o comte republicano e a crítica positivista das luzes
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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
O Comte republicano e a crítica
positivista das Luzes
Introdução à questão do progresso em Augusto Comte
Matheus Ichimaru Bedendo
São Paulo
2019
Matheus Ichimaru Bedendo
O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes: introdução à
questão do progresso em Augusto Comte
Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em
Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo para obtenção do título de mestre
Área de concentração:
Filosofia
Orientador:
Prof. Sérgio Cardoso
São Paulo
2019
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação da publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Ichimaru, Matheus
I 426 c O Comte republicano e a crítica positivista das
Luzes: introdução à questão do progresso em Augusto
Comte / Matheus Ichimaru ; orientador Sérgio
Cardoso. – São Paulo, 2019.
147 f.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo. Departamento de Filosofia. Área de
concentração: Filosofia.
1. Augusto Comte. 2. republicanismo francês. 3.
positivismo. 4. Progresso. I. Cardoso, Sérgio,
orient. II. Título.
ICHIMARU, Matheus. O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes: introdução à questão do
progresso em Augusto Comte. Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em
Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.
Aprovado em: ____ /____ /________
Banca examinadora
Professor(a): ____________________ Instituição: ______________________
Julgamento: ____________________ Assinatura: ______________________
Professor(a): ____________________ Instituição: ______________________
Julgamento: ____________________ Assinatura: ______________________
Professor(a): ____________________ Instituição: ______________________
Julgamento: ____________________ Assinatura: ______________________
ICHIMARU, Matheus. O Comte republicano e a crítica positivista das Luzes: introdução à questão do
progresso em Augusto Comte. 2019. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
Resumo: Partindo do “revivalismo republicano”, este trabalho tem por objetivo lançar as bases de uma investigação a respeito da “deriva ideológica” do pensamento republicano na França desde a Revolução, no final do século dezoito, até a consolidação da Terceira República, na segunda metade do século dezenove. Tomando a questão do progresso como fio-condutor de nossa investigação, pretendemos mostrar que o positivismo de Augusto Comte – base de sustentação filosófica da Terceira República –, ao elaborar sua crítica da noção de “perfectibilidade indefinida” – herdada das Luzes e, mais especificamente, de Condorcet –, a um só tempo (i) põe fim a uma querela que norteou a reflexão filosófica a respeito dos “progressos do espírito humano” desde o final do século dezoito; e (ii) fornece ao século dezenove um novo paradigma para pensar doravante o “desenvolvimento da humanidade”. Para isso, no entanto, nos esforçamos aqui em (i) justificar uma leitura republicana de Augusto Comte; (ii) esclarecer os sentidos e a indeterminação do pensamento republicano francês em que o autor se inscreve; e (iii) analisar o estatuto epistemológico da filosofia positiva a partir da crítica que faz aos dogmas da filosofia das Luzes – metafísica e revolucionária, aos seus olhos.
Palavras-chave: Augusto Comte; republicanismo francês; positivismo; progresso.
ICHIMARU, Matheus. The republican Comte and the positivist critique of Enlightenment: introduction
to the notion of progress in Auguste Comte. 2019. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
Abstract: Departing from the “republican revival”, this work aims to settle the basis for an investigation about the “ideological drift” of republican thought in France since the Revolution, at the end of eighteenth-century, up to the consolidation of the Third Republic, at the second half of nineteenth-century. Taking the notion of progress as the guiding line of our investigation, we intend to show that Auguste Comte’s positivism – philosophical bedrock of Third Republic – in developing his critique of the “unlimited perfectibility” notion – inherited from Enlightenment and more specifically from Condorcet –, at the same time (i) put an end in a quarrel that guided the philosophical debate concerning “the progress of human mind” since the end of eighteenth-century; and (ii) gives nineteenth-century a new paradigm to think henceforth the “development of humanity”. To that end, nevertheless, we shall concentrate our efforts (i) on justifying a republican interpretation of Auguste Comte; (ii) on elucidating the meanings and the indetermination of the French republican thought in which the author is framed; and (iii) on analyzing the epistemological status of positive philosophy based on the critique that it develops towards the dogmas of Enlightenment philosophy – metaphysical and revolutionary, in its perspective.
Key-words: Auguste Comte; French republicanism; positivism; progress.
ICHIMARU, Matheus. Le Comte républicain et la critique positiviste des Lumières : introduction à la
question du progrès chez Auguste Comte. 2019. 147 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
Résumé : En partant du « revivalisme républicain » ce travail a pour but de lancer les bases d’une recherche sur la « dérive idéologique » de la pensée républicaine en France depuis la Révolution, à la fin du dix-huitième siècle, jusqu’à la consolidation de la Troisième République, à la seconde moitié du dix-neuvième siècle. En envisageant la question du progrès comme fil-conducteur de notre recherche, on souhaite montrer que le positivisme d’Auguste Comte – base de sustentation philosophique de la Troisième République – en développant sa critique de la notion de « perfectibilité indéfinie » – héritée des Lumières et plus spécifiquement de Condorcet – en même temps (i) met fin à une querelle qui a guidée les réflexions philosophiques concernant les « progrès de l’esprit humain » depuis la fin du dix-huitième siècle ; et (ii) fournit au dix-neuvième siècle un nouveau paradigme pour penser désormais le « développement de l’humanité ». Pour cela, cependant, on s’efforcera ici pour (i) justifier une lecture républicaine d’Auguste Comte ; (ii) élucider les sens et l’indétermination de la pensée républicaine française à laquelle l’auteur s’inscrit ; (iii) examiner le statut épistémologique de la philosophie positive à partir de la critique qu’elle fait aux dogmes de la philosophie des Lumières – métaphysique et révolutionnaire, à son avis.
Mots-clés : Auguste Comte ; républicanisme français ; positivisme ; progrès.
Para Santo e Darlene
que seguraram todas as pontas
Abreviações
Para as obras de Augusto Comte, as seguintes abreviações serão adotadas.
Sommaire Sommaire appréciation de l’ensemble du passé moderne (1820).
Plan Plan des travaux scientifiques nécessaires pour réorganiser la société (1822).
CPSS Considérations philosophiques sur la science et les savants (1825).
CPS Considérations sur le pouvoir spirituel (1826).
Examen Examen du traité de Broussais sur l’irritation (1828). Os cinco textos acima serão citados a partir da edição brasileira dos Opúsculos de filosofia social.
EJ Écrits de jeunesse.
CPP Cours de philosophie positive (1830-42). Os tomos I, II, III, V e VI serão citados a partir da edição Hermann de 1975. Em especial, o tomo IV será citado a partir da edição Hermann de 2012.
Esprit Discours sur l’esprit positif (1844). Citado a parir da edição Vrin de 1990.
Ensemble Discours sur l’ensemble du positivisme (1848). Citado a partir da edição de 1851 do Sistema de política positiva, em que o texto é republicado como “discurso preliminar”.
SPP Système de politique positive (1851-54).
CG Correspondance générale et confessions.
Cat Catéchisme positiviste (1852).
SS Synthèse subjective (1856).
A verdade, meu amor, mora num poço
é Pilatos lá na Bíblia quem nos diz
que também faleceu por ter pescoço
o autor da guilhotina de Paris
Vai, orgulhosa, querida
mas aceita esta lição:
no câmbio incerto da vida
a libra sempre é o coração
O amor vem por princípio, a ordem por base
o progresso é que deve vir por fim
desprezaste esta lei de Augusto Comte
e foste ser feliz longe de mim
Noel Rosa, Positivismo
Sumário
Agradecimentos ....................................................................................................... 17
Introdução. Da perfectibilidade ao progresso: o itinerário filosófico do
republicanismo francês ........................................................................................... 22
1. Augusto Comte e o positivismo: um problema de exegese ........................... 36
1.1. A escrita comtiana ............................................................................................................................... 36
1.2. As leituras do positivismo .................................................................................................................. 43
1.2.1. Caricatura e espantalho: os problemas interpretativos .......................................................... 44
1.2.2. Friedrich Hayek: o positivismo como prefiguração do totalitarismo .................................. 49
1.2.3. Herbert Marcuse: o positivismo como apologia do capitalismo .......................................... 54
1.3. Em direção a uma leitura republicana de Augusto Comte ........................................................... 60
2. Comte republicano .............................................................................................. 63
2.1. Ser republicano na França pós-revolucionária ................................................................................ 63
2.1.1. República indeterminada ............................................................................................................ 64
2.1.2. O bem comum e a questão social ............................................................................................. 69
2.1.3. A propriedade como cerne da questão social .......................................................................... 73
2.2. O positivismo e a Terceira República .............................................................................................. 79
2.3. O republicanismo do jovem Comte ................................................................................................. 85
3. O positivismo e as Luzes ................................................................................... 90
3.1. Fundamentos epistemológicos do positivismo .............................................................................. 90
3.1.1. A lei dos três estados e a enciclopédia positivista ................................................................... 92
3.1.2. O espírito geral da metafísica ..................................................................................................... 96
3.1.3. O relativismo epistemológico .................................................................................................... 98
3.2. Positivismo crítico das Luzes ......................................................................................................... 107
3.2.1. A crítica da liberdade de consciência ..................................................................................... 109
3.2.2. A crítica da igualdade ............................................................................................................... 118
3.2.3. A crítica da soberania do povo ............................................................................................... 122
Considerações finais .............................................................................................. 125
Bibliografia ............................................................................................................. 130
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Agradecimentos
Este trabalho (que, agora vejo, apenas se inicia) começou a ser concebido no segundo
semestre de 2013. De lá para cá, carrega uma enorme dívida intelectual com Newton
Bignotto. Foi ele quem nos introduziu ao assunto quando o interesse pelo republicanismo
francês era ainda um misto de empolgação com o revivalismo republicano e um desejo
difuso de passar alguns meses em Paris, cursando um semestre letivo na Sorbonne. Seus
textos nos deram o caminho das pedras. Refiro-me, em primeiro lugar, ao capítulo do
Matrizes do republicanismo em que Bignotto trata especificamente do republicanismo
francês: fora nossa primeiríssima leitura a respeito do assunto. Desde então, não parei
mais de perturbá-lo. Perturbei-o primeiro quando esteve em São Paulo, a convite de
Sérgio Cardoso, proferindo algumas conferências a respeito do Renascimento italiano no
curso de pós-graduação de seu amigo e colega, no segundo semestre de 2013. Às minhas
esbaforidas indagações, suscitadas pela leitura de seu texto, Bignotto respondeu, ao longo
de algumas horas, com paciência e clareza características, ao final das quais me disse, com
modéstia: “Rapaz, você sabe que boa parte das perguntas que está me fazendo eu tentei
responder num livro que lancei recentemente...”.
Ele se referia ao As aventuras da virtude: as ideias republicanas na França do século XVIII,
resultado, segundo nos conta nos agradecimentos do livro, de um semestre sabático1 no
Centre de Recherches Politiques Raymond Aron, da École de Hautes Études en Sciences
Sociales, em Paris. Sua leitura me virou de cabeça para baixo. Lá o autor nos mostra quem
1 Que o público em geral não se surpreenda, mas, nos dias de hoje, é bastante comum que pesquisadores tirem “semestres sabáticos” para trabalhar.
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(girondinos e jacobinos) foram os responsáveis por formular e ventilar as ideias
republicanas na França revolucionária e a partir de quais fontes teóricas (sobretudo
Montesquieu e Rousseau) se consolidaram o “léxico” e a “gramática” republicanas dos
revolucionários franceses. Embarquei para Paris com um projeto de pesquisa definido a
partir das diretrizes teórico-metodológicas fornecidas por Bignotto em seus textos (e
tendo em meu horizonte suas sugestões e insinuações).
Uma vez na Sorbonne, e sob a supervisão do professor Serge Audier, a quem dirijo aqui
também os mais sinceros agradecimentos, dediquei-me ao estudo de Condorcet e da
relação de seu pensamento com o ideário republicano francês. A escolha do autor, como
sede das investigações à época, veio como sugestão dos trabalhos de Bignotto e dos
apoios historiográficos por ele utilizados (que rapidamente foram também incorporados
à bibliografia de meu projeto). Àquela altura, Condorcet representava para mim uma
espécie de elo para compreender, na França, a passagem do republicanismo do século
dezoito ao republicanismo do século dezenove. A um só tempo, o entendia como o
“último dos philosophes” – segundo as famosas palavras de Jules Michelet – e como o
“predecessor imediato” do fundador do positivismo – como o próprio Augusto Comte
não se cansou de repetir. A questão do progresso, como fio condutor de minha
investigação, surgiu quase que naturalmente do diálogo travado entre Augusto Comte e
a filosofia condorcetiana, em seu Curso de filosofia positiva.
De volta ao Brasil, a pesquisa realizada na França serviu como ponto de partida para a
elaboração do projeto de mestrado que submeti, ainda no segundo semestre de 2015, à
avaliação do programa de pós-graduação do departamento de Filosofia da USP, e que
resulta agora nesta dissertação. Ao longo dos anos, muitas pessoas contribuíram, direta
ou indiretamente, para que esta pesquisa se tornasse possível. Devo a elas, portanto, os
meus mais sinceros agradecimentos. Em primeiro lugar, aos amigos queridos: Bruna,
Vitinho, Pedrão, Jorge, Ivanzito, Rafa, Michel, Juliana Martone, Thiago, Nathalia,
Carioca, Braga, as Marias (Sette e Aguilera), Juliana Giannini, João Pace, Sylvia, Ernst,
Mateus Toledo, Vitão, Mathinho, Melissa, Theus, Luana, Gui, Alline e tantos outros (que
é capaz que eu esteja esquecendo...), os meus mais sinceros agradecimentos pelo afeto e
pelas longuíssimas e intermináveis conversas que a um só tempo me distraíram e
formaram ao longo desses anos.
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Penso que um agradecimento especial ao staff da Tia Bia, local em que esse grupo de
“iluminados” se reuniu com tamanha insistência e disciplina ao longo dos anos, deve ser
aqui também registrado. A quantidade de cigarros, cafés, pães de queijo, risadas, choros,
brigas, discussões, reconciliações, “chaves de Schwarz” e impropérios testemunhados
pelas abelhas, malucos habitués e guarda-sóis instáveis desta simpática cantina renderia,
talvez, um livro – seguramente não um bom livro, mas um no qual estariam depositadas
as nossas memórias e ao qual voltaríamos sempre com o coração aquecido.
À Laís, sou grato pelos tantos anos de companheirismo e por ter compartilhado comigo
o sentido do amor quando éramos jovens demais para entender o que ele era. À Adriana,
agradeço pela parceria intelectual e na militância política, pelo tempo em que nossas almas
se tocaram e pelas utopias compartilhadas que naquele momento nos fizeram sentido.
Por fim, à Milena, que me ensinou milhões de coisas, sou grato por corrigir minhas
vírgulas (literal e metaforicamente), por me deixar brincar com seu gato e por
ressignificar, em seu (agora um pouco meu) mundo de fantasia, todo tubinho de Eparema
e todo Toddynho que aparecesse pela frente.
Agradeço também à minha família, em especial meus pais e meu irmão, pelo apoio
incondicional que sempre me deram. A meus pais sou grato, sobretudo, por terem
reconhecido que o trabalho intelectual é, afinal de contas, trabalho, e que por detrás da
aparente “vida mansa” dos trabalhadores de gabinete, frequentemente fechados em suas
“torres de marfim”, se esconde um regime de dedicação e disciplina que não é de todo
modo desprezível. Agradeço-os também por terem frequentemente me liberado dos
inconvenientes da vida cotidiana, com grande generosidade, permitindo assim que eu
perseguisse, sem embaraço, objetivos comumente referidos apenas aos “bacanas”.
À Fabiane Secches e (sempre) à Luci Toqueci, meus agradecimentos mais ternos por
terem cuidado da minha saúde quando o mundo pareceu muito cinza ou simplesmente
insuportável.
Ao Sérgio Novaes, ao Pedro Mercadante, ao Eduardo Gregoris, à Sandra Padula e a toda
a equipe por eles comandada no SPRACE (São Paulo Research and Analysis Center)
preciso agradecer por terem não apenas me ensinado física de partículas, mas também
por terem contribuído para o desenvolvimento em mim da vocação para a pesquisa
acadêmica séria e compromissada. Talvez eles não saibam – e, talvez, até pouco tempo
nem eu mesmo soubesse – o quanto aqueles anos de iniciação científica (apesar de
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interrompidos depois) acabaram sendo decisivos para a consolidação de algumas
convicções a respeito mesmo do que eu gostaria de fazer da vida. À época, parecia ser a
física de altas energias. Por mais que não fosse – e o tempo se encarregou de mostrar que
não era – trago ainda hoje comigo muitos dos aprendizados que tive nas salas do Instituto
de Física Teórica, da saudosa Rua Pamplona, e, depois, da Rua Dr. Teobaldo Bento
Ferraz, no campus novo da Barra Funda.
Devo agradecê-los ainda pelas oportunidades e pelas portas abertas. Fora nos meses de
janeiro e fevereiro de 2010, em algum dos vários momentos contemplando o Monte Jura,
que paradoxalmente me dei conta de que estava no lugar onde sempre quisera estar, mas
que também era hora de trilhar novos caminhos. Agradeço especialmente ao Sérgio
Novaes pela compreensão e pelo acolhimento que deu à minha decisão de largar a física
e prestar novamente vestibular, dessa vez em filosofia. Lembro ainda hoje, saudoso, das
palavras que me dirigiu à época, e embora ele estivesse errado quanto às suas suposições,
penso ter sido muito importante escutá-las com atenção naquele momento.
À Marilena Chaui e (uma vez mais) ao Newton Bignotto, sou grato por terem aceito o
convite para participar da banca de qualificação deste trabalho: tê-los como interlocutores
– e o frio na barriga por tê-los como interlocutores – penso ter sido extremamente
importante para o amadurecimento da pesquisa. Ao Pedro Paulo Pimenta, à Angela
Alonso e ao Alexandre Carrasco agradeço pelos comentários e críticas que fizeram a meu
trabalho (que agora incorporo a essa versão corrigida) e, naturalmente, por terem aceito
o convite (em data bastante ingrata) para estar na banca de minha defesa. Agradeço, em
especial, ao Pedro Paulo pelo “iconoclasta”; à Angela pela censura e pelo rigor
cebrapianos; ao Alexandre pelas provocações marxistas e por ter corrigido meus “posto
que”.
Ao Ruy Fausto, grande especialista em Dr. Burdin, agradeço pela recepção e pela
companhia em Paris quando lá estive, numa quinzena de rara alegria, conhecendo a Casa
de Augusto Comte e seu acervo (e revisitando lugares da cidade outrora tão queridos ou
ainda desconhecidos). Agradeço-o também por ter me posto em contato com
especialistas em minha área de estudo, como é o caso de Juliette Grange, a quem sou
também profundamente agradecido pelos comentários e críticas que fez a esta pesquisa.
Ao Jean-Fabien Spitz, preciso agradecer pelas longas horas de conversa nas duas ocasiões
em que nos encontramos em São Paulo, nas quais pudemos discutir pontos bastante
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específicos do projeto inicial deste trabalho. Agradeço-o também pela generosidade e
pelo acolhimento cortês que sempre nos destinou (a mim e a esta pesquisa), indicando-
nos bibliografias, apresentando-nos a novos autores, redigindo cartas de recomendação,
etc. Ao Paulo Sérgio Pinheiro, agradeço por ter me emprestado um livro, com sua natural
generosidade e quando isto não era absolutamente necessário (o qual, se ele ainda estiver
de acordo, pretendo não mais devolver).
Por fim, ao Sérgio Cardoso, que não apenas orientou este trabalho, mas também me
orientou neste trabalho, sou grato por uma infinidade de coisas, difíceis de sintetizar aqui
(noto agora o quão difícil é mesmo agradecê-lo: o risco do sentimentalismo sopesado
pelo da ingratidão). Sou grato, em primeiro lugar, por ter me feito acreditar que o tempo
e a “paciência do conceito” ainda têm lugar na universidade nos dias de hoje; que há algo
do trabalho que fazemos que verdadeiramente fica, a despeito dos “critérios objetivos”,
tão necessários à boa governança do ambiente acadêmico, mas que por vezes nos
sufocam e tendem a engessar o livre espírito de pesquisa. Agradeço-o também por não
se conformar, por seguir acreditando (junto ao que há de melhor da tradição uspiana)
que o trabalho que conduzimos no interior da universidade não se desconecta do político
e do social. Sou grato, enfim, pela confiança, pela paciência, pela generosidade, pelos
ensinamentos, pelas tantas portas abertas, pelos conselhos, pelas reprimendas discretas,
pelas aprovações silenciosas e por tentar me fazer parar de fumar. Sou grato, sobretudo,
porque veio antes, e àqueles que vêm antes, me parece devido o nosso agradecimento
sincero. Há algo no Sérgio que sempre me encantou e que nunca soube ao certo o que
era. Penso hoje que por trás de sua aparente insistência em não se modernizar (apenas
aparente, pois não há ninguém mais moderno que o Sérgio) talvez tenha se conservado
algo que não se vê com tanta frequência nos dias de hoje: não sei bem se o espírito de
uma universidade que apenas existiu no passado ou se a centelha de uma outra que ainda
pode vir a existir no futuro.
À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior) e à Maison
Internationale d’Auguste Comte sou grato pelo apoio financeiro que me deram durante
a pesquisa.
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Introdução. Da perfectibilidade ao progresso: o itinerário filosófico do republicanismo francês2
Na abertura de seu já célebre trabalho, A ideia republicana na França, Claude Nicolet nos
diz, numa longa passagem: “A França é uma República. Mas a República não é a França,
visto que, em sua história recente há pelo menos dois séculos, a França foi também uma
monarquia absoluta de direito divino; dois impérios; duas monarquias constitucionais;
um “Estado”; isso sem falar dos períodos em que ela não foi nada, vivendo sob governos
provisórios ou revolucionários. A França é uma República, mas dela conheceu-se
oficialmente ao menos cinco diferentes, numeradas como os prenomes de seus reis. [...]
De uma a outra, ainda que a cada vez o novo ordinal se apresentasse prontamente como
um retorno às origens, como o restabelecimento de uma legitimidade interrompida, ele
significou também mudanças na inspiração doutrinal e na prática institucional. A
República é, portanto, múltipla e avança encoberta. Ela se transformou duas vezes num
“Império”, por um encadeamento que alguns julgavam inevitável. Mais tarde, aliás, a de
nome Terceira se fez também imperial, num sentido um pouco diferente, pela conquista
colonial. [...] Tivemos as Repúblicas girondina, montanhesa, termidoriana, diretorial,
cesarista, imperial. Uma república dos duques, mas também (para esmiuçar os títulos de
livros célebres) uma República dos camaradas, dos comitês, dos professores, dos
2 Uma primeira versão deste texto foi apresentada, em Vitória no Espírito Santo, no encontro da Anpof (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia) de 2018, no grupo de trabalho “Rousseau e o Iluminismo”. Agradeço aos membros do GT e aos colegas que lá estiveram pela disposição em debatê-la e criticá-la comigo.
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deputados; temos a República no vilarejo, a República rural, aquela da Comuna de Paris;
as Repúblicas conservadoras, oportunistas, liberais, radicais, democráticas; uma
República burguesa, mas também outras, sociais ou socialistas: a noiva é realmente muito
bela”3.
Se no plano institucional, pelas mais variadas razões, diversos regimes pretenderam
esposar a República, no plano das ideologias os pretendentes foram sempre mais
escassos. Bonapartistas, orleanistas, liberais e socialistas, das mais variadas tendências,
apesar das alianças táticas com os republicanos (a depender da conjuntura enfrentada),
recusaram por muitas vezes o epíteto de “republicano”4. Com efeito, a busca por um
sentido mais restrito para esse vocábulo se mostra, em nosso ver, menos árdua do que
aquela que intenciona fazer o mesmo para o caso de “República”. Seu campo semântico,
apesar de menos extenso, é, no entanto, ainda bastante complexo e nuançado.
Acreditamos que uma boa estratégia para conferir significado ao republicanismo francês
consista em acompanhar, junto às filosofias que lhe serviram de suporte teórico, a
evolução conceitual de seu vocabulário político. Nesse sentido, é preciso, de início,
identificar e isolar os principais atores políticos e intelectuais responsáveis pela produção
e ventilação dos ideais republicanos na França. O recorte temporal aqui utilizado é o que
vai da véspera da Revolução até a consolidação da Terceira República, isto é, da segunda
metade do século dezoito até a segunda metade do século dezenove (um período de
praticamente cem anos). A matriz francesa de pensamento republicano que se consolida
ao longo desse período pode ser subdividida, esquematicamente, em duas outras
menores: uma de fundo iluminista, que nutriu os discursos e as ações de girondinos e
jacobinos nos primeiros anos da Revolução5; e uma outra de fundo positivista, que
desempenhou papel análogo para os fundadores da Terceira República (Émile Littré,
Léon Gambetta, Jules Ferry, etc.)6.
Descendo ao plano estritamente filosófico do republicanismo francês, acreditamos que a
questão do progresso é aquela que, ao mesmo tempo, une e separa suas matrizes
iluminista e positivista – o progresso seria, portanto, a grande questão filosófica do
3 Claude Nicolet, L’idée républicaine en France (1789-1924): essai d’histoire critique, Paris, Gallimard, 1994, p. 9-10. 4 Ver Pamela Pilbeam, Republicanism in nineteenth-century France (1814-1871), Londres, Macmillan, 1995. 5 Ver Newton Bignotto, As aventuras da virtude: ideias republicanas na França do século XVIII, São Paulo, Companhia das Letras, 2010. 6 Ver Claude Nicolet, op. cit., p. 187 e ss.
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republicanismo na França, no período aqui considerado. Une, no sentido em que o
positivismo de Augusto Comte, a grande “filosofia da ação”7 dos fundadores da Terceira
República, retoma a questão do progresso tal como ela havia sido formulada por
Condorcet – o “soldado avançado” do iluminismo na Revolução –, em seu famoso Esboço
de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Separa, por outro lado, na medida em
que, a partir de Augusto Comte, os “progressos do espírito humano”, ou, mais
precisamente, o Progresso, no singular, não será mais pensado em termos da
perfectibilidade, conceito caro e central para a filosofia das Luzes, mas em termos apenas
do desenvolvimento.
Condorcet, ainda no prólogo de seu Esboço, nos diz, a respeito dos objetivos de sua obra,
que um quadro dos progressos do espírito humano “se forma pela observação sucessiva
das sociedades humanas nas diferentes épocas por elas percorridas. Ele deve, [portanto],
apresentar a ordem das mudanças, expor a influência que exerce cada instante sobre
aquele que o sucede e mostrar, assim, a partir das modificações recebidas pela espécie
humana ao se renovar incessantemente em meio à imensidão dos séculos, a marcha por
ela seguida, os passos por ela dados na direção da verdade ou da felicidade. Estas
observações, a respeito daquilo que o homem foi, a respeito daquilo que ele é hoje em
dia, conduzirão, em seguida, aos meios de assegurar e de acelerar os novos progressos
que sua natureza permite ainda esperar”8.
Se estes são os objetivos da obra de Condorcet (concebida sob as mais precárias
condições, enquanto o filósofo fugia de uma ordem de prisão expedida pelo Comitê de
Salvação Pública em 1794, durante o Terror jacobino), seus resultados, segundo
adiantados pelo autor também no prólogo a que nos referimos acima, consistem em
mostrar “pelo raciocínio e pelos fatos que não se marcou nenhum termo ao
aperfeiçoamento das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem é realmente
indefinida; que os progressos desta perfectibilidade, doravante independente de todo
poder que desejasse impedi-los, não têm outro termo senão a duração do globo em que
a natureza nos lançou. Sem dúvida, estes progressos poderão seguir uma marcha mais ou
menos rápida, mas ela jamais será retrógrada; ao menos enquanto a terra ocupar o mesmo
lugar no sistema do universo e enquanto as leis gerais desse sistema não produzirem sobre
7 A expressão é de Claude Nicolet, op. cit., p. 187. 8 Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, Paris, Flammarion, 1988, p. 80.
25
este globo nem uma perturbação geral nem mudanças que impeçam a espécie humana
de nele se conservar, desenvolver as mesmas faculdades e encontrar os mesmos
recursos”9.
Os progressos de que nos fala Condorcet no Esboço “não são os dos homens, segundo
assinala Catherine Kintzler, mas os da espécie humana abstrata, do ‘espírito humano’
considerado como um objeto teórico”10. É por essa razão, ainda segundo a comentadora,
que Condorcet poderá afirmar, logo após ter reconhecido que sua marcha nunca pode
ser retrógrada, que “os progressos do espírito [humano] nem sempre foram seguidos do
progresso das sociedades em direção à felicidade e à virtude” 11 , sem que isto
necessariamente implique em contradição. Opondo-se a Rousseau, Condorcet irá afirmar
que a “passagem turbulenta e penosa de uma sociedade grosseira ao estado de civilização
dos povos esclarecidos e livres não é de forma alguma uma degeneração da espécie
humana, mas uma crise necessária em sua marcha gradual na direção de seu
aperfeiçoamento absoluto”12. Com efeito, para Condorcet, “não é o aumento das Luzes,
mas a sua decadência, que produziu os vícios dos povos policiados; e, [...] longe de os
corromper, elas [as Luzes] os fizeram mais dóceis, quando não puderam corrigi-los ou
transformá-los”13.
Ainda segundo Kintzler, a chave para a compreensão da formulação condorcetiana dos
progressos do espírito humano reside na ideia da “massa das verdades”14. “‘O espírito
humano’, nos diz a comentadora, não designa, portanto, nem uma realidade empírica
nem uma realidade psicológica; o termo nos remete a uma realidade epistemológica, a
um conjunto de procedimentos”15. A “massa das verdades”, segundo esta interpretação,
seria, portanto, “um conceito cuja substância se encontra depositada nos volumes da
Enciclopédia”16, e se, por um lado, ela aumenta sem jamais poder retroceder, o mesmo não
se verifica para o caso das inteligências humanas particulares, que permanecem, de forma
geral, estacionadas. “O vigor, a extensão real das cabeças humanas permanecerá a mesma;
mas os instrumentos que elas podem empregar serão multiplicados e aperfeiçoados; mas
9 Idem, ibidem, p. 81. 10 Catherine Kintzler, Condorcet: l’instruction publique et la naissance du citoyen, Paris, Minerve, 2015, p. 83. 11 Condorcet, op. cit., p. 102. 12 Idem, ibidem. 13 Idem, ibidem, p. 103. 14 Ver Catherine Kintzler, op. cit., p. 84. 15 Catherine Kintzler, op. cit., p. 84. 16 Idem, ibidem.
26
a língua que fixa e determina as ideias poderá adquirir maior precisão, maior generalidade;
mas, ainda que na mecânica não se possa aumentar a força senão diminuindo a
velocidade, estes métodos, que dirigirão o gênio na descoberta das novas verdades,
aumentarão igualmente a força e a rapidez das suas operações”17.
Condorcet, com seu Esboço, vinculou de vez a ideia da perfectibilidade (doravante
indefinida), que ele reconhece ter tomado de Turgot18 e retrabalhado a seu modo, com a
tradição republicana e revolucionária francesa. Se o neologismo inventado por Rousseau
havia sido longamente debatido, a partir dos mais variados pontos de vista, por
praticamente todos os autores do iluminismo francês (mas não apenas francês), a partir
de Condorcet uma certa direção (ou uma certa inclinação política) foi preferencialmente
fixada. Condorcet deu o tom da discussão e acabou por atrair e simultaneamente afastar
de si partidários da República e defensores do Antigo Regime, respectivamente. Na
esteira deste debate, já num contexto de arrefecimento da Revolução e de fortalecimento
das forças conservadoras reunidas em torno de Napoleão Bonaparte, Germaine de Staël
publica, em 1800, o Da literatura considerada em suas relações com as instituições sociais, um
verdadeiro encômio do “sistema de perfectibilidade”, como a autora faz questão de frisar.
A reação é rápida e massiva: em jornais conservadores, em sua maioria católicos,
fervilham artigos hostis à obra de Staël.
Florence Lotterie, lembrando as palavras de Rœderer, sem, no entanto, citá-lo, se refere
a esse momento (em alusão explícita à querela dos antigos e dos modernos) como “a
querela da perfectibilidade”19. “A querela, nos diz a comentadora, é de início uma disputa
17 Condorcet, op. cit., p. 278. 18 Ver, sobretudo, os discursos proferidos (em latim) por Turgot na abertura e no encerramento das sorbônicas de 1750: Anne-Robert-Jacques Turgot, Discours sur les avantages que l’établissement du christianisme a procurés au genre humain e Tableau philosophique des progrès successifs de l’esprit humain, in: ______, Œuvres de Turgot et documents le concernant, v. 1, Paris, Félix Alcan, 1913, p. 194-214, p. 214-35. A título de curiosidade: as sorbônicas eram uma das três teses que os bacharéis eram obrigados a defender presencialmente ao longo de sua licence na Sorbonne. “A origem das sorbônicas, nos explica Bachaumont (a autoria do texto é controversa), vem de um certo cordelier [nome dado aos franciscanos estabelecidos na França] que, tendo sido reprovado em uma das teses, pediu para entrar em disputa e sustentar a discussão contra qualquer um que passasse, a respeito de qualquer assunto, das oito horas da manhã até às oito horas da noite; desde então, todo candidato é obrigado a passar por este exercício, muito conveniente ao peito de um cordelier, mas que se abrandou por aquilo que se chama a sopa; são duas horas de intervalo que se concede ao candidato para almoçar; mas, então, qualquer um sobe ao púlpito e luta para manter a assembleia aquecida; esta espécie de ginástica teológica se renova a cada dois anos por um discurso de gala”, Louis Petit de Bachaumont, Mathieu-François Pidansat Mairobert e Barthélemy-François-Joseph Mouffle d’Angerville, Mémoires secrets pour servir à l’histoire de la république des lettres en France, depuis MDCCLXII jusqu’à nos jours ou Journal d’un observateur, v. 19, Londres, John Adamson, 1794, [§ 16 Juillet 1770], p. 200. 19 Ver Florence Lotterie, Progrès et perfectibilité: un dilemme des Lumières françaises (1755-1814), Oxford, Voltaire Foundation, 2006, p. 137.
27
de palavras, num momento em que se generaliza a constatação de que são numerosas
aquelas que perderam sua inocência durante o episódio montanhês”20. A interpretação
do Terror jacobino como um momento de grave crise da linguagem, segundo nos lembra
Lotterie, fora praticamente unânime no círculo de Coppet, do qual Staël fez ativamente
parte. “A perfectibilidade da espécie humana, nos diz Staël, se tornou objeto de sorrisos
indulgentes e zombeteiros por parte de todos aqueles que encaram as ocupações
intelectuais como uma espécie de imbecilidade do espírito e que levam em conta apenas
as faculdades que se aplicam instantaneamente aos interesses da vida”21.
A referência às “faculdades que se aplicam instantaneamente aos interesses da vida” não
é gratuita. Staël sabe da complexidade de sua tarefa: defender as Luzes, ao mesmo tempo
afastando-as (do ponto de vista político) do Terror jacobino e (do ponto de vista
filosófico) do sensualismo e do materialismo. “A condenação da perfectibilidade,
prossegue Lotterie em sua análise, repousa, com efeito, em parte sobre a condenação da
filosofia das Luzes, restrita, pelas necessidades da polêmica, ao ‘sensualismo’ de Condillac
e Helvétius: antropologia estreita e imoral, afirmam seus inimigos, incapaz de imputar os
progressos do espírito humano a outra coisa que não a busca egoísta da satisfação das
necessidades!”22
Duas críticas exemplares da obra de Staël, determinantes para a consolidação da querela
da perfectibilidade, são as publicadas por Louis de Fontanes e por François-René de
Chateaubriand no Mercure de France, ainda no ano de 1800. Os dois extratos de Fontanes23
e a carta de Chateaubriand a ele endereçada, para além do argumento misógino,
assemelham-se pela estratégia de rebaixar a filosofia dos modernos empoderando o
coração e desvinculando os progressos da ciência (que ambos prontamente reconhecem)
dos progressos morais ou sociais. “[O] primeiro erro [dos partidários do sistema de
perfectibilidade], nos diz Fontanes, vem de que eles confundem incessantemente os
progressos das ciências naturais com os da moral e da arte de governar. [...] Os
procedimentos, os novos instrumentos, sem dúvida conduziram as ciências modernas a
um patamar que de outra forma não poderiam atingir. Disso deve-se concluir que em
20 Florence Lotterie, op. cit., p. 137-8. 21 Germaine de Staël, De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, Paris, Flammarion, 1991, p. 406-7. 22 Florence Lotterie, op. cit., p. 138. 23 Em sua carta a Fontanes, Chateaubriand fala, em nota, de três (e não apenas dois) extratos críticos de seu interlocutor a respeito da obra de Staël. Não localizamos este que seria o terceiro extrato da série, apenas os dois primeiros. É possível, contudo, que o próprio autor tenha se equivocado.
28
todo o resto raciocinamos de forma mais justa que os antigos porque somos melhores
geômetras e melhores físicos? Não, sem dúvida”24. A querela da perfectibilidade, como
se vê, não deve ser pensada de forma apartada da querela dos antigos e dos modernos,
mas, talvez mais adequadamente, como mais um de seus capítulos.
“Evitemos, portanto, prossegue Fontanes, calcular os progressos da razão humana e das
instituições sociais com base nos [progressos] das matemáticas e da física. Algumas artes
forneceram ao homem braços e olhos adicionais para movimentar os corpos e alcançar
as extremidades do céu; mas elas não acrescentaram molas à nossa alma, não
aperfeiçoaram de forma alguma o instinto ou descobriram novos sentimentos. [...] em
tudo aquilo que não concerne às ciências exatas, nada justifica o orgulho da sabedoria
moderna quando ela se pretende superior à sabedoria da antiguidade”25.
Se Fontanes opta por exaltar a eloquência e a poesia dos antigos, “as criações as mais
brilhantes e as mais duráveis”26, Chateaubriand, por sua vez, adotará estratégia diferente:
ao invés de afirmar, como faz Fontanes, que “o coração do homem [...] não muda de
forma alguma”27, permanecendo sempre o mesmo em todas as épocas, Chateaubriand
assentirá à tese staëliana de que o “nosso teatro [dos modernos] é superior ao teatro
antigo; [e que] essa superioridade decorre de um estudo mais aprofundado do coração
humano”28. No fundo, o próprio autor nos diz, Chateaubriand pretende mostrar “como
dois espíritos, partindo de dois pontos opostos, chegam por vezes aos mesmos
resultados”29. O autor, portanto, reconhece a superioridade dos modernos, não apenas
nas ciências naturais, mas também na literatura e no campo da moralidade; mas ao invés
de atribuir esse avanço do conhecimento do coração e da sensibilidade poética à filosofia,
como faz Staël, Chateaubriand afirmará que é à religião e mais especificamente ao
cristianismo que se deve nossa superioridade em comparação com os antigos. “Minha
loucura, reconhece o autor, é ver Jesus Cristo por toda parte, assim como a de Mme. de
Staël é ver a perfectibilidade”30.
24 Louis de Fontanes, De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, par Madame de Staël-Holstein: premier extrait, Mercure de France, n. 1, 1800, p. 21-2. 25 Idem, ibidem, p. 24. 26 Idem, ibidem, p. 22. 27 Idem, ibidem. 28 François-René de Chateaubriand, Lettre a M. de Fontanes sur la IIe édition de l’ouvrage de Mme. de Staël, in: ______, Œuvres complètes de M. le vicomte de Chateaubriand, v. 14, Paris, Ladvocat, Libraire, 1827, p. 285. 29 Idem, ibidem. 30 Idem, ibidem, p. 284-5.
