o amigo da onÇa: uma expressão da alma brasileira
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Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.(Coleção História na Comunidade, v.1 )TRANSCRIPT
O AMIGO DA ONÇAuma expressão da alma brasileira
Alberto Gawryszewski (org.)
Coleção História na Comunidade – volume 1
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O AMIGO DA ONÇAuma expressão da alma brasileira
Coleção História na Comunidade
volume 1
ReitorProf. Dr. Wilmar Sachetin Marçal
Vice-ReitorProf. Dr. Cesar Antonio Caggiano Santos
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-graduaçãoProf. Dr. Alamir Aquino Corrêa
Pró-Reitor de ExtensãoProf. Dr. Paulo Bassani
Pró-Reitora de EnsinoProfa. Dra. Fátima Cristina de Sá
Diretor do Centro de Letras e Ciências HumanasProf. Dr. Ludoviko Carnascialli dos Santos
Chefe do Departamento de HistóriaProf. Dr. Cristiano Gustavo Biazzo Simon
Coordenador do LEDiProf. Dr. Alberto Gawryszewski
Agradecemos aos funcionários:
PROEX / UEL: Marina, Dayse e Edson; CDPH / UEL;Arquivo Público do Estado de São Paulo
Biblioteca Municipal de Londrina
O AMIGO DA ONÇAuma expressão da alma brasileira
Alberto Gawryszewski (org.)
Universidade Estadual de Londrina
Londrina • 2009
Coleção História na Comunidade
volume 1
Uma publicação do Laboratório de Estudos dos Domínios da imagem (LEDi), do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina
Copyright© dos autores
Capa e editoração: Humanidades Comunicação Geral
imagem da capa: O Cruzeiro, 1957.
imagem da contracapa: O Cruzeiro, 11/01/1958.
Tiragem: 1000 exemplares
Distribuição gratuita. Venda proibida.
Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CiP)
Toda matéria publicada é de inteira responsabilidade dos autores.
impresso no Brasil / Printed in Brazil
Feito depósito legal na Biblioteca Nacional
A516 O amigo da onça : uma expressão da alma brasileira / organizador Alberto Gawryszewski. Londrina: Universidade Estadual de Londrina / LEDI, 2009. (Coleção História na Comunidade, v.1 ) 90 p. : il.
Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7846-054-9
1. História. 2. Humor gráfico. 3. Imagem – História. I. Gawryszewski, Alberto. ii. Título.
CDU 930.2:77
Apresentação
O Cruzeiro: uma revista de imagens
Jorge Luiz Romanello
Quem é O Amigo da Onça?
Ana Flávia Dias Zammataro
O Amigo da Onça: da construção do
preconceito à sua contestação
Alberto Gawryszewski
Referências Bibliográficas
Sumário
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37
65
87
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Apresentação
A publicação deste livro é o início da realização de
um desejo: dar transparência às atividades científicas
produzidas pelos professores da Universidade Estadual de
Londrina (UEL), em especial do Departamento de História,
que participam do Laboratório de Estudos dos Domínios
da imagem (LEDi). É possibilitar um diálogo entre o saber
científico e a comunidade. Daí, esta coleção se chamar
História na Comunidade.
Em agosto de 2006, foi criado no Departamento de
História da UEL, na forma de projeto integrado (pesquisa/
extensão), o LEDi. Em três anos de existência, este tem
desenvolvido diversas atividades relevantes. Entre elas
podemos apontar: a realização, em maio de 2007, do I
ENEiMAGEM (i Encontro Nacional de Estudos da imagem
– (www2.uel.br/eventos/eneimagem); a publicação da
revista semestral Domínios da Imagem – http://www2.uel.
br/cch/his/dominiosdaimagem/ (em novembro de 2009 será
lançado o número 05); cursos de extensão e a realização, em
maio de 2009, do II ENEIMAGEM (www.uel.br/eventos/
eneimagem).
Em 2008, o LEDI teve aprovado seu projeto junto ao
PROEXT/2008- Programa de Extensão Universitária (ProExt
Cultura), um programa dos Ministérios da Cultura e da
Educação, realizado com a colaboração da Fundação de Apoio
à Universidade Federal de São João Del Rei (FAUF). Para
este projeto partimos da afirmação contida nas Diretrizes
Curriculares para o Ensino da História na Educação Básica,
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que diz que as imagens, livros, jornais, fotografias, filmes etc.
são documentos que podem ser transformados em materiais
didáticos de grande valia na constituição do saber histórico.
Os documentos possibilitam a reflexão e a construção
de conceitos sobre o passado e permitem a formulação de
questões sobre os conceitos já constituídos. Compreendemos
a imagem como importante instrumento/documento para
a formulação do conhecimento histórico. Na realidade ela
pode ser a mediadora desse conhecimento. Assim, o projeto
proposto atua em duas frentes: primeira, proporcionando
ao aluno um novo olhar sobre as imagens, não como mera
ilustração, mas rica de conceitos e interpretações; segunda,
ajudando o professor a trabalhar com a imagem como
instrumento de ensino, como fruto de uma criação humana
repleta de significados.
Este primeiro livro, que acompanha a exposição com o
mesmo nome, foi concebido como mais um instrumento nas
mãos dos professores na tarefa de dialogar com os alunos.
A produção de Péricles e, depois, Carlos Estevão – O
Amigo da Onça – que estava imbutida na revista de maior
circulação nacional, O Cruzeiro, traz importantes reflexões
sobre o papel da mídia e do humor gráfico como formadora de
opinião ou como reflexo de uma sociedade.
A exposição, composta por cerca de 80 banners (que
podia variar conforme o espaço físico disponível), foi e está
sendo montada em escolas, museus, associações esportivas,
classistas e culturais. Foi dividida em três partes que se
interligam: primeira, uma mostra da revistra O Cruzeiro,
composta por capas, reportagens e entrevistas; segunda,
composta pelas ilustrações O Amigo da Onça (AO), de Péricles.
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Esta foi subdivida em quatro partes: o preconceito do AO; as
idades diversas do AO; a morte de Péricles e sua criação; e,
por fim, o riso gratuito. A terceira e última parte da exposição
apresenta as criações de Carlos Estevão.
Este livro é formado por três artigos. O primeiro, de
Jorge Luiz Romanello, trata da história da revista O Cruzeiro,
típica “Revista de Variedades”. O autor privilegiou discutir um
pouco sobre as fotos, os desenhos, charges e caricaturas que
compunham a revista, pois era característica desta a ênfase
sobre as imagens.
O segundo artigo foi escrito por Ana Flávia Dias
Zammataro no qual aborda alguns aspectos do personagem O
Amigo da Onça. Escreve sobre a piada que deu origem a este
e apresenta suas várias facetas: egoísta, mulherengo, sagaz;
retratado como jovem e idoso, na forma animal e em vários
empregos. Mas, sempre aparecendo como um amigo da onça.
Faz uma ligeira biografia de Péricles, com seu fim trágico, e
de Carlos Estevão, destacando o brilhante trabalho deste na
continuação da produção do personagem O Amigo da Onça.
O terceiro e último artigo foi escrito pelo autor destas
palavras. Procurei trabalhar com alguns conceitos presentes
em nossa época, tais como o belo, feio, riqueza, pobreza,
velhice, etnia entre outros. Tais conceitos geram preconceitos,
ou seja, uma forma unilateral de análise (ou não) que reforça
valores, desagrega os laços humanos, gera ódios, sobrepõe um
ser sobre outro e outros malefícos. Perícles e Carlos Estevão,
astutos observadores da sociedade brasileira, colocaram seus
traços a serviço da denúncia dos preconceitos existentes em
nossa sociedade.
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Espero que este livro, que dá início a coleção História
na Comunidade, composta inicialmente por nove livros,
contribua para o debate e o ensino de História, bem como
no resgate de um importante personagem de nosso humor
gráfico, O Amigo da Onça.
Este material pode ser copiado, no todo ou em parte,
devendo ser nomeada sua fonte. O download dos textos, na
versão em cores, poderá ser realizado na página do LEDi
(http://www.uel.br/cch/his/ledi/), bem como dos vídeos
produzidos e das imagens que compõem a exposição O Amigo
da Onça: uma expressão da alma brasileira.
Boa leitura!
Alberto GawryszewskiCoordenador da coleção
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Introdução
Neste capítulo discutiremos um pouco da história da
revista O Cruzeiro e também de sua importância para o estudo
da história recente do Brasil.
Estamos acostumados a ler revistas e quase nunca nos
perguntamos sobre seu conteúdo, como são feitas, a que grupos
se ligam e quais interesses têm, e muito menos lembramos que
não foram como são hoje.
O simples folhear de uma revista antiga permite-nos
perceber uma série de valiosas informações. Se atentarmos
para isto podemos aprender muitas coisas sobre a sociedade
em que vivemos.
Ao manuseá-las, em geral, o que mais percebemos,
nas fotos e propagandas, são as diferenças nos cortes de
cabelos e nas roupas. Mais do que apenas mostrar mudanças
da moda, mostram também transformações nos costumes.
As mudanças nos modelos dos carros mostram mais que
mudanças de estilos e marcas; nelas transparece, também,
o esforço da indústria automobilística em associar seus
produtos a estilos de vida.
O Cruzeiro uma revista de imagens
Jorge Luiz Romanello
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
Notamos algumas permanências, também, como por
exemplo, daqueles produtos que circulam por décadas a fio
com a mesma embalagem ou de alguns assuntos que estão
sempre em debate.
O que em geral não notamos é que os aspectos gráficos
das revistas – a diagramação (a forma de distribuir títulos,
subtítulos e fotos das matérias e reportagens, a quantidade
de texto em relação ao de fotos etc), as seções que as
compõem e uma série de outros aspectos – praticamente,
não mudam de uma edição para outra ou mudam tão devagar
que só percebemos essas mudanças, quando manuseamos
publicações de muitas décadas atrás.
Dessas mudanças e permanências de assuntos e de
estilos gráficos, da forma como são apresentadas, relações
estabelecidas com o público, o tratamento dos temas e outros
aspectos do gênero é que fazem da imprensa (jornais e revistas
principalmente) importante fonte de pesquisa para os estudos
históricos.
Nesse sentido, os estudos das imagens – desenhos,
fotos e outros – têm uma enorme contribuição a oferecer, pois
permitem perceber características que nenhum outro tipo de
fonte permite.
A este respeito, podemos lembrar aqui, rapidamente,
de aspectos específicos dos papéis da mulher e do homem na
sociedade, do desenvolvimento industrial, dos preconceitos
sociais e religiosos e assim por diante.
Nesta perspectiva, O Amigo da Onça, de Péricles, é
um personagem exemplar, e por meio do estudo de seus
comportamentos podemos perceber que ele sintetiza muitos
valores sociais predominantes da época em que foi produzido.
A associação entre O Amigo da Onça e a revista O
Cruzeiro, com sua circulação nacional e grandes tiragens no
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O Cruzeiro uma revista de imagens
período em que Péricles trabalhou lá, foi muito benéfica para
ambos, uma vez que aliou um personagem de grande aceitação
popular com as condições necessárias para que as charges
chegassem aos leitores de todo o Brasil.
Portanto, conhecer um pouco mais sobre a revista O
Cruzeiro é conhecer um pouco mais da história do Brasil e
do veículo de comunicação que levou O Amigo da Onça ao
interior dos lares brasileiros.
O Cruzeiro uma revista de variedades
A revista O Cruzeiro foi fundada em 1928, uma época
em que as técnicas de impressão de imagens estavam bem
desenvolvidas e o público já estava bastante acostumado a ler
revistas ilustradas, tinha circulação semanal e nasceu para
ser a mais moderna do Brasil e a primeira a circular em todas
as regiões do país e pertencia ao conglomerado de mídias
chamado de “Diários Associados”.
Os “Diários Associados” foram um conglomerado de mídia que
começara a ser montado em 1924 com a aquisição do jornal O Jornal. Este
cresceu sem parar por quase quarenta anos, chegando a congregar, em
1959, dezenas de jornais, as principais estações de televisão, 28 estações
de rádio, as duas mais importantes revistas para adultos do país, doze
revistas infantis, agências de propaganda, um castelo na Normandia, nove
fazendas produtivas espalhadas por quatro estados brasileiros, indústrias
químicas e laboratórios farmacêuticos, estes encabeçados pelo poderoso
[laboratório farmacêutico] Schering.
