o anarquista terrorista na imprensa escrita no século xix

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  • 7/31/2019 O anarquista terrorista na imprensa escrita no sculo XIX

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    O ANARQUISTATERRORISTA NA

    IMPRENSA ESCRITA NO

    SCULO XIX

    Fabrcio Pinto Monteiro

    Mestre em Histria pela Universidade Federalde [email protected]

    Resumo

    Este texto trata inicialmente das

    significaes construdas pelaimprensa escrita, com osperidicos The New York Times eLe Petit Journal Illustr , sobre osanarquistas terroristas noimaginrio social da segundametade do sculo XIX.Carregando sentidos sociaisprprios, porm, as significaesconstrudas pelos jornaisestariam em constante conflitocom os sentidos simblicos

    construdos pelos prpriosanarquistas para seus ideais,palavras e aes. Este embate noimaginrio social da segundametade do sculo XIX aproblemtica central destetrabalho.

    Palavras-chave: Anarquismo,terrorismo, imprensa escrita.

    Abstract

    This article presents someaspects of simbolic strugglebetween the 19 th centuryanarchists terrorists and thewriting press on that time withthe newspapers The New York Times (USA) and Le Petit JournalIllustr (France). Anarchistswords, ideals and deeds acquiredistinct (and discordant)meanings on imaginary ofsociety.

    Keywords: anarchism, terrorism,writing press.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Referindo-se aos ataques de 11 de setembro de 2001 Nova Iorque e Washington,Jean Baudrillard destaca a participao fundamental dos meios de comunicao para aeficcia da ao terrorista: neste caso, a mdia televisiva foi uma entre outras armas que eles

    [os terroristas] viraram contra ele mesmo [o sistema], os terroristas exploraram o tempo realdas imagens e sua difuso mundial instantnea.1 Isto ocorre porque o objetivo da aoterrorista no a violncia concreta em si as exploses, o nmero de mortos e feridos -, massim a violnciasimblica que a acompanha e que, devidamente levada a pblico, gera asingularidade do ato e o sentimento de terror.2

    A Era do Terrorismo Anarquista coincidiu com o comeo da Era do Jornalismo deMassa. Na Gr-Bretanha, Estados Unidos e em todo o mundo ocidental, os anos1880 testemunharam a emergncia de um novo jornalismo. Precedido poreditores como Joseph Pulitzer com seuSt. Louis Post-Dispach , e mais tarde seu

    New York World , e W. T. Stead em seuPall Mall Gazette , o novo jornalismo,

    com suas sensacionais manchetes em pesadas letras pretas, era menos interessadoem limitar-se a uma simples linha poltica ou anlises profundas e de longoalcanceque produzir rapidamente notcias para consumo de massa e entretenimento.

    Este mesmo princpio no est ausente no caso do terrorismo anarquista da segunda

    metade do sculo XIX, tendo a imprensa escrita, que se desenvolvia cada vez mais na Europa

    e Estados Unidos da poca, um papel essencial, embora ambivalente, na edificao do temoraos anarquistas no imaginrio social. Sobre os jornais daquele momento, afirma RichardJensen:

    3

    Neste artigo destacam-se a participao de dois jornais na elaborao das significaessobre os anarquistas terroristas no imaginrio social,The New York Times , dos EUA e LePetit Journal Illustr , da Frana.

    4

    Alm da difuso das notcias dos atentados, a imprensa tambm foi fundamental no jogo das significaes simblicas que envolviam os ataques anarquistas. Para que a dinamite,o punhal ou o revlver se convertessem em armas revolucionrias elas no deveriam ter como

    1 BAUDRILLARD, J.O esprito do terrorismo. Porto: Campo das Letras, 2002, p.33.2 BAUDRILLARD, J.O esprito do terrorismo , p.36.3 JENSEN, R. Daggers, rifles and dynamite: anarchist terrorism in nineteenth century Europe.Terrorism and Political Violence. Oxford, vol. 16, n. 1. p.116-153. spring, 2004, p.140.4 The New York Times foi fundado em Nova Iorque em 1851, hoje propriedade deThe New York TimesCompany , dona de pelo menos quinze outros jornais. conhecido mundialmente, especialmente aps o incio desua versoon-line em 1996. Le Petit Journal era publicado em Paris e circulou entre 1863 e 1944, tornou-seextremamente popular na Frana, especialmente com seu suplemento semanal ilustrado ( Le Petit Journal

    Illustr) cujo primeiro nmero foi publicado em 1890. As tradues destes jornais neste texto so minhas;poucas foram as atualizaes de linguagens necessrias, uma vez que no h um distanciamento to grande entreos textos destes jornais e nossa compreenso atual.

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    alvos indivduos especficos, mas todo aquele que ocupasse ou reocupasse - posies epapis sociais que simbolizassem a explorao de classe e o poder estatal.5

    A ao terrorista entre os anarquistas envolveu a idia mais ampla da propagandapela ao - que poderia incluir tambm o protesto pblico, a sabotagem e a revolta direta das

    classes operrias contra as classes dirigentes, por exemplo -; princpio defendido por crculosbakuninistas europeus desde a dcada de 1870 em detrimento da pouca efetividade dapropaganda anarquista pela palavra oral e escrita. Soma-se a isso a forte repressodesencadeada contra os revolucionrios da Comuna de Paris na mesma dcada, seguida deperseguies polticas, exlios e censuras a jornais e encontros pblicos promovidos pelosanarquistas e o desmantelamento da I Internacional, aps os conflitos com os marxistas.

    Mais do que isso, era preciso que as significaes simblicas dos anarquistas fossem

    compartilhadas em pelo menos alguns de seus sentidos com o restante da sociedade, tantopara buscar apoio dos segmentos trabalhadores quanto para semear o medo entre ossegmentos da burguesia, segundo as palavras dos prprios anarquistas. A discusso destetexto, dessa forma, envolve os conflitos e ambivalncias das significaes presentes naspalavras e aes dos anarquistas terroristas veiculadas na imprensa escrita do sculo XIX.

    6

    Sem, entretanto, envolver uma organizao coletiva sistematizada e com grandes

    planejamentos prvios, alguns anarquistas decidem, nas ltimas dcadas do sculo XIX reagira aes que consideravam violentas por parte das classes dirigentes (a represso armada auma greve, a priso de um revolucionrio sem provas de crimes, a publicao de uma lei decensura...) tambm de forma violenta e rpida. Os ataques notadamente na Frana, Itlia eEspanha eram realizados individualmente ou em pequenos grupos e direcionavam-se contrafiguras de poder, como polticos, juzes, policiais ou burgueses com um intuito, na grandemaioria das vezes de retaliao.

    7

    s oito horas da manh de 27 de maro de 1892, o segundo dos quatro andares de umedifcio na Rua Clichy n 39, Paris, praticamente destrudo por uma forte exploso causada

    A construo dos significados do terrorismo anarquistas pela imprensa

    5 Ver LAY, H. Beau Geste! (On the readabily of terrorism).Yale French Studies . New Haven, n 101, p.79-100, 2001.6 CAHM, C. Propaganda by deed: the development of the idea. ________.Kropotkin and the rise of revolutionary anarchism: 1872-1886. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p.76-91 e tambmMAITRON, J. Ravachol y los anarquistas . Madrid: Huerga y Fierro, 2003, p. 187 Ver JENSEN, R. Daggers, rifles and dynamite: anarchist terrorism in nineteenth century Europe.

