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Notas sobre os determinantes do processo de globalização
financeira
Cid de Oliva Botelho Júnior
Doutorando em Teoria Econômica pela UNICAMP e professor da Faculdade Machado Sobrinho e da Faculdade Estácio de Sá – JF.
Resumo: O objetivo deste artigo é abordar os determinantes do processo de globalização financeira. Neste exercício, a distinção entre elementos cruciais e não cruciais será enfatizada, no intuito de se estabelecer uma explicação do processo investigado que avance frente às abordagens tradicionais.
Palavras-chave: Liberalização Financeira; Estados Nacionais; EUA.
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I – Introdução
O presente trabalho tem por objetivo abordar os elementos responsáveis pela
internacionalização financeira que prevalece desde os anos 1970. Aprofundando o tema,
buscará também avaliar os fatores mais cardeais deste processo, indagando-se o quê,
realmente, havia por detrás deste novo movimento de mobilidade de capitais.
Para tanto, dividiu-se o trabalho em três seções além desta introdução. A seção II
busca recuperar o período anterior ao processo de liberalização, dada a contribuição
daquele na compreensão deste, e apresentar os elementos comumente observados como
responsáveis pelo retorno dos movimentos de capitais. Na seção seguinte será realizado
um exercício com vistas a apontar as razões fundamentais deste movimento.
Por fim, os comentários conclusivos estarão na parte final do trabalho.
II – O contexto precedente
Em um curto espaço de tempo o mundo presenciou duas guerras mundiais, uma
crise econômica sem precedentes na história do capitalismo, processos inflacionários
descontrolados em países europeus, retração do comércio internacional e a ascensão de
regimes políticos totalitários na esteira de um movimento que buscou sobrepor a
vontade política à objetividade econômica. Observando a primeira metade do século
XX, Krugman (1998) afirma que "o capitalismo de livre mercado havia provado, aos
olhos da maioria das pessoas, que era instável, injusto e ineficaz".
As crises financeiras do entre-guerras levaram os países centrais a propor não
apenas uma reformulação de suas instituições como também um sistema monetário
estável e, em certa medida, com regras que permitissem uma maior equalização das
oportunidades econômicas para as nações.
Como aponta Belluzzo (1995:12),
A concepção de um desenvolvimento nacional, no marco de uma ordem internacional estável e regulada não era uma fantasia idiossincrática, mas decorria do ´espírito do tempo`, forjado na reminiscência da experiência terrível das primeiras quatro décadas deste século. Tampouco era fortuito o papel atribuído à ação do Estado no estímulo ao crescimento, na prevenção das instabilidades da economia e na correção dos desequilíbrios sociais.
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No primeiro dia de julho do ano de 1944 iniciava-se a Conferência de Bretton
Woods, com o objetivo de ordenar a vida econômica e financeira do mundo capitalista.
A Conferência foi presidida por John Maynard Keynes, o qual propunha a
criação de uma moeda internacional - o Bancor - com certo vínculo ao ouro e a
formação de uma “União de Compensação” contando com amplos recursos e moeda
própria. Era necessário possibilitar, por meio de saques imediatos, que países com
problemas temporários no balanço de pagamentos equilibrassem a oferta e demanda de
divisas. Objetivava-se, outrossim, que o ônus do ajuste se dividisse entre os países
superavitários e os deficitários.
Prevaleceu na Conferência a posição norte-americana representada pelo
representante do Tesouro dos E.U.A., Harry Dexter White, e por Jacob Vinner. Os
americanos limitaram sensivelmente os recursos do então criado Fundo Monetário
Internacional – FMI – e impuseram uma série de exigências para os saques, além de
concederem a si mesmos o poder de veto1. Por fim, o sistema monetário adotado foi um
sistema dólar-ouro, no qual o dólar seria aceito livremente no âmbito das transações
internacionais e estaria atrelado ao ouro em uma taxa de conversão fixa.
A nova moeda internacional aproximava-se do sistema libra-ouro, o qual
prevaleceu até 19142. Entretanto, a inovação de Bretton Woods, além da já citada
criação do FMI, encontra-se na restrição à mobilidade de capitais. Esta medida, no
contexto da adoção de taxas de câmbio fixas, ainda que ajustáveis, permitiu que as
políticas econômicas nacionais tivessem expressiva autonomia.
Os resultados de Bretton Woods não foram ideais para as economias nacionais
como um todo. Sem embargo, foram suficientes para permitir um período de
crescimento sustentado, o qual tinha por escopo o pleno emprego.
O advento de um capitalismo mundial "organizado" e "regulado" sob os
auspícios do Estados Unidos proporcionou às economias capitalistas os conhecidos
"trinta anos gloriosos" de crescimento econômico com participação dinâmica do salário
na renda total.
1 O peso do voto dos E.U.A., em torno de 18%, inviabiliza a aprovação de qualquer medida sem seu apoio, visto que são necessários 83% dos votos para a aprovação. 2 Sobre o padrão ouro, ver Cecco (1974) e Triffin (1972). Eichengreen (2000) insere na avaliação da estabilidade do sistema, estabilidade esta não totalmente aceita por Triffin (1972), o papel da credibilidade dos Bancos Centrais junto aos investidores, o que possibilitava romper com as “regras do jogo” sem que isto implicasse processos especulativos contra a moeda do país.
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Cardoso de Mello (1997: 18) relaciona o sucesso destes anos à competição com
as experiências socialistas:
A esta altura, é preciso ter claro que os Trinta Anos Gloriosos se caracterizaram pela sua excepcionalidade, por uma peculiaridade histórica que não tem sido suficientemente sublinhada, a saber: que a hegemonia americana foi de fato exercida em um ambiente de competição entre o capitalismo e o socialismo real.
Neste sentido, o sucesso de experiências como a reconstrução da Europa e do
Japão deu-se “à sombra da Revolução Soviética e da Revolução Chinesa”.
A despeito da hegemonia benigna dos E.U.A., a presença marcante do Estado
foi imprescindível tanto para a redução das desigualdades entre os mais fracos e mais
fortes quanto para a amenização das flutuações do nível de investimento - não apenas
por meio da participação direta dos investimentos públicos nos investimentos totais
como também por permitir um horizonte estável que influísse positivamente sobre as
expectativas dos agentes privados (BELLUZZO: 1998).
O sistema financeiro ocupou-se basicamente do financiamento das atividades
produtivas e a política de gastos públicos era em parte sancionada à frente pelo
aumento da arrecadação diretamente relacionada ao crescimento econômico3.
Esta relação progressiva de forças diversas que convergiam para um mecanismo
de crescimento econômico vigoroso começou a se abalar em fins da década de 60.
Inicialmente, era a economia americana responsável pela injeção de liquidez na
economia internacional por meio de seus déficits regulares na conta de transações
correntes4.
Em um segundo momento, os dólares tornaram-se excessivos frente à demanda
e seu estoque tornou-se um simples múltiplo das reservas em ouro da economia norte-
americana. Com efeito, quando da possibilidade do democrata John Kennedy vencer o
3 Vale notar que a dimensão monetária do gasto público foi importante, podendo-se a ela atribuir aumento na taxa de inflação (GUTTMANN: 1994). 4 O crescimento da atividade econômica mundial demandaria um maior número de haveres. Como a moeda internacional possuía lastro, seria necessário aumentar, constantemente as reservas de ouro norte-americanas, sob o risco de impedir o crescimento. Este problema ficou conhecido como Dilema de Triffin. Como não houve aumento das reservas de ouro, os E.U.A. injetaram liquidez por meio de seus déficits em conta corrente, tornando os reservas de ouro uma fração cada vez menor da quantidade de dólar emitida. Ver Triffin (1972) e, mais recente, Eichengreen (2000). Para uma crítica ao Dilema de Triffin, baseada na possibilidade de o aumento na “velocidade de circulação do ouro” compensar a estagnação das reservas, ver Serrano (2002).
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candidato republicano Nixon, os investidores buscaram se desfazer dos dólares em suas
carteiras comprando ouro.
Segundo um antigo executivo do mercado financeiro norte-americano:
(...) Tesoureiros de grandes empresas, responsáveis por grandes somas de dinheiro (...) vendiam seus dólares mesmo quando não precisavam imediatamente de marcos alemães, francos suíços, etc., ou adiavam a troca dessas moedas por dólares quando normalmente as venderiam. Em maio de 1971, esse tipo de operação tinha alcançado proporções colossais5.
Outros elementos destacam-se como importantes, ainda que não determinantes,
para se entender a ruptura com a ordem de Bretton Woods:
• Os avanços em telemática reduziram os custos e aumentaram a rapidez das
transações internacionais de moeda (DEVLIN: 1994);
• A partir de 1974 houve um expressivo aumento na oferta internacional de
crédito, derivado do choque do petróleo. Os petrodólares – dólares oriundos dos
países exportadores de petróleo – eram aplicados nos bancos europeus, os quais
os disponibilizavam a taxas de juros baixas, embora muitas vezes flutuantes
(MOFFITT: 1984); e
• A expansão do comércio internacional, bem como dos investimentos diretos,
aumentavam a demanda por serviços financeiros off shore (MOFFITT: 1984);
O aumento dos fluxos internacionais de capitais não foi imediato. O mercado de
euromoeda6 expandiu-se desde fins dos anos 1950. Inicialmente foram os países do
bloco soviético que utilizavam mercados financeiros off shore (LUCATELLI: 1997).
Nos anos 1960 prevaleceram os capitais que buscavam fugir de impostos e
regulamentações. A partir dos anos 1970 diversos países afrouxaram suas políticas de
regulação sobre operações cambiais dentro de uma estratégia competitiva de atração de
capitais7 (DEVLIN: 1994).
5 Depoimento do então Vice-presidente do Citibank, citado por Moffitt (1984). 6 A origem do termo está relacionada aos recursos da União Soviética depositados no French Banque Commerciale pour l’Europe du Nord. O código telegráfico dos depósitos em dólar da URSS era “EUROBANK”. O termo euromoeda é empregado aos recursos depositados, por empresas ou governos, nestes eurobancos, bancos fora de seu território (LUCATELLI: 1997). 7 Enquanto nos anos 60 a City foi o centro financeiro mais utilizado, nos anos 70 o movimento financeiro deslocou-se para mercados como Hong Kong, Cingapura e Ilhas Caiman.
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O crescimento do mercado de euromoeda derivou-se também do incentivo a
operações de arbitragem, na medida em que havia um diferencial de juros contra os
E.U.A.. No início dos anos 1970, por exemplo, houve um afrouxamento na política
monetária do FED “para viabilizar a reeleição do Presidente Nixon”, enquanto as taxas
de Bundesbank subiam para combater a inflação alemã. Segundo Kindleberger (2000:
73):
(...) primeiro as multinacionais americanas, depois as empresas alemãs, refinanciavam seus empréstimos na Alemanha com dólares emprestados em Londres. O dinheiro era trocado no Bundesbank por marcos para se pagar os empréstimos. O Bundesbank depositava os recursos no mercado de eurodólar, o que permitia ao mercado uma nova base de expansão8.
Com relação aos Estados Unidos especificamente, sabe-se que as crescentes
pressões sobre sua moeda conduziram o governo americano ao rompimento, em
meados de 1971, com o sistema de conversão do acordo de Bretton Woods. Em 1973,
com a desvalorização do dólar, veio o "golpe derradeiro" sobre a articulação formal do
sistema monetário estável do pós-guerra9.
A partir de então, internacionalizaram-se as carteiras de instituições financeiras
e não financeiras. Os processos de securitização intensificaram-se e as taxas cambiais,
antes fixas, passaram a ser determinadas pelo mercado (BRUNHOFF: 1998). Com a
crescente participação dos derivativos financeiros, a volatilidade dos mercados tornou-
se crescente10.
Entender os verdadeiros determinantes deste movimento, os quais ultrapassam
os elementos descritos acima, é o objeto do próximo item.
8 Tradução do autor. 9 Uma descrição detalhada dos passos da liberalização financeira nos E.U.A. pode ser encontrada em Moffitt (1984). Chesnais (1998: 24) apresenta um quadro com um bom resumo das etapas da liberalização de 1960 a 1995. Para os países da Europa, em especial, ver Lucatelli (1997). 10 O main stream, entretanto, ressalta a importância da liberalização financeira no sentido de elevar a eficiência alocativa de recursos internacionais. Ver, por exemplo, Devlin (1994).
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III – A Economia Política da Liberalização Financeira
A globalização financeira pode não ter sido um movimento natural, reflexo de
alterações na institucionalização do sistema financeiro internacional estabelecido em
Bretton Woods, estas, por sua vez, causadas por uma demanda crescente de transações
financeiras internacionais associadas à expansão da economia mundial.
Enfatizando a importância deste processo, Tavares & Melin (1997), afirmam
que, a despeito de a internacionalização do capital ser um fenômeno antigo, a
globalização financeira “sobreposta à transnacionalização produtiva” é recente e foi
impulsionada a partir da ruptura com o padrão-ouro, quando a economia norte-
americana inicia um processo de “desregulamentação financeira e cambial”.
Que elementos havia por detrás deste “impulso” citado pelos autores acima?
Helleiner (1994) afirma que as principais explicações da globalização apontam
para mudanças tecnológicas e questões de mercado. Tais interpretações, quando citam o
Estado, consideram-no apenas como incapaz de conter este movimento.
Entretanto, o papel dos Estados é determinante para se compreender o fim do
esquema restritivo à mobilidade de capitais. Strange (1990), por exemplo, afirma que
por detrás da liberalização dos mercados financeiros, houve decisões conscientes por
parte dos Estados Nacionais.
Mas por que os Estados, preocupados com a mobilidade de capital nos primeiros
anos do pós-guerra, tornaram-se defensores da liberalização a partir de fins dos anos 50?
Helleiner (1994) aponta quatro elementos que permitem entender esta “nova
postura”. Inicialmente, deve-se considerar que a economia dos E.U.A. havia passado
por mudanças desde o imediato pós-guerra, apresentando, nos anos 1960, déficits fiscais
e em conta corrente11. Para manter a autonomia de sua política econômica, os norte-
americanos precisavam atrair recursos externos. Esta estratégia era possível devido à
posição hegemônica dos E.U.A. na ordem financeira global.
Belluzzo (2000: 102), desconsiderando a ainda frágil internacionalização
anterior à geração de déficits nos E.U.A., confirma a importância destes para o fomento
do euromercado:
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A fonte inicial dessas operações “internacionalizadas” no chamado euromercado foi certamente os dólares que brotavam dos crescentes déficits do balanço americano e excediam a demanda dos agentes econômicos e das autoridades monetárias estrangeiras.
Já o Reino Unido optou pela desregulamentação no intuito de fortalecer a City e
reabilitar, ao menos parcialmente, a posição que representou como centro financeiro
internacional no século XIX. Para recuperar um pouco a importância financeira que
possuía quando da pax britânica, tornar-se um centro off shore era não apenas uma
alternativa, como também o único caminho possível12.
Lucatelli (1997) acrescenta que a Europa continental, por sua vez, preocupava-se
com os déficits norte-americanos. Países superavitários, como a Alemanha e a Suíça,
sofriam pressões inflacionárias para esterilizar os dólares em excesso; e, caso não
esterilizassem, perderiam competitividade no comércio internacional. Assim, o
euromercado era uma alternativa para estes países. A possibilidade de aplicação dos
dólares neste mercado diminuía os dólares excedentes que as Autoridades Monetárias
destes países eram obrigadas a reter.
Um segundo elemento, de acordo com Helleiner (1994), aponta para as
dificuldades políticas em se preservar o arranjo institucional de Bretton Woods em um
contexto de desregulamentação por parte dos países líderes. Com a crescente
liberalização financeira no R.U. e nos E.U.A., os demais países, nos anos 80, foram
forçados a seguir os “países líderes” numa estratégia de desregulamentação
competitiva13.
Um terceiro fator está relacionado ao advento do pensamento neoliberal. Se os
mercados são racionais, não há porque haver receio em deixá-los livres. Ademais,
porque preservar autonomia da política econômica, se as políticas fiscais e monetárias
saudáveis devem ser ortodoxas?
Por fim, não se pode descartar uma “maior segurança” no sistema financeiro
derivada da maior cooperação entre os Bancos Centrais no intuito de prevenir crises
financeiras. Desenvolveram-se, desde Bretton Woods, instrumentos sofisticados
11 Embora o primeiro déficit da balança comercial dos E.U.A. no século XX tenha se apresentado apenas em 1971 (TEIXEIRA: 2000). 12 Sobre as razões de o Reino Unido permitir a internacionalização financeira, ver, também, Lucatelli (1997). 13 Ver, também, Devlin (1994).
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associados às regras do BIS, o qual dedicava-se a preservar a estabilidade nos mercados
financeiros internacionais.
Destes elementos, o primeiro é certamente mais relevante. As dificuldades
políticas são, em parte, reflexo da liberalização por parte dos “países líderes”, enquanto
os instrumentos do BIS não são totalmente eficazes, como a década de 1990
demonstrou, para dar impulso à mobilidade de capitais. Ademais, é mais salutar
considerá-los como conseqüência, não como causa. Por sua vez, o retorno das idéias
liberais está longe de ser determinante do processo de desregulamentação, servindo
apenas para sua defesa.
Por conseguinte, pode-se considerar que os interesses dos “países líderes” na
liberalização financeira são os fatores determinantes para o entendimento deste
movimento. Neste caso, importância maior tem o interesse do país central em contar
com os capitais internacionais para manter a autonomia de sua política econômica.
Como afirma Serrano (2002),
O verdadeiro privilégio dos Estados Unidos no padrão ouro-dólar era idêntico ao da Inglaterra no padrão ouro-libra, ou seja, o país não tem restrição global de balança de pagamentos e, além disso, sua autoridade monetária determina unilateralmente a taxa de juros mundial14.
Entretanto, a flexibilidade do dólar a partir de 1973 poderia abrir espaço a
questionamentos sobre sua referência como moeda internacional. Esta possibilidade
ajuda a entender a alta dos juros de fins dos anos 1970. De acordo com Tavares (1997),
a política Volcker de taxa de juros15 fez do dólar o padrão de referência junto ao
mercado financeiro mundial. A partir deste momento, tornou-se ainda mais difícil
questionar o dólar como moeda internacional.
Sua flutuação trouxe uma vantagem adicional aos E.U.A.. Agora não há
restrições ao aumento do passivo externo, pois não há como trocar o dólar pelo seu
lastro, visto que a moeda deixou de ser conversível (SERRANO: 2002).
14 O autor reduz a importância dos ganhos de segnoriage que o dólar como moeda internacional possibilita aos E.U.A., pois parte considerável das reservas dos Bancos Centrais superavitários está em títulos da dívida externa, pagando juros, não em moeda. 15 Em referência ao presidente do Banco Central Americano (FED) que elevou as taxas de juros em setembro de 1979. Isto posto, houve uma convergência dos fluxos de capitais para a economia americana com nefastas conseqüências, por exemplo, para os países da América Latina.
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Belluzzo (2000), no entanto, é mais cético, pois não descarta a possibilidade de
fuga do dólar por parte dos investidores. A questão é se alguma moeda, como o Euro,
pode se tornar um substituto próximo à moeda norte-americana, visto que o ouro, salvo
em tempos de aumento de incerteza, apresenta preços declinantes, o que limita sua
função como reserva de valor.
Além de não impor restrições ao balanço de pagamentos, o dólar flexível não
traz problemas maiores aos E.U.A. quando há valorização ou desvalorização
(SERRANO: 2002). No primeiro caso, implicaria perda de competitividade, com
impactos negativos na balança comercial e na conta de transações correntes. Porém, tais
impactos deixam de ser um problema na ausência de restrições externas.
Já no caso de desvalorização, como as principais commodities são cotadas em
dólar, simplesmente haverá um aumento da competitividade dos E.U.A., com efeitos
inflacionários moderados.
Portanto, o processo de liberalização, cujas raízes mais fortes encontram-se nos
déficits norte-americanos, permitiu e permite que os Estados Unidos mantenham seus
déficits sem custos internos de ajustes16. A ausência de restrição externa e a
possibilidade de determinação da taxa de juros internacional por parte do país central
são os elementos que explicam o quão caro é, para os E.U.A., a manutenção e o
aprofundamento da desregulamentação financeira.
16 Deficits without tears.
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IV – Conclusão
O presente trabalho buscou demonstrar o processo de liberalização financeira a
partir de seus determinantes. Para tanto, foi realizada uma explanação a respeito do
período precedente, em que vigoravam as restritivas regras oriundas de Bretton Woods,
e foram comentados alguns elementos comumente considerados como fatores
explicativos deste movimento de desregulamentação.
No entanto, estes elementos são antes características que determinantes.
Destarte, apresentaram-se e discutiram-se argumentos no intuito de se descobrir o que
realmente havia por detrás do retorno à mobilidade internacional de capitais.
Concluiu-se que os interesses dos países centrais, com ênfase nos E.U.A., eram
os fatores primordiais ao entendimento desta questão. A mobilidade de capitais era a
alternativa norte-americana para se livrar das restrições externas. Esta relação, vigente
até os dias atuais, possibilita ampla autonomia à política econômica do país central.
V – Bibliografia BELLUZZO, Luis G. de M. "O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados globalizados". In: Economia e Sociedade, n. 4, junho, 1995. _________. "Assim caminha a humanidade". In: FSP, 22 de março de 1998. _________. “Finança global e ciclo de expansão”. In: FIORI, José L. (org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 2000. BRUNHOFF, Suzanne de. “A instabilidade financeira internacional”. In: CHESNAIS, François (coord.). A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. CARDOSO DE MELLO, João M. “A contra-revolução liberal-conservadora e a tradição crítica latino-americana: um prólogo em homenagem a Celso Furtado”. In: FIORI, José Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Ed. Vozes, 1997. CECCO, Marcelo de. Money and empire: the international gold standard, 1890 – 1914. Oxford: Basil Blackwell, 1974. CHESNAIS, François. “Introdução Geral”. In: CHESNAIS, François (coord.). A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998.
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Crise Econômica e Retomada do Crescimento: Regulação, Intervenção e Investimento Público nos Estados
Unidos (1929-1939)
Daniel de Pinho Barreiros Doutor em História Social pela UFF
Email: [email protected]
Resumo: Diante da evidente dissolução do Welfare State nas sociedades de capitalismo
desenvolvido, e dos debates contemporâneos a respeito de uma necessária retomada de
alguns dos aspectos do “Estado Keynesiano”, buscamos neste artigo avaliar a relação
gasto público-crescimento do produto, num contexto de falta de demanda e excesso de
poupança, como o descrito pela historiografia econômica em relação à “´década de
crise” dos anos 1930. Utilizando séries históricas organizadas pelo Bureau of Economic
Analysis norte-americano, bem como pela EUROSTAT, vinculada à União Européia,
analisamos o impacto das iniciativas do New Deal sobre o produto nacional e o
investimento privado, entre outras variáveis, demonstrando haver entre elas uma
correlação positiva, condicionada contudo às especificidades daquela conjuntura
econômica.
Palavras-chave: Crise Econômica, Estado, Crescimento, New Deal, Investimento
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Abstract: Considering the evident dissolution of the Welfare State in developed
capitalist societies, and modern discussions concerning a necessary reclaim of some
aspects regarding the “Keynesian State”, the aim of this article is to appraise the relation
between public expenditure and product growth, in a context of low demand and
excessive savings, as described by economic historiography concerning the “Crisis
Decade” of the 1930’s. Employing historical series assembled by the Bureau of
Economic Analysis of the United States of America, as well by the EUROSTAT,
statistical information service of the European Union, the impact of New Deal on
national product and private investment is analysed, concluding that there is a positive
correlation between them, although restricted to historic especificities of that economic
conjuncture.
Keywords: Economic Crisis, State, Growth, New Deal, Investment
Resumen: Frente a la evidente disolución del Welfare State en las sociedades de capitalismo desarrollado y a los debates contemporáneos acerca de una reanudación necesaria de algunos aspectos del “Estado Keynesiano”, buscamos en este artículo evaluar la relación gasto público – crecimiento del producto, en un contexto donde hay falta de demanda y exceso de ahorros, como lo que fue descrito por la historiografía económica acerca de la “década de crisis” de los años 30 del siglo XX. Utilizando series históricas organizadas por el Bureau of Economic Analysis estadounidense y también por EUROSTAT, vinculada a la Unión Europea, analizamos el impacto de las iniciativas del New Deal en el producto nacional y en la inversión privada, entre otras variables, demostrando existir entre ellas una correlación positiva, condicionada, sin embargo, a las especificidades de aquella coyuntura económica. Palabras-clave: Crisis Económica, Estado, Crecimiento.
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Em 1945, o balanço de quinze anos de crise social não parecia promissor para
muitos observadores, e menos ainda pareciam animadoras as perspectivas para a década
seguinte. Os tradicionais pilares da civilização burguesa ocidental do século XIX, já
erodidos em 1914-1918, encontravam-se definitivamente sepultados em meados dos
anos 40. O consenso em torno da eficácia da doutrina liberal como organizadora das
sociedades, em nível nacional e mundial, foi destruído pela crise econômico-financeira
de 1929, pelos seus desdobramentos por toda a década de 1930, pela emergência de
regimes totalitários no berço europeu do liberalismo, e finalmente pela Segunda Guerra
Mundial, que mesmo tendo consagrado a supremacia das democracias liberais,
vitoriosas contra as forças do Eixo, revelou também o poder do urso soviético, longe de
ser liberal e perto de tornar-se um modelo de desenvolvimento econômico e
institucional para o resto do mundo. Aos olhos dos contemporâneos mais céticos,
portanto, as perspectivas do capitalismo como padrão de organização social e
econômica pareciam as menos promissoras, assediado que estava pela falência do
dogma liberal, pela destruição material causada pela guerra, pela desagregação social
causada pela Crise de 1929, e pela concorrência preocupante da União Soviética, cujos
“agentes” pareciam espreitar em cada esquina, dispostos a “subverter a ordem” e
transformar nações devastadas em satélites socialistas.
Estava claro aos olhos de outros contemporâneos, no entanto, que uma parte
substancial da retomada do capitalismo dependia da reforma de seus pressupostos
liberais. Para muitos membros de uma geração que cresceu sob a influência do “espírito
do tempo” vitoriano, a falência do liberalismo poderia significar o fim do próprio
capitalismo. Para outros – mais jovens, ou nem tanto, como era o caso de John Maynard
Keynes –, a ortodoxia liberal não era condição indispensável para uma sociedade
fundamentada no lucro privado. Assim, em paralelo com manifestações de incerteza
diante da “crise final” da civilização burguesa, um verdadeiro laboratório social de
novas experiências e teorias edificava-se entre as décadas de 1930 e 1940.
Definitivamente os quinze anos de crise subseqüentes ao colapso do sistema
econômico-financeiro mundial em 1929 criaram um amplo clima de reflexão sobre o
papel do Estado na regulação dos fatores produtivos em uma economia de mercado. A
reconstrução das economias capitalistas no pós-1945 e a retomada do crescimento após
a crise econômica dos anos 1930 foram marcadas por uma nova concepção de
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relacionamento entre Estados nacionais e mercados capitalistas que acompanharia
hegemonicamente a civilização ocidental até as crises internacionais de 1973 e 1979
(Droz e Rowley, 1993; Hobsbawm, 1995).
Contrariando as expectativas mais pessimistas, as décadas de 1950 e 1960 foram
marcadas pela retomada do crescimento econômico em níveis não antes verificados,
pela difusão do consumo de massa de bens duráveis e pela expansão do comércio
internacional. Foram tempos de profundas mudanças culturais, de transformação nos
hábitos cotidianos, nos padrões educacionais, nas relações entre as classes sociais, e da
emergência das classes médias urbanas. Estes foram tempos em que o
“desenvolvimento econômico” ganhou estatuto de categoria analítica e teórica; foi o
momento crucial em que um sem-número de países ditos “atrasados” lançaram-se na
busca de meios de superar suas limitações e alcançar os patamares atingidos pelas
economias capitalistas centrais. Este foi um tempo em que, na percepção dos atores
históricos, o desenvolvimento parecia estar ao alcance de qualquer um, como numa
prateleira de supermercado. Abundaram teorias, programas, fórmulas, que tiveram por
objeto a questão do subdesenvolvimento e sua superação. E foi durante os anos de 1950
e 1960 que efetivamente um seleto grupo de países consolidou sua “transição” para
padrões de acumulação baseados na economia urbano-industrial – Índia, Coréia do Sul,
Formosa, México, Argentina e Brasil, principalmente (Arbix et al, 2002). A “época de
ouro do capitalismo” também foi eufórica para os NICs – New Industrialized Countries
– termo pelo qual ficariam conhecidos posteriormente os recém-chegados à sociedade
industrial. Para outros – a maior parte daqueles que reuniram-se na Indonésia, para a
Conferência de Bandung (1953), excetuando a Índia – as promessas de
desenvolvimento rápido foram absolutamente frustradas e a “época de ouro” significou
muito pouco.
Da reconstrução às “sociedades afluentes”, da destruição material pela crise
econômica à consolidação de sociedades cujos ritmos de crescimento do produto e dos
padrões de vida superaram índices históricos, o novo despertar do capitalismo enquanto
modelo e sistema somente foi tornado viável pela “mão visível” do Estado, intervindo
na dinâmica social como empresário e regulador. De um modo ainda mais explícito para
os NICs, a “mão visível” do Estado tomou para si a tarefa de industrializar sociedades
com baixos níveis de acumulação de capital e com classes proprietárias despreparadas
- 17 -
para a industrialização ou dela adversárias. Em ambos os exemplos – de países centrais
ou recém-industrializados – a chave para o sucesso desta nova etapa do capitalismo
residiu no poder do Estado em mobilizar a sociedade para a causa do crescimento /
desenvolvimento econômico.
O Welfare State consistiu na intervenção do Estado na economia para a
expansão industrial (por meio de subsídios, proteção tarifária, política fiscal), para a
promoção do pleno emprego dos fatores (o que significava pleno emprego para o fator
trabalho, ou seja, redução drástica das taxas de desemprego) e para a consolidação de
uma rede de proteção social para garantir o bem-estar de populações fora do mercado de
trabalho (idosos e crianças, especialmente) e desempregados. No Brasil, caso exemplar
de NIC, o desenvolvimentismo foi ideologia e política de Estado voltadas para a
industrialização tendo com um de seus pilares o Trabalhismo (Gomes, 1994), fenômeno
mobilizador das massas para as agruras do processo de desenvolvimento nacional. Em
suma, a “época de ouro”, tanto nos países centrais quanto nos NICs foi um momento de
marcada coesão social, o que não significou a ausência de conflitos. Foi através da
mobilização das sociedades para a reconstrução/construção do capitalismo industrial
através da ação dos Estados nacionais que as décadas de 1950 e 1960 tornaram-se o
palco de transformações que alteraram definitivamente o mundo tal como existira antes
das duas Grandes Guerras..
A fragilidade de um sistema econômico mundial regido pelo “ordenamento
natural” do mercado foi posta às claras pela hecatombe financeira e comercial
deflagrada pelo crack da New York Stock Exchange, em outubro de 1929. Esta
fragilidade fora sistematicamente ocultada pela retórica do liberalismo econômico desde
seus pais fundadores, ou simplesmente não percebida. O pensamento econômico liberal,
na plenitude de sua influência em meados do século XIX, assumiu de modo axiomático
a verdade em torno do caráter “natural” da auto-regulação dos mercados e do caráter
“artificial” e “lesivo” da regulação do Estado sobre sociedade, em especial no que
concerne ao funcionamento da economia 17. Em outras palavras isto significava, para os
formuladores de políticas e pensadores da Economia vinculados aos princípios liberais,
que não importava o quão “desviante” fosse o comportamento conjuntural de uma
17 Para uma análise das idéias econômicas na eminência da crise de 1929 ver o clássico trabalho de Slichter, 1964: 15-50. Outro importante trabalho, mas tratando dos parâmetros da análise econômica nos Estados Unidos numa perspectiva intertemporal, é o de O’Connor, 1977,
- 18 -
determinada economia nacional ou do sistema capitalista como um todo; com o devido
tempo, “naturalmente” seus indicadores tenderiam a retornar ao equilíbrio. A
intervenção do Estado foi aceita, em alguns casos, como um instrumento auxiliar de
correção das “falhas de mercado” que estivessem por ventura dificultando o retorno à
estabilidade natural. O papel do Estado como regulador dos fatores produtivos,
planejador da atividade econômica e empresário, entretanto, foi sistematicamente
repudiado pelas diferentes correntes do liberalismo econômico (Galbraith, 1972: 37-52).
Mas a hegemonia da ortodoxia liberal foi solapada pela força dos fatos. No
crepúsculo dos anos 1920, as teorias sobre a auto-regulação dos mercados e sobre a
tendência natural ao equilíbrio estavam cristalizadas como o mainstream da ciência
econômica ocidental, e encontravam um respaldo substancial na prática dos homens de
Estado. Os instrumentos de política econômica manipulados na Europa ocidental e nos
Estados Unidos giravam em torno das principais recomendações e “verdades
científicas” elaboradas por economistas ligados à tradição neoclássica nas universidades
européias e norte-americanas. Este estado de coisas propiciou uma ambiência de
incompreensão a respeito da natureza do crack, e em especial, da depressão mundial
que a ele se seguiu. Mais ainda, a inadequação do instrumental teórico liberal foi o
principal responsável pela inércia dos governos 18, e em muitos casos, deu base para
determinadas intervenções públicas que aprofundaram ainda mais os efeitos lesivos da
crise.
A Grande Depressão dos anos 1930 teve seu epicentro nos Estados Unidos a
partir de um intenso movimento especulativo que provocou a quebra da NYSE. Até o
início de 1928, as ações mantiveram suas cotações em alta acompanhando a elevação
dos lucros das empresas cujo capital integralizavam. A partir do mês de março deste
ano, iniciou-se uma progressiva elevação do valor das ações negociadas na Bolsa em
relação aos lucros reais das empresas. Esta elevação aconteceu de forma absolutamente
especulativa. A tendência altista das cotações, anterior a 1928, criou a expectativa de
obtenção de ganhos rápidos. Na medida em que a procura pelas ações foi aumentando
18 Ainda que o instrumental teórico neoclássico tenha sido inadequado para o diagnóstico e a terapia dos problemas advindos do capitalismo em sua fase monopolista, cabe argumentar que foi extremamente eficaz como discurso legitimador e instrumento para a ampliação dos lucros da burguesia industrial e financeira, pelo menos até o colapso da década de 1930. Podemos argumentar que a “inércia” dos Estados diante da escalada de especulação beneficiou a acumulação privada até a eclosão da crise, o que sugere alguma intencionalidade na ação pública e adequação do discurso liberal aos interesses da classe proprietária. Argumentos conclusivos exigiriam, no entanto, pesquisa empírica apropriada.
- 19 -
em relação à oferta, seu valor foi elevando-se “artificialmente” acima de seu substrato
concreto, o lucro real das empresas 19. Muito cedo, o que passava a atrair os
compradores de ações não era a esperança dos dividendos, mas sim a perspectiva de
lucros rápidos em dinheiro, com base na compra e venda de títulos (Niveau, 1969: 222-
223). As ações da General Motors, negociadas em 1926 por US$ 18,00, estavam sendo
vendidas a US$ 92,00 em 1928. Já os dividendos referentes às ações, com base no lucro
da empresa, baixaram de 13% para 6% neste mesmo período. Já no caso da General
Electric, passam de US$ 80,00 para US$ 403,00, e os dividendos de 7% para 2%
(Philip, 1965: 292-293).
Ainda que a euforia pelos ganhos rápidos no mercado de ações tenha se
espalhado também pelas classes médias urbanas, foram as grandes empresas as
principais responsáveis pelo crack, devido a questões específicas da experiência
histórica dos Estados Unidos da década de 20. A prosperidade norte-americana de 1920-
1929 não foi tão generalizada quanto havia sido então apregoado, em especial pelos
observadores internacionais que satisfizeram-se em atestar um suposto “milagre
americano”. Foi em especial o setor de bens de consumo duráveis e sua cadeia
produtiva – indústrias mineiras, elétricas, mecânicas, de borracha, de vidro, de refino de
petróleo – o carro-chefe da expansão econômica da década de 1920, que conviveu com
setores estagnados tais como o têxtil, ferroviário e carvoeiro, responsáveis por parte
importante da geração de empregos.