29
Este é, portanto, o pano de fundo sobre o qual se desenrola, nas primeiras décadas do
século dezenove, a discussão a respeito dos progressos do espírito e da perfectibilidade
humana. O debate prossegue31, sobretudo (mas não apenas) no Círculo de Coppet e entre
os Ideólogos, representantes conjuntos de uma espécie de tardo iluminismo ou pré-
positivismo (as fronteiras entre as duas tradições se encontram borradas e em
constituição nesse momento). Num escrito, muito provavelmente de 180532, intitulado
Da perfectibilidade da espécie humana, Benjamin Constant desenvolve os argumentos de sua
amiga Germaine de Staël a respeito do “sistema de perfectibilidade”, numa visada agora
acentuadamente liberal. Num outro, publicado em três memorandos, entre 1833 e 1835,
na Revue Encyclopédique33 e intitulado posteriormente Da doutrina da perfectibilidade, Pierre
Leroux se aventura também no assunto, mas agora de uma perspectiva marcadamente
socialista (o autor é considerado por muitos o inventor do socialismo 34 , inicialmente
concebido apenas em oposição ao que ele nomeia individualismo35).
É possível entrever, a partir destes escritos, o alcance (tanto temporal como ideológico)
e o destino do conceito de perfectibilidade no século dezenove. A respeito de seu destino,
cumpre também enfatizar o papel determinante desempenhado por Augusto Comte no
sepultamento do conceito. Segundo Bertrand Binoche, a “perfectibilidade é, com efeito,
uma palavra da qual não apenas o surgimento se pode datar com precisão – em Rousseau
e Grimm, em 1755 –, mas também o desaparecimento – se se admite que Comte foi o
31 É preciso enfatizar que, mesmo antes da publicação do Da literatura..., alguns outros textos tiveram papel decisivo na constituição do caldo de cultura em que a querela da perfectibilidade, protagonizada por Staël e seus detratores, fora fermentada. A Investigação sobre a justiça política e sua influência na moral e na felicidade, publicada por William Godwin em 1793, é também, ainda que noutra direção, um capítulo importante deste transcurso (boa parte, por exemplo, das reflexões de Benjamin Constant a respeito do assunto vem do diálogo com o texto de Godwin, que o autor verteu para o francês). Ver William Godwin, Enquiry concerning political justice and its influence on morals and happiness, 2 vol., Londres, J. Watson, 1842 e Benjamin Constant, De Godwin et de son ouvrage sur la justice politique, in: ______, Écrits politiques, Paris, Gallimard, 1997, p. 679-88. Entre os Ideólogos, por sua vez, podemos encontrar, em 1799, um texto de Cabanis, publicado no jornal La Décade philosophique, intitulado Carta sobre uma passagem da ‘Décade philosophique’ e em geral sobre a perfectibilidade do espírito humano, em que o autor, chamando a atenção dos editores do jornal, coloca os partidários da perfectibilidade do espírito humano (que ele filia a Bacon, Buffon, Price, Smith, Priestley, Turgot e Condorcet) em franca oposição aos “defensores oficiais dos preconceitos”. Ver Cabanis, Lettre sur un passage de la ‘Décade philosophique’ et en général sur la perfectibilité de l’esprit humain, in: ______, Œuvres philosophiques de Cabanis, v. 2, Paris, PUF, 1954, p. 512-9. 32 Ver Benjamin Constant, Écrits politiques, Paris, Gallimard, 1997, p. 846, nota 1. 33 Ver o “aviso dos editores” em Pierre Leroux, De la doctrine de la perfectibilité, in: ______, Œuvres de Pierre Leroux (1825-1850), v. 2, Paris, Louis Nétré, Éditeur, 1851, p. 2. 34 Ver Bruno Viard, Anthologie de Pierre Leroux: inventeur du socialisme, Paris, Éditions Le Bord de l’Eau, 2007. 35 Ver Pierre Leroux, De l’individualisme et du socialisme, in: ______, De l’égalité, précédé de De l’individualisme et du socialisme, prefácio de Bruno Viard, Genebra, Éditions Slatkine, 1996, p. 39-72.
30
seu coveiro, em 1838, na 48ª lição do Curso de filosofia positiva, depois da qual o termo, ao
menos entre os filósofos, praticamente não parece ter sido mais operante”36.
Binoche se refere à crítica da perfectibilidade indefinida elaborada por Augusto Comte
no quarto tomo de seu Curso de filosofia positiva (obra maior da “carreira científica” do
autor) e à mudança decisiva de vocabulário por ela operada. Ainda em sua 47ª lição,
Augusto Comte, referindo-se às “lacunas especulativas” do Esboço de Condorcet, nos fala
“destas vagas e irracionais concepções de perfectibilidade indefinida, nas quais [a]
imaginação [do autor], desprovida de qualquer guia ou de qualquer freio científicos,
emprestados das verdadeiras leis fundamentais da natureza humana, se entrega à vã
contemplação das esperanças as mais quiméricas e mesmo as mais absurdas”37. Augusto
Comte tem em mente substituir a doutrina da perfectibilidade herdada das Luzes por
uma “teoria positiva do progresso social, que, recusando todo vão pensamento a respeito
da perfectibilidade absoluta e ilimitada, deve naturalmente se reduzir à simples noção
deste desenvolvimento fundamental”38 – desenvolvimento esse que o autor compreende
como o movimento contínuo da sociedade (ou da humanidade).
A querela da perfectibilidade, que expusemos aqui de forma abreviada, foi seguramente
conhecida (apesar de não sabermos em que grau de extensão e de profundidade) por
Augusto Comte, mas prontamente recusada. No entendimento do autor, uma sociologia
dinâmica deve se limitar apenas a “estudar o incontestável desenvolvimento contínuo da
humanidade, [...] sem se pronunciar, de forma alguma, sobre a famosa questão do
aperfeiçoamento da humanidade”39, esta “vaga controvérsia metafísica sobre o aumento da
felicidade do homem nas diversas épocas da civilização”40. A recusa por completo da
querela da perfectibilidade, essencialmente metafísica, logo incompatível com os critérios
epistemológicos de uma verdadeira ciência positiva, se deixa acompanhar, nos escritos
de Augusto Comte, de uma recusa terminológica.
A respeito dos termos desenvolvimento e aperfeiçoamento, Augusto Comte nos diz: “Tem-se
[...] o direito racional de se admitir, em sociologia, a equivalência necessária destes dois
termos gerais, assim como se faz habitualmente, em biologia, no estudo comparativo do
36 Bertrand Binoche, Introduction: perfection, perfectibilité, perfectionnement, in: ______ (ed.), L’homme perfectible, Seyssel, Champ Vallon, 2004, p. 8. 37 CPP, IV, p. 128. 38 Ibidem, p. 154. 39 Ibidem, p. 176, grifo nosso. 40 Ibidem, p. 177.
31
organismo animal. Entretanto, eu devo, assim me parece, persistir em empregar
sobretudo a primeira expressão, que, felizmente, não foi ainda arruinada por um uso
irracional e parece especialmente conveniente a uma destinação científica”41. O cuidado
de Augusto Comte em se desvencilhar de um vocabulário excessivamente desgastado
pelas tradições teológica e metafísica é patente ao longo de toda sua obra. A preferência
pelo termo desenvolvimento se dá, além desta razão, também por um aspecto prático: “ele
indica imediatamente o simples crescimento espontâneo, gradualmente secundado por
uma cultura conveniente, das faculdades fundamentais sempre pré-existentes que
constituem o conjunto de nossa natureza, sem nenhuma introdução qualquer de novas
faculdades”42. A respeito, portanto, do termo aperfeiçoamento, que, cumpre dizer, não
possui tal propriedade, restará ao espírito científico, “sem nenhuma afetação pedantesca,
renunciar a ele essencialmente”, adotando por fim o desenvolvimento “em sua inteira
extensão filosófica, seja científica, seja prática, agora suficientemente definida”43.
Se o Segundo discurso de Rousseau44 pode ser considerado, com razão, a certidão de
nascimento da perfectibilidade, enquanto conceito da filosofia, o Curso de Augusto
Comte deve ser entendido como seu atestado de óbito, porquanto é o autor o responsável
por jogar a última pá de cal sobre ela. A partir de Augusto Comte, o progresso não será
mais falado em termos da “perfectibilidade do espírito humano”, mas apenas em termos
do “desenvolvimento da humanidade” (pequena mudança em termos de vocabulário,
mas uma gigantesca mudança em termos filosóficos). Se estivermos corretos em nossa
hipótese, segundo a qual, reafirmamos, o progresso é a grande questão filosófica do
republicanismo francês, é de se esperar que uma mudança conceitual desta monta no
primeiro tenha graves implicações nos contornos ideológicos do segundo. Num certo
41 Ibidem, p. 180. 42 Ibidem. 43 Ibidem. Em nota de suas Considerações sobre o poder espiritual, Augusto Comte já havia assinalado: “A imperfeição da linguagem obriga-me a empregar as palavras aperfeiçoamento e desenvolvimento, das quais a primeira, e mesmo a segunda, conquanto mais clara, recorda ordinariamente ideias de bem absoluto e de melhoramento indefinido que não tenho a intenção de exprimir. Estas palavras apresentam, para mim, a simples finalidade científica de designar, em física social, certa sucessão de estados do gênero humano, efetuando-se segundo leis determinadas; trata-se de um uso exatamente análogo ao que delas fazem os fisiologistas no estudo do indivíduo, para indicar uma série de transformações a que não ligam, normalmente, qualquer ideia necessária de melhoramento ou de deterioração contínuos”, CPS, p. 200. Já não se esboça aqui, por detrás da escolha de vocabulário feita por Augusto Comte, a separação entre “fato” e “valor” que fez fortuna nos longos e acalorados debates da filosofia da ciência desde o final do século dezenove? Para uma recapitulação do problema e uma visão contemporânea acerca dele, ver Hilary Putnam, The collapse of the fact/value dichotomy and other essays, Cambridge, Harvard University Press, 2002. 44 Ver Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, in: ______, Œuvres complètes, v. 3, Paris, Gallimard, 1964, p. 110-94.
32
sentido, para Augusto Comte, a ideia da perfectibilidade indefinida dá sustentação
filosófica a uma ideia de Revolução que flerta com a anarquia, uma vez que se limita
apenas a destruir o Antigo Regime e não se empenha em construir um novo sistema em
seu lugar.
Para Augusto Comte, é preciso frisar, o desenvolvimento da sociedade não é, sob
hipótese alguma, indefinido, mas limitado pelas leis da sociologia, que ditam o seu
crescimento. Com efeito, impõem-se barreiras, de saída, à própria ação política, que deve
ser, segundo o autor, sempre limitada, “abstração feita da determinação efetiva [destes
mesmos limites]”45 (isto é, sem que se estabeleça a priori quais são estes limites e qual o
grau de limitação que impõem à ação humana). A esta limitação (inerente ao homem) de
agir sobre a sociedade de maneira arbitrária, dá-se o nome, na sociologia comtiana, de
“princípio dos limites gerais de toda ação política”46. Este princípio é, na visão do autor,
uma “decorrência inevitável da própria existência de leis naturais”47, cuja abrangência
Augusto Comte amplia, no interior de sua enciclopédia positivista, de forma a acomodar
também (seguindo Montesquieu e Condorcet) o estudo da sociedade.
A construção, portanto, do novo sistema político, que deverá substituir o antigo
(necessária e inevitavelmente destruído pelos revolucionários franceses), deve partir do
conhecimento das leis sociológicas. As leis sociológicas, entretanto, dizem respeito não
apenas ao movimento contínuo da sociedade, mas também às suas condições de
existência. Se a dinâmica social diz respeito ao progresso, a estática social dirá respeito à
ordem. Ordem e Progresso, segundo assinala nosso autor (no início ainda do quarto
tomo de seu Curso) não poderão mais, na contemporaneidade, ser pensados de forma
separada. “Nenhuma ordem real pode mais se estabelecer, nem sobretudo durar, se não
for plenamente compatível com o progresso; nenhum grande progresso poderia ter
efetivamente se realizado se não tendesse finalmente à evidente consolidação da
ordem”48. É este, pois, o legado filosófico que Augusto Comte deixa aos pais fundadores
da Terceira República, que, não nos enganemos, o assimilam e reprocessam ao seu modo.
45 CPP, IV, p. 182. 46 Ver CPP, IV, p. 181 e ss. 47 CPP, IV, p. 182. 48 Ibidem, p. 31.
33
O presente trabalho, é preciso dizer, se inscreve (ou anseia se inscrever) numa certa
tradição de estudos republicanos, iniciada na filosofia contemporânea por autores como
Hannah Arendt49 e Claude Lefort50, ainda nas primeiras décadas da segunda metade do
século vinte; secundada, então, por trabalhos seminais de historiadores do Renascimento
como Hans Baron51 e John Pocock52; e desenvolvida contemporaneamente por autores
do chamado “revivalismo republicano” (ou neorrepublicanismo), como Quentin
Skinner53, Philip Pettit54, Maurizio Viroli55 e Jean-Fabien Spitz56. No Brasil, seguimos a
senda aberta por Newton Bignotto, Sérgio Cardoso, Heloisa Starling e tantos outros, que
já há algumas décadas têm contribuído, coletivamente, para a consolidação dos estudos
republicanos no país. Seguimos, particularmente, a indicação teórica apresentada por este
grupo de estudiosos em seu Matrizes do republicanismo57, que, num certo sentido (esta é a
nossa interpretação), retoma, aprofunda e amplia o projeto teórico de Pocock.
Retoma-o, porquanto, apoiando-se em Maquiavel (o grande autor republicano para os
estudos contemporâneos), busca compreender na modernidade as transformações
sofridas pelo ideário republicano à luz de suas formulações renascentistas. Aprofunda-o,
uma vez que, ao retomar os casos já estudados por Pocock (isto é, a Florença
renascentista, a Inglaterra e os Estados Unidos revolucionários), o faz numa outra
perspectiva (mais próxima da filosofia, arriscaríamos dizer). E, finalmente, o amplia, na
medida em que, por um lado, se convence da necessidade de resgatar as raízes clássicas
do humanismo renascentista (operando assim um retorno consciente à Roma republicana
e às repúblicas gregas); e, por outro lado, se decide a cruzar a Mancha e a adentrar o
continente em sua investigação a respeito do republicanismo moderno (chegando, por
fim, à França revolucionária).
49 Ver Hannah Arendt, Sobre a revolução, São Paulo, Companhia das Letras, 2016. 50 Ver Claude Lefort, Le travail de l’œuvre: Machiavel, Paris, Gallimard, 1972. 51 Ver Hans Baron, The crisis of the early Italian Renaissance: civic humanism and republican liberty in an age of classicism and tyranny, Princeton, Princeton University Press, 1955. 52 Ver John G. A. Pocock, The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic republican tradition, Princeton, Princeton University Press, 1975. 53 Ver Quentin Skinner, The foundations of modern political thought, 2 vol., Cambridge, Cambridge University Press, 1978 e Liberty before liberalism, Cambridge, Cambridge University Press, 1998. 54 Ver Philip Pettit, Republicanism: a theory of freedom and government, Oxford, Oxford University Press, 1997. 55 Ver Maurizio Viroli, Republicanism, Nova Iorque, Hill and Wang, 1999. 56 Ver Jean-Fabien Spitz, La liberté politique: essai de généalogie conceptuelle, Paris, PUF, 1995 e Le moment républicain en France, Paris, Gallimard, 2005. 57 Ver Newton Bignotto (org.), Matrizes do Republicanismo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2013. Consultar também, do mesmo autor, Pensar a República, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000 e Sérgio Cardoso (org.), Retorno ao republicanismo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004, trabalhos que, de certa forma, “prepararam o terreno” para a chegada do primeiro.
34
A busca por novos horizontes para o debate político contemporâneo (polarizado, talvez
excessivamente, em torno do liberalismo e do marxismo ao longo do último século)
orienta, grosso modo, esse movimento de retomada da tradição de pensamento
republicano, ao qual buscamos aqui nos unir (e, por conseguinte, nos orienta também em
nosso trabalho). Como já dissemos, Maquiavel e o Renascimento italiano representam
uma espécie de “epicentro” deste movimento, que em seguida se espraia,
esquematicamente, na direção da antiguidade clássica (em busca de suas raízes) e da
modernidade (buscando compreender seus desdobramentos). A era das revoluções
burguesas, no interior desse quadro, pode ser entendida, cronologicamente, como um
ponto de chegada: o momento em que a tradição republicana, apreendida do passado
pelos revolucionários, seja a partir dos antigos, seja a partir dos renascentistas, se
consolida como uma espécie de “gramática da liberdade”, durante o embate travado
contra as diferentes formas de tirania da época.
Nosso trabalho, portanto, pretende se inscrever nesse campo de pesquisa delimitado
pelas obras acima mencionadas como uma contribuição ao estudo do republicanismo na
modernidade; penetrando (e com isto já buscando ligações com a contemporaneidade) o
século dezenove francês, mas sem deixar de considerar suas raízes iluminista e
revolucionária do século precedente. A hipótese que nos guiará ao longo de toda nossa
investigação é a de que o republicanismo moderno (considerando-se, em primeira
aproximação, o caso francês) obedece a uma “deriva ideológica” ao longo de sua
consolidação. Se, na França, a Primeira República surge, ao final do século dezoito, num
polo revolucionário, a Terceira República se consolidará, ao final do século dezenove,
num polo conservador58.
É sob a República (e em nome da República, ousaríamos dizer) que se dão dois dos
maiores eventos (mais contraditórios entre si) da história política francesa: o regicídio,
em 1792, e a destruição da Comuna de Paris, em 1871. Simbolicamente, poderíamos
localizar também em torno destes dois marcos temporais (sem grandes distorções
históricas) o início e o fim de um processo, quase secular, de consolidação da República,
enquanto regime de governo, na França. Seguindo as pistas historiográficas fornecidas
58 Para uma interpretação da Terceira República que se alinha à nossa hipótese, consultar Marion Fontaine, Frédéric Monier e Christophe Prochasson (ed.), Une contre-histoire de la IIIe République, Paris, Éditions La Découverte, 2013. Para um trabalho de conjunto a respeito dos “fundadores intelectuais” da Terceira República, consultar Sudhir Hazareesingh, Intellectual founders of the Republic: five studies in nineteenth-century French political thought, Oxford, Oxford University Press, 2001.
35
por Claude Nicolet, para quem “uma história ideológica séria da República na França
passa necessariamente pela referência ao positivismo”59, buscamos aqui compreender,
em primeiro lugar, como a filosofia positiva de Augusto Comte se inscreve na tradição
republicana e revolucionária francesa, e, em segundo lugar, de que maneira (a partir das
mudanças filosóficas por ela operadas com respeito à tradição iluminista que a antecedeu)
ela pode ter contribuído para transformar a República numa forma política conservadora.
59 Claude Nicolet, op. cit., p. 188.
36
1. Augusto Comte e o positivismo: um problema de exegese
1.1. A escrita comtiana
Augusto Comte escreveu muito e escreveu mal. Se o filósofo de Montpellier tivesse se
dedicado apenas a escrever muito ou apenas a escrever – como disse certa vez Ernest
Renan60 – em “mal francês”, ainda assim, nos parece, a recusa de seus textos seria
compreensível. As duas proezas combinadas, entretanto, tornam o repúdio aos seus
escritos quase aconselhável. Sua prosa é dura, agreste, impenetrável. Períodos longos,
longamente meditados, carecem de travessões, parênteses ou mesmo pontos finais.
Reformulá-los, encurtando-os ou desmembrando-os, não parece, aos olhos do autor,
uma necessidade, tampouco uma vantagem. A escrita comtiana não tem respiros, parece
se dar num único fôlego. Comte tem pressa em escrever: a pressa de quem não duvida,
nem por um instante, ter diante de si uma missão tanto colossal quanto urgente61. Diante
60 A citação se dá de forma indireta, como uma menção no corpo do texto de Charles de Rouvre: “Experimentei uma espécie de aversão ao ver a reputação exagerada de Augusto Comte, alçado a grande homem de primeira ordem por ter dito, em mal francês, aquilo que todos os espíritos científicos, há duzentos anos, viram tão claramente quanto ele!...”, Ernest Renan, apud Charles de Rouvre, Auguste Comte et le catholicisme, Paris, Les Éditions Rieder, 1928, p. 21, grifo nosso. Renan parecia mesmo empenhado na tarefa de maldizer Augusto Comte. Noutra passagem que pudemos encontrar, nos diz: “Eu acabei por acreditar que M. Comte será um emblema no futuro e que ocupará um lugar importante nas futuras histórias da filosofia. Isto será um erro, eu reconheço, mas o futuro cometerá tantos outros erros”, apud Paul Dupuy, Le positivisme d’Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1911, p. 1. 61 Para usar uma expressão de Henri Gouhier, um dos grandes estudiosos da vida e do pensamento de Augusto Comte, nosso autor toma para si a grande “missão do século dezenove”. Ver Henri Gouhier, La jeunesse d’Auguste Comte, v. 1, Paris, Vrin, 1933, p. 13 e ss. Com respeito ao aspecto religioso da “missão” dos reformadores sociais do dezenove francês, pensamos ser instrutivo consultar os trabalhos de Alphonse Aulard, Le culte de la raison et le culte de l’être suprême (1793-1794): essai historique, Paris, Félix Alcan, 1892, de Albert Mathiez, Les origines des cultes révlutionnaires (1789-1792), Paris, Georges Bellais, 1904 e de Michel Vovelle, 1793, la Révolution contre l’église: de la raison à l’être suprême, Bruxelas, Éditions Complexes, 1988. Tais estudos se propõem a
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da pressa, qualquer preocupação estilística se reduz a mera futilidade, distração ou lazer
caprichoso.
Comte reconhece, no prefácio do seu Sistema de política positiva (obra de maturidade em
que afirma instituir a religião da Humanidade), que até então nunca se preocupara com a
forma e a apresentação de seus textos. Refere-se, sobretudo, ao seu Curso de filosofia positiva,
obra maior daquilo que o próprio autor denomina sua primeira “carreira”. Envaidecido
e assoberbado, como de costume, nos faz saber da extrema precocidade de seus trabalhos
intelectuais. Precocidade, segundo narra, que lhe possibilitou a realização de duas
carreiras especiais ao longo da vida: na primeira delas, o próprio filósofo nos diz, seria
Aristóteles; na segunda, São Paulo. O tom de bazófia e de autoelogio acompanha os
escritos de Augusto Comte como a sombra segue um corpo.
Ainda que emancipado do jugo teológico no final da infância e prontamente iniciado nos
estudos positivos – o que, por sua vez, conferiu maior celeridade à sua “transição
metafísica” –, Comte nos sugere que sua segunda carreira não teria sido possível “sem a
enérgica resolução que [lhe] fez sacrificar toda vaidade literária em favor da necessidade
maior de terminar a tempo [sua] imensa tarefa objetiva”62. Sem isto, a redação do Curso,
que durou doze anos, teria durado, estima Comte, pelo menos mais seis. A decisão de
não mais revisar e reescrever os seus textos (como havia admitido fazer com seus escritos
de publicista), entregando-os ao prelo na forma de sua primeira redação, é, portanto,
deliberada e intencional. “Essa única precaução me teria preservado das principais
reprovações literárias endereçadas à minha obra fundamental por juízes muito pouco
atentos às explicações especiais de seu último prefácio” 63 . Discretamente ofendido,
Comte desafia os críticos de seu estilo a julgá-lo doravante a partir de seus opúsculos de
descortinar os aspectos religiosos da Revolução, no final do século dezoito, que são, em grande medida, legados aos reformadores do dezenove. Quem, pela primeira vez, sugere uma aproximação entre a religião da Humanidade de Augusto Comte e os cultos revolucionários é Henri Gouhier. Consultar, uma vez mais, Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 5-13. 62 SPP, I, Prefácio, p. 6-7. Nota técnica: os quatro tomos do Sistema possuem, cada um, um prefácio com numeração independente. À exceção do primeiro tomo, entretanto, em todos os demais, a paginação dos prefácios aparece em algarismos romanos, de forma a distinguir suas páginas das do corpo do livro, cuja paginação é feita com algarismos arábicos. No primeiro tomo, em particular, a paginação em algarismos romanos foi reservada à dedicatória da obra, fazendo com que o prefácio repetisse, em relação ao corpo do livro, o uso de algarismos arábicos (gerando, portanto, ambiguidade na hora de citar suas páginas). O mesmo problema ocorre nos casos do “Apêndice geral” e da “Tábua analítica” da obra, inseridos ao final de seu quarto e último tomo, cuja paginação também é independente e feita também em algarismos arábicos, a exemplo do corpo do livro. Nesses três casos, portanto, a fim de se evitar ambiguidades, explicitaremos nas notas (como fizemos aqui) se tratar do “Prefácio” do primeiro tomo, do “Apêndice geral” ou da “Tábua analítica” do quarto tomo. Não havendo indicação alguma, deve-se supor que a paginação se refere ao corpo do livro. 63 SPP, I, Prefácio, p. 7.
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filosofia social, reimpressos e inseridos ao final de sua nova obra. “Meus primeiros
opúsculos, reimpressos ao final do presente tratado, indicarão se o talento de escrever
me é realmente interdito quando me conformo às práticas que exige sempre o
aperfeiçoamento do estilo”64. Ainda que conservando traços comuns aos seus escritos de
maior envergadura, somos forçados a reconhecer que seus opúsculos de juventude (e
alguns outros escritos de intervenção política e de vulgarização da fé positivista) são
menos mal-ajambrados que suas obras maiores. A forma e a assinatura, contudo, nos
parecem ser essencialmente as mesmas.
Ao ler Augusto Comte, somos, pois, tomados pela impressão de um autor febril,
obsessivo, altamente sistemático e metódico – para não dizer maníaco 65 . A escrita
comtiana é não apenas extensa e volumosa, mas também repetitiva e fastidiosa. Comte
parece sofrer, em alguma medida, do mesmo mal saint-simoniano da escrita de
“programas e programas de programas”66 que tendem de forma perene a adiar sua plena
realização. Ideias são apresentadas sempre com a promessa de complementação futura.
Promessa que, para infortúnio do leitor, sempre se cumpre por meio da recapitulação –
e que não cessa de reaparecer. Pensamento que se constrói no ato mesmo da escrita.
Escrita, por sua vez, que nunca registra um pensamento acabado, mas o próprio ato de
pensar em movimento. Em jatos, o autor nos apresenta suas ideias, como um professor
de aritmética que lança, em modo frenético, suas equações sobre o quadro-negro. Há
certa displicência em relação ao leitor. Apesar do tom eternamente professoral e da
pretensão insistentemente pedagógica67 (por vezes quase pastoral) que o acompanham
até o final de sua vida, Augusto Comte, na maior parte das vezes, se porta mesmo como
64 Ibidem. 65 Augusto Comte chegou mesmo a ser diagnosticado, pelo Dr. Esquirol, como tendo “mania”. “Segundo Esquirol, mania era caracterizada por um ‘delírio generalizado’, uma ‘superexcitação de todas as funções’ e uma inabilidade de se concentrar: ‘Porquanto as relações naturais dos maníacos com o mundo exterior se encontram rompidas, todas as impressões que o paciente recebe são dolorosas; elas o irritam, o exasperam e o conduzem à violência e à fúria, especialmente se alguém nega os seus desejos, que são transientes na mesma medida em que enérgicos. A desordem da inteligência envolve a perversão dos afetos morais, de onde surgem a desconfiança, o distanciamento e o ódio por qualquer um que se aproxime do maníaco’”. Mary Pickering, Auguste Comte: an intellectual biography, v. 1, Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 384. O caso clínico de Augusto Comte (em cotejo com o de seu mestre e posterior desafeto Henri de Saint-Simon) foi objeto de estudo de Georges Dumas, numa série de artigos depois convertidos em livro. Ver Georges Dumas, La folie d’Auguste Comte, Revue de Paris, n. 5, 1897, p. 321-45, L’état mental d’Auguste Comte, Revue philosophique de la France et de l’étranger, n. 45, p. 30-60, 151-80, 387-414 e, finalmente, Psychologie de deux messies positivistes: Saint-Simon et Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1905. 66 EJ, p. 20. O comentário é de Paulo de Berrêdo Carneiro e Pierre Arnaud, no prefácio da obra. 67 Não nos esqueçamos que a principal obra científica de Comte se intitula “curso” e que seus capítulos são apresentados sempre na forma de “lições”. De fato, o Curso de filosofia positiva foi ministrado em aulas durante alguns anos para um público bastante seleto, tanto na casa do filósofo, na rua Monsieur-le-Prince, número 10, como no prestigiado Athénée de Paris. Ver Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 365 e ss., 427-8.
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um obscuro geômetra que, sofregamente, demonstra suas fórmulas diante de uma plateia
de alunos atônitos e confusos68. A opacidade dá vez ao desagrado.
Em carta a seu amigo Valat, datada de 8 de setembro de 1824, o futuro pontífice da
religião da Humanidade responde à última e “menos importante” das objeções de seu
conterrâneo (a que concerne ao seu estilo) com marcada indiferença e ares sobranceiros:
“Eu te diria que, a esse respeito, não posso atribuir valor algum a nenhuma opinião, seja
favorável, seja desfavorável; visto que se necessário fosse escutar a todos não se teria
estilo algum”69. Jacta-se, em seguida, de ter recebido os cumprimentos elogiosos de
eminentes literatos (ou ao menos assim por ele considerados) e se mostra satisfeito se seu
estilo for tido como superior ao dos “puros retóricos” e de mesmo nível que o de alguns
dos homens de ciência que mais admirava: Berthollet, Bichat e Cuvier. “Eu creio ter o
estilo próprio ao assunto, isto é, o estilo científico, e não aquele recomendado pelos
fazedores de retórica. [...] Eu escrevo sob a inspiração do meu pensamento e sem
nenhuma espécie de arte, que isto seja bom ou mau, eu posso te garantir (visto que disso
tenho profunda convicção) que me seria absolutamente impossível escrever de uma outra
maneira senão aquela que o momento me dita”70. Termina expondo sua convicção de
que o estilo, no fundo, é como uma assinatura do autor. Tão variegados, portanto, são
os estilos quanto o são os homens. Não se preocupa em mudar o seu, pois não se
preocupa em mudar a si mesmo. Afinal, “le style est l’homme même”71.
Três meses depois, aos 25 de dezembro de 1824, Comte torna a tangenciar esse mesmo
tema em suas conversações epistolares com Valat. “Tu não poderias acreditar quanto, em
uma ordem tão nova de ideias, sou contrariado a cada instante pela língua, pela
necessidade de novas expressões, livres do caráter teológico e metafísico sob a influência
do qual são formadas nossas línguas. [...] De resto, isto se tornará mais fácil quando a
política for geralmente concebida como uma ciência positiva e liberta de toda ligação
com o pedantismo literário: permitir-se-á, então, sem dúvida, as mesmas licenças que nas
68 A metáfora do “professor de matemática” que aparece ao longo de todo esse parágrafo a tomamos emprestada de Ernest Seillière, a quem fazemos aqui justiça transcrevendo o trecho que nos inspirou: “É certo que, de primeira, ele escrevia bastante mal e que prejudicou suas lições filosóficas ao imprimir, para ganhar tempo, a primeiríssima redação de seu Curso. Ele então expôs sua sociologia, pouco depois, como um professor de matemáticas especiais demonstra teoremas diante do quadro-negro (e se sabe que esse foi, durante muito tempo, o seu ganha-pão). Sua segunda obra, o Sistema de política positiva, é ainda mais cacográfica”. Ernest Seillère, Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1924, p. 11. 69 CG, I, p. 130. 70 Ibidem. 71 Ibidem, p. 131.
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outras ciências, nas quais não nos constrangemos por criar uma nova palavra quando há
necessidade constatada”72. Vê-se daí o caráter de vanguarda que o próprio autor atribui
ao conjunto de seus escritos – vanguardismo que legitimaria sua excentricidade literária.
Seus escritos destoariam da maior parte dos escritos de seus contemporâneos justamente
em razão de seu caráter inovador e científico. No fundo, podemos ver, Auguste Comte
acredita sofrer as tais reprovações por conta apenas de sua superioridade intelectual; uma
última reação dos espíritos teológico e metafísico diante de sua irrefragável superação
pelo espírito positivo.
É curioso notar, contudo, que, apesar de divergirem quanto ao diagnóstico de fundo,
seus detratores e apologistas não deixarão de apontar para a dificuldade constitutiva da
escrita comtiana. Os primeiros a censurarão de modo severo, como vimos fazer acima
Renan. Os segundos encontrarão justificativas sutis para sua complexidade e aridez
estilística, tentando desembaraçá-la da acusação de ser mera algaravia. “Uma tal leitura,
nos diz Léon de Montesquiou (um positivista do início do século vinte, ligado à Action
Française), desgosta no primeiro contato. Reportaram-me, mas não pude verificar o fato,
que havia na Biblioteca Nacional um livro de Comte com essas palavras na margem,
assinadas por Taine: ‘É incompreensível, eu renuncio a ir adiante’. Se o diligente, o
consciencioso Taine, habituado como era aos duros trabalhos do espírito, pôde, todavia,
lançar esse grito de impaciência, o que pensará então o simples leitor de Comte?
Provavelmente, ele pensará que Taine tinha razão e fechará, após as primeiras páginas, o
livro começado”73. Aos olhos de Montesquiou, contudo, “não há, em Augusto Comte,
nada de incompreensível”. Tanto Taine quanto Renan (ou qualquer outro de seus críticos
desajuizados) apenas não teriam sido capazes de romper “uma casca tão resistente” para
poderem finalmente chegar “à seiva abundante e fecunda”74 contida em seu interior.
A metáfora do professor de matemáticas e essa agora, de Montesquiou, da casca e da
seiva deixam-se acompanhar, assim pensamos, da descrição que faz Thomas Carlyle (um
dos responsáveis pela recepção e difusão do saint-simonismo e do primeiro positivismo
na literatura inglesa pré-vitoriana 75 ) da escrita de seu estrambólico personagem, o
professor Teufelsdröckh. “De modo geral, o Prof. Teufelsdröckh não é um escritor
72 Ibidem, p. 150. 73 Léon de Montesquiou, Le système politique d’Auguste Comte, Paris, Nouvelle Librairie Nationale, s/d., p. vi. 74 Idem, ibidem. 75 Ver Friedrich Hayek, The counter-revolution of science: studies on the abuse of reason, Glencoe, The Free Press, 1952, p. 157.
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cultivado. Das suas sentenças, talvez não mais do que dezenove permaneçam de pé sobre
as suas próprias pernas; as demais se encontram num estado deveras oblíquo, sustentadas
por escoras de parênteses e travessões, ou ainda com uma ou outra porcaria dependurada;
algumas até mesmo se desfazem em esparramo pelos cantos, de forma modorrenta, assaz
desengonçadas e desmembradas”76. Apesar de mirar em Hegel e no idealismo alemão,
muito mais do que em Comte e no positivismo francês, acreditamos que Carlyle faz
encarnar em Diógenes Teufelsdröckh uma espécie de espírito difuso da época. Uma
época que vê surgir um novo tipo de intelligentsia na Europa: a dos escritores medíocres;
dos literatos cientistas; dos savants cultivados não mais nas letras clássicas (herança dos
humanistas que séculos atrás lhes servia de esteio), mas na ciência dura que viria a ocupar,
e cada vez mais, o seu lugar de prestígio nas nascentes sociedades modernas77. Comte,
embora não seja Teufelsdröckh, se insere (ainda que a contrapelo) no quadro em que ele
figurativamente está representado.
Não é o caso de ensaiarmos aqui uma explicação sociológica para o advento do
positivismo ou mesmo das figuras intelectuais da mesma geração78 de Augusto Comte,
ainda nas primeiras décadas do século dezenove francês. É sabido, contudo, e não
poderíamos deixar de mencionar, que a formação de Comte se deu nas salas de aula da
Escola Politécnica. O ancien élève de l’École Polytechnique, forma segundo a qual o próprio
autor referiu-se a si mesmo durante muitos anos, é, portanto, um dos primeiros frutos
intelectuais da reforma educacional pela qual passara a França desde a Convenção, em
179479. Os convencionais franceses, imbuídos do espírito de proteção nacional, fundam
a Escola Politécnica – bem como uma série de novas outras instituições de ensino – para
a formação e treinamento de engenheiros civis e militares80. Augusto Comte, portanto,
escreve com o refinamento de quem foi educado para construir pontes e minerar
76 Thomas Carlyle, Sartor Resartus, Oxford, Oxford University Press, 1987, p. 24. 77 A respeito do papel da ciência na fundação do Estado francês moderno, ver Nicole e Jean Dhombres, Naissance d’un nouveau pouvoir: sciences et savants en France (1793-1824), Paris, Payot, 1989. Para a contribuição da Escola Politécnica nesse processo, consultar Janis Langins, La République avait besoin des savants: les débuts de l’École polytechnique, l’École centrale des travaux publics et les cours révolutionnaires de l’an III, Paris, Belin, 1987 e Bruno Belhoste, La formation d’une technocratie: l’École Polytechnique et ses élèves de la Révolution au Second Empire, Paris, Belin, 2003. Para uma história geral da Escola Politécnica, consultar as obras homônimas de Ambroise Fourcy, Histoire de l’École Polytechnique, Paris, Belin, 1987 e de Gaston Pinet, Histoire de l’École Polytechnique, Paris, Librairie Polytechnique Baudry et Cie., 1887, ambos ex-bibliotecários da escola. 78 Para uma visão de conjunto do tema, consultar Alan Spitzer, The french generation of 1820, Princeton, Princeton University Press, 1987, que se arrisca a retomar, como ele próprio diz (relembrando as palavras de Pierre Nora), a “noção ilusória e necessária” de geração, para tratar das transformações culturais, políticas e socioeconômicas da França imperial reconvertida agora à monarquia por meio da Restauração. 79 Ver Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 23. 80 Idem, ibidem.
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montanhas. A dureza de seus escritos reflete a dureza do pensamento prático 81 . O
desprezo pela abstração inútil – de enfiada, o desprezo pela metafísica, eternamente a
soçobrar – nunca fora ocultado nas obras de Augusto Comte, aparecendo amiúde
afirmado com todas as letras.
Comte seguramente recusa o terreno pantanoso e cediço da metafísica, bem delimitado
e sinalizado algumas décadas antes por Kant. Busca, ao contrário, um terreno firme no
qual possa erigir uma filosofia que se sustente. Como bom engenheiro, Augusto Comte
dispensa os instrumentos tradicionais da filosofia e filosofa apenas com pá e carriola.
Nesse tocante, a filiação arcaica da palavra “positivo” (que adjetiva a filosofia comtiana)
com o ponere latino82 nos aparece com significação redobrada. A exemplo dos antigos
maçons83 – para os quais poser significava algo como “pôr as pedras sobre o solo de
maneira que lá permaneçam” –, Augusto Comte nos parece preocupado a todo momento
com a estabilidade e solidez de seu edifício intelectual. Isso se reflete, como acima
mencionado, em sua busca por um vocabulário adequadamente científico. Termos
fluidos e viciosamente desgastados pelas tradições teológica e metafísica devem ser a todo
custo evitados e substituídos por tijolos de textura científica – forma e matéria se
encontram, determinando-se mutuamente.
O caráter monumental e extremamente árido do corpus comtiano não é aqui aludido,
como se poderia a princípio pensar, com o intuito único de suscitar piedade no leitor em
relação a seu dedicado exegeta. Se o fazemos – ainda que, de maneira inconfessa (e mal
disfarçada), desejosos de compaixão por nossa tarefa inglória – é porque acreditamos
haver para isso uma razão primordial. A tradição de leitura e de interpretação dos textos
filosóficos, acostumada com certos padrões de forma e de conteúdo relativamente bem
assentados ao longo dos tempos, tende em alguns casos a ir mais longe do que o leitor
81 Não se deve pensar, contudo, que a formação recebida por Augusto Comte na Escola Politécnica fosse deficitária do ponto de vista teórico. Ao contrário, boa parte dos seus mestres estava na “linha de frente” da ciência teorética de seu tempo (e mesmo aqueles que se dedicavam majoritariamente à ciência experimental representavam o que havia de melhor na França e na Europa do período). Não obstante, a orientação curricular da escola voltava seus alunos muito mais à aplicação da ciência do que à sua produção propriamente dita. 82 “Comte não inventou a palavra ‘positivo’. Derivada de ponere, ela esteve em uso desde 1300 para descrever algo explicitamente ‘estabelecido’ (laid down). O significado de ‘relacionado a fatos’ data do século dezesseis, ao passo que seu uso comum em oposição a ‘metafísico’ tem origem no século dezoito”. Terence Wright, The religion of Humanity: the impact of Comtean positivism on Victorian Britain, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. 18. 83 A referência para todo esse parágrafo é a análise de Angèle Kremer-Marietti a respeito do “modelo da ciência positiva”, que, até onde nos foi dado saber, é a investigação mais cuidadosa e completa no que concerne ao amadurecimento terminológico do positivismo. Ver Angèle Kremer-Marietti, Le concept de science positive: ses tenants et ses aboutissants dans les structures anthropologiques du positivisme, Paris, L’Harmattan, 2007, p. 15 e ss.