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    por uma bomba de 120 cartuchos de dinamite deixada nas escadarias do prdio. O alvo doatentado era o promotor de justia Bulot, que havia trabalhado junto ao juiz Benot quetambm sofrera ataque semelhante em sua casa dias antes (11 de maro). Apesar dos imveis

    destrudos, ambos conseguiram escapar ilesos; sete operrios que trabalhavam em uma obraprxima residncia de Bulot feriram-se com estilhaos da exploso.8

    Promotor e juiz haviam participado de um julgamento que condenou dois anarquistas,Decamps e Dardare

    9, por participao em violentos conflitos com a polcia durante asmanifestaes do 1 de maio de 1891. Os atentados seriam, dessa maneira, uma forma deretaliao planejada por Ravachol que detona as duas bombas -, Simon Charles Achille, Jas-Balas e sua amante Mariette Soubre.10

    Esta primeira imagem apareceu construda de forma extremamente forte e concreta noperidico parisiense Le Petit Journal . Como outros jornais da poca que tambm utilizavamesta frmula, Le Petit Journal Illustr (suplemento semanal do jornal) destacava as notciasconsideradas mais importantes da semana por meio de ilustraes de carter realista, que

    flagravam o pice dos acontecimentos. Obviamente a pretenso fotogrfica de registraruma ao em seu transcurso s poderia ser realizada indiretamente pelo artista, atravs derelatos de testemunhas e observaes do local do evento aps o ocorrido, o que demandavauma considervel dose de imaginao do desenhista e, da, uma inevitvel liberdade na

    A maior notoriedade de Ravachol acabaria sendo construda atravs de suas prpriasdeclaraes, confisses e gestos em seus interrogatrios, julgamentos e at no momento desua execuo. Constantemente publicadas pelos jornais (sejam os grandes jornais ou osperidicos anarquistas e/ou operrios), as palavras e atos de Ravachol foram aos poucosajudando a compor o complexo e ambguo jogo de significaes no imaginrio social arespeito do anarquismo e do terrorismo

    A primeira caracterstica sempre destacada pelos grandes jornais a frieza, a aparente

    carncia de valores morais demonstrada pelos revolucionrios. Um suposto instinto dedestruio niilista parecia apossar-se dos terroristas e ceg-los para os direitos humanosmais bsicos, como a vida e o direito autodefesa.

    8 MORE dynamite in Paris.The New York Times , Nova Iorque, 28 mar., 1892, p.1 e RAVACHOL. Lasmemorias de Ravachol, p.53-54. MAITRON, J. Ravachol y los anarquistas , p.53-95.9 Henri Louis Decamps (1859-??), preso em 1891, permaneceu encarcerado at 1896, quando emigrou para osEstados Unidos onde fez parte de uma colnia agrcola libertria em Nova Jersey. Charles Auguste Dardare

    (1866-??), preso junto a Decamps, foi condenado h trs anos.10 ANARCHIST plots in Paris.The New York Times , Nova Iorque, 16 apr., 1892, p.1 e RAVACHOL. Lasmemorias de Ravachol, p.53.

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    construo da imagem (que para os leitores poderia ser gravada como a representao fiel dofato).

    O texto acompanhado pela gravura destacada a seguir comemorava a priso do

    patife Ravachol, nas palavras do jornal. A reportagem insiste que Ravachol no era umcriminoso poltico, mas um criminoso de direito comum, um assassino de ancios e develhas senhoras, um ladro e um violador de sepulturas, apenas um patife odioso queansiava pela destruio da sociedade.11

    A imagem retrata o momento dapriso de Ravachol, realizada em 30 demaro de 1892 no Caf Very, em Paris, aps

    a denncia de um garom, de nome Lhrot.Logo se destaca a violncia da cena e adificuldade dos policiais em deter oanarquista. Um cavalheiro (a julgar pelacartola tombada prxima ao chapu deRavachol) envolve-se na luta e tambm vaiao cho; um cliente, ou mesmo o proprietrio

    do caf, observa assustado a ao sematrever a aproximar-se.

    Ravachol possui um revlver na mo direita e parece ser contido apenas sob a mira deuma arma empunhada por um segundo cavalheiro. A fora quase sobre humana do terroristadestaca-se na imagem e, apesar de no dito explicitamente no texto, remete facilmente s

    dificuldades em se conter loucos violentos, muitas vezes associados a uma fora assombrosa.A idia de que as aes polticas violentas eram motivadas por distrbios cerebrais tevegrande repercusso e gerou vrios debates na poca. Para Cesare Lombroso, o crimepoltico era uma manifestao anormal de um fato normal: o contraste entre ainventividade de poucos e o conservadorismo da sociedade. Conduzida por pessoasnormais, este choque poderia gerar revolues positivas, por manacos, rebelies

    11 LARRESTATION de Ravachol. Le Petit Journal Illustr. Paris, n 73, samedi, 16 avr., 1892.

    Fig. 1. A priso de Ravachol. Le Petit Journal Illustr.n 73, Paris, 1892.

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    sangrentas. Para Gustavo Tosti, a situaoera mais simples: anarquistas terroristasenquadravam-se no caso de degenerao

    individual, de manacos e epilticosregicidas.12

    Apesar da fora desta imagem inicial imagem no sentido mais amplo, dossignificados simblicos construdos noimaginrio social -, a compreenso simplesdo anarquista terrorista enquanto um sujeito

    impulsivo e violento no se sustentou pormuito tempo. To logo o comportamento de

    Ravachol na priso, seus depoimentos e suasatitudes no tribunal fossem conhecidos e

    divulgados, forou-se a elaborao social de novos sentidos simblicos na tentativa daassimilao das palavras e aes daquele anarquista. Toda a calma, ponderao e polidez deRavachol apresentadas aps sua priso tornaram-se um risco emprico, nas palavras deMarshal Sahlins, frente ao qual o imaginrio social foi obrigado a rever suas construes,

    13

    12 TOSTI, G. Anarchistic Crimes.Political Science Quarterly . New York, vol. 14, n. 3. p.404-417. sep. 1899,p.406-407. Ver tambm LOMBROSO, C. Los anarquistas . Madrid: Jucar, 1977. Disponvel emwww.antorcha.net/biblioteca_virtual/derecho/lombroso/indice.html Acesso em 02/01/08.13 Para Sahlins, os homens em seus projetos prticos e em seus arranjos sociais, informados por significados de

    coisas e de pessoas, submetem as categorias culturais a riscos empricos. Na medida em que o simblico , destemodo, pragmtico, o sistema , no tempo, a sntese da reproduo e da variao SAHLINS, M. Ilhas de Histria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p.9.

    demodo que trs semanas depois Le Petit Journal Illustr publicaria uma ilustrao bemdiferente da primeira.

