bastante reduzida, “mesmo em Lisboa
e Porto onde a percentagem dos que ali” iam “consultar livros” era “ainda assim mais
elevada à das poucas bibliotecas” existentes “nas outras terras limitadas do continente e
bem poucas elas” eram “infelizmente”209.
O último artigo de opinião referente ao assunto da educação saiu na edição de 9
de outubro de 1936, sob o título “O cancro do analfabetismo”, aí considerado “um dos
grandes males” que corroíam a sociedade. Desta feita, O Democrático apontava “os pais
dos alunos” como “os principais causadores de seus filhos não frequentarem regularmente
a escola”210, contribuindo para as exorbitantes taxas de analfabetismo no país:
207 VIANA, Mário Gonçalves – “Educar, eis o problema!”. O Democrático, nº 2002, 03/04/1936, p. 3. 208 VIANA, Mário Gonçalves – “Educar, eis o problema!”. O Democrático, nº 2002, 03/04/1936, p. 3. 209 “Inimigos da Instrução”. O Democrático, nº 2028, 09/10/1936, p. 1. 210 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1.
Ver Anexo 9.
94
Sob o pretexto de que lhes são precisos para os ajudar nos serviços auxiliares da
lavoura ou dos seus misteres, deixam assim de cumprir com um dos seus
importantes deveres de pais – não dando a seus filhos o pão espiritual – e
desrespeitando a lei, ao mesmo tempo que fazem criar um cidadão iletrado,
inferiorizando-o até em relação a uma criança ou a um mendigo quando estes
saibam ler um livro ou escrever uma carta211.
Neste contexto, o jornal defendia que os pais que impediam os seus filhos de
frequentar a escola “sob o argumento comezinho” de que eram “precisos em casa para
«olhar o gado», «irem ao campo segar erva» ou fazer outro qualquer serviço doméstico”
deveriam ser obrigados ao pagamento de sanções rigorosas e “sem contemplação alguma,
para que o exemplo frutificasse e não pudesse haver mais analfabetos por culpa exclusiva
dos encarregados da educação das crianças”212. Uma atitude teoricamente louvável,
certamente, mas esse quadro era comum num país pobre, com baixíssimas remunerações
e sem benefícios sociais, onde em cada lar, tantas vezes com numerosos filhos, deixá-los
frequentar a escola – principalmente aos mais velhos – era quase um luxo, pois o
contributo do seu trabalho, tanto em casa como fora, era essencial para minorar a pobreza
reinante.
4.3.3. Recusa do nacionalismo exacerbado
Trave mestra do programa ideológico preconizado pelo Estado Novo era a
exaltação dos feitos históricos passados, que deveriam servir exemplo e lição para a
sociedade presente, acrisolando o amor incondicional à Pátria que não deveria conhecer
limites de sacrifício. Aliás, a exacerbação nacionalista era comum, mais ou menos
mesclada de preconceitos de superioridade de raça, ao ideário dos regimes autoritários e
fascistas que se ergueram na Europa dos anos 1920. E o surgimento deste sentimento de
proteção e valorização da Nação/Pátria é facilmente explicável. Uma vez, terminada a I
Grande Guerra (1914-1918), o fascismo encontrou “o seu meio de eleição no país
211 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1. 212 ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº 2030, 09/10/1936, p. 1.
95
vencido”, a Alemanha. Surgiu como a “reação de um nacionalismo ferido”, “contra a
humilhação da derrota” e contra “as ameaças” que pesavam “sobre a segurança ou
integridade nacionais”. Já na Itália, apesar de fazer parte dos vencedores, o fascismo
surgiria como reação “contra o desperdício da vitória”, dado que teria entrado na guerra
“de má vontade”, não sentido a vitória, e acreditando ter sido “tratada com pouco caso
pelos outros aliados”, principalmente do que diria respeito às disposições sobre os
destinos da Europa do pós-guerra213. Neste contexto, “Salazar deu consigo cada vez mais
alinhado com as tendências dominantes no continente”214, nomeadamente com a
tendência nacionalista, inculcando na população a premissa “Tudo pela Nação, nada
contra a Nação” levada a extremos.
Uma discussão sobre o nacionalismo abriu a edição de 8 de julho de 1932 do
periódico em análise. O Democrático apresentou um artigo da autoria do Dr. Evaristo de
Carvalho (1865-1938), um jornalista republicano215. No artigo em questão, este autor
começou por debater o conceito de nacionalismo de forma prática, explicando que ser
nacionalista era “colocar a Pátria no coração, acima de todas as outras com orgulho, pela
sua história gloriosa e desejando-a respeitada e grande” – segundo esta definição, o autor
considerava-se nacionalista, tal como se deviam considerar todos os republicanos.
Evocava inclusive momentos históricos do republicanismo, relembrando que “as ideias
republicanas tiveram em Portugal a sua primeira manifestação de força em 1880, na
celebração do centenário de Camões – uma festa caracteristicamente nacionalista”– na
qual “em torno da memória do épico, foi enaltecido, comovidamente, o génio da Raça” e
a “aspiração de uma Pátria maior”. Também aquando do Ultimatum inglês de 1890 as
manifestações calorosas do sentimento de nacionalismo se fizeram ouvir e “a palavra que
mais alto se ouvia, por entre o rugir e o trepidar das cóleras do povo e das românticas
213 RÉMOND, René – O Século XX: de 1914 aos nossos dias. São Paulo: Editora Cultrix, 1993, p. 94-95. 214 MENESES, Filipe Ribeiro de – Salazar: uma biografia política, p. 114. 215 Entre alguns cargos que desempenhou, destaca-se a sua colaboração com O Mundo (Lisboa, 1900-1927),
o órgão por excelência dos republicanos, e depois dos republicanos democráticos, a partir da cisão de 1911-
12. Foi também colaborador dos periódicos republicanos A Pátria (Lisboa, 1911-1914) e A Democracia
(Lisboa, 1921) e diretor d’O Debate (no ano da sua fundação, 1920, de 1 de abril até 19 de junho) e d’O
Rebate (de 17 de janeiro até 1 de julho de 1922), ambos da fação democrática. Desempenhou também a
função de diretor-delegado do Diário Liberal (1932-1934). (LEMOS, Mário Matos e – Jornais diários
portugueses do século XX. Um Dicionário, p. 209, 211, 305-306, 440, 486, 529).
96
audácias da mocidade das escolas – era a palavra República!”. Teria sido esta a
“expressão verbal de toda a agitação nacional, que queria um Portugal honrado e livre,
altivo e insubmisso, perante o estrangeiro”. Asseverava ainda que teria sido este
alinhamento de “nacionalismo ardoroso” que “fez eclodir, no Porto, o 31 de Janeiro –
alvorada gloriosa do 5 de Outubro de 1910”. Assim, e alargando a definição em questão,
considerava que se o nacionalismo significava também “um grande amor pela tradição”
em tudo o que ela pudesse, “inteligentemente, adaptar-se à mentalidade atual e às ideias
correntes” – repare-se, contudo, que apenas valorizava o binómio
republicanismo/patriotismo – não vendo assim qualquer razão para não se incluir nos
seguidores deste conceito216. Porém, expunha no final do artigo o aspeto que o afastava
do nacionalismo:
Mas se nacionalismo é o alardear de ideias e conceitos que, inconsideradamente,
se foram beber ao passado, apresentando-os como diretrizes essenciais da
atividade social e política da vida moderna, que, logicamente, os não pode tolerar
e devem, por isso, considerar-se como elementos de entrave e perturbação – nós
não somos nacionalistas217.
É, portanto, neste último parágrafo do texto, que fica clara a crítica ao
nacionalismo exacerbado patenteado pelo Estado Novo. Contudo, como era prática
corrente deste jornal para escapar à revisão da censura, a sua oposição ao regime é feita
de forma subtil e inteligente: atacam-se os valores da Ditadura recorrendo a momentos
históricos marcantes do republicanismo e nunca mencionando diretamente o Governo
nacional. Desta forma, num período de opressão e repressão, este órgão da imprensa
periódica sentiu-se capaz de continuar a patentear os valores da República que sempre
defendera e, ao mesmo tempo, distinguiu-os das características gerais comuns da
ideologia fascista de vários países, como era o caso do incentivo a uma mentalidade
nacionalista pela via do recurso a feitos do passado longínquo tidos como elementos de
entrave e perturbação e, portanto, inaceitáveis como diretrizes para a contemporaneidade;
216 CARVALHO, Evaristo de – “Nacionalismo”. O Democrático, nº 919, 08/07/1932, p. 1. 217 CARVALHO, Evaristo de – “Nacionalismo”. O Democrático, nº 919, 08/07/1932, p. 1.
97
desta forma evidenciava a sua repulsa por tais teorias, embora sem aprofundar e detalhar
para evitar represálias. Ainda assim, embora “disfarçada”, a crítica à Situação não deixa
de estar presente e evidente aos olhos dos leitores atentos.
4.3.4. A permanente defesa dos valores democráticos
Defensor dos ideais de liberdade e Democracia em tempo de Ditadura, O
Democrático recheava as suas páginas com a apologia dos valores que considerava
apropriados para aplicação prática na sociedade moderna. Tal opção representava,
claramente, mais uma forma de fazer oposição ao novel regime e seu ideário.
Em junho de 1931, este semanário abriu uma das suas edições com mais um artigo
de Duarte Vilhena Gusmão, no qual este autor patenteava a defesa do sistema de sufrágio
universal.
O sufrágio universal é o direito de voto a todos os cidadãos, sem distinção de
ideias nem de classes. Adotar o sufrágio universal é satisfazer a opinião pública
sem correr perigo algum. Este sistema eleitoral era e é ainda, para as realezas
constitucionais, um motivo de reprovação e de terror. A privá-lo era enfileirar-se
na categoria dos anarquistas e, como se dizia então, dos mais grosseiros
republicanos218.
Como se sabe, a adoção do sufrágio universal não era matéria consensual entre os
homens da República, certamente da sua maioria, pois nunca o instituiu. Assim, mesmo
publicando este artigo, entende-se que o periódico apresentava, provavelmente, algumas
reservas em relação a este assunto. Veja-se.
O tema do voto regressou a este semanário, desta feita debatendo a questão da sua
obrigatoriedade. Carlos Bana defendia que tornar o voto eleitoral um dever obrigatório
faria sentido em teoria mas na prática não resultaria. O caráter de obrigatoriedade de um
ato como o voto eleitoral não revestiria o eleitor de civismo e de conhecimento de causa.
Assim, não contesta a premissa de que o “voto seja um dever sagrado do cidadão, em face
218 GUSMÃO, Duarte Vilhena – “Sufrágio Universal”. O Democrático, nº 867, 12/06/1931. Ver Anexo 5.
98
da Democracia”. Crê, até, “que é o mais imperioso dos seus deveres”. Porém, este só seria
útil à vivência democrática desde que fosse exercido voluntária e conscientemente, uma
vez que “votar por obrigação, por puro medo da cadeia”, não seria “praticar um ato
político”. Desta forma, a solução para o problema da abstenção eleitoral passaria não pela
instituição do voto obrigatório, mas pelo fomento da educação do cidadão, pela
consciencialização da importância do exercício deste direito, através do incentivo à sua
prática “pela vida da Democracia”219.
Complementarmente, o jornal incentivava à participação das camadas jovens na
vida pública e política, para o total exercício dos seus direitos e deveres de cidadania, já
que, segundo o artigo de Duarte de Gusmão, “participar na administração dos negócios
públicos, pelo seu conselho ou pela sua atividade” seria “a vocação de todo o homem na
posse dos seus direitos cívicos”. Contudo, o cidadão não deveria ser apenas maior de
idade mas, também, ter adquirido por via de formação escolar o conhecimento necessário
para exercer cargos públicos para depois poder “intervir sempre na vida política do seu
país, orientando-se e orientando”. Neste contexto, o autor demonstrou, neste artigo, o seu
apoio aos jovens democratas e sua intervenção em questões políticas: “Os estudantes
nacionalistas fazem uma manifestação? Pois bem, a maior parte dos peraltas acha muito
bem. A mocidade democrática faz outra manifestação, e logo é censurado o seu
procedimento pelos mesmos peraltas”. Fica clara a importância que o periódico conferiu
à educação e o apoio às juventudes académicas democráticas na sua luta em prol da
República220.
Em 1932, o jornal apresentou um texto de defesa do internacionalismo em
detrimento do “perigoso” nacionalismo acerado pelos fascismos. Lembrava o seu autor,
Duarte de Gusmão: “A ideia de uma comunidade de interesses entre povos, superior aos
interesses nacionais, formou-se lentamente no século XIX”, impulsionada por vários
avanços: nas descobertas científicas, que encurtaram as distâncias e facilitaram
intercâmbios; por um número importante de “convenções internacionais tendentes a
assegurar o respeito ou a facilitar a realização de interesses comuns a várias ou a todas as
219 BANA, Carlos – “Obrigatoriedade? O Voto”. O Democrático, nº 914, 03/06/1932, p. 1. 220 GUSMÃO, Duarte de Vilhena – “A mocidade académica e a política”. O Democrático, nº 878,
11/19/1931, p. 1. Ver Anexo 6.
99
nações”; pelo desenvolvimento dos transportes, que “deu um caráter internacional a um
grande número de questões económicas”. Desta forma, o caminho da cooperação entre os
povos seria a opção mais vantajosa e viável, visto que “uma das causas principais das
guerras” era ainda o nacionalismo. Não obstante pudesse parecer uma afirmação
paradoxal, o patriotismo não passaria de uma “«blague», palavra sem sentido”221. Neste
sentido, o artigo conclui:
O sentimento patriótico deve desaparecer ante um outro sentimento mais
altruísta, o internacionalismo. A mocidade compreende bem este novo
sentimento e, quando ela tomar conta do poder, a União Mundial será um facto,
para felicidade dos povos peninsulares. Nós mesmo antes de sermos patriotas
somos internacionalistas, cosmopolitas ou o que quiserdes222.
Fiel às suas convicções progressistas, o autor tão publicado pel’ O Democrático
patenteava o valor supremo da igualdade em Democracia. Num artigo intitulado “O
Povo”, reivindicava:
Quando todos se souberem servir desta palavra sem desprezo, a Democracia será
um facto, porque os costumes terão acabado a sua educação. O povo é o conjunto
de todos os cidadãos, à exceção dos pretendentes ao trono e dos criminosos. Tanto
uns como os outros se pretendem conservar à margem dos direitos e dos deveres
dos cidadãos. Cada um com o mesmo título e na proporção de uma igualdade
perfeita faz parte do povo223.
Neste sentido, o estatuto económico ou social não deveria condicionar a igualdade
de todos os cidadãos, “desde a mais alta individualidade até ao mais humilde”. As ideias
de superioridade de uns e inferioridade de outros deveriam, nesta ótica, ser erradicadas,
221 GUSMÃO, Duarte de – “A Caminho para o Internacionalismo”. O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p.
1. 222 GUSMÃO, Duarte de – “A Caminho para o Internacionalismo”. O Democrático, nº 899, 12/02/1932, p.
1. 223 GUSMÃO, Duarte de – “O Povo”. O Democrático, nº 918, 02/07/1932, p. 1.
100
pois a Democracia só seria uma realidade quando todos se educassem “nos sãos princípios
igualitários”: “sem isto, sem educação tudo é mentira, tudo é um embuste”224.
Em consequência do seu afinco na defesa e divulgação dos ideais democráticos e
republicanos, O Democrático recebeu da “Direção do antigo Centro Republicano Dr.
António José de Almeida” – uma “corporação republicana que, no Porto, à causa
republicana” havia “aplicado os melhores esforços” – uma saudação aplaudindo a
conduta deste jornal local que adjetiva de “baluarte do jornalismo republicano”225.
4.3.5. A oposição do semanário ao Movimento Nacional Sindicalista
O Movimento Nacional Sindicalista foi um movimento político de extrema-direita
ativo nos primeiros anos de afirmação do Estado Novo, com ligações profundas ao
Integralismo Lusitano. O seu fundador, Francisco Rolão Preto, anunciou a criação desta
organização em fevereiro de 1933, um ano após a criação do jornal académico A
Revolução. Segundo António Costa Pinto, o Nacional-Sindicalismo representou “o
último combate de uma «família política» que desempenhou um papel importante no
processo de crise e derrube do liberalismo português, mas que foi secundarizada na
edificação de uma alternativa ditatorial estável no início dos anos 30”. Enquanto partido
político, o Nacional-Sindicalismo “foi o ponto de unificação tardio de uma corrente
fascista constituída a partir da ampla mas dividida família da direita radical portuguesa
do pós-guerra”. Contou com “as franjas mais radicais de anteriores partidos e grupos de
pressão ideológicos criados nos últimos tempos” da República e da Ditadura Militar. Em
pouco tempo, “edificaram uma organização, constituíram um grupo não desprezível no
Exército, manobraram diversas tentativas golpistas contra Salazar, até serem ilegalizados
e verem os seus dirigentes expulsos do país”226.
Foi justamente em 1933 que O Democrático iniciou a sua resistência a este
movimento. O jornal denunciou e reprovou “as atitudes impertinentes e irritantes tomadas
224 GUSMÃO, Duarte de – “O Povo”. O Democrático, nº 918, 02/07/1932, p. 1. 225 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 961, 12/05/1933, p. 2. 226 PINTO, António Costa – Os Camisas Azuis e Salazar: Rolão Preto e o Fascismo em Portugal. Lisboa:
Edições 70, 2015, p. 22-23.
101
desde a primeira hora por tal organização política que se batizou com o nome de Nacional-
Sindicalismo”, comparando as suas ideias e ações às “dos figurinos «mussolinismo» e
«hitlerismo»”. Marcada pelo radicalismo, esta nova corrente estaria a alarmar, “e com
toda a razão, a opinião pública na sua grande maioria” que veria “nesse agrupamento de
tendências mais que reacionárias um tremendo ponto de interrogação para o futuro
político da pátria portuguesa”. Neste contexto, o periódico questionou o programa do
Movimento Nacional Sindicalista, apodando-o de “vago, indeterminado, extremamente
confuso, com o braço esquerdo apoiado na «ordem» e o direito empunhado na espada da
«Revolução»”. Quanto aos objetivos do movimento, o jornal destacava, com alguma
habilidade discursiva, a sua intenção de “manter a todo o custo a ordem na rua, no lar e
nas consciências e promover o bem-estar da Nação em toda a sua plenitude”, tornando
Portugal “invejável aos olhos dos outros povos”. Assim, os nacional-sindicalistas
estariam “indiretamente a censurar e a condenar a obra da «Ditadura Militar»” e a “ação
do Governo do Estado Novo”, uma vez que, ao querer fazer daquelas as suas medidas de
ação base, alegavam que o Estado não estaria a desempenhar competentemente as suas
funções227. Esta atitude era considerada um ato de desafio ao regime mas, sendo
completamente oposto às convicções democráticas e adepto dos fascismos mais radicais,
o periódico condenava o Nacional-Sindicalismo em toda a linha.
Nesta conformidade, reprovava com veemência as suas manifestações,
caracterizando-as como paradas “grotescas” e “provocadoras aos sentimentos liberais”
que animavam “a grande maioria da Nação”. Desconstruía também os discursos e
declarações de Rolão Preto – “chefe da seita negra” – criticando-o e acusando-o de
hipocrisia, principalmente quando este asseverava que o Nacional-Sindicalismo não se
tratava, “nem de perto, nem de longe”, de uma formação política. Este tipo de discurso
não seria mais do que uma estratégia de aquietamento de grande parte da opinião pública
que temia a ascensão da extrema-direita228.
Recuando às origens deste movimento, O Democrático recordou que os nacionais-
sindicalistas eram os mesmos “cavalheiros que, em tempos, quebraram lanças pelo
227 “O que pretendem”. O Democrático, nº 964, 02/06/1933, p. 1. 228 “Intranquilidade de espíritos”. O Democrático, nº 965, 10/06/1933, p. 1.
102
Integralismo” Lusitano, agora “rotulado de sindicalista” mas com os mesmos “fins
absolutistas, reacionários e regressivos”. Por isso, todos os elementos do Nacional-
Sindicalismo seriam “discípulos amados de António Sardinha, o conhecido germanófilo,
que desprezando os interesses vitais da Nação, desejava a vitória da Alemanha,
simplesmente porque o triunfo desta sobre os Aliados seria o esmagamento da
Democracia” e da Liberdade. Para além da derrocada de direitos e liberdades essenciais
assegurados pelo sistema democrático, o jornal relembrava que “uma Alemanha
reacionária e imperialista” representaria uma ameaça para as colónias portuguesas, cujo
desenvolvimento havia tomado grande parte do orçamento nacional. Por todos estes
motivos, seria fundamental o combate a estas ideias de extrema-direita e o periódico
advertia a classe trabalhadora para que não se deixasse “iludir pelas petas e falsas
afirmações socializantes” daqueles “impostores” – denunciando logo no título do artigo
o “maquiavelismo dos integralistas”229. Apesar da combativa campanha empreendida
contra o Movimento Nacional Sindicalista, com total descredibilização dos seus valores
e ideário, o jornal receava que a opinião pública se deixasse persuadir por certas
declarações demagógicas de Rolão Preto, tais como a garantia de que o Nacional-
Sindicalismo não descansaria enquanto não houvesse “pão e justiça para todos”,
aplicando uma fórmula de maneira a “obrigar os ricos” a que fossem “menos ricos” para
que os pobres fossem “menos pobres”230. Consequentemente, o periódico dirigia-se
insistentemente aos seus leitores, veiculando aqueles que considerava serem os
verdadeiros valores da esquerda progressista, inclusive com expressa menção à doutrina
marxista:
A luta de classes só desaparecerá com a supressão das classes e não
reestabelecendo mais classes, como pretendem estes falsos messias, que desejam
restaurar a nobreza parasitária e a realeza despótica. Não vos disse o grande Marx
que a emancipação dos trabalhadores há de ser obra dos próprios trabalhadores?
229 “O maquiavelismo dos integralistas”. O Democrático, nº 969, 14/07/1933, p. 1. 230 “Intranquilidade de espíritos”. O Democrático, nº 965, 10/06/1933, p. 1.
103
E olhai que se Marx fosse vivo decerto não queria o Sr. Rolão nem para lhe limpar
as botas...231
Por outro lado, o líder do movimento teria ainda afirmado que “no dia da marcha
decisiva” contaria com o apoio de Oliveira Salazar232. Ora, em agosto de 1934, O
Democrático transcreve uma nota oficiosa da Presidência do Conselho publicada na
imprensa diária, na qual Salazar rejeitou o Nacional-Sindicalismo, considerando-o um
“elemento perturbador e de desagregação das forças nacionalistas do Estado Novo”233.
Ou seja, nestes tempos conturbados, O Democrático teve de fazer frente às várias direitas
que se erguiam e fê-lo sempre, até ao seu fim.
4.4. Praxis política do Estado Novo – crítica ao regime repressivo
O Democrático ofereceu clara resistência às medidas políticas de cariz repressivo
empreendidas nos primeiros anos de afirmação do Estado Novo. A oposição ao partido
único, a preocupação com a redação de um documento constitucional justo, as críticas à
atuação da censura e da polícia política e à generalidade do ideário do regime
preencheram sistematicamente as páginas do jornal até 1936.