Na agricultura, os farmers haviam expandido a área semeada de 43 para 76
milhões de acres entre 1916 e 1929, em especial com o objetivo de atenderem aos
esforços dos Aliados europeus durante a Primeira Guerra Mundial. Para tal, recorreram
ao crédito, expandindo sua dívida hipotecária de US$ 3.520 milhões para US$ 9.500
milhões. Entretanto, a recuperação da agricultura européia em especial a partir de 1928,
com a entrada no mercado internacional do trigo soviético e da Europa Central,
acentuou a tendência à baixa dos preços agrícolas, que somada à degradação das terras
do Meio-Oeste em função dos anos de uso extensivo, reduziu a renda dos farmers
sensivelmente. Tudo isso somado à diminuição do percentual dos salários no produto
nacional fez com que o poder de compra dos agricultores e operários estivesse muito
aquém da produção industrial, impondo rapidamente limites à expansão das vendas. Os
19 Em uma perspectiva comparativa sobre as décadas de 1930 e 1970, consultar Magdoff e Sweezy, 1978:
- 20 -
lucros das grandes empresas, ao invés de engendrarem novos investimentos, passaram a
ser aplicados na especulação com ações na Bolsa (Philip, 1965: 289-291). As
declarações otimistas dos grandes capitães da indústria a respeito de um futuro próspero
para a economia norte-americana e da “assegurada” expansão dos lucros contribuíram
para criar uma ambiência de euforia, em especial sobre o pequeno investidor. Agindo
portanto como um legítimo homo economicus neoclássico, buscando maximizar seus
lucros e otimizar o emprego de seus recursos, a decisão “racional” do investidor norte-
americano não levou ao equilíbrio tal como teorizado pela ortodoxia, mas à ruptura
(Galbraith, 1972: 60-71).
Após um primeiro recuo das cotações da bolsa em junho de 1928, a vitória da
candidatura do republicano Herbert Hoover (1874-1964) – cuja campanha enfatizou o
“perigo” que os Democratas representariam para o crescimento da economia –
proporcionou uma nova tendência para a alta. Os bancos passaram a oferecer
empréstimos para a compra de títulos na Bolsa, e a procura fez com que os bancos de
Nova Iorque oferecessem crédito a curtíssimos prazos, a juros de 12%, tomando
empréstimos junto ao Federal Reserve a juros de 5%. Operadores financeiros (brokers)
intermediavam empréstimos em dinheiro para a especulação aceitando como garantia as
próprias ações compradas na Bolsa. Garantidos pela cláusula stop loss, particularidade
do mercado norte-americano de valores na época, estes agentes poderiam exigir de seus
clientes um depósito suplementar em dinheiro sempre que as cotações da Bolsa
iniciassem um movimento de baixa, de modo a compensar a garantia de crédito baseada
nos títulos comprados. Se os devedores não honrassem este compromisso, os credores
poderiam vender os títulos depositados a fim de diminuir seus prejuízos 20.
O Federal Reserve Board tentou “auxiliar” os mercados a encontrarem seu
equilíbrio através da elevação das taxas de juros de 3,5% para 6% em 1928, com a
intenção de limitar o crédito. No entanto, o FED não pôde ir adiante com a política
contracionista em função de seus impactos sobre a atividade agrícola – cessação da
mobilização para as colheitas, queda ainda maior dos preços dos produtos alimentares e
impactos sobre os empréstimos hipotecários feitos pelos farmers. E ainda como efeito
71-78). 20 Niveau estima que o total de empréstimos de curtíssimo prazo por parte de brokers saltou de US$ 1.000 milhões entre 1923-1924 para US$ 3.500 milhões em 1927, para US$ 5.000 milhões em junho de 1928, US$ 6.000 milhões em novembro de 1928 e US$ 7.000 milhões em outubro de 1929. Este é um bom índice da tendência à especulação (Niveau, 1969: 224)
- 21 -
deletério, a elevação das taxas de juro atraiu capitais de origem européia e norte-
americana, investidos em praças da Europa ocidental, com alta volatilidade, para o
circuito especulativo da NYSE, pondo por terra os esforços de controle monetário do
governo dos Estados Unidos (Philip, 1965: 292).
O colapso da Bolsa ocorreu ao longo de outubro de 1929. As ações começaram a
demonstrar sinais de queda nas cotações já nos primeiros dias do mês, o que levou a um
movimento por parte dos proprietários de tentar resgatar a maior quantidade de dinheiro
por elas antes que seus valores despencassem ainda mais (Galbraith, 1972: 104-115).
Diante da baixa, os brokers exigiram dinheiro de seus clientes para a garantia
suplementar dos créditos concedidos. Sendo impossível para os devedores cumprirem o
estabelecido, os brokers receberam ordens de venda dos títulos retidos como garantia,
que lançados simultaneamente no mercado, provocaram o colapso do seu valor e a
bancarrota. No dia 24, foi declarado o pânico geral diante da oferta repentina de
12.894.650 ações, com procura quase nula. Os preços acentuaram sua tendência de
queda, pressão contida pelos bancos que intervieram através da compra de títulos. Na
segunda-feira, dia 28, a intervenção parecia ter tido nenhum efeito, visto que mais
9.250.000 ações foram postas à venda, sem que os bancos tenham arriscado-se
novamente a empreender compras na praça para manter os preços. Na terça-feira 29,
ápice da crise, foram aproximadamente 33.000.000 de ações à venda, sem comprador.
De setembro de 1929 a janeiro de 1933, 30 títulos tiveram seu valor médio reduzido de
US$364,9 para US$64,7 por ação. As obrigações, representando títulos de empréstimos
públicos, caíram de US$ 141,9 para US$ 28 (Galbraith, 1972: 159-167). Neste mesmo
período, o valor total do capital movimentado na NYSE foi reduzido em cerca de US$
74.000.000.000. Somente entre outubro e novembro de 1929, os poupadores e
especuladores tiveram um prejuízo da ordem de US$ 30.000.000.000 (Philip, 1965:
292-293; Niveau, 1969: 224-225).
Ao crack seguiu-se uma profunda depressão que rapidamente irradiou-se para o
restante das economias nacionais com as quais os Estados Unidos mantinham contatos
comerciais e financeiros. De 1930 a 1933 o Produto Interno Bruto real norte-americano
registrou taxas de crescimento fortemente negativas. Em 1932, ponto mais crítico, o PIB
real era uma fração de 70% do que fora acumulado em 1929. A crise provocou uma
situação de instabilidade, com sensíveis oscilações: entre os pólos, registrava-se um
- 22 -
crescimento negativo da ordem de –13,2% em 1932, e um crescimento positivo de
14,21% em 1936. No entanto, os avanços e recuos da economia somente permitiram
que em 1939 fosse possível superar-se os resultados obtidos em 1929: uma década
perdida, portanto.
Tabela 1.1 – Estados Unidos da América Produto Interno Bruto Real (1926-1939)
Ano PIB Real *
(bilhões de dólares de 1990)
Taxa de Crescimento ** (%)
1926 860.16 6.52 1927 868.74 1.0 1928 878.46 1.12 1929 932.22 6.12 1930 849.29 -8.9 1931 784.09 -7.68 1932 680.58 -13.2 1933 666.28 -2.1 1934 717.75 7.73 1935 772.65 7.65 1936 882.46 14.21 1937 920.21 4.28 1938 883.61 -3.98 1939 953.95 7.96
Fontes: * Maddison, Angus. Monitoring the World Economy (1820 – 1992). Paris, OCDE, 1995.
** EUROSTAT. Eurostatistics: ESVG – Aggregates. Luxembourg, Eurostat, 1998. O desemprego nos Estados Unidos atingia aproximadamente 4.600.000 pessoas
em 1930 e 13.000.000 em 1933, correspondendo neste último caso a 27% da população
economicamente ativa. Assumindo-se o ano de 1926 como índice 100, a massa salarial
em 1929 era de 100,5, declinando para 81,3 em 1930, 61,5 em 1931, 41,6 em 1932 e 44
em 1933. Entre 1929 e 1932, cerca de 5.000 dos 24.000 bancos norte-americanos
suspenderam seus pagamentos. A estrutura bancária dos Estados Unidos, baseada em
pequenos bancos locais, contribuiu para que a crise tivesse ainda maior amplitude21. A
derrocada dos preços dos produtos agrícolas, já verificada nos anos 20, impediu que
parcela substancial dos farmers pudesse pagar os empréstimos que haviam sido a base
da expansão agrícola desde 1916, o que expôs a dependência destas empresas
financeiras em relação ao sucesso ou fracasso da região onde atuavam. A inadimplência
21 Sobre o sistema bancário norte-americano ver Teixeira, 1999:171-173.
- 23 -
dos agricultores foi um fator importante para as falências bancárias e para a difusão dos
efeitos da crise pelo território norte-americano. Com isso a depressão norte-americana
rapidamente estendeu-se para o resto do mundo, tendo como correia de transmissão o
comércio internacional, onde os Estados Unidos tinham participação central. Ainda que
as trocas internacionais tenham decrescido menos que a produção industrial mundial
(25% contra 37%, entre 1929 e 1932), a derrocada dos preços provocou uma diminuição
de 60% do valor transacionado. A repatriação de capitais norte-americanos investidos
na Europa foi outro fator importante para a extensão da crise por este continente
(Niveau, 1969: 226-228).
Entre 1930 e 1933, o consumo de bens duráveis, carro-chefe da expansão
econômica norte-americana nos anos 20, declinou a taxas reais mais altas que o Produto
Interno Bruto, tendo como piores resultado os índices de –17,6% em 1930 e –25,1% em
1932, comparado à uma queda do PIB real de –8,6% e –13% nos respectivos anos. O
investimento privado teve reduções ainda mais alarmantes comparado à queda do
Produto Interno Bruto: –37,2% em 1931 e –69,8% em 1932, com notável recuperação
de 80,6% em 1934. Os gastos e investimentos públicos, por sua vez, seguiram uma
tendência eminentemente inversa: em 1930, diante da queda de –8,6% do PIB, os gastos
federais expandiam-se em 11,1%, e os gastos dos governos estaduais e locais em 10%.
Em 1933, diante de uma queda de –1,4% no PIB, os gastos públicos elevaram-se num
montante da ordem de 10,5%. Em 1936, já em um momento de recuperação anterior à
nova queda em 1938, o PIB registrava elevação de 12,9%, e os gastos públicos federais
52%, aproximadamente. Neste período de crise, os gastos e investimentos públicos
federais evoluíram a taxas sempre positivas – excetuando no ano de 1937 – e maiores
que as taxas de crescimento registradas nos investimentos públicos estaduais e locais.
- 24 -
Tabela 1.2 – Estados Unidos da América Taxa de Crescimento do Produto Interno Bruto Real e de indicadores macroeconômicos
relacionados (1930-1939) em dólares de 1996 22
Consumo Pessoal (%) Exportações
(%) Importações
(%)
Gastos + Investimento Bruto
Público (%)
Ano PIB (%)
Dur
áve
is
Nã
o-du
ráve
is
Se
rviç
os
Invest. Interno Privado Bruto (%) B
ens
Se
rviç
os
Be
ns
Se
rviç
os
Fe
dera
l
Est
adu
al e
L
oca
l
1930 –8,6 – 17,6 –4,7 –2,5 –33,3 –17,8 –13,0 –15,7 –2,8 11,1 10,0 1931 –6,4 – 14,5 –0,5 –3,1 –37,2 –17,3 –13,7 –12,7 –13,1 3,6 4,5 1932 –13,0 –25,1 –8,2 –6,4 –69,8 –22,5 –17,1 –19,2 –11,5 1,9 –4,5 1933 –1,4 –1,9 –1,5 –3,2 47,5 –0,5 6,5 12,3 –15,9 22,9 –10,4 1934 10,8 15,5 8,6 3,7 80,6 10,2 18,3 2,3 1,8 34,8 5,1 1935 9,0 22,1 6,0 3,1 85,1 4,8 10,0 37,4 7,4 2,1 3,3 1936 12,9 22,7 11,7 5,0 28,2 5,2 4,0 –3,7 10,9 52,5 –0,4 1937 5,3 5,4 3,6 3,5 25,0 25,7 28,0 11,8 15,5 –9,2 0,4 1938 –3,5 –18,3 1,4 –1,1 –33,9 1,6 –15,7 –23,8 –16,5 10,2 5,7 1939 8,1 18,8 5,2 3,1 28,6 5,5 6,1 8,9 –6,7 7,8 10,1
Fonte: BEA – Bureau of Economic Analysis, U.S. Department of Commerce. NIPA – National Income and Product Accounts. Table S.1. Summary of Percent Change from preceding period in Real Gross Domestic Product and Related Measures. September 2003 edition.
Através da análise dos dados da Tabela 1.2 podemos perceber a interação entre
as taxas de crescimento dos gastos e investimentos do governo federal e a evolução do
investimento privado bruto. Em linhas gerais, a tendência de alta ou queda nos
investimentos públicos em um ano foi seguida por uma tendência similar nos
investimentos privados no ano seguinte, especialmente após 1933. Ao incremento de
1,9% nos gastos federais em 1932 (antecedidos por investimentos de 11,1% e 3,6% nos
anos precedentes) seguiu-se o crescimento de 47,5% nos investimentos privados no ano
seguinte. Em 1933, a elevação de 22,9% nos dispêndios do governo federal precedeu
uma expansão de 80,6% na inversão privada em 1934. Já a redução dos gastos públicos
de –9,2% em 1937 antecedeu uma queda de –33,9% dos investimentos privados em
1938. A relação entre estes indicadores pode ser visualizada no Gráfico 1.1:
22 As taxas de crescimento e valores dos indicadores apontados pelo BEA diferenciam-se dos apontados pelo EUROSTAT e pela OCDE devido a questões de ordem metodológica e em função do diferente ano-base para o encadeamento do cálculo do Produto Interno Real (1990 para o Eurostat e OCDE, 1996 para o BEA)
- 25 -
Gráfico 1.1 – Estados Unidos da América Taxas de Crescimento do Investimento Privado Bruto e dos Investimentos e Gastos
Públicos Federais (1930-1939) em dólares de 1996
-80
-60
-40
-20
0
20
40
60
80
100
1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939
Anos
%
Investimento Privado Bruto Investimento e Gastos Públicos Federais
Fonte: Gráfico elaborado com dados do BEA – Bureau of Economic Analysis, U.S. Department of Commerce. NIPA – National Income and Product Accounts. Table S.1. Summary of Percent Change from preceding period in Real Gross Domestic Product and Related Measures. September 2003 edition.
Ainda que os dados quantitativos nos permitam apenas uma comparação
empírica entre a evolução da taxa de investimento privado e o gasto público, sem
revelar diretamente as relações de causalidade entre estas duas variáveis
macroeconômicas, eles fortalecem o argumento de que a solução para a crise
econômico-financeira no contexto norte-americano dependeu em grande medida do
planejamento e da intervenção do Estado, reformado de modo a fazer frente à uma nova
era do capitalismo que mostrava seus primeiros sinais, repleta de desafios antes
impensados, ou no melhor dos casos, subestimados. Em larga medida, este foi o
caminho trilhado pela maior parte das sociedades atingidas pela crise, ou pelo menos
por aquelas que conseguiram burlar-lhe os efeitos mais deletérios. Para os intelectuais
engajados no debate econômico e para as burocracias estatais tornava-se cada vez
menos verossímil sustentar-se a idéia de que a prosperidade viria pelo somatório de um
poder público lacônico e de um mercado soberano e pretensamente auto-regulado. O
- 26 -
dogma do equilíbrio, tão caro à intelectualidade neoclássica, amplamente aceito pelas
elites empresariais – em especial pelos seus membros ligados ao mercado financeiro – e
pelas burocracias estatais, esfacelava-se diante dos desafios impostos à sobrevivência da
acumulação privada. A “mão visível” do Estado fora aclamada com entusiasmo pelas
burguesias industriais nas grandes economias capitalistas modernas, vista sob um
prisma soterológico durante a vigência da crise, e aceita posteriormente como ideal
reguladora, sinalizadora e protetora do funcionamento dos mercados 23.
A eleição do democrata Franklin D. Roosevelt (1882-1945) para a presidência
da República e seus quatro mandatos consecutivos, exercidos entre 1933 e 1945, foram
marco referencial para a reforma do Estado norte-americano pós-1929, e expressaram a
representatividade social que desfrutava a idéia de uma solução heterodoxa para a
depressão econômica. Através do New Deal (“novo trato”, “novo pacto”), Roosevelt
propôs a reconstrução das relações entre Estado e sociedade civil tendo por base as
necessidades da acumulação privada e as demandas sociais emergentes de um contexto
sócio-econômico que prenunciava uma nova fase no capitalismo mundial. Esta
reconstrução foi inovadora na medida em que alçou o Estado, de uma forma inédita, à
condição de “fiel da balança” da economia norte-americana. A intervenção sistemática
do poder público no funcionamento dos mercados buscou reativar o consumo e o
investimento privado através de subsídios, regulação e incentivos, bem como controlar
o “excesso de liberdade” dos agentes econômicos privados, origem identificada dos
“abusos” que deram origem à crise 24.
A intervenção governamental no domínio econômico nos anos 30 iniciava a “era
dos economistas no poder”: Roosevelt cercou-se de um brain trust formado
principalmente por professores universitários de Harvard (os “cabeças de ovo”) que
formaram sua assessoria econômica para o combate à depressão. Entretanto, isto não
significou que o tempo dos grandes planejamentos econômicos já estivesse consolidado.
A ação estatal no espírito do New Deal foi uma sucessão de projetos sem uma sólida
formulação teórica prévia, basicamente empíricos, o que levava a uma intervenção
calcada em “tentativas e erros”: se um projeto não resultasse no efeito esperado,
23 Para uma interessante análise sobre a intervenção do Estado na economia norte-americana ver Berle 1968: 80-98. 24 Maurice Niveau, Op. Cit., p. 242.
- 27 -
tentava-se algo no sentido oposto, e se não tivesse sucesso novamente, faziam-se
correções até que os resultados fossem os mais próximos do desejável 25.
Foi com base em um franco experimentalismo que o governo empreendeu uma
política monetária reflacionista visando, através da elevação dos preços, resgatar a
confiança dos investidores, a expansão dos investimentos privados e o poder aquisitivo
dos trabalhadores. No início de 1993, Roosevelt ainda mantinha uma abordagem
monetarista, preocupado com a estabilidade da moeda e com o equilíbrio nos gastos
públicos. Entretanto, através do Senado, os farmers, protestavam em favor da inflação,
visto terem interesse na elevação dos preços dos produtos agrícolas que vinham em
franco declínio desde os anos 1920, e contra a execução das hipotecas e expropriação
dos devedores insolventes. No Senado, as opiniões dividiam-se: no início de abril de
1933, um projeto de Lei que visava garantir a emissão ilimitada de moeda foi rejeitado
por uma margem de apenas três votos – quarenta contrários, trinta e sete favoráveis.
Diante da pressão da opinião pública e dos fatos, Roosevelt abandonou o terreno
“sólido” do contracionismo monetarista e aceitou um projeto econômico de crescimento
com (e pela) inflação. Em 19 de abril de 1933 estabelecia o abandono do padrão-ouro na
regulação do valor do dólar, abrindo espaço para uma política emissionista. Em 12 de
maio de 1933, alterações no Agricultural Adjustment Act 26conferiram ao presidente
poderes discricionários para desvalorizar o dólar em até 50% do seu valor-ouro e para
ordenar aos federal reserve banks que emitissem moeda num montante de até US$
3.000.000.000, sem contrapartida em ouro, e que aumentassem seus créditos em mais
US$ 3.000.000.000 27.
Os consumidores e investidores alteraram suas expectativas diante da
possibilidade de uma elevação generalizada de preços. Sob a influência do neoclássico
Irving Fisher (1867-1947), o governo norte-americano lançou uma política de
desvalorização sistemática da moeda. A preferência pela liquidez manifestou-se diante
da eminência de inflação, fazendo com que capitais antes entesourados fossem lançados
25 André Philip, Op. Cit., p. 311. 26 Sobre a intervenção do New Deal na atividade agrícola ver Woods, 1963: 60-74. 27 Ainda no que diz respeito à questão do crédito e do sistema bancário, o governo Roosevelt sancionou, em 16 de junho de 1933, o Banking Act, com a função de corrigir algumas deficiências históricas do sistema bancário norte-americano. Criou-se a Federal Deposit Insurance Corporation, sistema de seguros público com a função de proteger os depósitos bancários. Ainda através do Banking Act foram criados entraves legais para a coibir a distribuição de créditos que pudessem vir a financiar novos movimentos especulativos (Niveau, 1969, 242-243; Philip, 1965: 312-314).
- 28 -
ao mercado. Investidores em títulos bancários buscaram convertê-los em valores reais,
temerosos pelas possíveis perdas inflacionárias. A procura por mercadorias e a ação dos
intermediários especuladores expandiu-se tendo em vista a intenção generalizada de
formação de estoques de provisões antes que os preços tornassem-nos inviáveis. Em
suma, a expectativa dos atores econômicos diante da possibilidade de inflação fizera
com que o índice de produção saltasse de 60 para 100 entre março e julho, o de emprego
de 57 em março para 74 em setembro e o nível de salários de 37 em março para 58 em
setembro. A renda dos agricultores teve um aumento de 62% neste mesmo período em
face da elevação de 30% nos preços dos produtos agrícolas contra 3% nos preços dos
manufaturados.
Entretanto, a tendência de melhoria nos indicadores estancou ao passo que a
inflação não se concretizara tal como se esperava, mesmo tendo o governo realizado
compras de ouro em praças estrangeiras a preços elevados, o que contribuiu para a baixa
do dólar. Entre julho e setembro, a atividade econômica retrocedeu, tendo o índice de
produção industrial baixado de 100 em julho para 72 em novembro – resultado melhor,
no entanto, que o índice 60 registrado em março. Os preços gerais se estabilizaram por
volta do índice 70, apesar da elevação dos preços dos produtos agrícolas. O nível de
emprego também estacionou entre o índice 72 e 74.
Os primeiros momentos do New Deal e da intervenção do Estado norte-
americano em reforma tiveram ênfase na política monetária. Entretanto, a retomada do
investimento privado e do crescimento do PIB foi pouco influenciada por ela. A opção
pela desvalorização como estratégia inflacionária de reaquecimento da atividade
produtiva interna tinha limites em uma economia como a norte-americana, voltada
especialmente para o mercado interno. A depreciação do valor do dólar foi um
interessante incentivo à exportação, mas teve influência reduzida sobre a produção e os
preços internos. Considerando que o papel das trocas internacionais na economia dos
Estados Unidos era, à época, de pequena expressão no PIB, a intervenção calcada na
política monetária, tal como foi concebida, teve efeitos menores (Niveau, 1969: 242;
Philip, 1965: 314-316).
Através da Tabela 1.2. vemos que em 1930 as exportações norte-americanas
haviam sido reduzidas em –17,8% (bens) e –13,0% (serviços). Em 1932, as cifras foram
- 29 -
de –22,5% e –17,1%. A desvalorização do dólar em 1933 iniciou a inversão da
tendência, registrando-se uma queda de –0,5% na exportação de bens e um aumento de
6,5% em serviços. Já no ano de 1934, este percentual era de 10,2% e 18,3%. O Produto
Interno Bruto Real também registrou uma mudança na tendência, saltando de uma
queda de –1,4% em 1933 para o crescimento de 10,8% em 1934. Entretanto, através da
Tabela 1.3., podemos perceber a pequena participação das trocas internacionais na taxa
de crescimento do PIB real. Apesar do crescimento das exportações de bens em 1934 ter
sido maior que o crescimento do consumo de bens não-duráveis (10,2% e 8,6%,
respectivamente), as exportações de bens correspondiam a somente 0,33% dos 10,8% de
crescimento do PIB real (ou seja, uma participação, em linhas gerais, de somente 3%).
O consumo de bens não-duráveis neste mesmo ano contribuiu com 3,45% dos 10,8% de
crescimento do Produto Interno Bruto real (uma participação de 32%,
aproximadamente).
Mesmo que os resultados da desvalorização do dólar e do aumento das
exportações tenham tido pequena influência no conjunto da atividade econômica norte-
americana, a acentuada queda do PIB manifesta desde 1930 inverteu-se nitidamente em
1933-1934. E apesar da estagnação dos índices de produção industrial, o investimento
privado bruto saltou de uma queda de –69,8% em 1932 para uma elevação de 47,5% em
1933. Apesar de necessária, a intervenção do Estado em matéria de política monetária
não era novidade; mesmo os Estados com orientações assumidamente ortodoxas no
século XIX e no início do século XX haviam praticado-a regularmente, uma vez que era
aceita pelo pensamento liberal como uma das prerrogativas do poder público
(juntamente com a proteção à propriedade privada, a justiça e a defesa nacional). A
novidade estava no cerne da reforma do Estado norte-americano: as novas prerrogativas
do poder público, tornado empresário, controlador, fomentador da atividade econômica
e árbitro do conflito entre classes, que explicam os sucessos – e também os fracassos –
do New Deal contra os efeitos da crise estrutural do capitalismo em sua vertente liberal.
- 30 -
Tabela 1.3 – Estados Unidos da América Percentual das Contribuições para as Taxas de Crescimento do Produto Interno Bruto
Real (1930-1939) em dólares de 1996
Consumo Pessoal (%) Exportações
(%) Importações
(%)
Gastos + Investimento Bruto
Público (%)
Ano PIB (%)
Dur
áve
is
Nã
o-du
ráve
is
Se
rviç
os
Invest. Interno Privado Bruto (%) B
ens
Se
rviç
os
Be
ns
Se
rviç
os
Fe
dera
l
Est
adu
al e
L
oca
l
1930 –8,6 –1,55 –1,69 –0,73 –5,23 –0,89 –0,08 0,63 0,03 0,18 0,75 1931 –6,4 –1,44 –0,18 –1,0 –4,32 –0,69 –0,08 0,40 0,15 0,07 0,42 1932 –13,0 –1,79 –3,03 –2,24 –5,33 –0,72 –0,09 0,50 0,12 0,05 –0,48 1933 –1,4 –0,12 –0,58 –1,18 1,15 –0,01 0,03 –0,28 0,15 0,71 –1,26 1934 10,8 0,95 3,45 1,29 2,78 0,33 0,08 –0,06 –0,01 1,39 0,59 1935 9,0 1,4 2,45 0,98 4,51 0,17 0,05 –1,0 –0,05 0,10 0,37 1936 12,9 1,59 4,69 1,49 2,53 0,17 0,02 0,13 –0,08 2,45 –0,04 1937 5,3 0,41 1,41 0,96 2,58 0,81 0,14 –0,37 –0,12 –0,59 0,03 1938 –3,5 –1,41 0,52 –0,31 –4,24 0,06 –0,10 0,79 0,15 0,57 0,49 1939 8,1 1,27 2,19 1,0 2,48 0,22 0,04 –0,24 0,05 0,10 1,0
Fonte: BEA – Bureau of Economic Analysis, U.S. Department of Commerce. NIPA – National Income and Product Accounts. Table S.2. Summary of Contributions to Percent Change in Real Gross Domestic Product. September 2003 edition.
Após o relativo malogro da tentativa de elevação geral dos preços internos com
base na desvalorização do dólar, Roosevelt sancionou o Gold Act em 24 de janeiro de
1934 que estabeleceu mais uma vez o lastreamento da moeda nacional pelo padrão-
ouro, imobilizando assim a desvalorização de 40% do valor do dólar ocorrida ao longo
do período emissionista “experimental”. O Estado norte-americano abandonou então a
ênfase em uma política monetária inflacionista, passando a investir mais nas políticas
setoriais já implementadas em 1933, voltadas para a agricultura, indústria e serviços,
que viessem a elevar preços específicos e recompor o poder de compra das categorias
ligadas a estes setores da economia.
A intervenção do Estado na economia agrícola havia iniciado-se em 1929, ainda
sob a presidência do republicano Herbert Hoover, com a criação do Federal Farm Relief
Board, que tinha por meta a compra e estocagem de produtos agrícolas para retirá-los
do mercado e forçar uma elevação de preços. A política revelou-se um fracasso visto
que não levou em conta as dimensões da produção agrícola nacional, muito superior às
- 31 -
necessidades de consumo internas, e com excedentes voltados para a exportação. Em
1933 o Agricultural Adjustment Act alterou a orientação dada por Hoover para a
questão, passando a enfatizar a redução da área plantada e a recomposição da renda do
setor agrícola ao invés de uma política de estoques. Roosevelt foi autorizado a
estabelecer acordos com os farmers e suas associações para a diminuição das áreas de
semeadura e eliminação de pés já semeados. Em contrapartida, o governo estabelecia
uma processing tax, cobrada do consumidor, equivalente à diferença entre o preço do
produto agrícola naquele momento e o preço de paridade no período 1900-1913. Assim,
sempre que os preços fossem inferiores ao nível registrado no começo do século, o
governo compensaria os farmers, em forma de subsídio, a partir dos recursos obtidos
pela processing tax, a fim de que fosse restituída sua renda e poder de compra em níveis
similares aos anteriores à Primeira Guerra Mundial e à Depressão.
Os resultados foram inesperados: ao honrarem o compromisso de redução da
área plantada, os farmers concentraram a aplicação de capital em menores espaços de
terra, aumentando o rendimento do trabalho e mantendo a produção global praticamente
nos mesmos níveis. Em 1934, o Estado interveio com maior rigor, atribuindo limites
para a produção comercializável de cada farmer e estipulando multa para os excessos
estabelecidos, de até metade do valor comercializado ilegalmente. O governo autorizou
também a criação dos federal land banks, com o poder de emitir US$ 2.000.000.000 em
obrigações para aquisição de hipotecas rurais, com taxas de juros reduzidas (4%) e
amortização do capital suspensa por cinco anos. Em contrapartida, era exigida pelo
governo redução de capital por parte dos tomadores de crédito, o que numa situação de
endividamento crônico foi aceito pelos farmers.
Apesar dos esforços, os resultados esperados não foram obtidos integralmente.
No período de 1932-1939, verificou-se redução da população ativa agrícola em 7%,
redução nas áreas plantadas de trigo, milho, fumo e algodão em 20%, uma elevação da
produtividade do trabalho em 22% por conta da racionalização dos processos e do
emprego do capital e a expansão da produção agrícola global em 11%. O fracasso do
Estado na redução da área plantada não significou, entretanto, a derrota da política
setorial: as medidas de crédito hipotecário possibilitaram a recomposição empresarial
dos farmers em bases mais racionais, e a renda do setor acabou tendo de ser preservada
– mas não elevada – com base em uma política de preços mínimos (Philip, 1965: 316-
- 32 -
318; Niveau, 1969: 243). Através do Gráfico 1.2, podemos verificar que a partir de
1933 a renda agrícola abandona a tendência de diminuição, expressa até o ano anterior,
e salta para US$ 2,6 bilhões, tendo com pontos mais altos os resultados de US$ 5,3
bilhões em 1935 e US$ 6,0 bilhões em 1937. Entretanto, estabiliza-se em US$ 4,4
bilhões nos anos de 1938 e 1939, mesmo valor, em dólares correntes, registrado no ano
de 1930.
Gráfico 1.2 – Estados Unidos da América Renda Nacional – Setor Agrícola (1930-1939)
bilhões de dólares correntes
4,43,5
2,1
2,6
2,9
5,3
4,3
6
4,4 4,4
1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939
Anos
Bilh
ões
de U
S$
Renda Agrícola
Fonte: Gráfico elaborado com dados do BEA – Bureau of Economic Analysis, U.S. Department of Commerce. NIPA – National Income and Product Accounts. Table 1.15. National Income by Sector, Legal form of Organization and Type of Income. August 2002 edition.
O Estado norte-americano buscou intervir também na transformação estrutural
do combalido setor industrial através do National Industrial Recovery Act (N.I.R.A.),
sancionado em 16 de junho de 1933 (Woods, 1963: 43-59). A depressão provocara
sensíveis mudanças na retórica dos mais eminentes líderes das elites industriais. O
dogma do livre-empreendedorismo foi sendo progressivamente abandonado da mesma
forma que a crença na auto-regulação dos mercados. No 1 de maio de 1933, a elite
industrial reunida no Congresso Nacional de Câmaras de Comércio concordou com a
necessidade do poder do Estado como um regulador da concorrência, e apelou para a
implementação de códigos de conduta, fiscalizados pelo poder público, que viessem a
instaurar a competição “leal” e punir os infratores, ou seja, impedir que empresários
utilizassem-se de métodos considerados impróprios – tais como reduções salariais –
para aumentarem seu poder de mercado. Este raciocínio era convergente com as
demandas operárias, expressas pela Federação Americana de Trabalho, que reforçava a
- 33 -
necessidade de proteção dos salários e redução nas horas de trabalho como instrumentos
de combate à queda da renda dos trabalhadores e ao desemprego.
Com a votação e aprovação do N.I.R.A., as empresas ficavam autorizadas a
instituir “códigos de concorrência leal” próprios. Os códigos eram elaborados por
comissões tripartites compostas por representantes das empresas, do governo e dos
sindicatos operários, e exerciam função de legitimidade pública para as indústrias. Na
medida em que as empresas respeitavam as garantias sociais estabelecidas em seus
códigos, recebiam um distintivo emitido pelo governo – a águia azul – que poderia ser
impressa nos produtos e embalagens. O emblema funcionava como informação para os
consumidores, atestando o compromisso da empresa com o New Deal. Em
contrapartida, o Estado exigia, entre outros, o cumprimento da proibição do trabalho de
menores de dezesseis anos, a fixação de salários mínimos, estabelecimento de limites
para a duração do trabalho e garantia do princípio das negociações coletivas na
contratação da mão-de-obra. A coletivização das negociações trabalhistas foi, à época,
um passo ousado se considerarmos que 46% dos operários estavam submetidos a
contratos individuais, outros 45% faziam parte das Company Unions (sindicados
vinculados às empresas) e somente 9% estavam nas Trade Unions, ligadas à Federação
Americana do Trabalho.
Ao fim de 1935, no entanto, o N.I.R.A. foi considerado inconstitucional pela
Suprema Corte, após manifestações da opinião pública contrárias à reforma da gestão
empresarial com base em idéias corporativas (Woods, 1963: 102-116). A burguesia
industrial, principal demandante de uma legislação reguladora da concorrência, voltara-
se contra sua “criação” dois anos após promulgada. A recuperação econômica, iniciada
em 1934 e consolidada no ano seguinte contribuiu para esta mudança de atitude:
amenizada a ameaça aos negócios, o empresariado sentia menos necessidade em ter de
suportar sozinho as regras impostas pelos códigos de concorrência. Os consumidores e
os sindicatos operários, por sua vez, manifestaram-se contra o N.I.R.A. na medida em
que sua implementação incorria somente em repasses de custos para os preços finais.
Isto não significou, contudo, o fim da intervenção do Estado nas relações entre
capital e trabalho. A recuperação do poder de compra das massas assalariadas era vista,
na estratégia do New Deal, como condição indispensável para a recuperação econômica.
Em 5 de julho de 1935 – antes mesmo da ilegalização do N.I.R.A. – Roosevelt
- 34 -
conseguira a aprovação de lei que garantia o direito de organização sindical pela classe
operária e condenava práticas “abusivas” no emprego de mão-de-obra (unfair labor
practices) 28. Entre 1935 e 1940, o National Labour Relation Board (órgão tripartite
com autoridade para fiscalizar questões relativas às relações de trabalho) conseguiu
readmitir em seus empregos cerca de 300.000 operários demitidos em função de suas
atividades sindicais, obrigou o pagamento retroativo de US$ 9.000.000 em salários e
processou 36.000 entidades patronais acusadas de unfair labor practices. Através do
Gráfico 1.3 podemos perceber como a evolução da renda dos salários no setor privado
reproduz as tendências verificadas nas evoluções do PIB e da renda dos lucros não-
agrícolas. A regulação do Estado sobre as relações de trabalho, coibindo a
“concorrência desleal” por meio de reduções salariais e outras medidas prejudiciais aos
operários, foi fator importante para que o crescimento dos salários tenha acompanhado a
evolução dos lucros numa situação de crise. A intervenção do Estado reformado logrou,
portanto, em obstar a tendência à superexploração do trabalho como parte da estratégia
de recuperação do setor industrial 29.