Foi um império tão grande quanto frágil que sobreviveu poucos anos
após a morte de Chateuabriand (MORAIS, 1994).
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
Com uma tiragem inicial de cinquenta mil exemplares,
estabelecia um verdadeiro record para os padrões da época,
chegando a circular 600.000.000 exemplares, em média,
entre o meio e o final da década de 1950, atingindo um público
estimado entre três e quatro milhões de leitores (devemos
lembrar que cada revista, normalmente, era lida por várias
pessoas).
A revista era propriedade do poderoso advogado e
jornalista Assis Chateaubriand Bandeira de Mello – conhecido
publicamente como Assis Chateaubriand e pelos íntimos
simplesmente como “Chatô”.
Assis Chateaubriand nasceu em 1892, em Umbuzeiro, na Paraíba,
formou-se em direito na Faculdade de Direito do Recife de onde
conseguiu se tornar professor aos 24 anos, após uma intensa batalha
judicial – cargo que nem chegou a assumir. Mudou-se, em seguida,
para o Rio de Janeiro disposto a formar uma cadeia de jornais, o
que efetivamente começaria a acontecer alguns anos depois e que se
personificou no império “Diários Associados”, que dirigiu por cerca
de quatro décadas.
Chateaubriand reunia, na mesma pessoa, personalidades
muito distintas, em que conviviam um perfil conservador e
violento, quase de um antigo coronel do século XiX, com o de
um homem visionário e elegante que amava a cultura, as artes
e os museus.
Com o poder e a influência que conseguiu, graças
aos jornais, revistas, emissoras de rádio, e mais tarde de
televisão, interferia diretamente na vida política brasileira,
apoiando ou destruindo candidatos e pressionando
presidentes, governadores e outras autoridades a atender
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O Cruzeiro uma revista de imagens
suas reivindicações. O castigo para quem não concordava com
ele ou não atendia às suas exigências era, com frequência,
um conjunto de retaliações veiculadas em seus órgãos de
comunicação.
Por conta de seu temperamento e de sua forma de agir,
conseguiu muitos admiradores e muitos inimigos também.
Faleceu em São Paulo, em 1968 (MORAIS, 1994).
Na imagem acima (página à direita), vemos Chateubriand
em uma reportagem sobre as personalidades do ano de 1956.
A própria forma como é diagramada uma reportagem já nos
informa muita coisa; neste caso, são duas página divididas em
três partes. A da esquerda (dividida em duas metades iguais),
na parte superior, destaca as homenagens ao general Lott – um
importante militar e político brasileiro que mais tarde chegou a
disputar uma eleição presidencial. Com o título: “FiANÇA DA
ORDEM” e duas fotos dele recebendo as honrarias da “Espada
“Personalidades do ano de 1956”, 06/01/1957
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
de Ouro” e de “Nossa Senhora”. Na metade inferior, com o
título: “O ANO PASSA – E O TRABALHO CONSTRUTIVO
FiCA”, oito fotos exibem as realizações e grandes eventos que
marcaram o primeiro ano de governo do presidente Juscelino
Kubitschek (1955-1961). A da direita, inteiramente dedicada
ao proprietário dos “Diários associados”, é uma montagem
com cerca de vinte fotos menores impressas em uma cor rosa
escuro formando um mosaico (fotos do próprio Chateaubriand
publicadas anteriormente pela revista) e um grande close em
preto e branco que ocupa quase toda a página.
A revista noticiou a premiação com o título
CHATEUBRiAND: Nacional e internacional e com um
pequeno texto que ressalta suas inúmeras qualidades e títulos,
chegando até mesmo a destacar suas 160 viagens e “592,30”
horas voadas. Ou seja, meia página e duas fotos para o General
Lott, meia página e oito fotos para o presidente JK e uma
página e mais de vinte fotos para o proprietário da revista.
Devido a sua importância no cenário cultural brasileiro
e à beleza das ilustrações e fotografias que ela continha, a
revista transformou-se em objeto de coleção para muitos
leitores que acreditavam guardar em casa reportagens que
eram uma parte da história do Brasil em que viviam, uma vez
que os editores e fotógrafos de O Cruzeiro produziam no leitor
a sensação de contar “A Verdade” dos fatos, e não apenas uma
versão – entre as muitas possíveis – sobre eles.
Desde os primeiros números, sua principal característica
era o uso de um grande número de imagens, recurso que
atraía o público e facilitava a leitura. Também os textos eram
cuidados para que o conteúdo pudesse ser lido com rapidez e
compreendido com uma certa facilidade.
A revista era impressa em papel de alta qualidade, o que a
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O Cruzeiro uma revista de imagens
deixava atraente, as charges, em geral, eram usadas para criticar
e divertir, os desenhos eram muito usados nas propagandas
dos produtos anunciados e havia, ainda, diversos tipos de
ilustração que enriqueciam histórias, destacavam as novidades
do mundo da moda, além de várias outras finalidades.
Havia um cuidado para que todos os tipos de assuntos
estivessem presentes em cada edição. Assim, as grandes
discussões internacionais dividiam espaço com as colunas
sobre o cotidiano, a moda, os conselhos para as mulheres,
futebol, automóveis, a política, novelas escritas, carnaval,
tecnologia, acontecimentos no mundo do rádio, teatro,
cinema entre outros A escolha de assuntos pretendia atingir o
maior público possível, dirigindo especial atenção ao público
feminino.
“Factos da Semana”, 22/03/1929
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
Embora tenha se colocado como uma publicação
moderna, no início as fotografias eram estáticas, com os
participantes fotografados parados e fazendo poses. O texto
era o elemento principal e o que gerava sentido às reportagens;
este, quando mais longo era habitualmente intercalado com
propagandas desenhadas.
Tratar de inúmeros assuntos era a sua marca e, em função
disso, estas revistas, passaram a ser chamadas de “Revistas de
Variedades”, pois desde o começo do século XX, já existiam
as “Revistas Especializadas” (aquelas que discutiam cinema,
automobilismo, assuntos femininos etc.).
No decorrer de sua longa história, O Cruzeiro viveu altos
e baixos, esteve inclusive a ponto de ser fechada em meados
da década de 1930. A revista recuperou-se espetacularmente
alguns anos depois, tendo vivido sua melhor fase na década
de 1950.
Desde o lançamento, possuía correspondentes em várias
partes do mundo e, em diversas ocasiões, patrocinou viagens
de seus repórteres e fotógrafos a países como Portugal, França,
inglaterra, Egito, Líbano e diversas outras partes do mundo,
incluindo o quase inexplorado Pólo Norte (meados da década
de 1950).
Os equipamentos gráficos utilizados em sua impressão
muito cedo foram importados da Alemanha (início da década
de 1930), colocando suas oficinas entre as mais modernas do
mundo. Em suas páginas foram publicadas algumas das mais
importantes reportagens da história do jornalismo brasileiro,
por suas redações passaram alguns dos melhores repórteres
brasileiros, como David Nasser, Armando Nogueira, Audálio
Dantas, Luiz Carlos Barreto, e outros.
O principal deles, sem dúvida, foi David Nasser (1917
–1980), que além de repórter foi um de seus principais
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O Cruzeiro uma revista de imagens
diretores (a partir de 1959) e também escritor, além de
letrista de sambas famosos. Trabalhou em O Cruzeiro entre
1943 e 1974. A seu respeito, estudiosos e ex-companheiros
de trabalho são quase unânimes em dizer que possuía
uma habilidade sem igual para escrever uma história, mas
também para exagerar na cobertura dos assuntos e mesmo
para inventar reportagens.
O Moderno fotojornalismo
Em 1943, chega às redações da revista o sensacionalista
e hábil fotógrafo francês Jean Manzon. Ele foi o principal
responsável pelas mais importantes mudanças gráficas
ocorridas na história de O Cruzeiro, e mesmo na história
das revistas ilustradas brasileiras. implantou na revista o
“moderno fotojornalismo” e, com isto, as páginas e as fotos
aumentaram de tamanho. A partir de então, passou a ser
comum que uma única foto ocupasse até mesmo duas páginas,
o que as transformava em um único grande espaço.
As fotos passaram a ser editadas predominantemente
sem as tradicionais margens brancas, o que causava a
impressão de que continuavam para fora da página da revista,
fazendo com que parecessem maiores. Começaram também a
ser dispostas de maneira a contar uma história, sem ou com
pouco auxílio dos textos, que encolheram muito de tamanho.
iniciava-se uma era em que a comunicação das revistas
tornava-se mais ágil com o uso de imagens que se sucediam
em um ritmo parecido ao do cinema.
Outras mudanças importantes também ocorreram; uma
das mais significativas foi a formação de duplas de jornalistas
para a produção de matérias e reportagens, em que um
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
produzia o texto e o outro as fotos. Nascia, desta forma, a mais
famosa de todas, a formada pelo experiente David Nasser, que
já trabalhava na revista e o recém chegado Manzon.
O gosto do público pelo trabalho da dupla transformou-
os em estrelas da imprensa brasileira. A fama dos dois ajudava
a vender revistas, seu trabalho passou a ser cercado pelo
sensacionalismo, as reportagens que faziam eram anunciadas
antecipadamente e tratadas como verdadeiras aventuras
marcadas pelo perigo e pela ousadia. O Cruzeiro chegou a
inserir, em diversos momentos, fotos da dupla como parte
das reportagens para reforçar a veracidade daquilo que se
publicava.
Mostrar suas fotos era como certificar de que estiveram
nos locais inóspitos onde se realizavam as reportagens (coisa
que nem sempre aconteceu de fato), em meio aos perigos
e desafios. Agindo dessa maneira, a revista transformava-
os em homens corajosos e aventureiros, uma espécie de
“desbravadores de assuntos”, que faziam de tudo para
“Mostrar o Brasil aos brasileiros” por ângulos nunca antes
vistos na imprensa brasileira.
Temas da cultura, os “tipos brasileiros”, as formas
tradicionais de trabalho e muitos outros, semanalmente,
chegavam às mãos dos leitores que aumentavam mais e mais.
Em “República do Peixe” podemos perceber o resultado
das reformulações gráficas na revista: o título, o subtítulo,
legendas e alguns pequenos boxes estrategicamente colocados
na reportagem, praticamente dispensavam que o público
soubesse ler, pois a comunicação, a partir de então, passou a
ser feita principalmente pelas imagens, que mudaram de estilo,
passaram a expressar a sensação de movimento e a ser tomadas
por ângulos diferentes, o que as tornava mais atraentes.
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O Cruzeiro uma revista de imagens
Além de Manzon, O Cruzeiro abrigou fotógrafos de
primeira linha tais como: Flávio Silveira Damm, José Araújo
de Medeiros, indalécio Wanderley, Ed keffel, Henri Ballot
e outros, chegando a manter um elenco de 25 fotógrafos
contratados além dos colaboradores.
“República do Peixe” David Nasser e Jean Manzon, 23/09/1944
A reportagem “Orós”, publicada em 19 de março de 1960,
com texto de Luiz Carlos Barreto e fotos do próprio Barreto
e Alencar Monteiro, é um exemplo das inovações editoriais
implantadas em O Cruzeiro e mostra que, com o passar dos
anos, os padrões se modernizaram ainda mais, superando
inclusive as concepções praticadas por Manzon.
As grandes tiragens aumentaram proporcionalmente
a importância da equipe de fotógrafos e repórteres. Essa
respeitabilidade alcançada acabou por se traduzir no avanço
da própria categoria.
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
O sucesso atingido por O Cruzeiro foi tanto que mudaram
os parâmetros profissionais vigentes. A partir de então,
trabalhar em O Cruzeiro passou a ser o sonho para qualquer
profissional da época, pois a fama, além de trazer dinheiro,
trazia respeitabilidade, o que facilitava a vida de todos.
“Orós”, 19/03/ 1960
Essa trajetória de glórias, proporcionada principalmente
pela implantação do moderno fotojornalismo, começou a ser
interrompida. Primeiramente pelo adoecimento repentino de
Chateubriand, no início de 1960. Depois com as mudanças
nas estruturas da mídia brasileira, provocadas pelo golpe
militar de 1964, fato que Chatô tão ardosamente apoiou e no
fim vitimou suas poderosas e frágeis empresas.