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comum, negando a Augusto Comte não apenas a leitura de seus escritos, mas também
um lugar no panteão da filosofia. Pensamos ser Augusto Comte um exemplo
paradigmático do “filósofo maldito”. Seu pensamento não foi apenas marginalizado e
obscurecido no debate público, mas sobretudo no interior da própria academia. Por que
razão o maior nome da filosofia francesa do dezenove – e estamos cada vez mais
convencidos de que ele o é – teria sido completamente esquecido e desprezado?
Parece haver, aos nossos olhos, um descompasso entre a fortuna crítica do positivismo
nos meios eruditos e o alcance e amplitude de sua influência nos mais variados campos
da atividade intelectual. A fundação da sociologia e o impulso decisivo por ela conferido
à fundação das ciências sociais em geral; a fundamentação epistemológica da enciclopédia
positivista que, em grande medida, serve de esteio até os dias de hoje às ciências naturais
(e que encontra eco no, assim chamado, “positivismo lógico” do círculo de Viena84); a
influência (ainda hoje mal elucidada) sobre o que veio posteriormente a se chamar
“ciência econômica”; e, por fim, a fusão conceitual entre o positivismo e o positivismo
jurídico85 (a princípio coincidentes apenas quanto à sua raiz etimológica), nos levam a
pensar que a filosofia de Augusto Comte foi até então muito mal aquilatada pelos mui
judiciosos intérpretes e historiadores da filosofia. Um elogio do positivismo, sob suas
mais variadas faces, segue sendo, aos nossos olhos, um completo despropósito. Uma
defesa intelectual de suas ideias, contudo, nos parece não apenas aconselhável, mas
também necessária à própria compreensão dos tortuosos caminhos seguidos pela
filosofia (eternamente em crise) na contemporaneidade. Se Comte escreveu mal,
pensamos que ele não tenha sido melhor lido.
1.2. As leituras do positivismo
Nos parágrafos precedentes, esforçamo-nos em apresentar um Comte excessivamente
prolixo e obscuro como causa primeira dos problemas exegéticos que acreditamos cercar
84 Uma boa introdução ao assunto é o livro editado por Alfred Jules Ayer (ed.), Logical positivism, Glencoe, The Free Press, 1963, que conta – para além de uma introdução e de um artigo escritos pelo próprio editor – com textos seminais dos principais nomes associados ao Círculo de Viena, como Moritz Schlick, Rudolf Carnap, Hans Hahn, Otto Neurath e Friedrich Waismann. 85 Para nós constitui fato notável que a divisão que faz Hans Kelsen (um dos maiores nomes, se não o maior, da filosofia do direito no século vinte) com respeito à “ciência jurídica” em sua obra fundamental, a Teoria pura do direito, seja praticamente uma cópia-carbono da que havia feito Augusto Comte (sob o patrocínio de Blainville) num primeiro momento para a biologia e num segundo momento para a sociologia, ainda na primeira metade do século dezenove. A “estática jurídica” e a “dinâmica jurídica” kelsenianas fazem ecoar no direito a “estática social” e a “dinâmica social” comtianas instituídas no campo da sociologia. Ver Hans Kelsen, Teoria pura do direito, São Paulo, Martins Fontes, 2009. p. 121 e ss., 215 e ss., e CPP, IV, p. 156 e ss., 170 e ss.
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sua obra. A partir de agora, nosso objetivo consistirá em promover uma espécie de
recenseamento, bastante esquemático, das diferentes linhas interpretativas (e seus
respectivos equívocos) que entendemos haver com respeito aos escritos do filósofo. Se
lá focalizamos os problemas de escrita, aqui focalizaremos os problemas de leitura.
Temos consciência de que não é privilégio da escrita comtiana nem a fria recepção dos
meios eruditos nem os comentários e interpretações descabidas e exageradas a seu
respeito. Pensamos, contudo, que o caso de Comte seja ainda mais peculiar. Se é verdade,
como nos diz Montaigne, que “a palavra é metade de quem fala metade de quem a
escuta”, é possível que estejamos aqui diante do caso-limite em que a comunicação não
se realiza: um mal enunciador e um receptor ainda pior.
1.2.1. Caricatura e espantalho: os problemas interpretativos
Se, na maior parte dos casos, leituras extravagantes e interpretações afetadas a respeito
de um determinado autor são, de certa forma, marginalizadas no campo do comentário,
porquanto existe um núcleo de trabalhos que, ainda que divergentes quanto a uma série
de questões mais sutis, gozam de reconhecimento mútuo para delimitar uma espécie de
“campo mínimo consensual” – no interior do qual o debate se trava de maneira séria e
consequente –, no caso de Comte, assim entendemos, esse campo ainda se encontra em
construção86. Não deixa, por exemplo, de nos surpreender que, ao fazermos um rápido
levantamento bibliográfico com respeito aos comentários da obra de Augusto Comte,
trabalhos como Aberrations: le devenir-femme d’Auguste Comte, de Sarah Kofman, apareçam
com considerável destaque, figurando com frequência na bibliografia de apoio de alguns
dos trabalhos mais sérios de que temos conhecimento. Tomamos aqui essa obra, caso
modelar das péssimas leituras existentes a respeito do assunto, como forma de ilustrar o
estado precário – em relação a outros autores de envergadura comparável à do próprio
Augusto Comte – em que se encontra o campo do comentário comtiano. Não só o
enfoque que a comentadora dá ao filósofo e seus textos nos parece despropositado; o
86 Nas últimas décadas, contudo, pensamos que os estudos comtianos tenham recebido uma valiosa contribuição conferida pelos trabalhos de uma nova geração de pesquisadoras, dispostas, como ressalta Hélgio Trindade, a romper seja com a “ortodoxia exacerbada de seus fiéis da religião da Humanidade”, seja com “seus adversários impiedosos”, adotando por fim uma atitude intelectual “serenamente acadêmica”. Ver Hélgio Trindade (org.), O positivismo: teoria e prática, Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1999, p. 9. Referimo-nos, sobretudo, aos trabalhos de Annie Petit, Mary Pickering, Mirella Larizza, Juliette Grange e Angèle Kremer-Marietti, que de certa forma vêm a se unir aos estudos pioneiros de um Lévy-Bruhl, de um Henri Gouhier ou mesmo de um Paul Arbousse-Bastide, ainda na primeira metade (ou nas primeiras décadas da segunda metade) do século vinte.
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livro é repleto de incongruências e erros primários, demostrando um conhecimento
bastante superficial da biografia do autor e uma leitura bastante ligeira de seus escritos.
Ainda nas primeiras páginas de seu trabalho, Kofman chega a confundir as duas carreiras
especiais de Augusto Comte (a científica, em que seria Aristóteles, e a religiosa, em que
seria São Paulo) com o exercício conjunto das, chamemos assim, atividades de pesquisa
e docência do filósofo. “A fim de se desculpar pelas ‘imperfeições literárias’ de seu
trabalho, nos diz Kofman, e de suscitar a indulgência do leitor, [Augusto Comte] invoca
ele próprio a falta de tempo: sua dupla jornada de ensino e de criação, conduzida com o
mesmo escrúpulo, não lhe concede nenhum descanso; seus perseguidores de todos os
partidos, ao impedirem-no de aceder à cadeira de matemática da Escola Politécnica, o
condenam a horas de ensino excessivas que o esgotam, deixando-lhe um tempo
derrisório para o essencial: a concepção de sua obra. Uma vez que é perseguido e que
deve, entretanto, se nutrir – e nutrir sua esposa –, ele é obrigado a negligenciar a ‘forma’,
a ‘acochambrar’ o estilo, a enviar para a impressão seus rascunhos, seu ‘primeiríssimo
esboço’”87. A comentadora adorna o texto com elementos que lhe são estranhos. Faz
crer que a pressa de Comte em escrever adviria de uma sobrecarga de trabalho, forçada
por sua não admissão para a cadeira de matemática da Escola Politécnica – que o filósofo,
de fato, ambicionou por muitos anos, e que seguramente lhe conferiria uma condição
material mais confortável –, e não, como dissemos de início, pela magnitude de suas
“duas carreiras especiais” (a científica e a religiosa).
Apesar de efetivamente se dividir entre as aulas particulares de matemática (como forma
de subsistência) e seus estudos e meditações filosóficas durante muitos anos, não nos
parece acurado dizer que essas atividades rivalizassem entre si – seguramente não a ponto
de prejudicar uma delas, como nos sugere Kofman. Ao comparar, por exemplo, os níveis
de instrução pública de Montpellier e Paris, em carta a Valat, datada de 29 de outubro de
1816, Augusto Comte nos diz: “Eu bem posso ver que a instrução pública não oferece
uma bela perspectiva em Montpellier, não mais do que a instrução particular: nossos
caros languedocianos acham que um professor de matemáticas não deve ser melhor
remunerado que um mau professor de dança, ou de esgrima. Em Paris, isto não é assim:
se pode viver bem honestamente dando duas ou três lições de matemáticas. Quanto a mim, não tenho
do que me queixar dos parisienses do lado de cá: se faz muito caso das ciências e daqueles
87 Sarah Kofman, Aberrations: le devenir-femme d’Auguste Comte, Paris, Aubier Flammarion, 1978, p. 13.
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que as ensinam”88. A imagem de um professor sobrecarregado por conta de suas aulas
particulares só pode mesmo surgir de uma mente bastante imaginativa, que preenche os
vazios de sua incompreensão com suposições infundadas.
Em seu estudo, valendo-se de uma espécie de derridianismo de matriz psicanalítica
(cravejado de insígnias de coloração pós-moderna), Kofman chega mesmo a sugerir que
o descompasso entre o caráter “viril” da escrita científica de Comte (na juventude) e o
sentimentalismo exacerbado e a exaltação do feminino em seus escritos religiosos (do
final da vida) seria revelador de uma homossexualidade inconfessada. “A distinção de
duas vias claramente clivadas, nos diz Kofman, a via masculina – científica, via da razão –
e a via feminina – a via do coração –, é a denegação da bissexualidade, possivelmente da
homossexualidade. [...] o estilo aqui é revelador de um homem que busca reprimir o mais
profundamente todo ‘germe’ de feminilidade e exibir à luz do dia, de maneira
excessivamente ruidosa para não ser suspeita, uma virilidade intacta, pura, um estilo que
opta apenas pela via masculina, desprovida de qualquer charme feminino sedutor.
Quando se adota como máxima de conduta: ‘viver às claras’, quando se clama bem alto
a vontade de nada esconder, é porque, sem dúvida, se tem algo a dissimular. O segredo
que concerne à conduta licenciosa de sua esposa é provavelmente um segredo que
mascara ele próprio um outro segredo, ainda mais reprimido, concernindo sua própria
sexualidade. E se, em definitivo, ele se envergonha de uma esposa ‘que ele não pode
admitir e manter à luz do dia’, é, talvez, porque as aberrações inadmissíveis de Caroline
[Massin], [sua esposa], sejam reveladoras de suas próprias aberrações, não menos
inconfessáveis”89.
As “aberrações inadmissíveis” de que nos fala Sarah Kofman dizem respeito ao fato de
Caroline Massin, esposa de Augusto Comte, ter sido, na juventude, prostituta90. A relação
88 CG, I, p. 15, grifo nosso. 89 Sarah Kofman, op. cit., p. 30. 90 Ao menos é o que nos revela Augusto Comte na “Adição Secreta” de seu Testamento. Ver Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 315. Pickering, entretanto, na introdução da Correspondência inédita: Augusto Comte/Caroline Massin, publicada em 2006 pela L’Harmattan – até então, apenas as cartas de Comte a Massin haviam sido publicadas, na sua Correspondência geral, mas as cartas de Massin a Comte haviam sido ignoradas por seus discípulos e estudiosos em geral –, nos diz que “depois [da morte de Augusto Comte], seus executores testamentários leram a mensagem que insinuava que Caroline havia sido prostituta. Os discípulos de Comte, ao escreverem sua biografia, reiteraram esta acusação. Mais tarde, os Positivistas garantiram que apenas a versão dos acontecimentos de Comte sobrevivesse, ao destruírem as cartas passíveis de esclarecer a história de Caroline. Assim, apenas a versão deles foi em todo caso considerada como legítima, mesmo por estudiosos reputados como Raymond Aron. Um único homem tomou a defesa de Caroline: Émile Littré. [...] A biografia de Comte, escrita por Littré, fornece, consequentemente, uma versão completamente diferente a respeito do meio que originou Caroline. Mas é possível que ela tenha sido tão deformada quanto as biografias escritas pelos discípulos
47
do filósofo com prostitutas, aliás, parece ter sido frequente, ao menos em algumas épocas
de sua vida. Em correspondência com seu amigo Valat, por exemplo, Comte menciona
ter cometido “‘essas pequenas tolices [...] apenas três vezes’ nos últimos quatro meses”91.
Refere-se à sua busca esporádica por “‘prazeres físicos’ com as ‘repugnantes beldades da
galeria do Valois’, no Palais Royal” 92 . É nos arredores do Palais Royal, aliás, um
conhecido local de prostituição à época, que Comte conhece Caroline Massin. Com
efeito, nos parece estranho supor em Augusto Comte uma homossexualidade, a tal ponto
reprimida, que o obrigasse à prática compulsória heterossexual – talvez, como forma de
autoafirmação, se poderia supor. De todo modo, Kofman, se quisesse fugir da caricatura
grosseira (algo que, ademais, a autora não nos parece fazer), teria ainda de lidar com as
paixões heterossexuais do autor (o que ela também não faz): não apenas Caroline Massin
– por quem Augusto Comte se apaixona intensamente, antes do matrimônio –, mas
também Pauline – a pianista italiana por quem o autor se apaixona ainda na juventude –
e, claro, Clotilde de Vaux – a grande paixão de Augusto Comte, já no final da vida93.
Fora de um círculo de especialistas, cuja produção acadêmica, até o momento, é
relativamente pouco conhecida, a imagem que se tem de Augusto Comte e de sua
filosofia positiva, assim entendemos, é essencialmente caricata – o caso de Kofman
representando para nós sua máxima expressão. Não saberíamos elencar com precisão
todas as razões que teriam contribuído para isso. Certo predomínio de determinadas
correntes de pensamento (sobretudo o liberalismo e o marxismo, como falaremos mais
adiante) no debate político ao longo da maior parte do último século; os rumos
esdrúxulos seguidos pelas correntes ortodoxas do positivismo nos países em que teve
alguma penetração, com suas liturgias miméticas ao catolicismo e seu culto secularizado
(ou desteologizado) da Humanidade; e, por fim, o caráter impenetrável e cacofônico dos
mais fiéis de Comte. Em resumo, as hostilidades no seio da família de Comte e no interior de seu próprio movimento tornam extremamente problemática a reconstituição da vida de Caroline Massin. Conhecemo-la como a esposa do célebre Augusto Comte e como prostituta, mas isto é tudo. Portanto, quem é a verdadeira Caroline?”, Mary Pickering, Introduction, Correspondance inédite: Auguste Comte/Caroline Massin (1831-1851), Paris, L’Harmattan, 2006, p. 5. 91 Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 56. 92 Idem, ibidem. 93 Gostaríamos de enfatizar, por fim, que não desdenhamos o emprego da psicanálise na interpretação de textos literários ou mesmo na tarefa de elucidar a biografia e a obra de grandes figuras históricas. As Questões de método, de Sartre, e Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, de Freud, nos parecem exemplos notáveis de tentativas exitosas nessa direção. Nosso problema com Kofman, que fique claro, diz respeito somente à precária investigação conduzida pela autora a respeito da biografia e dos textos filosóficos de Augusto Comte. Inspirada, aliás, por Freud, Kofman parece criar, ingenuamente, uma caricatura do autor de forma a poder projetar nela o “seu próprio da Vinci” – em nosso ver, contudo, nem Comte é da Vinci, nem tampouco Kofman é Freud.
48
escritos de seu pai fundador, nos parecem ser, contudo, um bom ponto de partida sobre
o qual podemos apoiar algumas de nossas hipóteses. Em resumo, para nós, Augusto
Comte é, ao mesmo tempo, uma figura obscura e obscurecida.
Pensamos que o próprio filósofo tenha contribuído, em grande medida, para sua
caricaturização, por conta não somente de sua escrita rebarbativa e pouco amigável, mas
também em virtude da suspeita, sempre presente, a respeito de sua sanidade mental.
Sofrera ao longo da vida algumas “crises cerebrais”, zelosamente tratadas por amigos
próximos e familiares94. Sua inclinação messiânica e seus rompantes megalomaníacos,
somados, talvez, a uma ingenuidade que por vezes beira mesmo o risível95, podem
também ter contribuído para a consolidação de uma imagem, no essencial, burlesca a seu
respeito; e consequentemente para seu descrédito nos meios acadêmicos. Acreditamos,
contudo, que o que mais contribuiu para a fixação de uma imagem equivocada do autor
e de sua filosofia positiva, tenham sido – apesar de seus méritos inegáveis – as leituras
críticas feitas a seu respeito pelas duas maiores correntes do pensamento político
hegemônico do século vinte (muito mais influentes em pautar o debate público do que
qualquer escrito dos adeptos do positvismo, ortodoxos ou heterodoxos96).
Marxistas e liberais interessaram-se, em maior ou menor medida, pelo pensamento de
Augusto Comte, sobretudo ao final da primeira metade e início da segunda metade do
século vinte, como forma, talvez, de explicar, teórica e historicamente, os horrores
cometidos pelo fascismo e totalitarismo do período que os antecedeu cronologicamente.
Pensamos que os trabalhos mais significativos de cada uma dessas grandes “famílias” do
pensamento político ocidental a respeito do positivismo sejam A contrarrevolução da ciência,
de Friedrich Hayek (pelo lado dos liberais) e o Razão e revolução de Herbert Marcuse (pelo
lado dos marxistas). Com efeito, nas próximas páginas, pretendemos analisar, de forma
breve, alguns dos pontos principais da leitura de cada um desses autores, expoentes da
filosofia política no século vinte, a respeito do positivismo de Augusto Comte. Nosso
intuito, com isto, é fundamentar a defesa, que faremos de maneira mais extensa no
94 Ver Mary Pickering, op. cit., p. 362 e ss., 477 e ss. 95 Em alguns momentos, devemos confessar, a leitura dos textos de Augusto Comte chega mesmo a ser cômica. O caso mais emblemático, diríamos, diz respeito às “festas positivistas” que o autor – mimetizando de maneira bastante ingênua o período revolucionário – propõe com o intuito de integrar a nascente sociedade positivista. Para celebrar o progresso, Augusto Comte almeja instituir as “festas dinâmicas” e para celebrar a ordem (são, literalmente, estas as suas palavras), o autor propõe a criação das “festas estáticas”. Ver Ensemble, p. 342. 96 Em geral, aqui entenderemos a ortodoxia do positivismo como a corrente de pensamento que aceita a “fase religiosa” de Comte (em oposição aos seus seguidores heterodoxos, que, em geral, ficam apenas com a “fase científica”, recusando a religião da Humanidade).
49
próximo capítulo, de uma interpretação republicana do autor – em nosso ver, fundamental
não apenas à compreensão da questão que nos interessa neste trabalho, isto é, os rumos
da República e do republicanismo na França ao longo do século dezenove, mas também,
acreditamos, à correta assimilação da própria filosofia do autor, afastada, por fim, das
caricaturas e dos espantalhos argumentativos aos quais entendemos ter sido com
frequência identificada.
1.2.2. Friedrich Hayek: o positivismo como prefiguração do totalitarismo
A leitura que Friedrich Hayek faz de Augusto Comte e de seu positivismo, devemos
salientar, se inscreve no bojo da crítica que o autor dirige ao cientificismo e ao determinismo
histórico – ou historicismo. “Durante a primeira metade do século dezenove, nos diz Hayek,
uma nova atitude se fez conhecer. O termo ciência acabou por ser confinado, cada vez
mais, às disciplinas físicas e biológicas, que ao mesmo tempo passaram a reivindicar para
si um rigor e uma certeza especiais que as distinguiam de todas as outras. Seu sucesso foi
tão grande que estas disciplinas logo vieram a exercer uma extraordinária fascinação sobre
aqueles que trabalhavam em outras áreas e que, rapidamente, começaram a imitar seus
ensinamentos e vocabulário. Teve início, portanto, a tirania que os métodos e técnicas
das Ciências, no sentido preciso do termo, exerceram desde então sobre as demais
disciplinas. Estas, por sua vez, se tornaram progressivamente preocupadas em requisitar
seu status equivalente, mostrando, para isso, que seus métodos eram iguais aos de suas
irmãs brilhantemente exitosas, ao invés de adaptá-los cada vez mais aos seus problemas
particulares”97.
O que preocupa fundamentalmente Hayek não é certo intercâmbio (natural e até certo
ponto salutar) de ideias e métodos entre os diferentes campos do conhecimento humano,
ou, mais especificamente, entre as ciências naturais. É a “ambição em imitar a Ciência em
seus métodos mais que em seu espírito”98, que dominou, segundo o autor, “nos últimos
cento e vinte anos ou mais, [...] os estudos sociais”99, sem ter contribuído muito ou
mesmo nada “à nossa compreensão do fenômeno social” 100 que deveria ser, no
entendimento do autor, judiciosamente evitada. Hayek faz questão de salientar que não
97 Friedrich Hayek, op. cit., p. 13-4. 98 Idem, ibidem, p. 14. 99 Idem, ibidem. 100 Idem, ibidem.
50
é à ciência, circunscrita adequadamente em seus próprios domínios, que ele se opõe, mas,
sim, a certa atitude, mimética e acrítica, dos teóricos sociais que reivindicam o status
científico pelo simples fato de aplicarem às questões da sociedade métodos retirados
inadvertidamente das ciências naturais. “Quase não é preciso enfatizar que nada do que
teremos a dizer se dirige contra os métodos da Ciência em suas esferas apropriadas, ou é
concebido com intenção de lançar a menor dúvida sobre seu valor. No entanto, com o
intuito de prevenir qualquer mal-entendido a esse respeito, devemos falar, sempre que
estivermos nos referindo não ao espírito geral da pesquisa desinteressada, mas à imitação
servil do método e da linguagem da Ciência, em ‘cientificismo’ ou em preconceito
‘cientificista’”101.
“Dever-se-ia notar, prossegue Hayek, que, no sentido em que usaremos estes termos, eles
descrevem, obviamente, uma atitude que é decididamente não-científica, no sentido
verdadeiro da palavra, na medida em que abrangem uma aplicação mecânica e acrítica de
hábitos de pensamento a campos diferentes daqueles em que foram formados. O ponto
de vista cientificista, distinto do ponto de vista científico, não constitui uma abordagem
isenta, mas uma bastante tendenciosa, que alega saber de antemão, sem ter previamente
considerado seu objeto de estudo, qual é o caminho mais apropriado para investigá-lo”102.
No entendimento do autor, a França pós-revolucionária e, mais precisamente, a Escola
Politécnica foram o berço da “húbris cientificista”. “O homem nunca penetrará tão
profundamente no erro do que quando ele prossegue pelo caminho que o havia
conduzido a grande sucesso. E nunca poderiam o orgulho das conquistas das ciências
naturais e a confiança na onipotência de seus métodos ter sido mais justificado do que
na virada dos séculos dezoito e dezenove, e em nenhum outro lugar mais do que em
Paris, que congregava quase todos os maiores cientistas da época. [...] As duas maiores
forças intelectuais que, no curso do século dezenove, transformaram o pensamento social
– o socialismo moderno e aquela espécie de positivismo moderno que preferimos chamar
de cientificismo – nasceram diretamente do corpo de cientistas profissionais e
engenheiros formados em Paris, e mais particularmente da nova instituição que
incorporou o novo espírito como nenhuma outra, a Escola politécnica”103.
101 Idem, ibidem, p. 15. 102 Idem, ibidem, p. 15-6. 103 Idem, ibidem, p. 105.
51
Esboça-se já no parágrafo precedente a aproximação, tentada por Hayek ao longo de
toda sua obra, entre o positivismo (ou cientificismo) e o socialismo. Se aqui o autor nos
diz que, do ponto de vista histórico (e Hayek tem razão em afirmá-lo), o positivismo e o
socialismo na França estiveram próximos em seu início – ambos partem do entorno do
movimento saint-simoniano –, já na parte final de seu trabalho, o autor se esforçará em
mostrar que, do ponto de vista teórico, ambos também se aproximam. “As discussões de
todas as épocas, nos diz Hayek, estão preenchidas com as questões a respeito das quais
suas principais escolas de pensamento discordam. Mas a atmosfera intelectual geral do
período é sempre determinada pelas opiniões a respeito das quais as escolas rivais
concordam. Elas se tornam os pressupostos não ditos de todo pensamento, as fundações
comuns e inquestionavelmente aceitas a partir das quais toda discussão procede”104.
“Minha tese, prossegue o autor, será que no campo do pensamento social não apenas a
segunda metade do século dezenove mas também nosso próprio tempo deve muito de
sua abordagem particular ao acordo entre dois pensadores comumente referidos como
completos antípodas intelectuais: o ‘idealista’ alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, e
o ‘positivista’ francês, Augusto Comte”105. Hayek reconhece que sob muitos aspectos os
dois filósofos “de fato, representam completos extremos do pensamento filosófico, a tal
ponto que parecem pertencer a diferentes épocas e raramente falar a respeito dos mesmos
problemas”106. Entretanto, o autor diz estar interessado apenas na influência dos dois
autores sobre a teoria social. “É nesse campo, prossegue Hayek, que a influência [de suas]
ideias filosóficas pode ser mais profunda e mais duradoura. E não há, talvez, melhor
ilustração dos efeitos de longo alcance das ideias mais abstratas do que a que prendo
discutir”107.
A um só tempo, Hayek vê Comte e Hegel como herdeiros do empirismo racionalista de
Descartes108 – via Montesquieu, d’Alembert, Turgot e Condorcet, para o caso de Comte;
e via Herder, Kant e Fichte, para o caso de Hegel – e como os ancestrais comuns de
autores como Renan, Taine e Durkheim, na França; Feuerbach, Marx e Engels, na
Alemanha; Mazzini, na Itália; e Dewey e Croce, em seu tempo109. Aos olhos do autor, o
104 Idem, ibidem, p. 191. 105 Idem, ibidem, p. 192. 106 Idem, ibidem. 107 Idem, ibidem. 108 Ver Hayek, op. cit., p. 196. 109 Idem, ibidem, p. 194.
52
ponto comum existente entre as doutrinas de Comte e Hegel “é um em que, a princípio,
elas podem parecer sustentar visões diametralmente opostas: sua atitude com respeito à
investigação empírica. Para Comte, nos diz Hayek, ela constitui a totalidade da ciência;
para Hegel, ela está completamente fora daquilo que ele chama de ciência, embora, de
forma alguma, ele subestime a importância do conhecimento factual dentro de sua esfera.
O que os une é sua crença em que a ciência empírica deve ser puramente descritiva,
restrita a estabelecer as regularidades do fenômeno observado. Ambos são estritos
fenomenalistas, neste sentido, negando que a ciência empírica possa proceder da
descrição à explicação. Que o positivista Comte conceba toda explicação, toda discussão
a respeito da maneira segundo a qual o fenômeno é produzido como fútil metafísica,
enquanto Hegel a reserve à sua filosofia da natureza idealística, isto é um outro assunto.
Em suas visões a respeito das funções da investigação empírica eles concordam quase
completamente, segundo Émile Meyerson o demonstrou de forma belíssima”110.
O empirismo racionalista herdado por Comte e Hegel da tradição cartesiana, converte-
se então, segundo Hayek, num intelectualismo fenomenalista, que quando aplicado às
concepções sociais de cada um dos filósofos desdobra-se, por sua vez, num determinismo
histórico (ou fatalismo histórico) e num relativismo moral. “Quando nos voltamos ao campo da
teoria social, nos diz o comentador, descobrimos que as ideias centrais que Hegel e
Comte têm em comum estão tão proximamente relacionadas que quase podemos
expressá-las numa única sentença, se dermos o devido peso a cada palavra
separadamente. Tal proposição deveria soar mais ou menos assim: o objetivo central de
todo estudo a respeito da sociedade deve ser o de construir uma história universal de
todo o gênero humano, entendido como um esquema do desenvolvimento necessário da
humanidade de acordo com leis reconhecíveis”111. As leis que ambos almejam encontrar
– e, segundo Hayek, pouco importa que para Comte elas sejam “leis naturais” e para
Hegel “princípios metafísicos” – “são, em primeiro lugar, afirma o comentador, leis do
desenvolvimento do espírito humano”112.
A suposição, portanto, de que “nossas mentes individuais, que contribuem para [o]
processo [de desenvolvimento do espírito humano], ao mesmo tempo são capazes de
110 Friedrich Hayek, op. cit., p. 195-6. 111 Idem, ibidem, p. 196-7. 112 Idem, ibidem, p. 197, grifo nosso.
53
compreendê-lo”113, está na base, segundo Hayek, das filosofias de Comte e Hegel, e
constitui aquela espécie de “pressuposto não dito”, aceito inquestionavelmente por toda
a tradição da teoria social desde então, que o autor nomeará, seguindo Karl Popper114, de
historicismo. Aos expoentes do historicismo alemão, Marx, Schmoller ou Sombart – que
Hayek, no entanto, faz questão de distinguir da “escola histórica” de um Niebuhr ou de
um Ranke –, o comentador irá, na sequência do texto, contrapor David Hume. Se os
primeiros afirmavam “que os antigos escritores, em particular aqueles do século dezoito,
haviam sido ‘anistóricos’”115, Hayek nos diz, entretanto, que, em seu ver, Hume “tinha
muito mais justificativas quando acreditara ser sua ‘a época histórica e [sua] a nação
histórica”116.
Ao aproximar a lei dos três estados de Comte da dialética hegeliana, Friedrich Hayek nos
diz que “para ambos [os autores], a história conduz a um fim predeterminado, que [...]
pode ser interpretado de modo teleológico como a sucessão dos propósitos
alcançados”117. De acordo ainda com o comentador, “o determinismo histórico [de
Comte e Hegel] – segundo o qual devemos entender não apenas que os eventos históricos
são de algum modo determinados, mas também que nós somos capazes de reconhecer
porque eles estão ligados de modo a seguir um curso particular – implica,
necessariamente, num completo fatalismo: o homem não pode mudar o curso da história.
[...] Não há espaço algum para a liberdade num tal sistema: para Comte, a liberdade é ‘a
submissão racional à dominação das leis naturais’, que são, obviamente, suas leis naturais
do desenvolvimento inevitável; para Hegel, é o reconhecimento da necessidade. E uma
vez que ambos estão em posse do segredo da ‘unidade intelectual definitiva e permanente’
– da ‘verdade absoluta’, no sentido de Hegel, ou na direção da qual a evolução tende,
segundo Comte –, ambos reivindicam para si o direito de impor a nova ortodoxia”118.
Para Hayek, o positivismo de Comte e a dialética de Hegel falham ao não explicar de que
modo “a interação dos esforços individuais pode criar algo maior do que conhecem. [...]
E, enquanto o individualismo do século dezoito, essencialmente humilde em suas
113 Idem, ibidem. 114 Ver Karl Popper, A miséria do historicismo, São Paulo, Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1980 e The open society and its enemies, Londres/Nova Iorque, Routledge, 2002. 115 Idem, ibidem, p. 199. 116 Idem, ibidem. A preferência do comentador pela tradição do iluminismo escocês e pela filosofia insular de um modo geral é patente ao longo de toda sua obra. 117 Friedrich Hayek, op. cit., p. 200. 118 Idem, ibidem.
54
aspirações, visou compreender, tanto quanto possível, os princípios pelos quais os
esforços individuais se combinam para produzir uma civilização, com o intuito de
aprender quais eram as condições mais favoráveis para seu ulterior crescimento, Hegel e
Comte se tornaram a maior fonte da húbris coletivista que visa à ‘direção consciente’ de
todas as forças da sociedade”119.
Friedrich Hayek encerra sua obra afirmando que “foi sob o signo [do] historicismo criado
na Alemanha que, na segunda metade no século dezenove, o grande ataque à teoria social
individualista foi conduzido; que as próprias fundações da sociedade liberal e
individualista vieram a ser questionadas; e que tanto o fatalismo histórico quanto o
relativismo ético se tornaram tradições dominantes. E foi particularmente sob sua
influência que, de Marx a Sombart e Spengler, as ‘filosofias da história’ se tornaram a
expressão mais influente da atitude da época em relação aos problemas sociais. [...]
enquanto as ideias de Hume e Voltaire, de Adam Smith e Kant, produziram o liberalismo
do século dezenove, aquelas de Hegel e Comte, de Feuerbach e Marx, produziram o
totalitarismo do século vinte”120.
1.2.3. Herbert Marcuse: o positivismo como apologia do capitalismo
Se Friedrich Hayek, como vimos na seção anterior, opta por tratar de Comte e Hegel
num mesmo volume com o intuito de aproximá-los filosoficamente, Herbert Marcuse,
em seu Razão e revolução, pretende fazer justamente o contrário. Já na introdução de sua
obra, o autor afirma ser “a dialética [hegeliana] a oposição rigorosa a qualquer forma de
positivismo”121. Curiosamente, Marcuse se dedica – “taticamente”, poderíamos dizer – a
fazer justamente o oposto que fizera Hayek em A contrarrevolução da ciência. Se lá a
aproximação de Comte a Hegel se dava com o intuito de lançar o positivismo na direção
do marxismo – ou, mais conforme aos propósitos (também eles “táticos”) de Hayek:
lançar o marxismo na direção do positivismo – aqui o afastamento de Hegel com respeito
a Comte se dá com o intuito de lançar, contrariamente, o positivismo na direção do
liberalismo. Como se vê, Augusto Comte é uma espécie de “batata quente” que ninguém
quer segurar.
119 Idem, ibidem, p. 203-4. 120 Idem, ibidem, p. 205-6. 121 Herbert Marcuse, Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social, São Paulo, Paz e Terra, 2004, p. 34.
55
O modo segundo o qual Marcuse, ao mesmo tempo, afasta Comte de Hegel e o lança de
volta122 na direção do liberalismo consiste em aproximá-lo do empirismo, das concepções
epistemológicas de Locke e Hume, por exemplo. Segundo o autor, os próprios “critérios
de validade da razão” – a universalidade e a necessidade – seriam negados pelos
empiristas123. Para Locke, nos diz Marcuse, “as ideias gerais [...] ‘são invenções e criaturas
do entendimento, por ele forjadas para uso próprio, tendo a ver apenas com símbolos...
Quando por meio delas abandonamos o particular, resta de geral apenas o que foi criado
por nós [mesmos]’”124. Já para Hume, Marcuse afirma que “as ideias gerais são abstraídas
do particular, e ‘representam’ o particular, e apenas o particular. Jamais poderiam fornecer
regras ou princípios universais. Se estivermos obrigados a concordar com Hume, conclui
o autor, teremos de desistir de uma realidade organizada, pois, como vimos, tal exigência
se funda na capacidade que tem a razão de atingir verdades cuja [validade] não foi
derivada da experiência, verdades que poderiam, até mesmo, contrariar a experiência”125.
Ao não conceder à razão autonomia frente à necessidade de verificar empiricamente a
validade de suas verdades, Marcuse entende que Hume – e a tradição empirista como um
todo – condena a própria razão ao dado, ao particular: “‘Não é a razão que guia a vida,
mas o hábito’”126.
Esta conclusão a que leva o empirismo, segundo Marcuse, “fez mais do que minar a
metafísica: ela confinou o homem aos limites do ‘dado’, à ordem existente das coisas e
dos acontecimentos. Com que direito, se pergunta o comentador, poderia o homem
superar não apenas algum aspecto particular desta ordem, mas a própria ordem, na sua
totalidade? Com que direito poderia submeter esta ordem ao julgamento da razão? Se a
experiência e o hábito fossem as únicas fontes do conhecimento e da fé, como poderia o
homem agir contra o hábito, como poderia agir de acordo com ideias e princípios ainda
122 Para sermos justos com Marcuse, é Hayek quem lança o positivismo “de volta” na direção do marxismo. A primeira edição do Razão e revolução é de 1941, ao passo que a primeira publicação de A contrarrevolução da ciência data apenas de 1952. Para sermos justos agora com Hayek, seria ainda preciso dizer que as duas maiores seções de seu trabalho foram publicadas originalmente como artigos, de 1941 a 1944, na revista Economica. No entanto, segundo o próprio autor reconhece, no prefácio da edição de seu livro de 1952, a terceira parte da obra (a que concerne finalmente à aproximação entre Comte e Hegel) fora publicada pela primeira vez apenas em 1951, também como artigo, dessa vez na revista Mesure, embora viesse sendo preparada a partir de notas acumuladas desde os mesmos anos da publicação de seus dois primeiros artigos – o que nos leva a concluir que os trabalhos de Hayek e Marcuse são praticamente contemporâneos, em sua execução. Apesar de posterior ao trabalho de Marcuse, não há indícios na obra de Hayek que nos permitam afirmar que o autor a concebe como uma resposta direta ao frankfurtiano. 123 Ver Herbert Marcuse, op. cit., p. 28. 124 Herbert Marcuse, op. cit., p. 28. 125 Idem, ibidem. 126 Idem, ibidem.
56
não aceitos e estabelecidos? A verdade não poderia diferir da ordem estabelecida, nem a
razão a poderia contrariar. Daí [resulta] não só o ceticismo como também o [próprio]
conformismo” 127 . Surgem, portanto, no texto de Marcuse, referindo-se ainda o
comentador apenas aos autores do empirismo insular do século dezoito, dois aspectos
centrais do positivismo de Augusto Comte: a negação da metafísica e o tema da
“resignação” (traduzido aqui em termos do “conformismo”). Marcuse chega mesmo a
dizer que “se o conhecimento por meio da razão (conhecimento por meio de conceitos
não derivados da experiência) significa metafísica, então o ataque à metafísica [levado a
cabo pelo empirismo, e depois pelo positivismo] é, ao mesmo tempo, um ataque às
condições da liberdade humana, pois o direito que assiste à razão de dirigir a experiência
[constitui] um dos aspectos [destas] condições”128.
Se, por um lado, aos olhos da tradição empirista – e, portanto, aos olhos do positivismo
–, o ‘dado’ é, segundo Marcuse, o positivo, ou seja, a única realidade tangível, no interior
da dialética hegeliana, nos dirá o comentador, “o simplesmente dado é, de saída, negativo,
isto é, diferente de suas reais potencialidades. É no processo de superação desta
negatividade que ele se torna verdadeiro; o nascimento da verdade requer, pois, a morte
do estado, que é dado, [a morte] do ser”129. Nota-se que até mesmo em termos de
vocabulário, Marcuse se empenha em opor o hegelianismo ao positivismo, afirmando
que “a filosofia de Hegel é, na verdade, aquilo de que ela foi acusada por seus opositores
imediatos: uma filosofia negativa”130. “De Hume aos positivistas lógicos da atualidade,
prossegue o autor, o princípio de tal filosofia [o positivismo] tem sido o prestígio definitivo
do fato, e seu método fundamental de verificação, a observação do dado imediato”131.