28 Pela Lei Wagner (em homenagem ao senador a quem pertence a autoria do projeto), ficava vedado aos patrões, por exemplo, proibir os operários contratados de se filiarem a sindicatos. Os proprietários também estavam proibidos de dirigirem sindicatos operários, contribuírem financeiramente para eles, discriminarem operários sindicalizados e se recusarem a negociar coletivamente. 29 Niveau concorda que o principal mérito do New Deal no processo de recuperação econômica norte-americana residiu na preservação do poder de compra das massas e da procura global na economia (Niveau, 1969: 246)
- 35 -
Gráfico 1.3 – Estados Unidos da América Renda Pessoal – Salários no Setor Privado, Produto Interno Bruto e Renda Pessoal –
Lucros não-agrícolas (1930-1939) bilhões de dólares correntes
41,033,9
25,523,9
27,6
30,234,1
38,6
34,8 37,7
1930 1931 1932 1933 1934 1935 1936 1937 1938 1939Anos
Bilh
ões
de U
S$
Renda - Salários PIB Renda - Lucros
Fonte: Gráfico elaborado com dados do BEA – Bureau of Economic Analysis, U.S. Department of Commerce. NIPA – National Income and Product Accounts. Table 2.1. Personal Income and its Disposition. September 2003 edition e Table 1.1. Gross Domestic Product. September 2003 edition.
Por fim, cabe resgatar a mola-mestra do New Deal, que foi a política de geração
de empregos públicos emergenciais conjugada com a expansão dos investimentos em
infra-estrutura, ações nas quais a intervenção do Estado foi certamente das mais
frutíferas. No que tange a política social, a administração Roosevelt reverteu a
tradicional orientação de corte liberal, que consistia em confiar os desempregados aos
cuidados de organizações de caridade privadas, que obtinham recursos por meio de
campanhas junto à sociedade. Evidentemente, diante de uma massa de mais de
12.000.000 desempregados, este sistema precário de assistência social desmoronou,
sendo prontamente deslocado pela intervenção pública.
Ao contrário do sistema inglês baseado no seguro-desemprego, a orientação do
Estado norte-americano caminhou no sentido de criar postos de trabalho em caráter de
emergência, ainda que para isso uma soma considerável de subsídios tenha sido
empregada pelo governo. Exemplo disso é a aprovação, em maio de 1933, do
Emergency Relief Act, através do qual foi criada a Federal Emergency Relief
Administration, com um orçamento de US$ 500.000.000 para ajuda aos desempregados.
Na geração de empregos, somente no ano de 1934, a Civilian Conservation – órgão
responsável pela política de emprego para os jovens – empregou mais de 50.000
- 36 -
pessoas em campos de trabalho, realizando obras de reflorestamento e construção de
estradas. A Public Work Administration (P.W.A.), criada pelo N.I.R.A., dispunha de um
crédito de US$ 3.300.000.000 para a execução de obras públicas tais como
repovoamento florestal, proteção contra inundações, beneficiamento de portos e rios,
construção de habitações populares, escolas e campos de jogos. Em 1938 criou postos
de trabalho para 3.800.000 pessoas, o que significava um terço dos desempregados no
ano. Até a sua supressão, em 1942, a P.W.A. despendeu US$ 13.000.000.000 na criação
de empregos públicos, ergueu 122.000 edifícios públicos, abriu mais de 1.000.000.000
de quilômetros de estradas, construiu 77.000 pontes e 285 aeroportos.
Em maio de 1933, a aprovação do Tennessee Valley Development Act criara a
Tennessee Valley Autority, responsável por evitar a privatização e administrar as
fábricas nacionais de explosivos do vale do Tennessee, criadas em função das
necessidades da guerra de 1914-1918, bem como controlar a usina hidrelétrica
responsável pelo abastecimento destas indústrias. A T.V.A. construiu na região
barragens, centrais hidrelétricas e redes de transmissão – utilizando-se de mão-de-obra
desempregada – que permitiram ao estado de Nova Iorque obter energia pela metade do
preço exigido pelas empresas privadas. O Estado promoveu um reparcelamento da
propriedade fundiária no vale, redistribuindo terras para as famílias de farmers,
agrupando-as em cooperativas e fornecendo adubos, ferramentas, sementes e insumos.
Em contrapartida, exigiu-se que os farmers seguissem o planejamento elaborado pela
Escola Agrícola da Universidade do Tennessee. A T.V.A. constituiu-se, assim, num
exemplo pioneiro de empresa pública voltada para o desenvolvimento regional
articulada com a Universidade (Niveau, 1969:245-246; Philip, 1965: 318-319).
Assim manifestou-se na sociedade norte-americana ao longo dos anos 1930 a
idéia de que o Estado intervencionista – e não o mercado pretensamente auto-regulado –
deveria ser o ponto nevrálgico para o equilíbrio de todo o sistema econômico. Ainda
que o saldo final do New Deal possa parecer pouco animador num primeiro instante, e
que a economia norte-americana só tenha efetivamente completado a sua recuperação
com o esforço de guerra durante o conflito mundial de 1939-1945 30, a intervenção do
Estado foi o elemento-chave na redução dos efeitos da catástrofe econômico-financeira
30 Para uma interessante reflexão sobre a economia de guerra e seu papel no sistema econômico norte-americano ver o trabalho de Melman, 1985.
- 37 -
31. O investimento público estimulou a expansão do investimento privado, mas não teve
amplitude suficiente para estabilizar sua taxa de crescimento, tendo persistido fortes
oscilações ao longo da década 32. Não foi possível reduzir o desemprego aos níveis
anteriores à crise, apesar do esforços no campo das obras públicas terem contribuído
para uma expansão notável dos postos de trabalho. Entretanto, a ação estatal conseguiu,
a partir de 1933, reverter praticamente todas as tendências de declínio nos indicadores
macroeconômicos mais importantes. Tal reversão fez com que em 1939 estes
indicadores estivessem próximos ou além dos marcos registrados dez anos antes, em
1929. O New Deal não foi capaz de evitar uma “década perdida” para a economia
americana, mas é possível que sem a reforma do Estado os efeitos desagregadores da
crise tivessem chegado a um patamar insustentável. Mais importante, o legado da
reforma do Estado nos anos 1930 foi a transformação de uma solução emergencial em
um padrão de desenvolvimento socio-econômico que marcaria a “época de ouro do
capitalismo ocidental” nos anos 1950 e 1960. Das cinzas da depressão e da guerra
surgiria o Welfare State.
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31 Ainda sobre a economia de guerra não se deve deixar de consultar a completa obra de Bandeira, 2005: 111-121. 32 Sobre a situação econômica dos Estados Unidos no Pós-Guerra e um balanço das principais conquistas emplacadas após o New Deal ver Colm e Geiger, 1968: 145-174.
- 38 -
GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.1994. HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: o breve século XX (1917-1991). 2ª.ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. MAGDOFF, Harry e SWEEZY, Paul M. O Fim da Prosperidade: a economia americana na década de 1970. Rio de Janeiro: Campus. 1978, MELMAN, Seymour. The Permanent War Economy: american capitalism in decline. New York: Touchstone. 1985. NIVEAU, Maurice. História dos Fatos Econômicos. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1969. O’CONNOR, James. USA: a crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977. PHILIP, André. História dos Factos Económicos e Sociais: de 1880 aos nossos dias. Lisboa: Herder. 1965. SLICHTER, Sumner H. Crescimento Econômico nos Estados Unidos: sua História, Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura. 1964. TEIXEIRA, Aloísio. Estados Unidos: a curta marcha para a hegemonia. FIORI, José Luís (org). Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 155-190. WOODS, John A. Roosevelt e a América Moderna. Rio de Janeiro: Zahar. 1963.
- 39 -
Floresta, Agricultura e Extrativismo Madeireiro na Modelagem da Paisagem Agrária do Rio de Janeiro
Colonial Tardio: o caso da bacia do Macacu33
Diogo de Carvalho Cabral
Mestre em História Social pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
E-mail: [email protected]
33 Agradeço a Maurício Abreu, José Augusto Pádua e José Augusto Drummond pelas leituras críticas e sugestões. Isento-lhes, obviamente, do peso de qualquer equívoco ou mesmo opinião polêmica que o texto possa apresentar: elas são todas de exclusiva responsabilidade do autor.
40
Resumo: O artigo usa documentação administrativa (lista nominativa de habitantes) para
analisar a dinâmica econômico-ecológica dos “sítios agro-madeireiros” – isto é,
produtores agrícolas que praticavam o extrativismo e o beneficiamento primário da
madeira tropical como atividade acessória, na esteira do processo de arroteamento –,
bem como sua reflexão na modelagem da paisagem agrário-florestal, na bacia do rio
Macacu, Rio de Janeiro, no final do século XVIII. Neste período, a referida área
constituía-se num grande “refúgio” do bioma de Mata Atlântica, principalmente nas
porções de relevo mais acidentado da paisagem. O recorte temporal utilizado (c.1770 –
c.1800) possibilita enxergar que o estoque florestal da bacia, ainda muito volumoso, era
uma variável fundamental na conformação dos sistemas agrários, principalmente
aqueles voltados para o abastecimento alimentar.
Abstract: The paper uses administrative documentation (nominative list of inhabitants)
in order to analyze the economic-ecological dynamics of “agro-timbering sites” – that
is, agriculturalists that practiced extractivism and primary improvement of tropical
timber during the assartment process – as well of its results in the modeling of agrarian-
forest landscape in Macacu river basin, Rio de Janeiro (Brazil), in the late eighteenth
century. In this period, the referred area constituted a great “refugee” of the Atlantic
Forest biome, especially in the higher portions of the landscape. The temporal outline
used (c.1770 – c.1800) enables us to visualize that the basin’s forest stock, still very
large, was a crucial variable in the conformation of agrarian systems, especially those
turned to food supplying.
1. Introdução
No atual estado da epistemologia histórica, o estudo das paisagens tende a situar-se num
campo teórico polarizado, de um lado, pela história econômica e, de outro, pela recente
linha de abordagem que se convencionou chamar de história ambiental ou ecológica.
Apesar de Burke (1992:8) interpretar como uma ameaça à “verdadeira” identidade da
primeira a emergência da segunda, acreditamos, com Martinez-Alier (1995), que o que
há – ou o que deve haver – é uma recolocação dos problemas ou talvez mesmo uma
ampliação do escopo de investigação propiciada pela aplicação de uma abordagem
ecológica aos temas tradicionais da histórica econômica. O próprio deslocamento de
grande parte do interesse dos historiadores econômicos da esfera da produção para a da
circulação/distribuição e do consumo34 deixa em aberto um nicho que alguns
historiadores ambientais não têm hesitado em ocupar, principalmente quando se trata
daqueles setores mais a montante da cadeia produtiva, isto é, mais diretamente
dependentes dos recursos naturais, renováveis ou não (ver, e.g., Totman, 1995;
Santiago, 1998; Sluyter, 1998; Drummond, 1999; Cabral, 2007).
Enquanto objeto de estudo dessa nova história econômico-ambiental, a categoria “floresta” não se
apega à tradicional segmentação entre “paisagem natural” e “paisagem cultural”. Na floresta,
sociedade e natureza imiscuem-se de uma tal maneira de modo que é impossível distinguir os dois
domínios de maneira clara. Longe tanto da imagem do ermo idílico – uma simples “extensão de
arvoredos e charnecas que se manteve ‘selvagem’, onde animais [...] podem correr à vontade” –,
quanto da imagem do “jardim domesticado”, a floresta apresenta-se com a sua “complexa economia
própria”: onde se multiplicam os povoamentos, as reivindicações e exigências correntes em relação
aos inúmeros recursos ambientais (solo, madeira, frutos, medicamentos, água, alimentos de origem
animal e energia) estão submetidas a uma intrincada regulamentação formal e informal (Thompson,
1987:32). A própria existência da floresta em meio a áreas agricultáveis já constitui, em si, um
resultado do direito (Silva, 1997:209).
Disto depreende-se que não há uma oposição necessária entre florestas e
lavouras. Essas duas paisagens podem ocorrer de maneira complementar, tanto na forma
de transições ecológicas quanto na forma de verdadeiras associações funcionais
(Deffontaines, 1969:32). De acordo com George (1963:147), as economias agrícolas
tradicionais ou pré-industriais caracterizam-se, em geral, pela estreita associação entre o
cultivo propriamente dito (a domesticação vegetal) e o que ele chama de “produções
anexas” (a caça, a coleta, a extração de madeira, etc.). A aparente polarização
campo/floresta mostrar-se-ia, deste modo, na verdade, como uma relação de
42
complementaridade (Silva, 1997:209).
Ao contrário do que se pode vir a pensar, a manipulação do comportamento
biológico das plantas para fins de alimentação perfaz tão-somente uma dentre as muitas
motivações econômicas potencialmente fundadoras das práticas humanas de interação
com os ecossistemas florestais. A relação de troca biofísica entre os sistemas produtivos
rurais e os ecossistemas florestais é, na verdade, a síntese dos diversos tipos de
apropriação – no sentido marxiano de “retirar [...] ou determinar algum tipo de uso para
alguma parte da natureza” (Hobsbawm, 1991:16) – a que a floresta é submetida, já que
esta fornece, além de seu substrato (o solo), inúmeros outros recursos para a sustentação
dos grupos humanos. A ação constante do homem “catando gravetos, recolhendo frutos,
caçando animais ou controlando incêndios – só para citar trabalhos ‘leves’ no interior
do bosque – alterava em profundidade o comportamento das populações vegetais”
(Silva, 1997:209). Aceitando esta premissa, distanciamo-nos tanto de uma história
florestal mais simplista, na qual “a floresta aparece como matéria-prima para o
comércio de madeira e nada mais” (Dean, 1996:22), quanto de uma história agrária de
base economicista na qual a floresta aparece como mero “combustível” e/ou
ecossistema improdutivo a ser convertido – ambas extremamente cândidas.
Segundo Linhares (1983:746-7), a história agrária nasceu da “feliz comunhão”
entre o geógrafo e seu método de observação das relações do homem com seu meio
físico e o historiador, com seu método de explicar as mudanças no tempo e no espaço.
Ainda segundo Linhares, o encontro entre a Geografia e a História foi, no Brasil, muito
breve, tendo sido em grande parte abortado pelo debate político sobre as origens da
sociedade brasileira nas décadas de 1940, 50 e 60. Este movimento freou o
prosseguimento da exploração dos ricos filões interdisciplinares já indicados por Caio
Prado e, também, em larga medida, pela obra de Capistrano de Abreu.
A meu ver, resgatar aquela efêmera “feliz comunhão” seria o caminho para
redefinirmos a história agrária num quadro mais amplo de construção dos objetos de
investigação, quadro este que inclua o importante componente geo-ecológico. Pensar
historicamente a floresta colonial brasileira é refletir sobre a sua apropriação em locus
transformado pela ação humana, é determinar a multiplicidade de indivíduos e grupos
sociais que ali construíram suas vidas, particularmente marcando e sendo marcados em
seu convívio global, em uma simbiose sempre imperfeita, sempre desequilibrada – no
34 Para uma breve consideração das causas desse deslocamento, ver Levi (1998:207-8).
43
sentido neguentrópico do termo –, com o ambiente silvestre. Viver o que hoje
chamamos de “campo”, especialmente para os pobres livres, era viver a mata em sua
inteireza, com todas as suas possibilidades de formação de renda.
Essa complexidade da socioeconomia agrária refletia-se, obviamente, na
conformação da paisagem. Neste contexto de processos, pode-se vislumbrar uma outra
dimensão do fenômeno de expansão da fronteira agrária35: aquele ocorrente em áreas de
povoamento neo-europeu já consolidado, como em boa parte da costa brasileira (do Rio
de Janeiro a Recife) da segunda metade do século XVIII, onde eram típicas as paisagens
compostas de grandes canaviais e roças de subsistência avançando sobre grandes
“sertões” florestais interiores. Este cenário originava-se da dinâmica de “sítios agro-
madeireiros”, produtores agrícolas que praticavam o extrativismo e o beneficiamento da
madeira tropical como atividade acessória, na esteira do processo de arroteamento. O
objetivo deste artigo é examinar a dinâmica deste processo numa área específica do Rio
de Janeiro colonial tardio: a bacia do rio Macacu, localizada na porção norte-oriental da
bacia hidrográfica da Guanabara.
2. Povoamento neo-europeu e conformação administrativo-territorial da
bacia
O início do povoamento neo-europeu da bacia do Macacu remonta a meados do
século XVI, logo após a vitória dos portugueses sobre os franceses e seus aliados
tamoios na batalha pela Baía de Guanabara. Iniciada a concessão das terras do
recôncavo, é doada a Miguel de Moura – secretário particular de D. Sebastião, mas que,
curiosamente, jamais pensou em vir ao Rio de Janeiro – uma sesmaria 261,36km2, em
meio aos sertões do Macacu, a maior de todas as que foram concedidas na Guanabara
durante o século XVI. A segunda sesmaria, de igual dimensão da primeira e fazendo
com ela limite, foi doada a Cristóvão de Barros, que foi capitão-mor da frota de três
galeões, vinda de Portugal para socorro do Rio de Janeiro na referida batalha. Mais
tarde, Miguel de Moura fez doação de sua sesmaria aos jesuítas, que venderam parte
dela a Manoel Fernandes Ozouro, fundador de uma capela entre os rios Caceribu e
Guapi-açú, sob a invocação de Santo Antônio, em 1612. Para o patrimônio da capela,
35 O conceito turneriano de fronteira enfatiza os macro-processos “modernos” de povoamento dos territórios do Novo Mundo, alargando o ecúmeno neo-europeu e abrindo espaço para a ocupação agrícola. No caso brasileiro, esses macro-processos estiveram associados às expedições ao “sertão” para o aprisionamento de gentios e procura de metais preciosos mas, sobretudo, ao desenvolvimento da pecuária.
44
Ozouro e sua mulher, Isabel Martins, doaram 350 braças (770m) de terras. Criado o
curato, com sede na capela, os fundadores aumentaram a dádiva, doando à Igreja, além
das terras do adro e da capela – que estavam dentro das 350 braças – mais 100 braças
em quadro por trás do pequeno templo e as alfaias deste (Forte, 1937:35-7; Abreu,
2003:s/p).
Este procedimento era uma forma de apropriação territorial muito comum no
Brasil Colônia, como nos informam diversos autores (Moraes, 1935; Deffontaines,
1944; Azevedo, 1957; Marx, 1991; Abreu, 1997): trata-se dos patrimônios religiosos,
isto é, glebas cedidas por um ou vários proprietários fundiários para que os
trabalhadores sem terra pudessem ali fixar residência. A cessão, entretanto, não se fazia
diretamente a eles. O beneficiário era sempre o orago de uma capela já existente ou que
se queria erigir no local, cabendo à Igreja, em nome do padroeiro, administrar esse
patrimônio. Para tanto, era comum a instituição de uma irmandade, que aforava então
aos colonos as terras recebidas. Garantia-se assim uma renda regular à capela, condição
que o juízo eclesiástico impunha para que os serviços religiosos pudessem ser
oferecidos com a regularidade e decência exigidas pelas leis canônicas.
Como observa Abreu (op. cit.:233-4), da repartição desses patrimônios
surgiam, frequentemente, pequenos arraiais, alguns dos quais prosperaram e tornaram-
se freguesias; muitos foram, mais tarde, elevados à categoria de vilas. Foi exatamente
essa a trajetória de Santo Antônio de Sá. Em 1644, o curato foi elevado à categoria de
paróquia, estendendo-se a então freguesia de Santo Antônio de “Caserabú” dez léguas
para o norte. Finalmente, em 1697, quando governava a Capitania do Rio de Janeiro
Artur de Sá e Menezes, fundou-se a vila no lugar da igreja matriz da referida freguesia
(localizando-se junto à confluência dos rios Macacu e Caceribu), dando-lhe o nome de
“Santo Antônio”, por ser este o orago, e “Sá”, em homenagem ao representante de Sua
Majestade.
A Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu foi o primeiro núcleo urbano com
esse status estabelecido na capitania do Rio de Janeiro (Forte, 1937:41).36 Essa
inexistência de vilas no recôncavo até quase fins do segundo século de colonização está
ligada, segundo Lamego (1964:199), à base agrária da estrutura sócio-espacial, em
36 No Brasil colonial, chamavam-se cidades todos aqueles centros urbanos fundados diretamente por ordem régia, enquanto as vilas se tratavam de núcleos de povoamento fundados por governadores ou pelos próprios donatários (cf. Abreu, op. cit.:213-5). O Rio de Janeiro, vale lembrar, já havia “nascido” como cidade, em 1565.
45
conexão com os fatores da geografia física da região guanabarina. As curtas distâncias
entre os núcleos produtores rurais e o centro consumidor/redistribuidor urbano, a
facilidade de transporte fluvial e marítimo, assim como a própria situação financeira dos
rurícolas – empenhados aos comerciantes do Rio de Janeiro que lhes adiantavam o
capital em troca da produção agrícola – dificultavam a presença de intermediários nos
pequenos portos da baixada. Embora uma larga tarja de lavoura bordejasse a Guanabara,
os produtos alimentícios de consumo imediato, tais como a farinha, o feijão, o milho e o
arroz, além das caixas de açúcar, rumavam diretamente das fazendas para o mercado
carioca. Explica-se, destarte, o desinteresse dos grandes proprietários, absortos em suas
plantações e “isolados em seus clãs rurais” para a fundação de novos centros
administrativos que, ademais, viriam cercear o seu poder político localmente
estabelecido.
Sem fazer menção às fontes das quais extraiu essa informação, Forte (op.
cit.:43) afirma que a Vila de Santo Antônio de Sá era composta, em 1778, pelas
freguesias de Santo Antônio de Sá (sede), Santíssima Trindade, Nossa Senhora d’Ajuda
de Cernambitigba – ou Sarnambitiba, ou ainda de Guapi-mirim –, Nossa Senhora da
Conceição do Rio Bonito, Nossa Senhora do Desterro de Itambi e São João de Itaboraí.
Esses limites teriam mudado em 1789, quando da fundação da Vila de Magé. Segundo
Lisboa (1967:165), o termo da vila incluiria, no ano de 1796, todas as freguesias
mencionadas acima, com exceção da de Guapi-mirim. Documento datado de 1797, a
Discripção do que contém o Districto da Villa de Santo Antônio de Sá de Macacú
(AHU, Avulsos, caixa 165, no.62)37, por sua vez, reduz ainda mais o território da vila,
excluindo as freguesias de Itambi, Itaboraí e Rio Bonito, embora incluindo Guapi-
mirim. Tendo em vista os objetivos deste artigo, considero que é melhor assumir a
delimitação fornecida por esta última fonte, afinal de contas, o grande “norte”, em
termos de evidências empíricas, nessa parte do trabalho, é a lista nominativa de
habitantes que se encontra anexada ao final do documento supracitado. Minha área de
estudo, destarte, encontra-se cartografada na figura 1.
37 Para daqui em diante, faça-se saber que a sigla AHU significa Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa). O documento citado (que foi “descoberto” e trazido ao Brasil pelo Prof. Maurício Abreu, para quem estamos em eterno débito) não se encontra autografado nem paginado, de modo que as referências a ele serão feitas por capítulo.
46
3. A conjuntura sócio-econômica
Para a capitania do Rio de Janeiro, o período colonial tardio parece ter sido
marcado por um certo padrão de transformações econômicas e geográficas. Há toda
uma historiografia mais recente que aponta não para um “renascimento da agricultura” –
posto que ela nunca havia desfalecido –, mas para uma diversificação da economia
agrária, no final do século XVIII e início do XIX, principalmente no que concerne ao
mercado interno (Graner, 1985; Silva, 1990; Beauclair, 1992; Gorenstein, 1992;
Fragoso, 1992). Segundo Fragoso e Florentino (2001:85-6), este período pode ser
sumarizado por dois grandes movimentos “intimamente ligados”:
[...] a mudança nas formas de acumulação, culminando com a hegemonia de uma comunidade
de comerciantes de grosso trato como elite econômica da região tratada; e a transformação do
Rio na principal praça mercantil do Atlântico Sul, tendo a seu redor circuitos mercantis que
abrigavam o comércio de importação-exportação, os negócios de redistribuição de produtos
estrangeiros (europeus, africanos e asiáticos) no Brasil e o comércio colonial interno do
Sudeste-Sul coloniais.
Esta conjuntura implicou, obviamente, alterações no processo de apropriação e
uso do solo, ainda mais se tratando de um cenário em que as terras por ocupar ainda
abundavam. A partir de meados da década de 1770, conta-nos Barros (1997:65), a
fronteira volta a mover-se, ampliando sua extensão e reconfigurando o espaço da
capitania. O seu avanço ocorreu em todas as áreas, espalhando-se pelos Campos dos
Goitacazes, penetrando os sertões do Macacu, vencendo a Serra do Mar na freguesia de
São João Marcos, surgindo em meio ao Vale do Paraíba, na freguesia de Campo Alegre,
preenchendo os espaços que separavam as freguesias mais antigas, ao norte da baía de
Guanabara, da Serra dos Órgãos.
Poucos são os meios de que se dispõe para caracterizar a conjuntura econômica
do colonial tardio em minha área específica de estudo. Os dados que consegui coletar
Figura 1 – Área de estudo
47
Fonte: Adaptado de FUNDREM (1982).
sugerem que a situação da região macacuana destoava do contexto geral apontado pela
48
historiografia para o final do século XVIII e início do seguinte.
Baseando-se em fontes não explicitadas, Forte (op. cit.:44, 46, 49) afirma que,
no final de década de 1770 e início da seguinte, a área do Macacu (as freguesias de
Guapimirim, Santo Antônio de Sá e Santíssima Trindade) contava com cerca de 918
fogos. O quantitativo populacional fica prejudicado, pois o autor não fornece a cifra
para Santíssima Trindade. As outras duas freguesias contabilizavam, juntas, 9.520 almas
(livres mais escravos). Assumindo-se que a população de Santíssima Trindade fosse
bastante semelhante à de Guapimirim (as duas diferiam em apenas duas unidades no
número de fogos), então chegamos a uma estimativa de 13.310 pessoas. Segundo a lista
nominativa, em 1797, o distrito da vila de Santo Antônio de Sá (abarcando as mesmas
freguesias) possuía 11.538 almas distribuídas por 1.159 fogos. Tomando-se estes
números como próximos da realidade, então se chega à conclusão de que houve um
movimento aparentemente paradoxal de aumento do número de domicílios
acompanhado de uma retração demográfica.
Essa aparente contradição começa a se desvanecer quando atentamos para uma
possível crise de mão-de-obra escrava que afetava a região, nos últimos anos do
setecentos. Com a palavra, o autor anônimo da Discripção:
Alguma decadencia qe há nestes Povos, conhece se nascer da falta de escravos, qe a não haveria
se os tivessem, o q.e muitos não podem conseguir pelo exorbitante preço em q.e estão, motivo
de não poderem adiantar as suas Lavouras; pr q.e estas não se podem maniar sem as precisas
forsas, qe esta Cultura requer, e pr esta causa muitos perdem o animo, por não poderem com
hum trabalho braçal; sendo esta a Razão de viverem alguns em ociosidade, ou vadiação, e
outros que também tem decadencia pela mortandade de Escravos athe o ponto de ficarem
pobres; porque nestes mesmo Escravos consiste o Cabedal deztes Lavradores (AHU, op.
cit.:cap.10).
Atentemos, antes de tudo, para a plausível parcialidade política do documento.
Comprar o discurso tal qual fato obviamente não faz sentido, principalmente quando
sabemos que este tipo de exaro, associando “decadência agrícola” e “preços
exorbitantes” dos escravos, já fazia, pelo menos desde meados do século XVIII, parte
do arsenal argumentativo dos produtores rurais fluminenses nas suas estratégias lobistas
contra os chamados “atravessadores” (Cavalcanti, 2005:38-40). Não podemos nos
esquecer da possibilidade significativamente grande de o redator do documento acima
citado ser um grande proprietário de terras e homens, isto é, alguém extremamente
interessado no assunto.
49
De outra ponta, também me é forçoso notar que havia certas circunstâncias que
podiam dar alguma verossimilhança ao relato – começando pela indicação de que a
ocupação do espaço agrário progredia com diminuição do efetivo populacional. Isto
pode sugerir que essa ocupação fosse realizada por pequenos ou mesmo não-
proprietários de escravos e, por outro lado, que a população cativa não estava sendo
reposta. Na análise do problema da escassez de escravos, é possível identificar dois
fatores, um de ordem mais estrutural e outro, mais conjuntural. O primeiro diz respeito à
formação, na região macacuana, do que Sorre (1943:293) chamou de complexo
patogênico, ou seja, um sistema nosológico originado da interdependência ecológica
entre um agente ativador de uma determinada enfermidade (uma bactéria, um vírus), os
vetores que os transmitem (geralmente insetos) e os seres humanos em cujo organismo
desenvolve-se infecção. O complexo a que me refiro é, especificamente, o complexo
malário.
A malária ou impaludismo é uma das doenças mais antigas de que se tem
notícia. Os agentes causadores dessa infecção sanguínea são os hematozoários do
gênero Plasmodium, geralmente encontrados nas regiões quentes e úmidas do planeta.
Os vetores são os já mencionados mosquitos anofelíneos, que constituem o centro
organizador do complexo. Estes insetos reproduzem-se por meio de ovos deixados em
ambientes hidricamente superavitários. A eles convêm, especialmente, por facilitar o
desenvolvimento das larvas, que a cobertura vegetal presente seja composta por plantas
com folhas de superfície estendida e dispostas horizontalmente, como as formações
higrófilas. A fonte “original” dos parasitas é, na maioria das vezes, animais
domesticados incorporados às atividades diárias do homem, como os bois e os cavalos.
Eles são picados por um anofelíneo fêmea38, que adquire, então, os esporos; quando de
uma ulterior alimentação, eles podem ser inoculados nos seres humanos, se forem estes
os fornecedores de sangue.
Na região macacuana, o complexo malário encontraria todas as condições para
se desenvolver: superávit hídrico, vegetação paludosa e grande contingente de
hospedeiros próximos. Aqui, não obstante, depara-se com um intrigante fenômeno
histórico-epidemiológico: a mortalidade decorrente desse patógeno incidia de modo
significativamente maior sobre a população cativa quando comparada à população livre
(Santos, 1974:76-7). Isto também foi observado por Faria (1998:1277) para a freguesia
38 São exclusivamente as fêmeas que se alimentam de sangue.
50
de Santo Antônio de Guarulhos (norte-fluminense), na década de 1840. Além disso, ao
contrário do impacto microbiano tipicamente irrompido pela migração forçada, a
malária – uma doença originária da África oriental e trazida ao Brasil, no século XVI,
exatamente em decorrência do tráfico atlântico – acometia principalmente os escravos
nascidos no próprio continente negro. Só podemos especular sobre as razões dessa
constatação teoricamente contraditória.
Informações sobre a evolução dos preços dos cativos são muito conjeturais,
baseando-se largamente em estimativas.39 Sabe-se, desde há muito, que as últimas
décadas de domínio português foram marcadas por uma grande intensificação do
volume do tráfico atlântico, que vinha na esteira da notável expansão agrícola desse
período (Schwartz, 2001:128-9, 135). A despeito dos recentes avanços obtidos em
relação aos estudos clássicos, a nova historiografia econômica e demográfica da
escravidão ainda fornece pouca luz quando o assunto é o período pré-1808 – algo que
talvez não mude, simplesmente em razão da inexistência de fontes.40 Os esforços
quantificadores de Florentino (1995), por exemplo, ficaram restritos ao período 1790-
1830. O trabalho de Cavalcanti (2005), bem mais recente, mergulha bem mais fundo,
remontando até o início do século XVIII. Valendo-se desses dois estudos, é possível
perceber que a passagem da década de 1780 para a seguinte conheceu duas micro-
conjunturas consecutivas e simetricamente opostas: uma, de 1789 a 1793, na qual o
aporte de negros cresceu, em média, 3,4 por cento ao ano; e a outra, de 1793 a 1797,
período no qual os desembarques diminuíram, em média, 3,5 por cento. Neste último
ano, o montante de africanos adventícios chegou ao menor nível desde 1778
(Cavalcanti, op. cit.:63-5).41 Embora aferições indiretas do preço dos escravos derivadas
somente a partir do volume da mercadoria aportada sejam perigosas, principalmente
devido aos mecanismos de formação do preço que tinham lugar após o desembarque.
Entre eles, havia, por exemplo, a atuação dos já mencionados atravessadores. Apesar
disso, pode-se aventar com a hipótese de que o contexto de redução da oferta em quatro
anos seguidos tenha gerado, especialmente nos grandes consumidores, uma sensação
39 Uma análise de fôlego, embasada sobre abrangentes dados empíricos, pode ser encontrada em Eltis e Richardson (2003). O foco dos autores, contudo, recai, primordialmente, sobre os cativos desembarcados nas Índias Ocidentais e na América britânica continental. 40 Cavalcanti (op. cit.:52-3) encontrou alguns fragmentos dos registros de entradas de escravos na alfândega carioca, o que o fez deduzir que essa documentação existe. 41 No apogeu do tráfico atlântico, nos anos 1820, chegou-se a receber até 130 negreiros num só ano, os quais teriam trazido, juntos, mais de 47.000 africanos (cf. Florentino, op. cit.:51-9).
51
econômica de inflação.
Mais importante do que a flutuação ocorrida no fluxo da oferta deve ter sido a
flutuação da demanda. Em muito devido a uma conjuntura externa favorável criada pelo
cenário de conflitos internacionais no período entre 1774 e 1815 – a guerra de
independência norte-americana e, principalmente, a Revolução Francesa, acarretadora
da desarticulação da produção haitiana –, a última década do setecentos assistiu ao pico
da expansão da agroindústria açucareira fluminense, leia-se sua região mais importante,
a Baixada dos Goitacazes (Florentino, op. cit.:30-1). Decerto que os empresários
campistas podiam arcar com os preços inflacionados do escravo, algo que não podia ser
suportado, todavia, pelos velhos senhores escravistas do Recôncavo.
A paisagem da bacia do Macacu nunca foi dominada pela agroindústria do
açúcar – como de resto aconteceu, de maneira mais ou menos homogênea, com os
recônditos guanabarinos –, tendo se constituído historicamente como uma região
predominantemente voltada para o cultivo de gêneros alimentícios. Desde o século XVI,
quando do começo da apropriação neo-européia do território fluminense, essa área
aparecia, aos olhos dos portugueses, como a jóia das terras do Recôncavo, atribuição
que se deveu muito mais à atração que seu potencial hídrico oferecia do que
propriamente à fertilidade de seus solos, não muito diferentes daqueles encontrados nos
outros vales fluviais. O progredir do povoamento, no século XVII, daria fundamento a
essa percepção das qualidades da bacia do Macacu, mas não a transformariam numa
grande área exportadora. Os engenhos, na realidade, acabariam espalhando-se por todo
o Recôncavo e também pelo restante das baixadas costeiras – de Itaguaí até Araruama,
de Cabo Frio até São João da Barra – e o Macacu, contraditoriamente, notabilizar-se-ia
muito mais pela produção de farinha de mandioca do que de açúcar (Abreu, 2003:s/p).
No último quartel do século XVIII, esse panorama permanecia o mesmo. Em
1778, a freguesia de Santíssima Trindade era a quarta maior produtora de farinha de
mandioca, respondendo por 11% de todo o montante da capitania, superada apenas por
Jacutinga, Cabo Frio e Campos (Silva, 1990:167). Curiosamente, dados deste mesmo
ano mostram também que esta freguesia era a que compreendia a maior extensão de
“terras por cultivar” – ou seja, florestas primárias. Para bem dizer, apenas dois
proprietários são rubricados: Marcos da Costa Falcão, que lá havia montado um
engenho três anos antes (em 1778, havia fabricado 26 caixas de açúcar e 15 pipas de
aguardente), contando 48 escravos; e o Vigário José Ferreira da Silva, morto fazia já
52
três primaveras, ao longo das quais não se havia moído nada, pela “desordem” que se
instaurou entre os herdeiros. De resto, havia apenas terrenos agrestes totalizando uma
superfície de mais de 93km2, com donos os mais variados, desde o mestre de campo do
distrito até os religiosos carmelitas (Lavradio, 1946:293-4). A partir desses dados, só
posso deduzir que estes indivíduos e instituições arrendassem suas terras aos roceiros
(plantadores de mandioca), o que estaria de acordo com o que afirmou Silva (1990:172)
sobre esses tipos de produtores.