Os desenhos
Em O Cruzeiro, no período de 1928 a 1940
aproximadamente, as imagens – desenhos, charges e fotos
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O Cruzeiro uma revista de imagens
– serviam mais para explicar, demonstrar e acrescentar
informações ao texto escrito, que era o principal conteúdo da
revista. Podemos dizer que as imagens, embora fossem muitas
e importantes, eram usadas para seduzir e atrair a atenção dos
leitores, que deviam fascinar-se pela beleza ou se interessar
pelos assuntos mostrados, enquanto praticamente todas as
informações eram trazidas pelo texto escrito.
Os desenhos imperavam, significativamente, a começar
pelas capas, que eram verdadeiras obras de arte. O fato de
serem geralmente assinadas pelo autor, como uma pintura,
reforçava esta característica. As capas eram limpas, nelas
predominava o título “O Cruzeiro”, em destaque na parte
superior da capa, em um tipo de letra que mais parecia um
desenho do que uma letra produzida por máquinas, logo
abaixo, em letras menores e mais finas o subtítulo “Revista
semanal ilustrada”, em itálico, e o preço um mil réis (a moeda
da época), significado por um “1$” e o desenho que ocupava
cerca de oitenta por cento, espaço disponível nas partes
intermediárias e inferior da capa. Não havia sequer chamadas
para os assuntos que a revista traria naquele número, nem
mesmo a data ou o número da publicação impressos.
Para a pesquisadora Ana Cristina Teodoro da Silva, historiadora
e autora do trabalho “O tempo e as imagens de mídia: capas de
revistas como signo de um olhar contemporâneo” em que pesquisou
o funcionamento das capas de revistas: “A utilização de estereótipos
corporais, de cores em seu sentido mais didático, de tipos e símbolos de
fácil e ágil leitura fazem da capa um atrativo fugaz, de rápida duração.
Com isso é reforçada a busca por sínteses “eficazes”, que digam muito
em pouco espaço e em pouco tempo. O acúmulo de informação seduz,
oferecendo agilidade e síntese”. (SILVA, 2003)
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
A figura de uma bela mulher desenhada imperava
enquanto modelo de capa. É importante notar que na maioria
dos casos a imagem feminina apresentada era a de uma
mulher moderna, arrojada. O apelo à sensualidade (se havia)
deveria ser discreto, tendendo mais para um charme ousado
e misterioso do que para algo mais explícito, que as pessoas
pudessem considerar apelativo; isto certamente chocaria o
público e colocaria em risco o espaço e o respeito da revista.
Capa, 16/08/1930
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O Cruzeiro uma revista de imagens
Temos de considerar que a escolha desse modelo “bem
comportado” devia-se ao fato da sociedade ser conservadora
e tradicionalista. Naquele tempo (1930), para entrar nos lares
das famílias brasileiras, uma revista deveria antes de mais
nada ser discreta em suas opiniões e posturas e, ao mesmo
tempo, parecer avançada, inovadora, destemida para agradar
ao público mais liberal.
Neste sentido, nada mais lógico do que mostrar, por
exemplo, a figura de uma mulher piloto de corrida (o que
ocorre na capa da edição de 11/01/1930). É certo que, embora
pouquíssimas, existiam mulheres piloto no mundo e ao
menos uma no Brasil. Mas o que poderia representar uma
imagem dessas publicada em uma capa de revista daquela
época? Principalmente se levarmos em conta que não havia
no interior da revista nenhuma reportagem sobre o assunto.
Podemos facilmente imaginar o quanto uma figura
como essa deve ter causado de polêmicas e críticas em uma
sociedade em que pilotar automóveis de corrida era coisa para
homens – e mesmo assim para homens corajosos – o que
muita gente, inclusive muitas mulheres, não deviam pensar
desta ousadia?
Por outro lado, provavelmente esta imagem deve
ter mexido com a cabeça de muitas mulheres “modernas”,
insatisfeitas por não poder trabalhar fora, disputar eleições e
praticar outras atividades que, na época, eram consideradas
tipicamente masculinas. isto já mostrava um tipo de
direcionamento da publicação ao público feminino, atraindo
simultaneamente a atenção do público masculino.
Um estudo do conjunto das capas mostra que o uso
de desenhos era um estilo, mais uma opção do que apenas
uma limitação técnica. Ocasionalmente publicavam-se
fotos na capa.
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
Com o decorrer do tempo, as capas mantiveram a tradição
de personagens femininas, a diferença é que começaram a
aparecer em fotos retocadas e coloridas à mão, que pareciam
ainda desenhos e, somente mais tarde, em fotografias
(geralmente de alta qualidade, coloridas e produzidas em
estúdios), sem retoques perceptíveis.
As propagandas usavam majoritariamente desenhos
ainda no início da década de 1950. Por meio de desenhos,
oferecia-se ao consumidor uma enorme variedade de serviços
e produtos. Hoje, ao folhearmos estas revistas facilmente
encontramos propagandas desenhadas de produtos
farmacêuticos (que apareciam em grande quantidade),
mobiliários, louças sanitárias, sapatos, bebidas, máquinas de
escrever, vitrolas, discos, rádios, e etc.
Propagandas do “Espumante Único” e “iofoscal”, Contracapa 11/09/1937
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O Cruzeiro uma revista de imagens
Destaca-se, entre eles, especialmente os produtos
dirigidos às mulheres, que despontavam enquanto um grande
público consumidor e que por isso merecia atenção especial
de O Cruzeiro.
Propaganda do “Pó de Arroz Lady” - 07 09 1931
Havia uma série de seções especialmente direcionadas
a elas, algumas sob títulos gerais como “Moda” ou “Culinária”,
que permaneceram na revista ao longo de quase toda sua
trajetória, e outras mais específicas como “De Mulher Para
Mulher”, direcionada aos “conselhos femininos” que esteve
presente nas páginas da revista por um período de tempo
menor, mas que mesmo assim foi publicada por algumas
décadas.
Nas propagandas, usavam-se também fotografias, o
que mais uma vez demonstra que havia os recursos técnicos
para isto, e que o uso de desenhos era, também neste caso,
28
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
uma opção, uma forma de corresponder ao gosto do público,
ainda muito acostumado a esse tipo de comunicação e uma
opção pela qualidade, entre outros motivos, pois os desenhos
permitiam ressaltar detalhes e o farto uso de cores, coisas que
ainda estavam se desenvolvendo na fotografia e nas técnicas
para imprimi-las.
A propaganda do “Purgoleite” (um tipo de remédio),
foi elaborada a partir de uma montagem de imagens. Pode-
se perceber que a fotografia de um ginásio de esportes ocupa
o plano de fundo, sobreposta pelos desenhos de caixas do
“purgativo e laxativo” e de “comprimidos robôs” que disputam
uma corrida.
Propagando do “Purgoleite”, 08/01/1944
29
O Cruzeiro uma revista de imagens
Seção “Caricaturas no Estrangeiro” e Charge de Belmonte “Hontem e Hoje”, 28/06/1930
Havia, ainda, as propagandas exclusivamente escritas, o
que demonstra a importância do texto escrito e pressupõe um
leitor, no mínimo, alfabetizado, uma vez que os textos eram
longos e escritos em português culto.
As Charges, Caricaturas e Cartoons
As charges, caricaturas e cartoons eram variados e
possuíam, nas primeiras décadas da revista, um perfil diferente
do que ganhariam depois.
Naquele tempo (1930), a seção “A Caricatura no
Estrangeiro”, como o próprio nome diz, reproduzia tiras e
quadros publicados em jornais internacionais como L’ Esquella
de Torratua, de Barcelona na Espanha, o Humoristicke Sisti,
30
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
de Praga, na Hungria, do The Passing Shaw, de Londres, e
outros que se alternavam de uma publicação para outra. Esta
era uma forma de apresentar ao público brasileiro o traço e
os modelos de desenhos que circulavam o mundo, além de
ajudar a dar um caráter internacional à publicação.
Quando essa seção dividia espaço com as charges do
cartunista brasileiro Belmonte (1896 – 1947), por exemplo,
estabelecia-se quase que naturalmente uma comparação
entre o que se fazia no Brasil e o que circulava pelo mundo.
Aqui, Belmonte observa a mudança dos costumes do século
XiX para o século XX, em charge intitulada: “Hontem e
Hoje”, por Belmonte.
No quadro, representando o ontem (1830), aparecem:
ao lado esquerdo, um casal de jovens vestidos de forma
discreta, adequada à época, com expressão assustada, como
que surpreendidos em atitude inadequada em plena rua;
ao lado direito, um senhor de pistola em punho e guarda
costas negro, um provável escravo, com sorriso sádico. A
legenda informa “1830. Em plena rua, Elle, ella e o pae. Fim
de scena levemente amorosa. O Pae: [acusando o rapaz]
Bandido! Manchaste minha honra, conversando em público
com a minha filha !! Vaes morrer libertino !! Pum. E fazia
uma lavagem em regra da “honra ultrajada’... ”. No quadro,
representando o hoje (1930), ao lado esquerdo também
um jovem casal, só que desta vez confiante e sorridente,
com roupas mais arrojadas, modernas para a época, ela
inclusive usando um vestido curto e o rapaz trajando um
terno despojado e chapéu do tipo paleta, parados defronte
um automóvel (sinônimo da modernidade e um lugar pouco
indicado para garotas de “boa família”, na década de 1930).
À esquerda, um senhor de chapéu côco e bengala, com
expressão sorridente.
31
O Cruzeiro uma revista de imagens
Dessa vez, a legenda comenta: “‘1930... Em plena rua
Elle, ella e o pae. Fim de scena cinematograficamente amorosa.
ELLA... Papae! quero apresentá-lo a um novo amiguinho meu.
Elle quer levar-me ao cinema mas você precisa emprestar-nos
dez mil réis!...’ ”
No primeiro quadro, “O ontem”, quem determina as
ações é a figura de um pai rigoroso, preocupado com a honra
da família. No segundo, “O hoje”, quem as determina é a filha
liberal, em sintonia com os “tempos modernos”.
Embora uma charge – assim como qualquer imagem
– possa ser lida de diversas maneiras, a comparação de
esteriótipos do namoro e dos comportamentos e suas
mudanças nos cem anos que separam 1830 e 1930 sugere uma
exagerada liberalização dos costumes. Para que ela fizesse
sucesso, ou mesmo fosse compreendida, é importante que
o assunto estivesse em discussão e a sociedade preocupada
com isto.
Em 1943, começou a ser publicada a célebre charge O
Amigo da Onça, de Péricles Maranhão (1924 – 1961). Com
o passar dos anos, tornou-se a mais famosa e importante
série de charges publicada em O Cruzeiro e uma marca que
consagraria definitivamente a revista no gosto do público.
A linguagem de Péricles era objetiva, o autor utilizava-
se pouco de palavras. Em seu trabalho, a comunicação era
mais direta, utilizando-se muito da cor e dos movimentos dos
personagens retratados e dispensando normalmente textos
e legendas – o que o colocava em sincronia com o moderno
fotojornalismo que, como vimos, também se comunicava mais
pelas imagens.
Mais tarde, nasceram outras páginas e seções de
caricaturas, charges e cartoons, os quais se tornaram parte do
rico acervo de desenhos de O Cruzeiro.
32
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
A página de Borjalo (1925 – 2004), por exemplo, circulou
entre as décadas de 1950 e 1960.
21/01/1961
Na charge, intitulada “Cabo Cañaveral”, aparecem
minúsculos dois militares ao lado de um conjunto de foguetes
enquanto um comenta “– Não há dúvida, sargento. O estilo
é gótico”, uma alusão ao estilo das catedrais medievais
construídas a partir do século Xii em diversas partes da Europa,
e que possuía, como uma de suas principais características, o
uso dos arcos em forma de ogiva, tal qual a ponta dos mísseis
do desenho.
33
O Cruzeiro uma revista de imagens
Cabo Cañaveral é uma referência direta ao mais famoso
centro de lançamentos de foguetes dos Estados Unidos, de onde
partiram várias missões espaciais e se desenvolveram projetos
de mísseis, durante a chamada “Guerra Fria” (1947 – 1991),
um conflito que opôs países do chamado bloco capitalista ao
chamado bloco comunista ou socialista e que manteve por
décadas o mundo à beira de uma guerra nuclear.