4.4.1. União Nacional
O regime apresentava a União Nacional como “uma associação sem carácter de
partido e que pretendia assegurar a realização e defesa dos princípios da vida nacional,
sem qualquer distinção de ideais políticos ou religiosos”234. Na realidade, tratou-se do
único partido político legalmente constituído e permitido, sendo estreitamente controlado
pelo Presidente do Ministério, tendo em vista a manutenção do regime sem oposição na
lógica ditatorial necessariamente avessa ao pluripartidarismo.
A 25 de julho de 1930, O Democrático apresentou a primeira notícia sobre os
prenúncios de criação da União Nacional. O semanário anunciou que o Governo
231 “O maquiavelismo dos integralistas”. O Democrático, nº 969, 14/07/1933, p. 1. 232 “Intranquilidade de espíritos”. O Democrático, nº 965, 10/06/1933, p. 1. 233 “Os Nacionais-Sindicalistas”. O Democrático, nº 1021, 03/08/1934, p. 1. 234 SERRÃO, Joaquim Veríssimo – História de Portugal: do 28 de Maio ao Estado Novo, p. 241.
104
preparava a formação de uma “força política” que lhe garantisse a sucessão e assegurasse
a “continuidade dos seus processos administrativos, na vigência do regime
constitucional”. Porém, julgando pela “circular enviada aos seus representantes nos
distritos do país”, essa organização seria porventura vazada “nos velhos moldes dos
partidos constitucionais” e teria “uma feição acentuadamente conservadora”, algo que –
como facilmente se compreende – não agradaria ao periódico, em conformidade com as
suas convicções já largamente patenteadas. Neste sentido, o jornal criticou a adesão
entusiástica de muitos monárquicos à Ditadura, acusando-os de hipocrisia, uma vez que
o objetivo final (julgava-se ainda por esta altura) seria a transição para a República, tanto
mais com a criação desta nova organização partidária em vista. Na ótica do periódico,
esta participação da fação monárquica representava apenas uma coisa: “fazer restaurar a
Monarquia num futuro mais ou menos próximo e quando o julgassem oportuno”, pelo
que continuava alerta perante o ainda considerado proeminente perigo monárquico235.
Ainda na mesma linha – após o discurso de Oliveira Salazar, a 30 de julho de
1930, na sala do Conselho de Estado sobre “Os Princípios Fundamentais da Evolução
Política, marcando o lançamento da União Nacional”236 – o periódico criticou a imediata
disponibilidade dos monárquicos em se quererem juntar à União Nacional, por ser
contraditória, uma vez que o seu objetivo seria o retorno da Monarquia e não da
República. Desta forma, o jornal considerava que os realistas haviam ignorado
completamento o sentido do “discurso notável do Sr. Ministro das Finanças” (neste
aspeto, ainda elogiado pelo jornal, como a linguagem bem denota) ao quererem “ingressar
nas fileiras da União Nacional”. O semanário elucidava que a União, “de apoio civil à
Ditadura”, seria constituída “na sua estrutura essencialmente política sob «a direção
republicana marcada no 28 de Maio» e que, portanto, sem possibilidade de habilidosos
sofismas”, uma vez que dela só poderiam fazer parte os portugueses que reconhecessem
“as instituições republicanas como regime de direito”237.
Em conformidade com o novo ambiente político vivido, o jornal noticiava que se
encontrava já organizada a comissão concelhia vila-condense da União Nacional. Desta
235 “Os monárquicos na Ditadura”. O Democrático, nº 825, 25/07/1930, p. 1. 236 BRANDÃO, Fernando Castro – A Ditadura Militar 1926-1933: uma cronologia, p. 87. 237 “O gesto monárquico”. O Democrático, nº 827, 08/08/1930, p. 1.
105
comissão faziam parte Tadeu Pereira Neves, Ezequiel Pizarro Monteiro, João Gomes de
Lima, de Vila do Conde, José Amorim, da freguesia da Junqueira, e Manuel Dias Canito,
de Mindelo238.
Já em 1932, o semanário retirou um excerto de uma notícia publicada no diário O
Comércio do Porto, onde se explicava que “as comissões concelhias e paroquiais da
União Nacional” estavam “trabalhando com grande entusiasmo nos recenseamentos. O
concelho de Vila do Conde perfeitamente integrado na Situação, pelos benefícios e pela
tranquilidade que trouxe ao país”, teria, “contra todos os partidos uma maioria certa a
favor a da União Nacional” e o presidente da Câmara Municipal estaria a “trabalhar
afincadamente a favor da União Nacional”. Contudo, há um pormenor que aqui deve ser
tido em conta. O Democrático antecedia a mencionada transcrição com as seguintes
palavras: “Por mais ou menos corresponder à verdade, recortamos o fecho […] que o
Comércio do Porto publicava ontem”239. Afinal, o que mais ou menos correspondia à
verdade? O jornal não considerava que as comissões do concelho estavam a trabalhar
devidamente (designadamente na importante matéria dos recenseamentos) ou começava
a revelar alguma desconfiança face a essa nova força política? Certo é que, seis meses
depois, O Democrático alinhava já na contestação a esse partido único. Em meados de
dezembro desse ano, reproduziu um texto do periódico A Voz da Justiça, da Figueira da
Foz, onde a oposição à União Nacional era feita sem rodeios:
Ao programa da União Nacional, que outros com sinceridade defendem, nós,
opomo-nos sinceramente, inspirados no bem público [e no] programa da
«Aliança Republicano-Socialista». E a liberdade que desejamos para a sua
propaganda é a liberdade que dignamente se não deve negar a quem a pede240.
Perante tais declarações, que O Democrático fez questão de divulgar, fica clara a
sua posição política: a resistência à União Nacional e ao regime que a engendrou, bem
238 “A União Nacional”. O Democrático, nº 831, 12/09/1930, p. 1. 239 “Política Local”. O Democrático, nº 867, 12/06/1931, p. 1. 240 “Nós os que discordamos”. O Democrático, nº 941, 16/12/1932, p. 1.
106
como o apoio ao programa da Aliança Republicana Socialista, tópico que, mais à frente,
será abordado.
4.4.2. Constituição de 1933
No que diz respeito ao texto constitucional do Estado, plebiscitado em 19 de
março de 1933 e vigente a partir de 11 de abril desse ano (até ao final do regime, em
1974) mas em preparação desde há algum tempo por um grupo de professores de Direito
convidados por Oliveira Salazar e por ele diretamente coordenado, o periódico apenas
transcreveu de um título da imprensa diária, em maio de 1932, uma nota oficiosa
publicada pelo Ministério do Interior, na qual se lia:
O Conselho de Ministros, reunido para assentar, definitivamente, na sua redação
do projeto da Constituição, resolveu publicá-lo no próximo dia 28 para livremente
ser discutido, recebendo o Governo todas as sugestões que tenham por fim
aperfeiçoar o referido projeto241.
Perante esta informação, o jornal considerava importante tal decisão do Governo,
dada a relevância do documento, cuja aprovação, a seu ver, devia “merecer o aplauso de
todos os portugueses”. Para além de insistir na importância de uma deliberação cuidada,
o periódico defendia que a nova Constituição deveria “representar a vontade livre da
Nação”, uma vez que seria a garantia “de todos os direitos aos cidadãos portugueses”,
assim como regularia “também os seus deveres”242.
Para além disto, destaca-se uma sugestão do periódico para que fosse efetivamente
garantido o alvedrio nacional na feitura da nova lei: “o Governo, decerto, para que tenha
bem a certeza de que a vontade da Nação se manifeste aberta e francamente, vai proceder
à revisão do recenseamento eleitoral corrigindo deficiências que por certo existem”. Desta
forma, muitos dos portugueses ausentes do país, que pensassem regressar, teriam a
oportunidade de “contribuir com as suas opiniões” e com “as suas inteligências”, para
que o diploma fosse o mais completo possível. No final, o jornal rematava este assunto,
241 “A nova Constituição”. O Democrático, nº 913, 28/05/1932, p. 1. 242 “A nova Constituição”. O Democrático, nº 913, 28/05/1932, p. 1.
107
apelando: “Que o Governo não recue ante aquela nota, procurando ouvir a verdadeira e
livre vontade dos cidadãos portugueses, e será mais um grande passo dado para a
pacificação da família republicana”243.
De facto, a mensagem d’O Democrático é clara. Sob a influência de um Governo
de Ditadura, nos prenúncios da publicação de uma nova Constituição, a maior
preocupação do periódico era garantir que o documento legal em processo de elaboração
exprimisse as vontades, direitos, deveres e liberdades do povo português. Certamente que
o seu texto final, que consagrava como tipo de Estado uma República Corporativa,
subalternizava o poder legislativo e fortalecia o executivo, não terá sido do agrado deste
semanário republicano que, após a sua publicação não lhe fez qualquer menção,
silenciando um tópico que, a ser minimamente contestado, arrostaria sem dúvida a eficaz
ação censória.
4.4.3. Censura
Em 1932, O Democrático lançou a sua primeira crítica, se bem que disfarçada, ao
sistema de censura à imprensa, popularmente conhecido como “lápis azul”. No artigo em
questão, o jornal tecia uma apreciação negativa à forma como a imprensa diária nacional
fazia relatos de crimes que ocorreriam com grande frequência no dia-a-dia, expondo de
forma minuciosa os detalhes da atividade criminosa. Considerava que este esmiuçar do
crime nas colunas da imprensa periódica se tornava “uma verdadeira escola de vícios para
uns e, para outros, pelos sistemas mais hábeis, práticos, mais modernos dos crimes” que
se praticavam, “e tão pormenorizadamente” se noticiavam, “uma lição diária para melhor
luz das suas já afamadas façanhas criminosas”244. Certo é que, posteriormente, também
as práticas ditas marginais (assassínios, suicídios, etc.) seriam ocultadas por via da
censura mas, à época, esta seria uma crítica possível ao sensacionalismo que imperava na
imprensa:
243 “A nova Constituição”. O Democrático, nº 913, 28/05/1932, p. 1. 244 PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p. 1. Ver Anexo 8.
108
Que bela medida do Governo, se estendesse o lápis azul da sua decretada censura,
a estas novelas de faca e pistola, de gazua e berbequim para que alguns
desgraçados não se iludam e outros não completem, com maior sabedoria os
conhecimentos já infelizmente adiantados da sua arte…245
Usando o exemplo dos frequentes relatos de criminalidade, o semanário sugeriu
uma primeira e hábil forma de crítica ao sistema repressivo-censório nos alvores do
Estado Novo.
No ano seguinte, em 1933, o periódico publicou uma nota oficiosa da Direção
Geral de Serviço de Censura à Imprensa, na qual se procedia ao esclarecimento do tipo
de publicações que estariam sujeitas à censura prévia instituída já pela Ditadura Militar,
com o fim que fosse “utilizada a imprensa como arma política contra a realização do seu
programa de reconstrução nacional, contra as instituições republicanas e contra o bem-
estar da Nação”. Fica claro que O Democrático se incluía nesta lista, uma vez que a lei
abrangia “jornais e revistas, de publicação periódica ou não, incluindo números únicos e
espécimenes”246. Mas também não ousou a crítica direta à censura, uma das matérias
diletas do lápis azul dos censores, embora o jornal a considerasse imprópria e
antirrepublicana, sobretudo quando usada para coartar a liberdade de expressão e opinião,
bases essenciais e naturais da imprensa periódica.
Já em meados de 1936, este semanário apresentou um artigo no qual abordava as
dificuldades que a “pequena imprensa” à época enfrentava, em comparação com a
“grande imprensa”. Evidenciava que o “movimento jornalístico da província” sobrevivia
desajudado de “auxílios materiais”. Por outro lado, “também a ausência de um amparo
moral” escravizava “a sorte da pobre lamparina ou folha de couve – como, por vezes,
desdenhosamente muitos” falavam “do jornal – com a sua ridícula e enfatuada
superioridade”. Com estas e outras reflexões, este texto deixou abundantemente registado
o descontentamento no que dizia respeito às desigualdades e desequilíbrios no tratamento
e oportunidades concedidas à imprensa periódica regional e à chamada “grande
imprensa”. Esta última detinha “grandes e poderosas empresas” e gozava de todas as
245 PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p. 1. 246 “Direção Geral do Serviço de Censura à Imprensa”. O Democrático, nº 953, 10/03/1933, p. 3.
109
regalias que deveriam ser estendidas aos jornais da pequena imprensa, se justiça
houvesse247. O jornal via esta situação como um erro crasso, pois reconhecia o valor e a
importância da imprensa local. Assim, apontava, uma vez mais, a sua impossibilidade de
ação: “O homem na sociedade não faz o que quer e sim o que a situação e o meio lhe
impõe”248.
Estas palavras traduziam a impotência que o jornal sentia em diversos domínios e
aspetos, eram já a voz do seu estertor. Como já foi mencionado, O Democrático não
sobreviveria às pressões da censura e às cada vez mais restritivas leis de imprensa,
cessando a publicação em finais de 1936. O regime repressivo pôs fim à sua existência,
bem como a tantos outros títulos da imprensa que ainda se arvoravam herdeiros da I
República e crentes no regresso da sua ideologia e valores fundamentais.
4.4.4. Polícia Política
Segundo Maria da Conceição Ribeiro, o “processo da génese da Polícia Política
no Estado Novo que, no período até 1945, tem como momento central a criação, por
decreto de 29 de agosto de 1933, da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE)”,
pode ser caracterizado “como uma gradual centralização das funções de prevenção e
repressão de crimes políticos e sociais num organismo único”, e resultante “da fusão e
reorganização de duas instituições forjadas durante a Ditadura Militar: a Polícia de Defesa
Política e Social – herdeira da Polícia de Informações, também conhecida por Polícia
Especial – e a Polícia Internacional Portuguesa”249. Desta forma, a delação foi prática
corrente durante todo o decénio de 1926-1936.
Em janeiro de 1932, O Democrático abriu uma das suas edições com o primeiro
artigo de crítica feroz à Polícia Política e aos seus delatores, comummente designados
“chibos”. Numa expressão certeira, Duarte de Gusmão descreveu a delação como um
expediente que criava “a traição, a desconfiança”, extinguia “sentimentos generosos”, e
pouco a pouco acabava “por envilecer as classes humildes” onde era “praticada em grande
247 “A pequena imprensa”. O Democrático, nº 2015, 11/07/1936, p. 2. 248 “A pequena imprensa”. O Democrático, nº 2025, 18/09/1936, p. 1. 249 RIBEIRO, Maria da Conceição – A Polícia Política no Estado Novo (1926-1945). Lisboa: Editorial
Estampa, 1995, p. 51.
110
escala”250. Para dar corpo ao seu argumento, indicava vários países que, em determinados
períodos da sua história, premiaram a delação e tiveram polícias ao serviço do regime.
Dos casos apontados, destacava-se o mais recente e próximo que era o da Ditadura de
Primo de Rivera, em Espanha (1923-1930), aqui denunciada por um alegado testemunho
de um estudante espanhol de Direito. O académico revelava:
V. não calcula de quantos meios se cercou Primo de Rivera para se sustentar no
poder. Criou uma polícia política especial, [a] «Policia de Informaciones
Politicas», imagem viva da Okhrana [polícia política do czar Alexandre III da
Rússia], quanto às crueldades empregadas. Às vezes, estávamos num café
discutindo os acontecimentos políticos, quando nos avisavam que tivéssemos
cuidado, pois que um agente nos escutava. Eles infiltravam-se entre os operários,
soldados, estudantes. Além disso, tinham os chamados “informadores”,
recrutados em todas as classes. Com essa abominável instituição gastou-se
milhões de pesetas. Mas, apesar de tudo, a ditadura caiu como regime transitório
que era251.
Perante este testemunho, o assinante do artigo concluía que a “abominável raça
dos delatores” haveria de “morrer para honra da mocidade”. “Os únicos seres contra as
quais a delação” seria “um direito e um dever para todos” eram “os espiões e os próprios
delatores: desmascará-los” seria “prestar um serviço à sociedade”, condenando sem
reservas o “emprego da delação”252.
Efetivamente, esta abordagem histórica, que visitava diferentes tempos e lugares,
surgia como a melhor forma de criticar o “agora e aqui”, numa inteligente finta à censura.
Embora evidente e incisivo, o expediente escapou à Comissão de Censura.
Dois meses depois, num artigo sugestivamente intitulado “Liberdade”253, o jornal
continuava a sua crítica à Situação, desta feita pela pena de Pereira de Sousa, que se
lançava contra os violentos mecanismos de repressão das liberdades utilizados pelo
250 GUSMÃO, Duarte – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. Ver Anexo 7. 251 GUSMÃO, Duarte – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. 252 GUSMÃO, Duarte de – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p. 1. 253 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2.
111
Estado e mostrava intensa repugna pelos métodos de tortura adotados pela Polícia
Política. Uma vez mais, a crítica hábil “disfarçava-se” sob a forma de exemplos e
considerações de caráter histórico para melhor se eximir aos riscos do lápis azul. Senão,
veja-se.
O artigo defendia que o uso da “violência para inculcar uma crença” era “sempre
uma má ação”, como era “uma inépcia”: ela podia “promover a obediência mas não a
aquiescência”. Neste sentido, era devido à violência que se confessavam “crimes sem se
praticarem”. Bom exemplo disso havia sido a Inquisição, que “obrigou o nobre, o povo,
a escumalha humilde a envenenarem-se, a guerrilharem-se mutuamente, deturpando a
verdade e… tudo pelo santo nome de Deus”. Também Copérnico, no século XVI, “por
afirmar que a Terra e os astros tinham movimentos de rotação, e estes uma translação em
torno do nosso planeta, foi perseguido pelos jesuítas e «obrigado a desmentir» porque…
tais factos estavam fora das escrituras”. A teoria que se pretendia provar reforçava-se com
o exemplo de Galileu Galilei que, por adotar o sistema proposto por Copérnico,
“proclamando que o centro do mundo planetário era o Sol e não a Terra, e que esta girava
em torno daquele, como os outros planetas que refletem a luz solar”, foi denunciado
“pelos eclesiásticos e convidado a abandonar a sua doutrina”. Contudo, Galileu não
desistiu das suas ideias e uma obra que publicou depois foi considerada uma heresia. Para
“escapar à fogueira foi «obrigado» a abjurar”, perante o Santo Ofício, aquela “tremenda”
blasfémia, “não lhe escapando a serem-lhe partidos os dedos”. Ainda assim, apesar da
intimidação, alegadamente Galileu proferiu a famosa frase, a reiterar a sua tese científica:
“E pur si muove!”254.
Após a detalhada exposição destes casos, o artigo revelou o seu veredito
relativamente aos métodos de tortura: “torturem, massacrem, fuzilem, que nem mesmo
assim põem fim à verdade”. Na ótica do autor, era crime atentar contra a liberdade,
defendendo que “a liberdade de pensamento é a mais bela das liberdades se for respeitada
pelos outros”255. Tratava-se, portanto, de mais um exemplo de crítica indubitavelmente
254 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2. 255 SOUSA, Pereira de – “Liberdade”. O Democrático, nº 903, 11/03/1932, p. 2.
112
direcionado ao regime ditatorial, por via do recurso a exemplos do passado, em defesa
dos valores liberais e democráticos.
Em 1935, O Democrático transcreveu um artigo retirado do Primeiro de Janeiro,
no qual se informava que o “Ministro do Interior resolveu promover a repressão de todos
os jogos, incluindo os de quino, quadra, bicho e tômbola ou máquinas automáticas”. Neste
sentido, ficaram “incumbidas de exercer essa repressão as polícias de Segurança Pública,
Investigação Criminal e de Vigilância e Defesa do Estado”. Para além de, neste texto, se
darem a conhecer as coimas que seriam aplicadas aos que desrespeitassem a lei, é mais
importante realçar que “o denunciante” de tais casos de infração de “jogo clandestino”
receberia, “como prémio, a importância nunca inferior a 5 contos ou dinheiro que” tivesse
“perdido”256. Neste caso, O Democrático não tece qualquer comentário ao conteúdo da
notícia que transcreve. Talvez o receio da ação da Comissão de Censura tenha contido os
redatores do periódico. Seja como for, esta foi a última vez que o jornal se pronunciou
relativamente a este tópico.
256 “A repressão rigorosa de todos os jogos”. O Democrático, nº 1045, 25/01/1935, p. 4.
113
5. A reação republicana ao Estado Novo – o apoio de O
Democrático à luta contra a Situação
A oposição existe em qualquer regime ditatorial e repressivo. Como já se viu,
Portugal não foi exceção e desde o golpe de 28 de Maio de 1926 surgiram no país focos
de oposição, quer no país quer no exílio. Contudo, após a revolta de 26 de agosto de 1931,
o reviralhismo foi perdendo força acabando por desaparecer a partir de 1940. A
consolidação e endurecimento geral da Ditadura do Estado Novo (que liquidou “qualquer
veleidade de sobrevivência da Ação Republicana-Socialista”, agravou “drasticamente a
censura” e iniciou “a grande limpeza saneadora, agora no funcionalismo civil”) foi o fator
que mais contribuiu para o término desta frente opositora257. Ainda assim, O Democrático
apoiou e divulgou ações de oposição ao regime ditatorial: neste período específico, deu
destaque à intervenção e opinião de influentes figuras da República e à ação da Aliança
Republicana e Socialista.
5.1. Figuras republicanas – Afonso Costa
Afonso Costa, um dos mais sonantes nomes do republicanismo, foi “um dos
maiores oradores do seu tempo e adversário determinado das instituições monárquicas e
clericais”. Exerceu “um papel de relevo nos debates políticos que desembocaram na
implantação da República, integrando a direção do Partido Republicano e envolvendo-se
em conspirações contra a Monarquia e o franquismo, que lhe valeram a prisão em diversas
ocasiões”. Implantada a República, foi o autor de “legislação fundamental laicista e
anticlerical do novo regime (decreto de expulsão das ordens religiosas, lei de imprensa,
lei do divórcio, lei do inquilinato, leis da família e de proteção às crianças, lei do registo
civil, lei da separação do Estado e das Igrejas, etc.)”. Após ser deposto “pelo golpe militar
de Sidónio Pais em 5 de Dezembro de 1917”, ficou preso durante cerca de três meses e,
quando em liberdade, remeteu-se ao exílio em França. Não mais voltaria a “exercer
qualquer cargo político em Portugal, renunciando à vida partidária. Porém, caída a
República e instaurada a Ditadura Militar, em 1926, e mesmo permanecendo exilado em
257 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
226.
114
Paris, Afonso Costa participaria “até à sua morte, em 1937, em numerosas tentativas para
derrubar a Ditadura e o Estado Novo”, integrando “os corpos diretivos da Liga da Defesa
da República (1927-1930) e defendendo, em 1936, a criação de uma Frente Popular que
reunisse todas as forças de esquerda”. Assim, para além de ser uma das mais relevantes
figuras políticas da I República, Afonso Costa, foi também um forte opositor do regime
ditatorial258. E O Democrático patenteou e apoiou esta oposição.