    Vemos aqui o que parece ser um outro Ravachol, extremamente controlado paletabotoado, como destacaria o texto da reportagem - que, com um gesto de eloqncia com obrao esquerdo, discursa em sua cela para dois guardas. A calma da situao permite que umdeles se sente para escutar o anarquista, enquanto o outro apia-se na parede mantendo

    tambm a ateno nas palavras de Ravachol.Esta representao acompanhava um texto a respeito do primeiro julgamento do

    terrorista, quando ele foi condenado priso com trabalhos forados, e um dos grandesdestaques da reportagem foi, mais uma vez, sua calma e cordialidade:

    Fig. 2 Ravachol em sua cela. Le Petit Journal Illustr.n 76, Paris, 1892

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    O mais calmo era o prprio Ravachol, que, suficientemente correto em suasobrecasaca preta e abotoada, com um sorriso nos lbios que as damas, menosnumerosas que de costume, declaravam agradvel; ele conversava, plcido efamiliar, com seu advogado e com a mo endereava um amigvel bom dia aoscompanheiros que se l se encontravam.14

    Falar sobre os prprios crimes sem demonstrar qualquer arrependimento e compaixopara com suas vtimas seria o grande marco desta aparente amoralidade demonstrada porRavachol, que, ainda segundo Le Petit Journal Illustr , participava do julgamento como seele tratasse de um furto a uma frutaria.

    A partir deste novo comportamento percebido pelos jornais, autoridades policiais e judiciais e o pblico em geral, Ravachol e todos os anarquistas terroristas posteriores - nomais seriam compreendido como loucos violentos. A violncia com a qual os valores einstituies vigentes eram enfrentados, entretanto, permaneceria forte no imaginrio socialrelativo aos anarquistas, embora no mais identificada com atitudes furiosas, mas sim com um

    comportamento inquebrantavelmente frio; patolgico, talvez, mas no mais irracional eimpulsivo.

    15

    Eu estou orgulhoso do que fiz. Voc no ir tirar de mim uma nica palavra dearrependimento. Se eu no tivesse sido preso iria continuar minhas exploses, sempoupar qualquer pessoa ligada condenao de outros Anarquistas. Eu gostaria deter explodido a Cmara dos Deputados por impor aos dinamitadoresa pena demorte. Sem deixar nada impedindo o caminho da propaganda Anarquista.

    Em um depoimento dado ao juiz logo aps sua priso, diz Ravachol sobre seus

    atentados:

    16

    Aps sua execuo em 11 de julho, guilhotinado em Montbrison, o plano de Ravacholpara a Cmara dos Deputados foi retomado por outro anarquista: Auguste Vaillant. Munido

    de uma bomba de fabricao prpria, Vaillant dirigiu-se Cmara durante uma sesso em 10de dezembro de 1893 e, de um dos camarotes laterais, arremessou-a contra os polticos;atrapalhado, entretanto, por uma mulher que o vira acender o pavio, a bomba bate em umacornija do salo e explode sem deixar vtimas fatais.

    17

    14 RAVACHOL dans as cellule. Le Petit Journal Illustr . Paris, n 76, samedi, 7 mai., 1892.15 RAVACHOL dans as cellule.16 AN anarchists confession.The New York Times, Nova Iorque, 4 apr., 1892, p.1.17 Verso do prprio Vaillant, segundo oThe New York Times . THE bomb thrower found.The New York Times, Nova Iorque, 11 dec., 1893, p.1.

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    Destaca-se neste episdio a similaridade do discurso de Vaillant em relao aRavachol. Defronte ao prefeito de polcia ele lamenta-se no ter conseguido matar nenhumdeputado: Sinto muito ter falhado. Eu espero que outros que se sigam a mim tenham mais

    sorte. Vida longa Anarquia!18

    A cobrana por palavras de arrependimento e perdo persiste at o fim, como no casodo espanto deThe New York Times com a calma do assassino do presidente estadunidenseWilliam McKinley, o anarquista Leon Czolgosz. Enquanto ele era amarrado na cadeiraeltrica em 20 de outubro de 1901 conversava tranquilamente com as testemunhas sentadas asua frente; o jornal no deixa tambm de reiterar que ele disse no estar arrependido porhaver cometido seu crime. Czolgosz atirara no presidente em 6 de setembro de 1901 durante

    uma feira na cidade de Buffalo; McKinley morreria oito dias depois em decorrncia doferimento.

    19

    Um importante ponto do julgamento foi que toda vez que algo era dito tendendo amostrar que ele havia tentado negar sua culpa ou escapar de suas conseqncias,ele invariavelmente interrompia, abertamente glorificando o crime, que, disse ele,foi premeditado, adicionando em uma ocasio: Eu fiz meu mximo para tornar ogolpe fatal.

    Parte da composio de um discurso com significados singulares, as palavras dos

    anarquistas acabam por adquirir significaes simblicas e polticas bem diversas nas formasde veiculao de um jornal comoThe New York Times ou Le Petit Journal. Mais adiante,sero discutidos alguns sentidos dados pelos anarquistas para seus prprios discursos e aes.No momento, entretanto, destaca-se a persistncia da construo, pelos jornais, da imagem de

    amoralidade atribuda a todos os terroristas a partir de Ravachol.Neste sentido, tem-se o exemplo marcante de uma reportagem sobre o anarquista

    italiano Luigi Lucheni, que assassinou com uma lima afiada a Imperatriz Elizabete da ustria(mais conhecida como Sissi) em 10 de setembro de 1898. Lucheni tambm espantou aimprensa e a polcia que armara um forte esquema de segurana ao seu redor - pela calma epolidez apresentada durante seu julgamento. Mais uma vez o jornal destaca a aparenteimpassibilidade moral do anarquista terrorista:

    20

    Como o crime fora cometido em Genebra e no havia a pena de morte na Sua,Lucheni foi condenado priso perptua. Sabendo previamente deste fato, chama a ateno

    18

    THE bomb thrower found, p.1.19 ASSASSIN Czolgosz is executed at Auburn. The New York Times, Nova Iorque, 30 oct., 1901, p.5.20 FOR killing the empress. The New York Times, Nova Iorque, 11 nov., 1898. p. 7.

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    novamenteThe New York Times , o prprio anarquista manifestou seu desejo de ser julgado naustria.

    A imprensa e a construo do terror

    Os anarquistas terroristas tambm demonstravam a conscincia da imprensa como umveculo que, se por um lado poderia atuar contra eles Ravachol, por exemplo, foidenunciado pelo garon Lhrot porque este o reconheceu por descries e notcias de jornais -21

    Logo aps os primeiros atentados de Ravachol, tornou-se comum o anncio de que o

    terror reinava em Paris. Incertos de onde poderia acontecer a prxima exploso (pois osalvos dos anarquistas no pareciam to claros quanto os atentados polticos existentes atento), visitantes deixavam a cidade, trazendo prejuzos para hotis e comrcio.

    , por outro se tornou co-responsvel pela difuso do medo entre a populao.

    22

    Paris tremia, Paris no ousava mais ir ao teatro, Paris fazia suas malas para fugir, eos visitantes habituais de Paris desfaziam as suas, pouco curiosos de uma viagemrecreativa ao curso da qual arriscavam-se dinamite e suas conseqnciasatrozes.