Mais uma vez o cotidiano em discussão, agora com uma
crítica política sutil que apresenta militares que parecem
apenas entender sobre os aspectos estéticos, a aparência, o
“estilo” dos poderosos mísseis que possuíam.
Na revista, trabalharam ainda Milton Fernandes, o
Millôr, Hilde Weber Abramo, Antônio Gabriel Nássara, o
Nássara, Amilde Pedrosa o APPE, Ziraldo Alves Pinto, o
Ziraldo, além de muitos outros.
Considerações Finais
Todo este conjunto de excelência formado por gráficas,
pelas grandes tiragens, seus ótimos repórteres, fotógrafos,
chargistas, cartunistas, desenhistas e editores, somados à
opção estética pelo moderno fotojornalismo e à influência
de Chateubriand presentes na revista O Cruzeiro funcionava
articuladamente e cada um deles contribuiu para torná-la uma
publicação única do gênero no Brasil.
Durante os quase cinquenta anos em que O Cruzeiro
circulou (entre 1928 e 1974), lançou modas, reforçou costumes
e influenciou bastante a vida política e cultural do país. Seu
estilo influenciou diretamente a criação da revista Manchete
e indiretamente a de várias outras. Chegou a ser considerada
34
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
por alguns, – talvez de forma um pouco exagerada – como a
“Rede Globo da década de 1950”.
Podemos dizer, hoje, que a revista ocupa um lugar
importante na história da cultura brasileira. Como vimos, nos
textos, fotos, desenhos, charges, caricaturas e propagandas
de O Cruzeiro, podemos buscar informações sobre inúmeros
aspectos da própria história recente do Brasil.
O estudo de conjuntos das revistas publicadas ajuda
a perceber, ainda, aspectos da evolução da imprensa
brasileira, pois ela foi uma publicação que fundou, no Brasil,
novos modelos de se fazer revistas, mudanças do olhar, na
medida que nos acostumamos a ler certos tipos de imagens,
além de permitir perceber outros importantes aspectos do
funcionamento dos meios de comunicação.
Por meio do seu estudo, podemos também aprender
sobre a história da moda, pois afinal este segmento de
mercado não existiria se não houvesse como divulgar os
novos modelos e tendências, sobre a evolução do cotidiano
e dos comportamentos, pois, como vimos, ao circularem as
propagandas de produtos industrializados e modelos de
comportamento contribuíram para que o público passasse a
consumir estes artigos e mesmo estilos de vida.
Devemos considerar ainda a importância da revista
para o estudo da história política do país, uma vez que era
lida por muitas pessoas que a recebiam como a única fonte
de informações para formar suas opiniões com relação a
candidatos, projetos de governo, etc.
Mas também devemos sempre considerar que a revista
apresentava apenas um lado dos acontecimentos, que ela tinha
um proprietário e um corpo editorial que definiam a linha
da revista (a forma como os assuntos iriam ser publicados,
35
O Cruzeiro uma revista de imagens
quantas páginas seriam dedicadas para cada assunto, que tipo
de fotos usariam e até mesmo que palavras seriam escolhidas
para compor os títulos e subtbtítulos), que dependia de vender
propagandas para existir e isto acabava dirigindo e limitando
as escolhas dos jornalistas e editores e a forma como seria
apresentado seu conteúdo.
Esses cuidados que o historiador deve ter, por obrigação,
ao estudar este, ou qualquer outro tipo de fonte – pois afinal
toda vez que estudamos um documento, devemos saber quem
o escreveu, a que classe social pertencia, que tipos de interesses
defendia etc – não são a rigor muito diferentes dos que o leitor
deveria ter, por precaução, ao ler uma revista.
Por meio dessa breve discussão, pudemos perceber
que esta ou qualquer outra revista oferece-nos excelentes
oportunidades de aprender um pouco mais sobre o passado e,
consequentemente, sobre o presente.
37
Um pouco sobre o personagem
Baixinho, porém de porte atlético, nariz adunco, olhos
grandes e arredondados, com sua vestimenta inconfundível,
nasce, nos traços de Péricles Maranhão, o personagem O Amigo
da Onça. Nas paginas da revista O Cruzeiro, O Amigo da Onça
dá “o ar de sua graça” em 23 de outubro de 1943 mantendo
sua publicação praticamente regular durante os mais de 30
anos seguintes em que a revista foi publicada. Após a morte de
seu artista criador, em dezembro de 1961, dá continuidade ao
personagem, Carlos Estevão. Este já trabalhava na revista com
desenhos de êxito como Perguntas Inocentes e As aparências
Enganam, ficando até o ano de 1972.
Partindo de uma piada em voga na época, (vide
box), ao artista Péricles Maranhão foi dada a tarefa de
captar a personalidade do carioca típico em seu rótulo de
“malandragem”.
As raízes de O Amigo da Onça, personagem então
caracteristicamente brasileiro, estão, por sua vez, no The
Enemies of man, da revista americana Esquire, que deu origem
ao El enemigo del hombre, da revista argentina Pataruzy.
As piadas de O Amigo da Onça causavam humor e
Quem é O Amigo da Onça?
Ana Flávia Dias Zammataro
38
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
a essência delas dava
sentido ao nome do
personagem principal –
Amigo da Onça – aquele
que é para desmascarar,
para entregar o próximo
em seus deslizes físicos e
psicológicos, para satirizar
a corrupção política, para
rir da hipocrisia social
daquele momento.
O primeiro O Amigo
da Onça – considerado
charge1, pela sua legenda,
de 23/10/1943 – foi
republicado em 02 de
fevereiro de 1962, logo
após a morte de Péricles
Maranhão (ver página seguinte). Sem hesitar, O Amigo da
Onça entrega o personagem que sai intencionalmente – ou
não – pagando menos: “Foi esse aí mesmo, seu trocador. Só
botou ‘um tostão’”.
1 Notemos a legenda do cartum: “O Cruzeiro inicia nesse número, a reprodução de piadas de ‘O Amigo da onça’, charges do desenhista Péricles, recentemente falecido. Essa foi publicada em 1943, quando a passagem de ônibus, no Rio, custava dois tostões. Era pago com moedas, no caixa, à saída.” A imagem corresponde a uma das primeiras, então feitas, do artista Péricles, e que, após a sua morte, em 1961, foi publicada pela O Cruzeiro retomando a obra do artista.É curiosa, também, a conceituação da imagem feita pela revista como charge, na legenda. Partindo das leituras feitas para esse artigo consideramos, no entanto, a imagem como cartum, ja que é “desenho humorístico que privilegia, geralmente, a crítica de costumes, satirizando comportamentos, valores e o cotidiano” (RIANI, 2002, p. 26)
Dois caçadores conversam em seu acampamento:— O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente?— Ora, dava um tiro nela.— Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?— Bom, então eu a matava com meu facão. — E se você estivesse sem o facão?— Apanhava um pedaço de pau.— E se não tivesse nenhum pedaço de pau?— Subiria na árvore mais próxima!— E se não tivesse nenhuma árvore?— Sairia correndo.— E se você estivesse paralisado pelo medo?Então, o outro, já irritado, retruca: — Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
39
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
As vestimentas dos personagens são características da
época, quando mesmo no calor do Rio de Janeiro, vestia-se
roupas “pesadas”: calças compridas, terno, sapatos sociais,
seguindo os padrões da moda. A roupa do personagem
trocador se diferencia dos demais. São mais simples, um
terno que está um pouco fora de suas medidas, pochetinha
remendada e sapatos comuns. Esses elementos indicam que o
seu trabalho é mais humilde e que não lhe provê muitos recursos
materiais. O plano de fundo da imagem mostra, também, um
Rio de Janeiro ainda em fase de crescimento urbano, com um
sombreamento de prédio e, claro, o transporte público.
O Cruzeiro, 02/02/62
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Consideramos as imagens trabalhadas, como cartuns:
abordagens cotidianas e universais de temas que não
dependem de um espaço e de uma temporalidade específica
para serem compreendidas. Há imagens que, ao contrário, são
temporais, tratando de assuntos da época. São, desse modo,
consideradas charges.
O personagem com seu humor e crítica obteve sucesso
entre os leitores, associando-se isso, também, como um dos
motivos para a grande tiragem da revista. O cartum, a seguir,
pode confirmar isso, nele temos O Amigo da Onça como
personagem único e central na imagem.
O Cruzeiro, 02/12/50
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
41
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Sua posição em relação aos objetos do cartum lhe dá um
lugar de destaque. Através de sua fala notamos que o olhar é
dirigido ao público leitor. O Amigo da Onça apresenta-se como
gerente e articula sua fala para justificar o aumento do preço
da revista O Cruzeiro. Em formato de poema, o personagem
busca o convencimento do leitor utilizando o argumento de
que todos os gêneros têm seu preço elevado:
“Levanta os preços a feira
Sobe o bonde sobe o trem,
Até mesmo a lavadeira
Levanta o preço também
Se sobe o preço o teatro
E o preço o sapateiro,
É justo que vá para quatro
Um exemplar d’O Cruzeiro
Sobe o feijão, sobe o milho,
Ja nada vale o dinheiro,
Sobe muito o café, filho,
Tem que subir O Cruzeiro
Ninguém promova levante,
Nem se zanguem pechincheiros,
Que um Cruzeiro assim brilhante,
Vale bem quatro cruzeiros.”
Não há dúvidas de que esse cartum foi encomendado,
dando a Péricles Maranhão seu conteúdo e colocando a própria
imagem da revista como temática central: são os interesses da
42
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
O Cruzeiro que estão em jogo. O Amigo da Onça se apresenta
com sua vestimenta tradicional, assim como foi criado por
Péricles. O ambiente privado do trabalho em que se encontra
lhe dá a base necessária para atuar como gerente e comunicar
o aumento do valor da revista.
Nos mais diversos temas, O Amigo da Onça satirizava
costumes, a hipocrisia, o jogo de aparências; por vezes, fazia
críticas à política, nesse caso se dirigindo a abordagens muito
específicas de seu momento.
A partir da década de 50, mais particularmente na
segunda metade, os ambientes privados em detrimento dos
públicos passaram a ganhar espaço nos cartuns O Amigo
da Onça. isso se deve ao imaginário em formação no qual
fervilhavam as perspectivas de desenvolvimentismo e
modernidade, associados a ideais de consumo. Dessa forma,
as propagandas, charges e reportagens, invadiram o universo
privado dos indivíduos, relatando o seu cotidiano, fazendo
críticas à instituições como a da familia e demonstrando por
meio da cultura material (conjunto de objetos dos quais
utiliza determinada sociedade) os valores do consumismo
com a presença de televisores, aspiradores de pó, entre outros
elementos que “facilitaria a vida das donas de casa”.
Péricles Maranhão lançou mão desses ideais de
consumo em suas abordagens, utilizando-os como meio
para provocar o riso e para se fazer críticas, satirizando a
ordem então estabelecida. Nessa medida, eletrodomésticos
e eletroeletrônicos poderiam não somente fazer parte da
imagem como objeto para compô-la, mas também como peça-
chave para a sua temática.
Caracterizado de maneiras diversas, O Amigo da Onça já
foi louco e médico, jovem, velho e adulto, pai, filho, pedreiro,
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
garçom, engraxate, se vestiu de mulher, foi ele por ele mesmo.
E, assim, por meio de suas piadas, chamava a atenção do
público de todas as idades. Leitores e não leitores assíduos
da revista esperavam ansiosos por mais uma peripécia do
personagem, fosse através da compra de mais uma edição da
O Cruzeiro, fosse por uma olhadela rápida na página do O
Amigo da Onça nas bancas.
O cartum de 1958 tem a televisão como objeto do qual
utiliza O Amigo da Onça para dar o sentido de seu humor,
simbolizando a perspectiva de consumo. A novidade vem
também com O Amigo da Onça jovem, caracterizado como
criança na imagem.