Vemos, portanto, que já na introdução de sua obra o autor fixa ao positivismo o caráter
meramente apologético da ordem social vigente. Segundo Marcuse, uma tal característica
seria herdada diretamente, via epistemologia, da tradição do empirismo inglês, de acordo
com a qual, em linhas gerais, o conhecimento humano parte apenas da experiência, o que
acabaria por confinar a própria razão, segundo o autor, aos limites do imediatamente
dado. “O positivismo assumiu, em meados do século XIX, e principalmente em resposta
às tendências destrutivas do racionalismo, a forma de uma ‘filosofia positiva’ que
127 Idem, ibidem. 128 Idem, ibidem, p. 29. 129 Idem, ibidem, p. 33. 130 Idem, ibidem, grifo nosso. 131 Idem, ibidem, p. 34, grifos nossos.
57
englobaria todo o saber, e que iria substituir a metafísica tradicional. As figuras mais
eminentes deste positivismo acentuaram com muito vigor a atitude conservadora e
acrítica de sua filosofia: o pensamento era por ela induzido a contentar-se com os fatos, a renunciar
a transgredi-los e a submeter-se à situação vigente”132.
As “figuras mais eminentes desse positivismo” no século dezenove são, segundo nos diz
o próprio Marcuse (no segundo capítulo da segunda parte de sua obra), Saint-Simon e
Augusto Comte na França. Tratando agora especificamente do positivismo de Comte, o
autor nos dirá que “‘a filosofia positiva’ é, em última análise, uma contradição in adjecto.
Ela se refere à síntese de todo conhecimento empírico ordenado em um sistema de
progresso harmonioso, seguindo um curso inexorável. Toda oposição às realidades
sociais é subtraída à discussão filosófica”133. A verdadeira filosofia, depreende-se do texto
de Marcuse, deveria, portanto, se opor às “realidades sociais”, ao invés de meramente
entendê-las – como o faz a filosofia positiva – como o produto inexorável do “progresso
harmonioso” da civilização. Falando agora da sociologia de Augusto Comte, o autor nos
dirá que ela “deve ligar-se aos fatos da ordem, social e vigente, e, embora não rejeite a
necessidade de correção e aperfeiçoamento, exclui qualquer movimento para superar ou negar
esta ordem. Em consequência, o interesse conceitual da sociologia positivista é ser
apologética e justificativa”134.
A sociologia de Augusto Comte, conforme veremos em mais detalhes nos próximos
capítulos, como consequência da própria organização enciclopédica das ciências naturais,
entende os fenômenos sociológicos como os mais complexos e os mais imperfeitos de
todos, exigindo da ação humana, em comparação aos demais fenômenos naturais, um
maior grau de intervenção sobre eles – no sentido, pois, de aperfeiçoá-los. No excerto
acima, Marcuse demonstra não desconhecer esta característica essencial da filosofia
positiva, que convoca, portanto, o homem à “correção” e ao “aperfeiçoamento” (nos
termos marcusianos) da ordem social vigente. Ora, aos olhos de Marcuse, “correção” e
“aperfeiçoamento” são ideias fundamentalmente distintas de “negação” e “superação”.
“Esta concepção [dos fenômenos sociológicos], prossegue o autor, permite a Comte
aparecer como um bravo lutador contra o ancien régime numa época em que, já há muito
132 Idem, ibidem, grifos nossos. 133 Idem, ibidem, p. 291. 134 Idem, ibidem, grifos nossos,
58
tempo, o ancien régime havia sido derrubado, tendo a classe média, já há muito tempo
[também], consolidado seu poder econômico e social”135.
Em termos históricos, é preciso dizer, Marcuse parece, em nosso ver, se precipitar no
excerto acima. A “virada filosófica” de Augusto Comte, que marca o início de sua obra
visando à reorganização social da Europa, tem início apenas sob a Restauração. A volta
da dinastia Bourbon ao poder, embora limitada agora a uma monarquia constitucional,
representa, sob muitos aspectos, uma ressonância do Antigo Regime na França pós-
revolucionária. Afirmar, portanto, como faz Marcuse, que “já há muito tempo o ancien
régime havia sido derrubado”, nos parece algo exagerado, frente à complexidade dos
embates políticos, sociais e econômicos testemunhados pela França contemporânea aos
primeiros escritos de Comte. Neste ponto, é preciso salientar, Marcuse nos parece seguir
certa ortodoxia da “interpretação marxista”136 da Revolução francesa, que apenas os
trabalhos de gerações de historiadores posteriores, como a de um François Furet137, já no
final dos anos 1970, ousou sistematicamente contestar. Seguindo, portanto, esta
interpretação, Marcuse afirmará que a filosofia positiva “vem a ser uma defesa ideológica
da sociedade de classe média e, mais ainda, [que ela] abriga as sementes de uma
justificação filosófica do autoritarismo”138.
Ao consistir, teoricamente, numa ciência cuja validade das leis “devia ser análoga à das
leis físicas”139, Marcuse nos diz que a sociologia comtiana reduz, portanto, “a prática
social, especialmente no que se refere à transformação do sistema social, [à mera]
fatalidade”140. Com efeito, não há, para o autor, “nenhuma dúvida quanto aos grupos e
objetivos sociais em favor dos quais se mencionava a resignação” 141 no interior da
filosofia positiva de Augusto Comte. “Raramente, no passado, qualquer filosofia insistiu
com tanto vigor e tão abertamente em que ela mesma fosse utilizada para a manutenção
da autoridade dominante e para a proteção do interesse estabelecido, contra toda e
qualquer investida revolucionária”142. A filosofia positiva de Augusto Comte, portanto, é
135 Idem, ibidem, p. 297. 136 Para uma síntese do debate a respeito desta questão, ver Geoffrey Ellis, The “Marxist interpretation” of French Revolution, The English Historical Review, v. 93, n. 367, 1978, p. 353-76. 137 Ver, por exemplo, François Furet, Penser la Révolution française, in: ______, La Révolution française, Paris, Gallimard, 2007, p. 7-220. O texto é publicado, originalmente, em 1978. 138 Herbert Marcuse, op. cit., p. 292. 139 Idem, ibidem, p. 293. 140 Idem, ibidem, p. 293. 141 Idem, ibidem, p. 294. 142 Idem, ibidem, p. 294-5.
59
entendida, por Marcuse, como representante do que a tradição marxista se acostumou a
chamar de “filosofia burguesa da história”, uma vez que nela “as leis do progresso são
parte do mecanismo da ordem estabelecida, de modo que esta [progrida] suavemente
para um estado mais alto, sem ter de começar por ser destruída”143.
Em nosso ver, a chave para a compreensão da interpretação marcusiana do positivismo,
enquanto apologia do capitalismo, está no fato de que, aos olhos do autor, “a ideia de
progresso, de Comte, exclui a revolução, isto é, a total transformação do sistema dado de
circunstâncias”144. Se transportada ao contexto político dos escritos de maturidade de
Augusto Comte, a “revolução”, de que nos fala Marcuse no excerto acima, não pode ser
entendida em sentido abstrato, mas, sim, num sentido bastante específico: é a revolução
socialista, visando à destruição do capitalismo e à construção da sociedade sem classes –
é a isto que Marcuse vê o positivismo se opondo frontalmente. Para o autor, a filosofia
positiva de Comte, ao recusar a via revolucionária, opta necessariamente pela conciliação
de proletários e capitalistas, desarticulando, por sua vez, os mecanismos necessários à
efetivação da luta de classes. “Numa filosofia que justificava o sistema social dominante,
o apelo à tolerância tornou-se cada vez mais útil aos que se beneficiavam do sistema”145.
É por essa razão, afinal, que Marcuse entenderá o positivismo como “a antítese [da]
crítica marxista”146.
Por fim, cumpriria dizer que o positivismo, aos olhos de Herbert Marcuse, para além de
representar uma apologia do capitalismo (a ordem social vigente da época), de um certo
modo contém também as sementes do autoritarismo que floresceriam, no século vinte,
sob as formas do totalitarismo e do fascismo. Com efeito, afirma o autor que “a ideia de
ordem, tão cara ao positivismo de Comte, tem um conteúdo totalitário no seu sentido
social e metodológico”147. Marcuse nos adverte também que “a felicidade sob a proteção
de um braço forte – atitude hoje tão característica das sociedades fascistas – está ligada
ao ideal positivista da evidência”148.
143 Idem, ibidem, p. 297. 144 Idem, ibidem, p. 300. 145 Idem, ibidem, p. 303. 146 Idem, ibidem, p. 304. 147 Idem, ibidem, p. 297. 148 Idem, ibidem, p. 299.
60
1.3. Em direção a uma leitura republicana de Augusto Comte
Gostaríamos, por fim, de destacar que, apesar das flagrantes diferenças, há algo de
bastante similar nas obras de Hayek e de Marcuse que acabamos de analisar brevemente
nas seções anteriores. Em primeiro lugar, atentemos para o fato de que ambos se dedicam
(embora partindo de pressupostos diferentes e chegando a conclusões também elas
diversas) a tratar conjuntamente, numa mesma obra, o positivismo de Augusto Comte (e
Saint-Simon) e a dialética hegeliana – pensamos que isto não se dá ao acaso. Marcuse,
por um lado, se vê herdeiro (em algum grau) da tradição crítica inaugurada por Hegel, ao
passo que Hayek vê no hegelianismo uma espécie de compagnon de route do positivismo de
Augusto Comte – seguramente, não pelo conjunto de suas filosofias, que o autor sabe
serem distintas, mas sobretudo por seus princípios e suas consequências, consideradas
por Hayek essencialmente similares. Ambos, no entanto, afastam-se do positivismo num
duplo movimento: ao mesmo tempo em que o recusam tentam transportá-lo, por meio
desta própria recusa, ao que entendem ser o terreno de seus adversários políticos. No
caso de Hayek, como já dissemos, o positivismo como que é lançado na direção do
marxismo pelas aproximações que o autor faz entre o pensamento de Comte e Hegel.
No caso de Marcuse, tenta-se aproximar o positivismo do empirismo, o que acaba por
empurrar Augusto Comte de volta ao campo dos liberais – se não como um “puro-
sangue”, ao menos como um primo bastardo.
Como veremos no próximo capítulo, a filosofia de Augusto Comte, se entendida a partir
de seus princípios, não nos parece, ademais, inclinada a dar sustentação filosófica a um
regime totalitário, como defende – mais explicitamente – Hayek – e, de maneira indireta,
como sugere também Marcuse –, uma vez que a solução que o autor propõe para a
“questão social” é de natureza apenas moral, e, com efeito, recusa insistentemente a via
da força e do poder temporal, devendo se impor ao conjunto da sociedade por meio
exclusivamente do assentimento voluntário dos dois extremos da classe produtiva, isto é,
proletários e capitalistas. Deste ponto de vista, portanto, o positivismo nos parece
alérgico, por exemplo, à ideia de um “partido único” – no qual estariam fundidos, num
certo sentido, o poder temporal e o poder espiritual –, ou ainda ao emprego da força
como forma de impor a nova ortodoxia ao conjunto da sociedade.
61
A crítica hayekiana do cientificismo, por sua vez, pensamos ser algo inadequada, se
empregada, em particular, ao positivismo de Augusto Comte. Para Hayek, como vimos,
o cientificismo deve ser entendido, fundamentalmente, como a aplicação acrítica a
determinado campo de estudo – no caso especificamente tratado pelo autor, ao campo
das ciências sociais – de métodos formados originalmente em outras áreas de investigação
do conhecimento humano – em seu caso específico, de novo, as demais ciências naturais
(a física, a biologia, etc.). Ora, pensamos que Augusto Comte não poderia concordar mais
com Hayek a esse respeito, posto afirmar, ainda na juventude, que “para que uma ciência
se torne positiva é preciso, em geral, que ela se funde apenas sobre observações; mas há,
nos diz Comte, uma certa ordem de observações que corresponde a cada ciência em
particular; pretender perturbar esta correspondência necessária, se esforçar em proceder numa ciência
pelas observações que convêm a uma outra, é uma ideia absolutamente falsa e viciosa, cuja
execução poderia apenas retardar os progressos do espírito humano”149.
Com respeito agora ao que defende Marcuse, diríamos que o positivismo de Comte não
recusa completamente a ideia de revolução em seu sentido negativo, isto é, destruidor da
ordem vigente; ele apenas entende a própria ideia de revolução, em sentido amplo –
seguindo nisto Saint-Simon –, como constituída de dois momentos distintos: um
negativo, destrutivo, mas também um positivo, orgânico. A ideia de revolução marxista,
ademais, nos parece essencialmente similar (no que toca essa questão) à ideia de revolução
positivista – ambas têm em vista a regeneração final da sociedade. A diferença entre o
positivismo e o marxismo, no entanto, reside no conteúdo final que cada um pretende
atribuir ao processo de dissolução da antiga ordem vigente e de construção da nova
ordem nascente: a sociedade positivista, no caso de Augusto Comte (hierarquizada
segundo o princípio da separação do poder temporal e do poder espiritual e devotada ao
bem comum); e o comunismo no caso de Marx (uma sociedade sem classes e sem a
propriedade privada dos meios sociais de produção)150.
Nosso intuito aqui, como destacado de início, não consiste, contudo, em esmiuçar as
críticas liberal ou marxista dirigidas ao positivismo de Augusto Comte, mas apenas em
149 EJ, p. 475, grifo nosso. 150 A diferença que acabamos de assinalar engendra, ela também, uma discordância (entre o positivismo e o marxismo) com relação ao momento histórico que vivem atualmente as sociedades modernas. Aos olhos do positivismo, a Revolução francesa representa o primeiro momento (negativo) da própria regeneração final da sociedade; ao passo que para o marxismo, ela está, num certo sentido, fora do escopo da revolução social (a verdadeira revolução, afinal), representando apenas o seu ponto de partida, isto é, o início da dominação burguesa sobre a classe proletária.
62
apresentá-las, em suas linhas gerais, como forma de preparar nossa leitura a respeito do
autor. No próximo capítulo, portanto, pretendemos justificar uma interpretação
republicana de Augusto Comte. Em nosso ver, inscrever o autor nos quadros do
republicanismo francês consiste no primeiro passo para se compreender adequadamente
o conteúdo de sua filosofia política. Entendê-lo como republicano, por exemplo,
impediria que liberais e marxistas, transformando-o num espantalho argumentativo,
tentassem transportar seu positivismo ao campo de seus adversários políticos –
acreditamos não ser possível lançá-lo nem ao campo dos liberais nem ao campo dos
marxistas, uma vez que Comte é um republicano (a “batata quente”, portanto, deve arder
nas mãos dos republicanos, e como deve arder...) –, ao mesmo tempo em que permitiria,
em nosso ver, apreciar a crítica que lhe é dirigida por cada uma dessas famílias da filosofia
política de forma mais adequada: a crítica do positivismo, tanto a de verniz marxista
quanto a de coloração liberal, ganharia, portanto, maior contundência, bem como o
debate (epistemológico, filosófico e político) travado, ainda que de forma implícita, por
Hayek e Marcuse tenderia, em nosso ver, a se aclarar.
63
2. Comte republicano
2.1. Ser republicano na França pós-revolucionária
“Senhor, um filósofo constantemente republicano endereça ao mais absoluto dos reis atuais
uma exposição sistemática da regeneração humana, tanto social quanto intelectual”151. É
dessa forma – “um filósofo constantemente republicano” – que Augusto Comte descreve
a si próprio em carta endereçada ao czar Nicolau I, imperador da Rússia, datada de 20 de
dezembro de 1852 (cinco anos antes, portanto, de sua morte) e reimpressa no prefácio
do tomo terceiro de seu Sistema de política positiva. A essa descrição de si próprio na velhice
vêm se juntar outras, feitas em correspondência a seus amigos e familiares, desta vez a
propósito do Comte ainda secundarista: “Desde a idade de quatorze anos eu havia
naturalmente cessado de acreditar em Deus”152. Essa emancipação religiosa, segundo
assinala Henri Gouhier, fora contemporânea de uma emancipação política, que o filósofo
designa “o republicanismo espontâneo de sua primeira juventude”153. Portanto, segundo os
depoimentos do próprio autor em suas cartas, deduzimos que ao menos dos quatorze
aos cinquenta e quatro anos, quase a totalidade de sua vida, Augusto Comte permaneceu
fiel à causa republicana na França. O que quer dizer isso em seu pormenor? Pergunta de
difícil solução.
151 SPP, III, p. xxxix, grifo nosso. 152 A citação é feita por Henri Gouhier a partir de trechos da correspondência de Augusto Comte publicados pela Revue Occidentale, no primeiro tomo do ano de 1909. O trecho em questão, datado de 26 de janeiro de 1857, aparece, segundo nota do comentador, tanto no extrato intitulado À son père, p. 15, como no intitulado À divers, p. 379. Ver Henri Gouhier, La jeunesse d’Auguste Comte, v. 1, Paris, Vrin, 1933, p. 71. 153 A citação agora se dá com respeito a carta de Augusto Comte endereçada a M. de Tholouze, datada de 17 de setembro de 1849, e publicada na Corréspondence inédite d’Auguste Comte, v. 3, Paris, Au Siège de la Société Positiviste, 1904, p. 83. Ver Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 71. O grifo na citação é nosso.
64
2.1.1. República indeterminada
Ao se indagar a respeito de qual seria a forma de governo das sociedades no futuro, um
célebre autor francês, contemporâneo de Augusto Comte, em passagem memorável de
uma de suas obras mais famosas, no diz: “‘Mas’, como alguns dos meus leitores mais
jovens podem protestar, ‘você é um republicano’. Republicano sim, mas essa palavra não
define nada. Res publica; isto é, a coisa pública. Agora, não importa quem esteja concernido
com os afazeres públicos, sob não importa qual forma de governo, pode chamar a si
próprio um republicano. Mesmo reis são republicanos. ‘Bom, então, você é um
democrata?’. Não. ‘O quê?! Você é um monarquista?’. Não. ‘Um constitucionalista?’.
Deus me livre! ‘Então, é um aristocrata?’. De forma alguma. ‘Quer um governo misto?’.
Menos ainda. ‘Mas, então, o que você é?’. Eu sou um anarquista” 154 . A resposta
arrebatadora dada por Pierre-Joseph Proudhon, em seu O que é a propriedade?, publicado
pela primeira vez em 1840, a seu jovem e imaginário interlocutor, entra para a história
das ideias, é bem sabido, como o momento de fundação do anarquismo. Interessa-nos
aqui, entretanto, não esta última parte de sua resposta, mas a primeira dela, em que o
autor, recorrendo à etimologia, pretende conferir a “República” e a “republicano” um
significado mais preciso, logo depois de ter se assumido, ele próprio, um adepto da “coisa
pública”.
Aos olhos de Proudhon (autor relevantíssimo para o período, é preciso enfatizar), certa
indeterminação parece acompanhar os termos “republicano” e “República” no debate
político francês do século dezenove. Ao dizer que “agora, não importa quem [...], pode
chamar a si próprio um republicano, [...] mesmo reis”, o autor nos sugere certa
banalização do termo, que viria acompanhada, por sua vez, de um esgarçamento de seu
campo semântico e conceitual (considerado outrora mais restrito, é preciso supor). A
indeterminação do vocábulo “republicano” permite, neste caso, sua convivência em
harmonia com a designação (que Proudhon faz de si mesmo) de “anarquista”, sem que
um anule necessariamente o outro: o autor se diz, ao mesmo tempo, sublinhemos,
republicano e anarquista155. Não pretendemos aqui tomar esse caso fora dos limites estreitos
154 Pierre-Joseph Proudhon, What is property?, Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 204-5. 155 Se há em Proudhon, como dissemos, um republicanismo anarquista, ou, de forma equivalente, um anarquismo republicano, segundo assinala agora Vincent Peillon, haveria também no período, sobretudo em Pierre Leroux, um republicanismo socialista ou um socialismo republicano (o que viria a corroborar a hipótese aventada por Proudhon a respeito da indeterminação do republicanismo francês). Ver Vincent Peillon, Actualisation du socialisme républicain: sécularisation, modernité et laïcité, in: Juliette Grange et Pierre Musso
65
de sua particularidade, isto é, propor sua generalização como forma de explicar as diversas
outras ocorrências dos termos “republicano” e “República” no debate político francês da
época. Pensamos, entretanto, que ele nos é bastante útil para ilustrar um aspecto muito
saliente do republicanismo francês, frequentemente encontrado também nos
comentários de estudiosos do período.
Segundo Alan Spitzer, uma indeterminação semelhante a esta assinalada por Proudhon
em O que é a propriedade? apresenta-se também ao leitor de Victor Hugo em Os miseráveis
(ambientado ainda na Paris da Restauração), numa passagem – que, segundo o
comentador, “deixou um traço permanente na imaginação historiadora”156 – em que
Monsenhor Bienvenu Myriel, santo bispo de Digne, se apresenta para a extrema unção
de um homem em seu leito de morte. “O homem que ele vem a confrontar muito mais
do que reconfortar, nos diz Spitzer, mas ao qual, no fim, ele implora a bênção, é um
antigo jacobino, um convencional, um homem que, nos primeiros anos da Restauração,
se encontra rejeitado como um pária, culpado, pelo passado, dos mais horríveis crimes
políticos, inclusive, se acredita, do regicídio”157. O velho jacobino, entretanto, nega ter
votado a morte do rei, dizendo: “Eu não acredito ter o direito de matar um homem; mas
sinto ter o dever de exterminar o mal. Eu votei o fim do tirano. Isto é, o fim da
prostituição para a mulher, o fim da escravidão para o homem, o fim da noite para a
criança. Ao votar a república, foi isto que votei. Votei a fraternidade, a concórdia, a
aurora! Contribuí para a derrubada dos preconceitos e dos erros. A derrocada dos erros
e dos preconceitos é o que traz a luz. Nós fizemos cair o velho mundo, nós outros, e o
velho mundo, vaso de misérias, ao se derramar sobre o gênero humano, se tornou uma
urna de felicidade”158.
“Ao se orgulhar de uma vida devotada à República, prossegue Spitzer, o ancião não
anuncia nenhuma república particular; nenhum conteúdo institucional específico
preenche esta urna de alegria. Esta indeterminação, conclui o comentador, prefigura ela
também mais de um século de um republicanismo fundamentalmente caracterizado por
(org.), Les socialismes, Paris, Le Bord de l’Eau, 2012, p. 90-106, e Pierre Leroux et le socialisme républicain: une tradition philosophique, Paris, Le Bord de l’Eau, 2003. 156 Alan Spitzer, La république souterraine, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), Le siècle de l’avènement républicain, Paris, Gallimard, 1993, p. 345. 157 Idem, ibidem. A respeito dos “regicidas” sob a Restauração, consultar Edgard Newman, Lost illusions: the regicides in France during the Bourbon Restauration, Nineteenth-century French Studies, v. 10, n. 1/2, p. 45-74, 1981-2. 158 Victor Hugo, Les misérables, in: ______, Œuvres complètes, edição de Jean Massin, Paris, Club Français du Livre, 1967-70, p. 11, 79, apud Alan Spitzer, op. cit., p. 346.
66
sua natureza ambígua e proteiforme” 159 . Vemos, portanto, que os dois casos aqui
apresentados, tanto o de Proudhon como este agora de Victor Hugo, analisado por
Spitzer, parecem indicar que em sua gênese o republicanismo francês se afirmou
sobretudo por uma negação: a negação do absolutismo; a tirania de que nos fala o velho
jacobino. Tudo se passaria na França, segundo essa interpretação, como se a República
fosse gradualmente adquirindo um significado mais preciso somente à medida que se
apresentava como alternativa política (enquanto regime de governo) à monarquia
absoluta e como alternativa espiritual (em termos de valores e de costumes) ao Antigo
Regime160. “Mesmo reis são republicanos”, enfatizava Proudhon, acreditando com isso
evidenciar a indeterminação completa do vocábulo. Como se, finalmente, ao admitir sob
sua égide sua própria antítese, o republicanismo perdesse completamente seu significado
e sua pertinência enquanto designação política característica161.
Claude Nicolet, em seu trabalho seminal sobre A ideia republicana na França, faz coro
também à interpretação de que o vocabulário republicano francês é sensivelmente
indeterminado. Já na introdução de seu livro, como vimos, o historiador nos falava de
uma multiplicidade de sentidos para a República no ideário político nacional162. Mais à
frente, Nicolet afirmará também que, ao se situar no interior da Revolução, o
“republicanismo francês, à imagem do cristianismo, [adquire o caráter de] uma doutrina
histórica encarnada, que, a cada geração, reescreverá uma história sempre nova de um
evento considerado como um ponto zero absoluto”163. Neste trecho, é preciso enfatizar,
o historiador mobiliza duas noções muito recorrentes entre os intérpretes da Revolução
francesa e de sua tradição republicana: a primeira delas, a ideia de que na França a
Revolução adquire, segundo as palavras de François Furet, o estatuto de um “recomeço
da humanidade, que os franceses nomearão regeneração”164, fazendo, portanto, tábula rasa
159 Alan Spitzer, op. cit., p. 347. 160 Segundo as palavras de Pierre Rosanvallon, “a oposição monarquia-república não é compreendida na França como um problema histórico ou constitucional. Ela tem uma dimensão filosófica: a república é a antimonarquia radical”, Le sacre du citoyen: histoire du suffrage universel en France, Paris, Gallimard, 1992, p. 456-7. 161 Acreditamos, diferentemente de Proudhon, que a questão seja mais complexa (conforme pretendemos mostrar mais adiante). O tipógrafo parece, no trecho aqui em destaque, inclinado a identificar ao absolutismo qualquer forma de monarquia (o que não é necessariamente verdadeiro). Há muita fluidez nos termos associados à tradição republicana francesa no século dezenove, o que permite aos atores políticos (e Proudhon, no limite, é um desses atores), um emprego destes termos, a depender da conjuntura enfrentada, em sentidos muito variados. 162 Ver Claude Nicolet, L’idée républicaine en France (1789-1924): essai d’histoire critique, Paris, Gallimard, 1994, p. 9 e ss. 163 Claude Nicolet, op. cit., p. 57. 164 François Furet, L’idée française de la Révolution, in: ______, La Révolution française, Paris, Gallimard, 2007, p. 889.
67
do passado e cristalizando em torno da República “a ideia de uma história originária, pela
qual a sociedade voltaria a ser conforme à natureza e à razão” 165 . A segunda ideia
mobilizada por Nicolet é que “Revolução” e “República” se confundem na história do
pensamento político francês. Nas palavras de Patrice Gueniffey, “a Revolução é desde o
início republicana”166, o que justificaria, ainda segundo o historiador, os revolucionários
terem situado o ano I de seu calendário em 1792, ano de fundação da Primeira República,
e não em 1789, ano da tomada da Bastilha, como forma de conferir, retrospectivamente
e a despeito de os acontecimentos políticos os contradizerem, um início republicano à
Revolução167.
Já para Pamela Pilbeam, merece destaque, de início, o caráter singular do republicanismo
francês: “[A] França, nos lembra a historiadora, foi o único grande estado europeu a
tentar substituir um governo monárquico por um republicano ao final do século
dezoito”168. Diferentemente dos Estados Unidos, cuja República se tornou estável já logo
depois da guerra de independência, para a França, entretanto, “foram necessárias três
revoluções, duas monarquias, dois impérios e a derrota na guerra de 1870 [para as tropas
de Bismarck] antes de uma república se tornar sustentável”169 em seu território. “Para os
republicanos, prossegue Pilbeam, a república veio a sumarizar o triunfo final, espiritual e
institucional, do homem em sociedade” 170. Seu longo processo de consolidação, no
entanto, acabou por lhe conferir características bastante particulares. A tese principal da
historiadora, que a norteará ao longo de toda sua investigação, é que a República se
desenvolveu na França, desde a Revolução até a sua consolidação nas décadas de 1870-
80, tendo por base três elementos principais: “a inspiração dos filósofos da ilustração, a
emergência de 1792, quando a tentativa de remodelar a sociedade estava em crise, e
[finalmente] a resposta ao impacto social das mudanças econômicas”171 ocorridas no país,
165 Idem, ibidem. 166 Patrice Gueniffey, Cordeliers et girondins: la préhistoire de la République?, in: François Furet & Mona Ozouf, op. cit., p. 206. 167 Gueniffey, com sua contundente afirmação, distorce levemente os fatos (de forma consciente, nos parece). O historiador se esforça em mostra que em espírito a Revolução era republicana já desde o seu início, apesar de não haver, segundo as famosas palavras de Camille Desmoulins, mais do que uma dezena de republicanos em Paris às vésperas do 14 de julho, e apesar de os debates iniciais do período revolucionário indicarem muito mais a monarquia limitada como saída constitucional para a crise política recém instaurada do que a via republicana. Ver, a esse respeito, Alphonse Aulard, Histoire politique de la Révolution française: origines et développement de la démocratie et de la République (1789-1804), Paris, Armand Colin, 1901, p. 5 e ss. 168 Pamela Pilbeam, Republicanism in nineteenth-century France (1814-1871), Londres, Macmillan, 1995, p. 1. 169 Idem, ibidem. 170 Idem, ibidem. 171 Idem, ibidem.
68
resultantes do processo de industrialização e de avanço do capitalismo em suas
metrópoles, sobretudo Paris172.
Se Pamela Pilbeam está correta em sua análise, isto é, se o republicanismo francês de fato
se consolida, no século dezenove, a partir (i) da herança da filosofia das Luzes; (ii) da
memória da Primeira República (com seu espectro de autoritarismo se manifestando ora
na figura do Terror jacobino, ora na figura do cesarismo); e (iii) a partir daquilo que se
convencionou chamar, ainda à época, de a “questão social”173, precisamos estar atentos,
em nossa investigação particular a respeito do republicanismo de Augusto Comte, ao
modo segundo o qual o pensamento do autor se inscreve nesse quadro de questões. A
relação de Augusto Comte com a tradição iluminista e com os ecos da Primeira
República, teremos oportunidade de abordar, com maior riqueza de detalhes, mais à
frente nesta exposição. Nos próximos parágrafos, gostaríamos apenas de analisar de
forma breve, não mais do que isto, alguns aspectos bastante particulares da relação do
positivismo com a “questão social”, buscando retirar desta análise fundamentos para
nossa interpretação do republicanismo de Augusto Comte (que, com sorte, poderão
auxiliar também na tarefa, mais geral, de compreender o pensamento republicano francês
do século dezenove como um todo).
172 Para outros trabalhos de conjunto a respeito do republicanismo francês no século dezenove, consultar os estudos pioneiros de Georges Weil, Histoire du parti républicain en France (1814-1870), Paris, Félix Alcan, 1929 e de Iouda Tchernoff, Le parti républicain sous la Monarchie de Juillet: formation et évolution de la doctrine républicaine, Paris, A. Pedone, 1901 e Le parti républicain au coup d’État et sous le Second Empire, Paris, A. Pedone, 1906. A respeito do republicanismo francês sob a Restauração, consultar a tese não publicada de Edgard Newman, Republicanism during the Bourbon Restauration in France (1814-1830), Chicago, Universidade de Chicago, 1969. 173 A respeito da “questão social”, Robert Castel nos diz: “Essa questão foi explicitamente nomeada como tal, pela primeira vez, nos anos 1830. Foi então suscitada pela tomada de consciência das condições de existência das populações que são, ao mesmo tempo, os agentes e as vítimas da revolução industrial. É a questão do pauperismo. Momento essencial aquele em que pareceu ser quase total o divórcio entre uma ordem jurídico-política, fundada no reconhecimento dos diretos dos cidadãos, e uma ordem econômica que acarreta uma miséria e uma desmoralização de massa. Difunde-se então a convicção de que aí há de fato ‘uma ameaça à ordem política e moral’, ou, mais energicamente ainda: ‘É preciso encontrar um remédio eficaz para a chaga do pauperismo ou preparar-se para a desordem do mundo’. Entenda-se isso como o fato de que sociedade liberal corre o risco de explodir devido às novas tensões sociais que são a consequência de uma industrialização selvagem”, As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, Rio de Janeiro, Vozes, 2005, p. 30. Para outros estudos, já tidos como clássicos, a respeito do assunto, ver Louis Chevalier, Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris pendant la première moitié du XIXe siècle, Paris, Librairie Générale Française, 1978 e Jacques Donzelot, L’invention du social: essai sur le déclin des passions politiques, Paris, Fayard, 1984. Para um depoimento a respeito do tema, ainda no século dezenove, consultar Paul Deschanel, La question sociale, Paris, Calmann-Lévy, 1898. E, finalmente, para uma introdução do assunto ao leitor brasileiro, ver Maria Stella M. Bresciani, Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, São Paulo, Brasiliense, 2004.
69
2.1.2. O bem comum e a questão social
Pensamos que é em seu Discurso sobre o conjunto do positivismo, publicado em 1848 e
republicado (com algumas pequenas modificações) em 1851 como “discurso preliminar”
de seu Sistema de política positiva, que Augusto Comte expõe de maneira mais clara e
sistemática a posição de sua doutrina positivista frente à questão social, bem como sua
relação com elementos distintivos da tradição republicana consolidados ao longo dos
tempos. A referência explícita a termos como “República”, “republicanismo” e
“republicano” – segundo nos mostra a tábua analítica (elaborada por M. H. d’Olier) do
Sistema de política positiva174 –, viceja neste texto como em nenhum outro de seus escritos.
“O verdadeiro princípio republicano, nos diz Augusto Comte, consiste em fazer sempre
concorrer ao bem comum todas as forças quaisquer. Para isto, é preciso, de um lado,
determinar exatamente aquilo que exige, em cada caso, a utilidade geral e, de outro lado,
desenvolver por toda parte as disposições correspondentes”175.
Vê-se do trecho acima, essencial para nossa análise, que o positivismo de Augusto Comte
se vincula à tradição republicana a partir (ousaríamos dizer) de sua característica a mais
fundamental: a ideia do bem comum. O bem comum, entretanto, aparecerá em nosso autor,
como pretendemos mostrar adiante, entrelaçado à questão social, o que acaba por
conferir ao seu republicanismo um caráter bastante particular e inovador, em face da
tradição republicana que o antecedeu. “Descartando para sempre, nos diz o autor, a
mentira oficial pela qual a monarquia constitucional pretendia se erigir como o resultado
final da grande revolução, nossa república pode apenas proclamar, como irrevogável, seu único
princípio moral, a completa preponderância contínua do sentimento social, devotando diretamente ao bem
comum todas as forças reais. Tal é, nos dias de hoje, a única máxima verdadeiramente
definitiva [...]. Mas, quanto às doutrinas e, por via de decorrência, às instituições próprias
a organizar este reino direto da sociabilidade universal, nossa república permanece essencialmente
indeterminada, e comporta muitos regimes diferentes. Não há nada de politicamente
irrevogável senão a completa abolição da realeza, que, sob uma forma qualquer, constituía
há muito tempo na França, e mesmo em menor grau em todo o Ocidente, o símbolo da
retrogradação”176.
174 Ver SPP, IV, Tábua analítica, p. 30. 175 Ensemble, p. 163-4. 176 Ibidem, p. 118, grifo nosso.
70
Notemos, em primeiro lugar, que a indeterminação da República, de que falamos
longamente no início desta exposição, reaparece ao final do exposto precedente de
maneira flagrante: em termos de doutrinas e de instituições, afirma Augusto Comte, a
única certeza que se tem é a abolição da monarquia. Notemos, em seguida, que o
“princípio moral” da república (seu único princípio moral, ademais) é entendido aqui
como a “preponderância do sentimento social”, que devota ao bem comum todas as
forças reais. O “comum” e o “social” aparecerão nesses escritos de Comte de tal forma
reunidos que não será mais possível, em nosso entendimento, conferir a cada um deles
um significado totalmente distinto, devendo-se, portanto, interpretá-los, na maior parte
das vezes, como sinônimos. Senão, vejamos: o autor afirma, noutra passagem do texto,
que “o abalo revolucionário, que impulsionou definitivamente a França, centro normal
do Ocidente, à busca de uma regeneração total”177, foi o responsável pela proclamação,
“sem nenhuma intervenção teológica, [do] verdadeiro princípio social, surgido de início na
Idade Média, sob a inspiração católica, mas não podendo prevalecer senão em
conformidade a uma melhor filosofia e num meio mais bem preparado”178.
Ora, se o autor nos afirma, no trecho em questão, que a Revolução proclamara o princípio
social, momentos antes no texto ele nos afirmava: “Em sua significação negativa, o
princípio republicano resume definitivamente a primeira parte da revolução, interditando
qualquer retorno de uma realeza que, desde a segunda metade do reino de Luís XIV,
aglutinava naturalmente todas as tendências retrógradas”179. Buscamos aqui, a partir do
cotejo destes dois últimos excertos, fundamentar a interpretação de que, no fundo, os
princípios “social” e “republicano”, de que nos fala Augusto Comte, podem ser
compreendidos como uma única e mesma coisa. Com efeito, segundo os próprios termos
do autor, a Revolução, por um lado, proclamou o princípio social (proclamara, também,
não nos esqueçamos, a própria República); por outro lado, a primeira parte da revolução
(em termos históricos, a própria Revolução180) pode ser resumida em termos do princípio
republicano (ainda que com respeito apenas à sua significação negativa). Em síntese: a
177 Ibidem, p. 62. 178 Ibidem, p. 71, grifo nosso. 179 Ibidem, p. 70. 180 Augusto Comte fala em “primeira parte da revolução” pois, em sua concepção, a verdadeira noção de revolução pressupõe sempre dois momentos distintos: um crítico, destrutivo, mas também um orgânico, construtivo (que, no caso da França, ainda estaria por vir). Carente deste segundo momento, a Revolução, aos olhos do autor, não passaria de mera anarquia; carente, por outro lado, do primeiro momento, ela seria simplesmente impossível.
71
Revolução proclama o princípio social e o princípio republicano resume a Revolução
(respeitando absolutamente a letra do autor, é isto o que seu texto nos diz). Se quisermos
manter (por razões de acuidade exegética) a independência dos dois princípios, ou seja,
evitar a sua identificação completa, teremos aos menos de reconhecer a sua sobreposição
parcial, isto é, se o princípio social não se reduz completamente ao princípio republicano,
ao menos está por ele de alguma forma envelopado.
Já com respeito à sua significação positiva, Augusto Comte nos dirá que o princípio
republicano “inicia diretamente a regeneração final [da sociedade], proclamando a
subordinação fundamental da política à moral, segundo a consagração permanente de
todas as forças quaisquer a serviço da comunidade181. Sem dúvida, este princípio não
existe ainda senão em estado de sentimento; mas era assim que ele deveria surgir e é assim
mesmo que ele prevalecerá ainda depois de sua indispensável sistematização”182. Ainda
segundo o autor, “o conjunto do movimento [revolucionário] possuía, desde o início,
uma destinação essencialmente orgânica, sobretudo explícita a partir da preponderância
do espírito republicano” 183 . Essa regeneração social, entretanto – essencialmente
orgânica, responsável pela subordinação da política à moral e que em breve se propagará
no seio da sociedade (mesmo depois da sistematização de seus princípios) enquanto um
“sentimento” –, deverá ser levada a cabo, segundo Comte, não pelas classes que detêm o
poder temporal, mas justamente por aquelas cuja própria existência pressupõe a sua
destituição do poder.
“Um ativo egoísmo aristocrático, nos diz Augusto Comte, entrava ordinariamente a
preponderância real do sentimento social, princípio supremo de nossa reorganização.