    Junto notcia da priso de Ravachol, Le Petit Journal Illustr tambm destacava:

    23

    No mesmo nmero onde, em palavras, o jornalista tentava acalmar a populaoparisiense anunciando a priso de Ravachol, eram, ao mesmo tempo, publicadas cincoimagens de edifcios atingidos pela dinamite cuja nfase na destruio certamente deixariadvidas para o leitor quanto a sua segurana na cidade. Tratam-se por certo de cenasperturbadoras para leitores alarmados pelas notcias de atentados anteriores, uma vez que se

    Lendo tais reportagens pode-se questionar (assim como feito hoje sobre os meios decomunicao atuais) o quanto esta imprensa voltada s notcias excitantes para a massa, naspalavras citadas de Richard Jensen, realmente era uma espcie de cmplice (mesmo queinvoluntrio) na difuso do terror. Os atentados anarquistas era um tema muito apreciado nacomposio das chamativas ilustraes de Le Petit Journal Illustr .

    21 RAVACHOL. Las memorias de Ravachol, p.55.22 TERROR reigns in Paris.The New York Times, Nova Iorque, 30 mar., 1892, p.1.23 LARRESTATION de Ravachol. A referncia a no ousar ir ao teatro deve-se a certa ocasio em que partedo cenrio de uma pea noGait Thatre caiu, fazendo a platia fugir em pnico pensando tratar-se de uma aoanarquista. JENSEN, R. The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the origins of Interpol.

    Journal of Contemporary History , Londres, vol 16, n 2, p.323-347, apr. 1981, p.325

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    destaca o sofrimento de pessoas inocentes as mulheres ganhavam destaque em vriasimagens -, pegas de surpresa por um ataque inesperado e aparentemente sem explicao.

    A seqncia de atentados ao longo da dcada de 90 acabou por gerar no imaginrio de

    autoridades governamentais e policiais (e depois de parte da populao em geral com suadifuso pela imprensa) uma teoria de uma grande e organizada conspirao anarquista naEuropa:

    Acredita-se agora que o ultraje cometido por Emile Henry no caf do HotelTerminus na noite de segunda-feira, quando vinte e quatro pessoas foram feridaspela exploso de uma bomba arremessada por ele, foi parte de uma vastaconspirao Anarquista. Pensa-se que o conluio foi preparado em Londres e vinte etrs homens, entre eles Henry, foram designados para executar os ultrajes. Henry

    confessou que manteve comunicao com Dr, Paul Reclus, quea polcia vemvigiando a um longo tempo por sua alegada coneco com Vaillant.24

    O ultraje mencionado havia ocorrido quatro dias antes em um caf freqentado, naspalavras do prprio anarquista mile Henry, pela burguesia parisiense.

    25 Preso ao tentarfugir do caf e no sem antes balear um policial e duas outras pessoas que tentaram agarr-lo -, Henry foi acusado ainda de ser o responsvel por um atentado que matou quatro policiaisno comissariado de polcia da Rue des Bons-enfants em 8 de novembro de 1892. O anarquista,

    que confessou o crime, construiu e deixou uma bomba de efeito retardado na porta dosescritrios da Companhia Carmaux de minerao, que havia solicitado polcia a repressoviolenta a uma greve de seus empregados; encontrada por um funcionrio, a bomba foientregue polcia e levada at o comissariado, onde explodiu.26

    Em nenhum momento das investigaes sobre o caso de mile Henry, ou de qualqueroutro anarquista terrorista, conseguiu-se realmente comprovar qualquer tipo de rede deligaes maior do que quatro ou cinco cmplices, mesmo assim, amigos prximos doterrorista e no apoiadores internacionais. Mais importante ainda, nos depoimentos ememrias de nenhum deles, Ravachol, Vaillant, mile Henry, Caserio, Lucheni ou Czolgosz,pode-se perceber que os anarquistas no restringiam suas confisses de culpa e at as

    Condenado morte, foiguilhotinado em 21 de maio de 1894 aos vinte e dois anos de idade.

    24 VAST anarchist conspiracy.The New York Times, Nova Iorque, 16 feb., 1894, p.5.25 Ver a ata de acusao e o interrogatrio de Henry em MAITRON, J. Ravachol y los anarquistas. Madrid:Huerga y Fierro, 2003, p.97-119 e tambm THE bomb again in ParisThe New York Times, Nova Iorque, 13 feb.,1894, p.1; THE Paris bomb thrower.The New York Times, Nova Iorque, 14 feb. 1894, p.5 e UNE bombe au Caf

    Terminus. Le Petit Journal Illustr. Paris, n 171, samedi, 26 fev., 1894.26 MAITRON, J. Ravachol y los anarquistas , p.103-108. LA dynamite Paris. Le Petit Journal Illustr . Paris, n104, samedi, 19 nov., 1892.

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    qualificaes de seus crimes; no existe a mnima meno a uma ameaa de conspiraoanarquista terroristaorganizada.

    Apesar disso, a construo de uma Internacional Negra terrorista, ao que parece,

    encaixou-se muito bem no imaginrio social de governantes, imprensa e parte da populaodos pases ocidentais da poca, mesmo que baseada em comprovaes tnues e inconclusascomo as apresentadas na ltima notcia citada: Henry manteve comunicao com Paul Reclus(que no era um defensor da ao terrorista), que, por sua vez, possua algum tipo inexato deligao com Vaillant.

    O mito conspiratrio da Internacional Negra terrorista foi to forte e real quemotivou aes efetivas dos governos, como a criao de diversas leis anti-anarquistas27

    A Conferncia de Roma foi organizada logo aps o assassinato da Imperatriz daustria por Luigi Lucheni em setembro de 1898 e de rumores de que o fato era o incio deuma srie de assassinatos planejados por anarquistas europeus, sendo o rei Humberto I daItlia o prximo alvo.

    e de

    uma grande Conferncia Internacional Anti-Anarquista, realizada em Roma, 1898.

    28 De fato, a pista da prxima vtima foi apontada pelo prprioLucheni que, depois de preso, disse que se possusse 50 francos para a viagem ele teriaescolhido o monarca italiano ao invs da Imperatriz, tendo acrescentado ainda: No tem

    problema, de qualquer modo outro ir matar Humberto logo.29

    O vago desejo de que algum cumprisse seus planos como no caso de Ravachol e ameno exploso da Cmara dos Deputados de Paris, cumprida por Vaillant - reforou omedo da Internacional Negra terrorista. Vinte e um pases, como Frana, Rssia, Gr-Bretanha, Blgica, Sua, Itlia e Espanha, enviaram delegados a Roma, onde diversas

    reunies se sucederam entre 24 de novembro e 21 de dezembro de 1898.

    A vontade de Lucheni seriacumprida algum tempo depois, quando o anarquista Gaetano Bresci matou o rei com trstiros, em julho de 1900.

    30

    Pode-se perceber um exemplo da fora da ao terrorista no imaginrio social atravsda prpria definio de anarquismo adotada pela Conferncia; ao discutirem o que deveria

    27 Ver sobre a perseguio aos anarquistas nos EUA em FINE, S. Anarchism and the assassination of McKinley,p.782-787. Gaetano Manfrdonia, do Institut dtudes Politique de Paris, destaca a criao das leis celeradasna Frana, que proibiam a apologia s aes consideradas criminosas, a associao suspeita de conspiraocontra pessoas e propriedades e, aps o assassinato do presidente Sadi Carnot pelo anarquista Sante Caserio,proibiam diretamente a propaganda anarquista. MANFRDONIA, G.1894: les lois sclrates. Disponvel emincrevablesanarchistes.org. Acesso em 23/07/06.28 JENSEN, R. The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the origins of Interpol, p.325.29 FOR killing the Empress.The New York Times, Nova Iorque, 11 nov., 1898, p.7.30 JENSEN, R. The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the origins of Interpol, p.327.