O Cruzeiro, 05/04/58
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Notemos que há dois tempos no cartum, divididos
pelo artista em partes “i e ii”. O Amigo da Onça criança
está tipicamente caracterizado: com meias 3/4, sapatinhos e
um pouco mais cabeludo que O Amigo da Onça adulto. Sua
fisionomia parece ser a de quem está distraído, com um ar
despreocupado, lendo o seu livro ao lado da TV. No primeiro
quadro, o indivíduo que a assiste se mostra empolgado com
as cenas exibidas. Ele se curva para frente em sua poltrana,
contorce o corpo, arregala os seus olhos; empolgação essa que
o levou ao ato de babar, recurso que utilizou Péricles como
modo de enfatizar o estado de euforia do personagem, mas
ao mesmo tempo para ridicularizá-lo. Os elementos em volta
de sua cabeça – a espiral, as hastes, e os corações – indicam
um homem embasbacado com o que vê, apaixonando-se pela
imagem da mulher na televisão.
Num segundo momento, O Amigo da Onça criança,
aproveitando-se da posição que ocupa, sente-se à vontade
para se apoiar no botão da tv, des-sintonizando-a. Há aí, uma
quebra de continuidade às reações de euforia do personagem
ao ver a moça na televisão. Ele é surpreendido pela peça
pregada pelo “amiguinho” que “ingenuamente” fez com que
o aparelho ficasse fora de sintonia. O personagem mais uma
vez curva-se para frente, entretanto, indignado e furioso com
a ação do Amigo da Onça, levando a mão à face, curvando
as sobrancelhas e abrindo a boca numa atitude de surpresa e
ódio, confirmados pelas estrelinhas em volta de sua cabeça.
Na particularidade do lar do indivíduo, O Amigo da
Onça adentra com suas armações ironizando elementos que
davam status social. O televisor – tão almejado pelas famílias
brasileiras naquele momento – sinal da modernidade e do
consumo estava na ordem dos paradigmas impostos por
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
45
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
esses símbolos; tê-lo era sinônimo de bem-estar e de status.
Péricles, entretanto, utilizou desse elementos para levar o
leitor ao riso.
Da mesma maneira que poderia ser criança, O Amigo da
Onça já aparecera também como velhinho.
Muito atual e crítico, O Amigo da Onça velhinho nesse
cartum, dá o sentido necessário para a sua compreensão
pelo leitor. Em um ambiente carcerário O Amigo da Onça
representa o advogado que “finalmente” conseguiu provar
a inocência de seu cliente. O velhinho cliente com sua longa
barba branca indica que ele está ali há tempos, mas também
O Cruzeiro, 22/10/60
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
alguns recursos dos quais Péricles utilizou: a contagem dos
anos na parede feitas pelo próprio velhinho – de 1923 até
a data atual do cartum – os desenhos sobre algum crime
cometido no plano de fundo da imagem e também os objetos
no primeiro plano, a moringa de barro e um livro, que pelo
crucifixo indica ser uma bíblia, já gasta pelo tempo.
A fala do Amigo da Onça simboliza uma justiça lenta,
discussão muito pertinente ainda nos dias de hoje, que
somente depois de passados tantos anos conseguira provar a
inocência de um individuo: “Pronto, rapaz! Consegui afinal,
provar tua inocência. Vais começar vida nova!”. Percebemos
a ironia no tom de sua fala, como se tivesse conseguido provar
a inocência do seu cliente de imediato, fala essa que contrasta
com a fisionomia do cliente com um olhar baixo e desanimado,
denotando a sua tristeza por ter estado ali tantos anos –
elemento esse que leva ao riso. O Amigo da Onça, nesse caso,
representa não somente ele mesmo como “amigo da onça” que
é, mas caracteriza uma justiça insípida e lenta, no Brasil, uma
justiça a favor dos ricos e contra os pobres, uma justiça, afinal,
“amiga da onça”!
Uma característica marcante é seu egoísmo muito
aguçado já que sempre pensa em si mesmo em detrimento do
próximo, visa sempre a própria vitória, o seu bem-estar, não
importando de que maneira. Podemos notar isso nas inúmeras
imagens publicadas, mas há aquelas em que seu egoísmo nato
se torna mais latente. Principalmente se tratando da conquista
de mulheres bonitas, O Amigo da Onça não hesitava em
expressá-lo.
isso se torna claro no cartum a seguir, no qual temos
prováveis náufragos em alto mar deitados sobre um pedaço de
madeira, o que pode ter sobrado da barco. O Amigo da Onça
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
não deixa de tirar vantagem sobre a distração do homem:
dormindo que está ao lado de uma linda mulher, O Amigo da
Onça passa o serrote na intenção ficar só, com a mulher e os
mantimentos, que ficaram no seu lado da prancha. A mulher,
é claro, tem um tipo físico dos padrões ditados naquele
momento: cintura fina e quadris largos e arredondados. O
Amigo da Onça não hesita, então, em pôr a vida do outro em
risco para satisfazer as vontades próprias. As intenções do
Amigo da Onça são muito bem caracterizadas nesse cartum,
simbolizando os sentidos de seu próprio nome – O Amigo da
Onça – prejudicando o outro em benefício próprio.
Os diferentes modos pelos quais o personagem se
apresentava na imagem lhes davam base para conseguir aquilo
que queria. O cartum da página seguinte é cotidiano e se passa
num ambiente corriqueiro do trabalho.
O Cruzeiro, 31/07/1954
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Ao acender seu cigarro, o Amigo da Onça rompeu o ciclo
de trabalho. Distraído deixa de pegar o tijolo, passando por
ele e acertando a cabeça de um indivíduo que passa na rua,
em frente à construção. Sua expressão demonstra a sensação
de dor pelo ocorrido, acompanhado da feição de surpresa
do sujeito que vem logo atrás dele. A ingenuidade irônica do
Amigo da Onça é o risível da imagem, que, juntamente com o
mote de surpresa que a queda do tijolo na cabeça do indivíduo
causa, leva o leitor ao riso imprevisto.
Como imagem do cotidiano ela indica que era muito
comum construção em meio ao trânsito de pessoas, levando
a acidentes de trabalho, talvez não intencionais como o
O Cruzeiro, 02/11/49
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
causado pelo Amigo da Onça. Faz parte também do processo
de desenvolvimento das cidades, demolindo o antigo e
inaugurando o novo.
Para atuar como O Amigo da Onça o personagem poderia
ser tudo o que ele quisesse, poderia até mesmo estar ausente na
imagem, mas presente através de suas armações. Dessa maneira,
não seria nada incomum um “amiguinho” caracterizado como
qualquer animal. O interessante da imagem abaixo é justamente
essa caracterização particular do personagem.
Não há seres humanos presentes, mas sim dois ratinhos.
O Amigo da Onça foi zoomorfado ou o ratinho foi humanizado,
para compôr o sentido do cartum. Sua abordagem é muito
universal, e mesmo que não se reconheça em um dos ratinhos
a feição do Amigo da Onça compreende-se o seu sentido. Ora,
O Cruzeiro, 14/02/59
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
ratos são animais que vivem nos lugares escuros das casas, são
atraídos pelo queijo e, como na imagem, são pegos através da
ratoeira – que simboliza que esse objeto é antigo, mas ainda
muito usado.
Péricles Maranhão utilizou o recurso da caricatura, já
que esse é um tipo de imagem que tende a reforçar as partes
mais relevantes da fisionomia de uma pessoa – seu orelhão,
seu barrigão, seu nariz grande, seus labios grossos ou muito
finos – , associando até mesmo a sua imagem a de um animal
revelando aspectos do seu psicológico. No caso do Amigo da
Onça a sua imagem associada a de um ratinho não se liga a
elementos de sua fisionomia, mas sim de sua personalidade:
sempre ágil, habilidoso em escapar de armações e de piada
pronta. O outro ratinho, no entanto, que sai da sua toca, é o
oposto do rato Amigo da Onça, já que vai ser pego por sua
“peça”. Esse ratinho tem um aspecto mais infantilizado, quase
que ingênuo, seu corpinho é mais cheio e o ato de babar feito
pelo traço de Péricles dá a esse um aspecto tolo. O ratinho
Amigo da Onça come o pedaço de queijo, que como indica o
plano de fundo da imagem, pegou da dispensa da casa e diz ao
outro: “Onde eu consegui este queijo?? Foi dali...” apontando
para o pedacinho que está na ratoeira. Sabemos que a ratoeira
é para pegar ratos, então nem mesmo como animalzinho
Amigo da Onça deixa de sê-lo (“amigo da onça”) aprontando
com suas peripécias.
O Amigo da Onça em sua trajetória: de Péricles
Maranhão a Carlos Estevão
Nascido em 14 de agosto de 1924, no Recife, Péricles
Maranhão, já desde muito jovem, quando estudava no Colégio
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Marista, publicava seus desenhos no jornal do colégio, sendo
quase que autoditada. Foi, no entanto, na década de 40 que
viu a sua carreira como desenhista “deslanchar”. Chegou ao
Rio ainda menor de idade com uma carta de recomendação
de Leão Gondim de Oliveira, então o “manda-chuva” dos
Diários Associados, rede de comunicação pertencente a Assis
Chateaubriand. Estreou em 6 de junho de 1942. No Diário
da Noite emplacou seu primeiro personagem cômico com
As aventuras de Oliveira, o trapalhão. Foi, porém, com o
irreverente O Amigo da Onça, em 1943, que se consolidou
como desenhista. Na tarefa de criar um personagem dinâmico
e que circulava por todos os meios sociais, Péricles deu vida a
fatos reais vividos naquele momento levados a ridicularização
pelo O Amigo da Onça.
Casou-se com Angélica Braga Guimarães, em setembro
de 1949, com quem teve seu único filho, Péricles. Separou-se
6 anos depois. Era um tipo simples, sem grandes inquietações
artísticas, com seu foco mais ligado ao emprego. Era dito
como um boêmio inveterado, pois adorava frequentar alguns
bares do Rio.
O Cruzeiro, 1962
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
O seu personagem obteve tanto sucesso que o criador e
criatura passaram a ser confundidos, por vezes identificados.
Há quem diga que o Amigo da Onça seria o alter-ego de
Péricles, pela aparência muito próxima entre o personagem e
seu artista. O que não fica muito longe para se afirmar. Ambos
– criador e criatura – tinham um rosto fino e anguloso, nariz
adunco, bigodinho, cabelos penteados para trás, à base de
gel. isso, no entanto, perturbava Péricles, que viu seu nome
ligado diretamente ao de seu personagem; era vinculado ao
Amigo da Onça, como se um fosse o outro, um fizesse parte
do outro.
As piadas foram inúmeras, abordando diferentes temas.
Haja imaginação! Péricles, nesse sentido, chegou a participar
de um de seus cartuns, como desenho animado. Talvez fosse
a falta de criatividade que estava, por um momento, pairando
a sua mente. Sua saída foi então, utilizar sua própria falta de
imaginação para compor a anedota da imagem.
O Cruzeiro, 27/10/56
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Através dela poderíamos compreender as “inquietações”
do artista que viu seu nome ligado ao de seu personagem e
teve, por quase 20 anos, sua vida regida por ele.
De 27 de outubro de 1956, temos um Amigo da Onça
que surge na privacidade do quarto de Péricles, em seu sono,
depois de uma noite, ao que tudo indica, de festa – taça de
bebida, roupas e sapatos espalhados, máscara de baile à
fantasia, etc – e mal dormida. A fisionomia de Péricles ao ser
acordado pelo Amigo da Onça demonstra irritação e as hastes
em volta de sua cabeça podem indicar – por que não? – um
Péricles de ressaca. O Amigo da Onça ao lhe dizer: “Como é
Péricles. Já desenhou a piada de hoje?” fá-lo participar da
anedota. isso indica que nem mesmo o artista de criação,
estava livre das peças que seu personagem pregava.
Notemos por meio dessa imagem que festas de máscaras
como diversão, era costume naquele momento. Com o Péricles
abordado em seu universo particular percebemos a disposição
dos móveis, as cores da imagem que nos revelam a cultura
material de então, saindo de um âmbito público, com anedota
que se passavam principalmente nas ruas, para um âmbito
privado.
Depois de desenhar para a revista por 18 anos
ininterruptos, sua morte foi surpreendente. Dezenas são
os motivos atribuídos ao suicídio do artista que, em 31 de
dezembro de 1961, trancou-se em seu apartamento no Rio de
Janeiro, lacrou todas as janelas e portas, ligou gás e ali ficou
até a morte.