181 É curioso notar que quando se refere à comunidade (ou ao bem comum), nosso autor, na maior parte das vezes, utiliza termos associados também ao catolicismo. Ocorre aqui “consagração” (consécration); mais acima no texto víamos o aparecimento do termo “devotando” (vouant). Pensamos que nada disso é por acaso. Para além do elogio da Idade Média, como um período de grande progresso social, sobretudo pela superação da identidade entre “poder espiritual” e “poder temporal” (confundidos, para Comte, na Antiguidade), a exaltação de figuras da escola contrarrevolucionária, como Joseph de Maistre, é recorrente nos textos do autor. A admiração por Louis de Bonald e Lamennais, apesar de suas discordâncias teóricas, também nunca fora ocultada por Augusto Comte, que, em alguns momentos, chegou mesmo a manter relações de amizade com estes expoentes do pensamento neocatólico. Para a separação entre poder espiritual e poder temporal, ver CPS, passim. Para a relação de Comte com de Bonald e Lamennais, ver Mary Pickering, Auguste Comte: an intellectual biography, v. 1, Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 117, 157, 307, 313, 668 e 265-6, 356, 391, respectivamente. Se o positivismo entretém, como mostraremos no capítulo seguinte, uma relação ambivalente com a escola revolucionária, supomos aqui que o mesmo se dá no caso da escola retrógrada. Com efeito, a junção da Ordem e do Progresso faz de nosso autor uma figura dividida em seu tempo, um reformador social que se esforçará, a todo custo, em compatibilizar duas coisas que insistem em se manter desconexas. Augusto Comte tem a um só tempo uma mente revolucionária e um coração do Antigo Regime. 182 Ensemble, p. 70. 183 Ibidem, p. 66.
72
Não apenas não se deve contar com as classes cuja dominação foi para sempre destruída
no início da crise revolucionaria; mas nós devemos esperar uma repugnância [pelo
sentimento social] quase tão real, embora melhor dissimulada, naquelas [classes] que
obtiveram então a ascensão social que cobiçavam há muito tempo. Suas concepções
políticas se relacionam sobretudo à posse do poder, ao invés de concernir a sua
destinação e seu exercício. [...] Ambas estariam de acordo, sobretudo, em prolongar, tanto
quanto possível, sob novas formas, mesmo republicanas, o sistema de hipocrisia teológica
que constitui agora o único resquício efetivo do regime retrógrado”184. As classes às quais
se refere o autor no excerto são a antiga nobreza, os estamentos clericais e a burguesia
ascendente. Em seu ver, é preciso frisar, nenhuma delas deverá conduzir doravante o
processo derradeiro de consolidação da revolução, isto é, a regeneração final da
sociedade.
“[O] positivismo, prossegue Augusto Comte, não pode obter profundas adesões coletivas
senão no seio das classes que, estrangeiras a qualquer viciosa instrução de palavras ou de
entidades, e naturalmente animadas por uma ativa sociabilidade, constituem doravante
os melhores apoios do bom senso e da moral. Numa palavra, nossos proletários são os únicos
suscetíveis a se tornarem os auxiliares decisivos dos novos filósofos. A impulsão regeneradora
depende sobretudo de uma íntima aliança entre estes dois elementos extremos da ordem
final”185. O poder espiritual, condão da moralidade, suposto subjugar a política e o poder
temporal, deve ficar, segundo o autor, a cargo de uma classe de cidadãos composta por
proletários e filósofos. No limite, entende Augusto Comte, estas duas figuras sociais
tendem mesmo a se confundir, porquanto “todo proletário constitui, em muitos sentidos,
um filósofo espontâneo, bem como todo filósofo representa, sob diversos aspectos, um
proletário sistemático”186. Confundem-se elas também quanto à sua posição na sociedade
em relação à burguesia. “Estas duas classes extremas, arremata o autor, oferecerão,
ademais, disposições equivalentes com respeito à classe intermediária, que, sede
necessária da preponderância temporal, tem sob sua dependência normal a comum
existência pecuniária [de cada uma] delas”187.
184 Ibidem, p. 128-9. 185 Ensemble, p. 129, grifo nosso. 186 Ibidem, p. 130. 187 Ibidem.
73
Sem restituir o Antigo Regime, Augusto Comte visa, entretanto, ao restabelecimento de
sua estrutura fundamental, isto é, a separação entre o poder temporal e o poder espiritual,
mas adequada agora às características de uma sociedade moderna, pós-revolucionária e
industrial188. Os proletários, “auxiliares indispensáveis do poder espiritual”189, ocupariam,
neste contexto, um lugar de destaque no processo de regeneração da sociedade. “Longe
de comprometer a ordem fundamental, afirma o autor, uma tal cooperação popular
constituirá sua mais firme garantia, pela simples razão de que ela não será política, mas
moral. [...] À turbulenta discussão dos direitos, substituiremos a tranquila determinação
dos deveres. Os vãos debates a respeito da posse do poder serão substituídos pelo exame
das regras relativas ao seu exercício”190. Na direção deste objetivo, assinala Augusto
Comte, os proletários franceses “já deram [...] um passo espontâneo, cuja importância é
ainda pouco sentida. Uma célebre utopia, que se propaga rapidamente, lhes serve, na falta
de uma melhor doutrina, para formular hoje em dia sua maneira própria de conceber a
principal questão social. Embora a experiência que resultou da primeira parte da revolução
não os tenha, de modo algum, desacorçoado completamente das ilusões políticas, ela os
conduziu a sentir que a propriedade lhes importava mais do que o poder propriamente dito.
Estendendo até ela [a propriedade] o grande problema social, o comunismo presta nos dias
de hoje um serviço fundamental que não é, no entanto, neutralizado pelos perigos
temporários inerentes a suas formas metafísicas”191.
2.1.3. A propriedade como cerne da questão social
Como visto, o cerne da questão social para Augusto Comte (bem como para a maior
parte de seus contemporâneos) é a propriedade. O deslocamento do debate do político
para o social, vale assinalar, é uma das características mais marcantes deste século
dezenove que nos arriscamos aqui a investigar (e nosso autor, como vemos, acompanha
este movimento). Note-se que a discussão a respeito das instituições e dos regimes de
governo – o “poder propriamente dito” – se torna absolutamente secundária neste caso
(como, ademais, em boa parte dos autores do período). Importa mais a organização do
188 Em nota de sua Sumária apreciação do conjunto do passado moderno, Augusto Comte nos diz: “A divisão da sociedade, e de tudo quanto lhe concerne, em temporal e espiritual, deve subsistir no sistema novo, como acontecia no antigo. Esta divisão, que não existia entre os romanos, é o mais importante aperfeiçoamento realizado pelos modernos na organização social. Foi ela que primitivamente possibilitou fazer da política uma ciência, permitindo tornar sua teoria distinta da prática”, Sommaire, p. 18. 189 Ensemble, p. 150. 190 Ibidem, p. 151. 191 Ibidem, p. 151-2, grifo nosso.
74
trabalho, os direitos sociais, a participação dos indivíduos na produção e na distribuição
das riquezas geradas coletivamente. Augusto Comte saúda o comunismo justamente por
ter se dado conta disto e, consequentemente, por ter aberto os olhos dos proletários para
a questão social, sugerindo – apesar dos “perigos temporários inerentes a suas formas
metafísicas”, como diz o filósofo –, um afastamento da política e um redirecionamento
do debate para o campo estrito da moralidade.
É difícil afirmar o que exatamente nosso autor entende por “comunismo”, uma vez que
em seu texto o termo não vem acompanhado por citações ou referências diretas a outros
autores ou movimentos políticos específicos192. Ocorre na verdade o contrário: Augusto
Comte quando se refere (ainda que indiretamente) a outros autores do período, cujo
pensamento mesmo engendrou destacados movimentos políticos, o faz somente com o
intuito de afastá-los do comunismo. O autor nos diz que “esta utopia [o comunismo]
deve ser cuidadosamente distinguida das numerosas aberrações que, apelando às mais
difíceis especulações de espíritos incapazes ou mal preparados, fazem eclodir nossa
anarquia espiritual. Estas vãs teorias são tão pouco caracterizadas que se é conduzido a
designá-las pelo nome de seus autores”193. Comte se refere aqui, muito provavelmente,
ao saint-simonismo, ao fourierismo, ou ainda, aos icarianos de Cabet194. “O comunismo,
que não leva o nome de ninguém, prossegue o autor, não é absolutamente um produto
acessório de uma situação excepcional. É preciso encará-lo como o progresso
espontâneo, mais afetivo que racional, do verdadeiro espírito revolucionário, tendendo
192 Precisaríamos aqui, nos parece, avançar a tese segundo a qual o conhecimento de Augusto Comte a respeito do “comunismo” (e do que ele vem a chamar na sequência do texto de “socialismo”) se dá sobretudo de segunda mão. Isto porque, segundo nos conta Mary Pickering, desde 1838, e como medida de saúde auto infligida para o controle de suas “crises cerebrais”, nosso autor adotara “um novo regime intelectual, que chamou de ‘higiene cerebral’. Exasperado pelos ataques de jornalistas e saint-simonianos à sua criatividade, ele decidiu que precisava preservar sua ‘originalidade característica’. Portanto, se absteve de ler jornais, livros e revistas, exceto os boletins semanais da Academia de Ciências, pelos quais ele apenas passava os olhos irregularmente. Para relaxar, ele se permitiu, entretanto, ler ‘os grandes poetas de cada época e nação’”, Mary Pickering, op. cit., v. 1, p. 485. É bastante provável que, no caso específico do comunismo e do socialismo, Augusto Comte tenha se informado, sobretudo, a partir do diálogo travado com os próprios proletários, alguns dos quais frequentaram assiduamente seu curso de astronomia popular, ministrado pública e gratuitamente durante dezoito anos todos os domingos, ao meio-dia, na prefeitura do terceiro arrondissement de Paris. A respeito do curso de astronomia popular de Comte, consultar Carole Christen, Les leçons et traités d’astronomie populaire dans le premier XIXe siècle, Romantisme, n. 166, 2014, p. 13 e ss. 193 Ensemble, p. 152. 194 Ver a nota 154 de Annie Petit em Augusto Comte, Discours sur l’ensemble du positivisme, Paris, Flammarion, 1998, p. 443. Esta edição do discurso do filósofo, com introdução e notas excelentes da comentadora francesa, só não é por nós aqui adotada como referência para a citação do texto do autor pois ela suprime (ademais, de maneira incompreensível) trechos que Augusto Comte adicionara, em sua versão final de 1851, ao texto original de 1848. Por essa razão, seguimos adotando como referência o texto publicado como “discurso preliminar” do Sistema de política positiva, em 1851, valendo-nos, entretanto, quando necessário, do aparato crítico fornecido por Annie Petit na edição Flammarion.
75
nos dias de hoje a se preocupar sobretudo com as questões morais [e] relegando ao
segundo plano as questões políticas propriamente ditas”195.
Apesar de elogiar o comunismo, por entendê-lo comprometido com o sentimento social,
Augusto Comte nos alerta para o fato de que “sem dúvida, a solução atual dos comunistas
permanece ainda essencialmente política, como em seus predecessores, visto que é
também pelo modo de posse [do poder ou da propriedade] que eles pretendem regular
[seu] exercício”196. Contrariamente, o autor, como vimos, entende que a solução para o
problema social experimentado pelos proletários é de natureza moral, e que não diz
respeito, portanto, ao poder temporal. Na versão de 1851 de seu discurso, o autor
acrescenta um parágrafo (neste momento do texto a que temos nos referido) saudando
dessa vez o “socialismo” por ter compreendido, melhor do que o comunismo, a natureza
moral da questão social. “Uma tal tendência [a submissão da política à moral] já se
manifestou claramente, desde a publicação inicial deste discurso, pela nova fórmula que
prevaleceu espontaneamente em nossos proletários. Adotando a afortunada expressão
de socialismo, eles a um só tempo aceitaram o problema dos comunistas e recusaram sua
solução [essencialmente política]”197.
Assim como havia feito com o comunismo, entretanto, agora também no caso do
socialismo, logo após saudá-lo pelo acento conferido, corretamente, à questão social,
Augusto Comte não deixará de fazer seu alerta: “Mas os socialistas atuais não evitam
realmente o comunismo senão permanecendo passivos ou críticos. Caso eles obtivessem
ascensão política antes que suas ideias tivessem atingido o [mesmo] nível de seus
sentimentos, eles seriam, num instante, necessariamente conduzidos [às mesmas]
aberrações anárquicas que seu instinto confuso reprova nos dias de hoje”198. No fundo,
para o autor, apenas o positivismo seria capaz de resolver a questão social e ao mesmo
tempo “preservar o Ocidente de toda grave tentativa comunista”199. A solução positivista
para o problema, prossegue Comte, “tornará em breve inúteis estas denominações
passageiras [isto é, o comunismo e o socialismo]. Definitivamente purificada, a antiga
denominação de republicanos bastará, em todo caso, para designar os verdadeiros
sentimentos regeneradores, ao passo que apenas o título de positivistas caracterizará as
195 Ensemble, p. 152. 196 Ibidem. 197 Ibidem, p. 153. 198 Ibidem, p. 153-4. 199 Ibidem, p. 154.
76
opiniões, os costumes e mesmo as instituições correspondentes”200. O positivismo, para
Augusto Comte, é a única doutrina capaz de “sistematizar o princípio espontâneo do
comunismo sobre a natureza social da propriedade e sobre a necessidade de regulamentá-
la”201.
Nota-se, portanto, que a relação do positivismo com o comunismo e o socialismo é
ambivalente: ao mesmo tempo em que os saúda por avultar a questão social, tomando
por cerne a natureza social da propriedade e a necessidade de regulamentá-la, Augusto
Comte já parece entrever nestas “utopias” um potencial anárquico que as conduziria,
finalmente, a uma solução meramente política e temporal para os problemas morais da
época. A “tomada dos meios sociais de produção”, como se vê, está já de alguma maneira
delineada em nosso autor, na disposição por ele atribuída (ainda que em meio a
considerável confusão) a socialistas e comunistas em dar uma resposta temporal a um
problema que é de natureza essencialmente espiritual.
Se por um lado (à esquerda, poderíamos dizer), o republicanismo positivista de Augusto
Comte pretende definir sua posição doutrinária com respeito à questão social (isto é, a
propriedade) distinguindo-se do comunismo e do socialismo, por outro lado (à direita),
ele o fará também com respeito ao individualismo. “Os verdadeiros filósofos, nos diz o
autor, não hesitam de forma alguma a sancionar diretamente as reclamações instintivas
dos proletários com relação à viciosa definição adotada pela maior parte dos juristas
modernos, que atribuem à propriedade uma individualidade absoluta, como direito de usar e
abusar”202. Augusto Comte, no entanto, entende que “esta teoria antissocial [a teoria
individual da propriedade], historicamente [se deve] a uma reação exagerada [das classes
proprietárias] contra opressões excepcionais”203. O autor se refere aqui aos decretos
revolucionários que expropriaram arbitrariamente os bens da nobreza, ainda no final do
século dezoito. Apesar de entender a propriedade (enquanto individualidade absoluta)
como uma “reação exagerada” a “opressões excepcionais”, isto é, como o efeito perverso
200 Ibidem. 201 Ibidem. 202 Ibidem, grifo nosso. A ideia da propriedade como “o direito de usar e abusar” aparece também em Proudhon, que irá buscá-la no próprio direito romano, para ser logo em seguida, como se sabe, duramente recusada como “roubo”. Ver Pierre-Joseph Proudhon, op. cit., p. 35 e ss. 203 Ensemble, p. 154-5.
77
de uma ação também ela perniciosa em sua origem, nosso autor não hesita em sentenciá-
la como “desprovida de justiça e de realidade”204.
A gênese da propriedade, para Augusto Comte, está apenas na “cooperação pública”,
razão pela qual “seu exercício não deve jamais ser puramente individual”205. “Sempre e
por toda parte, a comunidade interveio [na propriedade] para subordiná-la às
necessidades sociais. O imposto realmente associa o público a cada fortuna particular; e
a marcha geral da civilização, longe de diminuir essa participação, a aumenta
continuamente, sobretudo entre os modernos, desenvolvendo ainda mais o vínculo de
cada um a todos. Um outro uso universal prova que, em certos casos extremos, a
comunidade se crê mesmo autorizada a tomar para si, inteiramente, a propriedade”206. Se
na França, saída da Restauração e da Monarquia de Julho, o confisco da propriedade fora
provisoriamente abolido, Augusto Comte atribui esta arbitrariedade somente aos abusos
cometidos durante a Revolução: uma tal exceção não podendo “sobreviver por muito
tempo às lembranças que a inspiraram e ao poder que as introduziu”207.
A recusa do individualismo, manifesto na concepção jurídica da propriedade enquanto
direito de “usar e abusar” se dá, em Comte, acompanhada também da recusa da economia
política – associada, por sua vez, ao laissez-faire e ao liberalismo econômico208. “É preciso
admitir também, nos diz o autor, [a] crítica fundamental [que fazem os proletários aos]
economistas, cujas máximas metafísicas interditam toda regularização social das fortunas
pessoais. Esta aberração dogmática, suscitada, como a precedente, por viciosas
intervenções, é diretamente contrária à sã filosofia, embora pareça dela se aproximar ao
reconhecer a existência de leis naturais nos fenômenos sociais”209. Se, por um lado,
Augusto Comte não deixa de reconhecer o mérito da economia política em aderir ao
princípio segundo o qual os fenômenos sociais também são regidos por leis naturais, por
outro lado, não deixará de censurá-la de modo severo, por ter sido incapaz de
compreendê-lo inteiramente, uma vez que “não o apreciou, de início, em relação aos
menores fenômenos, antes de o estender aos mais elevados” 210 . Ao desviarem-se,
204 Ibidem, p. 155. 205 Ibidem. 206 Ibidem. 207 Ibidem. A “teoria positiva da propriedade” é discutida mais longamente por Augusto Comte no segundo capítulo do segundo volume do Sistema de política positiva. Ver SPP, II, p. 138-76. 208 Para a crítica de Augusto Comte à economia política, ver Roger Mauduit, Auguste Comte et la science économique, Paris, Félix Alcan, 1929. 209 Ensemble, p. 155. 210 Ibidem.
78
portanto, da tarefa de erguer uma enciclopédia dos conhecimentos positivos antes de se
lançarem ao estudo das leis que regem a sociedade, nosso autor afirma que os
economistas “desconheceram assim, radicalmente, a tendência da ordem natural a se
tornar cada vez mais modificável à medida que se complica gradualmente”211.
Para Augusto Comte, como veremos em maiores detalhes no próximo capítulo, os
fenômenos naturais, apesar de regidos por leis invariáveis, não deixam, entretanto, de ser
modificáveis; e tanto mais são modificáveis quanto são mais complexos (e por serem
complexos são também, para o filósofo, imperfeitos). Os fenômenos sociais por serem,
segundo a hierarquia da enciclopédia positivista, os mais complexos e os mais imperfeitos
de todos são também os fenômenos mais modificáveis, segundo Augusto Comte. Ao não
reconhecer, portanto, esse princípio fundamental da ordem natural (a modificabilidade
crescente dos fenômenos), a economia política (essencialmente pré-científica, aos olhos
do autor) convalida a doutrina do laissez-faire, supondo, com efeito, toda tentativa humana
de intervenção nos fenômenos sociais como substancialmente funesta – e supondo os
próprios fenômenos sociais como que destinados a uma harmonia pré-estabelecida,
imanente à própria natureza. “Nada pode desculpar, nos diz Augusto Comte, a
reprovação doutoral que a metafísica econômica opõe à intervenção contínua do
conhecimento humano nas diversas partes do movimento social. As leis naturais às quais
este movimento está, com efeito, submetido, longe de nos desviar [da tarefa] de modificá-
lo incessantemente, devem, ao contrário, nos servir para nele aplicar melhor nossa
atividade, a qual, neste tocante, se encontra por sua vez mais eficaz e mais urgente do que
em relação a todos os outros fenômenos”212.
Vemos, portanto, a partir dos trechos analisados acima, que nosso autor, ao discutir a
questão social (entendendo-a, fundamentalmente, como a questão da propriedade), acaba
por circunscrever o terreno habitado por seu pensamento republicano. Augusto Comte
o faz, como vimos, estabelecendo uma distância segura, por um lado, do socialismo e do
comunismo; e, por outro lado, do individualismo e do liberalismo econômico. Aos olhos
do autor, a propriedade e seu uso se destinam apenas ao bem comum e não aos indivíduos
tomados como independentes da sociedade. Sob um outro aspecto, contudo, nosso autor
recusa a via do poder temporal como forma de regulamentar o uso social da propriedade,
211 Ibidem. 212 Ibidem, p. 156.
79
considerando-a essencialmente anárquica e, portanto, contrária à natureza espiritual do
problema que atinge os proletários. Com efeito, o que faz, fundamentalmente, Augusto
Comte, é atualizar os conceitos da tradição republicana em face dos problemas de seu
tempo. Ser republicano, para o filósofo, é muito mais do que se identificar com um
particular regime de governo – é muito mais, portanto, do que adentrar o terreno do
poder temporal e apenas disputar o “poder propriamente dito”. Ser republicano é, antes
de mais nada, uma questão moral: é devotar-se, cada um dos cidadãos particulares, única
e exclusivamente ao bem comum de todos.
2.2. O positivismo e a Terceira República
A pista que nos levou à vinculação de Augusto Comte ao republicanismo francês nos foi
dada inicialmente por Claude Nicolet, em seu já mencionado trabalho A ideia republicana
na França. Lá se lê que “uma história ideológica séria da República na França passa
necessariamente pela referência ao positivismo”213. Nicolet se refere ao fato de que os
pais fundadores da Terceira República nas décadas de 1870-80 – trata-se, sobretudo, de
Léon Gambetta, Émile Littré e Jules Ferry –, se por um lado mantiveram-se ainda ligados
aos ideais iluministas consagrados pela Revolução, legado que o partido republicano
francês nunca esteve disposto a abandonar, por outro lado, construíram sua doutrina
política, ou, como diz Nicolet, a “filosofia de sua ação”, apoiados naquilo que eles
próprios chamaram “a maior filosofia do século”, a saber, o positivismo de Augusto
Comte214.
As décadas do Segundo Império que antecederam a Terceira República, segundo nos
conta Donald Charlton, pareceram “a seus futuros intérpretes supremamente como uma
‘era do positivismo’ na história do pensamento francês. Esta generalização, já prevalente
nos anos finais do século dezenove, persistiu até os dias presentes e historiadores, de
Brunetière215, Monod216, Lanson217 e Parodi218 a Thibaudet219, Jasinski220, Martino221 e
213 Claude Nicolet, op. cit., p. 188. 214 Ver Claude Nicolet, op. cit., p. 187. 215 Ver Ferdinand Brunetière, La renaissance de l’idéalisme, in: ______, Discours de combat, v. 1, Paris, Perrin et Cie., 1900, p. 4-5 e L’évolution de la poésie lyrique au dix-neuvième siècle, v. 2, Paris, Hachette et Cie, 1922, p. 114-49. 216 Ver Gabriel Monod, Les maîtres de l’histoire: Renan, Taine, Michelet, Paris, Calmann-Lévy, 1894, p. 138. 217 Ver Gustave Lanson, Histoire de la littérature française, Paris, Hachette et Cie, 1895, p. 1005-14. 218 Ver Dominique Parodi, Du positivisme à l’idéalisme: philosophies d’hier, Paris, Vrin, 1930, p. 7. 219 Ver Albert Thibaudet, Histoire de la littérature française de 1789 à nos jours, Paris, Éditions Stock, 1936, p. 407-9. 220 Ver René Jasinski, Histoire de la littérature française, v. 2, Paris, Boivin et Cie., 1947, p. 240. 221 Ver Pierre Martino, Parnasse et symbolisme (1850-1900), Paris, Armand Colin, 1947, p. 32.
80
Philippe van Tieghem222, em anos mais recentes, concordaram que tanto a filosofia
quanto a literatura nesse período são dominadas pelo enfoque positivista”223. O prestígio
adquirido pelas ideias positivistas nesse período, segundo nos narra agora Terence
Wright, parece não ter se limitado à França, seu país de origem, penetrando também com
grande força os meios intelectuais da Inglaterra vitoriana. “Nenhum estudante, se
afirmava, ‘podia passar pelos anos sessenta intocado pela curiosidade sobre o novo
sistema filosófico’, e de 1860 a 1880 pareceu impossível, para qualquer grande figura
científica ou literária que se aventurasse no debate público, não defender sua posição em
relação ao Positivismo. Para John Seeley, recém-eleito Professor Régio de História
Moderna em Cambridge, em 1869, com claras instruções para combater essa ameaça, ‘o
próprio ar parecia repleto de Comtismo’, que aparecia ‘irresistivelmente triunfante’.
Jovens clérigos ardentes também se sentiram obrigados a empunhar os porretes contra
Comte, que continuou a ocupar um grande ‘espaço nas mentes dos jovens dos anos
oitenta’ e a provocar interesse geral até a virada do século”224.
Ainda a respeito da influência finissecular de Augusto Comte no dezenove, Émile Faguet
nos diz: “ela foi imensa. Adotado quase inteiramente por Stuart Mill; impondo-se, a
despeito do que ele [próprio] tenha dito, a Spencer, ou, de fato, coincidindo com ele e
nele se engrenando de maneira singularmente precisa; dominando de forma quase tirânica
o pensamento de Renan em suas primeiras démarches, como se vê em O futuro da ciência;
inspirando, até em seus detalhes, a investigação filosófica, histórica e literária de Taine;
combinando-se com o evolucionismo, que pode ser considerado como sendo apenas
uma transformação sua; o sistema de Comte preencheu toda a segunda metade do século
XIX e se o encontra, ou todo puro, ou apenas aumentado, ou levemente corrigido, ou
um pouco alterado, a cada passo que se dá no domínio do pensamento moderno. [...] É
algo, sobretudo, que dá o que pensar, e Augusto Comte é maravilhoso por causa disto: é
o semeador de ideias e o excitador intelectual mais poderoso que houve em nosso século,
o maior pensador, em minha opinião, que a França teve desde Descartes”225. A impressão
222 Ver Philippe van Tieghem, Petite histoire des grandes doctrines littéraires en France: de la pléiade au surréalisme, Paris, PUF, 1946, p. 242. 223 Donald Charlton, Positivist thought in France during the Second Empire (1852-1870), Oxford, Oxford University Press, 1959, p. 1. 224 Terence Wright, The religion of Humanity: the impact of Comtean positivism on Victorian Britain, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, p. 5. 225 Émile Faguet, Politiques et moralistes du dix-neuvième siècle, v. 2, Paris, Société Française d’Imprimerie et de Librairie, 1898, p. 368-9.
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que se tem, portanto, é que o positivismo, assim como diria Sartre algumas décadas mais
tarde a respeito do marxismo, representou uma espécie de “horizonte inultrapassável” de
seu tempo (entendendo-se por “seu tempo” a segunda metade do século dezenove).
É sob este clima intelectual, de intenso predomínio positivista, que a Terceira República
francesa é gestada e concebida. Uma tal atmosfera como que emana majoritária e
primitivamente do pensamento de Augusto Comte, mas mediada, de maneira imperiosa,
pelo pensamento e pela ação de terceiros, que, filtrando, modulando, realçando ou
mesmo enxertando suas ideias originais, contribuíram, ao mesmo tempo, para a
ressignificação e para a difusão e consolidação do positivismo enquanto filosofia
dominante do período. Segundo defende John Eros (e nisto o acompanhamos): “Um
estudo histórico detido dos movimentos políticos e sociais refuta a visão intelectualística
de que eles são dirigidos por ideias e doutrinas que são independentes de fatores políticos
e sociais. Similarmente, a noção materialística de que ideias não têm vida própria
independente, e são apenas um reflexo das disputas econômicas e sociais, parece
igualmente inaceitável. Portanto, quando tentamos delinear o desenvolvimento de um
dado movimento político, devemos proceder absolutamente sem teorias pré-concebidas.
Devemos analisar a vida das ideias elas próprias, a evolução dos movimentos político-
sociais e a inter-relação funcional cambiante entre todos eles”226.
No caso da França, segundo observa Claude Nicolet, é possível divisar ao menos duas
grandes correntes positivistas bastante atuantes e influentes no período aqui considerado.
“O positivismo – sem mesmo falar da obra do próprio Comte – é múltiplo: dividido em
duas escolas rivais, mas muito diversamente poderosas, a de Littré, Robin e Wyrouboff
de um lado, a de Pierre Laffitte, Robinet e Audiffrend de outro lado – sem contar os
inclassificáveis como Sémérié –, ele atinge também, por volta dos anos 1880, uma espécie
de estado de espírito difuso e seguramente insosso na massa da opinião republicana”227.
Apesar das polêmicas que dividem os positivistas franceses, como, por exemplo, a adoção
ou não na França do parlamentarismo, Nicolet nos alerta: “em todo caso, é preciso ainda
notar que, ao menos sobre um ponto, as duas escolas rivais, de Littré e de Robinet-
Laffitte, estavam de acordo, depois do final do Império (malgrado certos escritos
226 John Eros, The positivist generation of French republicanism, Sociological Review, v. 3, n. 2, 1955, p. 257. 227 Claude Nicolet, op. cit., p. 188.
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imprudentes de Comte228): o único regime que convinha à França era na verdade o regime
republicano. Apenas ele, com efeito, concilia a Ordem e o Progresso, apenas ele está em
condições de reunir os verdadeiros revolucionários e os ‘dignos conservadores’”229. Além
da profissão de fé republicana em comum, os “positivistas das duas obediências não
cessarão de denunciar os dois perigos simétricos da metafísica ‘retrógrada’ – monarquista
e clerical – e da metafísica ‘revolucionária’, isto é, jacobina, saída de Rousseau e fundada
sobre a soberania do povo, os direitos subjetivos e a lamentável predominância seja do
executivo, seja do legislativo, que saem um e outro de sua legítima esfera de ação”230.
Ainda que hesitemos em concordar com Nicolet a respeito da recusa, por ele tão
frontalmente formulada, da soberania popular e dos “direitos subjetivos” por parte dos
republicanos franceses de orientação positivista231, tendemos prontamente a lhe conceder
228 Nicolet se refere aqui ao entusiasmo inicial e ao apoio parcial dado por Augusto Comte ao golpe de Estado perpetrado por Napoleão sobrinho (evento inaugural do Segundo Império que pôs fim à Segunda República), motivo de sua ruptura definitiva, por exemplo, com Émile Littré. A relação de ambos já andava abalada desde que o mestre havia sinalizado a direção religiosa de sua doutrina positivista, severamente reprovada pelo discípulo, que a considerava uma verdadeira traição aos princípios científicos da filosofia positiva tão bem estabelecidos no Curso. Sobre o apoio de Comte à ditadura napoleônica e sua ruptura definitiva com Littré, consultar o último capítulo de Mirella Larizza, Bandiera verde contro bandiera rossa: Auguste Comte e gli inizi della Société positiviste (1848-1852), Bolonha, Il Mulino, 1999, p. 553-87. 229 Claude Nicolet, op. cit., p. 190. 230 Idem, ibidem, p. 190-1. 231 Pensamos que a questão seja mais complexa. Pierre Rosanvallon, falando deste mesmo tema, isto é, da relação dos positivistas republicanos com a questão da soberania popular na França, nos parece nuançar um pouco mais o problema do que Nicolet. Rosanvallon, de fato, afirma que “[os] sucessores [de Augusto Comte], embora ardentes republicanos, permanecem críticos no que diz respeito à ideia de soberania do povo e adotam uma atitude bastante reservada sobre o sufrágio universal, e isto a despeito da escola positivista de que se reclamam”. Na sequência, nos mostra que Littré e Sémérié (o segundo muito mais do que o primeiro), partindo de uma “visão capacitista da política”, se mantêm hostis ao sufrágio universal, embora Littré passe a aceitá-lo por volta do final do Segundo Império, “reconhecendo que o uso o havia de fato sancionado”. Em Sémérié, Rosanvallon nos diz que “o racionalismo positivista se mistura [...] a traços blanquistas para denunciar o malfeito do sufrágio universal, uma vez que ele é a expressão de vontades arbitrárias e autônomas”. No entanto, se pergunta o comentador: “Ferry et Gambetta [não seriam] exceções? Ou o positivismo deles é a tal ponto singular que se dissocia a esse respeito dos principais alunos do mestre?”. Reconhecendo “a flutuação filosófica dos republicanos” e a existência de “proposições aparentemente contraditórias” entre eles, Rosanvallon nos mostra que, ao menos no caso de Gambetta, a República não pode ser pensada apartada do sufrágio universal: “Não se compreende a República, nos diz Gambetta, em 1873, sem o sufrágio universal: são dois termos indivisivelmente ligados um ao outro, e abrir mão do sufrágio universal é abrir mão da República”. Ver Pierre Rosanvallon, op. cit., p. 453-6. Mona Ozouf, falando agora de Jules Ferry, a respeito ainda do sufrágio universal, nos diz: “Ele faz do sufrágio universal, única realidade sobrevivente do desastre de 1848, uma promessa, uma ‘garantia’ para os deserdados. Mas também o exercício efetivo da reconciliação de classes. Ele o faz fixar a ordem jurídica (a vida igual para todos), moral (a honra das multidões), religiosa (instituição sagrada). Ele o define como o direito, salvação por princípio. Mas ainda como o fato, salvação pela força das circunstâncias. Enfim, ele o representa como ‘inevitável’, fruto da irresistível maturação da opinião pública”. Neste excerto, a comentadora se refere à seguinte passagem do panfleto A luta eleitoral, publicado por Jules Ferry ainda em 1863: “O sufrágio universal não é apenas uma instituição sagrada e soberana. É toda uma política e quase um símbolo. Ele não é apenas o fato, o direito, a justiça, ele é também inevitável. Ele é todo o presente, ele é todo o futuro. O sufrágio universal é a honra das multidões, a garantia dos deserdados, a reconciliação das classes, a vida igual para todos”. Ver Mona Ozouf, Entre l’esprit des Lumières et la lettre positiviste: les républicains sous l’Empire, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), op. cit., p. 415.
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a disposição deste mesmo grupo em desembaraçar a ideia republicana na França de seu
legado jacobino, irremediavelmente associado ao Terror. Durante muito tempo, o
jacobinismo impregnou, para o bem ou para o mal, a ideia republicana na França. Uma
boa maneira de se medir a impressão terrível deixada pela Primeira República (e pelos
excessos revolucionários cometidos em seu nome) em grande parte da sociedade francesa
é se dedicar à leitura dos reacionários católicos, no coração dos quais, sobretudo, o horror
pelo Terror jacobino ficou tão profundamente gravado. Para Chateaubriand, por
exemplo, expoente do movimento neocatólico, a própria ideia da República na França
aparece como “a decapitação da liberdade pela igualdade”232.
Sob um ponto de vista programático, portanto, o partido republicano francês do
dezenove, se quisesse ver a República consolidada enquanto regime de governo, deveria
forçosamente abrandar sua agenda política, ou pelo menos garantir às elites dirigentes do
país que uma nova experiência republicana seria possível, afastada agora das convulsões
sociais e instabilidades institucionais a que as duas anteriores haviam sido tão duramente
submetidas. “Na realidade, prossegue Nicolet, as duas escolas [a de Littré e a de Robinet-
Laffitte] afirmavam a necessidade de definir as condições ‘positivas’ de um verdadeiro
governo republicano. Tratava-se, tendo em conta o fato de que doravante a República
era ‘de direito científica e de direito histórica’, e que o sufrágio universal representava ‘a
única base possível de nossa organização política’, de fazer de tal forma que o partido
republicano, deixando de ser ‘revolucionário’, se tornasse um partido de governo,
garantidor ao mesmo tempo da Ordem e do Progresso”233.
Embora Nicolet distinga a existência de ao menos duas grandes correntes positivistas
republicanas combatendo-se mutuamente no período aqui considerado, o historiador
não deixa de reconhecer a predominância de uma delas sobre a outra. “Littré foi, em
todos os sentidos da palavra, o grande vulgarizador, o mediador se se quiser, do
positivismo nos anos em que este verdadeiramente se difunde e se faz conhecer fora do
cenáculo ou da Igreja propriamente dita; graças a ele é o comtismo ainda (ou já...!)
republicano, e não ainda constituído em religião, que, na realidade histórica, é conhecido
e difundido”234. O famoso petit livre vert de Littré, o seu Conservação, revolução e positivismo,
232 Ver Benoît Yvert, De la république selon Chateaubriand, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), op. cit., p. 315 e ss. 233 Claude Nicolet, op. cit., p. 191. 234 Idem, ibidem, p. 200.
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exerceu considerável influência sobre a geração de chefes republicanos da qual fizeram
parte Gambetta, Ranc e Ferry235. Para nos expressarmos agora nos termos em que fala
Léon de Montesquiou – que, aliás, também divisa, a exemplo de Nicolet, a existência
(funesta, em sua opinião) destas mesmas escolas positivistas sucedendo a Augusto Comte
na França –, o littreísmo se sobrepõe ao laffittismo, superando-o236.
A pista, portanto, que nos fornece Nicolet deveria, em princípio, ser explorada em suas
duas extremidades: a primeira delas diz respeito, naturalmente, a Augusto Comte; a
segunda, como acabamos de ver, a Émile Littré. Se Comte, como já vimos, reservou sua
atuação apenas à reorganização “dos costumes e das opiniões” por meio de seu intenso
trabalho intelectual, Littré foi ao mesmo tempo teórico e homem de ação. Moveu-se
desimpedido entre as fronteiras do “poder temporal” e do “poder espiritual”, borrando-
as. Filólogo de formação, autor do conceituado dicionário Littré de língua francesa,
ocupou por diversas vezes cargos públicos, chegando a ser, inclusive, senador da
República. “Filho da Revolução, nos diz Renan a seu respeito, acreditou que nela estava
contida toda justiça. [...] No senhor Littré, o temperamento era sempre calmo; era o
espírito que era revolucionário; também não recuou jamais. [...] Na política, seguiu a regra
que deve se impor o patriota consciencioso: não solicitou nenhum mandato; não recusou
nenhum outro. [...] Em seus anos finais, viu a forma de governo pela qual havia sempre
combatido se tornar uma realidade. Credes, talvez, que ele vai triunfar. [...] Ele quase se
arrepende; me expresso mal; não, ele não se arrepende; mas se torna o sábio perfeito; faz
de si próprio o conselheiro, o moderador de seus companheiros de luta”237.
Embora reconheçamos, por questões de completude, a necessidade de nos debruçarmos,
em algum momento de nossa investigação, sobre os escritos e a figura intelectual de
Émile Littré (e de outros atores importantes da Terceira República) – como forma de
compreendermos integralmente a ligação entre o positivismo e o republicanismo na
França do dezenove –, neste trabalho, por razões práticas, nos dedicaremos apenas à
235 Ver Claude Nicolet, op. cit., p. 200. 236 Ver Léon de Montesquiou, Le système politique d’Auguste Comte, Paris, Nouvelle Librairie Nationale, s/d, p. 4 e ss. 237 Ernest Renan, Œuvres complètes, v. 1, Paris, Ed. H. Psichari, 1947, p. 762 e ss., 771 e ss., apud Claude Nicolet, op. cit., p. 195-6.
85
investigação do pensamento de Augusto Comte, deixando a recepção de sua filosofia
positiva para estudos ulteriores238.
2.3. O republicanismo do jovem Comte
Como visto no início deste capítulo, o republicanismo de Comte – “espontâneo” em sua
origem, segundo as palavras do próprio autor – vem de muito longe: do final de sua
infância, começo da adolescência. Na primeira seção deste capítulo, esforçamo-nos em
mostrar de que maneira, em seus textos de maturidade, o pensamento republicano do
autor, ao articular-se às questões de seu tempo, adquiriu um significado mais preciso, a
despeito da indeterminação que sempre rondou a ideia de República na França, desde o
período revolucionário. Pensamos, entretanto, que seria instrutivo ainda analisarmos de
que maneira a relação deste “republicano sem data”239 com as instituições de seu tempo
contribuiu para moldar e galvanizar sua identidade política. Nas palavras de Lévy-Bruhl,
e nisto o acompanhamos, “para se chegar a uma compreensão tão completa quanto
possível [da] doutrina [de Augusto Comte]; para apreciar exatamente sua orientação geral;
para compreender a importância que o autor confere a esta ou àquela parte de sua
doutrina, [apenas] o estudo [de seu] texto não é suficiente. É preciso ainda ter em conta
as circunstâncias históricas em que a doutrina é concebida, o movimento geral das ideias
contemporâneas e as influências de toda sorte que agiram sobre o espírito do filósofo”240.