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    ser considerado o anarquismo para efeito de lei, foi aceita a sugesto do delegado de Mnaco,Hector de Rolland, que o descreveu atravs do que considerava ser a ao anarquista: o atoque tendo como seu objetivo a destruio por meios violentos de toda organizao social.31

    Encontramos, assim, novamente a frmula do niilismo sendo adotada comosoluo para a compreenso e explicao do terrorismo anarquista; ignorando toda propostade reconstruo social que sustentava os atentados como a edificao de uma sociedadeigualitria sem a propriedade privada, o Estado e as exploraes cotidianas causadas peloautoritarismo - o anarquismo resumiu-se, na compreenso dos governantes, destruioindiscriminada detoda organizao social.

    32

    Seu real legado incluiu a popularizao de certas prticas de extradio como as daclusula doattentat para crimes polticos e a difuso do uso do portrait parl , umanova tcnica cientfica de investigao policial. Mais notavelmente, a Confernciade Roma tornou-se um ponto de partida rumo a uma crescente troca deinformaes e comunicao intra-europia, culminando em 1904 com umprotocolo anti-anarquista, que foi assinado em So Petersburgo por meia Europa.

    A atuao efetiva da Conferncia foi limitada, at porque no havia de fato uma rede

    de terroristas organizada contra a qual lutar. Jensen destaca, porm, que ela foi o incio deuma maior cooperao policial entre os pases participantes (o que originaria, mais tarde, aInterpol) e da disseminao de algumas tcnicas de investigao, como o retrato falado:

    33

    31 Citado por JENSEN, R. The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the origins of Interpol.,p.327.32 Preso na Conciergerie, mile Henri demonstra de forma direta em uma carta ao diretor do presdio a ligaodo anarquista terrorista com a verso comunista do anarquismo, citando diversos autores relacionados a estacorrente, como Piotr Kropotkin, Errico Malatesta, Elise Reclus, Jean Grave e Sbastien Faure. HENRY, .

    Lettre au directeur de la Conciergerie. p. 59. GURIN, D.Ni dieu ni maitre: anthologie de lanarchisme III.Paris: Franois Maspera, 1980. p. 58-65.33 JENSEN, R. The International Anti-Anarchist Conference of 1898 and the origins of Interpol., p.323-324.

    O imaginrio do anarquista terrorista

    As significaes do terrorismo anarquista no imaginrio social formaram-se nasegunda metade do sculo XIX apoiadas em sentidos simblicos extremamente ambguos.Mesmo que veiculadas por uma imprensa de posicionamento definido, contra as aesanarquistas, muitas das imagens referentes aos terroristas podem ser compreendidas em suas

    ambivalncias de significaes atravs de anlises mais cuidadosas embora a memriahegemnica revele que no embate entre estas significaes, a fora da imprensa escrita fez-semostrar no domnio da compreenso social dos anarquistas como destruidores e amorais.

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    Pode-se iniciar a discusso sobre os diferentes sentidos atribudos pelos prpriosanarquistas a suas palavras e aes atravs do que se tornaria um dos cones identificadores doterrorismo anarquista (e, para muitos, do anarquismo em geral): a dinamite.34

    Dinamite era mais poderosa que explosivos anteriores, mas na prticafreqentemente provou-se menos letal e mais desajeitado do que se esperava. Omanual de Most sobre explosivos era inexato e tentativas por amadores de prepararbombas de dinamite freqentemente terminavam em exploses prematuras. Mesmoquando os terroristas roubavam ou adquiriam dinamite comercial (que Most

    recomendava sobre suas receitas caseiras), enormes quantidades eram muitas vezesnecessrias para garantir sucesso. Most estava errado quando escreveu que umabomba de dez libras poderia afundar um navio de guerra. Mesmo se a exploso noacontecesse prematuramente, o historiador Walter Laqueur afirma que setentalibras de dinamite colocadas sob a sala de jantar do Czar no Palcio de Invernopelo Vontade do Povo no seriam suficientes para feri-lo.

    Smbolo do pnico entre a populao por no escolher vtimas quando arremessada emmeio a uma multido, a dinamite era, entretanto, pragmaticamente uma das piores armas aserem utilizadas pelos terroristas:

    35

    34 Ou ainda mais diretamente a marmite . A marmite refere-se ao fato de que muitas das bombas eramconstrudas artesanalmente pelos prprios terroristas e estes, freqentemente, utilizavam-se de panelas (com ashastes retiradas e a tampa soldada) como invlucro para os cidos, cartuchos de dinamite e, s vezes, balas oucravos que as compunham.35 JENSEN, R. 2004. Daggers, rifles and dynamite: anarchist terrorism in nineteenth century Europe, p.30.

    Retomando os atentados bomba de Ravachol, Vaillant e mile Henry, nota-se que,de fato,numericamente as vtimas fatais no foram tantas quanto se poderia esperar: nenhumapara Ravachol e Vaillant, quatro no caso semi-acidental de Henry da Rue des Bons-enfants .

    Este ltimo, inclusive, no episdio do Caf Terminus esteve mais prximo de tirar a vida depessoas com seu revlver durante a fuga do que com a exploso do caf em si.

    As dificuldades prticas para a confeco, transporte e uso das bombas, contudo, eramaparentemente superadas pela fora simblica e psicolgica de seu uso: pretendia-se mandarpelos ares a sociedade capitalista, reduzi-la e escombros como os cafs e casernas atingidospela dinamite, alm do que sua capacidade de espalhar o medo era muito maior do que a dopunhal ou a da pistola. Percebe-se o anncio explcito desta vantagem em uma das vrias

    canes anarquistas criadas na poca para a apologia ao terrorismo e ao assassinato deautoridades do governo: La Dynamite , atribuda ao anarquista francs Martenot e publicadaem jornais libertrios a partir de 1893:

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    Coloque uma marmita/ Repleta de dinamite/ Qualquer que seja a razo/ Fazendo-sea exploso/ A notcia correr rpido/ Pois para inspirar o terror/ No h nadamelhor/ Que a dinamite!36

    Reitera-se a importncia do valor simblico atribudo escolha das vtimas dosatentados anarquistas (o que de forma alguma diminui a violncia real de seus atos), pois emnenhum momento de seus discursos e depoimentos h ameaas aindivduos especficos. O

    terror se mantm exatamente quando a possibilidade de assassinato coloca-se para qualquerpessoa que ocupe (ou reocupe) as posies de, para citar a cano La Ravachole , magistratsvendus, financiers ventrus, snateurs gteux, dputs vreux...

    Assim como nos discursos dos anarquistas, em nenhuma das canes analisadas(citadas na nota anterior), a dinamite, ou qualquer ao anarquista, colocada como simplesarma de destruio geral, pelo contrrio, h sempre um direcionamento claro, guiada pelaposio simblica e de poder que o alvo ocupa na sociedade.