Antes, porém deixou dois bilhetes. Um, apesar do
fato trágico, não deixou de ter seu mote de humor. Deixa
um recado atrás da porta: “Não risquem fósforos” e o outro
dizendo respeito às razões de seu suicídio.
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
As atribuições ao suicídio de Péricles Maranhão,
foram inúmeras e, por isso, não deixaram de ter alguma
associação com as imagens do Amigo da Onça que publicava.
Em um cartum, de 07 de maio de 1960, que podemos ver a
seguir, pouco mais de um ano antes de seu suicídio, a verve
humorística da anedota é justamente o gás ligado, no qual O
Amigo do Onça se protege em detrimento de sua esposa, que
ao sentir um cheiro estranho, desconfia do mesmo.
O humor desse cartum é um humor que, embora
cotidiano, é carregado em seu sentido. Apesar do ambiente
privado familiar abordado, as intenções do Amigo da Onça
transcendem o sentido da ironia, da sátira e da ridicularização,
intenciona a morte da esposa – essa com traços que
intencionalmente se aproximam do feio, do tosco. Ao dizer:
“Querido. Não esqueceste o gás do banheiro aberto??”
desconfia do cheiro exalado no ar, enquanto O Amigo da
Onça já se protege com uma máscara de oxigênio, claro, sem
sua esposa ver. A associação entre o gás ligado e o suicídio de
GUIMARÃES, 1987.
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
O Cruzeiro, 07/05/60
Péricles – da mesma forma – é, portanto, inevitável, embora
seja mera coincidência.
O cotidiano familiar muito comumente tematizado faz
parte do imaginário donde a vestimenta dos personagens e
os objetos presentes revelam os seus costumes. Trabalhando
com esse universo, Péricles trazia por meio do humor de seu
cartum intrigas familiares, sobretudo crises conjugais.
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Até o ano de 1965 originais dos desenhos de Péricles
continuaram a ser publicados pela revista. Após esse ano,
assume posto de artista da imagem, Carlos Estevão.
Também pernambucano de Recife, Carlos Estevão
nasceu em 16 de setembro de 1921. Nunca teve aulas de
desenho ou pintura, somente quando começou a trabalhar
na Secretaria de Agricultura, industria e Comércio fez seus
primeiros trabalhos como desenhista na área de arquitetura.
Casou-se aos 24 anos de idade com Neusa Torres Correa de
Araújo em 1945, com quem teve três filhos: Carlos Estevão,
Jáder e Dóris. Ficou casado até 1961. “Naquele ano, foi
homologado o desquite (ainda não havia divórcio no Brasil)
e Carlos foi morar em Belo Horizonte (MG) com Helena, sua
nova companheira, com que viveria até o final de sua vida.
Dessa união nasceu Stephanie.”2
2 Fonte: http://www.memoriaviva.com.br/carlosestevao/cemais.htm
www.memoriaviva.com.br/carlosestevao
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Vai para o Rio de Janeiro em 1946 onde, também,
começa a trabalhar nos Diários Associados, particularmente
na revista Diretrizes e no Diário da Noite, no qual Péricles
também trabalhava. Em 1948 emplacou com a tira cômica
Ignorabus, o contador de histórias e, logo depois, começa a
trabalhar em O Cruzeiro. Com suas ilustrações, na revista,
fazia ataques à vaidade feminina, abordava os martírios da
vida de casado, como em O casamento antes e depois e o Ser
mulher. Foi também, criador do personagem Dr Macarra, que
de uma maneira cômica falava sobre os fracassos da vida.
GUIMARÃES, 1987
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Ao receber o convite (ou a imposição?) para desenhar
o Amigo da Onça no lugar de Péricles a sua reação foi de
surpresa. Carlos Estevão, porém, deu conta do recado. Manteve
o espírito irreverente, debochado, satírico do Amigo da Onça
de Péricles, tanto no próprio traço do desenho, quanto no
conteúdo. Quando passou a desenhar O Amigo da Onça, a
imagem vinha com a legenda “Criação de Péricles. Original de
Carlos Estevão”.
Com espírito crítico, Carlos Estevão revelou o cotidiano
do seu tempo, fazendo do Amigo da Onça instrumento de
suas abordagens. Na ridicularização da sogra ou na denúncia
ao passado corrupto do político, o artista soube lidar com os
trâmites vividos naquela sociedade cheia de fissuras e em
constante transformação.
O Cruzeiro, 08/12/71
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Seus cartuns eram por vezes carregados em seu espírito
crítico, ou com o riso desprendido e despreocupado.
No cartum acima, aproxima-se da História em
Quadrinhos, pois há uma temporalidade dividida em três
partes que caminham rumo à conclusão da tira. É um cartum
de costume, que leva ao riso despreocupado intencionando
apenas o humor no leitor. O Amigo da Onça caracterizado de
uma maneira um pouco diferente da de costume, representa
o pastor dos carneiros que “colaboram” para o sono do
rapaz. Ele então, é revelador do antigo costume de se “contar
carneirinhos” para que o sono venha. O personagem que
dorme conta por pensamento os carneirinhos “...1214...
1215...1216...1217...” essas todas rebanhadas pelo pastor
Amigo da Onça, que parece estar vestido para isso. Num
segundo momento temos, a supressão da imagem do rapaz
que dorme para que a ênfase recaia na parada repentina de
sua contagem: “...2816...2817..zzzz”, significando que ele
finalmente conseguiu adormecer.
isso, no entanto, causa uma espécie de indignação no
pastor Amigo da Onça que ao notar que a contagem parou no
“2817”, número de destaque na imagem, emite a sua opinião
rumo à conclusão do terceiro quadrinho. Neste, o personagem
volta a aparecer e é repentinamente acordado pelo Amigo
da Onça que “ingenuamente” lhe avisa que há ainda mais
carneirinhos para serem contados: “Hei! Hei!... 2817, não!...
Ainda faltam 22!” O rapaz se assusta cerrando os dentes,
arregalando os olhos e contraindo pés e mãos; seus cabelos
espetados simbolizam também esse âmbito, fazendo parte
dos elementos de humor da imagem. É o Amigo da Onça,
personagem que representa os trâmites da realidade, mas é
fictício ao estar presente até mesmo na tranqüilidade do sono
das pessoas.
60
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
A imagem do quarto do personagem denota quanto
se tornava mais comum os temas se dirigirem a universos
privados. O plano de fundo e os objetos da imagem compuseram
a temática do cartum. Através desses últimos podemos fazer
um estudo dos costumes bem como da cultura material de
então: o criado-mudo ao lado da cama, a xícara, o abajur e o
livro indicam o costume da leitura antes de dormir.
O Cruzeiro, 1967
Carlos Estevão também trabalhou muito com imagens
de linguagem fácil e humor direto, às vezes, lançando mão de
cartuns sem falas. No cartum acima, a paisagem compõe o
tema da imagem. Carlos Estevão optou por um desenho sem
bordas definidas nem sombreamento, como se o tivesse feito
à maneira do personagem pintor Amigo da Onça: um quadro
de paisagem feito na tela com aquarela. A paisagem é amena,
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
as cores são leves para contrastar com o elemento que dá à
imagem o sentido de seu humor: as hastes presentes na água
demonstram que algo ou alguém está ali. A revelação vem
justamente pela obra do artista Amigo da Onça que pintando
a paisagem que está a sua frente capta os últimos segundos
do indivíduo que se afoga no rio: a sua mão, que parece pedir
socorro no quadro do Amigo da Onça é a última parte do seu
corpo a afundar. A surpresa vem pela reação do Amigo da
Onça – ou da falta dela – que é alheio àquilo que vê em sua
frente, não prestando socorro ao afogado.
É, pois, um cartum universal e de rápido entendimento,
sem falas, sem onomatopéias, sem elementos que necessitam
ser decifrados para sua compreensão. Pela vestimenta e pelas
ferramentas de trabalho do Amigo da Onça, pincel, aquarela,
maleta que carrega seus instrumentos, revela-se-lhe a sua
profissão: a boina tipicamente caracterizava a profissão de
artista plástico. O riso provocado pela cartum desprendia-se
do sério e do preocupado, buscando somente o humor pelo
humor.
Nessa próxima imagem podemos perceber o tom satírico
do Amigo da Onça fazendo mais uma de suas vítimas. A
abordagem da imagem é muito irreverente e atual. Em uma festa
ao tesoureiro do Banco Legal S/A – o nome do banco é também
uma ironia feita com a sua “legalidade” duvidosa – feita pelos
seus amigos, O Amigo da Onça lhe presenteia com um retrato
que “entrega” o seu passado como um condenado pela lei. As
roupas que está vestindo indicam que é ex-presidiário fator de
relevância negativa para quem tem um cargo de confiança na
tesouraria do banco como ele. Notemos que o Amigo da Onça
ao dizer: “Uma surpresa pra você, Waldyr... Mandei ampliar
aquela foto da nossa juventude!” não poupa nem a reputação
62
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
de si mesmo, já que como “amigo da onça” que é, intenciona
mesmo denunciar e desmascarar o colega perante os outros
– que apresentam todos, uma fisionomia de surpresa, de
preocupação, assim como a cara de assustado do personagem
Waldyr – mesmo que isso lhe custe à própria imagem.
Dando continuidade às armações do Amigo da Onça, –
e muito bem! – Carlos Estevão desenhou em O Cruzeiro até
o ano de sua morte. Faleceu em 14 de julho de 1972, em Belo
Horizonte.
O Cruzeiro, 15/04/67
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
63
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
Considerações Finais
Da multiplicidade de temas de O Amigo da Onça,
podemos perceber que o personagem mantinha a personalidade
então uma vez encomendada por Leão Gondim de Oliveira a
Péricles Maranhão. Seu riso mordaz, seu jeito malandro de
ser, criticando com sua verve humorística revelava aquilo que
se pretendia esconder ou escondendo aquilo que se queria
revelar. Foi, então, confeiteiro, amigo do prefeito, marido,
gerente, e foi sempre.... O Amigo da Onça!!
Seja em Péricles Maranhão ou Carlos Estevão, O Amigo
da Onça esteve nos mais diferentes meios sociais, tratando de
temas cotidianos, aos universais, da crítica privada a crítica
pública.
Através dessa imagem podemos pensar nos valores
daquela sociedade de então, e nos que permanecem até
hoje, já que muitos desses cartuns são atuais e nos fazem rir
justamente porque podemos nos identificar com seus temas.
64
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira Quem é O Amigo da Onça?
GUIMARÃES, 1987.
“O Amigo da Onça se transformou no tipo mais popular da história do
humor brasileiro. Quando Péricles morreu, 18 anos depois, o Amigo, já
era – sem nenhum exagero retórico – um personagem imortal”.
Millôr Fernandes (idem)
65
O Amigo da Onça: da construção do preconceito à
sua contestação
Alberto Gawryszewski
O homem vive em sociedade; portanto, suas ações,
atitudes, pensamentos, posições políticas e religiosas
resultam dessa interação. O homem é fruto da sociedade e
esta é fruto dos homens. Toda essa confusão pode ser explicada
pela História, Antropologia, entre outras ciências.
O Amigo da Onça, produzido em grande parte por
Péricles e publicado pela revista O Cruzeiro por quase 30
anos, entre 1943 e 1972, não foi sucesso à toa. O que queria
o autor com seus desenhos, o que buscava neles o leitor são
questões difícieis de responder.
Péricles, um homem de sua época, como todos nós, vivia
e pensava como seus contemporâneos. Sua produção artística,
com traços suaves e cores vivas, tinha uma relação direta com
seu público.
Homens, mulheres, adolescentes, crianças, todos
buscavam n´O Amigo da Onça o riso alívio aos seus problemas
diários (no trabalho, na escola, em casa etc.). O riso relaxa,
traz leveza e ânimo para viver. Quem ri seus males espanta!
Quem é feliz aproxima pessoas! Então, O Amigo da Onça era
muito útil no dia-a-dia das pessoas.
Mas, o que é o riso? Por que rimos? De que rimos?