Antes, portanto, de seguirmos caminho em direção, uma vez mais, aos seus textos de
maturidade, gostaríamos agora de passar em revista, de modo breve, alguns aspectos da
biografia intelectual do autor – que entendemos ser fundamentais para a compreensão
de seu pensamento republicano –, bem como nos determos em alguns trechos de sua
correspondência, reveladores dos caminhos que o ligaram à República.
238 Para trabalhos de conjunto a respeito dos pais fundadores da Terceira República, ver Pierre Barral, Les fondateurs de la Troisième République, Paris, Armand Colin, 1968 e Jérôme Grévy, La République des opportunistes (1870-1885), Paris, Perrin, 1998. Para um estudo a respeito de Émile Littré, consultar o primeiro capítulo de Sudhir Hazareesingh, Intellectual founders of the Republic: five studies in nineteenth-century French political thought, Oxford, Oxford University Press, 2001, p. 23-83. Para trabalhos a respeito de Jules Ferry, ver Mona Ozouf, Jules Ferry: la liberté et la tradition, Paris, Gallimard, 2014 e Jean-Michel Gaillard, Jules Ferry, Paris, Fayard, 1989. Por fim, para estudos a respeito de Léon Gambetta, consultar Jean-Marie Mayeur, Léon Gambetta: la patrie et la République, Paris, Fayard, 2008 e, uma vez mais, Pierre Barral, Léon Gambetta: tribun et stratège de la République (1838-1882), Paris, Privat, 2008. 239 A expressão é usada pelo próprio Comte em carta a M. Vieillard, datada de 22 de novembro de 1849, e citada por Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 73, a partir da Correspondance inédite d’Auguste Comte, v. 3, Paris, Au Siège de la Société Positiviste, 1904, p. 171. 240 Lucien Lévy-Bruhl, La philosophie d’Auguste Comte, Paris, Félix Alcan, 1900, p. 1-2.
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Embora de família monarquista e fortemente católica, este provençal de Montpellier,
prodígio intelectual desde a mais tenra idade, começou cedo a se opor às tradições
familiares – e a delas se afastar. É no liceu de sua cidade natal, criado pelo decreto do 16
Floreal ano XI (6 de maio de 1803), que o pequeno Comtou – forma carinhosa pela qual
Augusto Comte era chamado no seio de sua família – se vê iniciado, segundo assinala
Henri Gouhier, no “aprendizado da revolta”241. A instituição, militar e napoleônica por
excelência, não fomentava deliberada e intencionalmente a indisciplina e a desobediência
em seus jovens estudantes, muito pelo contrário. Mas sua estrutura rígida, fortemente
hierarquizada, repleta de “mestres de exercício”, “mestres de quartel”, “mestres de
estudo”, etc., acabaria por causar o efeito inverso ao desejado nas crianças que visava
educar. Parece ter sido precisamente esse o caso de Augusto Comte. “Maroto, pensador,
indisciplinado, Comte tornava dura a vida destes infelizes supervisores. [...] Também era
ele frequentemente punido. Havia a prisão, as revistas, a privação do porte do uniforme.
[...] A má conduta deste estudioso aluno não é, aliás, um fato excepcional. Em seus
relatórios de 1809, os inspetores assinalam uma verdadeira crise da disciplina; por todos
os lados, os alunos são barulhentos, contestadores, conduzidos por líderes, ‘jovens
insolentes [...] que ostentam a independência, desafiam a repreensão, fazem das punições
uma brincadeira, por vezes uma honraria’”242.
Os inspetores do liceu, segundo assinala Alphonse Aulard, pareciam gozar da mais pura
falta de autoridade diante de seus subordinados, talvez um resultado da reforma e da
rápida expansão das instituições de ensino que não foram acompanhadas pela formação
de quadros qualificados para ocupar seus postos de serviço. “Existe a esse respeito, nos
diz Aulard, um vício na própria instituição; estes postos não são nem tão estimados nem
pecuniariamente tão bem tratados para oferecer status ou esperanças a quem quer que se
considere possuidor dos meios e do talento na carreira dos estudos; eles se tornam,
portanto, uma segunda opção para os desafortunados que sabem um pouco de latim e
não possuem outros recursos. Jovens ainda, suscetíveis a todas as seduções, se exige deles
que contenham no dever uma classe inteira de alunos indômitos. Tamanha influência
escapa à natureza das coisas; eles estão fadados a se tornar as testemunhas secretas ou os
humildes delatores das desordens que não podem impedir” 243 . Com feito, segundo
241 Ver Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 69 e ss. 242 Idem, ibidem, p. 70. 243 Alphonse Aulard, Le culte de la raison et le culte de l’être suprême (1793-1794): essai historique, Paris, Félix Alcan, 1892, p. 271, apud Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 70.
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assinala novamente Henri Gouhier, o liceu é, sob Napoleão, uma instituição “feita por
homens que não são ainda feitos para ela”244. Desta forma, o interno Augusto Comte
vive sua infância “num mundo improvisado, em que a ordem é militar e a bandeira
revolucionária”245.
Embora Gouhier não hesite, falando ainda a respeito do Comte secundarista, em
caracterizá-lo como um legítimo “filho da Revolução”246, seria um exagero supor – algo
que, ademais, o comentador não faz em seu texto – que os liceus, sob Napoleão, fossem
um “antro de revolucionários”, isto é, instituições animadas por um espírito republicano
sobrevivente ao 9 Termidor e ao 18 Brumário. Embora a “cultura política da Revolução”,
para usar uma expressão cara à historiadora Lynn Hunt247, permanecesse ainda viva na
França imperial (e mesmo depois, apesar de clandestina, sob a Restauração), ela
experimentaria ao longo dessas primeiras décadas do século dezenove uma espécie de
“exílio interior”248. A flama da Revolução se conservou acesa nesse período, sobretudo,
no seio de famílias ligadas umbilicalmente aos processos revolucionários, mas também
no interior de algumas instituições públicas, como é o caso da Escola Politécnica.
“Tu sabes bem, aliás, que a república é o governo preferido do aluno politécnico”249, diz
Augusto Comte a seu amigo Pouzin, em carta datada de 26 de novembro de 1814. Poucos
meses depois, aos 2 de janeiro de 1815, dirigindo-se dessa vez a Valat, nosso autor
escreve: “Tu não poderias acreditar quão bom espírito reina entre os alunos da Escola; a
mais perfeita união existe entre nós, e ela foi cimentada com força pelo cessar dos
balanços250 que foi efetuado solenemente em 31 de dezembro. Cada sala de recrutas
enviou deputados às salas dos veteranos, que estavam perfeitamente decoradas e
representavam quase todas o senado de um povo livre: os veteranos responderam aos
244 Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 70. 245 Idem, ibidem, p. 71. 246 “A necessidade de regeneração política e filosófica estava em sua alma de quatorze anos bem menos clara do que à época do Curso; mas um fato subsiste independentemente das explicações que o filósofo tira de seu sistema: Comte é um filho da Revolução e ele reconhece isto no momento mesmo em que os senhores do Estado deixam a Revolução para trás, junto à sua juventude”. Henri Gouhier, op. cit., v. 1, p. 72, grifo nosso. 247 Ver Lynn Hunt, Política, cultura e classe na Revolução Francesa, São Paulo, Companhia das Letras, 2007. 248 A expressão dessa vez é de Claude Nicolet, op. cit., p. 133-57. 249 CG, I, p. 4. 250 Os “balanços” (bascules) aos quais se refere Comte, segundo nos explica Henri Gouhier, eram uma espécie de ritual de iniciação ao qual os recrutas (conscrits) da Escola Politécnica eram submetidos, por seus alunos veteranos. “Os veteranos os fazem balançar sobre uma prancha seguindo um rito minucioso. Essa operação não é do agrado de Comte nem de sua mamãe, que se inquieta fortemente. Mas depois, como todos os outros, o recruta Comte é balançado; ele se dá conta de que isso não faz mal e diz a si mesmo que chegará o dia em que ele será veterano”. Henri Gouhier, La vie d’Auguste Comte, Paris, Vrin, 1965, p. 54.
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discursos proclamando a mais perfeita igualdade entre todos os alunos e jurando a união
e a fraternidade, cuja garantia eles nos deram abraçando nossos oradores. [...] Estas
cerimônias comovem fortemente, eu te garanto; é bonito ouvir falar assim de liberdade
e de igualdade no momento em que todos os nossos concidadãos correm à escravidão e
ao despotismo. [...] Tu vês pelo pouco que te digo que todos os nossos atos solenes lembram bastante
a república: é este o espírito geral da Escola, e se alguns não vão até à república ao menos
destes não há um sequer que não seja um ardente amigo da liberdade, que nós sabemos
muito bem distinguir da anarquia”251.
O tríptico revolucionário – liberdade, igualdade e fraternidade –, aparece, como se vê,
espargido no trecho em questão. A referência, já no final do excerto, à anarquia, como
oposta à liberdade, também nos parece merecer destaque: ela reaparecerá, como veremos
no próximo capítulo, nos escritos de maturidade do autor, constituindo, com efeito, um
dos temas mais importantes de sua filosofia política. Por sua vez, o elogio direto – e
entusiasmadíssimo – da Revolução vem ao final da carta supracitada, como post scriptum:
“A geração que se forma [agora nos liceus] será ainda mais embrutecida do que a geração
atual; a partir de então, não mais esperança, a liberdade de minha pátria estará perdida
sem volta; o despotismo real renascerá tal como era antes da sublime insurreição de 1789, e
ainda pior!!! Pobre França!, infelizes amigos da liberdade! Os nobres esforços que fizestes
sob o risco de vossa vida para dar a meus concidadãos a posse de seus direitos legítimos
tornar-se-ão inúteis, e talvez tenhais morrido vítimas de vosso devotamento à causa da
razão e da Humanidade! Deus!, se o espírito fosse por todos os lados como na
Escola!...”252.
É possível ainda encontrar no Comte politécnico, para além do elogio da Revolução e da
república a que dá origem, grande simpatia pela revolução americana, sua república e seus
pais fundadores253. Em carta a Valat, datada de 13 de outubro de 1816, Comte comunica
a seu amigo, solicitando sigilo com relação a seus pais, a oportunidade surgida, por
intermédio do general Campredon e do general Bernard – ambos ex-alunos da Escola
251 CG, I, p. 6-7, grifo nosso. 252 Ibidem, p. 7-8, grifo nosso. 253 Sobre a influência da Revolução Americana no imaginário político francês, consultar os artigos de Philippe Raynaud, L’idée républicaine et “Le Fédéraliste”; de Judith Shklar, Thomas Jefferson et une république étendue; e de Bernard Vincent, Thomas Paine, républicain de l’univers, in: François Furet & Mona Ozouf (org.), op. cit., p. 57-79, 81-100, 101-126. Para um estudo de conjunto (embora questionável em suas conclusões) a respeito das revoluções e das repúblicas americanas e francesas, consultar Patrice Higonnet, Sister republics: the origin of French and American republicanism, Cambridge, Harvard University Press, 1988.
89
Politécnica, e este último (desdenhado pelo governo francês) recém-nomeado chefe da
engenharia americana –, de embarcar, num futuro não muito distante, com destino aos
Estados Unidos. A promessa com que sonha o jovem Comte durante alguns meses diz
respeito à fundação, em terras de além-mar, de uma escola bastante análoga à Escola
politécnica, e de sua provável contratação para o ensino da geometria descritiva pura e
aplicada – esta “bela ciência”, totalmente desconhecida pelos engenheiros americanos.
Augusto Comte se entusiasma com a possibilidade de ganhar um bom ordenado – algo
em torno de vinte mil francos – e de ocupar um cargo “honorável” numa instituição de
grande prestígio, em que lhe seria possível, finalmente, levar a esses republicanos uma
ciência completamente nova.
Frente à possibilidade nunca concretizada de se mudar para os Estados Unidos, nosso
autor inicia nessa época uma série de estudos a respeito das constituições americanas e
de algumas obras históricas apropriadas a lhe conferir, segundo o seu juízo, uma “ideia
exata deste país”. Surge em sua correspondência com Valat nesse período o elogio da
figura de Benjamin Franklin254 – segundo as palavras do autor, o “Sócrates moderno” –
e das “belas instituições” americanas, “fruto do gênio e da virtude” de seu povo. A
exaltação da liberdade e da igualdade, vistas por Comte como valores fundantes também
da república americana, é frequente ao longo da correspondência. “Ah, deus!, que delícia
quando eu tocar esta terra onde a liberdade e a igualdade não são nomes vãos e repousam
sobre uma base inabalável: a íntima convicção e o patriotismo arrazoado de todos os
habitantes!...”255. Apesar do desejo latente de, em seis ou sete meses, se ver abraçado com
seu amigo aos pés da estátua de Benjamin Franklin, o projeto de se mudar para os Estados
Unidos nunca saiu do papel, e o destino acabou por reservar a Augusto Comte caminhos
bem mais penosos na França.
254 Há, por parte de Augusto Comte, uma enorme projeção de sua própria imagem na figura de Benjamin Franklin. O filósofo relembra seu amigo Valat que “Franklin foi ajudante de impressão até a idade de vinte e quatro ou vinte e cinco anos, e ele nos ensina ele próprio, diz Augusto Comte, que durante esse tempo almoçava um pedaço de pão em todas as refeições; e ele morreu confortável, cercado das bênçãos de seus concidadãos e da estima de todos os homens, depois de ter restituído a liberdade a seu país. Este exemplo é primoroso para nos encorajar”. Na sequência da carta, o autor atribui sua “conversão” à filosofia, em parte, à influência de Franklin: “Quanto a mim, meu caro amigo, eu me tornei completamente filósofo: tu sabes que eu já o era em teoria, e no presente eu começo a sê-lo na prática. Tu me acusarás, talvez, de presunção, mas malgrado isto, como não desejo esconder nada de ti, te confiarei que tomei por modelo de conduta o homem ilustre, o homem divino de quem te falava há pouco: busco imitar o Sócrates moderno, não por seus talentos, mas por seus costumes. Tu sabes que aos vinte e cinco anos ele concebeu o projeto de se tornar perfeitamente sábio, e que ele o executou: quanto a mim, ousei empreender a mesma coisa, e não tenho ainda vinte anos. Sua vida está em meu modesto gabinete, e a cada dia leio uma de suas páginas para me encorajar”. CG, I, p. 16. 255 CG, I, p. 17.
90
3. O positivismo e as Luzes
3.1. Fundamentos epistemológicos do positivismo256
A compreensão exata do estatuto filosófico do positivismo passa necessariamente, em
nosso ver, pela avaliação equilibrada de sua relação com a filosofia das Luzes. A relação
do positivismo, por sua vez, com a filosofia das Luzes é complexa e se dá, como é comum
acontecer na história da filosofia, sob o signo da herança e do parricídio. Não seria
equivocado atribuir, em parte, a complexidade da relação entre positivismo e iluminismo
à própria complexidade da filosofia das Luzes: etiqueta vaga e abrangente, sob a qual
costumeiramente se colocam autores e filosofias díspares, antípodas entre si e por vezes
mesmo inimigos pessoais. Os conflitos latentes entre as filosofias que constituíram o
próprio tecido do iluminismo, talvez represados pela conjuntura política da época, que
forçosamente as aglutinava num mesmo campo, em oposição a um inimigo comum,
256 O mais preciso aqui seria falar em fundamentos da “filosofia positiva”, ao invés de fundamentos do “positivismo”; as duas coisas, entretanto, são comumente referidas como uma só. Como nos lembra Annie Petit, há, de 1844 a 1848 (acompanhando os eventos políticos do período), uma mudança significativa de vocabulário nos textos de Augusto Comte, sintetizada, sobretudo, pelos títulos dos dois discursos por ele publicados em cada um desses anos. Em 1844, temos a publicação do Discurso sobre o espírito positivo e, em 1848, a publicação do Discurso sobre o conjunto do positivismo. “Do ‘positivo’ ao ‘positivismo’, nos diz a comentadora, se organiza [...] a articulação do ‘espontâneo’ e do ‘sistemático’. A ‘filosofia positiva’ é o produto do ‘espírito positivo’ que ela, ao mesmo tempo, consolida. Comte se vê, de uma só vez, como seu herdeiro, porta-voz e organizador; mas se pretende o fundador do ‘positivismo’: ele forja a palavra e quer sistematizar a coisa”, Annie Petit, Introduction, Esprit, p. 31. Na abertura de seu discurso de 1848, Augusto Comte nos diz que “o positivismo se compõe essencialmente de uma filosofia e de uma política, que são necessariamente inseparáveis, como constituindo uma a base e a outra o objetivo de um mesmo sistema universal”, Ensemble, p. 2. A filosofia positiva está apresentada no Curso de filosofia positiva (que o autor rebatiza posteriormente de Sistema de filosofia positiva) e resumida mais tarde no discurso de 1844, ao passo que a política positiva se encontra exposta no Sistema de política positiva e como que antecipada sinteticamente no discurso de 1848; as duas, conjuntamente, compõem o positivismo. A filosofia positiva, portanto, é parte constitutiva do positivismo. Daí podermos falar em “fundamentos do positivismo” quando, na verdade, estamos expondo, mais especificamente, os fundamentos da filosofia positiva.
91
como que eclodem no final do século dezoito e no início do século dezenove de maneira
irreconciliável, em decorrência dos eventos revolucionários e da reação conservadora que
os sucede.
O iluminismo, num certo sentido, confere unidade artificial a uma multiplicidade de
filosofias (ou de etiquetas filosóficas) como o racionalismo, o romantismo, o humanismo,
o materialismo, o sensualismo, o enciclopedismo, o empirismo, etc., que em larga medida
polinizaram também as filosofias do século dezenove, entre elas o positivismo, mas
depuradas agora por um debate que se orientou majoritariamente pela sucessão de
eventos políticos desencadeados pela Revolução. Com efeito, qualquer estudo a respeito
das filosofias do século dezenove francês257 se beneficia enormemente do cotejo com a
tradição iluminista que as antecedeu e de sua adequada inscrição no debate político da
época, herdeiro compulsório dos eventos revolucionários. Com respeito especificamente
ao positivismo de Augusto Comte, é possível identificar em sua obra um núcleo de
críticas à tradição iluminista e aos seus mais eminentes autores. Como dito de início, a
crítica positivista das Luzes se faz aqui num duplo registro: ao mesmo tempo em que se
entende sucessora desta tradição, a filosofia positiva identifica e nela recusa elementos
que não apontam para sua consolidação enquanto termo final de um longo processo de
desenvolvimento do espírito humano.
Sob o ponto de vista político, o positivismo, em sua relação ambivalente com as Luzes,
elabora uma crítica do que considera ser os seus dogmas fundamentais: a liberdade de
consciência, a igualdade e a soberania do povo. A crítica de cada um destes dogmas consiste na
verdade numa única crítica, uma vez que, como veremos a seguir, Augusto Comte
compreende a igualdade e a soberania do povo como meros desdobramentos (ou como
manifestações tardias) da liberdade de consciência. A ambivalência que habita a relação
do positivismo com a tradição iluminista se expressa no fato de que, para nosso autor, é
257 Um dos grandes estudos de conjunto a respeito do assunto é o de Paul Bénichou, Les temps de prophètes: doctrines de l’âge romantique, Paris, Gallimard, 1977, em que o autor, partindo dos liberais “doutrinários” (Guizot e Jouffroy), passando em seguida pelo movimento neocatólico (Ballanche, Chateaubriand e Lamennais), pelos reformadores sociais de viés científico (Comte e Saint-Simon), pelos pensadores “utópicos” (Leroux e Fourier) e chegando, finalmente, aos grandes historiadores do movimento humanitário (Quinet e Michelet), cobre um período e um arco de autores de fundamental importância para a constituição do pensamento político francês da época. Consultar também o clássico trabalho (um pouco datado, mas ainda utilíssimo) de Émile Faguet, Politiques et moraliste du dix-neuvième siècle, 3 vol., Paris, Lecène, Oudin et Cie./Société Française d’Imprimerie et de Librairie, 1891-1900, em que o autor trata de de Maistre, de Bonald, Mme. de Staël, Benjamin Constant, Royer-Collard e Guizot (no primeiro volume); Saint-Simon, Fourier, Lamennais, Ballanche, Quinet, Cousin e Augusto Comte (no segundo volume); e, finalmente, Stendhal, Tocqueville, Proudhon, Sainte-Beuve, Taine e Renan (em seu terceiro e último volume).
92
a um só tempo indispensável e deplorável que cada um desses dogmas citados adquira um
caráter absoluto e permanente no interior da “filosofia metafísica”, identificada
inequivocamente com a tradição iluminista. Segundo Augusto Comte, a “absolutização”
destes dogmas é indispensável uma vez que “sem um tal atributo a metafísica
revolucionária teria sido necessariamente impotente para cumprir sua função essencial
contra o antigo sistema político”258, que com facilidade a anularia. Por outro lado, à
medida que os dogmas da metafísica revolucionária se tornam absolutos ela acaba por
representar “o governo como sendo, por sua natureza, o inimigo necessário da sociedade,
contra o qual esta última deve se constituir diligentemente em estado contínuo de
suspeição e vigilância, disposta, sem cessar, a restringir cada vez mais sua esfera de
atividade, a fim de impedir suas intromissões, tendendo, por fim, a não lhe conferir outras
atribuições reais senão as meras funções de polícia geral, sem nenhuma participação
essencial na suprema direção da ação coletiva e do desenvolvimento social”259.
Do ponto de vista da filosofia positiva, portanto, a “negação sistemática de todo governo
verdadeiro” 260 é entendida como necessária à filosofia metafísica para suplantar, de
maneira definitiva, a filosofia teológica e o antigo regime. Deste mesmo ponto de vista (e
é aqui que reside a ambivalência), ela é também deplorável, na medida em que, uma vez
suplantada a filosofia teológica, a filosofia crítica passa a se opor não apenas às tentativas
de restauração do antigo sistema político, mas também às tentativas de instauração do
novo sistema político, cuja chegada ela própria esteve preparando (aparentemente sem
saber). Esta interpretação teleológica do iluminismo como um interregno que separa a
escolástica do positivismo está assentada na lei dos três estados, pedra angular de toda a
filosofia positiva.
3.1.1. A lei dos três estados e a enciclopédia positivista
Segundo a lei dos três estados, formulada por Augusto Comte ainda em seu opúsculo
fundamental de 1822261, em um gênero qualquer de especulações, a razão humana passa,
necessariamente, por três estados gerais: primitivamente pelo estado teológico ou fictício;
258 CPP, IV, p. 45. 259 Ibidem. 260 Ibidem. 261 Sobre o “opúsculo fundamental”, ver Henri Gouhier, L’opuscule fondamental, Les Études philosophiques, n. 3, 1974, p. 325-37.
93
transitoriamente pelo estado metafísico ou abstrato; até chegar, finalmente, ao estado
científico ou positivo262.
No estado teológico, o espírito humano fundamentalmente antropomorfiza a natureza,
atribuindo a cada um de seus fenômenos seja a ação voluntária dos objetos materiais eles
próprios, seja a ação de divindades, cuja vontade é a causa essencial da produção dos
fenômenos. Nas palavras de Augusto Comte, nesse estado em particular “ideias
sobrenaturais servem para ligar o pequeno número de observações isoladas de que se
compõe então a ciência. Em outros termos, os fatos observados são explicados, isto é,
vistos a priori de conformidade com fatos inventados”263. No estado metafísico, faz-se a
abstração dos seres sobrenaturais e opera-se apenas com “abstrações personificadas”,
segundo as palavras do próprio autor. “Seu caráter é bastardo, liga os fatos segundo ideias
que não são mais de todo sobrenaturais, mas não são ainda inteiramente naturais”264. Nas
abstrações personificadas, nos diz Augusto Comte, “o espírito pode ver, à vontade, ou o
nome místico de uma causa sobrenatural, ou o enunciado abstrato de uma simples série
de fenômenos, segundo o estado teológico ou científico de que mais se aproxima”265. Por
fim, no estado positivo, cessam todas as buscas por causas últimas e primeiras, limitando-
se o espírito humano ao estabelecimento de leis que descrevem satisfatoriamente os
fenômenos naturais a partir apenas de sua observação, isto é, sem a necessidade de uma
validação externa, transcendente. “Os fatos se ligam então segundo ideias ou leis gerais
de ordem inteiramente positiva, sugeridas ou confirmadas pelos próprios fatos, e que
muitas vezes mesmo não são mais do que simples fatos bastante gerais para se tornarem
princípios”266.
262 Ver Plan, p. 82. 263 Plan, p. 82. Do opúsculo fundamental de 1822 ao Discurso sobre o espírito positivo de 1844, Augusto Comte sofistica sua descrição do estado teológico, dotando-o de uma gradação que torna sua transição ao estado metafísico mais suave. A primeira “forma principal” do estado teológico é o fetichismo; a segunda o politeísmo; e a terceira (e última) o monoteísmo. O fetichismo consiste “sobretudo em atribuir a todos os corpos exteriores uma vida essencialmente análoga à nossa, mas quase sempre mais enérgica, segundo sua ação ordinariamente mais poderosa”, Esprit, p. 45. No politeísmo – forma privilegiada, segundo o autor, para o estudo do espírito teológico, porquanto é nela que se verifica sua grande ascensão tanto mental como social –, “a vida é finalmente retirada dos objetos materiais para ser misteriosamente transportada a diversos seres fictícios, habitualmente invisíveis, cuja a ativa intervenção contínua se torna doravante a fonte direta de todos os fenômenos externos, e mesmo em seguida dos fenômenos humanos”, Esprit, p. 47. No monoteísmo, o número de seres fictícios é reduzido à unidade e é nessa forma teológica, segundo Augusto Comte, que “começa o inevitável declínio da filosofia inicial”, uma vez que “a razão vem a restringir cada vez mais a dominação anterior da imaginação, permitindo gradualmente se desenvolver o sentimento universal, até então quase insignificante, da subordinação necessária de todos os fenômenos naturais a leis invariáveis”, Esprit, p. 48. 264 Plan, p. 82. 265 Ibidem. 266 Ibidem.
94
No interior do pensamento comtiano, a cada um desses estados mentais está associada
uma filosofia, que, por sua vez, engendra uma política característica. Dessa forma,
enquanto dominaram na Europa as concepções teológicas a respeito do mundo natural
e, por conseguinte, a respeito das sociedades humanas, um tipo de política (teológica)
persistiu. A partir do momento em que as concepções a respeito do mundo natural
começaram a se alterar – como consequência da chegada gradual das ciências particulares
(a astronomia, a física, a química, etc.) ao estado positivo –, as concepções filosóficas em
geral foram também afetadas, engendrando a seguir transformações correspondentes na
sociedade e na política. Os eventos políticos que revolucionaram o Ocidente ao longo
dos três séculos que antecederam os escritos de Augusto Comte (a Reforma protestante
e as revoluções americana e francesa, sobretudo) são exemplos históricos que balizam a
reflexão política do autor, e sobre os quais ele apoia a maior parte de suas hipóteses –
noutras palavras, são estes os seus objetos de observação.
No entanto, a chegada de cada uma das ciências particulares ao estado positivo não se dá
de maneira uniforme, mas de acordo com o grau de generalidade ou de complexidade
dos seus fenômenos. A filosofia positiva se organiza de maneira enciclopédica, mas,
diferentemente da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, a enciclopédia positivista é, em
primeiro lugar, muito mais enxuta e, em segundo lugar, hierarquizada. Augusto Comte
considera poder organizar todo o saber positivo a partir de seis ciências particulares: a
matemática, a astronomia, a física267, a química, a biologia e, por fim, a sociologia268. Os
fenômenos de cada uma dessas ciências (excetuando-se, naturalmente, a matemática, que
não possui algo como um “fenômeno matemático” para ser observado e tem, portanto,
um estatuto apenas de propedêutica das demais ciências no interior da enciclopédia
267 Um olhar contemporâneo sobre a classificação da enciclopédia positivista naturalmente estranha a separação entre física e astronomia, contemporaneamente subsumidas uma à outra (a astronomia como um domínio da física). É preciso ter em mente, no entanto, que no momento em que escreve Augusto Comte, apesar dos inestimáveis avanços teóricos da mecânica celeste, os instrumentos de observação do cosmos são ainda muito rudimentares. O aperfeiçoamento da espectroscopia, por exemplo, que nos permite inferir a composição química dos astros, só se dá efetivamente na segunda metade do século dezenove e no começo do século vinte. Para se ter uma ideia do estado de coisas à época, a descoberta de Netuno data apenas de 1846 e é causa de grande excitação para o filósofo. 268 Para um panorama da construção da enciclopédia positivista, consultar Annie Petit, História de um sistema: o positivismo comtiano, in: Hélgio Trindade (org.), O positivismo: teoria e prática, Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1999, p. 13-47. Nesse artigo, a comentadora acompanha a evolução do vocabulário de Augusto Comte e seu impacto na organização da enciclopédia positiva. De início, por exemplo, Augusto Comte utiliza, ao invés do termo biologia (cujo emprego estava ainda se fixando na época), o termo fisiologia. A sociologia, de início chamada também de “física social”, se estabelece tendo em vista certo afastamento do fisicismo saint-simoniano, do qual o autor buscava se desvencilhar. Por fim, cumpre dizer, a título de completude, que a fase religiosa do positivismo (que não será aqui nosso objeto de estudo) adiciona uma última ciência à enciclopédia positivista: a moral.
95
positivista), apresentam, segundo Augusto Comte, graus diferentes de generalidade,
complexidade, imperfeição e modificabilidade.
Da astronomia à sociologia, portanto, os fenômenos se tornam gradualmente menos
gerais, mais complexos, mais imperfeitos e mais modificáveis. As leis que descrevem esses
fenômenos, por sua vez, são gradualmente menos precisas269 e a capacidade humana de
intervenção nesses fenômenos, e de sua correção, aumenta proporcionalmente à
imprecisão das leis. É preciso também salientar, o que confere à enciclopédia positivista
o seu caráter verdadeiramente hierárquico, a submissão das ciências menos gerais às
ciências mais gerais. Com efeito, os fenômenos sociológicos encontram-se submetidos
não apenas às leis sociológicas, mas também às leis biológicas, químicas, físicas, etc. Há
aqui, num certo sentido, uma inversão da pirâmide de generalidade dos fenômenos
naturais: quanto mais alta for a posição de um determinado fenômeno nessa pirâmide,
menor será o seu grau de submissão a todos os outros fenômenos. A sociologia não
poderá, portanto, violar as leis biológicas; a biologia não poderá violar as leis químicas; a
química não poderá violar as leis físicas; e assim sucessivamente.
No contexto, portanto, da lei dos três estados, as ciências mais gerais atingem o estado
positivo antes das ciências menos gerais. No momento em que escreve, Augusto Comte
entende que a astronomia e a física tenham já chegado ao estado positivo e que a química
e a biologia estão em vias de atingi-lo (a química num estágio mais avançado do que a
biologia). A fundação da sociologia, objetivo maior dos tomos quatro, cinco e seis de seu
Curso270, constitui, aos olhos de Comte, um estágio necessário para a transição definitiva
da política ao estado positivo. São com estes pressupostos, portanto, que nosso autor
lança seu olhar sobre a tradição iluminista que o antecedeu, buscando identificar nela os
elementos de transição previstos por sua teoria.
269 Menos precisas, porém não menos certas. São exatamente esses os termos empregados por Augusto Comte no Curso. É preciso interpretar o vocabulário comtiano da seguinte maneira: embora uma lei possa ser menos precisa do que outra (as leis sociológicas, por exemplo, são menos precisas do que as leis biológicas e as leis biológicas menos precisas do que as leis químicas e assim sucessivamente) não é menos certo que diferentes observadores, munidos dos mesmos instrumentos de observação, cheguem a um acordo a seu respeito (inclusive quanto ao seu grau de precisão). A certeza de uma lei, portanto, não diz respeito à sua capacidade de previsão dos eventos futuros, mas apenas à sua adequada fundamentação epistemológica. Essa diferenciação, acreditamos, é fundamental para se compreender coerentemente o positivismo. 270 Os tomos um, dois e três do Cusrso, por sua vez, se ocupam da matemática (tomo 1); da astronomia e da física (tomo 2); e da química e da biologia (tomo 3).
96
3.1.2. O espírito geral da metafísica
Uma vez que compreendemos, em linhas gerais, a estrutura da enciclopédia positivista e
a relação de suas ciências particulares com a lei dos três estados, a tarefa de interpretar a
crítica positivista da tradição iluminista se torna mais fácil, porquanto se evidencia o
caráter transitório que a filosofia crítica ou revolucionária tem no interior da formulação
positivista. “Sob qualquer aspecto que se o considere, nos diz Augusto Comte, o espírito
geral da metafísica revolucionária consiste sempre em erigir sistematicamente em estado
normal e permanente a situação necessariamente excepcional e transitória que deveria se
desenvolver nas nações mais avançadas, desde que a impotência da antiga ordem política
para dirigir então o movimento social havia começado a se tornar irrecusável até à
manifestação suficientemente caracterizada de uma nova ordem”271.
No entendimento do autor, portanto, houve um certo momento da história em que se
tornou irrecusável o fato de que a antiga ordem política havia se tornado impotente para
conduzir, dali em diante, o movimento da sociedade na direção de seus fins. Desde esse
momento até o instante em que uma nova ordem se fizesse manifestar claramente, seria
necessário, ainda segundo o autor, que um certo estado de coisas excepcional e transitório
se desenvolvesse no seio das nações mais avançadas. O espírito geral da metafísica, sob
qualquer aspecto que se o analise, consiste justamente em alçar, de maneira sistemática,
esse estado de coisas excepcional e transitório ao estado de normalidade. Tomar por
normal o excepcional e por permanente o transitório: eis a essência do espírito metafísico
e revolucionário aos olhos de Augusto Comte.
Atentemos para o fato de que, no trecho analisado acima, os dois marcos temporais
aludidos por Augusto Comte são algo vagos e que sua vagueza deriva dos próprios
termos empregados pelo autor: “irrecusável” no primeiro caso e “manifestação
suficientemente caracterizada” no segundo. É preciso se perguntar, com efeito, a quem
a impotência do antigo sistema para dirigir a sociedade começou a aparecer como um
dado “irrecusável” e, igualmente, para quem o surgimento do novo sistema se
manifestará de forma “suficientemente caracterizada”. É crucial entendermos aqui que
para Augusto Comte essas não são questões de mera opinião, mas questões de
conhecimento científico272. “Não há, de forma alguma, liberdade de consciência em
271 CPP, IV, p. 45. 272 O antigo e infindável debate a respeito da diferenciação entre doxa e espisteme reaparece em Augusto Comte com ares inegavelmente modernos.
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astronomia, em física, em química, mesmo em fisiologia, no sentido (que qualquer um
acharia absurdo) de não acreditar, por confiança, nos princípios estabelecidos nessas
ciências pelos homens competentes. Se na política isto se dá de outra forma, é unicamente
porque, tendo sido derrubados os antigos princípios, e os novos não estando ainda
formados, não há neste intervalo, propriamente falando, princípios estabelecidos”273.
As questões que formulamos acima, com o intuito de melhor compreender a letra do
autor, são respondidas de maneira categórica no interior da filosofia positiva: o sociólogo,
é a ele que estarão referidos os critérios epistemológicos capazes de delimitar com
precisão não apenas os marcos temporais de que trata o excerto em questão, mas também
todo o conjunto de interrogações de natureza política (assim como caberia, em todas as
outras ciências particulares de que se compõe a enciclopédia positivista, ao astrônomo,
ao físico, ao químico e ao biólogo semelhante incumbência). Notemos, no entanto, que
a delimitação precisa dos marcos temporais em questão tem implicações dramáticas no
próprio “movimento da sociedade”, de que nos fala Augusto Comte. Estabelecer os
limites do transitório implica em estabelecer também o que é, afinal, o novo e o antigo.
Esta absolutização do transitório, no entanto, levada a efeito pelo espírito metafísico, é
apenas criticável, no entendimento do autor, se se conhece o verdadeiro movimento da
sociedade. Em outros termos, o conhecimento é a condição mesma de possibilidade da
crítica. Logo depois de lamentar a “subversão direta e total das noções políticas as mais
fundamentais”274, levadas a efeito pela metafísica revolucionária, Augusto Comte nos dirá
que “a doutrina crítica seria bastante imperfeitamente julgada se esta negação sistemática
de todo verdadeiro governo, depois de ter sido vista como uma consequência inevitável
da decadência do regime antigo, não fosse considerada também como uma condição
temporariamente indispensável à plena eficácia da luta que deveria preparar a chegada do
regime novo”275. Para preparar, portanto, a chegada do novo regime, Augusto Comte nos
afirma ser necessário destruir o antigo. A destruição do antigo regime, entretanto, só seria
possível, ainda segundo o autor, se as mentes da época se convencessem da necessidade
de negar sistematicamente toda forma de governo. A negação sistemática de todo
273 CPP, IV, p. 46-7n. 274 Ibidem, p. 45. 275 Ibidem.
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verdadeiro governo constituirá, por sua vez, um novo obstáculo à chegada do novo
regime. Como resolver o impasse?
Aos olhos de Augusto Comte, seria impossível evitar o que temos chamado aqui de
absolutização do transitório. Seria o mesmo que admitir a violação da lei dos três estados:
um salto do estado teológico diretamente ao estado positivo, sem passar pelo estado
metafísico. “Entretanto, nos diz o autor, este grave inconveniente deve parecer, do ponto
de vista filosófico, lamentavelmente inseparável de nossa fraca natureza”276. Não apenas
a debilidade da natureza humana é invocada por Augusto Comte para justificar os erros
por ela cometidos no estado metafísico, mas também a longa duração do processo de
transição ao estado positivo. “Uma operação social, se pergunta o filósofo, cuja realização
deveria requerer dois ou três séculos, teria podido, mesmo no estado mais avançado da
razão pública, não passar por absoluta e definitiva aos olhos do vulgar?”277. A solução
para o impasse, afirmará a filosofia positiva, deve passar necessariamente pela instância
do conhecimento. “A verdadeira natureza do sistema novo, afirma Augusto Comte, [é]
profundamente desconhecida”278 no estado metafísico. Ela só passa a ser conhecida (e,
ainda assim, gradualmente) à medida que o espírito humano executa seu movimento na
direção do estado positivo, ou seja, a descoberta do novo só se dá, gradualmente, ao
longo do percurso que nos conduz coletivamente (isto é, enquanto sociedade) a ele. Não
se conhece, portanto, o novo a priori e isto deve ser entendido como uma espécie de
corolário do relativismo epistemológico positivista. Façamos agora uma breve digressão em
nossa exposição, no intuito de melhor compreender esse conceito-chave da filosofia
positiva.
3.1.3. O relativismo epistemológico
No prefácio especial do apêndice geral do quarto (e último) volume do Sistema de política
positiva – no qual Augusto Comte finalmente traz a público seus opúsculos de juventude
– o autor nos diz, a respeito de seus “escritos prematuros” (ele se refere à fase em que
trabalhou como secretário de Saint-Simon): “dessas produções efêmeras só incluo aqui
duas indicações decisivas de minha tendência contínua para a religião positiva. A primeira
surgiu em 1817, desta sentença característica, no meio de vã publicação: ‘tudo é relativo,
276 Ibidem. 277 Ibidem. 278 Ibidem.
99
eis o único princípio absoluto’”279. A “vã publicação” de que nos fala Augusto Comte é
o terceiro tomo de L’Industrie, jornal fundado por Saint-Simon e para o qual nosso autor
colaborou durante algum tempo. No segundo caderno da publicação, encontramos a
seguinte passagem: “Não se trata mais de dissertar a perder de vista para saber qual é o
melhor dos governos; não há nada de bom, não há nada de mau, falando
absolutamente280; tudo é relativo, eis a única coisa absoluta; tudo é relativo sobretudo ao tempo,
no que concerne às instituições sociais. A monarquia ilimitada foi boa numa certa época,
um governo representativo livre será instituído na sequência, não há dúvida sobre isso;
mas hoje aquilo de que precisamos é a monarquia representativa, o governo parlamentar;
e é este regime que nos convém, não porque seja em si mesmo o melhor de todos, não é
este o ponto, mas porque ele é o meio de se passar do sistema antigo ao sistema novo”281.