    37

    Vocs [vous] podem preparar o cadafalso/ A forca e a guilhotina/ Ns temos o que

    precisamos/ Para mand-los pelos ares surdina/ Se vocs crem que issoterminar/ Vocs esto enganados/ Por cada homem que matarem/ Nscolocaremos quinhentos por terra!

    Ou mais comumente, dirige-se como uma ameaa de vingana tambm de forma

    ampla, com um no-particularizadovous neste caso - contra aqueles que se coloquemcontra os anarquistas:

    38

    Na questo da amoralidade, atribuda aos terroristas pela imprensa, nota-se osanarquistas utilizarem-se de uma outra escala de valores, inclusive morais, para guiarem suas

    Mais uma vez a fora real da dinamite deliberadamente superestimada colocarquinhentos por terra um exagero notvel - para, retoricamente, ampliar o sentimento demedo entre as autoridades que condenassem os anarquistas e, ao mesmo tempo, a coragementre os demais que se habilitassem a seguir o companheiro cado.

    36 LES 4 Barbus. La Dynamite. In: LES 4 Barbus.Chansons Anarchistes . Paris: Studios Emo, s/d. 1 disco. Lado1, faixa 2. (Coleo Hommes et faits du XXeme Sicle). Outras canes clebres do gnero so LES 4 Barbus. LaRavachole.Chansons Anarchistes . Lado 1, faixa 7 [1894]; LES 4 Barbus. Ravachol. In:Chansons Anarchistes Lado 1, faixa 7 [??]; GORI, Pietro. Sante Caserio. In:Canes Revolucionrias 1 . Natal: DHNET, 2006. 1 CD(MP3). [1894]; FIORENZO; SANTINO. Inno Individualista. In: Canes Revolucionrias 2. Natal: DHNET,2006. 1 CD (MP3). [1900]. REN BINAM. La java des bons-enfants. In: _____.71-86-21-36. Houx: Aredje,1996. 1 CD. Faixa 6 [1912]. 37

    magistrados vendidos, banqueiros panudos, senadores caducos, deputados cheios de vermes. LES 4Barbus. La Ravachole., Lado 1, faixa 7 [1894].38 LES 4 Barbus. La Dynamite.

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    aes; outra compreenso da individualidade em um contraste com o individualismo dassociedades europia e estadunidense daquela segunda metade do sculo XIX.

    Para eles havia uma forte indissociao da existncia individual com a social

    (coletiva); o valor do indivduo, seja para ser selecionado como potencial alvo de um atentadoou para ser cuidadosamente poupado dele, s se definiria em suas relaes sociais efetivas.

    A amoralidade e frieza dos terroristas s podem ser minimamente consideradassegundo seus prprios sentidos imaginrios se se tiver em mente estas ressalvas. mile Henry,por exemplo, marcou-se pela indiferena com que respondia as perguntas sobre o atentado aoCaf Terminus durante o interrogatrio de seu julgamento.

    -Por que voc foi ao Caf Terminus?-A princpio fui Casa Bignon, ao Caf de la Paix e ao Americain, mas no haviabastante pessoas, ento fui ao Terminus e esperei.-Havia uma orquesta. Quanto voc esperou?-Uma hora.-Por qu?-Para que houvesse mais pessoas.-E depois?-Voc j o sabe.39

    Henry reiterou ainda que no pretendia apenas ferir os freqentadores do caf, mas

    matar o maior nmero possvel de pessoas. Quando o promotor, voltando-se para os jurados,destaca que o anarquista acabara de confessar seus crimes com cinismo, Henry respondeironicamente: No cinismo, convico.

    40

    com uma convico semelhante que Ravachol confessa seus crimes ao ditar suasmemrias para seus prprios guardas da priso. Roubo de frangos, contrabando de lcool,falsificao de dinheiro, profanao de sepulturas, arrombamento de casas e motivo peloqual foi oficialmente condenado morte - o assassinato de um velho eremita em Notre-Dame-

    de-Grce so confessados sem constrangimento ou arrependimento.

    41

    39 Interrogatrio de mile Henry em MAITRON, J. Emile Henry, el Benjamn de la anarquia. p. 109. _______.op. cit. p. 97-139.40 MAITRON, J. Emile Henry, el Benjamn de la anarquia, p.111.41 RAVACHOL. Las memorias de Ravachol, p.76-87.

    Mesmo em seus crimescomuns, a segurana moral de Ravachol baseia-se na convico de que a maiorresponsabilidade por seus atos no recai sobre si enquanto pessoa, mas sobre toda aorganizao social injusta e miservel que o recebeu no mundo desde o nascimento. Sobre oroubo de frangos, por exemplo, diz:

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    Naquele momento, minha irm acabava de ter um filho com seu companheiro. Meuirmo e eu estvamos sem trabalho e sem um centavo de reserva. No teramosmais que o po que o padeiro poderia bem nos dar. Ao no encontrar trabalho emnenhuma parte me vi obrigado a sair em busca de alimento. (...) Era-me penoso irpegar as aves de desgraados camponeses que qui no teriam mais que isso paraviver, mas eu no sabia quais eram os ricos e no podia deixar que morrssemos defome minha me, minha irm e seu filho, meu irmo e eu.42

    Com o tempo, demonstra retrospectivamente Ravachol em suas memrias, aconscincia de si enquanto um indivduo considerado sem valor pela sociedade francesa leva-o a considerar tambm os causadores de sua misria como um todo indistinto: no podiaresignar-me a morrer de fome ao lado de pessoas que nadavam no suprfluo.

    43 Umasensibilidade muito semelhante compartilhada por Luigi Lucheni, que em suas memrias,escritas na priso de Genebra, tambm responsabiliza diretamente a corrupo da sociedadepor sua desgraada vida desde seu nascimento.44

    Assim, com ateno pode-se perceber a amoralidade dos anarquistas terroristascomo uma elaborao do imaginrio social da segunda metade do sculo XIX criada emlocus sociais especficos, no sendo compartilhada em todos os seus sentidos por toda a sociedade(inclusive pela totalidade dos anarquistas). H sim um outro sentido para a moral, que no sebaseia exatamente nos valores individualistas dominantes, mas em figuraes simblicas do

    social. Perguntado em seu interrogatrio se ele deprecia a vida humana, mile Henryresponde de forma direta: No, a vida dos burgueses.

    45

    Assim, preparei a bomba. Num certo momento, lembrei-me da acusao que haviasido feita em Ravachol. E as vtimas inocentes? Mas logo resolvi esse problema.

    Os edifcios onde a Companhia Carmaux mantinha seus escritrios eram habitadosapenas por burgueses: no haveria, portanto, vtimas inocentes. Todos os burguesesvivem da explorao dos menos afortunados e justos e deveriam pagar pelo seucrime. Assim, foi com a mais absoluta confiana na legitimidade do meu ato quedeixei a bomba diante da porta dos escritrios da Companhia.