Em 1932, num Portugal tomado pela ditadura, o semanário publicou a transcrição
de uma entrevista dada por Afonso Costa ao Diário de Notícias, na qual o histórico
republicano asseverava: “A República tem de seguir a política de esquerda”. Trata-se,
portanto, de um desafio claro à Situação. Quando questionado diretamente sobre Portugal,
Afonso Costa afirmou que todos os países se deviam adaptar às circunstâncias do
momento atual e que “no nosso país” nada se poderia “fazer sem liberdades públicas
completas e sem o Parlamento”259. Contudo, o estadista conferia mais relevância à
conjuntura económica e à crise capitalista que o país e o mundo atravessavam do que ao
momento político nacional, defendendo a adoção de uma política socialista integral. Veja-
se o excerto:
O capitalismo está ameaçado. Perdeu a sua força. Tem os seus dias contados. A
sua política causou a guerra. Desenvolveu-se ainda depois do conflito. O mundo
só sairá da atual crise económica pela dispensa progressiva do capitalismo na
administração dos organismos económicos. O capitalismo será substituído pela
cooperação dos diversos ramos de trabalhadores, isto é, dos que produzem, dos
que transportam e dos que consomem. O Estado deve facilitar, impulsionar e
organizar ele mesmo a cooperação agrícola e industrial. É talvez o socialismo
integral. Para lá caminhamos260.
258 Afonso Augusto da Costa (1871-1937). Biografias. Fundação Mário Soares, Arquivo & Biblioteca.
Disponível em <http://www.fmsoares.pt/aeb/crono/biografias?registo=Afonso+Costa> [acesso em
11/09/2019]. 259 “A República tem que seguir a política da esquerda”. O Democrático, nº 939, 20/12/1932, p. 3. 260 “A República tem que seguir a política da esquerda”. O Democrático, nº 939, 20/12/1932, p. 3.
115
Assim, depois de se reestabelecer “o regime de liberdades”, imediatamente
poderiam ser realizadas muitas reformas – seguindo esta linha que Costa defendia – que
apenas beneficiariam a Nação que se encontrava “debaixo de uma concha, isolada do
mundo inteiro” sem poder “receber o influxo das grandes transformações mundiais que a
crise económica tornou mais imediatas”. Afonso Costa estava persuadido que assim que
se fizesse a transição do regime ditatorial para a Democracia (“quando a Ditadura for
substituída por um regime de liberdades”) apresentaria a sua candidatura a deputado ao
Governo Constitucional e incentivaria à adesão de todos os republicanos, nesse momento
que certamente seria crucial para o futuro da Nação261. Relembre-se que Costa se afastara
da política ativa muito antes do fim da I República (até antes do fim da Grande Guerra na
qual tanto pugnou para que Portugal entrasse) e preferira o exílio mais ou menos
tranquilo. Aliás, a dissensão e dispersão republicanas após o 28 de Maio não foram alheias
à incapacidade de consolidar uma frente unida de oposição à Ditadura.
5.2. Aliança Republicana e Socialista
A Aliança Republicana e Socialista foi um grupo encabeçado por Norton de
Matos, com a colaboração de Tito de Morais e Mendes Cabeçadas, formado em 1931 e
em atividade até 1934, que pretendeu assumir-se como uma espécie de oposição à
institucionalização da União Nacional262:
Com plena delegação de todos os partidos e grupos políticos republicanos e do
Partido Socialista e a colaboração de individualidades que, embora
independentes, podem considerar-se representativas de certas modalidades da
opinião republicana, surgiu esta força política para que, finalmente, tivesse forma
o pensamento, tantas vezes expresso como necessidade premente da união dos
democratas portugueses em volta da sua ideologia comum, e para a defesa, no
261 “A República tem que seguir a política da esquerda”. O Democrático, nº 939, 20/12/1932, p. 3 262 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
171.
116
estrito campo da legalidade, das legítimas pretensões a que tal ideologia
conduz263.
A 8 de julho do mesmo ano, o diretório da aliança chegou mesmo a solicitar uma
audiência a Óscar Carmona, de forma a reivindicar os direitos do partido264.
Em 1931, O Democrático noticiou a criação da Aliança Republicana e Socialista,
liderada pelo “valoroso português”265, o General Norton de Matos:
Os partidos constitucionais da República acabam de formar uma coligação para,
em ação comum, atuar e orientar para o futuro a grande massa republicana de
Portugal, delineando um programa de Governo, dentro da Constituição. A essa
coligação também deu a sua inteira adesão o Partido Socialista Português que
representa hoje uma presença considerável e inegável no nosso país266.
O semanário evidenciou que o entusiasmo se havia apoderado das hostes
republicanas por todo o país. Os republicanos vila-condenses apoiantes desta coligação
chegaram mesmo a redigir um telegrama de apoio ao militar e político português,
garantindo-lhe a sua colaboração:
General Norton de Matos,
Representantes republicanos coligados do concelho de Vila do Conde,
interpretando o sentimento dos seus correligionários, saúdam entusiasticamente
o Diretório, afirmando-lhe sua inteira solidariedade política, confiados em nova
era brilhante e fecunda que ressurge para a vida da República267.
Assinaram este telegrama António Oliveira e Castro, “pelos socialistas”; Artur
Araújo, “pela Ação Republicana”; Francisco Barbosa “pelo Partido Republicano
263 “Momento Político. Manifesto do Diretório da Aliança Republicana ao país”. O Democrático, nº 870,
10/07/1931, p. 3. 264 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974), in MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal, p.
171. 265 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2. 266 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2. 267 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2.
117
Português”; João Canavarro, “pela Esquerda Republicana”; Pereira Júnior, “pela União
Liberal”; Sousa Pereira, “pelos independentes”; Pinto Ferreira “pela Seara Nova” e
Domingos Antunes, “pelo Partido Republicano Nacionalista”268.
Consequentemente, o secretário do diretório da Aliança Republicana e Socialista
– Simões Raposo – respondeu ao apoio demonstrado pelos republicanos de Vila do
Conde, dirigindo-se aos seus correligionários com palavras de agradecimento pelo júbilo
confiante no êxito da “aliança republicana” na vila, “atendendo ao prestígio dos que”
estavam “à frente dos trabalhos” iniciados269.
Por outro lado, o jornal informou que, neste ambiente de fervor renovado pela
causa republicana, se verificavam novas adesões ao PRP e se tinham organizado
“comissões municipais e paroquiais na grande maioria das terras do país, todas
secundando o Diretório da Conjunção Republicano-Socialista”, num momento de
“calorosas saudações à República e à Liberdade”270.
Mais uma evidente demonstração de apoio do periódico a este organismo político
foi a publicação do manifesto do diretório da aliança ao país271. As consequências desta
divulgação depressa se fizeram sentir. O jornal divulgou que “por todo o país” se
verificava intensa “ação das comissões republicanas, formadas sob direção do Diretório
da Conjunção Republicano-Socialista”. Além disso, o semanário noticiou – através do
avançado pelos jornais diários – que a aliança havia nomeado uma comissão de
propaganda272.
A última menção a esta aliança ocorreu em finais de 1932, quando o jornal – a
propósito do aniversário do 5 de Outubro de 1910 – recebeu uma mensagem de
felicitações enviada pelo diretório da Aliança Republicana Socialista. A organização
congratulava O Democrático pelo seu empenho na defesa e divulgação da causa
republicana. Adicionalmente, o periódico mencionava que, em Vila do Conde, o
aniversário da implantação da República continuava a ser celebrado com entusiasmo.
268 “Pela República!”. O Democrático, nº 866, 06/06/1931, p. 2. 269 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 869, 03/07/1931, p. 2. 270 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 869, 03/07/1931, p. 2. 271 “Momento Político. Manifesto do Diretório da Aliança Republicano-Socialista ao país”. O Democrático,
nº 870, 10/07/1931, p. 3-4. 272 “Vida Republicana”. O Democrático, nº 873, 31/07/1931, p. 1.
118
Neste ano de 1932 havia sido festejado com salvas de fogo, distribuição de esmolas aos
pobres, ementa especial nas prisões e o hastear da bandeira nacional em todos os edifícios
públicos273. Evidenciando o comemoracionismo do 5 de Outubro, O Democrático
demonstrava que, apesar do país viver sob um signo adverso aos valores que essa data
representava, a memória da República ainda sobrevivia.
273 “5 de Outubro”. O Democrático, nº 932, 07/10/1932, p. 2.
119
6. O Democrático e as representações de Vila do Conde
Regido pelo desejo de contribuir para o progresso de Vila do Conde, este
semanário apresentou uma posição fortemente interventiva relativamente aos assuntos
locais. Destemido nas críticas, arrojado nas reivindicações e intransigente na defesa dos
seus princípios, O Democrático lançou-se numa dupla missão. Patenteou e celebrou as
potencialidades e singularidades da vila mas, ao mesmo tempo, visou condenar as falhas,
apresentar possíveis soluções/melhoramentos e incentivar a participação eficiente tanto
dos órgãos de governação local como da população vila-condense na resolução dos
problemas, carências e atrasos do município.
6.1. Características e potencialidades da vila
O Democrático apresentou Vila do Conde como uma localidade verdadeiramente
singular. Dotada de uma notória beleza paisagística e monumental que encantava o olhar,
de um bairro balnear com praias que convidavam à visita dos turistas e de tradições
históricas, artísticas e culturais absolutamente distintas, esta pequena vila – que se via
espelhada no Ave – apresentava já na década de 1926-1936 um elevado potencial a nível
nacional. Aliás, não era incomum o elogio da história e da beleza natural e patrimonial da
“princesa do Ave”, cantada como “delicada, artística, devota”, cujos “grandes
monumentos” atestam a sua “genealogia fidalga”, tendo o Ave como companheiro “que
a viu nascer e crescer em formosura”274.
6.1.1. A beleza e singularidade da beira-mar e paisagem
Consciente das características únicas que a individualizavam, O Democrático
ofereceu grande destaque ao potencial da praia vila-condense. Apresentando-a como um
espaço distinto e singular, no que diz respeito à beira-mar, o periódico insistia na
necessidade de se proceder a melhoramentos neste local, que era considerado um dos
pontos mais atrativos de Vila do Conde. O jornal considerava que a beira-mar se
274 VIEIRA, José Augusto – Minho Pitoresco: Vila do Conde. Valença: Rotary Clube de Valença, 1986-
1987, p. 261.
120
encontrava lançada na senda do desprezo e do abandono, o que a tornava objeto de
“críticas desagradáveis” por parte de muitos visitantes que acabavam por preferir outras
praias com maior limpeza e comodidade. A incúria de que a zona balnear era alvo, além
de contribuir para uma má imagem da vila275, revelava-se extremamente prejudicial às
oportunidades de negócios proporcionadas pelo fluxo turístico. Nesta conformidade, o
semanário perseverou nos aspetos práticos de melhoramentos a realizar para colmatar a
situação, como mais adiante se verá.
Na mesma linha, o jornal reconhecia o potencial dos jardins e espaços públicos da
vila que, sendo bem aproveitados e aprumados, criariam agradáveis zonas verdes que
convidariam ao convívio e relaxamento. Porém, não escondia que os jardins se
assemelhavam a “autênticos lameiros, sempre sem modificação alguma”276.
Perante este mau aproveitamento dos recursos de Vila do Conde, o periódico
defendia que a planta da região deveria ser devidamente estudada por profissionais
competentes, de forma a transformá-la de “burgo inestético, com predomínio acentuado
de falta das exigências dos tempos” que corriam, “numa vila moderna em que às suas
belezas naturais, e tão lindas elas são, se alie a feição progressiva da qual a higiene e a
comodidade são principais apanágios”. Neste sentido, propunha que a autarquia
procedesse a vários melhoramentos:
Ruas com o piso convenientemente reparado, jardins tratados cuidadosamente e
com assiduidade, aproveitamento com inteligência das lindas perspetivas que de
vários pontos se desfrutam, embelezando-os de maneira que cativasse os
forasteiros que neles atualmente não encontram senão o que a natureza
prodigamente espalhou na nossa terra277.
Sendo estes alguns dos aspetos aos quais Vila do Conde mais fazia propaganda
para atrair turistas, o jornal tomou como sua missão apontar o que precisaria de ser
275 “A beira-mar da nossa praia”. O Democrático, nº 674, 03/06/1927, p. 2. 276 “A fita da semana”. O Democrático, nº 768, 18/05/1929, p. 4. 277 “Obras Municipais”. O Democrático, nº 910, 29/04/1932, p. 1.
121
melhorado, de forma a garantir que as expectativas correspondessem à realidade para que
“os de fora”278 planeassem o seu regresso à vila.
No final, constata-se que, apesar de considerar a beira-mar e a beleza paisagística
como potencialidades e dois dos grandes pontos singularizadores e atrativos da vila, O
Democrático quase se continha ou não oferecia lugar a descrições elaboradas e elogiosas
a estas atrações, focando-se, antes, verdadeiramente na divulgação dos problemas que
precisavam de resolução urgente para que o potencial de Vila do Conde fosse
efetivamente aproveitado e rentabilizado ao máximo.
6.1.2. O património histórico, monumental e artístico
Para além das pulcritudes naturais, Vila do Conde era descrita como uma terra de
cultura, costumes e história incomparáveis. O património monumental e artístico foi
fortemente patenteado nas colunas do periódico e abordado com orgulho e regozijo,
embora sobressaíssem mais as evidentes preocupações com a sua preservação e
manutenção. Ainda assim, monumentos como o Mosteiro e Igreja de Santa Clara e a
Igreja Matriz eram considerados pontos de culto. Esta igreja, que se encontrava em
avançado estado de degradação em 1926, era considerada um “histórico e belo templo”
que deveria ser estimado279.
A antiguidade do Mosteiro de Santa Clara, cuja fundação remonta ao primeiro
quartel do século XIV (1318) bem como as suas funções, inicialmente como casa de
religiosas, eram tema de estudo na época e sê-lo-iam ainda posteriormente:
No regresso da romagem a S. Tiago de Compostela, pousando D. Afonso Sanches
e D. Teresa Martins na sua Vila do Conde, resolveram ambos fundar aqui um
Mosteiro da Ordem de Santa Clara, para amparo das fidalgas pobres em primeiro
lugar, das ricas em segundo, e só na falta delas se poderia admitir outra gente,
contando que a virtude e a limpeza do seu estado suprissem a qualidade que lhe
faltasse no sangue280.
278 “Obras Municipais”. O Democrático, nº 910, 29/04/1932, p. 1. 279 “A Igreja do Convento de Santa Clara”. O Democrático, nº 619, 16/04/1926, p. 2. 280 FERREIRA, José Augusto – Os túmulos de Santa Clara de Vila do Conde. Porto: Tipografia Sequeira,
1925, p. 17.
122
Esta imponente instituição “exerceu grande preponderância na vila da foz do Ave.
Senhoras do rio, as donas de Santa Clara oneravam com impostos a circulação no Ave”,
bem como o peixe que nele era apanhado. “Foram também detentoras da jurisdição cível
e crime sobre a localidade até ao reinado de D. João III”. Em finais do século XIX, no
ano de 1893, morreu a última freira, terminando assim a “longa história do Mosteiro de
Santa Clara de Vila do Conde, rosto de um sonho ocorrido na longínqua Idade Média”.
Contudo, a “sua vocação de casa de clausura” permaneceria durante o século XX, “tendo
sido transformada em Casa de Correção e Detenção para menores em 1902”. Mais tarde,
já na década de 1940, “uma missão de Padres Salesianos, transforma-a em Escola
Profissional”, onde aos jovens foi ensinado “um ofício a par de uma filosofia de vida”,
que os tornasse, no futuro, “úteis à sociedade”281.
Por sua vez, a Igreja de Santa Clara, “templo gótico, dos mais graciosos do norte
do país”, destacava-se pelas suas notáveis obras de escultura e arte sacra. Em “forma de
cruz latina, e de uma só nave, construída em magnífica silharia de pedra e no estilo ogival,
é no seu género uma das melhores igrejas conventuais do país”282. Neste espaço
“repousam, em soberbos túmulos, Dona Teresa Martins e D. Afonso Sanches, os
instituidores do Mosteiro de Santa Clara”, assim como os restos mortais de dois filhos
que faleceram ainda infantes283.
De facto, o jornal conferiu e reconheceu grande importância aos monumentos
históricos da vila. Consequentemente, para além das claras preocupações de manutenção
e preservação dos mesmos, propôs a criação de um guia completo tanto dos monumentos
como das praias. Considerava até absurdo que tal ainda não tivesse sido efetuado, numa
terra com tanta potencialidade para a atração turística284.
281 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 24-25. 282 FERREIRA, José Augusto – Os túmulos de Santa Clara de Vila do Conde, p. 18. 283 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 26-27. 284 “Enquanto é tempo…”. O Democrático, nº 752, 19/01/1929, p. 1.
123
6.1.3. Tradição e cultura em Vila do Conde
Ao turismo e aos monumentos históricos juntam-se a cultura e a tradição. As festas
populares religiosas e a arte de rendilhar pelas mãos das mulheres dos Ranchos da Praça
e do Monte foram os exemplos mais significativos apresentados pelo periódico.
As festividades em honra do padroeiro – S. João – eram sem dúvida as maiores
em Vila do Conde, pelo que o jornal dedicou descrições detalhadas aos seus festejos, com
destaque para o entretenimento proporcionado pelos ranchos locais: na véspera, logo nas
primeiras horas da manhã, “o Rancho da Praça, acompanhado pela banda dos nossos
Bombeiros, percorreu as ruas da vila, cantando o hino de S. João. O Rancho do Monte,
pouco depois, também lá do alto do seu parapeito cantava o mesmo hino”. Depois das
primeiras cantigas, seguiam-se os cortejos nos quais os ranchos colocavam em destaque
todo o seu esplendor, nomeadamente a beleza e peculiaridade dos trajes e danças. Mais
tarde, queimava-se uma “grande quantidade de fogo-de-artifício” que coloria o céu
escuro. Chegado verdadeiramente o dia de S. João, realizava-se então a festa religiosa,
“com missa cantada” e à tarde a “majestosa procissão” atravessava os circuitos principais
da vila. “Enfim, festa de alegria cheia de mocidade e folia, o S. João na terra”285.
De facto, a tradição dos ranchos marcava (e continua ainda hoje a marcar) a
história da tradição vila-condense. Profundamente ligada a estas associações populares
está a arte de rendilhar, popularizada sobretudo pelas rendas de bilros, pérola da indústria
regional em pleno século XX.
O Democrático apresentou as rendas de bilros como “uma indústria florescente e
delicada” que dava nome a Vila do Conde. Num artigo assinado por Nuno Beja, o autor
deu conta da impressão com que ficou após ter assistido ao meticuloso trabalho das
pequenas rendilheiras numa visita à sua escola:
Com prazer assisti, há pouco, ao labor de umas poucas de dezenas de raparigas
trabalhando numa sala ampla, arejada, acompanhando o seu trabalho de uma
suave cantiga. Dá gosto visitar esta escola de rendeiras em que crianças muito
pequeninas, de poucos anos ainda, se vão habituando a uma ginástica curiosa em
285 “As festas do Padroeiro”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 2.
124
que os dedos como que se desconjuntam na rapidez com que trabalham, a dedicar-
se a uma indústria bela, no futuro um proveitoso ganha-pão para elas286.
Destacou, portanto, o importante papel social que esta atividade representava, na
medida em que constatou que “a mendicidade de crianças” era “relativamente bastante
reduzida nesta terra”, pois “as crianças desde muito pequenas” iam “trabalhar em rendas,
as suas mãozinhas delicadas principiam a habituar-se ao trabalho e não a estender-se à
caridade de quem passa na rua”287.
Neste contexto, torna-se relevante aludir às razões que conduziram a autarquia
vila-condense a apostar na criação de escolas que disciplinassem o ensino das rendas de
bilros, já que a arte de rendilhar era uma prática secular: “Há notícias da elaboração de
rendas de bilros, nesta cidade do Ave, desde 1661, altura em que por pedido das
costureiras” passavam as rendilheiras “a contribuir para a folia da procissão do Corpo de
Deus”, começando assim o processo de divulgação daquela que se tornaria uma arte de
renome288. Enquanto “elementos de uma indústria manufatureira”, as rendas de bilros
“nasceram por motivos económicos”. Numa região em que o sustento de grande parte da
população residia no mar, “tornava-se imperioso, para as mulheres, lançar mão de uma
ocupação que pudesse valer às famílias em época de necessidade”289. De facto, uma vez
que a vida de marinheiro fornecia pouquíssimas garantias de sucesso e/ou segurança para
os que a praticavam, surgia a imposição de, para quem ficava terra, arranjar ocupação que
garantisse o sustento e sobrevivência. Segundo algumas opiniões, eventualmente numa
perspetiva poética, o mar havia inspirado os “arabescos fantasiados pelas ondas nas
rochas nuas da praia, o segredo das rendas afamadas que hoje as vila-condenses fabricam
nas grandes almofadas de bilros”290.
Porém, a crise, “a desenhar-se desde o final do século XIX, provocou um
abaixamento da qualidade das rendas o que levou algumas personalidades a pensarem na
criação de uma escola que alterasse essa realidade”. De facto, as rendilheiras
286 BEJA, Nuno – “Pelo Norte”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 1. 287 BEJA, Nuno – “Pelo Norte”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 1. 288 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 69-70. 289 MIRANDA, Marta – Vila do Conde, p. 69. 290 VIEIRA, José Augusto – Minho Pitoresco: Vila do Conde, p. 261.
125
encontravam-se “dispersas, sem método, técnicas ou modelo por onde se orientarem”. A
aprendizagem era “realizada de uma forma puramente espontânea, não obedecendo a
qualquer plano pedagógico”. Neste seguimento, em 1919, foi criada uma “Escola de
Rendas em Vila do Conde, posteriormente chamada Escola Industrial de Rendilheiras
Baltazar do Couto”291. Em 1927, esta instituição inaugurou a sua primeira exposição de
rendas de bilros no edifício do Club 1º de Dezembro, “levada a efeito pelo ilustrado e
digno diretor da escola”, Rui Vaz, “com a colaboração das importantes e acreditadas casas
Leopoldina Leal e Flores Torres”. O Democrático relatou este evento com orgulho e
entusiasmo:
Nunca em ano algum nos foi dado o ensejo de ver uma exposição tão interessante,
tão linda e artística. Trabalhos soberbos de perfeição ali se encontram expostos
pela escola […] parecendo quase inacreditável que essas mimosas rendas tenham
sido tecidas, com fios de linho, manualmente, pelas nossas gentis rendilheiras292.
Todavia, e tal continuaria a ser prática corrente, o jornal considerava que a
autarquia não tirava o devido proveito nem promovia as rendas de bilros em conformidade
com o potencial das mesmas. Em 1929, o periódico viu com muito desagrado a ausência
de expositores vila-condenses, principalmente do ramo das rendas, na Exposição de
Sevilha que se realizaria brevemente. Considerava absolutamente imperativo que a
Câmara Municipal, através dos órgãos responsáveis, não poupasse em esforços nas ações
de propaganda e divulgação de tudo o que de único se fazia na vila. Essa boa publicidade
só poderia trazer benefícios293.
Apesar de se manter fiel à sua posição de que muito mais se poderia fazer para
ampliar as potencialidades locais, o jornal celebrava com ânimo os sucessos deste ramo
da indústria regional. Em 1930, divulgou que a Escola de Rendilheiras de Vila do Conde
marcou presença e causou furor na grande exposição do ensino técnico elementar aberta
ao público no Palácio Nacional de Belas Artes de Lisboa. Precisamente por reconhecer o
291 Rendas de Bilros de Vila do Conde: um património a preservar. Vila do Conde: Associação para a
Defesa do Artesanato e Património de Vila do Conde, 2005, p. 26. 292 “Exposição de Rendas”. O Democrático, nº 686, 10/09/1927, p. 1. 293 “Faça-se propaganda”. O Democrático, nº 755, 09/02/1929, p. 1.