Vê-se, portanto, que de um excerto a outro (trinta e sete anos os separam no tempo,
aproximadamente) uma ideia particular, usada num contexto bastante específico, ganha
o estatuto de “princípio” e passa a fundamentar todo o sistema filosófico do autor. Toda
a filosofia positiva, é preciso salientar, está apoiada em seu “princípio de relatividade”. Já
no Curso de filosofia positiva, em sua 24ª lição, Augusto Comte, ao discutir a validade da lei
da gravitação, nos diz: “as noções absolutas me parecem de tal maneira impossíveis que
eu não ousaria mesmo garantir de forma alguma, por mais verossímil que isto me pareça,
a perpetuidade necessária e inalterável da teoria da gravitação, [...] se viermos um dia, o
que é, ademais, muito difícil de admitir, a aperfeiçoar a precisão das nossas observações
atuais tanto quanto nós o fizemos em comparação às de Hiparco. Mas, e isto poderia
nunca acontecer, [se] fosse preciso então construir uma outra lei da gravitação,
permaneceria eternamente verdadeiro, de forma necessária, que a lei atual satisfaz às
observações contentando-se com a precisão de segundos, [...] propriedade que basta
completamente, sem dúvida, às nossas necessidades reais282. É assim que, malgrado a
279 SPP, IV, Apêndice geral, p. ii. 280 Como não ouvir aqui o ranger de dentes de Nietzsche ecoando algumas décadas mais tarde? O “canto de galo do positivismo”, “primeiro bocejo da razão”, não prenuncia, afinal, a dissolução da própria moralidade? Ver Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos ou Como se filosofa com um martelo, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, [§ 4, aforismo n. 4], p. 32. Para aproximações entre o positivismo de Augusto Comte e o niilismo do fim do século, ver Angèle Kremer-Marietti, Nietzsche et l’épistémologie réfléchissante. Revue Internationale de Philosophie, v. 54, n. 211, p. 163-82, 2000. 281 EJ, p. 71, grifo nosso. 282 A teoria da gravitação newtoniana funcionava (e segue funcionando) perfeitamente bem para descrever a ocorrência de eclipses, o fenômeno das marés, as estações do ano, etc. Alguns outros fenômenos, entretanto, lhe escapam (e já lhe escapavam há algum tempo). A precessão do periélio de Mercúrio talvez seja o exemplo mais conhecido (embora sem grandes implicações em nossa vida diária). O funcionamento de alguns equipamentos eletrônicos, no entanto, entre eles o GPS (Global Positioning System), já inseridos em nosso dia a
100
natureza necessariamente relativa de nossos conhecimentos positivos, nossas teorias
apresentam, em meio a suas variações inevitáveis, e por sua própria subordinação aos
fatos observados, um caráter fundamental de estabilidade real, apropriado para prevenir
a vacilação de nossas inteligências”283.
Da mesma forma que, no escrito de juventude, os regimes de governo eram avaliados em
relação ao seu tempo (sua adequação, portanto, não estava condicionada a um padrão
absoluto, mas a um paradigma imanente da época), a lei da gravitação no Curso tem sua
validade relacionada a critérios locais, ou seja, ao grau de precisão que uma determinada
época é capaz de conferir às suas observações experimentais. Se todo conhecimento
positivo parte apenas das observações e as observações, por sua vez, admitem graus de
precisão (isto é, há observações mais ou menos precisas), segue-se daí que o próprio
conhecimento, as próprias leis, estarão também sujeitas a uma gradação no que concerne
a sua precisão. As leis positivas, portanto, serão sempre imprecisas, na medida em que
sempre se admite a possibilidade de aperfeiçoamento das observações. Note-se,
entretanto, que a imprecisão das leis só se mostra à luz de leis mais precisas e é justamente
isto que, no entendimento do autor, confere estabilidade ao edifício do conhecimento
positivo (o edifício não desaba nunca, uma vez que a cada viga obsoleta que dele se retira,
uma mais robusta é colocada em seu lugar).
A validade, portanto, de nossas teorias científicas estará sempre assegurada, uma vez que
sua imprecisão só se manifestará, de maneira incontornável, no momento em que elas já
tiverem se tornado obsoletas, isto é, quando novas leis, mais precisas, já tiverem sido
formuladas em seu lugar. Com efeito, a observação de fenômenos que contrariam nossas
leis atuais (fruto do aperfeiçoamento das próprias observações), ao invés de ensejar o
abandono imediato dessas leis, apresenta-se como ocasião para a formulação de leis mais
precisas284. As leis antigas, entretanto (e Augusto Comte insiste nesse ponto), continuarão
dia, dependem, para o seu bom funcionamento, de um grau de precisão que só a teoria da relatividade einsteiniana foi capaz de conferir à nossa descrição dos fenômenos físicos. É curioso observar, acompanhando Comte em sua argumentação, como o desenvolvimento da ciência, impulsionando o desenvolvimento tecnológico, foi capaz, em tão pouco tempo, de alterar drasticamente o que Comte nomeia “as nossas necessidades reais”. Ações cotidianas, como, por exemplo, chamar um Uber, já completamente naturalizadas na vida das grandes metrópoles, dependem, para sua realização, de algo extraordinariamente sofisticado como a teoria da relatividade. 283 CPP, II, p. 392. 284 Em carta a Valat, datada de 8 de setembro de 1824, Augusto Comte diz: “não se abandona um sistema por outro a não ser quando este último permite conceber de uma maneira mais ampla os fatos gerais que são o essencial da ciência, cujo número é muito claro que, em meio a todas as incertezas pelas quais te lamentas, aumentou consideravelmente nesses últimos tempos, e aumenta a cada dia”, CG, I, p. 124.
101
válidas dentro do regime de precisão em que haviam sido previamente estabelecidas. O
que muda, devemos enfatizar, é justamente o escopo do regime, que passa agora a ser
mais amplo; sua ampliação acompanhando, portanto, o redimensionamento do nosso
próprio universo de observações – e forçando, de enfiada, o aperfeiçoamento contínuo
de nossas teorias científicas.
Antes de retornarmos à discussão que deixamos em suspenso, seria instrutivo ainda
analisarmos brevemente de que maneira Augusto Comte sintetiza, em seu Discurso sobre o
espírito positivo, de 1844, suas ideias a respeito do princípio de relatividade, uma vez que
sua escrita (e a essa altura isto já não deveria mais nos surpreender) de certa forma
mimetiza o próprio desenvolvimento contínuo das ciências positivas, ou seja, retoma a si
própria incessantemente e se pretende aperfeiçoar a cada vez que o faz. “Para caracterizar
suficientemente esta natureza relativa de todos os nossos conhecimentos reais, nos diz
Augusto Comte, é importe ter consciência, ademais, do ponto de vista o mais filosófico,
que se todas as nossas concepções devem ser consideradas elas mesmas como fenômenos
humanos, tais fenômenos não são simplesmente individuais, mas também e sobretudo
sociais, porquanto resultam, com efeito, de uma evolução coletiva e contínua, da qual
todos os elementos e todas as fases são essencialmente conexas”285.
Ao afirmar que todas as nossas concepções devem ser consideradas como fenômenos
humanos, Augusto Comte acaba por fazer das próprias ciências positivas (constituídas,
afinal, de “nossas concepções”) objetos de estudo, e por inverter momentaneamente os
papéis: as instâncias analisadoras dos fenômenos naturais passam a ser elas próprias
fenômenos a serem analisados. Tais instâncias, contudo, são objetos de estudo somente
à medida que se as considera como o produto do trabalho coletivo da humanidade286 e
não apenas enquanto manifestações das mentes individuais. Augusto Comte nos diz,
portanto, que a “fenomenologização” de nossas concepções só se dá à medida que se as
coloca em perspectiva histórico-sociológica, ou seja, quando não se desconsidera sua
“evolução coletiva e contínua”. É, unicamente, a partir desta perspectiva que nossas
285 Esprit, p. 69. 286 A ideia da humanidade como um homem coletivo, que se desenvolve ao longo dos séculos analogamente aos indivíduos, vem de Pascal: “[...] o conhecimento do progresso das ciências pôde unicamente inspirar a Pascal este admirável aforismo, para sempre fundamental: ‘toda a sucessão dos homens, durante a longa sucessão dos séculos, deve ser considerada como um único homem, que subsiste sempre, e que aprende continuamente’”, CPP, IV. p. 119. A passagem exata, como nos alertam os editores do Curso, se encontra no Prefácio do Tratado sobre o vazio: “De sorte que toda a sucessão de homens, ao longo do curso de tantos séculos, deve ser considerada como um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente”, Blaise Pascal, Œuvres complètes, v. 1, Paris, Gallimard, 1998, p. 456.
102
concepções podem almejar o estatuto de fenômeno científico, isto é, de objeto passível
de ser conhecido por uma ciência positiva.
“Se, portanto, prossegue o autor, sob o primeiro aspecto, se reconhece que nossas
especulações devem sempre depender das diversas condições essenciais de nossa
existência individual, é preciso igualmente admitir, sob o segundo, que elas não são
menos subordinas ao conjunto da progressão social, de forma a não poderem jamais
comportar esta fixidez absoluta que os metafísicos supuseram”287. Nesta passagem, se
Augusto Comte reconhece, por um lado, que a existência individual é condição necessária
para a manifestação de nossas especulações (isto é, as ideias precisam, em todas as épocas,
de cabeças individuais bem constituídas para abrigá-las e desenvolvê-las), ele nos adverte,
por outro lado, que disto não decorre a independência completa do indivíduo (no que
diz respeito à própria formulação de suas especulações) com relação ao “conjunto da
progressão social”. Da subordinação das especulações individuais ao conjunto das
especulações coletivas (ou seja, da subordinação intelectual do indivíduo à sociedade),
nosso autor deriva o caráter relativo de todas as nossas concepções e justifica, portanto,
a impossibilidade de o conhecimento atingir o grau de fixidez almejado pela metafísica.
As ciências positivas, diante da metafísica, revelam toda a sua precariedade, mas é
justamente sua precariedade que as tornam, em primeiro lugar, possíveis e dignas de
confiança (ao contrário da metafísica: impossível, por definição, e eternamente suspeita).
Nota-se que, em termos epistemológicos, a recusa do absoluto está por trás, para o
positivismo, da recusa da metafísica. Ainda a esse respeito, num trecho fundamental para
se compreender adequadamente a posição filosófica do positivismo frente à possibilidade
mesma do conhecimento, Augusto Comte nos dirá que “a lei geral do movimento
fundamental da humanidade consiste [...] em que nossas teorias tendam cada vez mais a
representar exatamente os objetos externos de nossas constantes investigações sem que,
entretanto, a verdadeira constituição de cada um deles possa, em nenhum caso, ser
plenamente apreciada; a perfeição científica devendo se limitar a se aproximar deste limite
ideal tanto quanto o exigem nossas diversas necessidades reais”288. As teorias científicas
(positivas), nos diz Augusto Comte, tendem, segundo a lei dos três estados, a representar
de maneira cada vez mais exata seus objetos de investigação. À “representação” dos
287 Esprit, p. 69-70. 288 Ibidem, p. 70.
103
objetos exteriores, nosso autor irá contrapor, logo em seguida no texto, “sua verdadeira
constituição”, esta última impossível de ser por nós “plenamente apreciada”. O
aperfeiçoamento das ciências, portanto, tem como objetivo não a transposição de um
limiar que nos separaria da verdadeira constituição dos objetos externos, mas uma
aproximação assintótica deste limite ideal, efetuada por meio de representações289. O
conhecimento, portanto, não é, para Augusto Comte, um “desvelamento do ser”, mas
um caminhar progressivo na direção de um absoluto inalcançável, e que se orienta não
por qualquer inclinação ou vaidade pessoal, mas (o que é sensivelmente diferente) por
nossas “diversas necessidades reais” – o caráter prático da filosofia positiva se manifesta
aqui de maneira exemplar.
Ao falar da “representação exata” de “objetos exteriores” cuja “verdadeira constituição”
está vedada à nossa “plena apreciação”, o autor parece sugerir, afinal, a existência de um
absoluto transcendente290, ainda que reconhecendo a impossibilidade de a razão humana,
condenada à experiência, acessá-lo plenamente. A mesma sugestão nos parece ser dada
em passagem anterior deste mesmo discurso, em que o autor, falando ainda do espírito
teológico, afirma: “seria, em primeiro lugar, supérfluo insistir na tendência involuntária
que, mesmo nos dias de hoje, nos arrasta todos evidentemente às explicações
essencialmente teológicas, tão logo desejamos penetrar diretamente o mistério inacessível do modo
fundamental de produção de fenômenos quaisquer, e sobretudo com respeito àqueles cujas leis
naturais nós ainda ignoramos” 291 . Em nota deste excerto, Annie Petit nos diz: “A
referência ao ‘mistério’ – ou ao ‘misterioso’ – não deve certamente ser compreendida em
Comte como [se estivesse] preparando um mundo sobrenatural possível. A partir de uma
tal interpretação se pôde falar do positivismo como um ‘agnosticismo’ que, situando um
real para além de nossas possibilidades de conhecimento, deixaria um lugar possível para
a metafísica. Mas é claro que em Comte se trata apenas de insistir na modéstia exigida do
espírito positivo”292.
289 Em geometria, diz-se “assíntota” uma reta que é tangente de uma curva no infinito, ou seja, que, prolongada, indefinidamente, aproxima-se cada vez mais do ponto de tangência da curva, mas sem jamais encontrá-lo. Embora Augusto Comte não empregue este vocabulário para falar do “absoluto”, nos pareceu bastante intuitivo fazê-lo (sobretudo tendo-se em vista a formação matemática do autor). 290 Augusto Comte, enfatizemos, não utiliza, em momento algum de seus textos, a palavra “transcendente”. O fazemos aqui, entretanto, com o intuito deliberado de sugerir uma aproximação (ademais, em nada original, pensamos) entre a reflexão epistemológica do positivismo e os problemas atacados pela filosofia crítica kantiana. 291 Esprit, p. 50, grifo nosso. 292 Ibidem, p. 50n.
104
Esta interpretação canônica do positivismo, seguida pela comentadora, pode ser também
encontrada no discípulo mais ilustre de Augusto Comte. Émile Littré, em seu Prefácio de
um discípiculo, nos diz, a respeito da recusa do absoluto em Augusto Comte: “Não se pode
repetir em demasia o anátema pronunciado por M. Comte contra as hipóteses
inverificáveis. A grandeza da ciência não está no esforço impotente e subjetivo de
conhecer aquilo que ela não pode conhecer; ela está no labor, bem recompensado até o
presente, que interroga objetivamente a natureza, e que dela retira noções relativas, sem
dúvida, mas pelo menos porções seguras e obtidas de uma verdade crescente e de um
encadeamento metódico de concepções cada vez mais complicadas”293. Mais à frente no
texto, ao analisar certas passagens de um comentário da obra de Herbert Spencer, em
que se tangencia estas mesmas questões colocadas pela epistemologia positiva294, Émile
Littré nos diz: “Segundo M. Spencer, a religião, tendo por função essencial impedir o
homem de ser completamente absorvido naquilo que é relativo e imediato, e nele
despertar a consciência de qualquer coisa mais elevada, tem por objeto o incognoscível. De
seu lado, a ciência chega ao incognoscível. A religião e a ciência se confundem neste ponto,
em que elas não são senão duas faces diferentes de uma mesma doutrina”295.
Littré, entretanto, a respeito desta questão, discorda de Spencer, sobretudo no que diz
respeito à identificação entre “o objeto da fé e o resultado da ciência”296. Além do mais,
na sequência do texto, o discípulo enunciará a paternidade do positivismo de Augusto
Comte sobre a noção spenceriana do “incognoscível”, afirmando que “até então ela não
existia filosoficamente”297. “Anteriormente à firme discussão de M. Comte, prossegue
Littré, havia dois domínios bastante distintos: [em primeiro lugar], o da fé e o da
metafísica (neste contexto eles [os domínios da fé e da metafísica] se confundem); neles
o incognoscível, longe de ser desconhecido, havia encontrado determinações bastante
precisas sobre Deus, sobre seus atributos, sobre sua personalidade, sobre sua providência,
sobre a origem do mundo, sobre o estado depois da morte e depois da consumação dos
séculos. O outro domínio era o das ciências positivas; mas elas não se elevavam de forma
293 Émile Littré, Préface d’un disciple, in: Auguste Comte, Principes de philosophie positive, Paris, J. B. Baillière et Fils, 1868, p. 43. 294 Trata-se de um artigo de 1864 publicado na Revue des deux mondes, de autoria de Auguste Laugel. Ver Auguste Laugel, Les études philosophiques en Angleterre: M. Herbert Spencer, Revue des deux mondes, v. 49, n. 2, 1864, p. 930-57. 295 Émile Littré, op. cit., p. 62. 296 Idem, ibidem. 297 Idem, ibidem.
105
alguma à ideia do incognoscível, aceitando aquilo que ensinavam a fé e a metafísica, ou ao
menos não acreditando que em seu próprio nome se poderia estabelecer um incognoscível.
M. Comte foi quem primeiro, estendendo o método positivo à filosofia, inseriu na
consciência filosófica a noção do incognoscível, subtraindo-a ao mesmo tempo da
competência provisória da metafísica e da incompetência também provisória da
ciência”298.
Aos olhos de Émile Littré, como vemos, o incognoscível da religião e da metafísica, a
bem dizer, é uma contradição em termos, visto que se enuncia a seu respeito uma série
de atributos que, por definição, seriam impossíveis de se conhecer. “Em meu ver, a
reunião que [M. Spencer] faz de dois incognoscíveis sob uma mesma rubrica é antes nominal
do que real, o incognoscível da fé sendo o objeto mesmo da fé, e o incognoscível da ciência
sendo um limite no qual ela se detém. Ser objeto ou ser limite são duas noções bastante
distintas” 299 . O incognoscível da ciência, arremata o autor, “é verdadeiramente o
desconhecido; e sobre o desconhecido nada pode ser fundado”300. O incognoscível
spenceriano, que Littré filia finalmente à estirpe do positivismo, traduzir-se-ia, ainda
segundo o discípulo, em termos de sua própria noção de imensidão: “Aquilo que está para
além do saber positivo, seja, materialmente, o fundo do espaço sem borda, seja,
intelectualmente, o encadeamento de causas sem termo, é inacessível ao espírito humano.
Mas inacessível não quer dizer nulo ou não existente. A imensidão, tanto material quanto
intelectual, retém num vínculo estreito nossos conhecimentos e se torna por essa aliança
uma ideia positiva e de mesma ordem; quero dizer que, ao tocá-los e ao abordá-los, essa
imensidão aparece sob um duplo caráter, a realidade e a inacessibilidade”301. Para Littré,
portanto, o “absoluto” de Augusto Comte, o “incognoscível” de Spencer e seu conceito
de “imensidão” são uma mesma e única coisa: “É um oceano que vem tocar nosso litoral,
e para o qual nós não temos nem barco nem vela, mas cuja clara visão é tanto salutar
quanto formidável”302.
298 Idem, ibidem, p. 62-3. 299 Idem, ibidem, p. 64, grifo nosso (em “um limite”). 300 Idem, ibidem. 301 Idem, Auguste Comte et la philosophie positive, Paris, Hacehette et Cie., 1863, p. 529, apud ______, op. cit., p. 67. 302 Idem, ibidem. Como não lembrar aqui (ficando ainda nas metáforas náuticas) de Kant? Na Crítica da razão pura, o filósofo de Königsberg diz existir, cercando a ilha do conhecimento, “um vasto e tormentoso oceano que é o verdadeiro lugar da ilusão, onde muitos bancos de névoa e blocos de gelo prestes a derreter simulam novas terras e, enganando incessantemente, com esperanças vazias, o navegador errante que sai em busca de descobertas, atraem-no para aventuras que ele não consegue evitar, mas que, ao mesmo tempo, nunca consegue
106
Se quisermos seguir a interpretação de Littré a respeito da epistemologia positiva, seria
preciso antes fazer uma distinção importante. Isto porque, como acabamos de ver, o
discípulo afirma, com base na filosofia do mestre, que o absoluto recusado pelo
positivismo aparece, finalmente, sob um duplo caráter, “a realidade e a inacessibilidade”.
Em carta a Valat, entretanto, datada de 8 de setembro de 1824, Augusto Comte, nos diz:
“Numa palavra, o absoluto, em qualquer sentido que seja, não apenas não existe, mas não
pode mesmo ser imaginado por nós, e tal tem sido até aqui o vício fundamental da
filosofia. Mas, ao adentrar a condição real das coisas e dos homens, se trata, quando se
fala de método, não de saber se o melhor que os homens podem empregar é
necessariamente bastante imperfeito, mas unicamente de decidir qual de todos aqueles
que o espírito humano pode conceber é o mais vantajoso às suas pesquisas, ou, se
quisermos, o menos pior. Toda discussão que não trata disto é inútil e quimérica por sua
natureza”303.
Com efeito, se o discípulo afirma o caráter “real” do absoluto, o mestre, antes, havia
afirmado a sua “inexistência”. A chave para a compreensão da questão, em nosso
entendimento, reside na relação que a epistemologia positiva entretém com a
possibilidade mesma de uma ontologia. A compatibilização das afirmações do discípulo e
do mestre só se dá ao se admitir a separação entre o “ser” e o “real”, isto é, entre a
“existência” e a “realidade”. Afirmemos sem rodeios: a epistemologia positiva implica na
supressão completa da ontologia, entendendo-se esta última no sentido de uma ciência
do ser (e entendendo-se a “ciência do ser” no sentido de um “desvelamento do ser”). Em
nosso ver, Augusto Comte, ao dizer que o absoluto “não existe”, está apenas reafirmando
que a possibilidade de conhecê-lo (advogada quimericamente pela teologia e pela
metafísica) nos está vedada, pela própria natureza relativa do conhecimento. O
conhecimento positivo (único possível, aos olhos de Comte) parte do fenômeno e fica
no fenômeno, resistindo à tentação infantil de penetrar seus modos secretos de produção.
Num certo sentido, entretanto – puramente fenomênico –, poderíamos dizer (sem
agredir as concepções do autor), que o absoluto existe, mas apenas de forma relativa
(enquanto fenômeno), isto é, ele nos aparece (assim como os demais objetos exteriores)
levar a cabo”. Immanuel Kant, Crítica da razão pura, Tradução de Fernando Costa Mattos, Rio de Janeiro, Vozes, 2013, p. 242 303 CG, I, p. 123, grifo nosso. Para discussões complementares a respeito do relativismo epistemológico em Augusto Comte, ver Henri Gouhier, La jeunesse d’Auguste Comte et la formation du positivisme, v. 3, Paris, Vrin, 1941, p. 183 e ss.; Léon Brunschvig, La raison et la religion, Paris, PUF, 1964, p. 164 e ss.; e Jean Delvolvé, Réflexions sur la pensée comtienne, Paris, Félix Alcan, 1932, p. 58.
107
enquanto representação (de um limite), o que não é o mesmo que afirmar sua existência
absoluta: um “ser em si” (e não em relação a um observador)304.
Por outro lado, Émile Littré, ao dizer que o absoluto é uma “realidade”, está apenas
reafirmando (lembremo-nos de sua concepção do incognoscível) a realidade de um limite,
e não a de um objeto situado para além desse limite (as duas coisas são absolutamente
distintas para o autor). Neste sentido, o absoluto é real e mesmo Augusto Comte,
negando-lhe a existência (ao afirmar a impossibilidade de conhecê-lo), deverá concordar
com tal afirmação. Desta feita, o positivismo estará condenado a afirmar que só existe
aquilo que se conhece, não existindo, portanto, objeto anterior à observação (a mera
indagação a respeito da existência de algo que não pode ser observado parece absurda
aos olhos de nosso autor). Num certo sentido, para o positivismo é o próprio
conhecimento que cria a existência. O conhecimento, entretanto, é um aproximar-se
assintótico de um limite inalcançável, o que faz da própria existência (e do próprio ser)
um conceito relativo e, por via de decorrência, também precário. A ruptura que o
positivismo opera, via epistemologia, com praticamente toda a tradição filosófica (desde
Platão) é, como se vê, muito mais profunda do que se poderia pressupor à primeira vista.
O que o positivismo recusa não é apenas a metafísica e o absoluto; o positivismo recusa,
de maneira dramática e irreconciliável, uma concepção de conhecimento que
acompanhou o pensamento ocidental desde os tempos imemoriais e à qual certas
filosofias do início do século vinte305 tentarão desesperadamente retornar: a ideia de que
a filosofia, para conhecer, precisa acessar o ser das coisas.
3.2. Positivismo crítico das Luzes
Como vimos na seção anterior, à medida que se penetra a crítica positivista das Luzes –
cuja ressonância, em última instância, se manifesta no plano da política – em busca de
304 Aos olhos do positivismo, a própria ideia de um “ser em si” poderia ser compreendida como mais uma manifestação (agora no campo da ontologia) da tendência irresistível do espírito teológico em antropomorfizar seus objetos de observação. A ideia de um “ser em si”, cuja existência estaria assegurada de forma independente de qualquer experiência sensível, poderia ser entendida, aos olhos do positivismo, como uma atribuição, aos objetos exteriores, de alguma forma, ainda que rudimentar, de subjetividade (uma instância, intrínseca ao objeto, garantidora de sua própria existência, ou, falando de forma ainda mais descuidada, uma espécie de cogito primordial imanente a todos os objetos de nossa experiência sensível). Supor a existência dos objetos exteriores apartada de nossa observação (isto é, aceitar a ideia mesma do “ser em si”) seria o mesmo, segundo esta interpretação, que lhes atribuir uma característica essencialmente humana: uma forma primitiva de “experiência em primeira pessoa”, no essencial, diria o positivismo, equivalente àquela que o espírito teológico, ainda na infância da razão, atribuía aos objetos naturais para explicar os seus fenômenos (uma espécie, portanto, de “fetichismo ontológico”, severamente censurado pelo espírito positivo). 305 Referimo-nos, naturalmente, a Heidegger – “com seu cajado, pastoreando o ser na floresta negra” –, muito provavelmente (e com razão) o maior nome da filosofia no século vinte.
108
seus elementos fundamentais, chega-se, contudo, à epistemologia. Do ponto de vista
epistemológico, é preciso frisar que o conhecimento científico – grande organizador da
política para o positivismo – se funda apenas na observação. Para Augusto Comte, não é
possível conhecer a priori o movimento futuro da sociedade (isto é, sem antes observá-
la), mas isto não é o mesmo que alegar a impossibilidade completa de prevê-lo, ainda que
a previsão, como tudo que toca o relativismo científico, esteja envolta em considerável
precariedade. A chave para a compreensão da questão está no fato de que a previsão
científica, diferentemente da previsão teológica ou metafísica, apoia-se apenas na
observação e nunca na imaginação306. Deste ponto de vista, compreende-se porque nosso
autor entende a absolutização do transitório como algo inevitável: o movimento da
sociedade na direção de seus fins (e, no limite, seus próprios fins307) não está dado de
antemão, mas revela-se ao observador atento da história dinamicamente, isto é, à medida
que se progride temporalmente.
O conjunto do passado histórico, portanto, determina, de alguma forma e em algum grau,
o futuro da humanidade. É preciso conhecê-lo para que se possa, ao mesmo tempo,
prever o futuro e atuar no presente308. O conhecimento da história, entretanto, é condição
necessária, mas não suficiente para se conhecer o movimento futuro da humanidade
(caso contrário a própria fundação da sociologia seria absolutamente desnecessária). Aos
olhos de Augusto Comte, a história não é científica e constitui apenas uma espécie de
repertório empírico309 (no mais das vezes incoerente) ao qual o sociólogo deve recorrer
306 Para uma separação clara entre observação e imaginação em Augusto Comte, conferir o Examen, passim. 307 A discussão a respeito do positivismo como uma filosofia finalista é controversa e complicadíssima (melhor seria dizer controversa porque complicadíssima). Se olharmos, no entanto, apenas para os fundamentos epistemológicos do positivismo nos parece possível afirmar que não se deve, de modo algum, falar de “fins” em Augusto Comte de maneira absoluta, mas apenas de maneira relativa. Mesmo a lei dos três estados, pedra angular de todo o edifício positivista, deve estar submetida a este pressuposto. A sociologia comtiana, a exemplo das ciências modernas, tem de estar disposta, contínua e eternamente, a abandonar seus paradigmas científicos (desta feita, eles não são absolutos aos olhos do positivismo). Pressupõe-se, portanto, ao menos em termos epistemológicos, a falibilidade das leis sociológicas, mas isto não implica (ou não deveria implicar) em arbitrariedade de princípios. As leis, com efeito, podem e devem cair, mas desde que leis mais gerais (que incorporem as leis antigas como casos particulares) sejam postas em seu lugar. Este mesmo critério se aplicaria, portanto, aos “fins” de que temos falado: são fins temporários (pontos de paragem), relativos (relativos ao tempo) e não absolutos, definitivos, intemporais. 308 “Em resumo, nos diz Augusto Comte, ciência, donde previsão; previsão, donde ação: tal é a fórmula bastante simples que exprime, de maneira exata, a relação geral da ciência e da arte, tomando estas duas expressões em sua acepção total”. CPP, I, p. 45. 309 O empirismo tem, na obra de Augusto Comte, um estatuto recorrentemente pejorativo, pré-científico. Refere-se, de modo geral, ao acúmulo desordenado de conhecimentos particulares carentes de generalizações capazes de expressá-los, cientificamente, na forma de leis.
109
para, reorganizando seus dados, deduzir as leis que regem o verdadeiro movimento da
sociedade.
3.2.1. A crítica da liberdade de consciência
A crítica positivista das Luzes, tanto em seu aspecto epistemológico como em seu aspecto
político, pode ser traduzida em termos da crítica do absoluto. O absoluto epistemológico
engendra, aos olhos de Augusto Comte, um absoluto político. A recusa de um, portanto,
deve implicar na recusa do outro. “Considerando, [...] nos diz o filósofo, a doutrina crítica
sob um ponto de vista mais especial, é evidente que o direito absoluto de livre exame, ou o
dogma da liberdade ilimitada de consciência, constitui seu princípio mais estendido e mais
fundamental, sobretudo se não o separarmos das suas mais imediatas consequências,
relativas à liberdade de imprensa, de ensino, ou de qualquer outro modo de expressão e
de comunicação das opiniões humanas”310. Notemos, em primeiro lugar, a identificação
operada pelo autor entre “direito de livre exame” e “liberdade de consciência” – as duas
expressões são apresentadas como sinônimas pelo filósofo. Em segundo lugar, atentemos
para o fato de que o par conceitual já aparece, no texto do autor, adjetivado pelos termos
“absoluto” e “ilimitada”, respectivamente. Augusto Comte parece inclinado, portanto, a
não considerar, de saída, a possibilidade de o direito de livre exame e a liberdade de
consciência se expressarem sob uma forma não absoluta – relativa – e limitada. Aos seus
olhos, somos levados a concluir, estes dogmas da filosofia crítica já se expressam,
enquanto fenômeno social, absolutos e ilimitados no momento em que escreve – se não
de fato, isto é, como realidade empírica manifesta em todos os casos particulares que
compõem o próprio fenômeno social, ao menos como tendência global suficientemente
consolidada (voltaremos a essa questão nos próximos parágrafos).
O direito absoluto de livre exame, ou dogma da liberdade ilimitada de consciência, ganha
o estatuto de princípio “mais estendido e mais fundamental” da filosofia crítica, segundo
o filósofo, por sua grande capilaridade e seu alto grau de enraizamento nas instituições e
sociedade da época. As liberdades de imprensa, de ensino, de expressão, etc., são
apresentadas como manifestações da vitalidade e do alcance do dogma. Para o autor,
portanto, a própria instituição desse conjunto de “liberdade civis” no seio da sociedade
está ancorada na liberdade ilimitada de consciência, “e é essencialmente por meio dela,
complementa Augusto Comte, que todas as inteligências, quaisquer que sejam suas vãs
310 CPP, IV, p. 46, grifo nosso.
110
intenções especulativas, [acabaram por aderir], de uma forma mais ou menos explícita,
ao espírito geral da doutrina revolucionária, do qual fazem assim, umas conscientemente
outras em contradição com suas próprias teorias, um uso espontâneo e contínuo”311.
Se esmiuçarmos agora o texto do autor, poderemos notar a existência de uma gradação
no que se refere à explicitude com que “as inteligências da época” aderem, via liberdade
de consciência, ao “espírito geral da doutrina revolucionária”; o filósofo nos diz, no
excerto, que elas o fazem “de uma forma mais ou menos explícita”. Por outro lado,
quanto ao uso que essas mesmas inteligências da época fazem do espírito da doutrina
revolucionária, Augusto Comte admite, curiosamente, que algumas delas o façam de
forma não plenamente consciente, logo em contradição com suas próprias teorias. Em
resumo: “graus de explicitude” e “níveis de consciência”; fazendo uso, portanto, destas
categorias o autor nuança o fenômeno a ser estudado. No fundo, se poderia argumentar,
Augusto Comte não afirma que o direito de livre exame e a liberdade de consciência
tenham já nascido absoluto e ilimitada – no contexto da Reforma protestante –, nem que
em todas as ocasiões em que se manifestam contemporaneamente eles sejam assim
entendidos e proclamados – daí termos falado, em parágrafo precedente, em “tendência
global suficientemente consolidada”, ao invés de atribuirmos ao autor uma concepção
estanque do fenômeno que buscava descrever.
No limite, nos parece adequado dizer que para uma descrição acurada do fenômeno
observado – isto é, a adesão das inteligências da época ao dogma da liberdade ilimitada
de consciência –, não há a necessidade, para o autor, de que os predicados do próprio
fenômeno sociológico se manifestem em todos os casos particulares que o compõem,
bastando, ao contrário, que, uma vez tomados em conjunto, estes mesmos casos
particulares expressem ao longo do tempo uma tendência (suficientemente caracterizada)
na direção da manifestação plena do fenômeno, tal como o descreve o autor, isto é,
absoluto e ilimitado. Com efeito, Augusto Comte poderia dizer – caso confrontado por
seus opositores – que, ainda que nenhum dos autores ou atores políticos do período
advogue o direito de livre exame e a liberdade de consciência de forma radicalizada (ou
seja, de forma absoluta e ilimitada), a tendência expressa por eles, do ponto de vista
sociológico, consiste ainda assim na aproximação gradual deste limite ideal. Acreditamos
311 Ibidem.
111
que interpretar a letra do autor sob esse ponto de vista implica numa mudança radical do
sentido atribuído à sua filosofia.
Na sequência do texto, Augusto Comte nos dirá: “O direito individual de exame soberano
sobre todas as questões sociais devia adular demais a orgulhosa fraqueza de nossa
inteligência para que os conservadores mais sistemáticos do antigo regime social
pudessem eles próprios resistir a um tal engodo e se resignassem a permanecer, apenas
eles, humildes e submissos em meio a espíritos completamente abandonados ao ímpeto
irresistível de sua completa emancipação”312. Notemos que, uma vez mais, a fraqueza do
espírito humano é invocada pelo autor para justificar a inevitabilidade de sua transição ao
estado metafísico. Augusto Comte argumenta que a possibilidade de se tornar senhor de
si mesmo no que se refere a questões sociológicas – noutras palavras, fazer de si próprio
a instância verificadora da validade das opiniões em matéria de política – seria sedutora
demais, mesmo para os espíritos mais sistemáticos, para que se pudesse resistir a ela. A
situação se tornaria ainda mais grave, nos diz o autor, à medida que a expansão do direito
de livre exame se generalizasse: resistir, então, à tentação de “sua completa emancipação”
seria quase impossível, uma vez que todas as inteligências se permitiriam esta mesma
licença.
No momento em que escreve, Augusto Comte diz existir também na escola retrógrada
este mesmo espírito crítico que atribui à sua rival, a escola revolucionária. “Na vida
cotidiana, os mais zelosos partidários da política teológica não se mostram, de ordinário,
quase nunca menos dispostos agora do que seus adversários a julgar exclusivamente
segundo suas luzes pessoais, pondo fim, com não menos audácia e leviandade, aos
debates os mais difíceis, e sem testemunhar mais deferência real em relação a seus
verdadeiros superiores intelectuais” 313 . A “irritante infalibilidade”, afirma o autor,
referindo-se ao dogma da “infalibilidade papal” 314 , é sempre invocada pela escola
retrógrada como justificação para a imposição de suas convicções sobre as opiniões de
seus adversários. “Assinalo, conclui o filósofo, preferencialmente no partido retrógrado
esta inversão geral do espírito crítico – que caracteriza a doutrina revolucionária
312 Ibidem. 313 Ibidem. 314 Sobre a infalibilidade papal, ver o primeiro capítulo de Joseph de Maistre, Du pape, Paris, J. B. Pélagaud, 1857, p. 17 e ss.
112
propriamente dita –, a fim de melhor ressaltar a extensão e a gravidade de uma tal situação
das inteligências”315.
Se por um lado, como vimos, Augusto Comte afirma que o dogma da liberdade ilimitada
de consciência engendra socialmente diversas outras formas de liberdade (de imprensa,
de ensino, de expressão, etc.), por outro lado, o autor nos dirá, na sequência do texto,
que este dogma, por sua vez, deve ser entendido como “a consagração, sob a forma
viciosamente abstrata, comum a todas as concepções metafísicas, do estado passageiro
de liberdade ilimitada em que o espírito humano foi espontaneamente colocado – como
resultado necessário da irrevogável decadência da filosofia teológica –, e que deve durar
naturalmente até o advento social da filosofia positiva” 316 . Trata-se, portanto, de
fenômeno mais amplo: o aumento desenfreado da própria liberdade humana (sendo a
liberdade de consciência apenas a sua primeira forma de expressão). A expansão
desmesurada da liberdade, por sua vez, traduz-se, para o autor, na própria ideia de
progresso advogada pela escola revolucionária, que consiste, segundo suas próprias
palavras, na “plena extensão contínua da liberdade, isto é – em termos mais positivos –,
do desenvolvimento gradual das faculdades humanas”317. No entanto, nos lembra o
autor, esta concepção de liberdade “é [sobretudo] uma noção negativa, [que reitera]
essencialmente uma supressão crescente de diversas resistências” 318 . Aos olhos de
Augusto Comte, contrariamente, “a verdadeira liberdade não [poderia] consistir [...] senão
na submissão racional à preponderância, convenientemente constatada, apenas das leis
fundamentais da natureza, ao abrigo de todo comando pessoal arbitrário”319.
O que se pretende mostrar com a análise do parágrafo precedente é que o desacordo do
autor com o que ele próprio chama de “escola revolucionária” – cujos dogmas, como
vimos, acredita já terem se difundido de maneira irrevogável na sociedade contemporânea
– se reduz, em última análise, a um desacordo, mais fundamental, a respeito da ideia
mesma de liberdade. A concepção de liberdade advogada pelo autor – de fundo estoica, é
preciso frisar – diz respeito não à mera supressão das “diversas resistências” que
315 CPP, IV, p. 46. 316 Ibidem, grifo nosso. 317 Ibidem, p. 103, grifo nosso. 318 Ibidem, p. 103-104. É curioso notar o quanto esta noção de liberdade, que Augusto Comte atribui à escola revolucionária, se aproxima da concepção de “liberdade negativa” formulada contemporaneamente por Isaiah Berlin, em seus famosos ensaios sobre a liberdade. Consultar Isaiah Berlin, Two concepts of liberty, in: ______, Liberty, Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 166-217. 319 CPP, IV, p. 104.