Para o provocar o riso ou ser risível, são necessárias
66
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
duas ou três coisas: a pessoa que ri; o objeto de que se ri
(uma pessoa, por alguma razão em particular, uma piada, um
desenho cômico etc.); e, nestes dois últimos casos, a pessoa
que os produziu. Assim, o riso, embora seja personalíssimo,
pois ninguém pode rir por você, é um ato social, faz parte
de um coletivo. Como a sociedade é composta por vários
grupos (de caráter sexual, econômico, étnico etc.), um destes
pode rir de outro. inclusive, esse riso pode funcionar como
um elemento aglutinador, reforçador identitário. Se ele
reforça identidade, igualmente reforça a diferença, como, por
exemplo, a relação de duas torcidas organizadas de futebol.
O riso, portanto, é um agente político por essência. Ele é tão
importante que por muitas vezes foi e é combatido, em especial
pela forma da censura da liberdade de expressão (imprensa,
programas televisivos e radiofônicos), por desmistificar,
desnudar, reforçar valores e ações da sociedade. Este foi o
caso do cartunista Henfil, no período da ditadura militar no
Brasil (1964-1984): seus desenhos críticos e humorísticos
denunciavam a miséria social e repressão política, daí por que
muitos foram impedidos de serem publicados pela imprensa.
O riso como fruto da sociedade é um fenômeno cultural,
varia no tempo e no espaço. Um fato, uma idéia ou outra coisa
qualquer pode causar riso em um lugar e em uma época e não
em outro lugar ou época. Portanto, para compreendê-lo, faz-
se necessário colocá-lo na sociedade que o gerou.
Muitos estudiosos do riso e do humor costumam
afirmar que o riso desnuda aquilo que se pretende esconder.
Se isso é verdade, O Amigo da Onça faz com maestria tal
empreitada: denuncia um pouco da alma do brasileiro, com
seus preconceitos. A necessidade de levar “vantagem em tudo”,
abusar das fragilidades alheias para ser vitorioso ou apenas
67
O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
humilhar foi atitude constante do personagem O Amigo da
Onça ao retratar as relações humanas.
Wladimir Propp, um estudioso russo, ao discutir o riso,
afirmou que a sátira levanta e mobiliza a vontade de lutar, cria
ou reforça a reação de condenação, de não compactuação com
os fenômenos representados e, por isso mesmo, contribui para
intensificar a luta para removê-los e erradicá-los (PROPP,
1992, p. 211). Ou seja, a sátira pode ser contestatória aos
hábitos e costumes de seu tempo. Em nossa opinião, nem
sempre o é, ou melhor, nem sempre é contestatória e, muito
pelo contrário, pode reforçar uma situação já existente.
Como fator humano, com suas essências de bondade e
maldade, podemos encontrar, de imediato, dois tipos de riso:
um “bom” e um “mau”. O primeiro seria o riso simplório, o
riso inocente. Vejamos dois exemplos em O Amigo da Onça.
O Cruzeiro, 15/08/1953 O Cruzeiro, 09/10/1954
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
No primeiro caso, vemos que O Amigo da Onça está vestido
com roupa de prisioneiro, mas a sua fala e parte do revólver na
cintura denunciam que ele é um policial. inversamente temos
o prisioneiro vestido de guarda do presídio. Este propõe fuga
ao seu suposto colega, mas O Amigo da Onça denuncia sua
condição de guarda, ou seja, traz o riso ao desvendar uma
situação inesperada. Na outra imagem, O Amigo da Onça
levou ao “pé da letra” o pedido da noiva: arrumou uma mansão
abandonada, cheia de teias, sinistra e isolada para passarem a
lua de mel. Além da beleza plástica, causa um riso gostoso.
Quanto ao riso “mau”, aquele com caráter destruidor/
vexatório em relação ao seu objeto, veremos vários casos
adiante.
Uma questão interessante sobre o riso ou sorriso é
sê-lo uma construção corporal. É por meio da face que ele
se expressa. É claro que uma gargalhada pode mexer com
todo o corpo (ombros, braços, inclinação do corpo, retração
da barriga etc.). Às vezes pode ser uma expressão falsa, um
“sorriso amarelo”, mas, em geral, quando verdadeiro, dá-se
por meio do corpo e a ele proporciona prazer. O riso é uma
demonstração física de prazer, devolve ao corpo relaxamento
e leveza, tranquiliza.
Podemos, utilizando-nos das imagens que compõem
a exposição O Amigo da Onça, uma expressão da alma
brasileira, tratar de um tema atual: preconceito. Preconceito
étnico, de idade, de sexo, entre outros, que vivenciamos
cotidianamente.
Nesse sentido, iniciaremos tratando a questão do
“belo” e do “feio”. Como o riso e o risível variam no tempo e
no espaço, o “belo” ou “feio” também. A história de ambos é
longa e difícil.
69
O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
Na figura acima temos um exemplo do “feio” para esta
época e para este personagem. Repare que todos os juízes são
Amigo(s) da Onça e, como tal, tinham que aprontar alguma.
Em um concurso de beleza, a ironia seria eleger uma mulher
considerada feia para os padrões. A eleita tem as pernas finas
e cabeludas, quadril muito avantajado, cintura grossa, dentes
salientes, assim como seus lábios, além de rugas e pelos no
rosto e, por fim, nariz desproporcional. Neste contraponto,
temos as outras duas candidatas surpresas com o resultado.
Ambas jovens, com um corpo conhecido como “violoncelo”:
cintura fina, quadril largo. Seus narizes são finos, olhos
claros, pele branca, seios em tamanho mediano. Na imagem,
personificam a “beleza”. Se comparamos com a modelo
brasileira Gisele Bündchen, vamos verificar um padrão de
beleza bem diferenciado. Hoje, o conceito de beleza passa
por mulheres magras. Assim, as modelos atuais não teriam a
O Cruzeiro, 26/06/1954
70
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
menor chance de vencer um concurso de beleza na época d´O
Amigo da Onça, se ele fosse “honesto”segundo seu tempo.
Diz o ditado que “quem ama o feio, bonito lhe parece”.
Mas, o que seria do belo se o “feio” não existisse? Um é a
negação do outro: o belo tem a carga do positivo enquanto
o feio o negativo, e cada período estabalece padrões próprios
de beleza e – seu contraponto – de feiúra. O belo e o feio são
elementos importantes para o riso, pois reforçam valores
e modelos. O riso provocado pelo feio é, na maioria das
vezes, preconceituoso, humilhante, depreciativo da pessoa
retratada.
O pensador Nietzsche interpreta a construção do padrão
da beleza-feiúra do corpo a partir dos sinais e sintomas de
sua degenerescência. Como o homem adora a si mesmo, ver
o declínio de seu tipo causaria horror e repulsa. Portanto,
pessoas idosas, possuidoras de características fora da estética
ideal de beleza e juventude (estas, em geral, caminham
juntas) ou deficiência física, com corpo desproporcional em
suas partes etc. são por isto consideradas “feias”. Estas foram
vítimas d´O Amigo da Onça. É bem verdade que a questão
da proporcionalidade é variável, ainda que seja um dos itens
clássicos de identificação do belo, desde a Grécia antiga,
pois é suplantada por modelos de época. Assim, o gosto
pela proporção não se aplica às jovens “bonitas” da imagem
anterior, pois tais desproporcões (modelo “violoncelo”) eram
as que formavam o conceito de beleza.
Dentro desta perspectiva de feiúra e beleza,
desproporção e proporção, podemos enquadrar o (a) obeso
(a), que por seu corpo “desproporcional” foi alvo de gozações
e motivo de piadas. Entretanto, o obeso, em contraponto, é
também possuidor de uma imagem feliz e bem-humorada,
71
O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
sendo, portanto, padrão considerado “negativo” e “ positivo”,
dependendo do contexto em que é apresentado: o obeso pode
ser representação do “feio” ou portar um valor positivo, como
expressão de alegria e fartura.
A pessoa idosa, ainda recebedora de maus tratos por
nossa sociedade, também foi retratada por Péricles. Na imagem
seguinte vemos, em uma festa de Ano Novo, O Amigo da Onça,
aparentemente alcoolizado, dirigir-se a uma senhora idosa e a
uma jovem fazendo referências ao Ano Novo e ao Ano Velho.
A senhora seria o Ano Velho, ou seja, o que passou. A senhora,
vestida elegantemente, demonstra sua indignação por meio
de seu olhar e a forma da boca. Reforçando, símbolos foram
colocados sobre a cabeça da personagem (raios, círculos,
estrelas...).
O Cruzeiro, 02/01/1960
72
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
As mulheres são retratadas n´O Amigo da Onça de duas
formas: belas ou feias. Para estas últimas, um tratamento
humilhante, de repulsa, de rebaixamento. No desenho a seguir
vemos uma senhora entrar em um salão de beleza (“Amigo da
Onça”) e, ao sentar na cadeira, é questionada pelo barbeiro,
o nosso Amigo da Onça, se ela iria fazer barba ou cabelo.
Tal pergunta é a tradicionalmente dirigida aos homens. A
mulher foi retratada de forma caricaturesca, grotesca, ou
seja, com excesso de pelos no rosto e obesa. Tal fato, somado
ao questionamento, transforma-a em um ser passível de
humilhação. Está fora dos padrões desejados de beleza. Não
seria possível corrigir sua “feiúra” no salão de beleza. Também
nesta imagem a personagem demonstra seu descontentamento
com o tratamento recebido.
O Cruzeiro, 18/11/1954
73
O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
Em outra imagem, seguindo a lógica anterior, a radialista
apresenta seu programa de sugestões de tratamento para as
suas ouvintes ficarem mais belas. Trata-se de uma senhora
obesa e com verrugas cabeludas no rosto, ou seja, bem fora dos
padrões de beleza da época e de hoje. Entretanto, apresenta-
se bem vestida, com colar de pérolas e unhas pintadas,
ressaltando aspectos de feminilidade. Em seu característico
sarcasmo, O Amigo da Onça se dirige à mulher perguntado-
lhe quando ela iria iniciar em si as sugestões de beleza que
indica às suas ouvintes. Assim, de forma direta, chama de
“feia” sua colega de trabalho. Esta deixa claro sua opinião
sobre a pergunta d´O Amigo da Onça, dirigindo-lhe um olhar
faiscante e contorcendo sua boca.
O Cruzeiro, 23/01/1954
74
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
O desprezo ao pobre ou ao trabalho dito inferior é outra
característica d´O Amigo da Onça. Uma experiência feita
recentemente é interessante para vermos como é ainda um
padrão recorrente. Um pesquisador se vestiu de gari e ficou
meses varrendo o chão do campus da Universidade de São Paulo
(USP) e verificou que os passantes o ignoravam totalmente,
como se ele não existisse. Ninguém conversava com ele, nem
“bom dia” davam! O desprezo d’O Amigo da Onça é ressaltado
na próxima imagem. Ao cruzar com os garis, dirige-se a eles e
pergunta: “Muito bem, fazendo sua propagandazinha eleitoral,
hem?!”. Era época de eleição presidencial e um dos candidatos,
Jânio Quadros, usava a vassoura como seu símbolo eleitoral.
Vemos na imagem o caminhão de lixo, como era na época,
aberto e vazando lixo pelas ruas, os garis com roupas rasgadas
e sujas com as barbas por fazer. Todos carregando lixeiras
repletas. As feições dos garis demonstram indignação com a
“brincadeira de mau gosto” do personagem. Qual seu sentido
a não ser humilhar e rebaixar o trabalhador do lixo?
O Cruzeiro, 12/08/1960
75
O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
Da mesma forma o trato com os mendigos. Em um
país onde havia um enorme êxodo rural, falta de emprego,
população analfabeta, existir mendigos, moradores de rua,
era uma contingência econômica e social, não uma opção. Não
percebendo deste modo, o olhar d’O Amigo da Onça para com
o mendigo era de superioridade, considerando-o, portanto,
passível de ser humilhado. A ironia está presente nas imagens
abaixo. O mendigo, retratado com roupas rasgadas, sem sapatos
e meias furadas, chapéu em frangalhos, e barbado, procurando
algo no bolso foi a “deixa” para que O Amigo da Onça saísse
com a frase “O que foi? Perdeu a chave do cadillac?” O mendigo
não gostou de ser humilhado e soltou palavrões, apresentados
na forma de símbolos, para demonstrar sua indignação.