126
peso da oportunidade neste tipo de eventos, não deixou de reiterar: “a esta iniciativa, das
mais interessantes para a propaganda da nossa terra, empresta O Democrático todo o seu
auxílio, como lhe cumpre”. Acrescentou que seria basilar a união de todos os vila-
condenses em tudo o que se fizesse “para alcançar a expansão máxima da sua indústria
tradicional”294. Parece que os apelos do periódico foram efetivamente ouvidos, uma vez
que, no mesmo ano, se começou a preparar a primeira Exposição de Rendas de Bilros em
Lisboa. O evento seria promovido pela Associação Comercial, sendo os encargos das
despesas responsabilidade da Câmara Municipal e da Comissão de Turismo vila-
condenses, com data de inauguração programada para 22 de março295. Segundo O
Democrático, conhecido o fim da exposição, o balanço foi extremamente positivo.
Considerava que era um evento a repetir, visto que causou um forte impulso à economia
local. As casas expositoras venderam dezenas de rendas e foram efetuadas outras tantas
encomendas que garantiam trabalho às rendilheiras “por muito mais de um ano acudindo
assim à muita necessidade que já se fazia sentir em muito lar”. Foi possível fazer
propaganda à vila graças a importantes títulos da imprensa nacional, tais como O Século,
que noticiaram o evento. Para além dos lucros obtidos com a venda das rendas, conseguiu-
se a troco da venda de postais ilustrados de Vila do Conde a “importante soma de
4.311$50” que reverteram a favor do Hospital da Misericórdia296.
A atividade dos ranchos da Praça e do Monte, para além da exposição e divulgação
da indústria das rendas, também não passou despercebida. O jornal faz questão de
anunciar sempre os grupos que se deslocavam a outras localidades, por vezes até fora do
país, para fazer as suas demonstrações de danças e cantares. Registam-se idas a Coimbra,
Estremoz, Lisboa297, Matosinhos298 e até Espanha299.
294 “As Rendas de Vila do Conde”. O Democrático, nº 800, 25/01/1930, p. 1. 295 “Exposição de Rendas de Vila do Conde em Lisboa”. O Democrático, nº 805, 28/02/1930, p. 1. 296 “A 1ª Exposição de Rendas de Vila do Conde em Lisboa”. O Democrático, nº 810, 04/04/1930, p. 1. 297 “O Rancho da Praça em Coimbra, Estremoz e Lisboa”. O Democrático, nº 970, 01/09/1933, p. 2. 298 “Ao Rancho das Rendilheiras da Praça de Vila do Conde”. O Democrático, nº 979, 22/09/1933, p. 4. 299 “O Rancho da Praça em Espanha”. O Democrático, nº 1067, 20/06/1935, p. 4.
127
6.2. Carências, atrasos e problemas regionais
No que diz respeito aos problemas locais, O Democrático defendia que estes
deveriam ser resolvidos com base nos recursos naturais a aproveitar ou a desenvolver na
região e na capacidade financeira para execução das obras de fomento atinentes à
realização desses objetivos. Efetivamente, Vila do Conde possuía “fartos recursos”: terras
férteis; “lavoura adiantada em relação à rotina”; “rede de estradas notável”; condições
para fazer bom porto de pesca e cabotagem; importante aglomerado industrial e um rico
património artístico e cultural300.
Com vista ao aproveitamento destes recursos, o jornal elencou uma série de
aspetos a melhorar: a lavoura carecia de energia barata; a manutenção das estradas
precisava de ser garantida; o porto tinha de ser melhorado; as condições de higiene
precisavam de ser aprumadas; a beira-mar e várias instituições públicas precisavam de
ser preservadas, entre outras matérias.
Contudo, antes de explorar os principais melhoramentos e reivindicações
patenteadas pelo periódico, é pertinente, agora, deixar um importante apontamento
relativo às preocupações d’O Democrático relacionadas com os problemas da
conservação histórico-patrimonial da região e com o desaprumo e atraso da educação dos
vila-condenses.
Como já foi referido, era notória a frustração deste semanário quando apontava o
aparente desinteresse da autarquia no que dizia respeito à preservação dos monumentos
históricos do município, tais como o Convento e respetiva Igreja de Santa Clara, a Igreja
Matriz, a Capela do Desterro e o monumento de comemoração da tentativa de
desembarque liberal em 1832. A indignação era maior e, por consequência, o jornal
ofereceu mais destaque e urgência ao ex-libris vila-condense – a Igreja do Mosteiro de
Santa Clara – cujo estado de degradação constituiu uma das principais preocupações do
semanário em termos de património erigido, acusando “os poderes públicos” de
ignorarem o assunto. Consequentemente, e a contrastar, manifestava-se “uma corrente
favorável” nos vila-condenses que visava “impor ao Estado a obrigação de cuidar do […]
património artístico, concedendo-lhe os meios necessários para se fazerem as reparações
300 “Problemas a resolver”. O Democrático, nº 765, 26/04/1929, p. 1. Ver Anexo 10.
128
devidas para que a ruína” não completasse “a sua obra fatal”. E, de facto, alguma
iniciativa foi tomada. O jornal reconhecia o empenho do “ilustre deputado” Cunha de
Araújo relativamente a este assunto, visto que o próprio havia requerido junto do Ministro
da Instrução que fosse “feita uma dotação para as obras de reparação do templo”. Todavia,
o pedido não foi atendido por falta de verbas301.
Por sua vez, também a Igreja Matriz carecia de obras de conservação. A situação
era deveras alarmante, ao ponto de se ter constituído uma comissão – composta pela Junta
da Paróquia, José Ferreira, Tadeu Neves e Alexandre Coentrão – “para levar a efeito
alguns melhoramentos” na igreja, tais como: “cobertura e iluminação do relógio,
levantamento e nivelamento do pavimento do adro, limpeza da cantaria e outras obras de
necessidade”. O jornal dava conta de vários donativos já ofertados a favor da causa302
mas dava também conta de outro problema: “o estado de desarranjo” em que se
encontrava o “órgão do vetusto templo da Matriz”. Sendo esta situação do conhecimento
público, o semanário apelou a que se atendesse a este assunto o mais rapidamente
possível, uma vez que o risco de ruína era iminente303. Até 1936, o periódico não deu
conhecimento de qualquer tipo de reparação efetuada. Efetivamente manteve-se ao longo
do decénio o motivo da inibição à realização de qualquer benfeitoria, ou sequer de
manutenção, a nível do património artístico: a falta de verbas e subsídios para custear
quaisquer obras, fosse em monumentos, fosse em instituições/infraestruturas essenciais à
vida do concelho, como foi o caso da Estação dos Correios e Telégrafos. Este edifício
encontrava-se degradado – “um pardieiro” que mais parecia “um presídio que uma
repartição pública”304 –, já não reunia as condições de segurança e trabalho necessárias
ao seu funcionamento regular. A transição destes serviços para um novo imóvel,
adequado à função, revelou-se complicada e morosa. Após vários impedimentos, em 1935
o jornal noticiou que estaria finalmente a decorrer a mudança desta repartição para uma
nova estação, com novo mobiliário e superior material telefónico305.
301 “A Igreja do Convento de Santa Clara”. O Democrático, nº 619, 16/04/1926, p. 2. 302 “Igreja Matriz”. O Democrático, nº 625, 28/05/1926, p. 3. 303 “O órgão da Matriz”. O Democrático, nº 999, 23/02/1934, p. 3. 304 “Estação telégrafo-postal”. O Democrático, nº 837, 24/10/1930, p. 1. 305 “A Estação dos Correios”. O Democrático, nº 1065, 05/07/1935, p. 2.
129
Uma das grandes preocupações d’O Democrático, traduzida em numerosos apelos
veiculados a propósito de diferentes assuntos, foi o combate ao analfabetismo não só no
concelho mas também no país, principalmente com o advento do regime do Estado Novo.
A par desta reivindicação que se insere na matriz demopédica republicana, o periódico
reclamava também a necessidade de aprumar o civismo, a boa educação e o interesse
cultural dos vila-condenses. Daí a sua proposta de iniciativas que apurassem a sede de
conhecimento da população, como é o caso da criação de uma biblioteca pública que
servisse de instituição de cultura, acessível a todas as camadas sociais306. Na sua ótica,
esta aposta na cultura e na educação contribuiria para o avanço das mentalidades e do
sentido cívico.
Esta mudança era urgente pois o jornal retratou em múltiplos textos uma vila na
qual as pessoas caminhavam descalças na rua e as crianças e jovens manchavam as
“paredes caiadas de fresco com palavrões obscenos e caricaturas inadmissíveis”. Uma
localidade na qual os trabalhadores locais não estavam ainda preparados e educados para
saber como beneficiar do limite semanal das 8 horas de trabalho, já que, fruto de uma
“mentalidade retrógrada”, ao invés de abandonar o local de trabalho e aproveitar para
descansar ou ir para casa contribuir para a educação dos filhos, preferiam, “nas horas de
folga, encontrar-se às esquinas ou andar pelas ruas a insultar transeuntes, principalmente
o sexo feminino, que tranquilos e corretamente” passavam. Ao mesmo tempo, criticava
aquilo que considerava ser uma exagerada religiosidade do povo, que seguia “à risca as
doutrinas pregadas por Jesus Cristo” na busca de paz, amor e felicidade, ofuscando os
padrões cívicos e de conhecimento de uma sociedade desenvolvida e moderna307.
No fundo, O Democrático descreveu uma Vila do Conde incapaz de acompanhar
a evolução dos tempos, inábil na integração e seguimento dos parâmetros considerados
normais para a época, enfim, uma população atávica e resistente à modernidade. Num
esforço de pregar a mudança e o progresso, o periódico tratou com profundidade muitos
dos problemas considerados mais graves e urgentes, apresentando propostas de resolução
para os mesmos.
306 “Biblioteca Pública”. O Democrático, nº 895, 08/01/1932, p. 2. 307 SILVESTRE, Rosa – “Vila do Conde civilizada?!”. O Democrático, nº 921, 22/07/1932, p. 1. Ver Anexo
11.
130
6.3. Principais melhoramentos e reivindicações locais
Os melhoramentos e reivindicações que O Democrático destacava com verdadeiro
sentido de urgência eram, efetivamente: a contenção das ameaças à saúde pública; a
realização de obras no porto e sua barra; a distribuição de energia elétrica; o
abastecimento de água e saneamento no concelho; a instalação da linha telefónica; a
preservação da zona balnear; o fomento de importantes atividades económicas – tais
como as feiras; a necessidade de garantir estímulo e amparo às instituições de saúde na
vila, de forma a garantir não só a sua sobrevivência, mas também o seu bom
funcionamento e a erradicação da mendicidade flagrante, que não merecia lugar numa
sociedade civilizada e moderna.
6.3.1. A importância da conservação e embelezamento da zona balnear
para a promoção da atividade turística
O Democrático abordou de forma intensa e recorrente a questão do melhoramento
da zona balnear do município, alertando a autarquia para a urgência da sua reabilitação.
Durante toda a década de 1926-1936, e ao longo de todo o ano – mas sobretudo nos meses
que precediam a época balnear, quando esta se encontrava a decorrer e no seu rescaldo –
, o periódico apelava constantemente a que se procedesse à modernização da maravilha
natural que mais atividade turística atraía e que servia de estímulo à economia regional.
Em finais de agosto de 1926, o jornal publicou uma carta redigida por um vila-
condense que considerava urgente virar as atenções da Câmara Municipal para a beira-
mar, “no sentido de a pôr, o mais breve possível, nas devidas condições de zona de
turismo, isto é, no sentido de a pôr em harmonia com as condições de vida próprias do
local”. O autor (anónimo) destacava o estado de “abandono” em que se encontrava a zona
balnear, considerando-a “semisselvagem”, “cheia de dunas de areia” e “quase por
completo vedada ao forasteiro”, o que constituía um “erro gravíssimo”. Perante este
cenário, incentivava a que se formasse “em volta da praia de Vila do Conde um ambiente
novo, de verdadeiro sucesso, um ambiente de empreendimentos de valor” e que desse
“uma ideia firme da sua vitalidade e do seu futuro”. Pedia a máxima diligência destes
melhoramentos, uma vez que a “inauguração dos meios de transporte rápidos e cómodos”,
131
por parte da Companhia do Caminho de Ferro e novas iniciativas da Companhia
Portuguesa de Turismo traziam maior número de visitantes e aumentavam a pressão para
a realização dos melhoramentos necessários no município. Tornava-se, portanto,
imperativo aproveitar ao máximo as potencialidades naturais da praia de Vila do Conde
de forma a “cativar e animar o forasteiro” para promover a afluência turística308.
Precisamente por Vila do Conde ser “uma praia considerada de turismo”, o
periódico abordou – sem discordar, antes pelo contrário – a cobrança de uma contribuição
de 10% sobre as “rendas dos prédios alugados durante a época de banhos e as contas dos
restaurantes, hotéis, etc.”. Apesar de ser mais um encargo, “as importâncias arrecadadas
pelas respetivas comissões” seriam “destinadas a melhoramentos das localidades” aonde
fossem cobradas, “conforme manda a lei”. Assim, O Democrático instava a que os
cidadãos cumprissem o seu dever a bem do município e dava exemplos de alguns dos
melhoramentos já alcançados, destacando uma “espécie de restaurante/café na praia de
banhos”, que, entretanto, acabaria por desaparecer, e a construção de uma estrada de
ligação da praia à margem direita do Ave que, embora concluída, deixava “muito a
desejar”, especialmente por falhas técnicas na construção. Embora reconhecesse que os
progressos atingidos haviam sido ainda poucos e com graves lacunas, o jornal
aconselhava a Comissão de Turismo a ser mais cuidadosa no investimento dos fundos ao
mesmo tempo que solicitava a continuação do entusiasmo e apoio de toda a população
local309.
No que diz respeito ao aluguer de habitações na época alta, este semanário apelava
à consciência dos proprietários de casas para arrendar junto da praia, para que tivessem
cuidados de higiene básicos com as instalações. O apelo não era descabido face ao “estado
de imundice e falta de higiene” em que algumas se encontravam, o que comprometia o
arrendamento das mesmas, passando uma má imagem da vila310. Muitos dos turistas que
planeavam ficar, voltavam atrás na sua decisão “por não encontrarem as comodidades e
regalias que encontram noutras praias”311. Repare-se, através deste exemplo das casas de
308 “Interesses locais – a beira-mar da nossa praia”. O Democrático, nº 638, 27/08/1926, p. 1. 309 “Turismo”. O Democrático, nº 667, 14/04/1927, p. 2. 310 “A nossa praia”. O Democrático, nº 669, 29/04/1927, p. 1. 311 “O embelezamento da beira-mar”. O Democrático, nº 680, 22/07/1927, p. 2.
132
praia, a relevância da questão de falta de higiene – aprofundada mais adiante – sempre a
exercer o seu efeito negativo na vila, comprometendo inclusive o fluxo turístico. Contudo,
a Câmara Municipal era sensível a esta matéria e, em 1929, aprovou um edital que
estabelecia que todos os prédios destinados a aluguer durante a época balnear deviam
estar devidamente equipados com “fossas mouras”312, “retretes com autoclismo e
deveriam ser caiados interiormente antes de entregues aos inquilinos”313.
Tendo em conta as reivindicações e alguns trabalhos levados a cabo pela
Comissão de Turismo, em 1928, a época balnear abriu com outro fôlego. Procedeu-se à
distribuição de “elegantes impressos, em forma de carnets, fazendo propaganda a Vila do
Conde”; o Casino inaugurou a temporada com espetáculos de música (foi convidada a
imprensa local e correspondentes de diários do Porto e de Lisboa para noticiarem os
melhoramentos efetuados no edifício314) e o Palace-Hotel reuniu melhores condições de
hospitalidade para receber novos clientes. Contudo, o jornal chamou ainda a atenção da
Comissão de Turismo para que se procedesse a obras no balneário da praia315, pois
encontrava-se extremamente degradado316, e insistiu na abertura de um café para que “as
classes menos chics” também usufruíssem da praia317.
Em 1930, inaugurou-se o campo de jogos após a realização de obras profundas318,
tendo o jornal noticiado já a intenção da Comissão de Turismo de dotar a praia desta mais-
valia no ano anterior319. O novo espaço ficou dotado de um “ponto de reunião elegante,
onde às terças, quintas e domingos” se realizavam “chás dançantes” e “diversos jogos”.
Além disso, foi construído um “elegante chalet”, onde era servido o chá e a orquestra do
Casino tocava320.
Quatro anos depois, o periódico informou que, conforme o que saiu nos órgãos de
imprensa diários, fora concedida uma verba – pelo Fundo de Desemprego – de 15.000$00
312 Cavidades subterrâneas para receber imundícies. 313 “As casas do bairro balnear”. O Democrático, nº 762, 05/04/1929, p. 1. 314 “Pela praia”. O Democrático, nº 730, 03/08/1928, p. 4. 315 Este estabelecimento manter-se-ia um problema até 1933, ano em que se realizariam obras de
reabilitação. Cf. “O Balneário”. O Democrático, nº 970, 22/07/1933, p. 2. 316 “A nossa praia”. O Democrático, nº 725, 22/06/1928, p. 2. 317 “Pela praia”. O Democrático, nº 730, 03/08/1928, p. 4. 318 “Campo de Jogos”. O Democrático, nº 831, 12/09/1930, p. 1. 319 “Miudezas”. O Democrático, nº 781, 24/08/1929, p. 2. 320 “Campo de Jogos”. O Democrático, nº 831, 12/09/1930, p. 1.
133
para o embelezamento da beira-mar. Esperava-se que este fosse incentivo suficiente para
que os melhoramentos balneares se tornassem uma realidade já na época balnear seguinte
e que a Comissão de Turismo metesse sem demoras mãos à obra na execução de projetos
para esse efeito321. A realidade é que, em 1935, se iniciaram obras no coreto da Avenida
Júlio Graça; na Avenida Brasil, junto ao balneário, em frente ao mar, procedeu-se à
construção de retretes, assim como se inaugurou um bar e uma casa de chá322.
Todavia, as melhorias realizadas ao longo do decénio eram consideradas
insuficientes:
A praia está imensamente carecida de melhoramentos que a embelezem e a
tornem atraente e confortável aos olhos dos que a procuram ou visitam, para aqui
se fixarem durante a época balnear. O pouco que há feito em trabalho
fragmentário e sem obedecer a um conjunto de obras previamente delineadas, é
pouco, imensamente pouco para o muito que é preciso fazer323.
De facto, haviam sido concretizados, ao longo destes anos, vários melhoramentos
mas que não tinham seguido um planeamento coerente e lógico. Efetivamente, nas
palavras d’ O Democrático, “a praia está limpinha… mas é só isso”324 e o seu verdadeiro
potencial não havia sido verdadeiramente aproveitado e devidamente amplificado.
Decididamente, para este órgão da imprensa vila-condense muito havia ainda a fazer para
conferir às praias do concelho maior qualidade e fazer da vila um destino de vilegiatura
balnear apetecível para os turistas e, consequentemente, mais rentável para a economia
local.
6.3.2. Os deficientes cuidados de higiene: uma ameaça à saúde pública
As arcaicas e desadequadas práticas de higiene de séculos passados assombravam
a Vila do Conde do século XX. Nas palavras de Carmo Reis, os perigos inerentes à não
321 “A nossa praia”. O Democrático, nº 1021, 03/08/1934, p. 1. 322 “Pela praia”. O Democrático, nº 1065, 05/07/1935, p. 4. 323 “A Praia”. O Democrático, nº 1073, 30/08/1935, p. 1. 324 “A nossa praia”. O Democrático, nº 971, 28/07/1933, p. 2.
134
modernização dos cuidados de salubridade colocavam em grave risco a saúde pública dos
vila-condenses:
O século XX prolonga o século XIX. As condições da saúde não são bastantes
para dilatar significativamente a esperança de vida. Permanecem as carências de
higiene no quotidiano do povo. No concelho e na vila, onde ainda não existe água
canalizada nem esgotos, o perigo de contaminação ameaça pessoas de todas as
idades. O princípio do século não traz consigo horizontes radiosos. São grandes
as impotências perante a doença e a epidemia. Prevalecem velhos hábitos de cura
doméstica, o recurso á superstição e bruxaria. No trabalho em terra e no mar não
há segurança. A morte é espetro que não foge da vida quotidiana325.
Logo no início de 1926, o jornal apontou a falta de higiene como um dos aspetos
mais urgentes a melhorar. Vila do Conde havia sido considerada, “por um decreto de
Governo da República”, uma localidade de turismo. Contudo, apesar de receber este
reconhecimento como uma honra, o periódico considerava que o concelho não
apresentava ainda as condições necessárias para ascender totalmente a esse estatuto,
particularmente no que dizia respeito às práticas de higiene urbana, tanto habitacional
como individual. Neste contexto, elencou as razões que faziam de Vila do Conde uma
localidade com padrões de higiene abaixo dos padrões novecentistas. Por um lado, a
população não tinha ainda “água em quantidade suficiente para o seu consumo diário e
com certas e determinadas condições de qualidade também”. Por outro, “uma terra para
poder ser considerada higiénica” era preciso que fosse “limpa”, o que abrangia tanto a via
pública como os complexos habitacionais. Relativamente à primeira, o jornal exigia
maior cuidado, visto que a via pública estava invariavelmente repleta de excrementos de
animais domésticos e de tração, assim como de resíduos corporais, nomeadamente
expetoração de indivíduos potencialmente portadores de doenças contagiosas, isto é,
quem passava “pelas ruas da vila, às vezes até nas principais” encontrava “verdadeiras
montureiras” onde se juntavam “materiais orgânicos em decomposição, até cheirar mal”.
325 REIS, A. do Carmo – Nova História de Vila do Conde, p. 223.
135
Apesar de se considerar que a Câmara Municipal devia ser a grande promotora de
eficazes normas de higiene no município, o jornal reconhecia que numa região com cerca
de 7.225 habitantes não se podia esperar que os problemas de higiene fossem resolvidos
“exclusivamente a cargo da Municipalidade”. Mais uma vez defendia como essencial
investir na educação da própria população, a quem deviam ser incutidos princípios
básicos de higiene. Assim, era necessário que a Câmara Municipal e a população
juntassem esforços para tornar a cidade mais limpa, cabendo à edilidade “dotar a terra
com o que é absolutamente indispensável à prática da higiene” e à população aprender a
não deitar todo o tipo de lixo para a via pública, pois tal atitude propiciava a propagação
de doenças que punham em risco a saúde pública.
O próprio jornal pretendia colaborar na resolução do problema e, para tal, encetou
uma missão de sensibilização para a promoção de melhores práticas de higiene junto da
população. Avultava entre as suas preocupações a questão da limpeza e higiene
habitacionais, divulgando didaticamente uma espécie de tutorial de asseio doméstico,
explicando passo a passo os procedimentos a seguir e os produtos a utilizar de forma a
manter a casa limpa326. Mas contribuiu também com uma série de propostas a serem
adotadas pelo órgão supremo do município. Assim, a Câmara Municipal devia “dividir a
vila em setores – cada um naturalmente constituído por um determinado número de
habitantes – e em cada um daqueles mandar assentar um depósito fixo”, “onde cada
habitante” fosse “lançar diariamente” o seu lixo. Advertia para que o reservatório se
mantivesse bem fechado e que o pessoal da limpeza camarário teria a seu cargo varrer o
setor e esvaziar o respetivo depósito327.