Na última década da centúria, as políticas fomentistas do Vice-Rei Conde de
Rezende (Idem:176-7) podem ter intensificado a especialização agrícola da área da
bacia do Macacu. “A Mandioca hé a principal Lavoura deste Paiz”, dizia o autor da
Discripção, em 1797; nela, empregavam-se a maior parte dos agricultores. Isto seria
justificado pelo fato de que esse gênero “em quazi toda a terra dá com abundancia” e “a
plantação desta se pode fazer em todo o anno”, embora o melhor período fosse de maio
a outubro, isto é, os mais frios e menos úmidos (AHU, op. cit.:cap.10).
As causas dessa diferenciação geo-econômica ainda não foram objeto de uma
reflexão mais séria. Silva (1990:172) ressalta a importância dos grandes rios que
desembocam no fundo da baía de Guanabara para a formação desse “grande cinturão
mandioqueiro que se estendia pelos atuais municípios de Duque de Caxias, Nova
Iguaçu, Cachoeiras de Macacu e Itaboraí”, constituindo excelentes vias de escoamento
para a farinha, um produto, afinal, pesado e barato. A bacia do Macacu possuía 24
portos constantemente visitados por saveiros e lanchas.
Numa rápida e despretensiosa incursão ao passado, a geógrafa Mesquita
(1952:112) sugeriu a hipótese de que a “transferência” da lavoura canavieira para a
Baixada dos Goitacazes, ocorrida ao longo da segunda metade do setecentos, tenha
criado as condições para o forte desenvolvimento das culturas de mantimentos na zona
après-la-vague, na medida em que o esgotamento dos solos e o escasseamento das
matas tivessem obrigado os agricultores a investir em plantas ecologicamente menos
exigentes e de menor retorno econômico.
Essa hipótese parece-me bastante inverossímil na medida em que se traga à
baila a constatação básica de que a agricultura de víveres sempre existiu de maneira
significativa e sem grandes flutuações absolutas, nas terras do Recôncavo, desde a
segunda metade do século XVII. As características ecológicas das duas principais
plantas domesticadas – a cana-de-açúcar (Saccharum sp.) e a mandioca (Manihot
53
esculenta) – eram, em grande medida, opostas – enquanto a primeira encontrava seu
optimum em ambientes alagadiços, a segunda prefere áreas bem drenadas –, o que
tornava as duas culturas regionalmente conciliáveis. Não seja por acaso que elas
formem, até o final do século XX, o que Linhares (1996:138) chamou de “parceria
histórica”. A resistência excepcional da mandioca à seca e sua capacidade de crescer em
solos pobres fez com que ela se tornasse especialmente adaptável aos terrenos não-
alagadiços e não plantados com cana (Schwartz, 2001:126-7). Espreitando-se entre os
campos canavieiros ou ocupando terrenos ingratos nas encostas dos morros e maciços,
essas plantações “subsidiárias” complexificavam enormemente a configuração da
paisagem agrária, de modo que não é possível apreendê-la a partir de modelos
locacionais “lineares” como os clássicos círculos concêntricos de Von Thunen; ao
contrário da Bahia, nunca houve, no Rio de Janeiro, uma forte especialização geográfica
dos cultivos (Silva, 1990:173).
Embora tenha havido, sim, uma relativa crise de abastecimento alimentar na
cidade de São Sebastião na primeira década do setecentos, ela não deve ser
superestimada. Conforme aponta Sampaio (2003:81-2, 91), tratava-se de um desajuste
conjuntural entre a oferta – ocasionada pelo rush demográfico em direção às minas – e a
demanda – sensivelmente inflada pelo aumento da população urbana carioca e, em
menor escala, pela necessidade de abastecer a Colônia do Sacramento com farinha de
mandioca. O setor agrário como um todo, aliás, não viria a sofrer nenhum recuo
absoluto substancial nos cem anos entre 1650 e 1750; O que se verificou, na verdade,
foi um recuo em relação ao setor mercantil.
Muito mais provável, nesse sentido, é que a predominância de uma economia
agrária introvertida42 estivesse ligada a fatores da geografia física, isto é, à
diferencialidade dos diversos espaços naturais em termos de potencial agrícola. A
lavoura de cana exigia um tipo específico de solo, sendo o melhor aquele conhecido por
massapé. Solos capazes de sustentar culturas como a mandioca, o feijão e o milho, por
exemplo, podiam não ser adequados à lavoura canavieira. Pela leitura da Discripção,
percebe-se a valorização dos terrenos “mais próximos às cachoeiras dos rios”, o que
indica, em última instância, a valorização da lavoura mandioqueira. Igualmente, os
campos de cana dependiam, para o seu bom estabelecimento, de outras características
42 Ressalte-se, contudo, que certos gêneros alimentícios figuravam como itens importantes na pauta de exportações fluminenses como, por exemplo, o arroz (cf. Silva, 1990:169)
54
ecológicas, tais como uma rede hidrográfica propiciadora do escoamento da produção a
custos aceitáveis, a existência de reservas florestais em quantidade suficiente para
alimentar os fornos dos engenhos, um relevo pouco acidentado e um regime
pluviométrico moderado. Com exceção da abundância de matas, todas as outras
condições estavam ausentes nas terras além-baixada, o que ajuda a explicar, segundo
Barros (op. cit.:67-9), a estabilização da fronteira durante a primeira metade da centúria.
4. Agricultura, extrativismo madeireiro e modelagem da paisagem
Em 1797, os principais cultivos ancilares da bacia do Macacu eram, além da já referida
mandioca, o arroz, o milho e o feijão. Todas estas culturas eram conduzidas no mesmo
antigo sistema de reprodução extensiva, dispensado o uso de arado bem como a re-
fertilização das terras – embora gado houvesse:
Não usão estes Lavradores de Arado, e a braço de Escr.os com Enxadas
preparão as terras, e são de tão boa qualid.e, q.e se lhes não faz preciso
extrumalas, e se em algumas há essa precisão p.r cansadas, em lugar de
extrumalas as deixão, e vão beneficiar outras, prq.e as tem com abundancia; e
em quanto nestas se entretem, tornão dahi à annos pa as outras se as achão em
termos, e outros p.rq.e se tem Lavouras em Montes, pela falta de Vargés, as não
podem extrumar; prqe se o fazem as águas os despem deste beneficio pela sua
ellevação (AHU, op. cit.:cap.10).
Estes dados apontam, contudo, para a necessidade de matizar a tipicidade dessa situação de fronteira móvel. Em primeiro lugar,
o relato indica a possibilidade de um sistema de pousio longo, com reutilização de capoeiras. De fato, a regeneração florestal
naquela região tendia a ser rápida, em vista da grande umidade. Ironicamente, era esta mesma condição ambiental que
dificultava o retrabalhamento das terras já plantadas situadas em relevo declivoso, pois a chuva tendia a lixiviar o adubo.
Mas a agricultura não era a única, nem mesmo talvez a mais importante
atividade econômica na qual se engajavam os habitantes do distrito. O padrão de
emprego livre numa economia onde metade da força de trabalho é compulsória43 não
pode, naturalmente, ser igual ao encontrado numa moderna economia de mercado
capitalista, na qual os indivíduos desempenham uma única ocupação por longos
períodos e onde todas as necessidades da vida diária são adquiridas por meio da compra.
Na sociedade colonial, um homem ou uma família podia – e era bastante comum que o
fizesse – combinar ocupações distintas dentro de um mesmo “setor” econômico
43 Para os três primeiros quartéis do século XVIII, supõe-se que o peso relativo dos cativos na população economicamente ativa da colônia oscilou em torno de 50 por cento (Samara, 2005:20).
55
(produção, circulação ou distribuição) e até de setores distintos, em quase todos os
níveis ou estratos sociais. Além da tradicional cultura de mantimentos – que
compreendia, geralmente, o milho, o feijão, o arroz e a mandioca, utilizados nos gastos
da casa e, eventualmente, como excedentes comercializáveis –, as unidades domiciliares
da “pobreza rural” podiam ter diversas outras ocupações, como a tecelagem, a
alfaiataria e o comércio miúdo (Castro, 1987:112-3; Sâmara, 2005:154-61).
O extrativismo madeireiro seria, nessa perspectiva, uma outra manifestação desse padrão geral,
modelada sob circunstâncias particulares sociais, econômicas, históricas e, principalmente, ecológicas.
A disponibilidade de matas conservadas, na bacia do Macacu, era, sem dúvida, a mais importante. Ao
longo desta extensa e pantanosa planície que, a pouco e pouco, à medida que se subia o rio, dava lugar
a morros e pequenas cadeias montanhosas que prenunciavam a escarpa da Serra dos Órgãos, o corte
das madeiras era uma das atividades mais importantes da economia rural, igualando-se mesmo às
tradicionais lavouras de cana-de-açúcar e mandioca. Como ressalta Forte (op. cit.:53-4), “o comércio
de madeiras representava uma apreciável riqueza, pela excelência das espécies existentes nas matas do
município, aplicadas em variadas obras civis e hidráulicas”.
Verificando a documentação primária, constatamos, entretanto, que apenas
9,3% dos domicílios arrolados na lista nominativa eram produtores de madeira, o que
corresponde a 100 unidades familiares. A amplitude dessa produção madeireira (em
dúzias) era de 79 (valor máximo de 80 e mínimo de um). Montando-se a tabela de
freqüências para esta variável com base em intervalos decenais, descobre-se uma
distribuição extremamente desigual, com mais de 50 por cento dos produtores alocados
na primeira classe, que compreende uma a 10 dúzias (gráfico 1). Isto revela um padrão
produtivo bastante disperso, com muitos agentes contribuindo com “miudezas”.
Fonte: AHU, op. cit.
Gráfico 1. Distribuição de freqüências para a variável produção madeireira (Santo Antônio de Sá, 1797)
56
Destrinchemos o quadro. Minha idéia é comparar a estrutura do quadro total de
unidades domiciliares (1.077) do distrito com a estrutura do subgrupo de unidades
domiciliares produtoras de madeira (100), procurando-se identificar as características
particulares deste último conjunto. Esta descrição será feita setorialmente, acatando a
divisão sócio-profissional apresentada no documento: fábricas de arroz (2), olarias (10),
engenhos de açúcar (27), oficiais de diferentes ofícios (30), serradores (55), taverneiros
(66), fábricas de farinha (238) e lavradores (649). Desprezando-se as categorias menos
numerosas e/ou não agrícolas, chegamos a um universo de 914 domicílios, com a
seguinte distribuição: 71% de lavradores, 26% de fabricantes de farinha e 3% de
senhores de engenho.
Acompanhemos, então, as distribuições dentro das classes quantitativas de
produção madeireira, procurando descobrir em que medida varia a proporção acima
identificada. Observando o gráfico 2, percebe-se que a tendência da proporção global
mantém-se apenas para a primeira classe, com 60,4 por cento de lavradores, 35,8 por
cento de farinheiros e 3,8 por cento de engenhos. Já na segunda classe, o número de
lavradores e fabricantes de farinha quase se iguala (17 contra 15), algo que ocorre
também na terceira classe (4 contra 3). Nas demais classes, com exceção da sétima,
prevalece o número de fabricantes de farinha. Isto significa que os farinheiros
predominavam na indústria madeireira de maior escala: apenas seis deles fabricaram,
juntos, quase 30 por cento da produção madeireira total do distrito, em 1797.
Gráfico 2. Cruzamento entre classes profissionais e classes de produção madeireira (Santo Antônio de Sá, 1797)
57
Essa predominância das fábricas de farinha na indústria da madeira é
confirmada mais pelas produções médias de cada classe do que pela ocorrência de cada
classe produtiva no total de 100 madeireiros. Destes, 55 pertenciam à classe lavrador, 43
à classe fábrica de farinha e apenas 2 à classe engenho de açúcar. Ponderando os
números acima pelas quantidades totais de ocorrência de cada classe produtiva no
distrito como um todo, obtemos o seguinte panorama: 7,4% dos engenhos de açúcar
produziam madeira, 8,5% dos lavradores produziam madeiras e 18,1% das fábricas de
farinha produziam madeira. Contudo, a interferência direta do tamanho das
propriedades fundiária nestes valores faz deles pouco confiáveis para o exame de nossa
questão. Com efeito, a área total ocupada por engenhos (em geral, madeireiros e não-
madeireiros) correspondia a 25% do território do distrito. Por outro lado, cada engenho
de açúcar engajado na atividade madeireira produzia, em média, somente 4,0 dúzias de
peças de madeira; cada lavrador, por sua vez, 12,8 dúzias; e cada fábrica de farinha,
17,9 dúzias.
Fonte: AHU, op. cit.
58
Detenhamo-nos um pouco nas categorias dessa classificação sócio-profissional,
começando com as fábricas de farinha. Assim como o açúcar, a farinha de mandioca
precisava, para o seu preparo, de todo um sistema de aparelhamento que, embora fosse
bem menos dispendioso do que o complexo manufatureiro do engenho, não deixava por
isso de produzir diferenciações entre os agricultores no que tange à possibilidade de
beneficiamento44 – como acontecia com os senhores de engenho e os chamados
“lavradores de partido”, no caso da cana. Depois de arrancado ao solo, o tubérculo devia
ser levado à casa de farinha (ou atafona, ou trem de farinha, ou farinhada, de acordo
com a terminologia popular regional), geralmente um galpão de pau-a-pique onde se
encontrava todo o instrumental necessário à feitura da farinha: peneiras (urupemas),
tachos, gamelas, cevadeiras, a prensa (tipiti), o rodo e o forno de barro. Todo o processo
de preparação da farinha era feito dentro dessa casa, de onde ela saía pronta para o
consumo.
Era de se esperar, portanto, que as classes produtivas mais elevadas fossem
preenchidas por fabricantes de farinha, indivíduos e famílias mais abastadas e com
maior potencial de investimento. De acordo com a lista, a grande maioria (77%) dos
fabricantes de farinha engajados na indústria madeireira tocavam suas atividades em
terras próprias, cujas dimensões variavam entre 0,076 e 3,6 km2. Além da mandioca,
essas terras estavam geralmente cultivadas com arroz, feijão e milho, em ordem
decrescente de freqüência e importância; nenhuma unidade domiciliar, todavia,
produziu aguardente e apenas uma produziu açúcar, na mísera quantidade de 31 arrobas,
o que mostra a grande especialização desse segmento da população em torno da
agricultura de alimentos básicos.
Com exceção de um, todos os fabricantes de farinha produtores de madeira
possuíam escravos. Seguindo a classificação usada por Fragoso e Florentino (op.
cit.:87)45, 15 farinheiros eram pequenos proprietários, 16 eram médios proprietários e 11
eram grandes proprietários, sendo que a média aritmética para o tamanho do plantel é de
17 cativos.
44 Castro (1987:85) constatou, para o caso de Capivary da segunda metade do oitocentos, que 53,1 por cento dos estabelecimentos agrícolas mais pobres por ela analisados não se encontravam aparelhados para a simples produção da chamada farinha seca ou farinha do comércio que, fina ou grossa, era largamente transacionada nos mercados locais e regionais. 45 Pequenos plantéis (1 a 9), médios plantéis (10 a 19) e grandes plantéis (mais de 20).
59
A categoria lavradores muito pouco provavelmente referia-se – ou pelo menos
não exclusivamente – aos “lavradores de cana” (ou “de partido”) aos quais fiz alusão
mais acima. Primeiro porque, como já foi visto, a base natural não era das mais
apropriadas para o cultivo dessa gramínea e, em segundo lugar, porque o exame de
documentos congêneres de outras partes do Brasil mostra que o referido termo
(“lavradores”) vinha sendo cada vez mais empregado, desde meados do setecentos, para
designar os pequenos e médios agricultores, principalmente aqueles que se ocupavam de
lavouras comerciais de alimentos básicos (Castro, op. cit.:36-7; Bacellar, 2001:129-37;
Samara, op. cit.:154-61). Castro (op. cit.:37) identificou, em seu estudo, uma carga
ideológica de auto-identificação desses indivíduos que não se reconheciam como
“fazendeiros”, mas apenas como “lavradores”. Conquanto tais agentes fossem,
freqüentemente, proprietários de escravos (com plantéis inferiores a 15 cativos) e até –
embora mais raramente – de terras, eles apresentavam-se politicamente subordinados
dentro da arena local, tendo em vista as dimensões menores de seus empreendimentos
agrícolas.
Diferentemente dos farinheiros, a maioria dos lavradores de Santo Antônio de
Sá (54,5%) trabalhava em terras alheias. Aparentemente, essa condição não influenciava
de modo decisivo a capacidade produtiva de sua indústria madeireira; entre os 10
maiores fabricantes, em 1797, figuravam três lavradores, sendo que dois deles não eram
proprietários de terras. Todavia, quando nos preocupamos em identificar quem eram
estes atores, outro elemento explicativo vem à tona – os laços parentais. O segundo
maior lavrador-madeireiro, responsável pela produção de 64 dúzias de peças, era José
de Amorim Lima, isto é, um dos irmãos mais novos de um grande senhor de engenho
local e administrador do corte naval daquela área. Além disso, José, assim como seu
irmão Francisco (outro lavrador-madeireiro, embora de menor porte) também eram
oficiais de ordenança: o primeiro era tenente e o segundo, capitão. Métodos de análise
micro-histórica (principalmente a demografia da reconstrução familiar) certamente
demonstrariam associações de parentesco como essas (fossem elas sanguíneas ou
fictícias) entre os demais agricultores-madeireiros sem propriedade fundiária e homens
politicamente poderosos no cenário local.
Quanto à posse de escravos, também o perfil dos lavradores diferenciava-se
consideravelmente daquele referente aos fabricantes de farinha. Dos 55 domicílios, 9
não tinham acesso a nenhum cativo. Dentre estes 46 lavradores donos de escravos, não
60
havia nenhum grande proprietário: 37 tinham pequenos e 9 tinham médios plantéis. A
média aritmética é de 4,8 cativos por lavrador.
Independentemente de possuírem ou não casa de farinha, farinheiros ou
lavradores privilegiavam a cultura da mandioca. Esta tem uma propriedade ecológica
bastante conveniente para a combinação com atividades secundárias esporádicas e
aleatórias, isto é, que exijam transferência da força de trabalho da faina agricultura.
Apesar de não ser uma cultura permanente, a mandioca, como tubérculo que é, possui a
capacidade de permanecer até dois anos no interior do solo sem ser colhida; ela pode,
portanto, ser literalmente armazenada na terra, propiciando ao produtor a alternativa de
postergar a colheita em caso de valorização de algum bem extrativo, por exemplo
(Castro, op. cit.:84).
Pode ser argumentado, portanto, que o que diferenciava farinheiros e
lavradores nos seus respectivos graus de engajamento no extrativismo madeireiro era a
margem de manobra econômica expressa em termos de propriedade fundiária e
escravaria. Deve-se notar, não sem efeito, que esta conclusão está baseada na premissa
de que a produção agrícola é a “variável independente” e a produção madeireira é a
“variável dependente” – algo que assumi mais acima quando falei em atividades
“centrais” em contraposição às “acessórias”. Ao mesmo tempo em que constituem
ferramentas fundamentais da pesquisa, as pressuposições são perigosas facas de dois
gumes: podem engessar o pensamento e levar a conclusões simplesmente ilustrativas da
teoria pré-concebida. Por isso, acho que o importante não é, propriamente, abster-se do
pressuposto, mas trabalhar com suas alternatividades. No presente caso, por
conseguinte, não deveríamos considerar a possibilidade de a produção madeireira ser o
indicador mais importante do sistema? Estou pensando não tanto em termos de uma
variável “independente” – pelo menos não no sentido mais estrito do termo – mas sim
como uma variável que revele uma relação cuja causabilidade tenha uma certa
precedência sobre as outras, qual seja, a relação sócio-espacial entre o rurícola e a mata
primária. Supondo que o nível de exploração madeireira indique acessibilidade a esse
recurso, então poderíamos imaginar um quadro no qual o extrativismo (auto-consumista
e mercantil) é que propiciasse uma maior produção agro-industrial (farinha de
mandioca) – e não o contrário. Para desenvolver essa hipótese, irei valer-me do modelo
de sítio camponês descrito por Woortmann (1983).
61
Esta antropóloga identificou, no campesinato sergipano, duas modalidades de
organização espacial da unidade produtiva diferenciadas pela disponibilidade de mata
primária. Enquanto este recurso era abundante e acessível, mantinha-se, além da
produção da mandioca propriamente dita, o aparato manufatureiro para beneficiá-la – a
casa de farinha. Da floresta virgem e/ou da capoeira grossa é que se extraía a madeira
necessária para a construção da casa e dos seus equipamentos (prensa, rodete, cocho,
etc.). Portanto, a redução do estoque florestal acarretava na diminuição não apenas da
lavoura mandioqueira (pois restringia a área total cultivável, obrigando a um pousio
cada vez mais curto), mas eliminava, concomitantemente, a disponibilidade de madeira
para a construção de novas casas de farinha ou mesmo para o reparo das instalações
antigas. A evolução da primeira para a segunda situação seria acionada,
preponderantemente, pelo avanço da propriedade privada sobre as terras comunais
efetuada pelos grandes criadores de gado da região. Isto quer dizer que a variável
central era, na verdade, o acesso jurídico às matas.
No caso da bacia do Macacu de finais do setecentos, este acesso era
determinado, em grande escala, pelas relações estabelecidas entre proprietários
fundiários e não-proprietários.46 Neste sentido, o primeiro modelo de Woortmann
poderia ser identificado aos fabricantes de farinha de Santo Antônio de Sá e o segundo,
aos lavradores de mandioca. Já vimos que os farinheiros tendiam a trabalhar em terras
próprias, ao contrário dos lavradores. Esta diferenciação é reforçada quando olhamos
para a ocorrência de agregados no conjunto das duas classes: enquanto 67,4% dos
farinheiros “abrigavam” pelo menos um indivíduo ou família despossuída em suas
terras, apenas 34,5% dos lavradores faziam o mesmo, ou seja, a metade. A média
aritmética (número total de agregados dividido pelo número total de domicílios)
também confirma esse resultado, embora com menos intensidade (1,6 para os
farinheiros e 1,0 para os lavradores). Isto pode ser explicado pela escala do universo
sócio-econômico de que aqui se trata – com efeito, para esses estratos rurais médios,
arrendar uma única parcela de terreno significava muito em relação aos grandes
senhores de engenho, por exemplo.
46 Utilizo aqui o termo “não-proprietários” para designar todos os indivíduos ou famílias que se encontravam assentadas e produzindo economicamente em terras que lhes não pertenciam juridicamente. Teoricamente, seriam “foreiros” ou “arrendatários”, mas evitei empregar esses termos visto que não posso comprovar documentalmente tais associações.
62
Como essa dinâmica sócio-econômica se refletia na paisagem florestal? Uma
estimativa da área ocupada por floresta ainda de pé, no final da década de 1770, pode
ser obtida através dos dados fornecidos pelo relatório do Marquês do Lavradio sob a
rubrica de “terras qe se achão por cultivar”. Supondo que essas áreas fossem realmente
sertões florestais e trabalhando com uma área total da bacia de 1.700 km2, podemos
inferir que cerca de 17% (ou 286 km2) do setor norte-oriental da bacia ainda eram
cobertos por florestas. Elas remanesciam, principalmente, na margem esquerda do
médio-alto vale do Macacu e no alto vale do rio Guapi-Açu (Lavradio, 1946:293-4).
Considerando-se que estão excluídas deste valor as datas do capitão Pedro Corrêa Lima
e dos Carmelitas, além das “[t]erras por cultivar e vacuadas por Ordem do Ill.mo e Ex.mo
S.or Conde da Cunha a doze annos” – cujas dimensões não são especificadas pelo
documento –, acredito que se pode trabalhar com uma estimativa conservadora de 20 a
25% de cobertura florestal na bacia, no final da década de 1770.
Se atentarmos para as “terraz devolutaz” relatadas no capítulo décimo nono da
Discripção, então concluímos que, em 1797, a mata parece ter se praticamente
extinguido, pois os valores fornecidos pela fonte indicam que restava pouco mais de um
km2 de área florestal, já nos pontos mais altos da Serra dos Órgãos, “cujas terras são [...]
chamadas do Povo” (AHU, op. cit.:cap.19). Apesar de ser muito provável que tenha
havido, realmente, uma não-desprezível redução do tecido florestal no último vicênio do
século, não devemos, contudo, dar muito crédito a esta última cifra, por duas razões. Em
primeiro lugar, há uma probabilidade muito grande de o relator ter tomado toda
apropriação territorial de jure por apropriação de facto. Por volta de 1770, praticamente
todo o território do distrito de Macacu já se encontrava sesmariado. De acordo com
Barros (op. cit.:81), entre os anos de 1750 e 1778, o termo da Vila de Santo Antônio de
Sá concentrou mais de 14% das sesmarias concedidas pela Coroa, a maior porcentagem
verificada no período, igualada somente pelo distrito de Cabo Frio. O recorte temporal
de Barros não me permite averiguar, mas é provável que estas concessões tenham se
realizado até meados dos anos 1760, momento a partir do qual a administração
metropolitana adota uma rígida política de controle sobre aquela área, devido ao
problema do contrabando do ouro das minas dos sertões do Macacu. O próprio autor
afirma, mais à frente, que “em fase de ocupação na década de 1760, o avanço da
fronteira nesta região foi retardado duas décadas por decreto real” (Idem:153-4).
63
Em segundo lugar, em estreita consonância com o que se disse acima, tenho
motivos para crer que a maior parte do desflorestamento ocorrente nesse período
(terceiro quartel do século XVIII) deu-se sobre florestas secundárias. Das três freguesias
que formavam o distrito da Vila de Santo Antônio de Sá de Macacu, a que mais se
destacava na produção de farinha era a de Santíssima Trindade. Baseando-se nos dados
do relatório do Marquês de Lavradio, Forte (op. cit.:46) calcula que esta freguesia
produziu, no ano de 1778, 1 milhão de litros de farinha. Considerando-se necessários
4,5 m3 de madeira para a secagem de 50 quilos de farinha (Deffontaines, 1945:567),
pode-se estimar grosseiramente que, em se mantendo mais ou menos constante o nível
da produção, derrubavam-se, anualmente, cerca de 14.000 árvores (com uma média de
12m de altura) para este fim. Deste modo, imaginando a exploração de uma floresta
secundária com uma densidade média de 50 indivíduos úteis por hectare e da qual se
extraísse todos os tipos de árvores, sem distinção, a devastação produzida pelas fábricas
de farinha teria afetado, anualmente, 2,8 km2 de matas secundárias da freguesia de
Santíssima Trindade, no último quartel do século XVIII.
Conclusões
A sociedade brasileira nasceu e se desenvolveu no denso meio florestal. Somente na sua
puberdade é que ela espraiou-se para os horizontes abertos, para os campos, para os
cerrados e a caatinga – as “florestas anãs”. Os autores clássicos gostavam da imagem
romântica da “luta” do homem contra o sertão florestal, a subjugação das forças
selvagens da natureza inculta pela heróica civilização, influência indelével do famoso
modelo de fronteira turneriano (ver, e.g., Ricardo, 1942). Já os autores contemporâneos,
como Dean (op. cit.), influenciados pelo pensamento ambientalista, acabaram por
inverter a polaridade do virtuosismo, tendendo a descrever a ocupação do espaço
florestal como um processo de depredação tout court, no qual a simples presença do
homem é vista como elemento maculador de uma pureza e de uma harmonia
supostamente intrínsecas a uma natureza quase sacralizada.
Concordo inteiramente com Duarte (2004:151) quanto à improbabilidade de a
história da sociedade brasileira ser o mero desenrolar de um processo linear e crescente
de destruição florestal. Prefiro, neste sentido, pensar a Mata Atlântica como o principal
baluarte físico-geográfico da formação colonial, fornecendo, ao longo de mais de três
séculos, a maior parte da matéria-bruta utilizada no empreendimento ultramarino
64
português. E essa matéria-bruta não se restringiu ao solo usurpado a ferro e fogo da
floresta. Como toda apropriação é multiforme, como toda paisagem natural pode ser
recursalizada, simultaneamente, de diversas formas, supondo, no mínimo, um tipo de
uso para cada elemento natural disponível, a floresta foi derrubada e queimada, sim –
afinal, para morar na floresta, o homem necessariamente a remove –, mas também
cultivada, drenada, caçada, estradada, madeirada.
O ciclo dos “sítios volantes”, conforme chamou Gorender (1978:299), incluía,
muitas vezes, antes da limpeza do terreno com fogo, uma fase de “apanha” das espécies
fornecedoras de boas madeiras. Obviamente que estas deviam ser poucas, se
comparadas com a diversidade arbórea total de um trecho de Mata Atlântica – digamos,
talvez, 10 ou 20%. Mas é preciso lembrar que nem toda a Mata Atlântica estava
assentada sobre o precioso massapé nordestino e os solos precisavam ser adubados, o
que significa dizer que era necessário queimar uma parte substancial de floresta. E,
talvez mais importante do que isso, a terra precisava estar disponível para a plantação
(isto é, desflorestada) rapidamente, o que um homem, sua família e uns poucos escravos
(quando existissem) não poderiam realizar a base unicamente de machado. Por haver
árvores mais robustas (com troncos de maior diâmetro) que teimam em remanescer
mesmo após a queima, era muito importante que se as derrubasse antes que se tocasse o
fogo, porque lenhos secos são consideravelmente mais difíceis de serem cortados.
Segundo Deffontaines (1945:564), “[a] floresta é verde e úmida demais para queimar
em pé; não há incêndio de floresta sem uma derrubada prévia”. As próprias
modificações ecológicas estruturais impostas pelo corte seletivo à comunidade vegetal
podem, como mostram os estudos experimentais de Holdsworth e Uhl (1997) e
Monteiro et. al. (2004), aumentar o grau de combustibilidade da floresta, facilitando,
assim, o trabalho do fogo no processo de expansão da terra arável. Em outras palavras, o
custo de oportunidade do arroteamento não-aproveitador de madeira era muito alto, isto
é, a produção global (agricultura mais extrativismo) acabava ficando substancialmente
mais cara, primeiro porque o terreno não era preparado adequadamente – o que influía
na fertilidade do solo – e, segundo, porque se desperdiçava biomassa com potencial
valor-de-troca. O padrão fitogeográfico da Mata Atlântica, combinado a um acesso
quase universalizado aos recursos florestais – o que pressionava os preços para baixo –
tendia a fazer com que, na maioria das vezes, só valesse a pena entrar na densa floresta
65
primária para cortar algumas poucas árvores quando já se fosse, no final das contas,
derrubá-la por completo de qualquer maneira.
Se o século XVIII representou, de fato, um turning point na história da Mata
Atlântica brasileira, em geral, e fluminense, em particular, com o início de taxas de
desflorestamento exponencialmente maiores (Dean, op. cit.:109; Amador, 1997:270,
275), a bacia do Macacu parece ter constituído, ainda no final da centúria, um grande
“refúgio” do bioma. Este vasto estoque de floresta apresentava uma enorme variedade
de espécies vegetais propícias à exploração madeireira, com finalidades múltiplas. Em
resumo, o que os documentos analisados mostram é uma floresta que era, de fato, uma
paisagem geográfica, isto é, um espaço ao mesmo tempo natural e cultural. Um espaço
apropriado pelo homem, talvez (ainda) mais simbólica do que materialmente, mas
apropriado, sem dúvida. A floresta macacuana, na segunda metade do século XVIII, era
um locus de indústria, de metabolismo ativo entre o homem e a natureza.
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71
O Encilhamento e a Economia de Juiz de Fora: O Balanço de
Uma Conjuntura (1888-1898)47
Marcus Antônio Croce
Mestre em História Social - Universidade Federal Fluminense (UFF).
47 O artigo presente foi baseado na dissertação de mestrado O Encilhamento e a Economia de Juiz de Fora: O Balanço de uma Conjuntura (1888-1898), defendida por Marcus A. Croce na Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação do Dr. Cézar Teixeira Honorato (UFF) e com a colaboração do Dr. Anderson Pires (UFJF), em Niterói, 2006.
72
Resumo: Vemos que o Encilhamento, foi uma política econômica elaborada para uma nova forma produtiva no país. O fim da forma de trabalho escravo contribuiu na transformação de investimentos em ativos. Investimentos que antes eram efetivados em grande porcentagem em ativos imobilizados como terras, benfeitoria e escravos, começavam a ceder espaços para papéis como, títulos, ações e dívida pública. Tal transformação possibilita um aumento significativo dos ramos de produção em Juiz de Fora, e uma grande diversificação setorial. A contribuição dos setores diversos nesse período mostra que existiram movimentações especulativas no mercado de capitais local, porém, o movimento de produção alcançou uma magnitude muito superior. Apesar de presenciarmos na conjuntura do Encilhamento, especulação e solidez caminharem lado a lado, pudemos observar que a solidez em Juiz de Fora se sobressaiu sobre a especulação. O resultado do balanço da conjuntura do Encilhamento em Juiz de Fora, demonstra que estabelecimentos importantes, existentes no mercado de capitais da cidade até os dias atuais, se originaram no período analisado. Aponta também que, os investimentos realizados em Juiz de Fora, sobretudo por agentes locais, durante o Encilhamento, influenciaram de forma direta na evolução sócio-econômica atingida pelo município. Palavras Chave: Encilhamento, conjuntura, investimento, financeiro e industrial.
Abstract: We can see that the Encilhamento was an economical policy made for a new production way in Brazil. The end of slavery interfered on investments transfer on assets. Investments used before on real states, such as lands and slaves, now used for paper like titles and public dept. Such change allowed a significant raise on production branches in Juiz de Fora, beyond big field diversity.
The contribution of field diversity in this time show that despite of the existence of speculation on the local market, the production force get to a much higher magnitude. On Encilhamento conjunctive, speculation and solidity walk side by side, but we can see that in Juiz de Fora solidity beat speculation.
The final balance of Encilhamento in Juiz de Fora show that important stores of the present day were born in this peculiar time .Also show that investments made in Juiz de Fora, specially by local agents directly inflected the social-economical evolution of the district. Key-words: Encilhamento, conjunctive, investment, financial and industrial
73
Introdução
A conjuntura econômica do Encilhamento é sem dúvidas um tema que possui
uma vasta referência bibliográfica na história brasileira, com opiniões diversas, porém
em sua maioria quase absoluta, sempre focado nas cidades do Rio de Janeiro e São
Paulo. Propomos então, dentro desse artigo explanar a visão dessa conjuntura no
universo do Estado de Minas Gerais, dando ênfase à região da Zona da Mata Mineira e,
em especial, sua cidade pólo, Juiz de Fora. Esperamos assim, estar contribuindo de
alguma forma na linhagem da História Regional do Brasil.
Como citamos anteriormente, apesar do Encilhamento possuir uma quantidade
considerável de trabalhos, no caso de Minas Gerais esse volume parece não atingir um
nível significativo, e, além disso, consideramos que o que existe na historiografia
regional a respeito do tema é uma visão superficial referente à importância dessa
conjuntura na História do Brasil.
João Heraldo Lima, por exemplo, coloca que o Encilhamento não trouxe
nenhum impacto sobre a economia mineira. Vemos também Domingos Giroletti,
enfocando seu trabalho na cidade de Juiz de Fora, afirmar que o Encilhamento foi um
elemento demonstrativo de transferência de capitais. Segundo Giroletti, o capital local
não ficava retido na origem para investimentos locais, e sim, transferidos para a praça
do Rio de Janeiro, onde oferecia maior rentabilidade.48
Não podemos concordar com os pressupostos lançados pelos autores acima, uma
vez que, diante das pesquisas por nós efetivadas através de fontes primárias e
secundárias, constatamos um surpreendente impacto sobre a economia mineira no
período, e consequentemente, um grau elevado de investimentos na origem local.
Investimentos esses em setores de extrema carência na região e até mesmo no país
naquele período, como financeiro, energético, industrial e de ensino.
Os investimentos os quais citamos e sua diversidade setorial se deram
principalmente com a formação de Sociedades Anônimas, uma característica que foi
primordial na conjuntura do Encilhamento. A partir de agora veremos então como se
formaram tais sociedades e sua importância no contexto sócio-econômico da região.
48 LIMA, João Heraldo. Café e Indústria em Minas Gerais 1870-1920. Vozes. Rio de Janeiro, 1981 p- 12. GIROLETTI, Domingos A .. Industrialização de Juiz de Fora 1850-1930. Juiz de Fora, EDUFJF, 1988 p- 120.