    Neste mesmo sentido, notvel o relato de Henry sobre sua deciso de retaliao

    Companhia Carmaux de Minerao aps esta reprimir com violncia uma greve de seusempregados:

    46

    42 RAVACHOL. Las memorias de Ravachol, p.75-76.43 RAVACHOL. Las memorias de Ravachol, p.79.44 Ver LUCHENI, L. Histria de um menino abandonado no fim do sculo XIX contada por ele mesmo.CAPPON, S.; LUCHENI, L. Memrias do assassino de Sissi . So Paulo: Novo Conceito, 2007, p.71-140.45

    MAITRON, J. Emile Henry, el Benjamn de la anarquia, p.109.46 HENRY, . A defesa de um terrorista, p.181. WOODCOCK. G.Os grandes escritos anarquistas. PortoAlegre: L&PM, 1998, p.178-185.

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    Aps o atentado de Vaillant Cmara dos Deputados, o governo francs iniciou umagrande onda de represso aos anarquistas do pas. Novamente Henry justifica seus atos,explicitando o porqu de desconsiderar a inocncia individual de cada uma de suas

    potenciais vtimas durante um atentado:

    A bomba encontrada no Caf Terminus a resposta a todas as violaes liberdade, s prises, s buscas, s leis contra a imprensa, s deportaes em massa,s guilhotinas. Mas perguntaro vocs - por que atacar os pacficos clientes deum caf que estavam apenas sentados ouvindo msica e que, sem dvida, no eram juzes, nem deputados, nem burocratas? Por qu? muito simples. Os burguesesno faziam distines entre os anarquistas. Vaillant, um homem que agia sozinho, jogou uma bomba; mais da metade de seus camaradas nem ao menos o conhecia,mas isso no teve nenhuma importncia: era uma perseguio em massa e qualquerpessoa que tivesse ligaes com os anarquistas por menores que fossem, deveriaser caada.47

    No muito tempo atrs, Vaillant jogou uma bomba na Cmara dos Deputados paraprotestar contra o presente sistema da sociedade. Ele no matou ningum, apenasferiu algumas pessoas, mas ainda assim a justia burguesa sentenciou-o morte. Eno satisfeitos com a condenao do homem culpado, eles comearam a perseguiros anarquistas e a prender no apenas aqueles que conheciam Vaillant, mas mesmoaqueles que meramente haviam estado presente em qualquer encontro anarquista.(...) Senhores do juri, vocs so representantes da sociedade burguesa. Se vocsquerem minha cabea, tomem-na, mas no acreditem que fazendo isso vocspararo a propaganda anarquista.

    Em unssono tambm se ouve a voz de Caserio, assassino do presidente francsCarnot, durante seu julgamento:

    48

    Como citado anteriormente, Le Petit Journal Illustr destaca a calma de Ravacholdurante seu julgamento onde ele certamente imaginava a possibilidade de condenao

    A negao do valor de si em relao com valor de uma causa maior era utilizada comouma arma pelos anarquistas na poltica do terror. No s em seus discursos, mas, sobretudo,em seus gestos; o no-arrependimento e a indiferena frente morte significavam que a lutarevolucionria no terminava no cadafalso, pois outro companheiro surgiria para dar-lhecontinuidade. Ravachol foi o grande inaugurador deste gesto poltico naquele momento,possvel atravs da ampla cobertura da imprensa sobre cada detalhe de sua priso, julgamentoe execuo.

    47 HENRY, . A defesa de um terrorista, p.183.48 Citado por GOLDMAN, E. The psycology of political violence. _______. Anarchism and other essays. NewYork/London: Mother Earth Publishing Association, 1911. p.85-114. Disponvel em:dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives. Acesso em 10 set. 2006.

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    morte -49

    Se eu tomo a palavra, no para defender-me dos atos que me acusam, pois s asociedade, que por sua organizao coloca os homens em luta contnua uns contraos outros, responsvel.

    e, com efeito, ele recusa-se a tentar se defender, uma vez que se encontramoralmente convencido de que suas aes no foram responsabilidades unicamente de sienquanto indivduo:

    50

    A mesma frmula de recusa de defesa seria utilizada ainda nos discursos de mileHenry e Sante Caserio durante seus julgamentos.

    51

    Os relatos deThe New York Times mostram Ravachol tambm extremamente calmono dia em que seria guilhotinado. Acordando disposto, brincou com os guardas que opreparavam para a execuo; preocupando-se com suas ltimas palavras (Eu quero medirigir multido. Tenho algumas palavras a dizer.), logo advertido pelo promotor de queno haveria multido para ouvi-lo. Ah, Promotor!, exclama decepcionado.

    52

    Eu no dou a mnima para sua religio. No quero ver seu crucifixo. Se vocmostr-lo para mim cuspirei sobre ele. Vocs so, todos vocs, pessoas queencorajam a superstio e tentam fazer as pessoas acreditarem naquilo que vocsno podem provar.

    Frente aocapelo do presdio, que insiste em dirigir-lhe palavras de consolo religioso e arrependimento,responde irritado:

    53

    Zomba ainda do carrasco que o prepara para a guilhotina e tenta falar para as pessoaspresentes, mas rapidamente colocado na mquina, que corta seu pescoo, interrompendo umgrito de Vive la Re...!

    54

    Quase dois anos depois, a atitude de Auguste Vaillant no momento de sua execuoseria a mesma de Ravachol. Com uma coragem descrita pelo jornal como memorvel, o

    anarquista recusa a bebida oferecida pelo diretor do presdio (No. Eu devo ter coragemsuficiente sem isso.), apoiado na convico de que seu corpo no nada comparado ao

    49 RAVACHOL dans as cellule. Le Petit Journal Illustr. Paris, n 76, samedi, 7 mai., 1892.50 RAVACHOL. Dclaration de Ravachol (interdite lors de son procs en 1892) Zanzara athe, 2004, p.3.Disponvel em www.infokiosque.lautre.net Acesso em 08 de fev. 2006. 51 HENRY, . A defesa de um terrorista, p.178 e GOLDMAN, E. The psycology of political violence.52 RAVACHOL put to death.The New York Times, Nova Iorque, 12 jul., 1892, p.953 RAVACHOL put to death., p. 954 RAVACHOL put to death, p.9. Uma pequena polmica formou-se sobre a ltima frase de Ravachol.

    Inicialmente entendida como Vive la Rpublique!, logo se percebeu que no seria uma homenagem prpriapara o anarquista, sendo Vive la Rvolution! uma hiptese mais provvel. DID Ravachols head utter a word? The New York Times, Nova Iorque, 17 aug., 1892, p.3

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    O anarquista terrorista na imprensa escrita no sculo XIXFabrcio Pinto Monteiro

    Temporalidades Revista Discente do Programa de Ps-graduao em Histria da UFMG, vol. 1, n. 2, ago./dez. 2009. www.fafich.ufmg.br/temporalidades

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    progresso de seus princpios e a certeza de que ser vingado. Recusa tambm o consoloreligioso do capelo. Com passos firmes, sobe ao cadafalso e, em suas ltimas palavras antesde ser morto, feita a uma multido estimada em mil e duzentas pessoas, grita: Morte

    burguesia! Vida longa Anarquia!55

    possvel perceber como esta impassibilidade dos anarquistas, a desconsiderao dovalor do individualismo vigente em relao a um ideal e a um mundo visto atravs de suasinstituies simblicas coletivas

    56

    Eles [os terroristas] lograram fazer da sua prpria morte uma arma absoluta contraum sistema que vive da excluso da morte, cujo ideal o da zero mortes. Todo osistema de zero mortes um sistema de soma nula. Todos os seus meios dedissuaso e de destruio nada podem contra um inimigo que j fez da sua prpriamorte uma arma ofensiva. Que importam os bombardeamentos americanos! Osnossos homens tm tanto desejo de morrer como os americanos de viver!