Firme no seu propósito de incitar à mudança e contribuir para o melhoramento das
condições de higiene do município, O Democrático também não se inibiu de tecer duras
críticas à prestação camarária neste domínio. Visou, por exemplo, os serviços de limpeza
pública que não satisfaziam os requisitos básicos para manter a vila limpa, visto que em
“certas ruas” já há muito não passava “a vassoura municipal, como por exemplo na
calçada e escadas de S. Francisco, na travessa 5 de Outubro [e] no Largo do Estaleiro”.
326 “Coisas mínimas de higiene”. O Democrático, nº 615, 20/02/1926, p. 2. 327 “Coisas mínimas de higiene”. O Democrático, nº 612, 23/01/1926, p. 2.
136
Vários locais encontravam-se numa “imundice”, até mesmo pontos de culto religioso,
como era o caso da parte exterior da Igreja Matriz, pois havia quem fizesse “de um templo
daqueles retrete ou mictório sem a menor sombra de consideração por ele”, o que era
revelador da “mais absoluta ignorância” e da mais “completa selvageria”. Dado este
cenário, o jornal desabafava, indignado: “Com franqueza, não sabemos para que serve
tanto polícia e tanto zelador na nossa terra”328.
Inevitavelmente, as reivindicações do periódico expressas numa linguagem
contundente chegaram “aos ouvidos” das entidades competentes superiores do município,
tendo surtido efeito. Assim, no mês seguinte a esta campanha, o periódico informou que
os serviços de higiene da vila seriam “intensificados”, sendo que a subinspeção de Saúde
teria já iniciado visitas a hotéis e restaurantes, para que nos mesmos fossem “introduzidos
os melhoramentos necessários”. Adicionalmente, seria também “posto em prática o
serviço permanente de limpeza das vias públicas e remoção do lixo para lixeiras fora do
centro da vila”329.
Todavia, a situação esteve longe de se resolver e, nos anos seguintes, O
Democrático continuou a denunciar o estado de conspurcação da vila, apontando diversos
casos para os quais pedia a intervenção da Câmara Municipal. A “lixeira” que afogava a
rua Joaquim Maria de Melo era um desses focos, pois a “imundice” já transbordava “da
embocadura de uma congosta” que ali existia, avançava “para o passeio daquela rua”, e
corria ao longo do mesmo, afetando locais e visitantes, já que “este cenário” estava
“precisamente montado defronte à Escola de Rendilheiras, estabelecimento do Estado”,
e que de um momento para o outro poderia ser visitado por entidades oficiais330.
Outro fator que na ótica do periódico contribuía para a sujidade nas ruas era a
presença de cães vadios, pois além do problema óbvio dos dejetos na via pública, esses
animais colocavam em risco a segurança da população e conferiam mau aspeto à
localidade, pelo que sugeria que tanto os funcionários da Câmara como a própria polícia
se encarregassem de os recolher, retirando-os das ruas da vila331.
328 “Limpeza Pública”. O Democrático, nº 673, 28/05/1927, p. 2. 329 “Higiene Pública”. O Democrático, nº 676, 18/06/1927, p. 3. 330 “Providências. Duas lixeiras”. O Democrático, nº 751, 05/01/1929, p. 4. 331 “Cães vadios”. O Democrático, nº 800, 25/01/1930, p. 3.
137
Percebe-se que o peso das reivindicações aumentava (assim como a gravidade da
situação relativa à saúde pública) quando o semanário publicou uma lista de
determinações relacionadas com a higiene pública elaborada pela subinspeção de Saúde
do concelho por ordem da Direção Geral de Saúde. Advertia-se, logo inicialmente, que
“todas as faltas de cumprimento” das determinações mencionadas seriam “punidas com
a multa de 200$00 a 300$00, a favor dos cofres do Estado”. Entre as instruções deste
documento destacavam-se os cuidados de limpeza a adotar em locais pululados por
grandes quantidades de moscas e outros insetos, uma vez que estes transmitiam ao
Homem “muitas doenças graves”. Pelo facto de o concelho ser fortemente ruralizado
muitas das advertências relacionavam-se com os cuidados de higienização na atividade
agrícola332.
A questão turística era sempre tida em conta pelo jornal que explicava que o lixo
amontoado em algumas das principais artérias da localidade limitava a atratividade de
uma das mais proeminentes atividades económicas de Vila do Conde – a zona balnear,
junto às praias, que seduzia os turistas na época estival:
O nosso bairro balnear está simplesmente indecente, amontoando-se o lixo pela
rua Bento Freitas abaixo. Esta rua está em tal estado que, há dias, veio uma
família procurar casa para passar a época balnear e, perante aquela limpeza,
desistiu e lá foi para outra praia, fazendo um triste comentário: «Quando isto é no
verão, o que será no inverno». [Outro] comentário de um banhista que já se
encontra entre nós: «Este lixo já é meu conhecido; deixei-o cá em outubro
passado…»333
Dando voz a protestos da própria população, este periódico mencionou que A
União, outro semanário local, publicara nas suas colunas uma carta de um habitante da
rua Joaquim Maria de Melo “a reclamar por causa do lixo” que estava “acumulado na
viela dos Gatos fazendo, assim, coro com as insistentes reclamações” que O Democrático
332 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 812, 19/04/1930, p. 2. 333 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 824, 28/07/1930, p. 2.
138
tinha vindo a fazer sobre o importante assunto da limpeza e saúde públicas, provando que
esta preocupação se generalizava nos órgãos da imprensa periódica local334.
Em bom rigor, a falta de salubridade não se verificava apenas nos edifícios
habitacionais particulares e na via pública. Também os estabelecimentos públicos que
manuseavam géneros alimentares enfermavam do mesmo problema. E a comprovar, uma
vez mais, esta situação, O Democrático publicou a correspondência da freguesia de
Mindelo, requerendo que o semanário chamasse a atenção do subdelegado da Saúde,
André dos Santos, relativamente “ao estado anti-higiénico” em que se encontravam
“instalados vários talhos em diferentes freguesias”, pois que alguns deles mais pareciam
“aidos de gado do que talhos”, ao contrário do que as posturas municipais
determinavam335.
Nesta conformidade, o periódico insistiu na urgência de execução de “uma
rigorosa fiscalização” sobre “os géneros destinados ao consumo público, nomeadamente
ao peixe, à fruta e às carnes”, sem esquecer as “más condições de higiene no matadouro
municipal”. A título de exemplo, o periódico expôs algumas ações precisamente no
tocante a práticas de fiscalização regular aplicadas em Matosinhos, apelando que o
mesmo fosse implementado em Vila do Conde, sobretudo relativamente aos bens de
primeira necessidade336.
Com efeito, a carne e o leite estiveram na mira d’O Democrático que denunciou
frequente e vivamente a “deficiência de fiscalização no gado que pela vila e freguesias do
concelho” se abatia “para consumo público”, considerando-a uma das principais ameaças
à saúde pública. Apesar de estar estipulado por lei que a matança do gado bovino devia
ser obrigatoriamente efetuada no matadouro municipal, havia proprietários que
continuavam a matar “clandestinamente as outras qualidades, especialmente os suínos,
destinados ao consumo público”. A comprovar a situação, o jornal publicou relatos de
casos específicos de animais que, apesar de visivelmente enfermos – atingidos por
meningite ou com membros partidos em consequência de outras doenças – eram abatidos
pelos proprietários e a sua carne colocada à venda em locais de comércio público. De
334 “Notas. Limpeza”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 1. 335 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 623, 15/05/1926, p. 3. 336 “Saúde Pública”. O Democrático, nº 880, 25/09/1931, p. 2.
139
maneira a mostrar como o município deveria lidar com este tipo de situações, o semanário
evidenciou o exemplo de medidas adotadas na Maia, nomeadamente a construção “de um
matadouro com todos os requisitos higiénicos” imprescindíveis e a “municipalização dos
serviços de matança”337.
Quando a tão desejada fiscalização de alimentos como o leite e a carne era
efetuada, os resultados obtidos eram devastadores o que enfatizava a premência de
controlos regulares. Com efeito, apareceu inesperadamente em Vila do Conde “uma
brigada de funcionários da fiscalização dos géneros alimentícios” que efetuou uma “larga
colheita de amostras de leite” e carne, destinados ao consumo público338. No que diz
respeito às amostras de leite recolhidas e posteriormente remetidas a Lisboa a fim de
serem submetidas a análise, verificou-se que dez “eram impróprias para consumo por
falsificação”. As várias leiteiras infratoras foram julgadas, em tribunal especial, sendo-
lhes aplicadas multas a serem pagas no prazo de 5 dias “sob pena de, não o fazendo,
recolherem à cadeia 6 meses”. Note-se que O Democrático fez questão de publicar os
nomes completos e freguesias de residência de todas as “mixordeiras” prevaricadoras,
com o intuito de fazer das mesmas um exemplo de humilhação pública, dada a gravidade
dos seus atos339.
Nos inícios de 1936, o jornal transcreveu integralmente um artigo de O Cávado –
periódico de Esposende – no qual se evidenciava a carência de higiene e asseio da
população que, naturalmente, O Democrático acreditava aplicar-se também aos vila-
condenses. Apontava-se a mentalidade retrógrada e absurda de grande parte da população
que se mantinha avessa a hábitos de higiene pessoal, pelo que o banho deveria ser
obrigatório tal como a vacina, tal era a “imundice” que se propagava340.
Com efeito, a par das críticas à falta cuidados sanitários a nível dos espaços
exteriores e dos produtos alimentares, também as recriminações às práticas de higiene da
população pululavam as colunas deste periódico durante toda a década de 1926-1936,
337 “A municipalização e rigorosa fiscalização da matança do gado para consumo público é uma
necessidade”. O Democrático, nº 920, 15/07/1932, p. 2. 338 “Fiscalização de géneros”. O Democrático, nº 969, 14/07/1933, p. 3. 339 “Mixordeiras”. O Democrático, nº 973, 11/08/1933, p. 2. 340 VIANA, Mário Gonçalves – “A água é grátis”. O Democrático, nº 1098, 06/03/1936, p. 2.
140
denotando-se a sua frustração em não assistir a qualquer evolução positiva das
mentalidades.
6.3.3. A questão da linha telefónica: ligar Vila do Conde ao Porto
A primeira referência alusiva à reivindicação do estabelecimento de uma linha
telefónica que ligasse Vila do Conde ao Porto, no arco temporal em estudo, surgiu na
edição de 3 de abril de 1926. Porém, o jornal destacou que este era um dos melhoramentos
pelos quais a vila vinha “pugnando desde há muito” mas sem efeitos práticos até à data341.
Por um lado, reconhecia que tinham sido dados passos sérios para a resolução
deste melhoramento (inclusive a intervenção da Junta Geral do Distrito), chegando
“pessoas categorizadas” do meio “a encetar trabalhos” em colaboração com a vizinha
Póvoa de Varzim, que pretendia também adquirir a tecnologia em questão. Contudo, nada
de frutuoso resultara dos trabalhos preparatórios que em tempos se haviam realizado342.
Efetivamente, as divergências relativamente ao processo de concessão da linha
telefónica apresentavam-se como o maior empecilho. Quer isto dizer que os membros do
periódico se dirigiram à vizinha Póvoa do Varzim, procurando “saber o que por lá se
pensava em matéria de telefones”. Ao que consta, “à Póvoa, só interessava o
estabelecimento da linha telefónica por parte da Companhia” que tinha “o exclusivo na
cidade do Porto, como a mais vantajosa para os interesses da terra, ao contrário da que
seria estabelecida por conta do Estado, com mais reduzidas vantagens”. Qual seria então
a melhor escolha? Optar por uma Companhia concessionária privada ou pelo Estado? O
periódico reconhecia que não se podia continuar neste impasse: “Estamos, pois, como o
tolo no meio da ponte, sem se decidir a atravessá-la ou a retroceder”. Propôs que ou a
Câmara Municipal ou a Associação Comercial convocasse “uma reunião” onde se tratasse
“o assunto com largueza de vistas” e se discutissem “os pontos divergentes” e de lá sairia
a indicação clara do que seria mais profícuo. Recomendava ainda que se entrasse em
contacto com a Póvoa de Varzim, de forma a averiguar a decisão tomada pela terra
vizinha, sendo que seria certamente vantajoso se ambas as localidades optassem pela
341 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1. 342 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1.
141
mesma solução, visto que “a força da vontade de duas terras mais rapidamente”
pressionaria “as estações competentes a porem em andamento os trabalhos preliminares
e depois os de execução da linha”. Todavia, esclarece: se “divergirem do nosso critério
trataremos nós sozinhos de dar execução ao melhoramento que tanto nos interessa”343.
Note-se que, apesar de declarar que se encontrava num impasse relativamente ao
melhor caminho a tomar, O Democrático revelou a sua posição, demonstrando algumas
preocupações e reservas caso a decisão final fosse optar pela Companhia concessionária
do Porto: “abalançar-se-á essa Companhia a estabelecer a linha para Vila do Conde sem
que aqui lhe garantam o número de assinantes que ela fixar e que a população e exigências
comerciais e industriais não possam suportar?”344.
Nesta toada, foram publicadas declarações e correspondência de “figuras ilustres”
que partilhavam das mesmas opiniões apresentadas pelo periódico relativamente à
instalação da linha telefónica. O objetivo seria, provavelmente, persuadir a opinião
pública, convencendo-a de que a melhor opção seria escolher a concessão do Estado.
Logo o primeiro exemplo destas vozes convergentes com O Democrático foi uma
carta redigida por “uma voz amiga […] do Porto”, José Meneres, “homem de prestígio”,
na qual o autor concordava com as questões que o semanário levantava, incentivando a
luta pela instalação célere da linha telefónica, pois considerava que esse seria um
melhoramento de primeira ordem para o município. No que diz respeito à concessão,
defendia que se devia optar pelo “telefone do Estado”, “por ser mais económico de
assinatura, o de mais fácil ligação com a rede geral do Estado e de mais rápida realização”.
No que concerne à chegada de um entendimento entre os dois concelhos vizinhos,
Meneres era de opinião que esperar que a Companhia dos Telefones trouxesse a Vila do
Conde e à Póvoa as suas linhas era “uma utopia” que só servia “para enredar a efetivação
deste melhoramento”. Neste contexto, recordou a tentativa falhada de trazer a linha
telefónica às duas cidades através da The Anglo-Portuguese Telephone Company:
“Portanto se Vila do Conde quer ter telefone, o que precisa como quem tem fome e precisa
de pão, tem apenas um caminho a seguir, e esse, sabe-o muito bem a […] Câmara qual
343 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1. 344 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 617, 03/04/1926, p. 1.
142
é”. Ficava, então, claramente patenteada a opção pela concessão do Estado e, desta forma,
O Democrático apresentou um exemplo de apoio específico à sua tomada de posição345.
Outro exemplo foi a publicação de um texto de Pires Monteiro, Tenente-Coronel
e deputado, que concordava com a urgência do estabelecimento de uma linha telefónica
que ligasse o Porto a Vila do Conde e a Póvoa de Varzim: “Não se compreende que tão
importantes centros industriais e estações de turismo tão concorridas na época balnear
estejam, em pleno século XX, desligadas da maior cidade do Norte. É civilizadora a
campanha patriótica de O Democrático”. Apontou também a importância desta ligação
para o Instituto de Socorros a Náufragos, visto que “uma linha telefónica ao longo da
costa ou ligando os diferentes pontos da costa com a cidade do Porto” prestar-lhe-ia “um
importante auxílio na sua missão altamente humanitária”. Ao mesmo tempo, uma
comunicação telefónica beneficiaria também “o problema magno da defesa nacional no
seu aspeto da defesa terrestre e aérea da nossa extensa fronteira marítima e a soberania
das nossas águas territoriais” que exigia “uma ativa e persistente fiscalização”. De forma
a mencionar esforços passados, recordou quando, em 1924, recebeu “uma representação
[por diligência da Comissão de Iniciativa de Turismo local] no sentido de ser instalada a
linha telefónica”, sendo mesmo indicado o local onde deveria funcionar a estação central.
Finalmente, revelou que estudou as duas hipóteses, conferenciando com os diretores da
Companhia dos Telefones e com os técnicos da Administração dos Correios e Telégrafos.
Acabou por reconhecer que a opção mais vantajosa e rápida era a linha do Estado. Dito
isto, Pires de Monteiro conferia o seu apoio à causa defendida por este periódico e
alvitrava sem rodeios que a “única solução rápida” seria “solicitar da Junta Geral do
Distrito [...] o estabelecimento da linha telefónica por conta do Estado”346.
Firme na sua convicção, O Democrático sentia-se reconhecido por a sua voz estar
a ser ouvida pelas entidades competentes, declarando que tanto o Presidente da Comissão
Executiva da Câmara Municipal (José Maria Ferreira) como o da Associação Comercial
(Alexandre Coentrão) se encontravam empenhados para que a “instalação da linha
telefónica” fosse “um facto dentro em breve”, esclarecendo ainda que “face aos trabalhos
345 MENERES, José – “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 619, 16/04/1926, p.
1. 346 MONTEIRO, Pires – “Linha telefónica. Porto – Póvoa”. O Democrático, nº 620, 23/04/1926, p. 1.
143
já iniciados na vereação” se estava “na resolução de adotar o princípio da instalação da
linha telefónica por conta do Estado”, como aquela que mais interessava no momento.
Sendo já aceite que a The Anglo Portuguese Telephone Company não conseguia alargar
o seu raio de ação para além dos 20 quilómetros, tomando como centro o Porto, o jornal
não via senão possível “aceitar a resolução tomada da instalação da […] rede telefónica
ser feita pelo Estado”. Ficou, então, assente relativamente a Vila do Conde que a Câmara
Municipal, “entendida com a Junta Geral do Distrito, devia aproveitar os trabalhos, já
iniciados pela anterior vereação, para a instalação da rede telefónica a explorar pelo
Estado”. Com toda a certeza, a oposição da Póvoa de Varzim a esta solução surgia como
uma grande preocupação mas o jornal esperava que aquela entendesse a decisão dos vila-
condenses em enveredar pela opção estatal em detrimento da privada, por acreditarem ser
a melhor solução347.
Neste ambiente favorável, o jornal mostrava-se confiante que, graças à campanha
que vinha empreendendo e a julgar pela “diretriz dada aos trabalhos iniciadores”, a linha
telefónica tinha “todas as viabilidades de triunfo”. Perante o apoio do deputado Pires
Monteiro à causa, o periódico asseverava que a sua “tão justa causa” teria “uma defesa
esforçada”, patrocinando-a onde ela tivesse de ser resolvida e “fazendo remover toda e
qualquer dificuldade burocrática” que aparecesse. Jogando em várias frentes, confirmou
o apoio da Junta Geral do Distrito, através de uma “entrevista preliminar” com o próprio
presidente Álvaro Pimenta. A “aspiração” da Junta era concorrer para que se fizesse a
“ligação de Vila do Conde e Santo Tirso ao distrito com o Porto”, uma vez que ambos os
concelhos apresentavam esta pretensão, esta deveria ser atendida “com todo o
entusiasmo”. Com o surgimento desta nova informação, ficava absolutamente
estabelecido que a Póvoa de Varzim mantinha um ponto de vista diferente do de Vila do
Conde relativamente à instalação da rede telefónica. Ainda assim, o periódico esperava
que, após deliberação com as entidades competentes (Associação Comercial e Câmara
Municipal), a “vizinha Póvoa” optasse pela “construção da linha do Estado, porque no
momento ou no futuro próximo ou longo” nenhuma outra teria “viabilidade”: “que toda
a vereação Povoense veja que a The Anglo Portuguese Telephone Company jamais
347 “Questão do momento: a linha telefónica”. O Democrático, nº 620, 23/04/1926, p. 2.
144
conseguirá do Estado a ampliação do raio de ação que usufrui, porque a Administração
Geral dos Correios não lho consente, por mais esforços que se empreguem”. Chegaram
informações de um membro da Associação Comercial da Póvoa de Varzim que tinha
conhecimentos sobre o “funcionamento da linha telefónica de Famalicão” que era do
Estado. Sabia-se que “no primeiro mês de funcionamento da linha, se fizeram muitas
centenas de chamadas que renderam ao Estado cerca de 1.500$00 e que a assinatura de
um telefone custa a insignificância de 100$00 escudos anuais”. Assim se provava, com
mais este testemunho, que a melhor opção era indiscutivelmente a linha do Estado. O
semanário mostrava-se convicto que, na época balnear seguinte, já seria possível
comunicar com o Porto e que a Póvoa de Varzim, perante todos as informações
disponíveis, se decidiria pela linha telefónica do Estado348.
De facto, como se tem vindo a explanar, O Democrático não desistia de convencer
a Póvoa de Varzim a participar no estabelecimento conjunto da linha telefónica, mesmo
que isso significasse ceder à solução que considerava mais vantajosa. Senão veja-se.
O periódico deu conta da reunião ocorrida entre os representantes da Câmara
Municipal e a Associação Comercial da Póvoa de Varzim: o senador Santos Graça e
Herculano Augusto Pereira Ramalho, diretor deste jornal. A finalidade da reunião “era
acordar-se na melhor forma de se poder construir a linha telefónica que do Porto devia
servir as duas importantes vilas”. De um lado, Santos Graça recordou os trabalhos
realizados anteriormente e defendeu que a melhor solução era fazer com que o Governo
autorizasse a The Anglo Portuguese Telephone Company a alargar o seu raio de ação
mais 30 quilómetros, sendo que a construção da linha por esta empresa seria a solução
mais benéfica para ambas as vilas. Estava persuadido de que com a colaboração dos
representantes locais no Parlamento e com os da cidade do Porto, aos quais se juntaria “a
prestante cooperação da Câmara Municipal e da Associação Comercial do Porto”, seria
possível conseguir do Governo a ação necessária. Do outro lado, Herculano Ramalho, o
presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim (João Dias) e o representante da
Associação Comercial da Póvoa (Joaquim Martins da Costa Júnior) reuniram-se, tendo
decidido que os “representantes das suas corporações e o diretor de O Democrático se
348 “Ainda e sempre a linha telefónica”. O Democrático, nº 621, 30/04/1926, p. 2.
145
dirigissem no dia 11 ao Porto a fim de solicitarem das suas congéneres todo o apoio para
a representação a enviar ao Governo”. Foram, com efeito, bem recebidos na Associação
Comercial e na edilidade portuense, alcançando inclusive a “promessa formal de um
decidido apoio no pedido a formular ao Governo pelas duas vilas interessadas para o
alargamento do raio de ação a conceder à companhia dos telefones” que explorava “estes
serviços no Porto”. Neste seguimento, a nova instância de negociações era Lisboa, junto
do Governo, e se elas falhassem, como se receava, seria “adotado o estabelecimento da
linha telefónica por conta do Estado, ao abrigo da lei nº 1644”349.
Em setembro de 1927, surgia finalmente um avanço palpável: ficava oficialmente
“aberta a inscrição de assinaturas para os telefones” que dentro em breve funcionariam
“entre esta vila, Porto e outras localidades” e os interessados deveriam dirigir-se ao
estabelecimento da Construtora Lopes e Companhia para iniciar o processo350.