74
1 - O Setor Financeiro de Juiz de Fora durante o Encilhamento: entre a
Especulação e a Solidez.
O período de nossa pesquisa, 1888-1898, presenciou as atividades de três
instituições bancárias locais, constituídas como sociedades anônimas, que exerceram
um papel fundamental na economia de Juiz de Fora dentro da conjuntura do
Encilhamento.
Embora os três empreendimentos tenham surgido na mesma localidade, com
agentes comuns atuando entre eles, tais bancos tiveram sua dinâmica e sua história com
fins bastante diferenciados. Podemos ir além, como afirmar que as instituições bancárias
pertencentes à praça de Juiz de Fora nesse período foram um exemplo claro na
conjuntura do Encilhamento, entre operar no campo da especulação e operar no campo
da produção.
1.1.1 O Banco de Crédito Popular de Minas
O Banco de Crédito Popular de Minas iniciou suas atividades em meados de
março de 1891, e encerrou suas atividades em novembro de 1893. À primeira vista
podemos associar esta instituição a um exemplo típico da conjuntura do Encilhamento,
ou seja, uma empresa quase fictícia que se instala, vende suas ações no mercado
financeiro e se dissolve em curto prazo, gerando lucros excessivos para especuladores
da Bolsa e prejuízo a seus correntistas e demais investidores.
A suposição acima chega a tomar uma forma mais concreta, quando
pesquisamos fontes locais e detectamos que tal Banco chegou a ser apelidado pela sátira
local de "Banco do Onça", por querer jogar com 40.000 contos de réis na praça.
Associamos o fato também devido o Banco ter sido inaugurado no período de maior
incidência especulativa na conjuntura do Encilhamento, no ano de 1891.
Ao iniciarmos nossa pesquisa de campo referente a esse Banco e, apesar das
dificuldades para encontrarmos informações devido ao curto prazo de vida útil dessa
instituição, fatos novos nos surpreenderam e mudaram os rumos de nossa concepção
anterior. Para nossa surpresa, tal Banco não teve nada de especulativo e sim de inovador
para sua época, buscando um novo mercado de crédito dentro da esfera urbana.
75
O primeiro fato que nos levou a incidir uma nova luz a essa instituição foi o fato
de que, ao procurarmos o seu processo de falência no Arquivo Histórico local não o
encontramos. Consultando jornais que noticiavam as atividades do Banco, detectamos
que sua liquidação ocorreu de forma sensata, sem processo de falência,
comprometendo-se a instituição a restituir seus credores em prazo estipulado conforme
anúncios colocados diariamente, no decorrer de dois meses, no jornal local.
Dentre os motivos da liquidação desse Banco, a especulação certamente
contribuiu para o fato, porém atuando como um elemento externo à instituição. É
importante cruzar os fatos e recordar que o Banco Territorial faliu em 1892, um ano
antes da liquidação do Banco de Crédito Popular.
Os dados levantados sobre a falência do Banco Territorial, nos levam a uma
hipótese muito condizente. O crash desse Banco, episódio que gerou uma verdadeira
ebulição na cidade49, influenciou diretamente na dificuldade que o Banco de Crédito
Popular passou a ter em conseguir entradas de capitais para a integralização de suas
ações no mercado. Tal dificuldade era provocada pelo medo de investidores em aplicar
seu capital em papéis do setor financeiro, que se mostrava muito vulnerável a
especulações.50
As atas de assembléias do banco eram sempre divulgadas em jornais,
demonstrando sempre seus balanços e convocando seus acionistas. Percebemos que a
diretoria da instituição inspirava confiança entre seus participantes, apesar do banco já
começar a enfrentar dificuldades em manter-se. Percebemos depois de consultar a ata
publicada no jornal do período, um fator que ameaçava a estabilidade dessa instituição
no quadro econômico da praça. A falta de integralização das ações lançadas no
mercado, que já começam a se manifestar nas dificuldades presenciadas pelo Banco.
Diante dos dados levantados, que demonstram com clareza a falta em espécie
das ações subscritas, juntamente com a crise conjuntural que o país vivia em 1893,
49 A falência do Banco Territorial em Juiz de Fora provocou a perda de economias de muitos correntistas. A corrida aos caixas, na expectativa de retirar algum recurso para amenizar o prejuízo iminente, gerou tumultos e conflitos, chegando ao ponto de solicitação de reforço policial externo. De acordo com o jornal O Pharol, de 12 de julho de 1892: "Vinda de Ouro Prêto ontem a esta cidade uma força do 31o Batalhão, composta de 50 praças, sob comando do Capitão Laurindo Costa. Segundo fomos informados, a referida fôrça foi requisitada para vir garantir o prédio em que funciona o Banco Territorial de Minas Gerais, contra o assalto que, segundo noticiamos ontem, constava ter sido premeditado por pessoas do povo que têm interêsse naquele estabelecimento". 50 A respeito de medo, ou aversão de investidores a aplicarem no setor financeiro ver: HOFFMAN, P. POSTEL-VINAY, G. and ROSENTHAL, J.L. (2000) Priceless Markets: the political economy of credit in Paris, 1660-1870. University of Chicago Press.
76
envolvendo recessão e retraimento de investimentos, podem estes serem incluídos como
pressupostos de uma inevitável queda do Banco de Crédito Popular de Minas.
Apesar da historiografia de Juiz de Fora pouco comentar sobre este banco, ou
praticamente não comentar,51 percebemos que o Banco de Crédito Popular de Minas
exerceu, dentro de suas limitações, uma participação significativa e nova na economia
de Juiz de Fora.
Definimos como uma participação nova o papel secundário exercido pelo Banco
de Crédito Popular de Minas, devido este se instalar na cidade com pretensões,
conforme revela seu nome, de estender o crédito em caráter popular urbano. Tal caráter
mencionado exprime uma especificidade desse estabelecimento perante os demais da
cidade.
Enquanto os dois outros Bancos da praça foram inaugurados no início da
conjuntura do Encilhamento e firmaram contratos governamentais de repasse do
dinheiro do Tesouro Nacional aos agentes agrários locais, sendo essa uma forma de
grande participação na consolidação de seus capitais, o Banco de Crédito Popular
inseriu-se no mercado de capitais local com uma perspectiva diferente. Tal Banco foi
um empreendimento inaugurado simultaneamente com vários outros dos setores
comerciais e industriais, e, como estes, buscava somar e aumentar o volume da
economia urbana de Juiz de Fora, que a cada dia, oferecia oportunidades a novos ramos
de produção.
Ao associarmos o pensamento acima com os dizeres registrados do acionista do
Banco, Cel. Cícero da Ponte, em uma ata de assembléia onde se discutia sobre a
liquidação do Banco, percebemos o interesse desse banco em priorizar suas operações
no meio urbano: "A liquidação (...) é um desastre commercial (...) para esta cidade que
dia a dia conquista terreno no caminho da prosperidade."52
51 Ao consultarmos obras que tratam da História Bancária de Juiz de Fora, ou que envolvem o papel dos bancos no processo evolutivo da cidade, nada encontramos relativo ao Banco de Crédito Popular de Minas. Dentre os trabalhos referidos estão, GIROLETTI, Domingos. Industrialização de Juiz de Fora 1850-1930. Juiz de Fora, EDUFJF, 1988. FILHO, José Procópio. Retalhos do Passado. Juiz de Fora, 1966. MASCARENHAS, Nelson Lage. Bernardo Mascarenhas e o Surto Industrial de Minas Gerais. Rio de Janeiro, Aurora, 1954. Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora. História Econômica de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 1987 A única fonte secundária que encontramos, apontando tal banco como elemento constituinte da História Bancária local, embora com limitações quanto à sua formação, porém ressaltando que em muito contribuiu em nossa pesquisa foi Café, Finanças e Bancos: Uma Análise do Sistema Financeiro da zona da Mata de Minas Gerais: 1889/1930, de autoria do Professor Anderson Pires. 52 Ata de Assembléia publicada no Jornal O Pharol em 22/08/1893.
77
A cidade de Juiz de Fora, de acordo com os jornais consultados referentes ao ano
de 1889, já manifestava o desejo de um banco popular, com maior raio de ação para
atendimento a camadas do setor secundário urbano. Em setembro de 1889, o jornal O
Pharol anuncia da seguinte forma uma coluna diária que teria como tema Bancos
Populares.
"No momento em que no nosso paiz as instituições bancárias adquirem uma expansão que vivamente constratadas com a pátria que temos vivido até hoje, reveste-se toda a opportunidade a seção que inauguramos para o estudo de um assunto tão importante..53
Entre os artigos publicados nessa seção, só tivemos acesso a dois deles, porém
vimos que ambos manifestavam maiores oportunidades de crédito às camadas de
comerciantes, industriais e trabalhadores de classes de menor porte. Tais artigos
expressavam pressupostos de alta relevância, embutidos na realidade econômica vivida
no momento, e expressavam também o desejo de um desenvolvimento efetuado por
igualdades.
No primeiro artigo que lemos fica clara a mensagem do autor (não identificado)
referindo-se aos bancos tradicionais. São amplamente contestadas as operações de
crédito e investimento desses bancos. Segundo o autor, o valor das ações vendidas pelos
estabelecimentos financeiros e as garantias exigidas para crédito só visam clientes como
a grande indústria e o grande produtor rural, deixando o pequeno comerciante, o
operário e os pequenos industriais e produtores agrícola sem condições de serem
beneficiados.54
O segundo artigo dessa série faz uma comparação interessante ao sistema
bancário efetivado na Europa, em países como Itália e Alemanha. O artigo exprime que
nesses países existem bancos populares, permitindo a ascensão de classes inferiores,
incentivando o espírito empreendedor de todo cidadão.55
Os artigos mencionados acima nos remetem à teoria de Alexander
Gerschenkron, onde este autor evidencia o papel do sistema bancário no que tange aos
estágios de industrialização e crescimento. Segundo Gerschenkron, uma economia
incipiente necessita fundamentalmente de apoio financeiro direcionado às indústrias,
53 Jornal Diário de Minas, 23/09/1889. 54 Jornal Diário de Minas, período de Setembro a Dezembro de 1889. 55 Idem
78
repassado pelo setor financeiro, no caso os bancos. O processo referido, de acordo com
Gerschenkron, influi positivamente na orientação empresarial dessas economias.56
Acreditamos e relembramos, como citamos anteriormente nesse trabalho, que a
situação do quadro conjuntural, positivo ou negativo, influi incisivamente no campo de
retração ou abundância de investimentos. O café, sendo o produto principal em Juiz de
Fora e ocorrendo um quadro econômico negativo referente a ele, certamente, como um
efeito dominó, isto afetará os outros setores existentes na economia. Tal modelo, em
nossa concepção, encaixa-se perfeitamente no caso de liquidação do Banco de Crédito
Popular de Minas.
O banco iniciou suas atividades em um período conjuntural de euforia, compra
de títulos e ações, vivenciado em Juiz de Fora por um momento em que a produção
cafeeira diversificava seu capital. O banco, inaugurado nesse período, subscreve suas
ações, porém vimos que a falta de integralização destas representou o grande motivo de
liquidação do banco em 1893.
Corroborando nosso pensamento, no tocante à inversão de investimento para
retração, vemos que em 1893 a crise do preço do café se manifesta em grande escala.
Para consolidar nossa concepção localizamos no jornal O Pharol, em junho de 1893:
"Diz um jornal de Nova York: A excitação no mercado de café hontem (18 de abril) foi a maior que temos visto há muitos annos (...) o preço baixou $3 por saca (...) o mercado de Harvre baixou 7 francos, Hamburg baixou 5 pfeining e Londres 4 sterling. O mercado de Amsterdam também sofreu grande depressão."57
Concluímos então, que o Banco de Crédito Popular de Minas, apesar de sua
duração efêmera, não foi um investimento especulativo e que o motivo do encerramento
de suas atividades foram as crises conjunturais decorrentes no período. Tais crises
resultam em retração de capitais e investimentos, fato esse que gera falta de
compromisso do grande número de seus acionistas no que se refere a não
integralizarem suas ações subscritas.
56 A respeito dessa teoria ver: GERSCHENKRON, Alexander. Economic Backwardness in Historical Perspective (Cambridge, Mass; 1962); GERSCHENKRON, Alexander. Continuity in History and Other Essays (Cambridge, Mass, 1968). 57 Jornal O Pharol, 09/06/1893.
79
1.1.2 - O Banco Territorial e Mercantil de Minas
Para compreendermos a trajetória desse banco, consultamos dados sobre suas
origens e, através de jornais locais e o seu processo de falência, pudemos compreender
então o lado sombrio da conjuntura do Encilhamento. Como citamos anteriormente, tal
conjuntura elaborada para atrair abertura de ramos de produção, também oferecia
facilidades nos meios de especulação e, foram essas facilidades que decretaram o
naufrágio dessa instituição bancária tradicional.
Fundado no período imperial (1887), com capital local e visando o investimento
na própria região, o banco oferecia crédito através de letras hipotecárias, desconto de
letras, duplicatas e conta-corrente, colocando a cidade de Juiz de Fora como uma das
poucas localidades do Brasil, fora da praça do Rio de Janeiro e São Paulo, a possuir o
privilégio de contar com uma agência bancária.58
A construção da rodovia União e Indústria e os investimentos efetivados de
infra-estrutura no setor de transportes, visto que na conjuntura anterior ao Encilhamento
os investimentos locais foram direcionados em sua maioria nesse setor, ofereceram
resultados prospectivos. A entrada de imigrantes e investidores de outras localidades
desejando investir na cidade devido a sua infra-estrutura urbana avançar a cada dia,
juntamente com a forte presença de cafeicultores local demonstravam que a
inauguração de um estabelecimento de crédito local não tardaria. E foi nessas condições
que surgiu o Banco Territorial e Mercantil de Minas.
O Banco já efetivando suas operações na praça, expandiu suas fronteiras,
inaugurando, em um curto espaço de tempo, agências em cidades vizinhas. Cidades
como Ouro Preto, capital do Estado de Minas, Além Paraíba, cidade da região da zona
da Mata mineira, produtora de café e Rio de Janeiro, capital e maior centro financeiro
do país.59
Participando do processo evolutivo da cidade, o Banco Territorial e Mercantil de
Minas teve sua grande chance de se consolidar institucionalmente na conjuntura do
Encilhamento, porém, foi nessa conjuntura que decretou seu fracasso.
A chance referida se deu em 1888, início da conjuntura, quando o Banco
celebrou um contrato governamental onde recebeu 1.500 contos sem juros do Tesouro
58 BERNARDINO, M.C. ALMICO, Rita. BancoTerritorial e Mercantil de Minas: Origem do Processo de Falência. In: Anais Anpuh - MG, IX Encontro. Juiz de Fora, 1994. FRANCO, Gustavo B. A 1o Década Republicana . In: ABREU, M.P. A Ordem e o Progresso: 100 anos de Política Econômica Republicana 1889-1989. 11o ed. Rio de Janeiro, Campos 1990.
80
Nacional, comprometendo-se a emprestar o montante de 3.000 contos aos agentes
agrários locais a juros de 6%. Tal empréstimo, dentro das normas, seria efetuado com
garantias reais, como penhor agrícola, caução de títulos de dívidas e ações de
companhias garantidas pelo Governo. Complementando o grande momento, em 1889, o
banco dobra seu capital e se torna um banco emissor.60
Com todo esse aparato, o Banco Territorial foi um empreendimento que
participou do boom inicial do Encilhamento, porém, teve uma duração efêmera de
apenas cinco anos (1887-1892) e, através de seu processo de falência vemos a causa de
sua curta existência.
De acordo com tal processo, verificamos que as agências Matriz (Juiz de Fora),
Ouro Preto e Além Paraíba registravam irregularidades diversas em seus documentos
contábeis. Irregularidades como pagamento de letras a prazo fixo efetuado antes de seu
vencimento, pagamento de juros acima do estabelecido pelo mercado na conta de
próprios diretores da instituição e atrasos de escrituração contábil.61
As irregularidades apontadas acima são elementos inadmissíveis em uma
empresa, elementos que guiam o empreendimento a um só caminho: a desintegração.
Mas as irregularidades que nos causaram espanto e que, em nossa concepção, e
decretaram a queda total do Banco Territorial, foram as irregularidades, ou utilizando
outro termo, as atrocidades financeiras, detectadas na agência do Rio de Janeiro. As
práticas utilizadas pelos funcionários desta agência, em especial o gerente e o
tesoureiro, associados com participantes externos do mercado financeiro, nos dão a mais
nítida visão do que foi o fator especulação no Encilhamento.62
O laudo pericial efetuado na agência do Rio de Janeiro demonstra que o último
livro Diário, encerrado em 1892, apresenta dados corretos na sua escrituração, de
acordo com as leis do Código Comercial vigente do período. Mas detecta também que
lançamentos contábeis referentes ao ano de 1890 começam a transparecer que existe
"fumaça no ar".63
59 BERNARDINO, M.C. ALMICO, Rita. Banco Territorial...op. cit. 60 O contrato celebrado com o Governo Imperial encontra-se anexado ao processo de falência do banco, datado no ano de 1893, cx. número 3965, sob custódia do Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Quanto à autorização e aumento de capital do banco, o jornal Diário de Minas, publicado em 6 de setembro de 1889, apresenta o anúncio de aumento de capital do banco, de 1.000 contos para 2.000, e as negociações que o banco requer junto ao Governo para se tornar Banco Emissor. 61Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893. cx. 3965 62Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893, cx. 3965 63 Idem
81
O livro Diário datado de 1o a 13 de setembro de 1890 apresenta-se escriturado
em uma só partida64, o que já é contra as normas do Código Comercial. Durante esse
curto espaço de tempo, encontra-se um movimento de Caixa com ordem aproximada de
20.000 contos de réis, além de aproximadamente 5.700 contos de réis em outros
lançamentos. A data do fato acima mencionado, coincidentemente, é a mesma em que
se realizava a grande incorporação da Companhia Céres Brasileira, e assim a
especulação começa a tomar forma.65
A conta corrente dessa companhia demonstra movimentos suspeitos de
simulação contábil, com entradas e saídas de valores avultados. Em 3 de outubro de
1890, o saldo da companhia atingia a marca de 1.440:000$000 positivo, e poucos dias
depois, no dia 08 de outubro de 1890, a conta apresentava um saldo negativo de
429.166$665. Tal valor remonta na liquidação do Banco seu débito de 500 contos.66
O processo de incorporação nos permite entender claramente como os agentes
especulativos lucraram com essa operação. A Cia. Céres Brasileira, incorporando outra
companhia, fez suas ações no mercado valorizarem. É nesse momento de alta que
agentes portadores dessas ações, como o Banco de Crédito Rural e Internacional e
Henry Lowndes, as vendem no mercado. As ações "podres" foram repassadas ao Banco
Territorial.67
O fato que mais nos impressionou no contexto dessa operação foi detectar que o
Banco estava envolvido com agentes do meio especulativo que marcaram a história da
especulação no Brasil, e não seria exagero apontar, também na especulação mundial.
O agente especulativo a que nos referimos é Henry Lowndes, o famoso Conde
de Leopoldina. Tal personagem ficou tão conhecido por suas ações no mercado
especulativo que, no livro de enorme repercussão de Visconde de Taunay, "O
Encilhamento", ele foi um personagem, sob o pseudônimo de William Drows.68
64 O termo "uma só partida", demonstra irregularidade contábil. A forma correta de se escriturar em um livro contábil como o Diário é discriminar a natureza dos lançamentos efetuados dia a dia, nos campos de débito e crédito. Uma só partida corresponde então a um lançamento total, que não discrimina ou especifica a origem de operações referentes a débito e crédito. 65 Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893, cx. 3965. 66 Idem 67 Idem 68 TAUNAY, Visconde. O Encilhamento. Rio de Janeiro, 1893. Maria Bárbara Levy coloca que: "Não foi por menos que Henry Lowndes, figura lendária da época, foi caricaturado no romance de Taunay como William Drows, personagem estereotipada do encilhamento." LEVY, M.B. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas...op. cit p. 165.
82
O desdobramento de Henry Lowndes no meio financeiro especulativo é
abordado com detalhes impressionantes, de acordo com Maria Bárbara Levy:
"Henry Lowndes, o Conde de Leopoldina, título comprado em Portugal, já era grande especulador em Lisboa quando pressentiu a oportunidade de se instalar no Brasil, durante o Império.Conseguiu aproximar-se do barão de Lucena, sucessor de Rui Barbosa no Ministério da Fazenda, para obter um grande depósito de divisas no Banco de Crédito Universal que acabara de fundar, com a promessa de reanimar a Bolsa, que fizera despencar com as ações da Companhia Geral de Estradas de Ferro. Aliás, foi por essa operação que acabou sendo deportado para Cacuí. (...) O que mostra que o "encilhamento" permitiu, a quem entendia do ramo, ganhar na alta e lucrar na baixa, mesmo sem criar empresas de papel."69
As palavras de Maria Bárbara Levy expressam o grau de especulação em que o
Banco Territorial estava envolvido. O nome de Henry Lowndes, ou Conde de
Leopoldina, veremos em outras carteiras comerciais do Banco, com saldo devedor de
grande proporção.70 Ao olharmos a prática de especulação exercida por Henry
Lowndes, envolvendo incorporações, aumento de capital, supervalorização de ações que
pouco tempo depois seriam totalmente depreciadas, refletem exatamente a operação da
Cia. Céres Brasileira.
É mais interessante ainda que, como aponta Maria Bárbara Levy, os movimentos
de aumento de capital, incorporações e outros efetivados por Henry Lowndes,
ocorreram com maior incidência no ano de 1890.71 Exatamente nesse período é que foi
efetivada a transação da Céres Brasileira, na qual Lowndes aparece envolvido.
Ainda dentro do livro caixa encontram-se muitos balancetes "maquiados" pelo
tesoureiro dessa agência, o Sr. Vicente Maria Boa Nova. No período do final de mês,
onde a filial carioca teria que enviar o balancete à Matriz, e figurava em caixa uma
quantidade avultada de débito, simulava-se uma entrada em espécie em um valor um
pouco maior, o qual seria retirado no dia 1o subsequente.72
Os peritos constatam essa irregularidade em um balancete do dia 30/06/1892, em
um livro caixa, no qual surge uma entrada de 200 contos. O livro caixa dessa data
69 LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas op. cit pp.165-166. 70 Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893, cx.3965. 71 LEVY, M.B. A Indústria do Rio de Janeiro através de sua sociedades anônimas...op. cit. p. 165. 72 Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893, cx.3965.
83
apresenta o saldo positivo de 199.815$269, porém no dia 1o de julho é retirada a quantia
de 200 contos. Vemos que na realidade o saldo da conta antes da "entrada simulada" era
de 184$431 negativo. Tais práticas existentes no livro caixa da agência já demonstram
por si só que saía mais dinheiro do que entrava nesse estabelecimento bancário.73
Verificamos, conforme consta no processo de falência do Banco Territorial, que
o tesoureiro referido acima exercia também a função de Caixa na agência. Além de suas
habilidades de fraudar balanços, retirou de sua conta 180:000$000, tendo como garantia
de sua conta títulos depreciados. Tal operação foi realizada em 24/06/1892, momento
esse em que a crise desse banco já se encontrava plenamente aguda. A mesma
tesouraria, em 31/03/1892, pagou por ordem verbal do gerente, Sr. Manoel Mattos
Gonçalves, a quantia de 10:000$000 ao Sr. David Moreztzon, que além de diretor do
Banco exercia a função fiscal. A quantia de 10:000$000 foi lançada na conta
Honorários, por serviços prestados sem qualquer tipo de esclarecimento documental.74
As contas correntes de movimento sem garantia apresentavam um fato
interessante. A situação de débito na qual se encontrava essa conta era constituída de
poucos devedores, porém a quantia desse débito era de enormes valores. De acordo com
os valores levantados pelos peritos no livro Auxiliar da agência, a conta se encontrava
com o saldo devedor de 948:451$320 e saldo credor de 112:154$889. 75
Mais uma vez temos à nossa frente uma imagem clara da formação especulativa
que envolvia a agência do Banco Territorial no Rio de Janeiro. Dos devedores
existentes, três deles já mencionamos seus nomes em outras operações suspeitas do
Banco: a Cia Céres, o Sr. Manoel M. Gonçalves, que era gerente do Banco, e o Conde
de Leopoldina.76
A carteira de Contas Garantidas apresenta um resultado de prejuízo difícil de
ser recuperado, para não dizer impossível. O saldo devedor dessa carteira é de
3.249543$080, sendo que as garantias dos devedores destas somam o valor de
73 Idem 74 Idem, ibidem 75 Idem, ibidem 76 É interessante observar que no processo de falência do Banco Territorial aparecem separados os nomes de Henry Lowndes e Conde de Leopoldina. Não cabe a nós porém, afirmar se os peritos que oficiaram o laudo sabiam ou não que se tratava da mesma pessoa. Em nossa pesquisa, por exemplo, só foi possível associar tal ligação devido à consulta das obras de Maria Bárbara Levy. É curioso também como um homem tão conhecido no mercado financeiro e presente entre os maiores devedores do Territorial, não ser alvo de notícias de jornais locais no período.
84
8.635:537$000. Aparentemente, como consta no balanço, essa carteira se encontra
muito bem garantida, porém a realidade nos direcionam a outra realidade.77
As garantias das contas garantidas devedoras se encontram lastreadas em títulos
e ações que, de acordo com o laudo pericial, encontram-se bem abaixo do valor dos
que o banco aceitou. Através de consultas em jornais e pela cotação da Bolsa de
Valores, além desses títulos se encontrarem depreciados, muitos títulos que ali
constavam foram emitidos até por companhias que já haviam falido.78
Ao analisarmos as contas garantidas, podemos entender como se formava o
"jogo" especulativo dentro da agência Rio de Janeiro. Apesar de várias contas
apresentarem dados irregulares, escolhemos três contas que nos servem de claro
exemplo especulativo.
A conta garantida do Sr. Alberto Clementino da Silva, tinha como garantia 580
ações do Banco de Crédito Rural Internacional no valor de 116:000$000 e 100 ações da
Cia. Céres Brasileira no valor de 20:000$000. De acordo com a cotação no mesmo
período em que o Banco Territorial aceitou as ações da Cia. Céres Brasileira pelo valor
exposto acima, os peritos do processo abordam que o valor real destas no mercado seria
de 10:000$000 e não 20:000$000.79 Fica claro então que o banco favorecia um grupo,
ou um esquema especulativo. Um detalhe importante referente à conta acima, é que seu
titular, o Sr. Alberto Clementino, exercia um cargo de confiança no Banco Territorial.
Era agente substituto do Visconde de Morais, um dos sócios-diretores proprietário do
Banco.80
A conta do Sr. Arthur Hitchings foi aberta com um débito de 320:000$000, em
29/05/1891 e era garantida por 400 ações integralizadas do Banco Continental. Em
23/05/1892, em negociação com a agência, retira a garantia oferecida, substituindo-a
por 1.600 ações da Cia. Estrada de Ferro Quilombo, no valor de 320:000$000.
Resultado: saldo devedor em 30/06/1892 de 194:695$260.81
A última conta que escolhemos como exemplo da formação do quadro
especulativo existente no interior da agência Rio de Janeiro, dentre várias outras contas
irregulares, é a do Sr. Antônio Ferreira da Silva Castro. Tal conta, foi aberta em
30/06/1892 e apresenta um saldo negativo de 34:864$440. A garantia oferecida pelo
77 Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893, cx. 3965. 78 Idem 79 Idem 80 Idem
85
correntista foi uma letra com seu próprio aceite, sem endosso, no valor de 60:000$000,
tendo como penhor 100 ações do Banco da República aceitas pelo banco no valor
nominal de 20:000$000.82
Segundo os peritos, tal transação se mostra irregular e inaceitável, devido a que
não se pode entender por outra razão a não ser conveniência de má fé entre correntista e
administração da agência, esta ter aceito as ações do Banco da República pelo valor
nominal. As ações do Banco da República estavam em conhecida depreciação pública,
uma queda meteórica desde início do ano de 1891, enquanto a conta do correntista
referido foi aberta em junho de 1892.83
As irregularidades apareciam em todas as carteiras do banco e com valores
avultados. Carteiras como a de Desconto de Letras aparecem com débito de
1.459:398$850, com letras sem endosso, vencidas e não pagas. A conta Juros,
Comissões e Descontos aparece com grande volume de transações de créditos e débitos
problemáticos, de resultados fictícios como o caso da Cia. Céres, que citamos
anteriormente. A conta Cauções aparece com títulos créditos concedidos, garantidos
por títulos depreciados e até de firmas falidas como a Cia. Geral das Estradas de Ferro.84
A marca da especulação fica mais estampada ainda quando percebemos que no
universo de carteiras operacionais do banco sempre aparecem os mesmos nomes, como
Antônio de Melo Barreto, Conde de Leopoldina, Alberto Clementino da Silva, Cia.
Céres Brasileira, dentre outros. A facilidade de se obter crédito no Banco Territorial na
praça carioca era assustadora. De acordo com o laudo pericial, detecta-se que além dos
empréstimos serem efetuados sem critérios e sem normas de garantia, o livro aponta
vários bancos, companhias, sindicatos e particulares com saldo devedor superior a 2.000
contos, sem qualquer tipo de garantia. Segundo os peritos, "a facilidade de se obter
crédito a descoberto naquela agência causa espanto."85
A especulação praticada naquela agência, juntamente com as transações
efetuadas sem conhecimento da agência Matriz86, que por falta de empenho
81 Idem 82 Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893, cx.3965. 83 Idem 84 Idem 85 Falência - Banco Territorial e Mercantil de Minas - 1893, cx.3965. 86 Os peritos do processo de falência do Banco Territorial demonstram, através de livros e correspondências, o lançamento de saída de caixa do dia 15/10/1890, sem qualquer especificação, do valor de 1.738:345$000. Tal valor depois verificado pelos peritos e detectada a compra de 4.050 ações do Banco de Crédito Rural e Internacional no valor de 81:000$000 e 16.500 ações da Cia. C. F. Leopoldina no valor de 1.657:357$000. Tais valores perfazem exatamente o total de 1.738:345$000.
86
administrativo não soube executar as normas necessárias, mostrou seus resultados. A
marca maior desse acontecimento foi a decretação da falência do Banco Territorial e
Mercantil de Minas, fato esse que custou caro ao mercado de capitais de Juiz de Fora.
Os cálculos apontados indicam que cada investidor perderia 88% do seu capital,
contando com a perspectiva de receber esses ativos, que na verdade não sabiam se iam
receber. Em outras palavras, nem os 12% do capital restante dos investidores estavam
garantidos. Segundo o Barão de Santa Helena e Batista de Oliveira, os devedores do
banco que ainda não estavam falidos aproveitavam-se da situação para forjar acordos
benéficos à eles.87
As crises conjunturais como a queda do preço do café, o produto principal da
cidade, associada à aversão natural dos investidores aos títulos e ações de empresas,
uma consequência psicológica do período de especulação e quebra da Bolsa,88
certamente refletiram-se em Juiz de Fora. Como escreve Anderson Pires;
principalmente numa cidade em que a falência de um banco teve ares de escândalo e
deu prejuízos a muitos, podemos ter idéia do cenário existente para este tipo de
aversão89.
1.1.3 - Banco de Crédito Real de Minas Gerais, O Credireal.90
A reflexão que pretendemos deixar como marca de nossa pesquisa referente aos
fatos que ocorreram na esfera sócio-econômica de Juiz de Fora no Encilhamento é: ter
consciência de que esse período, ao mesmo tempo que proporcionou especulação no
mercado de capitais local, proporcionou também solidez a este mesmo mercado. O
Credireal é um exemplo, talvez o mais consistente capaz de nos demonstrar isso.
O banco, inspirado por seus fundadores a funcionar nos moldes do Banco Crédit
Foncier da França, demonstrava desde seu planejamento a presença de uma
administração baseada em conceitos de solidez e progressão. Com uma trajetória de
ascensão meteórica, o Credireal, em 10 anos de existência, obteve um aumento de
capital da ordem de 1.400%, ou seja, no ano de sua fundação (1889), seu capital era de
87 Idem. 88 FERGUSON, N. (2001) The Cash Nexus: money and power in the modern world. Basic Books, New York p. 170-175; HOFMAN, P.T., POSTEL-VINAY, G. and ROSENTHAL, J-L. Priciless Markets: The Political Economy of Credit in Paris, 1660-1870 op. cit. p.44,207,; PIRES, Anderson. Café, Finanças e Bancos....op. cit. p-307. 89 PIRES, Anderson. Café, Finanças e Bancos...op. cit p.307.
87
500 contos e, em 1899 o já atingia o capital de 7.000 contos, distribuídos 1.000 contos
na Carteira Comercial e 6.000 contos na Carteira Hipotecária.91
A distribuição de seu capital demonstra por si só a direção das operações
tomadas pelo Credireal. Podemos constatar que garantias sólidas, como hipotecas e
operações de crédito como desconto, sob o rigor das leis institucionais financeiras,
fizeram com que o Credireal trilhasse um caminho de evolução, ultrapassando um
século de existência.
Mas o caminho evolutivo mencionado acima atravessou várias passagens de
crises conjunturais.92 Tais crises aniquilaram do mercado aqueles que desejavam auferir
enormes lucros baseados em resultados não operacionais, de especulação, deixando
sobreviver somente aqueles que se mantiveram dentro de seus regulares sistema de
resultados, abrindo mão de lucros fáceis e prodigiosos, porém vulneráveis a situações
de riscos. Foi esse, sem dúvida, o fator que deu consistência ao sucesso do Credireal e à
falência do Banco Territorial de Minas.
A conjuntura do Encilhamento, ao mesmo tempo em que levou bancos à
bancarrota, permitiu a consolidação de outros no mercado financeiro. O Banco
Territorial e o Credireal tornam-se um exemplo claro do episódio.
Os Bancos Credireal e Territorial participaram da mesma conjuntura, dos
mesmos planos de oportunidades. Por que então um se consolidou e o outro naufragou?
A resposta, em nossa concepção, está nas medidas tomadas por essas instituições.
A gerência de má fé, exercida pelo gerente do Banco Territorial na praça do Rio
de Janeiro, "maquiando" balanços, jogando com títulos fictícios e perigosos, gerou um
imenso prejuízo financeiro que decretou a falência desse banco. Por outro lado, a
seriedade do gerente do Credireal, que soube conduzir a instituição através de medidas
preponderantes diante de crises e articular um planejamento que iria garantir a solidez
do Banco no mercado, nos fornece a resposta colocada acima.
90 Ao nos referirmos ao Banco de Crédito Real de Minas Gerais, vamos denominá-lo doravante utilizando seu codinome Credireal. 91 SÁ, Antônio Lopes. Origens de um Banco Centenário. (História econômica, administrativa, financeira e contábil do banco de Crédito Real de Minas Gerais) Edição Comemorativa 100 anos. Juiz de Fora, 1992 p. 33 92 Dentre as crises que o Credireal enfrentou e sobreviveu colocamos como as mais marcantes e que decretram o fim de vários estabelecimento bancários no país: 1891 - o crash da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, 1896 - A crise do café, 1898 - Política de Deflação e a Crise Bancária, 1905 - Auge da Crise do Café (SuperProdução), 1910 - Início da crise do ciclo da borracha e endividamento externo do Brasil em cerca de 90 milhões de libras esterlinas, 1914 - Início da Primeira Guerra Mundial.
88
O gerente citado do Credireal, que futuramente colheu os frutos de sua
seriedade tornando-se Diretor-Gerente desse Banco, Ministro da Fazenda e Presidente
do Banco do Brasil, além de fundar o Banco Mercantil do Rio de Janeiro, chama-se
João Ribeiro Oliveira e Souza.