    , conseguiu realizar alguns de seus objetivos na lutarevolucionria pelo terrorismo. De alguma forma, as palavras e gestos destes anarquistasconseguiram produzir, durante certo tempo, a temida sucesso de atentados motivados pelaqueda do companheiro anterior. No se tratou, contudo, de uma organizao prvia de redes

    revolucionrias como a quase mtica Internacional Negra, mas sim de um jogo bem-sucedido de sensibilizao pessoal entre indivduos que j compartilhavam de sentidosimaginrios (racionais e de sentimentos) semelhantes, onde a morte no significava o fim daprpria essncia.

    Analogamente, pode-se pensar nas dificuldades do restante da sociedade europia eestadunidense da poca (governos, autoridades policiais, burguesia em geral) paracompreender e enfrentar este imaginrio atravs de uma considerao feita por Jean

    Baudrillard sobre os terroristas suicidas do sculo XXI e o que considera ser sua lgica depensamento:

    57

    Embora os anarquistas no fossem diretamente suicidas e sua esperana de alm-vidano passasse por uma crena religiosa de vida celeste, mas sim pela transformao futura dasociedade terrena, a relao construda com a morte causou tanto estranhamento no sculo

    55 THE guillotines sure work. The New York Times, Nova Iorque, 6 feb., 1894, p.5.56 necessrio destacar, no entanto, que esta desvalorizao no absoluta, uma vez que o ideal de liberdadeindividual continua a ser mencionado pelos terroristas como por outras correntes anarquistas. Vemos, entretanto,que a opo da luta via terrorismo foi construda por estes anarquistas justamente atravs da diminuio daimportncia da pessoa do revolucionrio preso/morto como garantia da permanncia da ameaa burguesia.57 BAUDRILLARD, J.O esprito do terrorismo , p.21-22.

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    XIX quanto o fez o terrorismo islmico em nossa sociedade ocidental, onde a morte (e eradesde aquela poca) algo de difcil assimilao.

    Alguns vestgios, entretanto, mostram que aos poucos as autoridades do sculo XIX,

    comearam a descobrir uma possvel forma de matar de forma definitiva o anarquistaterrorista, tentando bloquear a continuidade de sua vida no prosseguimento da luta por seuscompanheiros. Alm da criao de leis que proibiam reunies, apologia violnciarevolucionria e propaganda anarquista em geral e das deportaes denunciadas por Henry emcitaes anteriores, comeou-se a buscar a destruio daquela invencibilidade do anarquistafrente morte.

    Dois dias aps a execuo de mile Henry, uma notcia pequena e aparentemente sem

    importncia foi publicada emThe New York Times (e, sem dvida, tambm por jornaiseuropeus):

    Dr. Benoit, da Faculdade da Escola de Medicina, depois de um exame completo nocorpo de mile Henry, o Anarquista, que foi decapitado na manh de ontem,expressou a opinio que Henry j estava morto quando a lmina caiu. Dr. Benoitacredita que o Anarquista morreu de sncope, causada por intensa emoo antes dalmina ser solta.58

    Como seus companheiros guilhotinados anteriormente, mile Henry portara-se deforma quase indiferente frente morte, tendo gritado para a multido (e para si?) justamenteas palavras: Coragem camaradas! Vida longa Anarquia!

    59

    Poucos minutos antes das 5 horas o homem condenado foi levado de sua cela paraa guilhotina. Seus braos foram firmemente amarrados em suas costas. Quando osencarregados colocaram-no para deitar sob a lmina, ele lutou fortemente paralibertar-se. s 4:55 tudo estava pronto. Caserio gritou: Coragem, camaradas! Vidalonga Anarquia! A lmina caiu precisamente s 5 horas e a cabea de Caseriorolou para o cesto.

    A revelao de sua morte porintensa emoo aos ps da guilhotina seria o suficiente para colocar por terra estacoragem inquebrantvel, derrotando com um s golpe a arma dos anarquistas para acontinuidade do terror.

    Mais declarado ainda seria este mesmo esforo realizado pela imprensa no caso deCaserio. Na manchete que anunciou sua morte em 16 de agosto de 1894, lemos emThe NewYork Times apenas uma breve descrio dos momentos finais do anarquista:

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    58

    DIED before the knife fell.The New York Times, Nova Iorque, 23 may., 1894, p.559 THE guillotines sure work. The New York Times, Nova Iorque, 21 may, 1894, p.160 CASERIO at the guillotine.The New York Times, Nova Iorque, 16 aug, 1894, p.1.

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    Entretanto, no dia seguinte o jornal retoma o assunto de um modo nunca feito antespara as execues de anarquistas, com um tom de deboche e dio pouco comum para um tipode imprensa que se colocava como imparcial, e em contraste evidente com a primeira

    reportagem:

    No h nada na histria das execues anarquistas to benfico, edificante eapropriado para diminuir o estoque de propagandistas pelo ato como a estriadeste covarde tremendo e choramingando antes do destino que ele pedira e quedesafiara to fortemente enquanto ele ainda estava a distncia. A combinao demisantropia e vaidade doentia que compe o criminoso anarquista veio sendo forteo suficiente em vrios casos para desafiar o medo da morte imediata.(...) Estemorreu como um covarde e os Anarquistas sobreviventes no mais encontram usonele morto como pessoas civilizadas encontravam nele vivo. O sangue de ummrtir relutante e covarde no semente para qualquer tipo de Igreja.61

    61 CASERIOS death.The New York Times, Nova Iorque, 17 aug, 1894, p.4.

    O motivo do tom de zombaria a respeito do temor de Caserio frente morte explicitado pelo prprio autor da reportagem: um terrorista considerado covarde no seriatransformado em mrtir e no atrairia seguidores dispostos a vingar sua morte. A estranhaimpassibilidade dos anarquistas, compreendida pelo jornal como misantropia e vaidadedoentia, que tanto desafiou a compreenso e a ao de governos e autoridades judicirias,estaria, espalhando-se notcias como esta, finalmente derrotada.

    A onda de atentados anarquistas ainda demoraria alguns anos para cessar. Trs anosaps a morte de Caserio, em agosto de 1897, o primeiro-ministro espanhol seria assassinadopelo anarquista Angiolillo; em 1898 morreria a imperatriz da ustria pelas mos de Lucheni eem 1900 o rei da Itlia seria baleado por ngelo Bresci. A morte do presidente dos EUA, em1901, fecharia o ciclo dos grandes atentados do terrorismo anarquista.

    A grande represso promovida pelos governos e, tambm de fundamental importncia,a crescente oposio de muitos anarquistas influentes opo de ao terrorista como Jean

    Grave, Piotr Kropotkin e Errico Malatesta - levou a mudanas na estratgia geral da lutaanarquista, quando a aproximao dos sindicatos mostrou-se cada vez mais interessante.

    Artigo recebido em 30/11/2008 e aprovado em 09/03/2009.