O jornal anunciou então que, a partir de 3 de dezembro desse ano, “pelas 13 horas,
[…] na Estação Telégrafo Postal” seria “oficialmente inaugurado o telefone” da vila “com
a cidade do Porto”. A satisfação do periódico era notória: “uma velha aspiração da nossa
terra é este melhoramento, debaixo de todos os pontos de vista, importantíssimo. Para o
ato estão convidadas várias personalidades da nossa vila e imprensa local”351. Na edição
seguinte, a 10 de dezembro, as primeiras impressões após a bem sucedida instalação da
linha telefónica em Vila do Conde tiveram honras de primeira página:
Rejubila a nossa terra por estar na posse de mais um notável melhoramento de
indiscutível valor e interesse público, como é o serviço de telefones, que nos faz
assim ter ligado a nossa terra com as várias localidades possuidoras já deste meio
de transmissão e, muito especialmente, com a capital do Norte, a terra importante
em todas as manifestações da vida, com quem estamos em mais íntima e
permanente ligação352.
349 “A Linha Telefónica”. O Democrático, nº 623, 15/05/1926, p. 2. 350 “Telefones”. O Democrático, nº 686, 10/09/1927, p. 2. 351 “Telefone”. O Democrático, nº 698, 02/12/1927, p. 2. 352 “O dever cumprido”. O Democrático, nº 699, 10/12/1927, p. 1.
146
Todavia, volvido um ano, a missão não se encontrava ainda totalmente cumprida.
Apesar da reconhecida importância da comunicação que se tornara possível realizar com
o Porto via telefone, tornava-se imperativa a instalação da rede urbana para que as
restantes freguesias do concelho tivessem acesso a idêntica beneficiação. As informações
que iam chegando ao periódico eram animadoras. A Comissão de Iniciativa de Turismo,
secundada pela Associação Comercial, acabaria por receber informes da Direção Geral
dos Correios e Telégrafos de que, em breve, principiariam os trabalhos para a instalação
da rede urbana353.
Meses depois surgia a primeira referência à inauguração da rede telefónica numa
freguesia: Vilar do Pinheiro. Sem surpresa, O Democrático descreveu as celebrações de
inauguração com entusiasmo, aguardando por mais momentos semelhantes em outras
localidades do concelho354. Embora dilatadas no tempo, as inaugurações seguintes deram-
se em Mosteiró, Mindelo355, Gião e Malta356 (o processo teve naturalmente continuidade
mas já fora do período cronológico em estudo).
A inauguração oficial da rede telefónica ocorreu por meados de dezembro de
1929, no edifício da Câmara Municipal e contou com a presença de vários membros do
Governo357. Entre as comemorações, foram nomeadas várias telefonistas e o “número dos
telefones diretos dentro da vila” elevava-se “a 51 e 15 indiretos, tendo sido já requisitados
mais”358.
Esta questão da linha telefónica serve como um dos maiores exemplos de
perseverança de O Democrático, colocando em evidência o seu carácter fortemente
interventivo em prol de todos os assuntos que promovessem o progresso da Vila do Conde
do século XX.
353 “Interesses locais: telefones”. O Democrático, nº 756, 22/02/1929, p. 4. 354 “Em Vilar do Pinheiro é inaugurada a rede telefónica e uma cabine pública”. O Democrático, nº 772,
22/06/1929, p. 2. 355 “Pelas aldeias”. O Democrático, nº 846, 03/01/1931, p. 4. 356 “Pelas aldeias”. O Democrático, nº 1048, 15/02/1935, p. 4. 357 “Vila do Conde: número comemorativo do centenário do nascimento do Dr. Jorge de Faria”. Boletim
Cultural da Câmara Municipal de Vila do Conde, nº 4, 1989, p. 84. 358 “Melhoramentos locais. Foi no domingo passado, inaugurada a linha telefónica”. O Democrático, nº
796, 21/12/1929, p. 2.
147
6.3.4. “Trevas, não. Luz, sim”359
Em 1926, Vila do Conde usufruía já das vantagens inerentes ao fornecimento de
eletricidade. Porém, a rede elétrica instalada no município revelava-se ainda insuficiente,
pois não chegava a todas as freguesias, era demasiadamente cara e com falhas de
funcionamento graves.
De facto, o fornecimento de luz era tão irregular que a imprensa periódica local
debatia fortemente este assunto à procura de soluções. O Democrático deu destaque a
uma notícia publicada pelo semanário A União, na qual um dos colaboradores deste
periódico – Tadeu Pereira Neves, que assinava “Pórfiro” – fazia uma proposta à
Companhia Hidroelétrica relativamente ao “fornecimento de energia elétrica ao público
a $60 o quilowatt, com as vantagens de” ser “dada luz toda a noite e ainda durante o dia
para usos industriais, podendo algumas freguesias usufruir este tão grande como
incalculável benefício, o que tudo seria levado à efetivação dentro do prazo máximo de 3
meses”. O Democrático conferia credibilidade a esta sugestão, uma vez que Tadeu Pereira
Neves não era um novato nestas querelas pelo melhoramento da eletricidade em Vila do
Conde, tendo já colaborado nas colunas deste periódico:
«Pórfiro» não deixa de ser o nosso amigo Tadeu Pereira Neves que, em tempos,
a uma chamada nossa por crítica ao contrato da luz elétrica, tratou nas colunas de
O Democrático de uma maneira, clara, detalhada e com argumentos
irrespondíveis tão magno assunto e de tal forma o fez que obrigou a Companhia
a apressar o fornecimento de luz elétrica à nossa terra que parecia travado
eternamente360.
Desta forma, o jornal garantiu que esta sugestão tinha “todas as garantias de seriedade e
eficiência”, não se tratando apenas de um “bouquet de pirotecnia para deslumbrar as
gentes”361. Por outro lado, ficou também registada uma demonstração da influência que
a imprensa periódica detinha na época em Vila do Conde (como aliás no resto do país)
359 “Trevas não, luz sim”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 3. 360 “A tão decantada luz elétrica”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 2. 361 “A tão decantada luz elétrica”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 2.
148
dado que a maioria dos responsáveis pelos periódicos eram cidadãos influentes, com
estatuto social elevado.
Escusado será dizer que foi avassalador o entusiasmo que rodeou esta revelação,
visto que as condições de fornecimento de energia elétrica no concelho eram irregulares
e de duração reduzida. Normalmente, o funcionamento da eletricidade começava apenas
às 21 horas, terminando às 2 horas da madrugada – ou seja – apenas cinco horas diárias
de eletricidade por 1$70 o quilowatt. Ficar-se-ia a aguardar a resposta da Companhia a
tal proposta e que atitude tomaria a Câmara Municipal caso o feedback da empresa fosse
negativo362.
No entanto, o jornal não apresentou seguimento à proposta feita à Companhia
Hidroelétrica, visto que a opção – como se verá – seria pela municipalização.
De facto, o semanário patenteou uma indignação crescente ao constatar que o
problema da eletricidade não tinha resolução à vista, dirigindo-se à companhia
concessionária da vila – Electro-Hidráulica de Portugal – com duras palavras de
insatisfação pelas razões que já se conhecem. Os problemas no fornecimento da
eletricidade durante a noite permaneceram e a população encontrava-se em estado de
revolta. Além disso, o jornal apontava as consequências negativas que as intermitências
constantes do serviço de iluminação causariam na realização das festas noturnas do
município363.
Em 1927 pareceu chegar o auxílio necessário. A Comissão Administrativa da
autarquia fez aprovar um empréstimo de cerca de 2.000 contos “para serem empregados
exclusivamente no abastecimento e fornecimento de água e municipalização dos serviços
de luz”. Embora se considerasse uma quantia modesta, o jornal não desvalorizou a
conquista e aguardava avanços364, que foram, todavia, lentos. Cerca de dois anos depois,
em julho de 1929, a Câmara Municipal aprovou outro empréstimo no valor de
1.500.000$00 “a contrair na Caixa Geral dos Depósitos”, destinado, uma vez mais, tanto
ao abastecimento de água para a vila, como de luz para as freguesias do concelho365.
362 “A tão decantada luz elétrica”. O Democrático, nº 637, 20/08/1926, p. 2. 363 “A eterna questão da luz”. O Democrático, nº 646, 30/10/1926, p. 2. 364 “Melhoramentos locais – luz, água e saneamento”. O Democrático, nº 687, 16/09/1927, p. 1. 365 “Empréstimo municipal”. O Democrático, nº 775, 13/07/1929, p. 2.
149
A chegada de dinheiros do Estado fazia conjeturar bons presságios. Porém, em
1930, a eclosão de uma crise camarária e consequente criação de uma nova Comissão
Administrativa trouxeram ao de cima a questão da municipalização da rede de
eletricidade levada a cabo pela anterior comissão. Acontece que a nova Comissão
Administrativa fez aumentar o preço da luz de 1$44 para 1$80 por quilowatt. O jornal
revelou que não existiram insurgências a registar relativamente a este aumento, uma vez
que as razões apresentadas foram convincentes. Contudo, o caso mudou de figura quando
a autarquia fez ressuscitar a cobrança de um consumo mínimo na quantia de 3$50.
Considerou, então, esta exigência “imoral” e “injusta”. Porém, os encargos ao serviço
municipalizado não terminavam por aqui: “todo o consumidor de energia elétrica”
passaria a ser “obrigado” a efetuar um “depósito de quantia igual ao consumo do mês de
janeiro, atualizado pelo novo preço como garantia”. O periódico recordava que quando a
concessão pertencia a uma companhia privada tais situações não se verificavam. Além
disso, estas imposições eram consideradas totalmente absurdas, dado o estado deficiente
da distribuição de eletricidade que o jornal vinha denunciando366.
A desilusão com o desempenho autárquico veio célere367. A nova Comissão
Administrativa justificou os referidos aumentos em consequência dos gastos exagerados
promovidos pela comissão anterior (presidida por Rui Vaz) que haviam deixado em
estado crítico a situação financeira da Câmara Municipal. O semanário solicitou que tais
alegações fossem comprovadas com a apresentação dos devidos relatórios de contas,
contudo não viu o seu pedido atendido368.
Por outro lado, a propósito da onda de contestação levantada, realizou-se uma
reunião de sócios da Associação Comercial e Industrial com a Comissão Administrativa
para debater o assunto do depósito obrigatório sobre a eletricidade. João Canavarro
(antigo diretor de O Democrático), consultado pela Associação Comercial, compareceu
e, na condição de advogado, assegurou que a Câmara Municipal não tinha “o direito de
exigir depósito algum aos velhos consumidores, só o podendo fazer aos que de futuro” o
366 É importante mencionar que, no que diz respeito aos aumentos referidos, O Democrático publicou
alguma correspondência de leitores absolutamente indignados com a situação da municipalização da
eletricidade. Cf. “Coisas sem importância – a questão da luz”. O Democrático, nº 809, 28/03/1930, p. 2. 367 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 808, 21/03/1930, p. 2. 368 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 813, 25/04/1930, p. 2.
150
quisessem ser. Este argumento de Canavarro prevaleceu com o maior número de
apoiantes369.
Em 1931, a questão do depósito ainda se arrastava. O periódico notificou que
“alguns consumidores foram fazendo o depósito exigido pela Câmara Municipal e outros,
julgando-se livres desta exigência, não o fizeram”. Estes últimos viram a corrente elétrica
das suas habitações e estabelecimentos cortada pela autarquia. O Democrático publicou
a lista de nomes dos lesados que recorreram contra esta medida camarária e aguardavam
resposta da Inspeção das Instalações Elétricas370. Apenas em 1934, após anos de conflito
entre a autarquia e os moradores aos quais fora cortada a energia elétrica e de reclamação
após reclamação, “veio a determinação oficial para que a Câmara procedesse à ligação da
energia elétrica àqueles munícipes que dela tinham sido privados”. Esperava-se que a
nova Comissão Administrativa cumprisse com o prometido mas tal não sucedeu, “pois a
dois dos munícipes foi-lhes concedida a luz só depois de eles terem assinado” uma
declaração para “pagamento do respetivo depósito de garantia”, que “foi feito por uma
pessoa que tinha todo o interesse em que a solução do conflito fosse esta – contrária às
ordens legais do respetivo Ministro – e não a que devia ser”. Para o novo presidente da
autarquia – Pacheco Neves – ficou uma palavra amarga do jornal, que não esperava esta
decisão de um homem que considerava respeitável371.
Apesar desta contenta se ter revelado uma verdadeira odisseia e de se continuarem
a verificar falhas no fornecimento de eletricidade para iluminação, algumas freguesias do
concelho conseguiram a instalação da rede elétrica. O periódico destacou as respetivas
inaugurações em Mindelo372, Vilar do Pinheiro373, Mosteiró374, Labruge375 e
Touguinha376.
369 “Coisas sem importância”. O Democrático, nº 813, 25/04/1930, p. 2. 370 “Luz. Depósito de garantia”. O Democrático, nº 875, 21/08/1931, p. 3. 371 “Pela Câmara”. O Democrático, nº 1005, 27/04/1934, p. 3. 372 “Pelas aldeias. Mindelo. Luz elétrica”. O Democrático, nº 835, 10/10/1930, p. 3. 373 “Em Vilar do Pinheiro. Inauguração da luz elétrica”. O Democrático, nº 836, 17/10/1930, p. 3. 374 “Em Mosteiró. Inauguração da luz elétrica”. O Democrático, nº 840, 14/11/1930, p. 2. 375 “Pelas aldeias. Labruge. Inauguração da luz elétrica”. O Democrático, nº 2010, 30/05/1936, p. 4. 376 “Em Touguinha. A iluminação elétrica”. O Democrático, nº 2028, 09/10/1936, p. 3.
151
6.3.5. Água potável e saneamento básico
O Democrático, fiel à sua luta pelo progresso local, considerava que Vila do
Conde precisava de efetuar as necessárias avaliações preliminares de estudo sobre
mananciais, captação, obras a realizar e encargos a tomar (entre outras matérias) para que
se tornasse financeiramente possível avançar com o tão urgente projeto de abastecimento
de águas no município377.
O periódico acreditava que os assuntos água e saneamento estavam intimamente
ligados, devendo os dois melhoramentos ser conjugados, pois tal se revelaria vantajoso
sob o ponto de vista tanto humanitário como económico. No âmbito do primeiro, defendia
que era essencial consumir água de boa qualidade e em quantidade suficiente, medida que
não se aplicava unicamente ao consumo humano mas também à manutenção de boas
práticas de higiene, como por exemplo as lavagens dos esgotos: “ao mesmo tempo que se
emprega [a] um serviço de saneamento, senão perfeito, pelo menos que limpe a sua
habitação do depósito permanente das imundices que acumula de resultantes várias”.
Recordava os leitores de que as noções de higiene “dos nossos avós”, nomeadamente do
uso das retretes sem qualquer preocupação de salubridade, já não se aplicavam aos
modelos sociais de 1920. Assim, evidenciava que em “matéria de saneamento”, Vila do
Conde vivia “ainda num atraso espantoso”, potenciado pela “indolência a dominar o
espírito do homem” e que ia seguindo de “geração em geração”. No tocante ao
investimento financeiro, o jornal demonstrava compreensão perante a falta de capital para
gastos de grande envergadura, mas insistia que mesmo sem os meios monetários não se
podia deixar de divulgar estes assuntos e procurar as soluções mais rentáveis e eficientes.
Tornava-se, de facto, fundamental “fazer os estudos prévios necessários, conjugando os
melhoramentos água e saneamento de construção simultânea”, pois acabaria por ser um
investimento mais económico, visto que se “atacariam” dois problemas numa só obra.
Para que tal evoluísse da mera ideia para o papel, o jornal incentivou a criação de uma
“comissão de melhoramentos e interesses da terra” que efetuasse “o estudo completo dos
377 “Melhoramentos”. O Democrático, nº 624, 21/05/1926, p. 1.
152
melhoramentos a realizar no concelho” que “deviam ter execução quando as condições
financeiras do município permitissem”378.
Em 1929, como já foi referido no ponto anterior, a autarquia conseguiu contrair
um empréstimo no valor de 1.500.000$00, destinado ao abastecimento de água e
eletricidade para as freguesias do concelho379. Porém, não se verificaram – durante anos
– desenvolvimentos dignos de registo no que diz respeito ao projeto de construção da rede
de saneamento e águas públicas. Este assunto voltou a ser novamente debatido n’O
Democrático em 1934, quando o jornal informou que um engenheiro, António Carlos
Corte-Real, havia estudado bem o caso das águas, elaborando um projeto que seria
remetido às entidades competentes. Conhecia-se agora o plano de ação que regeria a
captação das águas do Rio Ave destinadas ao consumo público. Numa fase inicial, “só a
vila propriamente dita” é que seria “abastecida de água do Ave. As Caxinas e Poça da
Barca” sê-lo-iam mais tarde, assim que “as condições financeiras do município” o
possibilitassem. Complementarmente, o jornal acreditava – com base nos estudos
realizados – que estas duas últimas localidades mencionadas poderiam, mais fácil e
rapidamente, ver-se fornecidas de água pública se a vizinha Póvoa de Varzim decidisse
também investir neste melhoramento a par com Vila do Conde380.
De forma a esclarecer os leitores, o jornal apresentou detalhadamente o projeto
que estaria no momento a ser ponderado. Efetivamente, a captação da água seria feita no
subsolo do Rio Ave “por meio de um poço filtrante, capaz de receber água a 10 metros
de profundidade, num areal situado a cerca de 300 metros a montante do açude de
Retorta”. Este poço seria revestido em cimento e dotado de um “tubo de ferro de 30
centímetros de diâmetro, perfurado na parte inferior” e ligado ao “tubo de pesca” que lhe
serviria de eixo através de uma falange. “O espaço entre a parede do poço e o tubo
perfurado” seria “cheio de areia fina” de forma a garantir a eficaz filtração da água
captada. Posteriormente, a água seria elevada “por meio de uma bomba centrífuga até à
antiga cisterna do Convento de Santa Clara” que seria convenientemente modificada de
forma a servir as novas necessidades. Ficava também garantida a sua depuração,
378 “Melhoramentos locais. Água e saneamento”. O Democrático, nº 626, 28/05/1926, p. 1. 379 “Empréstimo municipal”. O Democrático, nº 775, 13/07/1929, p. 2. 380 “A magna questão do abastecimento de águas”. O Democrático, nº 997, 03/02/1934, p. 2.
153
alcançada por via de recurso a um “cloro gasoso”, “sendo a aparelhagem montada na
Central Elevatória”. Para a sua distribuição, instalar-se-iam “tubos de ferro garantindo o
fornecimento de 105 litros por habitante em menos de 12 horas, havendo uma
disponibilidade desde logo de 410 metros cúbicos para os 3.937 habitantes da vila”. O
reservatório instalado em Santa Clara poderia ainda ser facilmente ligado ao de Alto de
Pega, ficando este a funcionar como reservatório complementar. Caso a Póvoa de Varzim
embarcasse neste projeto, seria construído outro reservatório, “formando assim um
conjunto de três reservatórios, um principal e dois complementares”. Por último, e de
maneira a facilitar ainda mais o acesso da população, seriam instalados fontanários em
vários lugares públicos. Feitas as contas a esta obra, o orçamento ficava em 250 contos,
“esperando-se que o Governo da Ditadura, pelo Fundo do Desemprego”, providenciasse
a devida assistência financeira. Quanto ao preço da água, o jornal esperava que a autarquia
deliberasse com sensatez, tendo a conta que a população da vila era na sua maioria
pobre381.
A apresentação do projeto terá surtido alguns efeitos positivos, visto que o jornal
elucidou que “a vizinha Póvoa” parecia “querer entrar numa nova fase para uma rápida
resolução”. Segundo a imprensa da Póvoa de Varzim, a Câmara Municipal estaria
disposta a negociar com a autarquia vila-condense uma solução para “o problema de
abastecimento de água para consumo público”, pois reconhecia que “da unificação dos
projetos” resultariam “vantagens económicas apreciáveis” que muito influenciariam “no
custo geral das obras a executar”, que seria dividido pelas duas Câmaras interessadas382.
No entanto, avanços concretos na resolução de tão importante melhoramento tardavam.
Apenas nos inícios de 1935, o semanário adiantava que já recebera informações que
confirmavam encontrar-se “pronto a ser enviado ao Ministro das Obras Públicas o projeto
de abastecimento de água a captar do subsolo do Ave” em conjunto com a Póvoa de
Varzim383. Ainda nesse ano, a Câmara Municipal fez abrir um concurso para a realização
das obras necessárias para a captação das águas, ao qual concorreram várias entidades
portuenses: a Fundição do Bom Sucesso, a Alexandrino Limitada e a Companhia Aliança
381 “A magna questão do abastecimento de águas”. O Democrático, nº 997, 03/02/1934, p. 2. 382 “Água”. O Democrático, nº 1002, 16/03/1934, p. 2. 383 “Água”. O Democrático, nº 1047, 08/02/1935, p. 3.
154
(Fundição de Massarelos) que apresentaram as propostas de 599.995$00, 570.000$00 e
568.500$00, respetivamente. Este desenvolvimento era tido como um bom impulso, visto
que se verificava o interesse de várias empresas competentes na área de águas públicas e
saneamento. No entanto, o jornal mostrava apreensão relativamente ao elevado valor das
propostas apresentadas que, quando a instalação estivesse completa, só resultaria em que
a água fosse muito cara, no valor de cerca de 1$70 por metro cúbico, “preço assaz elevado
para o viver pobre da grande maioria dos habitantes vila-condenses”384.
Não obstante as suas preocupações, o semanário continuava a abordar o processo
de escolha de uma empresa para adjudicação das respetivas obras. Tendo em conta os
números apresentados, a proposta mais favorável provinha da Fundição de Massarelos.
Contudo, “algumas dúvidas surgiram a respeito de preferências”, pois havia quem se
inclinasse “a favor da proposta de Alexandrino, Limitada”. É importante mencionar que
o jornal não esclareceu em que aspetos se basearam estas “preferências”, portanto, neste
caso, só se pode especular relativamente aos motivos de indecisão. Tratar-se-ia de bons
resultados em trabalhos anteriormente executados, de especificações dos planos
apresentados ou até de interesses pessoais entre autarcas e as próprias empresas? Todavia,
como referido, o periódico não forneceu quaisquer dados que permitam confirmar
nenhuma das hipóteses. Ficou apenas garantido que seria entre aquelas duas propostas
que se centraria o debate385.
Após a necessária deliberação, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal
“tomou a resolução de anular o concurso para as obras do abastecimento de águas desta
vila, concurso que se realizou há pouco e ao qual concorreram três casas industriais do
Porto”. A causa do anulamento prendia-se com “o preço elevado que acusava a proposta
mais favorável apresentada pela Fundição de Massarelos”386. Neste seguimento,
procedeu-se à abertura de um novo concurso e rapidamente apareceram novas propostas.
Desta vez, a Companhia Aliança (Fundição de Massarelos) concorria com a quantia de
499.500$09 e a Alexandrino Lda. com duas propostas, uma de 509.092$93, acrescidos
384 “Um problema momentoso”. O Democrático, nº 1060, 18/05/1935, p. 2-3. 385 “Abastecimento das águas. O concurso para adjudicação das respetivas obras”. O Democrático, nº 1061,
24/05/1935, p. 3. 386 “Abastecimento das águas”. O Democrático, nº 1062, 13/06/1935, p. 2.