Com a autorização do Governo Imperial para iniciar suas atividades, João
Ribeiro assume a gerência do Banco e, a cavalo, adentra pelo interior da região,
negociando as ações do Credireal com agentes agrários. As negociações obtiveram
ênfase, devido ao fato de João Ribeiro, ao visitar tais fazendeiros, levar consigo sempre
uma carta de apresentação assinada por nomes de grande respeitabilidade no meio,
como Barão de Santa Helena, Visconde de Monte Mário, dentre outros.93
A cautela política, em um período em que a monarquia a cada dia perdia espaço
para os republicanos, demonstra o planejamento bem estruturado da instituição. João
Ribeiro elabora a primeira formação hierárquica do Credireal com a intenção do banco
não enfrentar riscos políticos durante seu funcionamento, uma vez que a transição
monarquia/república já se mostrava iminente. Eram constituídos assim os cargos mais
representativos do Banco:94
Presidente........... Visconde de Monte Mário - Membro do Partido Liberal
Vice-Presidente.. Barão de Santa Helena - Membro do Partido Conservador
Secretário.......... Bernardo Mascarenhas - Republicano
Além da cautela política utilizada, João Ribeiro, valendo-se da condição de
proprietário de um jornal de grande circulação local, o "Diário de Minas", utiliza esse
mecanismo para promover o banco a outras localidades.95
O Credireal iniciou suas atividades com intuito primordial de atender à lavoura
com créditos hipotecários e o fato é reconhecido por João Ribeiro, que expressa: a
intenção dos fundadores do Banco era valer-se do ''auxílio à lavoura".96
O Credireal porém enfrenta inicialmente o problema de repassar crédito à
lavoura em um momento em que o preço do café se encontra desfavorável no mercado.
O período (final de 1889) se encontrava mais propício a investir em papéis de risco, que
ofereciam enorme rentabilidade, do que investir em uma lavoura que se desvalorizava
93 SÁ, Antonio Lopes op. cit. pp.40-41. 94 Idem p. 43. 95SÁ, A Lopes...op. cit. p.44 96 RIBEIRO, João R. O S. Gestão de 5 de setembro de 1889 a 30 de junho de 1906. Tipografia Luzinger. Rio de Janeiro, 1925.
89
no mercado. Relembramos ainda que empréstimos à lavoura significavam garantia
hipotecária relacionada à empréstimo a longo prazo.
Para entendermos melhor a situação de investir em papéis de risco, precisamos
entender o que os bancos ligados ao crédito rural passavam no momento. A política
determinada pelo Visconde Ouro Preto repassava os recursos provenientes do Tesouro
Nacional aos bancos e estes os repassavam aos fazendeiros a 6% ao ano. Conforme
contrato estipulado entre banco/governo, o banco emprestaria à lavoura somente com
garantias reais, como hipoteca, títulos garantidos pelo governo e outros. Caberia ao
banco pagar o recurso recebido do governo, sem juros e em parcelas fixas de 200 contos
de réis.97
Com a entrada do Governo Republicano, o então ministro da Fazenda Rui
Barbosa dá continuidade à política econômica já estabelecida, porém efetua algumas
mudanças. Dentre elas no auxílio à lavoura.
A república rompe esse contrato, porém oferece longo prazo a seu pagamento,
oferecendo também a possibilidade de bancos que não a possuíam, inaugurar sua
carteira comercial.98 Era o momento inicial do boom do Encilhamento. As medidas de
Rui Barbosa buscavam a expansão da indústria e do setor urbano, e certamente as
carteiras comerciais de bancos, bem como o apoio à constituição de sociedades
anônimas, gerando maior movimentação da Bolsa de Valores, acelerariam esse
processo.
Ficava claro que o banco que mantivesse seu critério administrativo de rigor e
legalidade em operações de crédito iria para um lado, o que se entregasse a essa euforia,
visando somente lucro sem critérios, iria para outro lado. Foi exatamente esse fato que
aponta a sobrevivência do Credireal e a quebra do Territorial. Anteriormente, vimos
claramente a situação vivida pelo Territorial no Encilhamento. E como se portou o
Credireal nesse momento?
O Credireal, mesmo com a lavoura em baixa cotação e empresas do cenário
local, fundadas com um capital relativamente pequeno, deu continuidade ao um
processo de crédito dentro de suas limitações, operando com estes.
97 Para compreendermos tal contrato, consultamos o contrato original, efetivado entre Governo e o Banco Territorial, anexado ao processo de falência desse banco no Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. 98 Ver cópia da aprovação governamental expedida pelo ministro Rui Barbosa. In: SÁ, Antônio Lopes. Origens... op. cit. p-39.
90
Diferente do Territorial que, apesar de continuar operando na linha de
empréstimos locais, entre fazendeiros e industriais, resolveu aplicar em grandes
incorporações do momento, abertas no "olho do furacão" da especulação que era a praça
do Rio de Janeiro, o Credireal toma uma direção oposta.
Respeitando as normas administrativas, que citamos anteriormente, abriu mão
dos "lucros prodigiosos" oferecidos por fontes desconhecidas, investindo em lucros
limitados, porém de origem conhecida.
A chegada da crise de 1891, quando o Governo suspende os negócios da Bolsa
de Valores por uma semana na tentativa de conter a especulação, demonstra o resultado
do quadro conjuntural do mercado financeiro.
Enquanto bancos como o Territorial continham em sua Carteira Comercial um
mar de papéis, em sua grande maioria depreciados, o Credireal possuía em sua Carteira
somente títulos de uma só empresa. A empresa era a Academia de Comércio, no valor
de apenas 2 contos de réis e totalmente garantidos.99A passagem desse furacão
apresentou dois resultados nos maiores bancos locais de Juiz de Fora nesse período: ao
mesmo tempo em que "engoliu" o Territorial, gerou ao Credireal a alta cotação de suas
letras hipotecárias.
Podemos ver que o Credireal saiu ileso dessa primeira grande crise que cruzou
seu caminho, porém, como citamos anteriormente, a perda de muitos devido ao crash
do Territorial cria um clima negativo no setor financeiro local. A desconfiança de
investimento em instituição financeira no período cresce, e, com tal desconfiança, a
retração de investimentos também se eleva. Tal fato seria mais um grave problema que
o Credireal teria de enfrentar em sua história.
O principal problema que envolvia essa questão era a ligação direta envolvendo
dirigentes do Territorial com o Credireal. O Visconde de Monte Mário por exemplo,
diretor do Credireal e ao mesmo tempo Presidente do Territorial, dentre outros nomes
conhecidos na cidade, como Batista de Oliveira, Barão de Santa Helena, Manoel
Mattos Gonçalves, João Ribeiro Mendes, e Azarias José de Andrade. Tal situação
acirrava os meios populares locais e, como coloca Antônio Lopes Sá: "em comum,
ameaçaram até certo ponto, o conceito sobre os limites entre as pessoas e os
Bancos."100
99 SÁ, Antônio Lopes op. cit. p. 47. 100 SÁ, Antônio Lopes op. cit. p- 48
91
Mais uma vez, a participação administrativa do Credireal demonstrou o porquê
de sua consistência. O banco superou esse episódio não cedendo à pressões entre
membros da diretoria, recuperando através de meios judiciais as cauções que possuía
com o Territorial. Colocando acima de tudo a razão, mesmo consciente que o Banco
Territorial exercia um papel de seu co-irmão, prevaleceu o bom senso administrativo, de
que qualquer ajuda financeira ao Territorial representaria um capital perdido.101
No período de nossa pesquisa (1888-98), os dados levantados sobre o Credireal
revelam sua ascensão impressionante. Ultrapassada a crise de 1891, sendo que no
mesmo ano acontece a inauguração de sua Carteira Comercial, percebemos através de
números levantados pela historiografia, como o Banco investiu na produção local.
Estendendo suas operações além do setor agrário, proporcionando uma linha de
crédito ao comércio, à indústria e a particulares através de empréstimos a curto prazo,
como desconto de letras, conta corrente e outros, os números impressionam. De
setembro de 1889 a junho de 1897, os empréstimos dessa modalidade oscilaram de 646
a 10.000 contos de réis, com média anual aproximada de 3.500 contos de réis.102
A competência do Credireal em operar com suas limitações, seus campos de
ativo e passivo também merece destaque. Em 1889, o banco emitiu 174 letras
hipotecárias no mercado, no valor de 100$000 cada, perfazendo um total então de
174:000$000. O prazo de pagamento dessas letras seria de 30 anos com juros de 6% ao
ano. Com o aumento de capital em 1894, de 500 contos para 3.000 contos, as letras em
circulação chegavam à 1.814:000$000.103
As diretrizes tomadas pelo banco mostram que sua vulnerabilidade se dá por
investir em recursos de procedência. O empréstimo contraído pelo banco junto ao
Governo Imperial, referente ao "auxílio à lavoura", em 1889, e rescindido em 1891 pelo
governo republicano, demonstra a segurança que o Credireal repassava ao mercado
financeiro.
O empréstimo contraído era na ordem de 800 contos e o ministro Rui Barbosa,
estipulou um prazo de 17 anos para que tal empréstimo fosse pago ao Tesouro Nacional.
No ano de 1900, aproveitando um desconto de 6% ao ano, o Credireal quita sua dívida
com o Governo, ou seja, paga seu empréstimo com oito anos de adiantamento.104
101 Idem 102 Idem pp.64-66 103 Idem p.60 104 Idem p. 62
92
Como salientamos no início desse capítulo, a marca que nossa pesquisa pretende
deixar na reflexão sobre o Encilhamento em Juiz de Fora, é que, nesse momento
conjuntural, empreendimentos faliram, porém empreendimentos ficaram.
O Banco de Crédito Real dentro desse contexto torna-se um exemplo claro de
nossa concepção. O Banco surgiu no início da conjuntura, fez-se valer da oportunidade
oferecida pelo plano de auxílio à lavoura em um primeiro momento, investiu com
solidez na segunda oportunidade oferecida pela conjuntura, que foi a chance de operar
com sua carteira comercial expandindo seus investimentos.
O Credireal demonstrou que para se consolidar em uma conjuntura onde o
crédito é o elemento rotor fundamental para sua concretização basta manter sempre uma
frase à sua frente: Crédito é confiança.
2 - A Aproximação do Setor Financeiro / Industrial nas Sociedades
Anônimas de Juiz de Fora.
De acordo com dados levantados em fontes empíricas como jornais, processos
de falência, inventários, relatórios e outras secundárias, um fato fica claro. Percebemos
a presença de agentes diretamente ligados ao setor financeiro presentes também no
quadro acionário do setor industrial.105
Durante a conjuntura do Encilhamento foram abertas seis sociedades anônimas
no campo industrial local. Possuímos dados mais concretos de cinco que são a Cia.
Construtora Mineira, Cia. Nacional de Tecidos de Juta, Cia. Chimico Industrial
Mineira, Cia. Industrial de Juiz de Fora e a Cia. Mechânica Mineira.
A Cia. Constructora Mineira apresenta entre seus maiores acionistas nomes
como João Ribeiro Mendes, possuidor de 120 ações dessa companhia e, ao mesmo
tempo, acionista e colaborador dos Bancos Credireal e Territorial. Consta também o
nome de João Ribeiro de Oliveira e Souza, gerente do Credireal, com um montante de
135 ações, o Barão de Santa Helena, ligado também aos Bancos Territorial e Credireal,
com 105 ações, Gustavo Penna, com um grande número de ações (200), sendo este
diretor do Banco de Crédito Popular de Minas. O Banco Territorial e Mercantil de
105 Em todas as sociedades anônimas ligadas ao setor industrial, inauguradas no período do Encilhamento, encontramos em seus quadros acionários nomes de agentes ligados diretamente ao setor financeiro. Dentre os nomes podemos citar João Ribeiro de Oliveira e Souza, Bernardo Mascarenhas, Batista de Oliveira, Fernando Lobo, João Ribeiro Mendes, Manoel Mattos Gonçalves, Barão de Santa Helena, entre outros, que faziam parte do quadro administrativo das três instituições bancárias existentes em Juiz de Fora no período.
93
Minas aparece na constituição da "Cia. Construtora Mineira" como acionista e
exercendo também papel de membro do Conselho Fiscal da empresa.
A Cia. Nacional de Tecidos de Juta apresenta também uma forte ligação entre o
setor industrial/financeiro. Tal companhia industrial originou-se da "transformação" de
uma companhia financeira, a Sociedade Anônima Escritório Comercial Crédito
Mineiro.
Quanto às outras indústrias de que colhemos dados referentes a operações, a
Chimico Industrial e a Mechânica Mineira e Industrial de Juiz de Fora, constatamos a
presença de bancos locais atuando em seus mecanismos de financiamento. Constata-se
na "Cia. Chimico Industrial Mineira", através de seus balancetes publicados nos jornais
locais, operações nos campos ativo e passivo de sua contabilidade, com o Banco de
Crédito Real de Minas Gerais.106
A Cia. Mechanica Mineira, além de realizar operações de crédito com
capitalistas locais e Bancos fora da esfera local,107 realizava operações também no
mercado financeiro de Juiz de Fora. É observado que tal companhia possuía conta
corrente em dois bancos locais, o Territorial e o Credireal. Um relatório publicado em
um jornal local, no ano de 1893, aponta a presença de um débito junto ao Credireal na
ordem de 24:596$680.108
Concluímos então que o setor financeiro local exerceu um papel relevante para
as diretrizes da nova fase de empreendimentos industriais em Juiz de Fora. Todas as
empresas industriais, constituídas sob a forma de sociedades anônimas pesquisadas por
nós, inauguradas no período do Encilhamento possuíam alguma relação com os bancos
locais. Em seus lançamentos contábeis, presentes em balanços publicados em jornais
locais, sempre constam nos campos de ativo e passivo, operações efetuadas com bancos
da cidade.
106 Em um balancete publicado no jornal O Pharol de 20/07/1893, existe a presença no campo de ativos da empresa, junto ao Credireal, no valor de 12:703$340. No mesmo jornal, datado de 13/09/1894, constata-se no passivo da empresa, débito de 22:025$360 com o Credireal. No Jornal do Comércio de 27/02/1897 há no ativo do balanço de dezembro de 1896 114:839$392, existentes em sua conta corrente no Credireal. 107 Quanto a empréstimos contraídos com capitalistas locais, é publicado em um relatório da empresa, no Jornal O Pharol de 09/09/1892, o empréstimo em que a companhia efetivou junto à Baronesa de Juiz de Fora, grande capitalista local, no valor de 50:000$000, a ser pago no longo de 5 anos, a juros de 8% ao ano. Aparecem também no mesmo jornal datado em 10/10/1894, operações de crédito efetuado junto ao Banco da República, situado no Rio de Janeiro. 108 Jornal O Pharol, 20/10/1893.
94
3 - As Sociedades Anônimas Industriais inauguradas no período do
Encilhamento em Juiz de Fora: empresas especulativas ou produtivas?
As sociedades anônimas de Juiz de Fora do setor industrial, inauguradas na
conjuntura do Encilhamento se diferenciam das outras abertas em outras conjunturas,
pois foram pioneiras na formação de sociedades anônimas industriais com iniciativa de
capital local.
Nosso intuito dentro desse capítulo á analisarmos se tais empresas foram
empreendimentos direcionados à prática de especulação, firmas fictícias, ou se elas
foram firmas concretas e produtivas, contribuindo para o desenvolvimento local.
3.1 - A Companhia Chimico Industrial Mineira
Início: Março de 1891
Ramo de Produção: Laboratório Químico Industrial, diversificando e
expandindo suas atividades também em fabricação de gelo.
Fechamento: Ano de 1900, penhorada por dívidas ao Banco da República,
sendo que tal Banco à vendeu para dois investidores locais que a transformaram em
sociedade simples, dando continuidade ao seu campo produtivo.109
3.2 - A Companhia Nacional de Tecidos de Juta
Início: Ano de 1984
Ramo de Produção: Indústria Têxtil, fabricando sacarias para o café e outros
produtos agrícolas.
Fechamento: Ano de 1901 se dissolve como sociedade anônima, sendo
arrendada por empresários do Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1906 foi repassada a um
investidor local.110 Em 1907, um levantamento apresentado por Warren Dean considera
a companhia como uma das 100 maiores do país. Segundo o pesquisador Anderson
109 Jornal O Pharol, 11/06/1903. 110 PIRES, Anderson. op. cit. p. 87.
95
Pires, em 1921, é arrendada a um grupo de capitalistas redirecionando suas atividades à
produção de celulose.111
3.3 - A Companhia Construtora Mineira
Início: Ano de 1890
Ramo de Produção: Construção Civil
Fechamento: Ano de 1899. Companhia liquidada, honrando todos os seus
compromissos, inclusive passando seu prédio ao banco Credireal, referente à dívida
com a instituição que se enquadrava no valor, sem causar prejuízos a terceiros.112
3.4 - A Companhia Mechanica Mineira
Início: Ano de 1891
Ramo de Produção: Fundição de Metais e Serraria
Fechamento: Ano de 1896, comprada pela firma local Assis Fonseca e Cia.
Continuou sua produtividade, expandindo seus produtos à outros Estados, como Rio de
janeiro, Espírito Santo e São Paulo. Em 1903 é vendida a uma firma local composta por
dois fazendeiros locais. A fábrica que em 1902 ocupava um terreno de 2.100 metros
quadrados, em 1911 ocupava já 7.800 metros quadrados. Além disso, investimentos
como aquisição de maquinários, gerador de energia próprio, e ampliação de novos
setores demonstram a dinâmica ascendente do empreendimento.113
3.5 - A Companhia Industrial de Juiz de Fora
Início: Ano de 1890
Ramo de Produção: Couro e materiais graxos
Fechamento: Ano de 1897. Vendida à um investidor local, continuou sua
produtividade como uma sociedade simples.114
111 DEAN. W. A Industrialização Durante a República Velha. In FAUSTO, Bóris (Org.) História Geral da Civilização Brasileira - O Brasil Republicano. DIFEL, São Paulo, vol. 8 p. 261. PIRES, Anderson, op. cit. p-87 112 Jornal do Comércio, 16/03/1899 e O Pharol 10/05/1899. 113 Jornal do Comércio. 08/05/1906 114 Jornal do Comércio, 20/02/1897
96
Através de nossos levantamentos concluímos então que, todas as sociedades
anônimas constituídas no período do Encilhamento em Juiz de Fora não foram
empreendimentos especulativos e muito menos fictícios.
4 - As Sociedades Anônimas dos Setores Transporte, Agrícola, Energia e
Educação.
4.1 - Setor Transportes
A conjuntura do Encilhamento, através de leis e decretos governamentais,
também influiu no resultado positivo de uma companhia ferroviária inaugurada em Juiz
de Fora nesse período, a Companhia Estrada de Ferro Santa Izabel do Rio Preto. Em
07/08/1893, o Governo lança uma lei de isenção de taxas de importação no que se refere
a materiais como trilhos, máquinas e instrumentos relacionados à atividade ferroviária.
Em 07/06/1894, constatamos a presença da lei que autoriza a expansão ferroviária no
trecho onde a companhia atuava, ou seja, Juiz de Fora/ São Paulo/ Rio Preto/ Santa Rita
de Jacutinga.115 É interessante observarmos abaixo como ocorre a progressão do
investimento ferroviário no Estado de Minas Gerais:
TABELA 24 EXTENSÃO DA REDE FERROVIÁRIA EM TRÁFEGO NOS PRINCIP AIS ESTADOS PRODUTORES DE CAFÉ - em
Km (1873-1836)
UF 1873 % 1883 % 1905 % 1919 % 1936 %
São Paulo 254 22 1.457 26 3.790 23 6.615 24 7.330 22
Minas Gerais ------ --- 662 12 3.843 23 6.619 24 8.038 22
Rio de Janeiro 510 45 1.706 30 2.661 16 2.794 20 2.810 8
Espírito Santo ---- --- ---- --- 336 2 609 2 773 2
BRASIL 1.129 5.708 16.782 28.128 33.521
----------- ------- ---- ----- ---- ------ --- -------- --- ------- ---
Fonte: Estatísticas Históricas do Brasil - IBGE, RJ, 1987, p. 412; BAPTISTA, J.L. (1942). "O Surto Ferroviário e seu Desenvolvimento." In: Anais do Terceiro Congresso da História Nacional. IHGB, VI vol. Rio de Janeiro. Apud MELO, H.P. (1993). O Café e a Economia Fluminense (1888/1920). Op. Cit. p. 126 tabela 17. In; PIRES, Anderson. Café, Finanças e Bancos....op. cit. tabela 09, p. 48.
115 COLEÇÃO DE LEIS E DECRETOS DO GOVERNO DE MINAS GERAIS. Período de 1888/1898, caixa número 7. Sob custódia do Arquivo Público Mineiro.
97
Através da tabela acima podemos perceber como essa sociedade anônima,
vinculada ao setor de transportes no período, contribuiu de alguma forma no
desenvolvimento da região.
4.2 - Setor Agrícola
O setor agrícola, representado por três sociedades anônimas no período, revela
que esses empreendimentos tiveram um papel significativo no que se refere à
transformação na riqueza de ativos.As empresas agrícolas, que eram a Companhia
Pastoril Mineira, a Companhia Agrícola de Juiz de Fora, e a Companhia Organização
Agrícola Mineira, exerceram suas atividades em um período de seis a oito anos.
Percebemos então que as companhias do setor agrícola atuantes em Juiz de Fora
tiveram participação na evolução do mercado de capitais local. Ao sistematizarem uma
certa parceria com o aparelho do Estado, incrementando os interesses agrários locais e
colocando papéis no mercado, ativam o mercado na maior prosperidade de
comercializar instrumentos e máquinas agrícolas. O fato permite uma expansão de
forma indireta para instalação de outros ramos de produção, como comércio e indústria
na cidade de Juiz de Fora, como no caso da Loja Barateza, grande referência comercial
na área de produtos agrícolas, e da Cia. Mechanica Mineira, indústria que também
supria a cidade com maquinário agrícola.
As sociedades anônimas ligadas ao setor agrícola, fundadas no período do
Encilhamento em Juiz de Fora, demonstram uma nova mentalidade nos movimentos
agrários referentes à diversificação de investimentos.
4.3 - Setor Energético
A Companhia Mineira de Eletricidade, como vimos no segundo capítulo desse
trabalho, foi um empreendimento no setor energético, bem sucedido e ousado.
Inaugurada em 1888, teve sua primeira administração liderada por um industrial local,
Bernardo Mascarenhas. Em 1911, o controle acionário passa a ser comandado pelo
grupo Assis-Penido, um grupo de fazendeiros locais, o qual tinha como sua figura
principal o Coronel Teodorico de Assis.116
116 Revista Pangea...op. cit. p. 15.
98
O resultado prospectivo desse empreendimento ficou comprovado. A elevação
de capitais, a evolução da energia elétrica local, respectivamente resultaram em
benefícios para Juiz de Fora. A ousadia do investimento permitiu que em 1898 se
estendesse a energia elétrica à produção industrial. Tal fato, segundo Domingos
Giroletti, provoca um dinamismo no processo de crescimento industrial local. Nos
dezesseis anos que se seguiram (1898 a 1914), fundaram-se mais de 160 indústrias em
Juiz de Fora. Giroletti ainda acrescenta: "Há registro da data de fundação de 160
indústrias entre 1898 a 1914. Além destas, há menção de outras indústrias cuja data de
fundação se desconhece."117
No que se refere aos dados de elevação de capital e evolução da energia gerada
pela Companhia, vejamos os quadros abaixo:
TABELA 25 EVOLUÇÃO DO CAPITAL DA C.M.E.
1888-1926 ANOS CAPITAL (Em contos de réis)
1888 150
1890 300
1894 800
1911 1.400
1916 2.500
1926 7.000
FONTE: OLIVEIRA, P. de. Companhia Mineira de Eletricidade, Juiz de Fora, Lar Católico, 1969. In: GIROLETTI, Domingos. A Industrialização...op. cit. p. 90.
TABELA 26 EVOLUÇÃO DA ENERGIA ELÉTRICA GERADA PELA C.M.E. JUI Z DE FORA
1896-1937 Anos Geradores (Número e Kw) Total
1896 2 (300) 600
1905 1 (300) 300
1910 1 (300) 300
1915 2 (600) 1.200
1921 1 (600) 600
1922 1 (600) 600
1930 1 (1.360) 1.360
1937 1 (1.360) 1.360
FONTE: HARGREAVES, H. J. A Companhia Mineira de Eletricidade e as possibilidades de Juiz de Fora para a instalação de novas indústrias. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 6 (6): 30-43, 1971. Informação: p.31-4. In: GIROLETTI, Domingos. A Industrialização...op. cit. p- 91.
117 GIROLETTI, Domingos. A Industrialização de Juiz de Fora..op. cit. pp. 90-91. Giroletti aponta que seu levantamento referente ao estabelecimento dessas indústrias em Juiz de Fora foi baseado em autores tradicionais da História de Juiz de Fora e em : PRODUÇÃO industrial do Estado de Minas Gerais. Boletim do Departamento Estadual de Estatística, Belo Horizonte, 11 (38): jan/jun. 1948.
99
4.4 - Setor Ensino
A Academia de Comércio, fundada entre os anos de 1890-91, contou com a
iniciativa de um comerciante local, Francisco Baptista de Oliveira, para a constituição
dessa sociedade no setor de ensino. O crescimento da área comercial em Juiz de Fora
exigia também a qualificação de seus colaboradores.
O objetivo desse empreendimento então idealizado por Baptista de Oliveira, se
destinava a formar "negociantes, banqueiros, diretores e empregados de
estabelecimentos industriais e comerciais".118 Lembramos que o comerciante Baptista
de Oliveira, idealizador da sociedade, possuía um capital financeiro diversificado. Além
de sua atuação à frente de um estabelecimento comercial considerado um dos principais
da cidade, teve seu nome vinculado à significativa contribuição nas inaugurações de
Sociedades Anônimas dos setores de energia e financeiro.
Ao colocarmos a idéia educacional dessa sociedade anônima, frente ao
panorama da conjuntura do Encilhamento no campo nacional, percebemos as
transformações que esse momento injetava no quadro de nova mentalidade no ensino
financeiro brasileiro.119
Através de consulta na Coleção de Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais
nesse período, observamos o aumento substancial de criação de novas escolas técnicas,
que assim como a Academia do Comércio em Juiz de Fora, buscavam suprir a
qualificação dos meios de serviços. Um exemplo desse fato é o surgimento das Escolas
Técnicas Agrícolas, como a da cidade de Ponte Nova em 1894, dentre outras,
propiciadas pelas leis de incentivo governamentais.120 O incentivo do Estado citado
acima, juntamente com a iniciativa privada na constituição de capitais para inauguração
destas sociedades anônimas, adquiriam cada vez proporções mais sólidas.
Aliomar Baleeiro coloca que dentro do conjunto de idéias e conceitos de Rui
Barbosa, estava; "categórica repulsa ao protecionismo como meio idôneo para a
industrialização, que deveria assentar numa imediata intensificação dos serviços
118 GIROLETTI, Domingos. A Industrialização de Juiz de Fora....op. cit. p-92. 119 Ver também sobre estabelecimentos educacionais no período do Encilhamento HERRLEIN Jr. Ronaldo. A Trajetória do desenvolvimento capitalista no Rio Grande do Sul...op. cit. 120 MINAS GERAIS (Estado) COLEÇÃO DE LEIS E DECRETOS DO GOVERNO DE MINAS GERAIS, Período 1888/1898. Caixa número 7, Arquivo Público Mineiro.
100
educacionais, considerando-se investimentos dos mais remuneradores e os sacrifícios
tributários que o país fizesse para tal fim;"121
Assim como a Companhia Mineira de Eletricidade trouxe benefícios
prospectivos à cidade, gerando a oportunidade de várias empresas se instalarem aqui e
se beneficiarem do uso de energia elétrica, a Academia de Comércio também propiciou
tais efeitos prospectivos no setor de ensino.
A conjuntura do Encilhamento foi um período marcante na história educacional
de Juiz de Fora. As pretensões do Governo Republicano em engrenar a industrialização
necessitavam fundamentalmente de qualificação de mão-de-obra. É claro que a
qualificação profissional só se torna efetiva via educação.
Acompanhamos então que com a fusão de capitais do Estado e setores
econômicos distintos privados, como comércio, indústria e agricultura foi concretizada a
Sociedade Anônima Academia do Comércio. Tal sociedade anônima carrega consigo, a
marca de ser o primeiro Instituto Superior de Ensino Comercial da América do Sul.122
Conclusão
Os efeitos do Encilhamento no Brasil, de acordo com o que observamos,
apresentaram tanto aspectos negativos como positivos. Mas o importante dessa análise
é observar que, como define Albert Fishlow, "se trata de algo muito mais duradouro e
significativo" do que um surto especulativo qualquer. Tal pensamento nos leva a
identificar a importância do que foi construído e permaneceu após essa conjuntura.
A cidade de Juiz de Fora, nosso objeto de trabalho, vive com grande intensidade
todos os momentos da conjuntura do Encilhamento. Todos os elementos marcantes
dessa conjuntura, como repasse financeiro entre Estado/Bancos direcionado à
agricultura, entrada de imigrantes, incentivo de aberturas de sociedades anônimas,
inversão em investimentos de ativos, especulação e desenvolvimento produtivo em
vários ramos setoriais, estão presentes na cidade nesse momento. Mas o que podemos
concluir sobre os efeitos conjunturais do Encilhamento na cidade de Juiz de Fora? A
cidade presenciou mais elementos positivos ou negativos nesse período?
As perguntas acima formam o grande contexto do Encilhamento. Afirmamos
então que em nossa concepção, a conjuntura do Encilhamento em Juiz de Fora
121 BALEEIRO, Aliomar. Rui, um Estadista no Ministério da Fazenda. Casa de Rui Barbosa, 1949. Rio de Janeiro pp.37-38. (grifo nosso). 122 Revista Cultural EM VOGA. MR Publicidade e Promoções. Juiz de Fora, novembro/2005, p. 03.
101
exerceu um papel positivo. Levantando os dados obtidos por cada sociedade anônima
inaugurada no período, detectamos uma informação de grande valia. Das 16 sociedades
anônimas pesquisadas, envolvendo setores diversos, afirmamos que 15 foram
empreendimentos de produção efetiva, ou seja, empreendimentos sólidos, enquanto
apenas um encerrou suas atividades devido a ligações com a especulação, porém, vale a
pena lembrar que, tal empreendimento não foi um empreendimento fictício, criado
apenas para operar na especulação. Tal empreendimento teve seu papel colaborador na
sociedade, porém em um período onde as facilidades de se operar na especulação
causaram sua falência devido a má fé de agentes internos e externos à essa instituição.
Nas últimas linhas desse trabalho, vale a pena mencionar Gustavo Franco,
quando ele expressou que "Pouco sobraria afinal, após a crise bancária de 1900, do
que foi construído em 1888-1890." Concluímos então que Juiz de Fora foi uma cidade
que viveu intensamente essa conjuntura, inserindo na economia brasileira alguns
empreendimentos relacionados entre "os poucos que sobraram" construídos no
Encilhamento.
Fontes
1 - Fontes Primárias: 1.1 - Jornais "O Pharol", "Jornal do Commércio", "Diário de Minas" e "Minas Livre", sob a guarda do Arquivo do Centro de Memória da Biblioteca Murilo Mendes - Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. 1.2 - Processos de Falência e Inventários post-mortem, sob a guarda do Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. 1.3 - Atas de Resoluções da Câmara de Vereadores de Juiz de Fora, e outros documentos relativos à empresas e firmas de Juiz de Fora, sob custódia do Arquivo da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. 1.4 - Coleção de Leis e Decretos do Governo de Minas Gerais, sob guarda do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte -M.G
BIBLIOGRAFIA:
BALEEIRO, Aliomar. Rui, um Estadista no Ministério da Fazenda. Casa de Rui Barbosa, 1949. Rio de Janeiro
BERNARDINO, M.C. ALMICO, Rita. BancoTerritorial e Mercantil de Minas: Origem do Processo de Falência. In: Anais Anpuh - MG, IX Encontro. Juiz de Fora, 1994. CROCE, Marcus Antônio. O Encilhamento e a economia de Juiz de Fora: O
Balanço de uma Conjuntura (1888-1898). Dissertação de Mestrado, UFF. Niterói, 2006.
102
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Progresso: 100 anos de Política Econômica Republicana 1889-1989. 11o ed. Rio de Janeiro, Campos 1990
GERSCHENKRON, Alexander. Economic Backwardness in Historical Perspective (Cambridge, Mass; 1962); GERSCHENKRON, Alexander. Continuity in History and Other Essays (Cambridge, Mass, 1968). GIROLETTI, Domingos A .. Industrialização de Juiz de Fora 1850-1930. Juiz de Fora, EDUFJF, 1988. HERRLEIN Jr. Ronaldo. A Trajetória do desenvolvimento capitalista no Rio
Grande do Sul. HOFFMAN, P. POSTEL-VINAY, G. and ROSENTHAL, J.L. (2000) Priceless Markets: the political economy of credit in Paris, 1660-1870. University of Chicago Press. LEVI, Maria B.. A Indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades
anônimas. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994. LIMA, João Heraldo. Café e Indústria em Minas Gerais 1870-1920. Vozes. Rio de
Janeiro, 1981. MASCARENHAS, Nelson Lage. Bernardo Mascarenhas e o Surto Industrial de
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SÁ, A . L. Origens de um Banco Centenário. Edição comemorativa do Banco de Crédito Real de Minas Gerais. Juiz de Fora, 1986.
TAUNAY, Visconde. O Encilhamento. Rio de Janeiro, 1893
103
Os Votantes numa População de Fronteira.
Lençóes, segunda metade do século XIX.
Edson Fernandes
Mestre em História Econômica pela Unesp/Araraquara e Doutorando pela Unesp/Franca. Este artigo é
parte da tese de doutorado, em andamento, sob a orientação da Profa. Dra. Dora Isabel Paiva da Costa.
Resumo: O presente artigo busca caracterizar a população da vila de Lençóes através da análise de três
listas de qualificação de votantes datadas da década de 1870. Durante boa parte da segunda metade do
século XIX, a região era fronteira do povoamento do oeste paulista e palco de constantes conflitos entre a
população branca adventícia e os habitantes indígenas, entre eles os Kaingang. As listas de qualificação
de votantes permitiram traçar o perfil da população votante no que se refere à ocupação, faixa etária,
domínio da leitura e escrita, renda, procedência, situação conjugal etc., e permitiram também traçar um
panorama geral sobre o vasto contingente que vivia à margem do processo eleitoral e que era a maioria da
população da fronteira.
Palavras-chave: Fronteira, lista de qualificação de votantes, demografia, povoamento, índios.
104
The Voters in a frontier population.
Lençóes, second half of the XIX (nineteenth) century.
Abstract: The present article intends to characterize the village population of Lençóes by the analysis of
three voter’s qualification lists dated from the 1870 decade. During great part of the second half of the
XIX century, the region was a frontier for the people of the west São Paulo state and stage for constant
conflicts between the white population and the Indians inhabitants, among them the Kaingang. The
voter’s qualification lists allowed drawing up the profile of the voter population in relation to occupation,
age group, reading and writing domains, income, background, marital status, etc., and also permitted to
draw up a general panorama about the great contingent that used to live on the fringes of the electoral
process and it was the majority of the frontier population.
Keywords: Frontier, Voter’s Qualification Lists, Demography, People, Indians.
105
1. Introdução
1.1.1 A fronteira oeste, uma região de conflitos
Em meados do século XIX, a parte ocidental da província de São Paulo, em sua área compreendida pelos rios Tietê e Paranapanema, apresentava alguns pequenos núcleos de povoamento em meio a um vasto sertão desconhecido. O posto avançado era Lençóes, uma boca do sertão que se tornara freguesia em 1858 e vila em 1865, desmembrando-se de Botucatu. A Vila de Nossa Senhora da Piedade dos Lençóes tinha ainda duas paróquias, Santa Cruz do Rio Pardo e São Domingos, ambas desmembradas em 1876 e localizadas ao sudoeste, nos chamados “campos de José Teodoro”. A vastidão do território e as conseqüências dela advindas – ataques indígenas, posse
irregular de terras devolutas, policiamento deficiente - eram freqüentemente lembradas
pelas autoridades locais em ofícios encaminhados às autoridades da província. Num
deles, de outubro de 1876, o juiz municipal do Termo de Lençóes, Joaquim Antonio do
Amaral Gurgel, descrevia as condições do lugar:
É bastante attender que este termo é vastissimo em territorio, é o 1º da Provincia; da sede do termo aos campos novos de José Theodoro, que são os ultimos moradores, tem uma extensão de cincoenta leguas mais ou menos, a fóra os terrenos desconhecidos que estendem pelas margens do rio Paranapanema até a sua foz no rio Paraná, e deste rio subindo acima até a embocadura no rio Tiete, e deste subindo até pouco acima do lugar denominado porto embocadura de Lençóes; occupando uma área de muitissimas leguas. A população não tem menos de vinte e tantas mil almas, cresce quase que diariamente com a emigração mineira para o lado do sertão.123
Em outro ofício, este datado de fevereiro de 1880, o juiz Amaral Gurgel, da agora
comarca, alertava para a necessidade da abertura de uma estrada que ligasse a sede da
comarca à colônia de Avanhandava, afirmando que
O Commercio actual é difficil para o transporte de gado e com abertura da estrada facilitará extraordinariamente. A administração da justiça só assim poderá chegar a essas zonas, porque actualmente esses moradores vivem no estado isolados, pertencem a este termo, porque estão do lado de cá e não prestão a obediencia da lei aqui pela falta de comunicação. Existe um aldeamento de indios nas cabeceiras do rio Dourado que não ficará distante da estrada projectada, esse aldeamento na opinião de alguns sertanejos existem muitos mil indios, pelo numero de casas que excedem a mais de cem, grandes cultivados feitos por elles, existem algumas creações de animais, a estrada antes de chegar no aldeamento de uma á duas léguas é muito batida como as estradas mais freqüentadas deste lugar. 124
123 Ofício do juiz municipal do Termo de Lençóes ao Presidente da Província, 10 de outubro de 1876, Arquivo do Estado de São Paulo (AESP), Ofícios diversos de Lençóes, Código C01091, pasta 2. 124 Ofício do Juiz de Lençóes ao Presidente da Província, 17 de fevereiro de 1880, AESP, Ofícios diversos de Lençóes, Código C01091, pasta 2.