113
impediriam o “desenvolvimento gradual das faculdades humanas”, mas à conformação
dos indivíduos e da sociedade ao império de leis naturais. Para Augusto Comte, portanto,
ser livre não é viver sem limites – e sem a resistência por eles imposta ao desenvolvimento
das faculdades humanas –, ser livre, para o autor, é viver conforme à lei natural. Se
lembrarmos agora que, em matéria de política, o positivismo entende o estabelecimento
de leis naturais como uma competência exclusiva da sociologia, teremos como corolário
da própria formulação da ideia de liberdade positivista o fato de que caberá ao sociólogo
– e apenas ele – a delimitação precisa das fronteiras da própria liberdade humana – o
projeto político do positivismo (ambiciosíssimo) articula-se, como se vê, ainda em sua
fase estritamente científica.
Cumpre enfatizarmos, no entanto, que a reprovação do autor com respeito à escola
revolucionária, no que toca a questão da liberdade de consciência, repousa apenas no
caráter “ilimitado” ou “absoluto” que esta tende a atribuir-lhe. É porque concebe, em
primeiro lugar, a própria ideia de liberdade de maneira ilimitada que a escola
revolucionária, segundo Augusto Comte, tenderá a conceber, logo em seguida, a
liberdade de consciência também de maneira ilimitada. O filósofo, portanto, não recusa
a ideia mesma da liberdade de consciência; nas sociedades modernas, contudo, acredita
que seus limites estejam mal definidos (ou tão rarefeitos que tenderiam mesmo a
desaparecer). Com efeito, o autor nos diz que “quando [os] princípios [da filosofia
positiva] tiverem sido então estabelecidos, sua irresistível preponderância tenderá, enfim,
a reconduzir o direito de exame a seus limites verdadeiramente normais e
permanentes” 320 . Logo a seguir no texto, Augusto Comte afirmará que tais limites
“consistem, em geral, em discutir, sob as condições intelectuais convenientes, a ligação
real das diversas consequências com as regras fundamentais uniformemente
respeitadas”321. O trecho, devemos reconhecer, é de notável obscuridade: não fica claro,
a princípio, a respeito de quais “consequências” Augusto Comte está a falar; nem qual é
o conteúdo das tais “regras fundamentais” às quais estas consequências deveriam se ligar;
muito menos, por fim, por quem elas são (ou deveriam ser) “uniformemente
respeitadas”.
320 Ibidem, p. 47. 321 Ibidem.
114
Algumas suposições – que, acreditamos, se justificarão na sequência do texto –, devem,
portanto, ser feitas aqui, com vistas a uma melhor compreensão da letra do autor. Em
primeiro lugar, nos parece apropriado supor que as “consequências” de que nos fala
Augusto Comte são as consequências das diversas opiniões particulares, em matéria de
política. Se nos fosse permitido alterar levemente o vocabulário empregado pelo autor,
diríamos, talvez de forma mais explícita, se tratar aqui das diversas prescrições que as
inteligências particulares fazem aos problemas de natureza política (e, portanto, o trecho
trataria das respectivas consequências destas prescrições na esfera social). Já com respeito às
“regras fundamentais uniformemente respeitadas”, nos parece existir, à primeira vista,
dois caminhos possíveis de interpretação: ou bem se as entende como as próprias leis
naturais, derivadas da observação do sociólogo com respeito ao fenômeno social; ou bem
se as entende como o “senso comum”, como o conjunto de normas – igualmente claras
e acessíveis ao sábio e ao cidadão comum – que constitui o próprio costume de um povo.
No caso de Augusto Comte, pensamos ser problemático adotar a segunda interpretação,
uma vez que o positivismo nos parece ser tudo, menos uma filosofia do senso comum
(em seu sentido consuetudinário). A primeira interpretação, contudo, na ausência de
complemento, não nos parece também dar conta do problema. Cairíamos, então, num
círculo vicioso (algo que o pensamento do autor toma muito cuidado para não fazer): as
regras que decidiriam, em última instância, que as opiniões do sociólogo deveriam,
finalmente, se sobrepor às demais opiniões particulares seriam elas próprias as opiniões
do sociólogo (isto é, as leis derivadas de suas observações).
Dada a complexidade da questão, propomos, portanto, uma interpretação que, num certo
sentido, combina as duas interpretações indicadas acima. Embora nos pareça equivocado,
como dissemos, identificar ao senso comum, de imediato, as “regras fundamentais
uniformemente respeitadas” de que nos fala Augusto Comte no excerto, nos pareceria
também um equívoco supor no autor a supressão completa do senso comum – se o
fizéssemos, seu esquema teórico, em nosso entendimento, simplesmente não funcionaria.
Expliquemos: as regras que devem reger o debate público (e, portanto, limitar
adequadamente a liberdade de consciência) são elas próprias, para Augusto Comte,
fenômenos sociais, logo objetos de conhecimento científico do sociólogo. Deriva-se
disto a inacessibilidade imediata de tais regras ao senso comum, mas não a sua
inacessibilidade completa. Segundo Augusto Comte, nem todos os cidadãos (e nem
mesmo todos os cientistas) são capazes de deduzir todas as leis naturais que compõem o
115
conjunto do conhecimento humano (e que estariam depositadas, esquematicamente, na
enciclopédia positivista). No entanto, isto não impede que todos os cidadãos (e todos os
cientistas) acreditem, por confiança, nos resultados obtidos pela ciência, ou seja, em suas
leis – em algum grau, portanto, o senso comum deve estar operando na sociedade descrita
pelo autor. Com efeito, as “regras fundamentais” que devem reger o debate público (de
início, inacessíveis ao senso comum) deverão ser, inescapavelmente – a exemplo de todas
as outras leis naturais –, descobertas pela competência científica (neste caso específico,
pelo sociólogo). Uma vez descobertas, contudo, elas se tornariam, em seguida, acessíveis
ao senso comum (por confiança); e, uma vez acessíveis ao senso comum, tenderiam a se
tornar “uniformemente respeitadas” pelo conjunto da sociedade (assim como qualquer
outra lei científica). Em resumo, portanto, “as regras fundamentais uniformemente
respeitadas” deveriam ser, segundo esta interpretação, as regras, em primeiro lugar,
estabelecidas pelo sociólogo (enquanto leis naturais) e uniformemente respeitadas, em
seguida, pelo público em geral segundo o senso comum.
Reconstruindo, portanto, à luz de nossa interpretação, o parágrafo que originou nosso
breve excurso da exposição, nos caberia por fim dizer que, segundo Augusto Comte, os
limites “verdadeiramente normais e permanentes” da liberdade de consciência
consistiriam na discussão a respeito da ligação entre as diversas prescrições que fazem as
inteligências particulares (aos mais variados problemas sociais) e as regras fundamentais
estabelecidas pela sociologia com respeito ao debate público, aqui devidamente assentidas
pelo senso comum. Noutras palavras, para o autor, as consciências podem ser livres até
onde vai a liberdade humana, isto é, até onde permite a lei natural (devidamente
estabelecida pelo sociólogo). Recupera-se, dessa forma, o direito de livre exame, mas
limitado agora por critérios científicos que extrapolariam o caráter individual – e,
portanto, arbitrário – das inteligências particulares.
Até que chegue, no entanto, o momento em que os novos princípios sociais estejam
estabelecidos pela sociologia e aceitos unanimemente pelo senso comum, nosso autor
entende que essas “mesmas opiniões, que mais tarde [seriam] efetivamente destinadas a
submeter as inteligências a uma exata disciplina contínua, [...] não [poderiam], de início,
se manifestar senão sob o título universal de simples pensamentos individuais, produzidos [eles
também] em virtude do direito absoluto de exame, uma vez que sua legítima supremacia
não [poderia] ulteriormente resultar senão do assentimento voluntário pelo qual o público
116
os [consagraria], enquanto resultado final da mais livre discussão”322. O assentimento
público e voluntário dos indivíduos aos princípios que devem, de modo geral, reger a
sociedade é uma das características essenciais da filosofia política de Augusto Comte323.
Ela implica, com efeito, na recusa da via temporal – da imposição por meio da força –,
solução, aos olhos do autor, “extremamente perigosa”, posto consistir apenas “na vã
esperança de antecipar, por meio de uma política completamente material, a instituição
de uma [...] unidade [das inteligências], [o que acabaria por sujeitar] o exercício do direito
de livre exame a regulamentações arbitrárias, antes mesmo que o desenvolvimento
espontâneo da razão pública tivesse gradualmente estabelecido seus princípios
correspondentes”324.
O problema da liberdade de consciência em Augusto Comte, quando submetido a uma
análise mais cuidadosa, se reduz, portanto, ao problema do estabelecimento de princípios
comuns capazes de garantir a esta entidade, a razão pública, o exame adequado das diversas
opiniões particulares em matéria de política. Com efeito, verifica-se, uma vez mais, que
o direito de livre exame não é recusado por completo pela filosofia positiva. Segundo o
autor, as inteligências individuais podem (e mesmo devem) examinar a todo momento os
pressupostos da sociedade. A exigência feita pelo positivismo, no entanto, consiste em
que o exame não se prolongue indefinidamente, o que exige, por sua vez, a adoção de
critérios comuns que devem ser escrupulosamente respeitados por todos e aos quais
todas as opiniões devem se submeter. Admite-se, assim, o direito de livre exame apenas
enquanto meio e nunca como fim – enquanto meio, cumpre enfatizar, que sempre nos
conduziria, em segurança, de certezas antigas a certezas novas.
A própria ideia de “exame” em Augusto Comte nos parece ser uma noção exclusivamente
transitória: uma espécie de “hiato cético” que interpolaria sempre dois dogmatismos
antitéticos – estes sim (os dogmatismos) pontos estáveis e “permanentes”325 aos quais
tenderiam incessantemente o espírito humano. “Em um caso qualquer, nos diz o autor,
seja privado, seja público, o estado de exame não poderia ser evidentemente senão
provisório, como que indicando a situação de espírito que precede e prepara uma decisão
322 Ibidem, grifo nosso. 323 Ver, a esse respeito, Mary Pickering, Augusto Comte e a esfera pública de Habermas, in: Hélgio Trindade (org.), op. cit., p. 59-70. 324 CPP, IV, p. 48. 325 As aspas em “permanentes” indicam que o adjetivo deve ser compreendido aqui da mesma maneira relativa que compreendíamos os “fins” alguns parágrafos acima. Ver supra, nota 307.
117
final, na direção da qual tende, sem cessar, nossa inteligência no momento mesmo em
que ela renuncia a antigos princípios a fim de formar para si mesma os novos”326. A
suspenção do juízo, para Augusto Comte, ao contrário do que diriam os antigos
pirrônicos, longe de conduzir o espírito humano à ataraxia – o estado de perfeita
imperturbabilidade –, nos lança, desguarnecidos, nas águas tormentosas da angústia,
forçando-nos, rapidamente, a buscar a porção de terra mais próxima em que possamos
novamente nos fixar em segurança.
Na sequência do texto, Augusto Comte afirmará mesmo que na “razão humana – que
apesar de tudo, precisa de pontos fixos, os únicos capazes de reunir utilmente seus
esforços espontâneos –, o ceticismo produzido momentaneamente pela passagem, mais
ou menos difícil, de um dogmatismo a outro constitui uma espécie de perturbação
doentia, que não poderia se prolongar, sem graves perigos, para além dos limites naturais
da crise a que corresponde”327. A analogia entre o corpo social e o organismo biológico
fica aqui evidente: Augusto Comte circunscreve o ceticismo ao campo do patológico, ao
mesmo tempo em que reserva ao dogmatismo, de maneira exclusiva, o estatuto de
normalidade328. “Examinar sempre, sem se decidir jamais, seria quase taxado de loucura,
na conduta privada. Como, se pergunta o autor, a consagração dogmática de uma
semelhante disposição, em todos os indivíduos, poderia constituir a perfeição definitiva
da ordem social, com respeito a ideias cuja fixidez é ao mesmo tempo muito mais
essencial e, de outro modo, extremamente difícil de estabelecer?”329.
À luz dos parágrafos precedentes, pensamos que a ambivalência que habita a relação de
Augusto Comte com os dogmas da tradição iluminista se mostra agora de maneira ainda
mais evidente. Mais do que apenas ressaltar o caráter ambivalente da crítica positivista
das Luzes, pensamos, entretanto, que a discussão empreendida nas últimas seções nos
fez também compreendê-la (a própria crítica) em maior profundidade. Sob o ponto de
vista do relativismo epistemológico, por exemplo, acreditamos que o duplo caráter –
indispensável e deplorável – da absolutização do transitório (levada a efeito pela filosofia
326 Ibidem, p. 48. 327 Ibidem. 328 As “metáforas do organismo”, aliás, segundo assinala Judith Schlanger, em estudo clássico a respeito do assunto, não são exclusivas de Augusto Comte, tendo sido frequentes ao longo de todo o século dezenove. Ver Judith Schlanger, Les métaphores de l’organisme, Paris, L’Harmattan, 1995. Consultar, também, a respeito da oposição normal/patológico, Guillaume le Blanc, L’invention de la normalité, Esprit, n. 284, 2002, p. 145-64 e, claro, Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique, Paris, PUF, 1984. 329 CPP, IV, p. 48.
118
crítica, segundo o positivismo) perde sua aparência de paradoxo. Lembremo-nos, a esse
respeito, do que diz Augusto Comte: “falando absolutamente, não há nada de bom, não
há nada de mau”. Logo, o próprio valor que se atribui aos fenômenos sociais deverá ser
tomado de forma relativa e nunca de maneira absoluta. É precisamente o que faz Augusto
Comte, no caso em discussão. Falando da “consagração absoluta de um aspecto
transitório da sociedade moderna”330, nosso autor dirá que “quando se a aplica (em
conformidade à sua destinação histórica) apenas à demolição do antigo sistema
político”331, uma tal fórmula se mostra “eminentemente salutar e mesmo estritamente
indispensável”332. No entanto, quando “mal transportada à concepção da nova ordem
social”333, revela-se, então, seu caráter deplorável, visto que agora “tende a entravá-la [a
nova ordem social] radicalmente, conduzindo à negação indefinida de todo verdadeiro
governo”334.
Em si mesma, portanto, a absolutização do transitório não possui um valor definido, é
apenas quando situada no interior de um certo paradigma, relativo, por sua vez, a um
determinado momento histórico, que, segundo o autor, ela adquire valor. Como se vê,
todo o problema, para o positivismo, consiste no estabelecimento de critérios científicos
capazes de garantir que os paradigmas políticos do tempo (no interior dos quais se dá a
valoração dos fenômenos sociais) não sejam alvos de infindáveis disputas arbitrárias, e
possam, assim como os demais paradigmas científicos, ser aceitos por unanimidade –
tanto quanto possível (isto é, de acordo com o grau de precisão que a sociologia for capaz
de conferir às suas leis).
3.2.2. A crítica da igualdade
Como vimos na seção anterior, a um mesmo fenômeno social, Augusto Comte será capaz
de atribuir valores distintos e mesmo contrários entre si – a um só tempo, sublinhemos,
nosso autor afirma, por exemplo, que a absolutização do transitório é salutar e deplorável.
O caráter antinômico, entretanto, desta proposição se mostra apenas epidérmico, uma
vez que o autor recusa, de início, toda forma de absolutismo. O relativismo
epistemológico, por sua vez, jamais deveria conduzir, nos adverte Comte, à arbitrariedade
330 Ibidem, p. 51. 331 Ibidem. 332 Ibidem. 333 Ibidem. 334 Ibidem.
119
de princípios. O conhecimento, para o autor – noutros termos, a própria ciência –, é a
condição mesma de possibilidade da atribuição do valor. É porque conhece o movimento
da sociedade, que o sociólogo é capaz de atribuir corretamente valor aos fenômenos
sociais – e afirmar, portanto, que a absolutização do transitório é salutar, sob um ponto
de vista, e deplorável, sob outro ponto de vista. Se o valor está fundado no conhecimento
e se o conhecimento, por sua vez, está fundado apenas na observação e nunca na
imaginação, a certeza do conhecimento científico assegurará, segundo o filósofo, a
correta atribuição de valor aos fenômenos sociais – a construção de uma moralidade
científica, como se vê, já está de algum modo esboçada no Curso335.
Os aspectos essenciais da crítica positivista das Luzes, pensamos já terem sido expostos
e analisados nas seções anteriores. Cumpriria ainda, no entanto, por razões de
completude, examinar de modo sucinto os dois desenvolvimentos mais fundamentais,
aos olhos do autor, do dogma da liberdade de consciência: a igualdade e a soberania do
povo. Posto decorrem do dogma anteriormente analisado, não surgirão, em nosso ver,
grandes novidades da análise de cada um desses novos dogmas. De todo modo, investigá-
los nos será útil não apenas para avaliarmos a extensão da crítica positivista das Luzes,
mas também para nos certificarmos de que os aspectos da filosofia positiva ressaltados
em nossa análise da liberdade ilimitada de consciência foram corretamente analisados.
Em verdade, pensamos que as consequências políticas (ou mesmo ideológicas) da crítica
positivista da igualdade e da soberania do povo são o que nos interessarão de preferência
a partir de agora – a “igualdade”, não nos esqueçamos, figura até hoje na divisa adotada
pela República francesa; e a “soberania popular”, a despeito das críticas que o positivismo
lhe dirigiu, acabou por ser incorporada, de maneira decisiva, à tradição democrática e
republicana ocidental.
A respeito do dogma da igualdade, portanto, Augusto Comte nos diz ser “o mais essencial
e o mais ativo depois [do princípio da liberdade ilimitada de consciência], [com o qual],
aliás, está em relação necessária [e] donde deveria evidentemente resultar a proclamação,
imediata embora indireta, da igualdade a mais fundamental, a das inteligências”336. Da
liberdade ilimitada de consciência à igualdade e à soberania do povo, segundo veremos
com mais detalhes logo a seguir, Augusto Come entende que o espírito metafísico
335 A construção de uma moral científica, sob o nome de “religião da Humanidade”, consistirá, de fato, no objetivo dos quatro tomos do Sistema de política positiva. 336 CPP, IV, p. 51.
120
descreve um movimento gradual que vai da ordem intelectual à ordem política, do plano
do poder espiritual ao plano do poder temporal. Da igualdade das inteligências,
consequência imediata, como vimos, da liberdade ilimitada de consciência, o espírito
metafísico deriva, segundo o autor, a igualdade política. “É, portanto, nos diz Comte,
apenas em nome da completa igualdade política que fora possível até aqui lutar com
sucesso contra as antigas desigualdades, que, depois de terem secundado, durante muito
tempo, o desenvolvimento das sociedades modernas, haviam terminado por se tornar,
em sua inevitável decadência, realmente opressivas”337.
Nota-se que o caráter ambivalente – salutar e deplorável – que Augusto Comte atribui
aos dogmas da filosofia metafísica, aparece aqui também no caso da filosofia teológica: o
autor afirma que as “antigas desigualdades” (anteriores à Revolução e, portanto, situadas
ainda na fase teológica do espírito humano) cumpriram durante muito tempo o papel
salutar de secundar o desenvolvimento das sociedades modernas. Ainda segundo o autor,
tais desigualdades só se tornaram “realmente opressivas” no momento de decadência do
espírito teológico – já em sua transição para o estado metafísico. A exemplo do que havia
dito no caso do dogma da liberdade ilimitada de consciência, Augusto Comte afirma
agora que a absolutização da igualdade, se considerada apenas com respeito à sua
destinação histórica, isto é, presidir a dissolução do antigo sistema político, se mostra não
menos necessária. “Sem este indispensável preâmbulo, as forças destinadas a se tornar
em seguida os elementos de uma nova organização não teriam podido se desenvolver
convenientemente e sobretudo não poderiam adquirir o caráter diretamente político que
devera lhes faltar até então”338.
Em seguida, como esperado, Augusto Comte nos alerta, entretanto, que se aplicado à
construção da nova ordem social, “este dogma enérgico [...] tende, por sua vez, a impedir
toda verdadeira reorganização, [uma vez que], prolongada além da medida, sua atividade
destrutiva, na falta de alimento conveniente, se dirige cegamente contra as bases mesmas
de uma nova classificação social” 339 . Pensamos merecer destaque, neste trecho, o
vocabulário empregado pelo autor: ao se referir ao novo sistema político enquanto uma
nova “classificação social”, Augusto Comte nos sugere seu caráter necessariamente
hierárquico. “Qualquer que possa ser o seu princípio, esta classificação será certamente
337 Ibidem. 338 Ibidem. 339 Ibidem.
121
inconciliável com esta pretendida igualdade [advogada pela escola revolucionária], a qual,
para todos os bons espíritos, não poderia verdadeiramente significar, hoje em dia, senão
o triunfo necessário das desigualdades desenvolvidas pela civilização moderna sobre
aquelas cuja preponderância devera até então ser mantida pela infância da sociedade”340.
Com efeito, o dogma da igualdade, para Augusto Comte, se traduz em desigualdade: o
triunfo necessário da desigualdade dos modernos sobre a desigualdade dos antigos.
“É evidente, nos diz o autor, que os homens não são nem iguais entre eles, nem mesmo
equivalentes, e não poderiam, como consequência disto, possuir, na associação, direitos
idênticos, salvo, naturalmente, o direito fundamental, necessariamente comum a todos,
do livre desenvolvimento normal da atividade pessoal, uma vez convenientemente
dirigida”341. Em sociedade, portanto, Augusto Comte afirma que todos os homens têm
o direito fundamental de se desenvolver enquanto pessoa, desde que certos limites,
comuns a todos homens, sejam observados. Para além desse direito fundamental, com
relação ao qual todos os homens são equivalentes, nosso autor defende, contudo, que,
acompanhando certa dessemelhança intrínseca aos homens, os demais direitos dos
cidadãos não poderão jamais ser idênticos entre si. “Para qualquer um que estudou
judiciosamente a verdadeira natureza humana, as desigualdades intelectuais e morais são
certamente muito mais pronunciadas, entre os diversos organismos, do que as simples
desigualdades físicas, que preocupam tanto o observador vulgar”342. Augusto Comte
sugere, portanto, que por maiores que sejam as desigualdades físicas ou materiais, a
distância que separa o mais forte (ou o mais veloz) dos homens da média dos outros
homens tende a ser desprezível frente à distância que separa o sábio do homem comum
ou o homem civilizado do selvagem. Embora o autor não afirme explicitamente,
entendemos ficar sugerido, a partir das linhas acima, que a distribuição dos direitos (e
também dos deveres) em sociedade deve corresponder à distribuição dos méritos de cada
cidadão.
“Ora, conclui o autor, o progresso contínuo da civilização, longe de nos aproximar de
uma igualdade quimérica, tende, ao contrário, por sua natureza, a desenvolver
extremamente estas diferenças fundamentais [as desigualdades intelectuais e morais], ao
mesmo tempo em que atenua bastante a importância das distinções materiais, que de
340 Ibidem, p. 51-2. 341 Ibidem, p. 52. 342 Ibidem.
122
início as mantinham comprimidas”343. Segundo o autor, portanto, nos estágios primitivos
da civilização, as desigualdades físicas e materiais seriam mais relevantes socialmente do
que as desigualdades morais e de talento. A tendência verificada, contudo, no progresso
contínuo da civilização é tanto uma inversão completa deste cenário primitivo como uma
negação da própria ideia de igualdade. Com efeito, o progresso, para Augusto Comte,
longe de tornar os homens iguais, tende a torná-los, em talento, cada vez mais desiguais,
ao mesmo tempo em que atenua as desigualdades físicas e materiais. É por considerar
que esta tendência, verificada no progresso das civilizações, deve ser consagrada no
interior da nova classificação social, que Augusto Comte afirmará, logo na sequência do
texto, que o “dogma absoluto da igualdade assume, então, um caráter essencialmente
anárquico, e se levanta diretamente contra o verdadeiro espírito de sua instituição
primitiva, no exato momento em que, deixando de enxergar nele um simples solvente
transitório do antigo sistema político, se o concebe também como indefinidamente
aplicável ao novo sistema”344.
3.2.3. A crítica da soberania do povo
As mesmas características essenciais presentes nos dogmas da liberdade ilimitada de
consciência e da igualdade, Augusto Comte entende se manifestarem agora no “dogma
da soberania do povo, segunda consequência geral, não menos necessária, do princípio
fundamental da liberdade ilimitada de consciência, assim finalmente transposto da ordem
intelectual à ordem política”345. Uma vez que o direito absoluto de livre exame acaba por
proclamar a igualdade das inteligências, e que a igualdade das inteligências, por sua vez,
estendendo-se aos demais talentos do espírito humano, proclama a igualdade política do
homem em sociedade, não restará mais, aos olhos do autor, fundamento adequado para
sustentar a hierarquia da antiga ordem social, fazendo ruir, de forma necessária e salutar,
as antigas soberanias vigentes (espirituais e temporais). O único candidato possível, que
emerge desta imensa demolição da antiga ordem social, a ocupar o lugar do soberano
deposto é, portanto, a massa dos cidadãos artificialmente considerados como iguais –
noutras palavras, o povo.
Se o povo não fosse finalmente alçado ao posto de soberano, nos adverte Augusto
Comte, a antiga ordem social não poderia ser completamente posta abaixo, e, portanto,
343 Ibidem. 344 Ibidem. 345 Ibidem.
123
ainda que abalada em suas estruturas, seria capaz, reiteradamente, de se recompor,
impedindo assim a chegada do novo sistema. “Na medida em que a natureza desta ordem
final, nos diz o autor, não era, de modo algum, conhecida, os povos modernos não
podiam comportar senão instituições puramente provisórias, com respeito às quais
deviam se atribuir o direito absoluto de transformá-las à vontade, sem o qual, [ademais],
a supremacia do antigo sistema, posto derivarem apenas dele todas as restrições [ao
surgimento da nova ordem], teria se encontrado, por isso mesmo, mantida, e a grande
revolução social teria sido necessariamente abortada”346. Vê-se, a partir do excerto, que a
soberania popular é identificada pelo autor ao direto absoluto do povo de transformar as
instituições sociais de acordo com sua própria vontade347. Se nos detivermos também no
início do parágrafo, veremos que há, em Augusto Comte, uma justificativa epistemológica
para a instituição da soberania do povo entre os modernos: é por não conhecerem, de
modo algum, a natureza da ordem final da sociedade que os povos modernos acabam
por adotar instituições puramente provisórias, como é o caso da soberania popular.
No entanto, na sequência do texto, Augusto Comte afirmará que “quando a renovação
intelectual [das sociedades modernas] estiver suficientemente avançada, [as diversas
tentativas políticas revolucionárias] resultarão enfim na instalação de um verdadeiro
sistema de governo, capaz de fixar regularmente, ao abrigo de qualquer arbítrio, as
condições permanentes e a extensão normal das diversas soberanias”348. Se o advento da
nova ordem social não se desse deste modo bifásico e antitético, isto é, consistindo numa
fase revolucionária e destrutiva, que se opõe radicalmente ao antigo sistema vigente para,
logo em seguida, ser negada e substituída por uma fase orgânica e construtiva, a própria
346 Ibidem. Neste parágrafo, devemos enfatizar, os problemas da escrita comtiana, por nós aludidos no primeiro capítulo desta apresentação, aparecem de maneira exemplar. O encadeamento de ideias se dá em cascata, desrespeitando em certos momentos a própria sintaxe da frase, o que dificulta sobremaneira a sua compreensão. Segue, para a apreciação do leitor, o período original: “Tant que la nature de cet ordre final n’était point assez connue, les peuples modernes ne pouvaient comporter que des institutions purement provisoires, qu’ils devaient s’attribuer le droit absolu de changer à volonté, sans quoi, toutes les restrictions ne dérivant dès lors que de l’ancien système, sa suprématie se serait trouvée, par cela seul, maintenue, et la grande révolution sociale eût nécessairement avorté”. CPP, IV, p. 52. 347 Desde o Contrato social de Rousseau, a ideia da soberania do povo esteve, na França, associada à ideia da vontade geral, que o autor, no entanto, insiste, em seu texto, em afastar da mera vontade de todos, ou da vontade da maioria. Ver Jean-Jacques Rousseau, Du contract social ou Principes du droit politiques, in: ______, Œuvres complètes, v. 3, Paris, Gallimard, 1964, p. 371 e ss. No trecho aqui analisado, contudo, Augusto Comte nos parece ignorar esta importante distinção. 348 CPP, IV, p. 52-3.
124
“reorganização política”, nos diz o autor, seria impossível, visto que deveria exigir então
“a utópica participação desinteressada dos próprios poderes que [deveria] extinguir”349.
Como havia feito nos dois casos anteriores, Augusto Comte encerra também a análise do
dogma da soberania do povo alertando o leitor a respeito do perigo da anarquia que o
cerca: “apreciando, como convém, o ofício transitório deste dogma revolucionário,
nenhum verdadeiro filósofo poderia desconhecer nos dias de hoje a fatal tendência
anárquica de uma tal concepção metafísica, quando, em sua aplicação absoluta, ela se
opõe a toda instituição regular, condenando indefinidamente todos os superiores a uma
dependência arbitrária com respeito à multidão de seus inferiores, por uma espécie de
transferência aos povos do direito divino tantas vezes reprovado nos reis”350.
349 Ibidem, p. 53. 350 Ibidem.
125
Considerações finais
“Povo, lembra-te que, se na República a justiça não reina com império absoluto, e se esta
palavra não significa o amor à igualdade e à pátria, a liberdade é apenas um nome vão!
Povo, tu que és temido, adulado e desprezado; tu, soberano aclamado, sempre tratado
como escravo, lembra-te que por toda parte em que não reina a justiça, são as paixões os
magistrados, e que o povo trocou de correntes, mas não de destino!
Lembra-te que existe em teu seio uma liga de escroques que luta contra a virtude pública,
e que tem mais influência que tu mesmo sobre teus próprios negócios, que teme a ti e
que te adula em massa, mas que te bane em detalhe na pessoa de todos os bons cidadãos!
Relembra-te que, longe de sacrificar esta nuvem de vigaristas à tua felicidade, teus
inimigos desejam te sacrificar a este punhado de biltres, autores de todos os nossos males,
e os únicos obstáculos à prosperidade pública!
Sabe que todo homem que se levantar para defender a tua causa e a moral pública será
enxovalhado por infâmias e proscrito pelos escroques; sabe que todo amigo da liberdade
será sempre colocado entre um dever e uma calúnia; que aqueles que não puderem ser
acusados de ter traído serão acusados de ambição; que a influência da probidade e dos
princípios será comparada à força da tirania e à violência das facções; que tua confiança
e tua estima serão os títulos de proscrição para teus amigos; que os gritos do patriotismo
oprimido serão chamados de gritos de sedição, e que, não ousando atacar-te a ti mesmo
em massa, te banirão em detalhe na pessoa de todos os bons cidadãos, até o momento
em que os ambiciosos tenham organizado sua tirania. Tal é o império dos tiranos armados
contra nós, tal é a influência de sua aliança com todos os homens corrompidos, sempre
126
a postos para lhes servir. Assim, portanto, os celerados nos impõem a lei de trair o povo,
sob pena de sermos chamados de ditadores! Subscreveremos nós esta lei? Não!
Defendamos o povo, sob o risco de sermos por isso estimados; que corram eles ao
cadafalso pela via do crime e nós pela da virtude”351.
“Com a ordem, nossos ateliês se reabriram, os braços retomaram sua atividade, os capitais
retornaram a nós, a calma reapareceu com o trabalho, e já a França levanta a cabeça, e –
coisa mais surpreendente ainda! – uma forma de governo, que ordinariamente a ameaçava
profundamente, começa, pouco a pouco, a adentrar os seus hábitos, não a impede de
retornar à vida, à esperança, à confiança. E, uma vez que toco inevitavelmente nos
assuntos candentes do dia, eu diria àqueles que desde há muito tempo têm dado sua fé à
República, como ao ideal de governo o mais conforme a seu pensamento, e o mais
apropriado à marcha das sociedades modernas, eu lhes diria: ‘É sobretudo por vós que a
ordem deve ser apaixonadamente desejada, visto que, se a República, já ensaiada duas
vezes sem sucesso, pode se estabelecer dessa vez, é à ordem que vós o deveis.
Fazei dela, portanto, vossa obra, vossa preocupação de todos os dias! Se o exercício de
certos direitos que pertencem aos povos livres pode inquietar o país, sabei renunciá-lo
momentaneamente e fazei à seguridade pública um sacrifício que beneficiará sobretudo
à República [...].
Os acontecimentos produziram a República, e voltar às suas causas para discuti-las e
julgá-las seria hoje em dia uma tarefa tanto perigosa quanto inútil. A República existe, ela
é o governo legal do país, desejar outra coisa seria uma nova revolução e a mais temível
de todas. Não percamos nosso tempo em proclamá-la, mas o empreguemos em lhe
imprimir seus caracteres desejáveis e necessários. Uma comissão por vós nomeada lhe
deu o título, há alguns meses, de República conservadora. Apropriemo-nos deste título e
deixemos uma marca sobretudo para que seja merecido. Todo governo deve ser
conservador e nenhuma sociedade poderia viver sob um governo que não o fosse de
modo algum. A República será conservadora ou ela não será.
351 Maximilien Robespierre, Œuvres de Maximilien Robespierre, v. 10, Paris, PUF, 1967, p. 575.
127
A França não pode viver em contínuos alarmes: ela deseja poder viver em repouso, a fim
de trabalhar para se nutrir, para fazer frente a seus imensos encargos [...]. O número, ele
mesmo, tem necessidade de repouso, de segurança, de trabalho. Ele pode viver de
agitações alguns dias, delas não vive por muito tempo. Depois de ter incutido medo nos
outros, ele toma horror de si mesmo; se atira nos braços de um mestre aventureiro e
paga, qualquer dia, vinte anos de escravidão por uma desastrosa licença [...].
Não nos esqueçamos destes termos tão terrivelmente ligados um ao outro: República
agitada de início, depois retorno a um poder que se chama forte, visto que é sem controle;
rompamos a cadeia fatal que liga estes termos funestos entre si e nos acalmemos em lugar
de nos agitarmos [...].
Quanto a mim, não compreendo, não admito a República senão a tomando como ela
deve ser, como o governo da nação que, tendo desejado por muito tempo e de boa fé
conceder a um poder hereditário a direção compartilhada de nossos destinos, mas não o
tendo conseguido, por erros impossíveis de se ajuizar hoje em dia, toma então o partido
de se reger por conta própria, por meio de seus eleitos – livremente, sabiamente
designados –, sem aceitação de partidos, de classe, de origem, não os buscando nem em
cima, nem embaixo, nem à direita, nem à esquerda, mas nesta luz da estima pública, em
que os caráteres, as qualidades, os defeitos se desenham em traços impossíveis de se
desconhecer, e escolhendo-os com esta liberdade que não se pode gozar senão no seio
da ordem, da calma e da segurança!
Dois anos decorridos sob vossos olhos, sob vossa influência, sob vosso controle, numa
calma quase completa, podem nos dar a esperança de fundar esta república
conservadora”352.
Os dois trechos acima, retirados, respectivamente, de discursos proferidos por duas das
mais importantes figuras políticas da França pós-revolucionária, nos servem aqui, por sua
contrastante oposição, como forma de encerrar esta apresentação. Os dois discursos,
sublinhemos, se dão sob a República, em nome da República e são dirigidos, por meio
352 Adolphe Thiers, Discours parlementaires de M. Thiers, v. 15, Paris, Calmann-Lévy, 1883, p. 25-31, grifo nosso.
128
de seus representantes, ao povo francês. O primeiro deles, chamado de Último discurso do
cidadão Robespierre, foi proferido pelo próprio Robespierre na Convenção, aos 26 de julho
de 1794, dois dias antes de sua decapitação e pouco mais de um ano depois da decapitação
do rei; o segundo, intitulado (mais sobriamente) Mensagem do presidente da República, foi lido
por Adolphe Thiers na Assembleia Nacional, aos 13 de novembro de 1872, pouco mais
de um ano depois da destruição da Comuna de Paris – comandada em maio de 1871, de
Versalhes, pelo próprio Thiers, que seria eleito, ainda em agosto daquele ano, presidente
da República. Simbolicamente, cada um desses discursos representa também um
momento bastante específico da história do republicanismo francês: o primeiro, o fim da
Primeira República e a queda de Robespierre; o segundo, o início da Terceira República
e a ascensão de Adolphe Thiers.
Aproximadamente oitenta anos separam, na França, a República jacobina de Robespierre
da República conservadora de Thiers. Pensamos, contudo, que, mais do que os anos que
as separam no tempo, há também entre elas uma grande distância do ponto de vista
ideológico. No primeiro excerto, Robespierre, tuteando o povo, o convoca a se levantar;
no segundo, Thiers, mantendo o tratamento formal, recomenda que o povo não seja
atiçado. De um certo modo, a própria vida da República depende, no primeiro caso, da
ação virtuosa do povo, ainda que representado, em detalhe, pela figura do bom cidadão;
já no segundo caso, nos adverte Thiers, a ação do povo pode significar a própria morte
da República. “Escroques” associados a “homens corrompidos” dão lugar ao “número”
atirado nos braços de um “mestre aventureiro”: são essas as figuras que em cada um dos
discursos simbolizam, segundo seus autores, os grandes inimigos da República.
A filosofia das Luzes e sobretudo Rousseau estariam por trás, segundo os historiadores,
das palavras de Robespierre; o positivismo e a figura de Augusto Comte, gostaríamos
agora de afirmar, se encontram refletidos nas palavras de Adolphe Thiers. Entender, a
partir da filosofia, como se efetua a passagem de um discurso a outro (ou ainda, de uma
República a outra), constitui o horizonte geral deste trabalho. Pensamos que as filosofias
que servem de base, em cada um dos casos, aos discursos de seus respectivos atores
políticos não deveriam ser entendidas, contudo, enquanto causas eficientes, mas, talvez
de forma mais adequada, apenas como condições de possibilidade. Nossa hipótese,
devemos uma vez mais lembrar, é que o positivismo de Augusto Comte desempenhou
um papel decisivo na “deriva ideológica” do republicanismo na França – deriva
129
representada aqui a partir do contraste entre os discursos de Robespierre de Thiers. Ao
recuperar das Luzes, numa visada essencialmente crítica, o debate filosófico a respeito
dos progressos do espírito humano e, em seguida, ao reformulá-lo, no interior de sua
filosofia positiva, em termos apenas de “desenvolvimento” – fundindo doravante o
“progresso” (no singular) à noção de “ordem” e sepultando, por completo, a noção
iluminista de “perfectibilidade” –, acreditamos que Augusto Comte tenha estabelecido os
princípios de uma filosofia política cujas ressonâncias ideológicas conferiram à Terceira
República, ainda em seu nascedouro, seu caráter eminentemente conservador.
Neste trabalho que aqui se encerra, acreditamos, portanto, ter lançado as bases para uma
investigação a respeito da noção de progresso em Augusto Comte. Os primeiros passos
nessa direção consistiram em justificar, teórica e historicamente, uma interpretação
republicana do autor – à luz, evidentemente, de suas leituras contemporâneas mais
significativas (as críticas liberal e marxista do positivismo). Em segundo lugar, nos foi
preciso analisar a relação do positivismo com a tradição iluminista que o antecedeu,
dirigindo nossa atenção, num primeiro momento, aos seus aspectos epistemológicos, em
nosso ver, inseparáveis de seus aspectos políticos e ideológicos. Uma vez compreendida
a ruptura epistemológica que o positivismo entende operar não apenas com a tradição
iluminista (metafísica, aos seus olhos), mas também com toda a tradição filosófica
anterior (teológica, segundo seu vocabulário), dedicamo-nos, na sequência, a analisar o
núcleo verdadeiramente político da crítica positivista das Luzes, isto é, a crítica da
liberdade consciência, da igualdade e da soberania do povo. As etapas do trabalho que
conduzimos até aqui, sumarizadas acima e apresentadas nos capítulos anteriores,
entendemos ser um pré-requisito indispensável para a investigação (que pretendemos
conduzir futuramente) a respeito da noção de progresso em Auguste Comte – e que nos
permitirá, finalmente, melhor compreender os rumos do republicanismo na França.
130
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