155
do custo de montagem mais 30.090$00. Surgia também uma nova proposta da
Corporação Mercantil Portuguesa Lda. de Lisboa, que avançava com uma proposta
apenas para o fornecimento e colocação de tubagem por 326.371$00387.
Verifica-se, uma vez mais, que a proposta mais favorável partia da Fundição de
Massarelos e “num quantitativo inferior ao antecedente concurso”. A Câmara Municipal
encontrar-se-ia em processo de deliberação e tanto a população como a imprensa
periódica aguardavam uma decisão célere388. Mas, como já vinha sendo recorrente e
continuaria a ser no que diz respeito a outros melhoramentos, a chegada a um consenso
tomava tempo precioso. Não sendo conhecida ainda nenhuma decisão da autarquia, o
jornal relatava que aumentavam cada vez mais as filas nas fontes públicas, das quais a
população se servia para se abastecer de água. A frustração d’O Democrático era
evidente: “E pensou-se por momentos no princípio deste ano que no verão de 1935 se
tinha o crónico problema de abastecimento de águas à nossa terra resolvido”, mas que
“forte macaca persegue a nossa terra”389.
Apesar dos avanços e recuos, em agosto de 1935 a Câmara Municipal decidiu
adjudicar à Alexandrino Lda. “a empreitada dos trabalhos a realizar” e, garantindo que
preenchidas certas formalidades, o município teria em pouco tempo acesso a verbas do
Estado390, iniciaram-se as “obras de abertura de trincheiras para a canalização”. Estas
estender-se-iam, logo em novembro de 1935, “desde o poço filtrante pelas Avenidas Dr.
Bernardino Machado e Figueiredo Faria”, encontrando-se na vila “um fiscal da
Administração dos Serviços Hidráulicos” para assistir ao “assentamento da canalização”.
Previa-se a conclusão das obras para outubro de 1936391. Porém, chegada essa data, já só
no ano seguinte se esperava ter água potável em toda a vila392. Eventualmente o objetivo
seria alcançado e Vila do Conde ver-se-ia abastecida “de água com abundância, livrando-
se a população do pingue-pongue dos marcos fontenários da época da estiagem”393.
387 “Águas”. O Democrático, nº 1063, 21/06/1935, p. 4. 388 “O concurso para as obras de abastecimento das águas”. O Democrático, nº 1064, 28/06/1935, p. 3. 389 “Falta de água”. O Democrático, nº 1068, 26/07/1935, p. 3. 390 “O abastecimento da água. A sua solução”. O Democrático, nº 1073, 30/08/1935, p. 2. 391 “Interesses locais. Abastecimento de água”. O Democrático, nº 1084, 15/11/1935, p. 2. 392 “Mais um balanço”. O Democrático, nº 2029, 23/10/1936, p. 1. 393 “Interesses locais. Abastecimento de água”. O Democrático, nº 1084, 15/11/1935, p. 2.
156
6.3.6. A degradação do porto e da barra numa terra de marinheiros
Segundo O Democrático, o estado de degradação do porto e da barra de Vila do
Conde constituía um problema que atravessava gerações, numa terra “de marinheiros
ousados” com fortes e históricas ligações à navegação – fonte de uma das suas atividades
económicas mais relevantes. Neste contexto, outro dos temas mais debatidos ao longo do
decénio de 1926-36 foi a premente necessidade de realização de obras profundas no porto
e barra do município, uma aspiração já antiga.
Na edição de 20 de fevereiro de 1926, o periódico adiantou que o Governo tinha
autorizado a transferência de um subsídio concedido em favor das obras do porto e barra
da vila. Após anos de apelos ignorados, o jornal recebeu esta notícia com entusiasmo.
Previa então que as obras se iniciassem o mais rapidamente possível e incentivava ao
empenho de todos os responsáveis envolvidos nesta “tarefa laboriosa e importantíssima
de interesse vital para esta terra”. O apelo alargava-se, como era habitual, a toda a
população vila-condense para que se unisse em prol desta obra que projetaria a localidade
“na senda do progresso”394. Na edição seguinte, em consequência de uma reunião
extraordinária da secção local da Junta Autónoma, tomou-se conhecimento de que já se
encontraria depositado o subsídio do Estado, no valor de 100.000$00, na Caixa Geral de
Depósitos da vila. Por outro lado, ficou também decidido que se deveria realizar “um
estudo competente de todos os projetos existentes”, tendo em conta a opinião de técnicos
capacitados, para chegar à melhor resolução possível395.
As obras só se iniciaram verdadeiramente em fevereiro de 1929, como noticiou O
Democrático:
Já começaram os trabalhos para que o nosso porto dentro em pouco tempo
desempenhe as funções de um fator importantíssimo para o comércio e navegação
e, ao mesmo tempo, a nossa terra ingresse no caminho aberto do franco progresso.
Dezenas de operários já se empregam em abrir o canal que vai servir de entrada
ao nosso rio, sob a direção do engenheiro Sr. Dr. Paulo Barbosa, coadjuvado pelo
394 “Obras na barra”. O Democrático, nº 615, 20/02/1926, p. 1. 395 “Junta Autónoma”. O Democrático, nº 617, 03/04/1927, p. 2.
157
trabalho inteligente e persistente do digno capitão do porto, o ilustre oficial da
Marinha, Sr. Gabriel Teixeira396.
De forma a garantir o avanço das obras, Gabriel Teixeira gizou uma estratégia de
propaganda a realizar pelas freguesias do concelho, “explicando o alto valor” que
representava para a região “o regular funcionamento” do porto. O objetivo seria criar em
todas as aldeias “delegações de um organismo intitulado Amigos do Porto e Barra de Vila
do Conde” para que os cidadãos pudessem contribuir e auxiliar nas obras em curso. O
jornal constatou com agrado o sucesso desta iniciativa junto da população vila-condense,
que demonstrava entusiasmo e vontade em apoiar o melhoramento em causa397.
A partir daqui, o periódico foi dando conta do estado de progressão das obras. Em
março de 1929, encontrava-se “bastante adiantada a «barragem»” que se estava a
construir “pelo lado sul” e que haveria de “tapar a garganta que servia de acesso ao rio”.
Adicionalmente, verificava-se também a existência de doações de materiais de
construção, por exemplo, de madeiras oferecidas pelo “grande capitalista Sr. Bento de
Sousa Amorim” e esperava-se a chegada de mais398. Foi também mencionada a visita ao
local das obras de Simão Neves, Secretário do Ministro das Finanças, tendo o periódico
anunciado que o político havia ficado “com esplêndida impressão” relativamente aos
trabalhos que se estavam a efetuar399.
Efetivamente, obras de reconstrução de tal envergadura exigiam os devidos
recursos monetários. Neste contexto, o semanário noticiou a ação empreendida pelos
Amigos do Porto e Barra de Vila do Conde. Esta associação iniciara a sua primeira
“colheita das dádivas dos habitantes da vila” a reverter a favor das obras. O periódico fez
questão de publicar a lista de nomes dos subscritores juntamente com o respetivo
montante doado, de forma a incentivar a corrente solidária que assim dava novo alento às
obras400.
396 “Porto e barra de Vila do Conde”. O Democrático, nº 754, 02/02/1929, p. 1. 397 “Porto e barra de Vila do Conde”. O Democrático, nº 754, 02/02/1929, p. 1. 398 “A nossa barra”. O Democrático, nº 760, 23/03/1929, p. 1. 399 “As obras do porto e barra”. O Democrático, nº 762, 05/04/1929, p. 4. 400 “Obras do porto e barra”. O Democrático, nº 772, 22/06/1929, p. 3.
158
Em inícios de 1931, noticiou que as obras prosseguiam “com toda a regularidade”
e esperavam-se mais avanços:
Com a aprovação, por parte das instâncias superiores, da alteração ao primitivo
projeto dos melhoramentos a realizar, é de esperar que os trabalhos se
intensifiquem sem interrupção até final, para que em curto prazo de tempo
vejamos realizada a obra mais grandiosa que se tem efetuado em Vila do Conde
de há 50 anos aos nossos dias que lhe trará o progresso e desenvolvimento que
todos os vila-condenses almejam401.
Contudo, as obras de reabilitação do porto e barra da vila não se fariam sem
percalços e desentendimentos. O primeiro capitão do porto, Gabriel Teixeira, redigiu uma
carta que foi entregue na redação d’O Democrático, por intermédio de um dos oficiais da
Marinha Mercante do município. Nessa carta, o antigo capitão apontava alguns problemas
existentes nas obras ainda a decorrer. A seu ver, os açudes deviam ser destruídos porque
prejudicariam severamente o porto. Estas estruturas limitavam o fluxo das marés,
reduziam quase em metade (ou até em mais de metade) o caudal da água que a cada maré
passava na barra e consequentemente reduziam em igual importância a drenagem natural
do rio. O periódico concordou com a visão do antigo capitão, esperando que esta fosse
seguida para benefício de todos. Por outro lado, a falta de verbas continuava a representar
um óbice, pelo que se esperava que até finais do ano económico chegasse a importância
atribuída pelo Estado para que se tornasse possível a conclusão de tão urgente obra; caso
contrário, Vila do Conde não alcançaria o movimento marítimo e comercial que lhe daria
vida e prosperidade402.
A necessidade de auxílio financeiro era de tal forma imprescindível que um grupo
de oficiais da Marinha Mercante vila-condense redigiu uma representação que foi
entregue a Duarte Pacheco, Ministro das Obras Públicas e Comunicações, a fim de
requerer ajuda monetária do Governo para dar seguimento – e, posteriormente, garantir a
401 “Pequenas notas. Obras da barra”. O Democrático, nº 851, 06/02/1931, p. 2. 402 “O porto de Vila do Conde”. O Democrático, nº 967, 30/06/1933, p. 3.
159
conclusão – da reabilitação do porto e barra403. Em 1935, o jornal anunciava que havia
sido concedido um subsídio de cerca de 120.000$00 à Junta Autónoma da vila para a
conclusão das obras. Porém, até ao final do ano de 1936, não surgiu notícia acerca
desfecho deste melhoramento. Mais uma aspiração que não se realizaria com a celeridade
e eficácia desejadas pelo periódico.
6.3.7. Reorganização e aproveitamento das potencialidades das feiras
locais
O único problema apontado às feiras em Vila do Conde pel’O Democrático foi o
facto de, em pleno ano de 1927, a autarquia ainda não ter estipulado um dia da semana
fixo para a sua realização.
O jornal recordou que esta iniciativa de fixação de um dia da semana para a
realização das feiras já havia estado (há cerca de cinco, seis anos) na linha de trabalhos
da Associação Comercial local. Porém, nada havia ficado estipulado. Neste contexto, e
perante um assunto considerado pertinente e significativo para o município, decidiu
debatê-lo nas suas colunas. A seu ver, e como era do conhecimento de todos aqueles que
tinham interesses ligados com as feiras, a segunda-feira era o dia menos favorável, uma
vez que era exatamente esse dia que, durante o ano, maior número de feiras tinha. Por
outro lado, quando as feiras aconteciam “na quarta ou quinta-feira” eram “prejudicadas
pelas feiras de Famalicão e Barcelos”, quando era certo “que se o dia fosse fixado e
escolhido” tal não se ocorreria. Considerando estes argumentos, o semanário esperava
que tanto a Câmara Municipal como a Associação Comercial retomassem o assunto e
chegassem a uma resolução favorável404.
Tal como se tem visto a propósito de outros assuntos de promoção regional em
que O Democrático interveio de forma participativa e persistente, também neste domínio
avançou com ideias assertivas no sentido de conciliar vários interesses e alcançar a melhor
solução para a vila. Elucidou que os dias da semana que mais convinham “eram o de
sexta-feira ou sábado, em vista de nesses dias não haver feiras em terras próximas […]
403 “O porto de Vila do Conde”. O Democrático, nº 978, 15/09/1933, p. 2. 404 “As feiras na nossa terra”. O Democrático, nº 666, 08/04/1927, p. 2.
160
mas optando mais pelo sábado porque na sexta ia prejudicar algumas classes,
nomeadamente a dos marchantes”. Argumentava que todos os comerciantes das várias
áreas, nomeadamente do gado, estavam de acordo com esta medida e estavam “prontos a
subscrever com importâncias para custear as despesas a fazer com a propaganda”. Nesta
conformidade, restava apenas que as entidades competentes tomassem as devidas
providências405.
Reforçando ainda mais a sua posição, o periódico revelou que estabelecera
contacto com dois feirantes (negociantes de gado) que reconheciam a importância de ter
um título da imprensa local a batalhar por este assunto com tanto afinco e, de forma a
fazer ver verdadeiramente a sua vontade, entregaram um “abaixo-assinado de todos, ou
quase todos os colegas, apoiando a fixação da feira em dia certo da semana”, ou seja, ao
sábado406.
Complementarmente, o jornal abordou a posição de outros semanários locais
relativamente às feiras e debateu os seus pontos de vista. A União, por exemplo,
concordava com a fixação semanal mas tinha “medo” que as alterações não surtissem os
efeitos desejados. Contudo, O Democrático defendia que esta hesitação podia ser
facilmente dissipada assim que se ouvissem os feirantes que estavam de acordo nesta
matéria407. No lado oposto, encontrava-se A República, que rejeitava a fixação semanal
das feiras. Quanto a este colega de imprensa, aliás semelhante em muitas reivindicações,
O Democrático declarava respeitar diferentes opiniões, porém não encontrava validade
efetiva em nenhum dos seus argumentos, afirmando que era por puro “conservadorismo”
que discordava, visto não apresentar quaisquer “contras” à proposta de fixação408.
Posto isto, O Democrático fazia o ponto da situação quanto a este tema, mostrando
os primeiros avanços no debate levado a cabo pelas várias partes:
Pelo extrato da assembleia realizada na última quarta-feira […] na Associação
Comercial, os sócios daquela coletividade resolveram quase por unanimidade que
as feiras nesta terra sejam em dia fixo, e de preferência ao sábado, deixando,
405 “As feiras na nossa terra”. O Democrático, nº 669, 29/04/1927, p. 2. 406 “As feiras na nossa terra”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 2. 407 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 670, 06/05/1927, p. 2. 408 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 671, 13/05/1927, p. 2.
161
contudo, aos feirantes, a livre indicação do dia, visto serem eles os maiores
interessados e, portanto, juízes da causa. O Sindicato Agrícola, respondendo à
consulta feita pela Associação Comercial, é também pela fixação409.
Após aparente consenso a favor do dia fixo, a discussão passou a girar em torno
do dia da semana a escolher, pois após a reunião na Associação Comercial, as opiniões
dividiam-se: feiras à sexta-feira ou ao sábado?410
No entanto, a obtenção de um acordo seria demorada. Apenas nos inícios de 1929,
a Câmara Municipal, “interpretando bem a necessidade de, a bem dos interesses do
comércio local, fixar esses dias”, convidou “as direções da Associação Comercial e do
Sindicato Agrícola a comparecerem” nas suas instalações para, em conjunto, “tratarem
de tão importante assunto”. Ficou decidido que as direções de ambos os organismos
convocassem, “no mais curto prazo de tempo, a reunião dos seus associados para se
manifestarem sobre o assunto” com vista a, posteriormente, a Câmara aprovar uma
decisão. No cumprimento desta decisão camarária, a Associação Comercial realizou o
evento e enviou convites para todo o comércio e indústria do concelho se reunir em sessão
magna no Teatro Afonso Sanches, a fim de resolver a fixação dos dias de feira411. Nessa
reunião convocada pela Associação Comercial compareceu um “grande número de
comerciantes e industriais”, embora não se tratasse do número que se esperava, tendo em
conta a importância da questão. Ainda assim, a grande maioria escolheu fixar a realização
das feiras à sexta-feira. Ficava a faltar o veredicto dos “restantes interessados”, que se
reuniram pouco depois, “a convite do Sindicato Agrícola”412. Nesse encontro, “61
lavradores e feirantes votaram que as feiras não sofressem alteração” do que estava, “e
48 pela fixação”. O Democrático hesitou relativamente a este resultado, não tendo a
certeza se tal votação traduzia “bem a vontade da grande maioria da gente” que concorria
às feiras, por achar “insignificante o número de votantes”. Com efeito, muitos dos
feirantes não compareceram, pois a reunião coincidiu com o dia de feira em Famalicão413.
409 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 672, 21/05/1927, p. 2. 410 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 673, 28/05/1927, p. 2. 411 “Feiras!”. O Democrático, nº 755, 09/02/1929, p. 1. 412 “Feiras!”. O Democrático, nº 756, 22/02/1929, p. 4. 413 “Feiras!”. O Democrático, nº 757, 01/03/1929, p. 4.
162
Os anos passavam e o assunto das feiras mantinha-se sem fim à vista. Apenas em
1934 se chegou verdadeiramente à fixação. Após uma nova intensa ronda de deliberações,
tendo em conta que “quase todos os dias da semana” estariam já comprometidos com os
mercados que se realizavam “em povoações próximas” da vila e porque o último dia da
semana ativa de trabalho não convinha à maioria414, foi escolhida a sexta-feira para o dia
de realização das feiras em Vila do Conde. Escorado no sentimento de missão cumprida,
o jornal aplaudiu a resolução aprovada pela Câmara Municipal relativamente a uma
reivindicação que se arrastava desde 1927. Estava agora aberto o caminho para o sucesso
das feiras no município415.
6.3.8. “O Hospital vai fechar?”416
Ao longo deste decénio, foi evidente o desassossego e preocupação d’O
Democrático no que diz respeito ao Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Vila do
Conde. Esta instituição de solidariedade encontrava-se desprovida dos fundos e apoios
necessários para o eficaz tratamento dos doentes, com risco efetivo de encerramento dos
seus serviços. Honrando a sua luta pelos interesses locais, o semanário insistia que tanto
a autarquia como a população não podiam negligenciar o apoio ao hospital, pois um
município sem a dotação de cuidados de saúde básicos – dirigidos, neste caso,
principalmente aos mais necessitados – não poderia proliferar.
Era efetivamente “precária”, em 1927, a situação do hospital. “Devido à falta de
recursos” com que vinham “lutando a Santa Casa da Misericórdia, a Mesa Administrativa
reuniu” em conjunto com o Administrador do Concelho e o Presidente da Câmara
Municipal. Neste encontro, o Provedor da Misericórdia expôs a situação extremamente
vulnerável da instituição, assegurando ser impossível continuar com as portas abertas,
caso não recebesse “qualquer auxílio” com que pudesse “fazer face às despesas avultadas
com a sustentação de doentes e fornecimento de remédios aos pobres das Caxinas e Poça
da Barca”. O jornal acrescentou, nessa altura, que os responsáveis da autarquia
414 “As nossas feiras: a necessidade que há de as fazer rejuvenescer e de as fazer prosperar”. O Democrático,
nº 1017, 29/06/1934, p. 1. 415 “As nossas feiras”. O Democrático, nº 1021, 03/08/1934, p. 3. 416 “O Hospital vai fechar?”. O Democrático, nº 648, 13/11/1926, p. 2.
163
compreenderam a urgência deste apelo, “prometendo tratar deste magno assunto com
todo o interesse”417.
Todavia, as queixas que se continuaram a ouvir cimentarão um lugar quase
permanente nas linhas do periódico, visto que as complicações não se dissiparam. Apesar
de a Câmara Municipal se encontrar perfeitamente notificada da forte possibilidade de
encerramento do hospital, o município “boceja com a maior indiferença”.
Adicionalmente, surgiu outra inquietação relativamente aos subsídios do Estado. O jornal
referiu a “promessa” do Ministro do Interior “de beneficiar” as casas de caridade “com
5% das contribuições diretas do Estado” mas, se perdurassem as rigorosas políticas
económicas de Oliveira Salazar, temia-se que tal nunca viesse a acontecer. Perante este
cenário, alertava-se a população para que não deixasse exclusivamente nas mãos do
Estado os garantes da sobrevivência do hospital e efetuasse ações de solidariedade e
doações por iniciativa própria418.
Alguns dos expedientes que iam conseguindo travar a hipótese de encerramento
do hospital eram tanto a ação benemérita de certos vila-condenses com posses, como a
organização de iniciativas de angariação de fundos a favor da instituição. Repare-se, por
exemplo, no caso de Delfim Ferreira, um “importante industrial” que, pelo Natal de 1928,
fez distribuir 1200$00 em donativos por várias instituições do município, tocando 200$00
ao Hospital da Misericórdia419. Outra doação mais avantajada – 1000$00 – chegou pelas
mãos de António Fernandes da Costa420. A intenção do jornal ao divulgar tais doações
era clara: efetuar um agradecimento público aos doadores e, ao mesmo tempo, incentivar
a população a proceder desta maneira para se garantir a sobrevivência do hospital421.
No que diz respeito a ações de solidariedade organizadas pela população,
destacou-se a chamada “Hora da Misericórdia”, uma espécie de jornada de beneficência,
começada em 1930. Um grupo de mulheres da vila (o jornal faz questão de publicar os
seus nomes completos) juntou-se em colaboração com a Mesa da Misericórdia e lançou-
417 “Hospital”. O Democrático, nº 739, 13/10/1928, p. 1. 418 “O Hospital”. O Democrático, nº 741, 27/10/1928, p. 4. 419 “Benemerência”. O Democrático, nº 749, 22/12/1928, p. 1. 420 “Para o nosso hospital”. O Democrático, nº 779, 10/08/1929, p. 2. 421 Os exemplos de divulgação deste tipo de donativos preencheriam as colunas de O Democrático até ao
final do decénio. Encontram-se, para além das supracitadas, outras referências a doações nas edições 817,
819, 835, 836, 838, 841, 844, 847, 905, 928, 944, 1043, 1049 e 1065.
164
se na recolha de donativos junto da restante população422. O balanço afigurou-se mais
positivo do que o esperado, na medida em que foi angariado um total de 5.710$00423.
Tendo em conta o seu sucesso, esta iniciativa continuou nos anos seguintes. Em 1931, o
resultado foi novamente positivo – embora o montante alcançado tenha ficado aquém do
de 1930, em consequência da crise do trabalho que assoberbava a sociedade – cerca de
4.000$00 reverteram a favor do hospital424. Em 1932, a colheita não se revelou “tão farta
como era de esperar, devido talvez à grande crise” que o povo atravessava, tendo o valor
angariado rondado os 2.250$00425. No ano seguinte, o montante recolhido subiu para
10.181$00, saldo aplaudido pelo periódico, pois a “população correspondeu […] ao apelo
da Mesa” que estava “a presidir aos destinos da Misericórdia”, acorrendo às doações para
esta iniciativa que tomava, a partir deste ano, a designação de “Semana da
Misericórdia”426.
O que não passava inicialmente de um mero peditório, tornou-se numa importante
campanha anual, com a duração de sete a oito dias, que cumpria um programa bem
traçado de atividades lúdicas e culturais, em que se destacavam os concertos, “comes e
bebes” e os mais variados espetáculos de entretenimento, contando com a atuação, por
exemplo, dos Ranchos da Praça e do Monte427.
No ano de 1934, o mais profícuo de todos os estudados, foram angariados cerca
de 30.000$00428 e, tanto em 1935429 como em 1936430, o montante arrecadado rondou
15.000$00.