106
Foi durante o transcorrer deste século que a região começou a ser desbravada, quando o
elemento branco passou a disputar as últimas áreas dominadas pelos remanescentes
indígenas. Até as primeiras décadas do século XIX, estas regiões figuravam nos mapas
como “sertão desconhecido”, e do pouco que se sabia dele, a presença de tribos
indígenas hostis à penetração da “civilização” era um dos aspectos sobre os quais
pairavam poucas dúvidas, resultado de relatos advindos de esporádicos contatos entre
brancos e índios.
Desde há muitos anos o rio Tietê já era uma via natural para Goiás e Mato Grosso,
principalmente após 1720, com os descobrimentos de ouro nestas regiões. E o Tietê foi
uma das “estrias”, no dizer de Caio Prado, que possibilitaram o contato litoral-interior e
a colonização de vastas áreas do território paulista (Prado Jr, 1976:67). No entanto, das
várias expedições que se utilizaram desta via natural há poucas referências à presença
de índios. Isto só se verifica no relato de expedições que se aventuraram a percorrer a
região compreendida entre os rios Tietê e Paranapanema. Era aí, próximas aos rios
Feio/Aguapeí e do Peixe, que viviam as tribos Kaingang (Borelli, 1984:59-60).
1.2 Os primeiros povoadores
Era marcante a presença de mineiros na ocupação desta região. Esta presença fica
evidenciada ao analisarmos os dados da tabela 1.1. Ela é o resultado da análise de um
único livro de registros de nascimentos efetuados nos anos de 1876 e 1877. Tem
particular interesse, pois nos traz informações da naturalidade de pais e mães das
crianças registradas naqueles dois anos.
Tabela 1.1. Naturalidade de pais e mães de crianças livres registradas em
Lençóes nos anos de 1876 e 1877
Pais Mães Total Naturalidade N % N % N %
Lençóes 13 5,6 37 15,8 50 10,7 Província S. Paulo* 123 52,6 129 55,1 252 53,8 Província Minas 82 35 59 25,3 141 30,1 Outros 6 2,5 1 0,4 7 1,5 Não consta 10 4,3 8 3,4 18 3,9 Total 234 100 234 100 468 100
Fonte: Livro de Registros de Nascimento A0. Cartório de Registro Civil e Anexos. Lençóis Paulista SP.
* Excetuando-se a Vila de Lençóes.
107
Pela tabela, podemos perceber a importância da participação de mineiros no
povoamento da região de Lençóes – mesmo porque são muito comuns relatos de
moradores mais velhos da atual Lençóis Paulista sobre seus antepassados mineiros.
Foram compulsados 234 registros, correspondendo a igual número de pais e mães.
Apenas 5,6% dos pais são oriundos da própria vila de Lençóes, elevando-se este número
para 15,8% quando se trata de mães. São naturais da Província de São Paulo 52,6% dos
pais e 55,1% das mães. Os mineiros são responsáveis por 35% dos pais e 25,3% das
mães.
1.3 Os habitantes nativos
No século XIX, a região compreendida pelos rios Tietê e Paranapanema era habitada
por grupos indígenas, principalmente da nação Kaingang, pertencente à família Jê,
tronco lingüístico Macro –Jê. Estes indígenas estabeleciam moradia temporária à beira
dos rios. Quando os recursos (caça, pesca e coleta) escasseavam e os ranchos tornavam-
se precários, queimavam as antigas habitações e mudavam para um novo local. Os
kaingang viviam da caça (foram encontradas em seus ranchos ossadas de macacos,
antas, capivaras, porcos-do-mato e aves); da pesca; da coleta de mel, palmito, frutos,
raízes e larvas de besouro. Como atividade secundária, organizavam pequenas roças de
feijão e de milho, do qual faziam uma espécie de pão assado na brasa.
Estes índios faziam um artesanato meticuloso e elaborado. Fabricavam objetos
domésticos, como panelas de barro, machados de pedra, pilões de madeira, peneiras,
cestos. Seus instrumentos de trabalho eram arcos, flechas, lanças e tacapes. Seus tecidos
eram ornados com desenhos geométricos, trançados com fibras de gravatá e tingidos de
vermelho e negro. Faziam colares com sementes de vegetais e dentes de macaco, presas
e garras de onça e outros animais.
No trabalho, dividiam as tarefas entre homens e mulheres. Os homens dedicavam-se à
caça, pesca, confecção de armas e instrumentos de trabalho, enquanto as mulheres
dedicavam-se à agricultura, coleta de frutos, elaboração do pão e atividades artesanais
(Borelli, 1984:51-52).
Isolamento, vastidão de território, presença de índios, ausência de um aparato jurídico e
médico, tais eram as condições desta boca do sertão, ponto de apoio de expedições que
demandavam os “terrenos desconhecidos” da província de São Paulo. A morte estava,
então, à espreita.
108
1.4 Os conflitos entre brancos e índios
Durante o século XIX várias expedições se aventuraram nesta e travaram contato –
amistoso ou não – com tribos indígenas que povoavam a região. Em 1858, moradores
do bairro do Bauru, distrito da Vila de Botucatu, endereçaram uma petição ao presidente
da Província de São Paulo dando conta da situação em que viviam. Afirmavam que:
não podendo mansa e pacificamente continuar no disfructo das propriedades, e frondosas terras que possuem, não só por compra, como também por posses que naquellas mattas fizerão, em tempos prometidos, enconsequencia de acharem-se vesinhando com grande porção de indígenas, que vagão por aquelles sertões, já fazendo assacinatos na vesinhança, os mais bárbaros possíveis a ponto de darem fim em famílias inteiras; o que acontece todos os annos, em tempos de roças (Neves, 1961:30-35).
A ameaça indígena ao estabelecimento do homem branco continuou por mais algum
tempo, o que provocava reiterados pedidos de providência às autoridades provinciais
por parte da população das vilas mais próximas às comunidades indígenas.
Em setembro de 1879, em carta endereçada ao presidente da Província de São Paulo, o
Juiz de Lençóes relata que
no dia 03 do corrente mês, na fazenda que foi do finado Felicíssimo Antonio de Souza, distante desta Vila dez léguas achando-se ocupados no derrubamento de matos para plantações, Gerônimo Pires Gonçalves, José Antonio de Oliveira, João Ferreira de Oliveira, Francisco Antonio de Oliveira, Manoel Antonio da Silva e Francisco Sabino de Siqueira foram surpreendidos por um bando de índios que, vindo a traição, assassinaram os três primeiros acima referidos a flechadas, escapando o trabalhador Francisco Antonio de Oliveira e Manoel da Silva, que escaparam pela intrepidez e valor de Francisco Sabino, que não obstante ter ficado só, matou ao cacique e perseguiu os assaltantes algum tempo pelos matos. Terrível porém foi o atentado os índios, depois de flechados os referidos indivíduos dilaceraram seus cadáveres a machado, e quando ainda neste sanguinolento mister se ocupavam, foram surpreendidos por Francisco Sabino, e morto o chefe tomaram a fugida.125
Pelo visto, as autoridades locais procuraram pintar um quadro de selvageria e
atrocidades por parte dos índios de modo a impressionar as autoridades provinciais e
conseguir recursos para afastar a ameaça indígena. Isto só reforça a idéia de que o
problema era real e a região era palco de conflitos.
125 Ofício do Juiz de Lençóes ao Presidente da Província, 09 de setembro de 1879, AESP, Ofícios diversos, Caixa 296, Ordem 1091, Pasta 1.
109
Em 1886, os vereadores de Lençóes ouviram o relato do vereador Faustino Ribeiro da
Silva sobre um ataque indígena à Colônia de Avanhandava, situada naquele município,
ocasião em que onze pessoas perderam a vida. A ata da reunião registra que os índios
não satisfeitos com tão atroz procedimento andarão em grande número pelas cazas de todos os fazendeiros intimando para retirarem-se se não quizessem morrer, a vista do que consta terem já mandados trinta e dois fazendeiros dos mais conciderados, deixando suas fazendas abandonadas. Foi aprovada a indicação para officiar ao Exmo Snr. Prezidente da Província para este entenderse com o Governo Geral e conceguir um missionário para catequizar os índios bravos cituados no aldeamento do Dorado ou n’outro aldeamento neste município fornecendo o Governo Provincial todas as despezas com essa catequeze. A Câmara entende que com esta medida porá termo as agreções que os índios tem feito aos homens brancos.126
Os conflitos foram uma constante no desbravamento dos sertões paulistas durante o
século XIX. Ataques de ambos os lados geravam uma situação de incerteza que não
passava despercebida às autoridades, mas nem sempre era pronto o atendimento aos
reclamos dos povoadores.
Com o avanço da fronteira e o crescimento demográfico da província paulista,
verificou-se uma extraordinária expansão na criação de vilas: 26 na primeira metade
daquele século e 41 na segunda (Marcílio, 2000:143). Com isto, as bocas de sertão se
mantinham enquanto tal por breves períodos, após o que se deslocavam avançando
território adentro no sentido oeste.
2. Os donos do poder
2.1 As listas de votantes de 1871, 1876 e 1879
O movimento inicial de povoamento desta fronteira da civilização caracterizou-se – é
razoável supor - pela irregularidade e inconstância dos fluxos migratórios e por ser em
parte formado por gente de vínculos familiares precários ou mesmo inexistentes. Pistas
disso nos são fornecidas pelas listas de votantes que qualificavam os cidadãos aptos a
votar nas eleições para vereadores e juizes de paz. As possibilidades de uso desta fonte
já foram demonstradas por pesquisadores (Daumard; Balhana; Westphalen; Graf,
1984:140-147).
Três listas de qualificação de votantes sobreviveram à ação do tempo e das pessoas e
estão disponíveis para análise. A primeira delas é de 1871127, a segunda e a terceira,
126 Ats da Câmara Municipal de Lençóis Paulista, Livro n.º 2, p. 18-19. 127 AESP.
110
com mais informações, são, respectivamente, de 1876 e 1879128. Utilizaremos para esta
análise as duas últimas, fazendo referências à primeira quando a base de comparação for
a mesma.
O “Alistamento geral dos votantes qualificados na Parochia desta Villa de Lençóes” de
1876 e 1879 traz informações que ajudam a minimizar a incerteza do movimento inicial
de povoamento da boca do sertão, além de permitir uma melhor compreensão daquela
gente que vivia nos limites do mundo (mal) conhecido e (mal) amparado pelos braços
da lei.
As eleições no Império (até 1880) eram diretas, para cargos locais, e indiretas (em dois
graus) para o Senado, Câmara dos Deputados e as Assembléias Provinciais. Neste
último caso, os votantes escolhiam os eleitores que, por sua vez, elegiam os ocupantes
dos cargos públicos. Este sistema vigorou até que, em 1881, todas as eleições passaram
a ser diretas (Nicolau, 2004, p. 10-11).
Participavam das eleições homens com mais de 25 anos (21, se casados ou oficiais
militares, e independentemente da idade, se clérigo ou bacharel). Havia exigência de
renda mínima anual: 100 mil réis para ser votante e 200 mil réis para ser eleitor. Estes
valores foram duplicados em 1846 (Nicolau, 2004:11).
A lista de votantes era preparada previamente ao dia das eleições por uma Junta de
Qualificação presidida pelo Juiz de Paz. A partir de 1875, pela primeira vez foi exigida
documentação que provasse a renda do votante (Nicolau, 2004:12-13). A lista passa a
ter mais informações sobre o votante: além da numeração seqüencial e nome, a idade, o
estado, a instrução (“sabe ler ou escrever?”), a filiação, o domicílio e a renda.
A confiabilidade das informações da lista de votantes pode ser considerada igual a de
qualquer outro documento que dependa de informações prestadas pela população, como
os registros paroquiais e cartoriais. Ou seja, deve-se analisar os números com o cuidado
que este tipo de fonte exige e, sempre que possível, confrontar seus resultados com
outras fontes.
No caso das listas, a renda declarada, por exemplo, podia ser
conhecida (casos arrolados na lei: oficiais, advogados e solicitadores, médicos, cirurgiões e farmacêuticos, bacharéis, clérigos, professores, proprietário e administradores de fazendas rurais, fábricas e oficinas, entre outros), renda provada (meios de prova de renda legal estabelecidos na lei) ou renda presumida (declaração expressa dos motivos da presunção e fontes de informação utilizadas) (Salgado, 2003).
128 Centro de Documentação Histórica de Lençóis Paulista (CDHLP).
111
Feita a ressalva que os dados coletados pelas listas referiam-se à uma parte específica da
população (homens adultos, com renda anual mínima de 200$000), ficando de fora os
miseráveis que lutavam pela sobrevivência num amplo território que se estendia léguas
sem fim, exploremos seus dados.
Tabela 2.1. Domicílio dos votantes de Lençóes, 1871, 1876 e 1879
1871 1876 1879 Domicílio N % N % N %
Vila 69 23,4 76 18,4 93 12,5 Bairros 226 76,6 338 81,6 648 87,5
Total 295 100 414 100 741 100 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1871, 1876 e 1879. AESP e CDHLP
Entre 1871 e 1879, houve um grande incremento no número de votantes em Lençóes,
resultado do afluxo de povoadores que para lá se dirigiam, do crescimento populacional
e da melhoria econômica de parte da população, o que a qualificava enquanto votante
(Tabela 2.1). De 295 votantes em 1871, passou a 741, em 1879. A vila, como local de
domicílio dos cidadãos que apresentavam alguma renda, foi perdendo importância ao
longo daquela década: enquanto 23,4% dos votantes tinham-na como domicílio no
início da década, ao final dela, esta realidade era vivida por apenas 12,5% dos votantes.
A maior parte da população, cada vez mais, espalhava-se pelo vasto território da
fronteira, fazendo da vila apenas o local de satisfação das necessidades burocráticas,
religiosas ou comerciais. Daí que o incremento populacional, ao menos dos “com
renda”, dava-se, em maior grau, nos bairros rurais ou nos sítios isolados dos arredores
da vila.
Importante salientar que esta proporção de votantes da área urbana e das áreas rurais
não traduz com perfeição a distribuição espacial da população como um todo, uma vez
que abarcava apenas a parcela da população qualificada para o exercício do voto. A
proporção de moradores da área urbana (ou seja, a vila propriamente dita, centro
religioso, comercial e administrativo) que preenchia estes requisitos era maior do que a
dos moradores dos bairros rurais, muitos deles vivendo em precárias condições.
Com base nos registros de batismo e/ou nascimento – aqueles que indicavam o local de
nascimento -, pode-se dizer que alguns destes bairros, no entanto, abrigavam uma
população maior que a própria vila.
112
A população apta a votar era essencialmente jovem (Tabela 2.2), como de resto era
jovem toda a população desta região de povoamento recente e que ainda recebia
moradores de várias partes da província de São Paulo e até de outras.
Vimos que tinham direito a voto homens com pelo menos 25 anos. Aos 21 anos,
também tinham este direito homens casados ou oficiais militares. Outros,
independentemente da idade, também podiam votar: eram os clérigos e bacharéis. Em
Lençóes, no entanto, há, na lista de 1876, seis lavradores com 20 anos de idade, todos
casados. Vista grossa das autoridades ou, talvez, interesses convergentes das
autoridades responsáveis e dos cidadãos poderiam explicar esta fraude, não fosse por
um detalhe: seria menos arriscado fraudar na idade, imputando 21 anos, pelo menos, aos
pretensos votantes. Até porque, as idades – nesta época, neste ambiente, nestas
condições – eram, para muitos, apenas aproximações e seriam menos objeto de
desconfiança numa instância superior do que uma declarada idade imprópria – fraude
facilmente detectável. Resta a hipótese de desconhecimento dos detalhes da lei (21 anos,
para os casados), plausível para aquela gente que estava apenas começando a
“construção da ordem”.
Tabela 2.2. Participação dos votantes por faixa etária, em 1871 e 1879.
1871 1876 1879 Faixa etária N % N % N %
20 a 30 anos* 114 38,6 156 37,7 301 40,6 31 a 40 anos 95 32,2 139 33,6 217 29,3 41 a 50 anos 64 21,7 74 17,9 130 17,5 51 anos ou mais 22 7,5 45 10,8 93 12,6 Total 295 100 414 100 741 100 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1871, 1876 e 1879. AESP e CDHLP * O eleitor mais jovem em 1871 tinha 24 anos; em 1876, 20 anos; e, em 1879, 22 anos.
O padrão etário apresentou certa regularidade nas três listas. A porcentagem de votantes
jovens, menores de 30 anos, foi grande durante todo o período, próxima de 40%,
resultado do recente processo de povoamento da região. Apenas uma pequena parte dos
votantes era natural da vila de Lençóes; a maioria era formada por entrantes – crianças e
jovens à época da chegada.
113
A regularidade – mas não a realidade - do padrão etário fica comprometida apenas no
que se refere aos votantes mais velhos, de 51 anos ou mais: eram 7,5%, em 1871;
passaram a 10,8%, em 1876, chegando a 12,6%, em 1879. É uma indicação de que a
população adventícia era selecionada, entre outros fatores (herdeiros, casais ou solteiros
jovens em busca de oportunidades etc.), pelo critério da resistência aos rigores das
longas jornadas: os mais velhos eram exceções. Os jovens entrantes, no entanto, foram
envelhecendo. A lista do começo da década ainda é afetada pelo recente movimento de
entrada de povoadores e seu desequilíbrio etário. Ao longo da década, no entanto, os
efeitos “artificiais”, exógenos desta imigração vão se diluindo na estabilização da
população, o que se reflete na lista de 1879 – envelhecimento “natural” dos votantes. De
qualquer forma, a porcentagem de eleitores mais velhos é compatível com a população
nesta faixa etária: 14,5% dos homens e 15,3% das mulheres, pelo censo de 1872.
Sabemos que parte dos pioneiros da região era formada por foragidos da justiça ou do
alistamento militar, herdeiros de gado, terras e escravos que vinham tentar a sorte na
fronteira aberta, deserdados e outros tipos, enfim, aventureiros de toda espécie.
Indivíduos solitários – muitos deles, filhos ilegítimos - também buscavam
oportunidades que a terra natal já não oferecia.
A filiação indicada em duas das listas (não há esta indicação na lista de 1871) dá
indicações de quão precárias eram as ligações familiares destes pioneiros, ou melhor, de
parte deles, aqueles que conseguiram formar um patrimônio mínimo para se
qualificarem enquanto votantes (Tabela 2.5). Ainda uma vez mais podemos perceber a
estabilização da vida social dos habitantes da fronteira do mundo “civilizado”.
Qual parcela da população, por faixa etária, tinha o mínino de recursos econômicos, ou
seja, tinham direito a voto? É possível esboçar uma resposta a esta questão relacionando
os dados da Tabela 2.4 com o censo de 1872. Sabe-se que este censo foi, na província
de São Paulo, realizado apenas em janeiro de 1874 (Bassanezzi, 2001). Como não há
disponível uma lista de votantes para este ano, podemos fazer uma projeção utilizando
como baliza as duas listas conhecidas, de 1871 e 1876. A Tabela 2.3 simula o número
de votantes para os anos intermediários, supondo um crescimento regular de ano para
ano.
114
Tabela 2.3. Projeção de votantes para os anos de 1872 a 1875
Faixa etária 1871 1872 1873 1874 1875 1876 20 a 30 anos* 114 122,4 130,8 139,2 147,6 156 31 a 40 anos 95 103,8 112,6 121,4 130,2 139 41 a 50 anos 64 66 68 70 72 74 51 anos ou mais 22 26,6 31,2 35,8 40,4 45 Total 295 318,8 342,6 366,4 390,2 414 * O eleitor mais jovem em 1871 tinha 24 anos
Procedeu-se da seguinte forma: subtraiu-se os votantes de 1871 daqueles de 1876; este
resultado foi dividido por 5, número correspondente ao intervalo entre aqueles anos. O
número encontrado foi sendo adicionado em cada ano, a partir de 1871, formando uma
seqüência regular entre aquele ano e o de 1876. Claro que o crescimento do número de
votantes não teve esta regularidade, mas os números são um parâmetro, na falta dos
dados empíricos.
Tabela 2.4. Porcentagem de votantes entre a população livre masculina, 1874
Faixa etária População Votantes** % 21 a 30 anos* 317 139,2 42,9 31 a 40 anos 174 121,4 69,8 41 a 50 anos 148 70 47,3 51 anos ou mais 382 35,8 9,4 Total 1021 366,4 35,9 * O eleitor mais jovem em 1871 tinha 24 anos ** Projeção, conforme Tabela 2.3.
Chegamos, então, à Tabela 2.4, que mostra a abrangência da legislação eleitoral no que
concerne à renda. Um pouco mais de um terço da população masculina com idade
mínima para votar tinha, efetivamente, este direito. Isto representa 7% da população
total (livre) da vila. Por faixa etária, vemos que os resultados não são uniformes. Os
votantes mais jovens representavam 42,9% da população na faixa etária de 21 a 30 anos.
Um dado, porém, torna este número cercado de cuidados, uma vez que, por uma razão
sem explicação aparente, o eleitor mais jovem desta tinha adiantados 24 anos. É
improvável – nas condições da região - não haver jovens de 23 anos e até menos,
casados e com renda igual ou superior a 200$000. Talvez mais um “descuido” das
autoridades.
115
Da população de 174 cidadãos com idade entre 31 e 40 anos, projetados 121,4 tinham
direito a voto: 69,8%. Os números caem nas faixas etárias seguintes: 47,3%, na faixa de
41 a 50 anos, e 9,4% entre os que tinham 51 anos ou mais.
Esta grande abrangência do eleitorado, principalmente entre os mais jovens, leva a
novas questões: a renda mínima de 200$000, estabelecida pela legislação eleitoral, era
tão fácil de amealhar por uma população lavradora? Ou então, os 200$000 declarados
eram factíveis, ou apenas fictícios?
Com relação a esta última questão, deve-se salientar que a lista, no quesito renda, traz
uma monótona seqüência de “200$000”, interrompida ocasionalmente por um
“400$000”; 600$000”; e, mais raramente, um valor igual ou superior a 1:000$000.
Esperar dessa gente que vivia às voltas com a sobrevivência na lavoura, realizando
transações nem sempre monetarizadas, precisão ao declarar sua renda anual, seria
esperar muito. Fica a forte impressão de que a renda mínima era uma espécie de “senha”
para a entrada no mundo dos votantes. O que não significa que qualquer um podia
declarar o que bem entendesse. Embora a lei falasse também em “renda presumida”,
dando brecha para o improvável, não é razoável supor que lavradores – conhecedores
uns dos outros – declarariam uma renda muito além de sua real capacidade de adquiri-
la. De resto, e o medo do fisco?
Quanto à facilidade de amealhar tal renda anual, pode-se usar como parâmetro alguns
valores da época – avaliações extraídas de inventários do ano de 1871: 27 porcos de 6
meses e um asno avaliados por 130$000129; 3 vacas com cria, 90$000; 3 novilhos de 2
para 3 anos, 60$000; 1 novilha de 4 anos, 25$000; 3 novilhas de 2 para 3 anos, 60$000;
2 cavalos, 70$000; 1 potranca, 4 anos, 15$000; 8 carneiros, 14$000; 30 porcos criados,
300$000130; 1 égua, 16$000; 1 cavalo, 40$000131; 1 roda de fiar, 10$000132. Estava
avaliada em 350$000, uma chácara na margem do rio Lençóes133.
129 CARTÓRIO do 1º Ofício da Comarca de Agudos, SP. Inventário de João da Costa Raposo, 25 de fevereiro de 1871. 130 CARTÓRIO do 1º Ofício da Comarca de Agudos, SP. Inventário de Luiza Maria de Jesus, 22 de março de 1871. 131 CARTÓRIO do 1º Ofício da Comarca de Agudos, SP. Inventário de Antonio Francisco de Paula, 17 de março de 1871. CARTÓRIO do 1º Ofício da Comarca de Agudos, SP. Inventário de Antonio Francisco de Paula, 17 de março de 1871. 132 CARTÓRIO do 1º Ofício da Comarca de Agudos, SP. Inventário de José Joaquim Ramos, 30 de novembro de 1871. 133 CARTÓRIO do 1º Ofício da Comarca de Agudos, SP. Inventário de M. Rocha Leite, 29 de março de 1871.
116
Vê-se que uma pequena criação negociada ou um pequeno lote de terra poderia ser
suficiente para que o lavrador estipulasse sua renda em 200$000. A criação de porcos,
por exemplo, era uma atividade muito comum na região, tanto pela sua importância na
alimentação, quanto pelo seu baixo custo.
A grande abrangência do número de eleitores explica-se, então, pela negligência ou falta
de rigor das autoridades na qualificação, pela elasticidade do conceito de “renda
presumida”, pelas possibilidades reais do cidadão conseguir a renda determinada e, por
fim, pelo fato da legislação não ser tão restritiva como poderia parecer à primeira vista.
Holanda (2005:211) corrobora esta última afirmação, ao se referir ao limite de renda
estabelecido pela Constituição de 1824:
“...este limite de renda, que se estabelecera por julgar-se que indicaria um relativo grau de independência para o votante, ainda que fosse restritivo em 1824, deixava de sê-lo cinqüenta anos mais tarde, mesmo com o aumento havido quando se mudou o valor da moeda, e na proporção dessa mudança. Dizia-se, então, que só mendigos não estariam em condições de atender a semelhante exigência, de sorte que era possível afirmar a existência, na prática, do sufrágio universal”.
Como resultado, uma grande parcela da população adulta masculina tinha direito a voto.
Há poucos trabalhos que se utilizam desta fonte, mas já são suficientes para confirmar o
que se descobriu para a vila de Lençóes, a saber, a existência, na prática, do sufrágio
universal. Nunes (2003) encontrou, como média das três paróquias de Campos dos
Goytacazes, na década de 1870, a seguinte proporção de votantes: representavam 23%
dos homens livres; 11,4% da população livre; e, por fim, 6,9% da população total. Em
Lençóes, estes números são, respectivamente, 13,9%; 7,1%; e 6,3%. Ressalte-se que,
para Lençóes, fez-se uma projeção do número de votantes de modo a poder compará-lo
aos números do Censo de 1872 (1874); enquanto que, para Campos dos Goytacazes,
Nunes utilizou o Censo de 1872, para a população, e Listas de Qualificação de 1876,
para uma paróquia, e de 1878, para outras duas. Portanto, utilizou dados de anos
diferentes, conforme alerta a própria autora (nota 13).
Entre os mais velhos, a parcela da população votante era menor. Pode-se arriscar
algumas hipóteses para isto: eram, em parte, recém-chegados à região, já entrados na
idade e que ainda não haviam conseguido a renda necessária; muitos talvez fossem
dependentes economicamente dos filhos, sem condições de produzir e apresentar renda;
ou, simplesmente, eram anônimos na região.
Boa parte dos votantes não declarou, em 1876, os nomes paternos (Tabela 2.5): eram
211; 2 declararam o nome da mãe, e 201 (48,6%) declinaram o nome do pai. Apenas
117
três anos depois, o desconhecimento do pai tem uma acentuada queda: 213 votantes não
o nomearam; para outros 5, o campo “filiação” está em branco; 4 deles declinaram o
nome da mãe por, supõe-se, desconhecer o pai. Portanto, 222 deles, representando 30%
do total de 741 votantes, desconheciam o nome do pai. De uma lista para outra,
portanto, houve um acréscimo substancial de votantes, resultado tanto da tardia entrada
de novos povoadores, quanto um sinal de que as possibilidades de ganhar a vida no
sertão finalmente começaram a se concretizar: mais pessoas tinham a renda mínima
exigida. Entre estes novos votantes, uma grande parte tinha um histórico familiar
mínimo: sabia quem era seu pai.
Tabela 2.5. Ascendência paterna desconhecida ou não declarada, em 1876 e 1879
1876 1879 Pais N % N %
Registrados 201 48,6 519 70 Não registrados 213 51,4 222 30 Total 414 100 741 100 Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1876 e 1879. AESP e CDHLP
Analisando por faixa etária (Tabela 2.6), percebemos que os números são condizentes
com a percepção de que muitos dos pioneiros – ou seja, os mais velhos dentre os
votantes – eram pessoas cujos laços familiares haviam se perdido no tempo.
Tabela 2.6. Ascendência paterna desconhecida ou não declarada, por faixa etária,
em 1876 e 1879
1876 1879 Faixa etária N % N %
20-30 anos 48 30,7 57 18,9 31-40 anos 81 58,3 56 25,8 41-50 anos 48 64,9 52 40,0 51 anos ou mais 36 80 57 61,3 Total 213 222 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1876 e 1879. AESP e CDHLP
Estes dados vêm confirmar a idéia de estabilização da população no transcorrer do
período. O desconhecimento dos pais entre os jovens de 20 a 30 anos reduziu de 30,7%,
em 1871, para 18,9%, em 1879. É a passagem de uma fase marcada pela entrada de
pessoas de ascendência desconhecida, para outra, de estabilização e formação de
118
famílias. Mais uma vez é preciso alertar que a acentuada diferença dos números num
intervalo de tempo de apenas três anos não é reflexo apenas da entrada tardia de novos
povoadores ou do crescimento vegetativo da população, mas também pela melhoria da
renda de parte da população, possibilitando sua entrada no mundo dos “votantes”.
Os dados permitem caracterizar parte da população que povoou a região, reforçando
aquilo que já se disse: eram foragidos, errantes, aventureiros de todo tipo, filhos naturais
gerados à margem da “moral e dos bons costumes”, em suma, sem vínculos familiares,
ou, ao menos, sem a preocupação com eles. Muitos deles, provavelmente, filhos
ilegítimos ou bastardos.
Conforme se avança na faixa etária, em ambos os anos, aumenta a porcentagem
daqueles que declararam desconhecimento do nome paterno. Ou seja, a curva de
“desconhecimento” é praticamente a mesma, o que muda é o seu patamar. Conforme os
anos avançam, vai ficando para trás, literalmente, o passado esquecido.
Claro que entre os que declararam desconhecimento, muitos podem ter simplesmente
optado pelo caminho da menor burocracia ao se qualificar na Junta de Qualificação; e os
mais velhos podem ter sido vítimas do efeito do implacável tempo: a paulatina perda da
memória. Mesmo nestes casos, fica revelada a precariedade dos laços familiares de
parcela da população.
Qual era a ocupação desta elite fronteiriça? Os dados confirmam (Tabela 2.7) o que
parece claro já num primeiro momento: a imensa maioria dos votantes, tanto de 1871
(83,7%), quanto de 1876 (87%) e 1879 (86,6%), era formada por lavradores, seguida de
longe pelos que se declararam negociantes: 22, ou 7,5%, em 1871; 34, ou 8,3%, em
1876; e 34, ou 4,6%, em 1879. Havia alguns poucos fazendeiros (7, em 1871; 17, em
1879), e funcionários públicos (2, depois 7). A incipiente vida jurídico-administrativa da
vila, mesmo em 1879, se reflete no pequeno número de magistrados (2), escrivães (2),
advogado (1), coletor (1) e funcionários públicos (7, sendo 5 “empregados públicos”, 1
“funcionário público” e 1 “funcionário da câmara”).
A vila era o único lugar em que os lavradores não eram a maioria. Para se ter uma idéia
disto, os números a seguir referem-se à lista de 1879: 24 lavradores declararam seu
domicílio na área urbana (25,8% dos votantes da vila). Eram negociantes 31 deles
(33,3%). Os demais votantes da vila naquele ano tinham como ocupação profissões
tipicamente urbanas: eram carpinteiros (7), empregados e funcionários públicos (7),
pessoas que viviam de “agências” (5), magistrados (2), carreiros (2), alfaiates (2) e
119
outros. Os bairros rurais abrigavam os demais 648 votantes. Deles, 618 (95,4%) eram
lavradores e 15 se declararam fazendeiros (2,3%).
Tabela 2.7. Ocupação dos votantes, em 1871, 1876 e 1879.
Votantes 1871 Votantes 1876 Votantes 1879 Ocupação N % N % N %
Lavrador 247 83,7 360 87 642 86,6 Negociante 22 7,5 34 8,3 34 4,6 Fazendeiro 7 2,4 - - 17 2,3 Carpinteiro/marceneiro 6 1,5 13 1,7 Funcionário público 2 0,7 1 0,2 7 0,9 Advogado 1 0,3 1 0,2 1 0,1 Artista 5 0,7 Agência 5 0,7 Alfaiate 2 0,3 Carreiro 1 0,2 2 0,3 Coletor 1 0,2 1 0,1 Escrivão 3 0,7 2 0,3 Magistrado / Juiz 1 0,2 2 0,3 Maquinista 2 0,3 Sapateiro 2 0,5 1 0,1 Outros* 16 5,4 4 1 5 0,7 Total 295 100 414 100 741 100 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1871, 1876 e 1879. AESP e CDHLP * Na lista de 1871, são 16 “off” (provavelmente oficiais). Foi possível identificar alguns: alfaiate, carpinteiro, ferreiro, marceneiro, ourives, seleiro e torneiro. Na lista de 1876, são: seleiro (2), solicitador e tabelião. Na lista de 1879, são: ferreiro, proprietário, solicitador, tropeiro, e vigário.
A distinção entre “fazendeiro” e “lavrador” parece ser o tamanho da propriedade ou,
num critério parecido, a renda declarada. No entanto, nem sempre este critério foi
obedecido: há casos de lavradores declarando renda de 1:000$000, como de fazendeiro
com renda de 400$000. Para complicar, ninguém se declarou, ou nem foi qualificado,
“fazendeiro”, em 1876, o que revela a tênue linha divisória que separava este de um
“lavrador”, embora pareça claro que o tamanho da propriedade os diferenciasse.
120
Tabela 2.8. Votantes segundo instrução, em 1876 e 1879
Sabem ler ou escrever
Votantes 1876
% Votantes 1879
%
Sim 156 37,7 316 42,6 Não 258 62,3 425 57,4 Total 414 100 741 100 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1876 e 1879. AESP e CDHLP.
A maioria dos moradores da fronteira era analfabeta. Entre os votantes, a situação não
era diferente. Esta situação, como as demais que permitem aferir o grau de
“normalização” da vida social, sofreu alterações com o tempo, sempre no sentido
crescente. Senão, vejamos: 258 votantes (62,3%) declararam não saber ler ou escrever,
em 1876; eram 425 (57,4%), em 1879, conforme a Tabela 2.8.
Ou seja, a menor parte era instruída ou, ao menos, respondeu afirmativamente à questão
“sabe ler ou escrever?”: 37,7%, em 1876; 42,6%, em 1879.
Tabela 2.9. Votantes segundo instrução e domicílio, em 1876 e 1879
Domicílio
Lista de 1876 Lista de 1879
Votantes Sabem l/e % Votantes Sabem l/e % Vila 75 61 81,3 93 73 78,5 Bairros 339 95 28 648 243 37,5 Total 414 156 741 316 42,6 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1876 e 1879. AESP e CDHLP.