O Cruzeiro, 18/02/1956
O Cruzeiro, 11/08/1962
76
O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
No outro desenho, O Amigo da Onça compara um
maltrapilho ao personagem fictício “Bicho-Papão”. Ele
ameaçou chamá-lo se o menino não parasse de chorar. O
senhor mal vestido pára, volta-se para a cena e demonstra sua
raiva por meio de sua face (sobrancelha, olhar e boca).
Agora vejamos uma demonstração do preconceito,
da discriminação para com o obeso. O Amigo da Onça é
um ascensorista, e como tal está vestido. Na imagem vêmo-
lo parar um senhor obeso pedindo-lhe que pegasse o outro
elevador – de carga – , já que o pessoal que estava dentro
daquele elevador queria subir. Ou seja, se ele entrasse no
elevador, seu peso iria bloqueá-lo. Os personagens do elevador
tem reações diferentes: o menor demonstra medo, o segundo
repulsa, e a senhora apenas um olhar atento, de surpresa. A
feição do obeso é de extrema raiva pela situação. Ao comparar
este com carga, O Amigo da Onça busca humilhá-lo, rebaixá-
lo, ele que estava em posição hierarquicamente inferior, de
empregado, enquanto o senhor
obeso apresenta-se vestido
nobremente. Assim, mesmo em
situações adversas, O Amigo
da Onça consegue se mostrar
superior com os preconceitos
disponíveis na sociedade.
O Cruzeiro, 21/01/1961
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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
Nem o cego escapou de ser
maltratado pel´O Amigo da Onça.
Vemos no desenho que o autor deixou
claro o sentido a ser seguido pelo cego.
O cachorrinho sabe a direção certa
e se surpreende com a informação
prestada pelo nosso personagem. O
Amigo da Onça aponta em sentido
contrário da direção a ser seguida,
ou seja, dá uma informação incorreta
propositalmente. A face do cego é de
tranquilidade e até de felicidade pela
ajuda recebida. Ainda desconhece a
traquinagem d´O Amigo da Onça.
Outra personagem que não poderia ficar de fora seria a
sogra. Motivo de várias piadas pejorativas, discriminatórias
e humilhantes, a sogra também foi retratada, neste caso pelo
substituto de Péricles n’O Cruzeiro, o genial Carlos Estevão.
Neste desenho, na pastelaria “Amigo
da Onça”, o confeiteiro, logo ele,
O Amigo da Onça, apresenta o
bolo encomendado pelo casal. Para
surpresa do futuro genro e alegria de
futura sogra, o confeiteiro escreveu
no bolo a frase “Até que a morte nos
separe”, colocando na parte superior
os nubentes acompanhados pela
sogra, que foi apresentada de forma
bem específica. Carlos Estevão
deixou transparecer o caráter da
O Cruzeiro, 15/02/1958
O Cruzeiro, 23/10/1966
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
sogra pelo seu olhar, seu sorriso, ou seja, demonstrando que
a vida do futuro genro seria bem difícil. Pela expressão deste,
ele concorda com o autor.
Um personagem atual, que sempre está na mídia e que
foi tema d´O Amigo da Onça, é o político. Péricles e Carlos
Estevão denunciaram seus hábitos e história de vida. Assim,
muitas vezes o político foi retratado de forma pejorativa. Na
imagem seguinte vemos O Amigo da Onça aprontar mais
uma, pois, ao escolher uma foto jovem do prefeito para fazer
parte de galeria de retratos, conforme este pediu, denunciou
seu passado inglório, de ex-detento. O prefeito, que nada
sabe, levanta o polegar, em um sentido positivo, pois esperava
que seu amigo deixasse para a posteridade uma foto falsa, que
escondesse sua idade, mas não tão denunciadora como aquela
escolhida. Na outra imagem O Amigo da Onça desmascara
uma prática comum nos políticos, ou seja, a encomenda de
seus discursos a outros.
O Cruzeiro, 20/11/1969
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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
Dentro da questão do preconceito n´O Amigo da Onça,
um que retrata bem a nossa sociedade e que está no debate
atual é o etnico, em especial com respeito ao afrodescendente
(negro). Sobre este tema nos centraremos um pouco mais, na
medida em que trata de uma questão específica da cultura e da
história nacional.
Recentemente (agosto de 2009), em um programa
religioso televisivo, o pastor deu a palavra a um presente que
relatou que, depois que passou a ajudar tal igreja, seu pai, um
semi-analfabeto, havia conseguido um emprego de assessor
de vereador. Narrou que isso é muito difícil no Brasil, “um
país preconceituoso para com os negros”, em especial semi-
letrados. O pastor disse, imediatamente, que “isto era raro”,
só alguns “boboquinhos” é que seriam assim. Seria verdade
tal afirmação?
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
Existem muitas “piadas” carregadas de preconceitos
contra os negros passadas de geração a geração neste país. O
autor destas linhas se recusa a citá-las.
Podemos incluir na lista das piadas preconceituosas as
que têm como sujeito ou tema: estrangeiro, gênero, sogra,
obeso, judeu, árabe (muitas vezes confundido com turco),
gago, fanho etc. Todas fazem parte de nosso cotidiano, sempre
há alguém para contá-las, mesmo que não achemos graça ou
não queiramos ouvi-las.
É comum ainda se ouvir que os negros são “inferiores”,
utilizando-se da lógica de que eles só se destacavam em
esportes, ou seja, correr ou saltar. Portanto, assemelhavam-se
aos animais.
Fruto do preconceito das elites brancas coloniais,
imperiais e depois republicanas, dos imigrantes europeus e
asiáticos, o negro foi visto como representante do atraso, do
vício, da malandragem. Enfim, era um agente perigoso.
Um pequeno país do Caribe, o Haiti, colônia francesa, foi
sacudido por revoltas de escravos e pela deposição dos brancos
do poder no início do século XIX (1801 a 1803). Este fato foi
um importante fator de pavor de toda a elite escravocrata
branca brasileira. Em 1835, ocorrera em Salvador o levante
dos escravos Malês e por todo o Brasil assassinatos de brancos
demonstravam a não passividade do negro frente à sua
condição. Tais fatos, provavelmente, levaram a que o Código
de Postura da Corte de 1838 (capital do Império e atual cidade
do Rio de Janeiro) determinasse a prisão de qualquer escravo
que estivesse após as 19 horas na rua sem a permissão por
escrito de seu proprietário. Da mesma forma, recomendava
que os donos das tavernas não permitissem que mais de quatro
escravos ficassem juntos em suas portas. Qualquer negro que
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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
estivesse de posse de objetos de valor era imediatamente
considerado suspeito de furto. Vemos, portanto, que passa
a ser construída uma visão de que todo negro é suspeito e
ladrão. Nesse sentido, um lundu (gênero musical e dança do
Brasil de origem angolana com ritmos portugueses) nos traz
informações interessantes do olhar do negro sobre a justiça no
Brasil imperial:
Barranco dize – preto fruta.
Preto fruta co razão:
Sinhô baranco também fruta
Quando panha casião
Nosso preto fruta garinha
Fruta saco de feijão;
Sinhô baranco quando fruta
Fruta prata e patacão
Nosso preto quando fruta
Vai pará na coreção
Sinhô baranco quando fruta
Logo sai sinhô barão.
(Lundu de Pai João, retirado de CHALHOUB, 1988)
Este lundu é muito atual se pensarmos que um pobre
pode ficar oito meses preso na delegacia por furtar uma lata
de óleo no mercado e um banqueiro responder em liberdade o
desvio de milhões de reais.
Muitos pensadores compartilhavam de todo esse
preconceito, inclusive reforçando-o. Oliveira Vianna, por
exemplo, foi um intelectual brasileiro que, com suas idéias
que valorizavam os brancos em detrimento dos negros, obteve
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
prestígio e importância. Divulgava, entre outras coisas, que a
etnia negra era incapaz de produzir civilização, uma vez que
possuiria um comportamento instável. Afirmou que a solução
do atraso brasileiro seria a vinda de imigrantes europeus
para o Brasil para, assim, embranquecê-lo. Portanto, deu um
caráter “científico” à questão.
Outros importantes intelectuais se equivocaram em
suas observações ao usarem como base para suas pesquisas
os relatos dos viajantes europeus no Brasil do século XiX,
pois foram incapazes de perceber o olhar discriminatório
destes. Ora, brancos europeus, de religião e moral rígidas,
ao transporem para o papel suas observações, faziam-no
com toda carga preconceituosa que possuíam. Além disso,
buscavam atingir um público europeu; portanto, suas
escritas deviam atender aos objetivos de consumo deste. Ao
não perceberem isso acabaram reforçando, por exemplo,
visões distorcidas sobre a constituição familiar dos escravos,
como a de serem incapazes de contituir laços familiares.
Estudos realizados por historiadores nas décadas de 80 e
90 do século passado demonstraram que existiam muitas
famílias escravas com laços fortes, ou seja, relações estáveis
e mantidas por várias gerações, contradizendo os velhos
estudos.
Vejamos agora como o preconceito contra o negro
estava presente n´O Amigo da Onça. Ao vermos a imagem
a seguir, deduzimos que os personagens estão no inverno. O
Amigo da Onça está sem seu clássico terno, pois usa casaco
longo e chapéu. Seu colega veste um pulôver, casaco e porta
chapéu. É uma cena urbana. Ao passar a senhora negra de
casaco de pele (símbolo de status na época), O Amigo da
Onça fala ao seu colega que “A essa altura a patroa deve
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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
estar viajando”. Seu parceiro, branco, cai na gargalhada. A
senhora negra demonstra sua indignação soltando palavras
impublicáveis para a época, sem se voltar aos provocadores.
Por que uma senhora negra não poderia ter um casaco
de peles? O negro em nossa sociedade sempre esteve ligado
à pobreza, seu local de moradia é a favela ou as periferias
das cidades, seu emprego é de baixa remuneração. Ao não
nos questionar sobre razões históricas para tal fato, pouco
avançaremos para a construção de uma sociedade igualitária
e sem preconceitos étnicos.
O Cruzeiro, 20/08/1960
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
Em outro desenho em que podemos visualizar
especialmente o desrespeito étnico é o da negra na praia: O
Amigo da Onça dirigi-se a ela e comenta: “Queimadinha,
hein?!...”. O olhar da negra tem um misto de desprezo e raiva.
A praia é um local de descontração, relaxamento, encontro
com colegas, de olhar o céu azul em contraste com o mar verde,
brincar na água e para brincadeiras e o brozeamento. Ao fazer
tal pergunta, O Amigo da Onça buscou ironizar a negra, já
que esta não teria necessidade de pegar sol para se bronzear.
Ao se “esquecer” das outras atividades prazerosas da praia,
O Amigo da Onça deixou claro sua intenção de provocar a
praiana. As feições da mulher demonstram sua indignação e
desprezo pelo personagem.
O Cruzeiro, 10/04/1954
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O Amigo da Onça: da construção do preconceito à sua contestação
Considerações finais: reprodução ou contestação?
O artista sabe dos limites de sua obra. Suas intenções
podem ter um significado, mas o olhar e a interpretação
daquele que a vê pode ser bem distinta. Ao desenhar a forma
preconceituosa e humilhante como era tratado o negro, a
“feia”, a sogra, o portador de necessidades especiais e outros
tantos, o autor procurava reforçar tal forma de tratamento
ou denunciar, desnudar estas ações, nossa forma de pensar
e agir?Um detalhe que está em todas as imagens mostradas
neste trabalho foi a indignação. Todos reagem à provocação
– mendigo, “feia”, idosa, negra, obeso e gari. Não há
passividade. NiNGUÉM ACEiTA SER HUMiLHADO! A
ordem estabelecida é contestada pelos que são ridicularizados.
Talvez esta seja a grande chave para se compreender a proposta
de denúncia feita por Péricles e, depois, por Carlos Estevão.
Nestas imagens, o humor se apresenta como denunciador da
opressão, e desmascara as formas de relacionamento humano
degradantes e humilhantes em que um igual é tratado como
desigual.
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O Amigo da Onça: uma expressão da alma brasileira
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Sobre os autores
Jorge Luiz RomanelloDoutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Assis). Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. [email protected]
Ana Flávia Dias ZammataroMestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina. [email protected]
Alberto GawryszewskiDoutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado do Departamento de História da Universidade Estadual de [email protected]
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