Efetivamente, os fundos angariados por estas iniciativas apenas durante 1930-
1931, a par de outros donativos resultantes de ações de benemerência e peditórios pelo
concelho, permitiram que a edição de O Democrático de 4 de dezembro de 1931 abrisse
422 “Para o nosso Hospital: Hora da Misericórdia”. O Democrático, nº 805, 28/02/1930, p. 2. 423 “O nosso hospital”. O Democrático, nº 806, 08/03/1930, p. 1. 424 “Hora da Misericórdia”. O Democrático, nº 860, 17/04/1931, p.1-2. 425 “Pelo Hospital”. O Democrático, nº 939, 02/12/1932, p. 4. 426 “Semana da Misericórdia”. O Democrático, nº 980, 29/09/1933, p. 2. 427 “Para o Hospital – interessantes festas da Semana da Misericórdia”. O Democrático, nº 1025,
31/08/1934, p. 2. 428 “A Semana da Misericórdia terminou com esplêndidos resultados para o Hospital de Vila do Conde”. O
Democrático, nº 1027, 14/09/1934, p. 4. 429 “Ainda as festas da Misericórdia”. O Democrático, nº 1076, 20/09/1935, p. 2. 430 “Para o Hospital – Semana da Misericórdia”. O Democrático, nº 2025, 18/09/1936, p. 4.
165
com um artigo em que se descreviam as obras de melhoramento realizadas no hospital.
Efetuou-se uma modernização massiva ao edifício, com uma nova sala de operações
(“com requintes de higiene e senso prático”), “enfermarias magníficas cheias de ar e luz”,
consultórios médicos a estrear e quartos para doentes totalmente atualizados. O
entusiasmo era evidente e até se convocava uma inauguração oficial, com direito a
banquete e devidos agradecimentos aos beneméritos que tornaram a obra possível431.
Sem querer desvalorizar o sucesso atingido pelas iniciativas de solidariedade
mencionadas e as obras de requalificação efetuadas, a verdade é que nem os donativos
nem as alterações executadas na edificação do hospital eram suficientes para a
manutenção do mesmo. Neste contexto, o semanário criticou duramente a falta e má
distribuição de subsídios às instituições de caridade por parte do Estado. Em março de
1932, considerava irrisórias as quantias distribuídas pelas casas de caridade do concelho
relativas ao primeiro semestre do ano económico em questão. Ao Hospital da
Misericórdia foram atribuídos 6.375$00, ao Asilo da Ordem Terceira de S. Francisco,
3.400$00 e à Misericórdia de Azurara, 425$00 – o que perfazia um total de 10.200$00
em subsídios estatais. Ao estabelecer uma comparação relativamente ao valor dos
subsídios concedidos à vizinha Póvoa de Varzim432, que quase triplicavam os destinados
à vila, o jornal interrogava-se se a assistência pública a Vila do Conde não passaria apenas
de um mito, sendo largamente conhecidas as dificuldades que as referidas casas de
caridade então enfrentavam. Num tom irónico, O Democrático afirmava que,
provavelmente, a única maneira de conseguir mais subsídios por parte do Diretor da
Assistência Pública era fazer inaugurar nas salas das instituições um retrato do mesmo,
na esperança que desse “resultado, como já foi feito em outras terras”433. Nos anos de
431 “Uma obra notável”. O Democrático, nº 890, 04/12/1931, p.1-4. 432 Ao Hospital da Póvoa de Varzim foram concedidos 20.550$00; à A Beneficente, 2.100$00; à
Convalescente de Beiriz, 3.400$00; à Beneficência em Rates, 300$00; à Associação de Caridade, 500$00
e à Casa de Pescadores, 850$00 – portanto, um total de 27.700$00. Cf. “A Assistência Pública e as nossas
Casas de Caridade”. O Democrático, nº 902, 04/03/1932, p. 2. 433 “A Assistência Pública e as nossas Casas de Caridade”. O Democrático, nº 902, 04/03/1932, p. 2.
166
1933434 e 1934435, a distribuição dos subsídios era novamente considerada absurda,
principalmente, e uma vez mais, quando efetuado o cotejo com o que havia sido atribuído
a outros concelhos com menos habitantes.
Em janeiro de 1933, no que diz respeito à autarquia e em matéria de assistência, a
Câmara Municipal fez aprovar uma série de propostas apresentadas numa sessão
realizada no encerrar do ano findo com objetivo de apoiar as casas de caridade locais no
difícil momento de crise que então atravessavam. Basicamente, estas determinações
consistiam na criação de um imposto extra – entre 10 e 20 centavos – sobre cada
quilograma de carne, o qual reverteria a favor das instituições responsáveis pelos cuidados
de saúde e bem-estar dos vila-condenses436.
Apesar de todas as medidas aplicadas e da forte campanha que o periódico efetuou
a favor das instituições hospitalares e de cuidado de doentes pobres e idosos, o balanço
não deixava de ser negativo – os recursos continuavam a ser escassos, a prestação de
cuidados de saúde para todos estava longe de ser assegurada e os apelos à solidariedade
continuavam:
Quem, com olhos de ver e coração de sentir, estiver atento à miséria que vai pela
nossa terra e ao número sempre crescente de pessoas que enfermam e se
encaminham para a misericórdia a fim de requererem lenitivo aos seus
infortúnios, não poderá ficar insensível a tanto mal, a tanta desdita, a tanta dor437.
6.3.9. O flagelo da mendicidade
No período em análise, O Democrático fez a primeira menção ao problema da
mendicidade ao felicitar a campanha que vinha sendo desenvolvida pelo seu colega local,
A República, em várias frentes deste problema, nomeadamente o seu combate na via
434 Em 1933 foram distribuídos 19.850$00 ao Hospital da Misericórdia; 12.400$00 ao Asilo e 850$00 ao
Hospital de Azurara. Cf. “As nossas Casas de Caridade e os subsídios que lhes foram atribuídos”. O
Democrático, nº 959, 28/04/1933, p. 1. 435 Em 1934, o Hospital da Misericórdia foi subsidiado com a verba de 12.000$00 e o Asilo e Hospital de
Azurara com valores considerados semelhantes aos do ano anterior, 6.000$00 e 1.000$00 respetivamente.
Cf. “Os subsídios às nossas Casas de Caridade”. O Democrático, nº 997, 03/02/1934, p. 3. 436 “As Casas de Caridade”. O Democrático, nº 944, 06/01/1933, p. 3. 437 “Socorrer o nosso hospital é dever dos vila-condenses”. O Democrático, nº 2015, 11/07/1936, p. 1.
167
pública. Naturalmente, tendo sempre como primado a defesa dos interesses de Vila do
Conde, O Democrático considerava absolutamente prioritário colocar em prática as
medidas atinentes à extinção da mendicidade e dos pedintes, principalmente na altura do
pico da época balnear. Na sua ótica, era imperativo manter uma boa imagem da vila
perante os turistas que todos os anos afluíam às suas praias, de forma a não perder o forte
estímulo económico que provinha dessa atividade. Para tal efeito, o periódico alertava as
autoridades competentes para que agissem em conformidade para que os banhistas não
fossem “constantemente assediados” por uma “chusma de mendigos, a maior parte dos
quais” não pertencia ao concelho e envergonhassem os vila-condenses438.
No entanto, a preocupação do jornal em matéria de mendicidade e pobreza
extrema não se confinava à sua terra ou à imagem negativa que, por via desse flagelo
social, ela pudesse adquirir. Pelo contrário. O Democrático considerava que a existência
da mendicidade não era aceitável em qualquer sociedade moderna, chegando inclusive a
estabelecer uma comparação entre Portugal e países como a Suíça, Alemanha, Bélgica e
França (considerados mais avançados no domínio assistencial), nos quais não se
encontravam mendigos nas ruas. Tal situação só era possível porque aí se promoviam, de
forma planificada, ações de assistência social apoiadas em fundos para o auxílio aos mais
necessitados. Era esta a estratégia que o jornal esperaria ver adotada no município de Vila
do Conde: uma aposta na sensibilização da população apta a contribuir, guiada por
estratégias eficazes nas quais se visse o dinheiro reverter a favor de postos de auxílio com
“pão para comer” e roupa para aquecer os mendigos. Contudo, o periódico reconheceu
que o problema, já enraizado na sociedade, tomaria mais esforço para ser extinto do que
apenas procurando a boa vontade dos cidadãos. O jornal aludiu à existência de “mendigos
profissionais”, mestres na “arte de pedir” e “sensibilizar o seu semelhante, inspirando
compaixão”. Portanto, mendigar tornara-se uma profissão bem lucrativa. Para este
problema, o jornal recomendava uma solução que considerava simples: “dividir os
mendigos em duas classes”, de um lado “mendigos necessitados” (aos quais se devia
conceder apoio) e do outro “mendigos profissionais” (“executando uma perseguição mais
tenaz”). Apesar das duras críticas a alguns pedintes, o periódico deixava bem claro que
438 “Mendicidade”. O Democrático, nº 668, 22/04/1927, p. 2.
168
não incitava nem tolerava qualquer tipo de mau tratamento aos pobres e mendigos. O
objetivo era alcançar a cooperação de todos para extinguir um problema grave na
sociedade. Todavia, o jornal alertava também para o perigo de certos mendigos – talvez
movidos pelo desespero – serem praticantes de atos de natureza criminosa, violenta e
desonesta que colocavam em risco o resto da população. Nestes casos, os incidentes
deviam ser reportados às autoridades competentes.
Com este tipo de discurso moderno, porque humanitário e não discricionário,
frontal e não especulativo, O Democrático contribuiu para consciencializar a população
e as autoridades quanto à urgência no combate à pobreza439. Aliás, apontou claramente
medidas que poderiam, a curto prazo, minorar o problema. Após constatar que a grande
maioria de mendigos e pedintes que frequentam as ruas da vila eram, na realidade,
provenientes de outros concelhos, propôs a criação de um “bom serviço de fiscalização”
que não permitisse a sua entrada em Vila do Conde, esperando que as outras localidades
unissem esforços para combater este flagelo. Ao mesmo tempo, e porque também
persistia abertamente a mendicidade dentro do concelho, defendia a instituição das “já
consagradas sopas económicas” preparadas e servidas na vila e em Azurara, através do
hospital. Não esquecendo os mais necessitados nas freguesias, pedia a cooperação de
beneméritos que pudessem contribuir com um espaço para o efeito ou planear este serviço
utilizando as instalações das escolas paroquiais440.
Uma vez mais, as reivindicações de O Democrático parecem ter sido escutadas
pelos órgãos municipais. O próprio administrador do concelho, Gabriel Teixeira,
subscreveu os vários apelos do jornal e reiterou que se devia trabalhar no sentido da total
extinção da mendicidade. Animado por constatar que as suas vindícias não foram
ignoradas pela edilidade, o jornal continuou a traçar o plano de ação para a extinção do
problema em causa. As primeiras providências a tomar, segundo o seu pensamento, eram
junto do Estado, isto é, as instituições de solidariedade, tais como a Santa Casa da
Misericórdia e o Asilo da Ordem Terceira, deviam receber as verbas e subsídios
necessários para a manutenção de alas de auxílio aos mais pobres. Adicionalmente,
439 “Progressos locais. Mendicidade”. O Democrático, nº 742, 03/11/1928, p. 4. 440 “Progressos locais. Mendicidade”. O Democrático, nº 743, 09/11/1928, p. 4.
169
apontou a necessidade da criação de uma Comissão de Assistência que fosse responsável
por dirigir-se a cada chefe de família do concelho, procurando que se contribuísse em
doações o que se daria em esmola – esta medida que O Democrático preconizava
demonstra bem o seu espírito laico e republicano, ao substituir a caridade cristã pela
filantropia. Assim, a assistência geral seria garantida sob a forma de refeições, sendo que
a assistência especial (medicamentos, dietas, etc.) ficaria a cargo de comissões das zonas,
ou seja, das aldeias ou freguesias. A comissão central ficaria responsável pelos serviços
de cadastro, recolha de donativos, organização de festas de benemerência e repatriação
dos indigentes de fora do concelho441.
Não obstante o empenho do jornal em tentar arranjar soluções e apesar da
solidariedade geral da população, a mendicidade continuava, sem surpresa, em 1936, a
representar um dos mais graves problemas do concelho, e com tendência a aumentar. O
projeto traçado pelo jornal que, note-se, contou com o total apoio do administrador do
concelho, não foi adiante. Restou a este periódico continuar a apelar, enquanto se manteve
em publicação, à extinção da mendicidade442.
No final, fica evidente o afinco e determinação que orientaram O Democrático na
campanha que, ao longo da década de 1926-1936, empreendeu em matéria de interesses
regionais, incentivo à realização de melhoramentos vários, apelando insistentemente aos
órgãos administrativos locais, ao Estado e à população vila-condense. Os interesses de
Vila do Conde foram, efetivamente – tal e qual como se comprometeu nos seus objetivos
de fundação –, a par da defesa da República, uma das grandes prioridades deste periódico.
441 “Problemas a resolver: a mendicidade”. O Democrático, nº 763, 13/04/1929, p. 4. 442 “A Mendicidade: urge tomar providências para a sua regularização”. O Democrático, nº 1013,
01/06/1934, p. 4.
170
171
Conclusão
No término da redação desta dissertação, pode-se afirmar que O Democrático fez
justiça aos objetivos a que se propôs atingir: a destemida defesa da República e seus
valores e a luta pelos interesses de Vila do Conde.
Num país tomado por uma Ditadura Militar e depois pelo repressivo regime do
Estado Novo, com um apertado sistema censório, este periódico local – utilizando uma
redação inteligente e audaz, astuta e irónica – conseguiu manter-se fiel às suas convicções
e publicar corajosos artigos de crítica à Situação, inclusive, diga-se, de crítica habilidosa
à própria censura aplicada à imprensa periódica.
No que diz respeito ao período da Ditadura Militar, verifica-se que O Democrático
foi crítico dos governantes (principalmente, Gomes da Costa) por considerar que o
caminho que estava a ser desenhado não conduziria Portugal ao destino final mais
desejado: o retorno a um aprimorado regime republicano. Assim, apesar de ser apoiante
claro do Partido Republicano Português/Partido Democrático (e de patentear
fervorosamente esse apoio), percebeu-se que este jornal revelou uma certa dose de
imparcialidade no relato dos factos, depositou até alguma esperança em certos atos e
medidas, uma vez que – em várias ocasiões – foi capaz de reconhecer que a República,
preconizada pelos homens do 5 de Outubro precisava de ser aperfeiçoada e, de certa
forma, reinventada em muitos campos para que não se repetissem os erros do passado, e
que justamente haviam levado ao seu desmoronamento. Adicionalmente, percebe-se que
o semanário considerava que o facto de o regime republicano se encontrar dividido em
várias fações havia contribuído para a queda da República, pelo que apelava
veementemente à união de todos os republicanos.
É igualmente interessante observar que outra das estratégias do periódico em
matéria de defesa e enaltecimento da República passou pela condenação veemente das
doutrinas que lhe eram adversas: a Monarquia, desde logo, cujo potencial de recuperação
O Democrático nunca desprezou e, por isso, denunciou recorrentemente as manobras dos
monárquicos nesses tempos conturbados, assim como o Integralismo Lusitano, ideologia
que rejeitou liminarmente, vendo nele os gérmenes de uma nova ordem profundamente
172
antiliberal. Mais tarde, também dirigiu as suas baterias contra o Movimento Nacional
Sindicalista, fação extremista de indisfarçável natureza fascista.
Ao mesmo tempo, servindo o seu propósito de órgão da oposição republicana, foi
apoiante fervoroso (tanto quanto a censura o permitiu mostrar) de todas as tentativas de
derrube e de oposição à Situação. Apesar de abordar o movimento reviralhista de forma
mais evidente nos anos de 1927 e 1928, patenteou-lhe, nos moldes em que tal lhe foi
permitido, a sua total aprovação.
Da mesma forma, a sua aversão e consequente condenação de regimes repressivos
e autoritários manteve-se com o advento do Estado Novo.
É importante salientar que a oposição ao regime salazarista não se materializou na
forma de críticas específicas direcionadas ao Estado, instituições, práticas ou
protagonistas, pois tal dificilmente passaria o crivo da censura. Foi antes largamente
difundida através do enaltecimento do ideário democrático, mantendo o seu alinhamento
à esquerda do espetro político republicano.
O semanário primou pela defesa das liberdades fundamentais de expressão e
opinião. Nesta linha, sobressaiu a importância que conferiu à educação numa sociedade
moderna, fundamental para a formação de jovens cidadãos informados para dirigir e/ou
decidir sobre o futuro do país através da opção por uma carreira política ou pelo direito
ao voto. Optou pela desconstrução de conceitos afetos aos fascismos que floresciam em
outros países da Europa da década de 1920, apontando os seus vícios e perigos, inclusive
sugerindo, na sua ótica, melhores e mais construtivas alternativas. Nunca mencionando
expressamente os alvos diretos da sua crítica (como a PVDE, por exemplo), O
Democrático veiculou junto dos seus leitores opiniões desfavoráveis em relação a órgãos
de repressão do regime e julgamentos desfavoráveis a certos princípios do ideário
salazarista, “passando a perna” ao lápis azul. Naturalmente, a crítica ao regime processou-
se também sob a forma de propaganda e apoio a organismos opositores do regime, como
a Aliança Republicana e Socialista.
Relativamente às políticas de saneamento financeiro empreendidas por Salazar é
importante destacar que O Democrático – como se viu – considerava necessárias as
medidas aplicadas pelo estadista, dado o difícil momento de crise que o país atravessava.
173
Porém, não é menos relevante evidenciar que esse apoio ao desempenho de Salazar
enquanto Ministro das Finanças, inclusive através de apelos à população para que
compreendesse e contribuísse em prol de tais políticas, decorreu ao longo de um curto
espaço de tempo, entre 1928 e 1929. Daí em diante, tal aprovação deixou de ser
patenteada nas colunas deste periódico (não sendo todavia substituída por uma expressa
desaprovação) talvez por se ter apercebido da índole política dessas medidas e dos custos
sociais do saneamento das finanças públicas, necessariamente punitivas e
prolongadamente prejudiciais aos portugueses mais desfavorecidos. Com efeito, um
jornal de oposição a um regime ditatorial desempenha o seu papel entre gritos e silêncios,
entre denúncias frontais e reprovações subtis; o compromisso gere o seu dia-a-dia, as
contingências não podem ser depreciadas ao mesmo tempo que a habilidade se aprimora
em cada edição publicada.
Destaca-se também a tenacidade e persistência d’O Democrático, especialmente
confirmada pela campanha que empreendeu focada na denúncia de problemas e carências
de Vila do Conde; para eles apresentou hipóteses de solução adequada, suscitou debates
entre os responsáveis, alertou a população.
Ao longo do decénio, este semanário utilizou a sua influência enquanto órgão de
imprensa local para elucidar os vila-condenses relativamente aos melhoramentos que
considerava indispensáveis para o progresso da região. Como se apurou, o jornal focou-
se na luta por avanços, em todas as frentes, que resultariam em benfeitorias consideráveis
no quotidiano vila-condense. Aqui sobressaiu a posição fortemente interventiva do jornal
na forma dos seus constantes apelos direcionados à autarquia para que se tomassem
providências, sendo que, para todos os problemas, O Democrático preconizava soluções.
O tom de urgência nas reivindicações exigidas e a impaciência perante a lentidão de
resolução das mesmas por parte dos dirigentes municipais, por inércia ou por falta de
verbas, ficaram também patentes na sua redação. Assim, o periódico reiterou de forma
incansável a importância do investimento em obras públicas para o desenvolvimento e
crescimento da vila, e obviamente também para atenuar a situação de carestia de trabalho.
Por outro lado, honrando o ideário republicano que defendia, e tratando-se de um
jornal com ideias mais progressistas do que a Vila do Conde do seu tempo, não se pode
174
deixar de mencionar que os constantes apelos à população para que investisse no
enriquecimento da sua cultura e aprimoramento da sua educação eram reveladores do
generalizado atraso cultural e intelectual da localidade. O periódico exigia modernidade
à pequena e retrógrada Vila do Conde da época.
Embora se desconheçam as exatas circunstâncias do encerramento deste jornal
republicano, ele teve o desfecho de vários outros correligionários seus em 1936, ano em
que a purga da imprensa periódica oposicionista ocorreu face às exigências então
impostas pelo novo regime à publicação de periódicos e seus responsáveis, exigências e
quesitos que não permitiam a sua continuidade. O objetivo do Estado Novo era claro:
calar as vozes dissonantes e incómodas e este semanário vila-condense consubstanciou
uma dessas vozes – não se calou até ao fim da sua existência, foi calado porque deixou
de poder existir.
Feito este balanço, é possível afirmar que se cumpriram os objetivos de
investigação. Numa dialética constante entre a análise da fonte hemerográfica – rica de
informação mas também complexa nos seus conteúdos – e a leitura e interpretação da
bibliografia, a pesquisa orientou-se, como explicado na introdução, no sentido de dar
resposta às interrogações iniciais. Conclusivamente, o estudo da fonte (sempre auxiliado
pela bibliografia) forneceu a perspetiva de um pequeno mas irreverente jornal vila-
condense face às mudanças políticas, económicas, sociais e culturais estruturantes
ocorridas durante a vigência da Ditadura Militar e período inicial do Estado Novo, assim
como deixou vincada a sua função de periódico defensor dos interesses locais, que pintou
em traços vívidos a Vila do Conde de meados dos anos 20 a meados dos 30, na luta entre
a estagnação e a modernidade.
A realização deste trabalho sugeriu várias pistas de investigação, designadamente
no domínio da imprensa periódica vila-condense. Seria de todo o interesse estudar os
jornais de Vila do Conde, conhecer o espetro político-partidário que a imprensa da
localidade abarcou, nomeadamente os órgãos republicanos, que não foram poucos, com
efeito mais numerosos e de maior longevidade do que em muitas outras vilas do país. Por
outro lado, e no domínio da História Local, verificou-se a escassez de estudos existentes,
175
pelo que se tomou consciência do muito que há ainda por fazer, sendo urgente promover
estudos sobre Vila do Conde na época contemporânea.
176
177
Fontes
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181
Anexos
182
Anexo 1 – “Ao Começar”. O Democrático, nº 1, 18/05/1913, p. 1.
183
Anexo 2 – “Horas Tristes”. O Democrático, nº 629, 26/06/1926, p. 1.
184
Anexo 3 – “A Vitória”. O Democrático, nº 630, 03/07/1926, p. 1.
185
Anexo 4 – “O Perigo”. O Democrático, nº 647, 08/11/1926, p. 1.
186
Anexo 5 – GUSMÃO, Duarte Vilhena – “Sufrágio Universal”. O Democrático, nº 867,
12/06/1931, p. 1.
187
Anexo 6 – GUSMÃO, Duarte de Vilhena – “A mocidade académica e a política”. O
Democrático, nº 878, 11/09/1931, p. 1.
188
Anexo 7 – GUSMÃO, Duarte de – “A Delação”. O Democrático, nº 898, 29/01/1932, p.
1.
189
Anexo 8 – PORTUGAL, Eduardo – “Crimes”. O Democrático, nº 935, 28/10/1932, p. 1.
190
Anexo 9 – ARAÚJO, Artur da Cunha – “O cancro do analfabetismo”. O Democrático, nº
2030, 30/10/1936, p. 1.
191
Anexo 10 – “Problemas a resolver”. O Democrático, nº 765, 26/04/1929, p. 1.
192
Anexo 11 – SILVESTRE, Rosa – “Vila do Conde civilizada?!”. O Democrático, nº 921,
22/07/1932, p. 1.