Na vila, onde as profissões exigiam melhor qualificação, a porcentagem de
“alfabetizados” eram flagrantemente maior: 81,3%, em 1876; 78,5%, em 1879,
enquanto que nos bairros rurais, habitados em larga escala por lavradores, apenas 28%
(1876) e 37,5% (1879) declararam ter tal habilidade (Tabela 2.9). Há um pequeno
decréscimo da alfabetização entre os votantes da área urbana, compensado largamente
pelo aumento significativo de votantes das áreas rurais capazes de assinar o próprio
nome, reflexo também da maior institucionalização da vida social. A melhoria
econômica das famílias pode ter propiciado novas oportunidades de leitura e escrita para
parte da população. As primeiras escolas primárias masculinas e femininas já
121
funcionavam em 1868134, atendendo à parcela da população que podia dispensar por
alguns momentos do dia a mão-de-obra infantil.
Instrução e renda caminhavam juntas: em 1871, 26 dos 27 votantes com renda de
1:000$000 ou mais eram alfabetizados: alto índice de 96,3%. Já em 1879, dos 68
votantes com tal renda, 64 deles (94,1%) declararam saber ler e escrever. Está fora dos
objetivos deste trabalho saber se a instrução permitiu o progresso econômico do cidadão
e sua família, ou se, pelo contrário, a situação econômica é que permitiu o acesso das
famílias às primeiras letras que a vila já oferecia.
Embora de difícil determinação em muitos casos, a renda declarada possibilita
identificar os que estão no topo da hierarquia econômica (Tabela 2.10).
Poucos votantes de 1871 tinham renda de 1:000$000 ou mais: eram 13 (4,4%). Com o
decorrer do tempo, houve um acréscimo nesta elite: um, pequeno, para 6,5% (27
votantes), em 1876; outro, considerável, para 9,2% (68 votantes), em 1879.
Tabela 2.10. Votantes segundo renda, em 1871, 1876 e 1879
Renda 1871 1876 1879 N % N N % 200$000 207 70,2 309 74,6 443 59,8 De 200$000 até 999$999
75 25,4 78 18,9 230 31,0
1:000$000 ou mais 13 4,4 27 6,5 68 9,2 Total 295 100,0 414 100 741 100,0 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1871, 1876 e 1879. AESP e CDHLP
O ano de 1876 parece ter sido atípico, neste aspecto de renda. Houve, conforme a
Tabela 15, um aumento do número de votantes com renda mínima exigida (de 70,2%,
em 1871, para 74,6%, em 1876), em detrimento dos que apresentavam uma “renda
média” (de 200$000 a 999$000), que reduziram, em termos proporcionais, de 25,4%
(75 indivíduos) para 18,9% (78 indivíduos).
Na lista de 1871, apenas 13 votantes declararam renda igual ou superior a 1:000$000;
12 deles tinham exatamente este valor, o outro declarou 2:000$000. Era o coronel
Joaquim de Oliveira Lima.
Em 1876, o topo da elite (renda acima de 1:000$000) estava ocupado por 27 cidadãos,
assim distribuídos: 1 tinha renda de 1:000$000; 23 avaliaram sua fortuna em
134 AESP, Ofícios diversos, Caixa 296, Ordem 1091, Pasta 1.
122
1:600$000; 1 em 2:000$000; e, finalmente, 2 deles que eram os mais ricos, com renda
de 4:000$000. Novamente aparece entre estes dois últimos, o coronel Joaquim de
Oliveira Lima; o outro rico era o juiz de direito Luis Ernesto Xavier.
Entre os 68 homens ricos da lista de 1879, eram verdadeiros potentados locais 5 deles,
os que apresentaram renda de 6:000$000. Eram eles: José Emigdio de Almeida Cardia
(futuro Barão de Avanhandava); Joaquim de Oliveira Lima; Joaquim Moreira Machado
de Oliveira e Delfino Alexandrino de Oliveira Machado (ambos filhos de Joaquim de
Oliveira Lima); e Mamede Feliciano de Oliveira Rocha (genro e sobrinho de Joaquim
de Oliveira Lima).
O patriarca Oliveira Lima comandava uma família poderosa. Em 1879, é qualificado na
lista como sendo casado, idade 64 anos (na lista de 1871 tem 59, e na de 1876 tem 61!
Outros registros indicam que nasceu em 1812), lavrador (na de 1871: fazendeiro), sabe
ler e escrever e morador no quarteirão do Barreiro.
A maioria dos votantes nas três listas declarou renda de 200$000, exatamente o mínimo
que exigia a legislação eleitoral para a qualificação. Coincidência?
Tinham moradia urbana 32 (47,1%) dentre os 68 votantes de 1879 melhor posicionados
em termos de renda. Na lista de 1871, a proporção é quase a mesma, 6 (46,2%) entre os
13 votantes moravam na vila. No entanto, em 1876, os moradores da vila eram em
número de 18 dentre 27, representando 66,7%. A crise na agricultura - já aludida –
empobreceu os que viviam da lavoura, poupando as profissões urbanas e concentrando a
riqueza na vila.
A Tabela 2.11 confirma esta afirmação. Enquanto na lista de 1879 (portanto, anos
depois da crise), 39,8% dos ricos detinham sua renda de atividades não ligadas à terra
(juiz, advogado, negociante, coletor etc.); em 1876 (tempo em que os reflexos da crise
ainda se faziam sentir), este número é de 66,7% (eram principalmente negociantes). Ou
seja, a riqueza advinda da terra sofreu um recuo.
Ainda assim, a renda da terra era a maior riqueza da boca do sertão. A elite formada
pelos 68 (em 1879) mais ricos tirava sua riqueza da terra, em primeiro lugar: eram
lavradores e fazendeiros, com todas as incongruências que cercavam sua distinção.
Muitos destes que viviam da renda da terra tinham também moradia na vila e assim
declararam na qualificação.
123
Tabela 2.11. Renda segundo a ocupação, em 1876 e 1879
1876 1879 Ocupação N % N %
Lavrador 9 33,3 24 35,3 Negociante 11 40,8 18 26,4 Fazendeiro 16 23,5 Escrivão 1 3,7 2 2,9 Agência 1 1,5 Advogado 1 3,7 1 1,5 Coletor 1 3,7 1 1,5 Funcionário público
1 3,7 1 1,5
Magistrado/Juiz de direito
1 3,7 2 2,9
Solicitador 1 3,7 Proprietário 1 1,5 Tabelião 1 3,7 Vigário 1 1,5 Total 27 100,0 68 100,0 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1876 e 1879. AESP e CDHLP
Os negociantes também respondiam por boa parte da riqueza: eram em 16 (23,5%). Os
demais exerciam trabalho urbano: escrivães, magistrados, coletor e outros.
A maior parte dos votantes já constituía família (Tabela 2.12): durante toda a década
representada pelas três listas, o número de votantes casados passou de 80%. Eram
solteiros 9,5%, em 1871; 10,1%, em 1876; e 15,8%, em 1879. Viúvos eram a minoria,
não passando de 4% em todo o período.
Os votantes com idade de 50 anos ou mais eram em número de 30 em 1871: 28 eram
casados e 2 eram viúvos. Em 1876, os que estavam nesta faixa etária eram 62: 53
casados; 7 viúvos, e 2 solteiros apenas (celibato definitivo de 3,2%). Os votantes com
50 anos ou mais eram 121 em 1879. Destes, 4 (3,3%) eram solteiros, os celibatários
definitivos; e 11 (9,1%), eram viúvos.
124
Tabela 2.12. Situação conjugal dos votantes, em 1871, 1876 e 1879.
1871 1876 1879 Estado N % N % N %
Casados 259 87,8 358 86,5 602 81,2 Solteiros 28 9,5 42 10,1 117 15,8 Viúvos 8 2,7 14 3,4 22 3,0 Total 295 100,0 414 100 741 100,0 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1871, 1876 e 1879. AESP e CDHLP
Entre os votantes, muitos eram irmãos, ao menos filhos do mesmo pai. Tomando como
base a coluna filiação, da lista de votantes, foi possível estabelecer um quadro com o
número de filhos de cada pai (Tabela 2.13). Em 1876, havia 133 pais, sendo que 84
deles (63,1%) foram citados apenas uma vez; outros 30 (22,6%) tinham 2 filhos
presentes entre os votantes; 15 (11,3%) tinham 3 filhos; e 4 (3%) tinham 4 filhos. Em
1879, é bem maior o número de pais, assim como o de votantes. Dos 344 pais, 250
(72,7%) foram citados apenas uma vez; outros 39 (11,3%) tinham 2 filhos presentes
entre os votantes; 34 (9,9%) tinham 3 filhos; 11 (3,2%) eram pais de 4 filhos, e outros
10 (2,9%) foram citados por 5 votantes como pai.
Tabela 2.13. Número de filhos votantes, em 1876 e 1879.
1876 1879 Nº de filhos Nº de pais % Nº de pais %
1 84 63,1 250 72,7 2 30 22,6 39 11,3 3 15 11,3 34 9,9 4 4 3 11 3,2 5 - - 10 2,9 Total 133 100 344 100 Fonte: Tabela elaborada a partir das listas de votantes de Lençóes, 1876 e 1879. AESP e CDHLP
Aliás, boa parte da população dos bairros era formada por famílias. Filhos que se
casavam e passavam a ocupar terras anteriormente pertencentes aos seus pais; primos
que se casavam e se estabeleciam na região; pais que adquiriam novas terras próximas
às suas e as destinavam aos filhos em idade de trabalhar; desta forma, os vínculos
familiares permaneceram ao longo do tempo.
Lista de 1879: no bairro do Bauru havia os Borges, os Prestes, os Santos, os Prado etc.;
na Fartura: família Rosa, Vieira, Pereira, Espírito Santo e outras; Fortaleza: os Aguiar,
125
os Alcântara, os Siqueira etc.; na Grama, as famílias Maciel, Godoy e outras; no bairro
do Pouso Alegre, eram comuns os Oliveira, os Venâncio Pires, os Freitas, os Limas etc.
Estes casos de vários membros de uma mesma família estarem presentes como votantes
podem indicar uma transferência de condições de acúmulo de riqueza dos pais para os
filhos. O sucesso dos pais possibilitava aos filhos seguir o mesmo caminho da
sobrevivência digna, mesmo que o número de filhos (homens) fosse algo elevado, como
4 ou 5.
Antonio José Prestes tinha 51 anos em 1879. Morava no bairro do Bauru, onde era
fazendeiro. Alfabetizado, declarou uma renda de 2:000$000. Casado, tinha 5 filhos,
todos moradores no mesmo bairro, alfabetizados e com uma mesma renda declarada:
400$000. Suas idades eram: 33 (casado, fazendeiro); 31 (viúvo, lavrador); 30 (solteiro,
lavrador); 28 (solteiro, lavrador); e também 28 (casado, lavrador).
Por outro lado, como já visto, era grande o número de votantes qualificados que
conseguiram sobreviver sem a presença do pai, ou ao menos, desconhecendo-o: eram
51,4% em 1876, e 30% em 1879.
Entre aqueles que declararam desconhecimento dos pais, o que mais amealhou fortuna
foi José da Silva do Espírito Santo. Tinha 58 anos em 1879, declarou-se fazendeiro, sem
instrução, morador do bairro da Fartura, casado e sem filhos constantes da lista do
mesmo ano. Renda declarada: 4:000$000 (em 1876, declarou renda de 1:600$000).
Sabe-se por outras fontes mais detalhes de sua vida. Natural de Pouso Alegre (Minas
Gerais), era casado com Ana Maria do Carmo e teve, ao menos, 4 filhas: Maria, nascida
em 15/10/1875135; Mariana136, nascida em 17/3/1877; Ana137, batizada em 19/5/1879 e
falecida 9 dias depois138; e outra menina com o mesmo nome, Ana139, batizada em
23/10/1881.
Podemos compor a figura de um membro da elite da fronteira, no final da década de
1870: era jovem (menos de 40 anos); lavrador; renda declarada de 200$000; morava
num dos inúmeros bairros rurais espalhados pela região e, por fim, não sabia ler ou
escrever o próprio nome.
135 Livro de Batismos 29, registro 567, 7 de novembro de 1875, ACB. 136 Livro de Batismos 29, registro 980, 23 de abril de 1877, ACB. 137 Livro de Batismos 33, registro 396, 19 de maio de 1879, ACB. 138 Livro de Óbitos 12, registro 366, 28 de maio de 1879, ACB. 139 Livro de Batismos 33, registro 914, 23 de outubro de 1881, ACB.
126
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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127
A Guerra do Paraguai e a atividade bancária no Rio de
Janeiro no período 1865-1870: o caso Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro140
Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães Departamento de História da Universidade Federal Fluminense
128
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar a atividade bancária do Rio de
Janeiro no período da Guerra do Paraguai, através das estratégias desenvolvidas pelo
Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro.
A Guerra do Paraguai acentuou o período de crise na Praça do Comércio do Rio
de Janeiro, motivada pela política econômica conservadora implementada pelo governo
imperial desde a Lei dos Entraves de 1860, e que culminou com a quebra da Casa
Bancária Souto & Cia, em setembro de 1864. O esforço de Guerra demandou despesas
cada vez maiores, que fez com que o governo abandonasse sua ortodoxia através do
aumento das emissões via Tesouro Nacional, que substituiu o Banco do Brasil como
agente emissor de notas em 1866, a depreciação do câmbio e os empréstimos externos e
internos, esse último com o aumento das emissões de títulos do governo.
Diante desse quadro, o Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, um banco
comercial de depósitos e descontos, implementou uma política conservadora de acordo
com a conjuntura. Isso significou que o banco diminuiu seus empréstimos, seja o
desconto de letras, seja o de conta corrente, e aumentou a compra de títulos,
principalmente de títulos do governo. Tal estratégia demonstrou uma percepção crítica
do banco frente à conjuntura difícil que passava a economia brasileira da época,
principalmente a mais importante região comercial brasileira do período: a Praça do
Comércio do Rio de Janeiro.
O texto foi dividido em duas partes mais a conclusão. A primeira parte
analisamos a conjuntura econômica e política do Império, particularmente no Rio de
Janeiro, no período da Crise de 1864 e a Guerra do Paraguai. A segunda parte, com base
na documentação primária composta pelos Relatórios e balanços do banco, mesmo com
toda veracidade da mesma141, analisamos a atuação do banco nessa conjuntura e a
mudança na organização, da diretoria, do bando em 1869.
140 Este trabalho contou com a participação dos alunos Deidson Carline e João Monteiro Pessoa, bolsistas do Programa PIBIC/CNPq, na coleta dos dados. Uma primeira versão foi apresentada no V Congresso Brasileiro de História Econômica. 141 A respeito da metodologia acerca das análises dos balanços e Relatórios conferir GUIMARÂES, Carlos Gabriel. Bancos, Economia e Poder no Segundo Reinado: o caso da Sociedade Bancária Mauá,
129
1. A crise de 1864 e a Guerra do Paraguai: uma conjuntura difícil
A crise comercial e bancária de 1864, conhecida como a Crise do Souto, nome
esse relacionado com a bancarrota da Casa Bancária Antônio José Alves do Souto &
Cia, constituiu-se no ápice de uma situação de crise, que vivia a Praça Comercial do Rio
de Janeiro desde 1860. Como é de conhecimento da historiografia econômica brasileira,
tal crise estava relacionada com a política de contração monetária e creditícia efetuada
pelo governo imperial desde a promulgação da Lei n.º 1.083, de 22/08/1860, conhecida
como a Lei dos Entraves.142
Diante dessa situação financeira difícil, não foi de estranhar que a Sociedade dos
Assinantes da Praça do Rio de Janeiro, que se transformou na Associação Comercial do
Rio de Janeiro em 1867, poderosa corporação que defendia os interesses da fração da
classe dominante imperial ligada ao grande comércio, ou seja, aos grandes negociantes
nacionais e estrangeiros do comércio bancário, do comércio importador e exportador e
abastecimento, sediados no Rio de Janeiro143, organizou uma comissão encabeçada pelo
próprio presidente da Sociedade, o negociante e banqueiro José Joaquim de Lima e
Silva, Visconde, depois Conde de Tocantins, e irmão do Duque de Caxias, que lançou
um apelo em 12 de setembro de 1864 ao Imperador, para que o governo imperial
tomasse providências:
“Senhor: A comissão da Praça do Comércio vem respeitosamente trazer ao conhecimento do governo de Vossa Majestade Imperial o estado calamitoso em que se acha esta praça, em conseqüência da catástrofe comercial ocorrida no dia 10 corrente (setembro), pela suspensão que fez dos seus pagamentos a casa bancária de Antonio José Alves Souto & Cia.
O pânico que sobre o público produziu este acontecimento não se pode bem descrever mas pode ser avaliado por todos quantos conhecem a importância desta casa, a
MacGregor & Cia., 1854/1866. São Paulo, 1997, 320 p. Tese (Doutorado em História Econômica). Universidade de São Paulo. 142 A respeito da crise do Souto verificar os seguintes trabalhos: SOARES, Sebastião Ferreira. Esboço ou primeiros traços da crise commercial da cidade do Rio de Janeiro em 10 de setembro de 1864. Rio de Janeiro: Ed. Laemmert, 1864; ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de. Souto & Cia. In: LEVY, Maria Barbara (coord.). Anais da 1ª Conferência Internacional de História de Empresas. Rio de Janeiro: Div. Gráfica da UFRJ, 1991; GUIMARÃES, op.cit., cap. 4; PELAEZ, Carlos M. e SUZIGAN, Wilson. História Monetária do Brasil. 2ª ed. Brasília: Ed. UNB, 1981. pp. 104-115; VILLELA, André Arruda. The Political Economy of Money and Banking in Imperial Brazil, 1850/1870. London, 1999, 328 p. Thesis (Doctorate in Economic History). London School of Economics and Polotical Sciense. (chapter 4). 143 A respeito da Sociedade dos Assinantes da Praça do Rio de Janeiro conferir os trabalhos de: RIDINGS, Eugene. Business interest groups in nineteenth century Brazil . Cambridge: Cambridge University Press, 1994; MATHIAS, Herculano Gomes. Comércio, 173 anos de desenvolvimento: história da Associação Comercial do Rio de Janeiro, (1820-1993). Rio de janeiro: Expressão e Cultura, 1993; PIÑEIRO, Theo Lobarinhas. PIÑEIRO, Theo Lobarinhas. Os Simples Comissários: Negócios e Política no Brasil Império. Niterói, 2002. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense.
130
grande quantidade de depósitos que tem em si e o entrelaçamentoem que se acha com todos os bancos e principais casas de comèrcio desta praça.
O susto e a desconfiança tornaram-se gerais e o resultado foi correrem os portadores de títulos, não só desta casa como de outras, a exigirem das mesmas o embolso imediato deles.
(...) Não são, porém, somente estes os males que acarretou a referida catástrofe. Teve ela como imediato resultado paralisar o crédito, suscitar uma desconfiança geral, e fazer pairar sobre todas as casas comerciais, que em grande número se acham ligadas com a mencionada casa bancária, uma ameaça de se verem arrastadas na mesma catástrofe. Quem pode prever até onde chegarão as conseqüências deste acontecimento?
(...) A comissão desta praça, confiada no zelo que Vossa Majestade Imperial sempre se mostra possuído pelo bem do país e no interesse que lhe merece tudo quanto diz respeito à prosperidade e grandeza do Império aguarda tranqüila as medidas que prover ao Governo Imperial tomar para salvar esta praça da formidável crise por que está passando”.144
A preocupação da Sociedade dos Assinantes da Praça do Rio de Janeiro com a
repercussão da crise de 1864 pode ser traduzida por alguns números, que demonstram a
gravidade dessa crise. No período de setembro de 1864 a março de 1865, ocorreram 95
falências, “com um passivo total de 115 mil contos superior portanto ao meio circulante
de todo o país, que era de pouco mais de 100 mil contos”145. No tocante ao sistema
bancário, e de acordo com a Tabela 1, os bancos “nacionais”, com sede no Rio de
Janeiro, como a Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia146 e o Banco Rural e
Hipotecário do Rio de Janeiro e, mais ainda as casas bancárias, como a própria Souto &
Cia, a Montenegro, Lima & Cia, a Gomes & Filhos e outras, tiveram que recorrer ao
redesconto e a caução do Banco do Brasil no mês de setembro, para dar conta da corrida
sobre os seus depósitos. Com relação aos bancos estrangeiros, nessa época restritos aos
bancos inglêses, como o London and Brazilian Bank e o Brazilian and Portugueses
Bank, ambos recorreram também ao Banco do Brasil, porém com quantias bem menores
se comparadas com as dos bancos e casas bancárias “nacionais”.147
144 BRASIL. Ministério da Justiça. Commissão de Inquérito sobre as causas da crise na praça do Rio de Janeiro. Relatório da commissão encarregada pelo governo imperial por avisos do 1º de outubro a 28 de dezembro de 1864 de preceder a um inquerito sobre as causas principaes e acidentaes da crise do mês de setembro de 1864. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1865. Documentos anexos ao Relatorio da commissão de Inquerito (...), serie A, p.4. (a grafia é da época) 145 NOGUEIRA, Dênio. Raízes de uma nação. Um Ensaio de História Sócio-Econômica comparada. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1988. p. 377. 146 A respeito da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia. conferir GUIMARÃES, op. cit., pp. 208-215. 147 Com relação ao banco inglês London and Brazilian Bank verificar os trabalhos de: JOSLIN, David. A century bank in Latin America. Oxford: Oxford Um .Press, 1963. GRAHAN, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil, 1850-1914. São Paulo: Brasiliense, 1973.
131
Tabela 1: Quadro demonstrativo das quantias fornecidas pelo Banco do Brasil entre 10 e 30 de setembro de 1864
Instituições Descontos Cauções Banco Rural & Hipotecário 1.240:000$000 4.630:000$000
Banco Mauá, MacGregor & Cia 5.246:440$136 - London & Brazilian Bank 382:766$240 500:000$000
Brazilian and Portuguese Bank - 1.013:300$000 Gomes & Filhos 3.222:239$512 1.934:000$000
Bahia, Irmãos & Cia 8.207:831$061 1.804:600$000 Montenegro, Lima & Cia 2.108:507$274 1.088:000$000
Oliveira & Bello 22:250$000 - D'Illion & Marques Braga 682:349$604 -
Portinho & Moniz 850:895$569 63:000$000 Silva Pinto, Melo & Cia 337:458$220 -
João Baptista Vianna Drummond
254:233$971 -
Manoel Gomes de Carvalho 183:343$282 - Lallemant & Cia 347:884$570 -
Fonte: Brasil. Ministério da Justiça. Comissão de Inquérito sobre as causas da crise na praça do Rio de
Janeiro de 1864, op. cit., p. 204
A eclosão da Guerra do Paraguai148, segundo a historiografia brasileira, trouxe
inúmeros problemas de ordem política e social para o Império149, a ponto de Joaquim
Nabuco afirmar que foi um divisor de águas. Para ele a guerra marcou
“o apogeu do Império, mas também procedem dela as causas principais da decadência e da queda da dinastia: o aspecto e o desenvolvimento do Prata, com fascinação que ele exerce, o ascendente pelos nomes chamados legendários, pelas revindicações da classe, tendo à frente os homens que se deram a conhecer ao exército e se ligaram entre si pela camaradagem da campanha; o americanismo; a própria emancipação dos escravos que por diversos modos se prende à guerra (...); a propaganda republicana (...)”.150
148 Com uma duração de quase seis anos, estendendo-se de 11 de novembro de 1864, com a tomada do vapor Marquês de Olinda pelos paraguaios, até 1 de março de 1870, com a morte de Solano López, a Guerra do Paraguai foi o conflito de maior duração no continente americano. 149 A respeito da Guerra do Paraguai verificar os trabalhos de: COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: HUCITEC/Ed. da UNICAMP, 1996; MARQUEs, Maria Eduarda C. Magalhães (org.). A Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995; SALES, Ricardo. A guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 150 NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império_ Nabuco de Araújo, sua vida, suas opiniões, sua época. Rio de Janeiro: Garnier, 1897/98, 3 vols. pp. 189-190
132
No plano econômico, face à necessidade de preservar a moeda metálica para
fazer frente aos inúmeros gastos com as importações, já que o ouro era a única moeda
aceita numa conjuntura de crise, a solução encontrada pelo governo imperial foi a
aprovação do projeto do Visconde de Itaboraí, Lei n.º 1.349, de 12 de setembro de 1866.
151 Tal projeto, que além transferir o poder emissor do Banco do Brasil para o Tesouro
Nacional, estabeleceu uma nova carteira hipotecária e restringiu o direito de nomeação
do presidente e vice-presidente do banco pelo governo, significou para John Schulz uma
maior independência do Banco do Brasil com relação ao intervencionismo do governo
e, com isso, permitiu sua reorganização152. Para Dênio Nogueira, o projeto possibilitou
ao governo uma folga no seu caixa, na medida que “a transferência do poder emissor
para o Tesouro Nacional eliminaria ainda o custo desnecessário dos juros que o governo
tinha de pagar ao Banco do Brasil para financiar seu elevado déficit fiscal”.153 Outros
historiadores, como Maria Barbara Levy, destacam que o projeto significou por um lado
o abandono da política contencionista e das pretensões da conversibilidade preconizadas
pelo padrão-ouro; por outro lado, significou que o governo se tornou “no principal
agente do crédito interno, através do mecanismo inflação e compra; ao mesmo tempo
em que aumentava os impostos, recolhia ouro através de recursos sistemáticos do
lançamento de títulos públicos”.154
A Guerra do Paraguai, que segundo cálculos de Pelaez e Suzigan, chegou ao
montante de 614 mil contos de réis155, e “gerou um déficit 387.393 contos, ou seja,
6,5% do total da receita”156, teve como principais fontes de financiamento os
empréstimos externo e interno e a cobrança de impostos, conforme constam nas Tabelas
2 e 3. No tocante aos empréstimos tivemos um “empréstimo externo, realizado em
1865, no valor de £ 6.693.000, ao tipo 74, que propiciou o líquido de £ 5.000.000 (cerca
de 49 mil contos), com juros de 5% e 30 anos de prazo; empréstimo interno de 27 mil
contos, além da emissão de letras do Tesouro (a 6% ao ano), no valor de 171 mil contos
151 A respeitos dos embates dentro do governo sobre a política a ser adotada conferir PELAEZ e SUZIGAN, op. cit., pp. 104-106 152 Para Shulz, a maior independência do Banco do Brasil pode ser comprovada com a liquidação das filiais do banco, com exceção da de São Paulo, e a diminuição da emissão dos bilhetes do banco. Conferir SHULZ, John. A crise financeira da Abolição (1875-1901). São Paulo: EDUSP/Instituto Fernand Braudel, 1996. p. 44. 153 NOGUEIRA, op. cit., p. 378. 154 LEVY, Maria Barbara. A Indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas (esboços de história empresarial). Rio de Janeiro: Sec. Municipal de Cultura/EDUFRJ, 1995. P. 95 155 PELAEZ e SUZIGAN, op. cit., p. 114 156 BUESCU, Mircea. História Administrativa do Brasil. Organização e Administração do Ministério da Fazenda no Império. Coordenação de Vicente Tapajós. Brasília: FUNCEP, 1984, p. 93.
133
no decorrer da guerra; e o restante, cerca de 120 mil contos, em emissões de papel-
moeda”.157
Com relação aos impostos, além da cobrança em ouro de 15% dos impostos de
exportação e importação, a partir de 1867, houve um aumento das contribuições
provinciais. Segundo Dênio Nogueira, “essa última fonte de receita foi a que acusou
maior crescimento, passando de 15% para 25% da receita total arrecada entre 1864 e
1869”.158
Tabela 2: Financiamento da Guerra do Paraguai (valores de 1822, em milhares de contos)
Ano Direitos
Aduaneiros Imposto de Exportação
Contribuição Provincial
Outros Tributos
Receita Total
1864/65 5,9 1,7 1,6 0,4 9,6 1865/66 4,7 1,6 1,3 0,4 8,0 1866/67 4,7 1,4 1,5 0,2 7,8 1867/68* 4,1 1,8 2,0 0,1 8,0 1868/69 4,4 1,9 1,9 0,5 8,7 1869/70 5,3 1,8 2,3 0,1 9,5
Obs.: * A partir de 1867, 15% dos impostos de exportação e importação passaram a ser cobrados em ouro, isto é, à taxa de câmbio do mercado Fonte: NOGUEIRA, op. cit., p.379
157 NOGUEIRA, op. cit., p. 378 158 Idem, p. 380
Tabela 3: Política Fiscal, Monetária e Cambial
Política Fiscal (mil contos) N.º Índice (1822=100) Receita Despesa
Da qual Ano
Meio Circulante
Preços
Taxa de Câmbio (mil réis
por libra) Total
Direitos Alfandegários
Imposto de Exportação
Contribuição Provincial
Total Militar Serviço
da Dívida
Saldo (+ ou -)
1864/65 1.204 580,4 8,97 55,7 34,5 9,7 9,3 83,3 40,6 5,1 -27,6 1865/66 1.392 703,4 9,60 56,1 33,4 11 9,3 121,9 80,3 8,9 -65,8 1866/67 1.479 800,7 9,90 62,4 37,6 10,8 11,7 120,9 72,1 10,4 -58,5 1867/68 1.627 873,6 10,70 69,7 35,9 15,4 17,1 166 98,8 11,2 -96,3 1868/69 1982 1.035 14,11 83,5 45,3 18,6 19,4 150,9 81,3 14,8 -67,4 1869/70 2.371 988,3 12,76 92,9 52,4 17,8 22,3 141,6 76,8 13,1 -48,5
Obs: 1) desde 1828, o ano fiscal iniciou em julho; 2) em 1846, com a Reforma Monetária, o governo depreciou a paridade oficial para 27 d/mil
réis ou 8$889/Libra; 3) desde 1833, 50% dos direitos aduaneiros passaram a ser arrecadados em ouro, ou seja, à taxa de câmbio vigente no
mercado; 4) desde 1837, a totalidade dos direitos aduaneiros passou a ser arrecadada em ouro, assim como o imposto de exportação; 5) desde
1853, o imposto de exportação foi reduzido a 5% ad valorem
Fontes: NOGUEIRA, op. cit., pp. 332 e 375
A questão do endividamento do Estado Imperial com Guerra do Paraguai,
especialmente no tocante à dívida pública, constituiu-se num marco na economia
brasileira. Segundo Wilma Peres Costa,
“até meados do século, ela se destinava principalmente à cobertura dos déficits relacionados à construção do Estado Nacional: despesas originadas da Guerra de Independência e da negociação com Portugal, conflitos internos e repressão das rebeliões provinciais, além dos conflitos externos na região platina. Na Segunda metade do século aparecem despesas de um novo tipo: as melhorias públicas, em particular as estradas de ferro. Com efeito, esse foi , entre 1850-1870, um importante elemento no equacionamento das relações entre o centro político e as forças provinciais. (...). O período da Guerra do Paraguai aparece como um divisor de águas no endividamento público, determinando um crescimento notável tanto no estoque da dívida quanto no peso do seu serviço sobre as receitas do Estado”.159
O aumento da dívida pública e sua repercussão sobre a principal região
econômica do Brasil na época, o Rio de Janeiro, promoveu uma controvérsia na
historiografia econômica brasileira que envolveu o declínio do Rio de Janeiro e a
ascensão de São Paulo. Rui Granziera defende a posição de que o entesouramento dos
títulos públicos entre os fazendeiros e as camadas médias urbanas do Rio de Janeiro e a
crise de crédito na região fizeram com que o papel-moeda emitido afluísse para uma
nova região, que era o centro distribuidor das mercadorias para as tropas na guerra,
como também, face à relação ferrovia e café, uma região economicamente dinâmica:
Campinas e arredores (Oeste Novo Paulista). Segundo Granziera, nessa região “o
capital substituído pela estrada de ferro era passível de transformação em capital-
dinheiro”160, o que permitiu uma acumulação produtiva diferenciada no interior do
complexo cafeeiro na região, diferenciando São Paulo do que ocorreu no Rio de
Janeiro.161
Maria Barbara Levy discorda da posição de Granziera. Para ela, o Rio de
Janeiro, como principal centro financeiro e comercial do país, sempre sofreu com a
drenagem de dinheiro, bastando subir as taxas de desconto dos títulos, para que os juros
se elevassem e os negócios parando por falta de dinheiro. Além disso,
“apenas 14 horas, por via férrea, separavam as duas cidades, e que o Rio de Janeiro mantinha com São Paulo ativo comércio de produtos de subsistência, além do que as exportações de ambas as províncias resumiam
159 COSTA, Wilma Peres. A Questão Fiscal na Transformação Republicana-Continuidade e Descontinuidade. Economia e Sociedade, IE/UNICAMP, n.º 10, outubro de 1998, pp. 5-6 160 GRANZIERA, Rui. Guilherme. A Guerra do Paraguai e o Capitalismo no Brasil. : moeda e vida urbana na economia brasileira. São Paulo: HUCITEC/UNICAMP, p. 106 161 A respeito da relação do complexo cafeeiro e da industrialização em São Paulo conferir o trabalho de CANO, Wilson. Raízes da Industrialização em São Paulo. 2ª ed.. São Paulo: T. A Queiroz Ed., 1983
134
ao mesmo produto: o café. Portanto, não era tão pequeno o contato entre elas, a ponto de constituírem ilhas econômicas. Ao contrário, São Paulo permaneceria na órbita do circuito monetário regional do Rio de Janeiro”.162
2. O Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro (BRHRJ) e sua atuação
na conjuntura 1865/1870.
No trabalho anterior, analisando a atuação do Banco Rural e Hipotecário do rio
de Janeiro no período 1854/1864, destacamos que o banco foi um típico banco
comercial da época, ou seja, um banco de depósitos e descontos.163 No tocante aos
depósitos, o BRHRJ pagava juros sobre o depósito à vista ou a prazo, e descontava
letras, principalmente com penhor mercantil. Quanto aos descontos, o banco privilegiou
o desconto de letras com penhor, embora descontasse letras hipotecadas, porém com um
volume bem menor do que a com penhor. 164 Essa atividade bancária desenvolvida pelo
BRHRJ foi criticada na época por importantes figuras do Império como Sebastião
Ferreira Soares e, também, por um dos maiores fazendeiros fluminenses da região do
Médio do Rio Paraíba do Sul fluminense, Luís Peixoto de Lacerda Wernck, o Barão do
Pati do Alferes.165
No início da década de 1860, em virtude da Lei dos Entraves, o BRHRJ teve
uma diminuição dos empréstimos e depósitos. Entretanto, a partir de 1862, e de acordo
com o Gráfico 1 (Anexos), os empréstimos e os depósitos voltaram à crescer. Com toda
restrição da Lei de 1860, a questão que surge é a seguinte: quem contraiu os
empréstimos do BRHRJ? A resposta vem com a análise da Lista dos Acionistas do
BRHRJ de 1861 e do Relatório da Diretoria do banco de 1865: os capitalistas, os
162 LEVY, op. cit., pp. 92-93. Em trabalho recente, Maria Luiza Ferreira de Oliveira destacou o impacto da crise de 1875 na Praça do Rio de Janeiro, que culminou com a “quebra” do Banco Mauá & Cia, e sua repercussão sobre o crédito na cidade de São Paulo. OLIVEIRA, Maria Luíza Ferreira. Entre a casa e o armazém. Relações sociais e experiência da urbanização São Paulo, 1850-1900. São Paulo: ed. Alameda, 2005, p. 153. 163 A partir deste ponto, ao mencionarmos o Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, usaremos a abreviação BRHRJ. 164 GUIMARÃES, Carlos Gabriel. O Império e os bancos comerciais do Rio de Janeiro na Segunda metade do século XIX. Os casos do Banco Mauá, MacGregor & Cia, do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro e do Banco Comercial e Agrícola. Anais do III Congresso Brasileiro de História Econômica e da 4ª Conferência Internacional de História de Empresas. Curitiba: ABPHE/UFPR, 1999. 165 WERNECK, Luís Peixoto de Lacerda. Estudo sobre o credito rural e hyphotecario. Ro de Janeiro: L. B. Garnier, 1857.
135
comissários e as casas bancárias.166 Para se ter uma idéia, apresentamos alguns dados
interessantes, com base no cruzamento da Lista com o Almanach Laemmert de 1861:
1. Dos 435 acionistas em 1861, 8,04% estavam ligados as essas atividades; 2. Das 40.000 ações, 15,23% estavam nas mãos desses negociantes; 3. Desses acionistas, 31,42% eram matriculados; 4. Desses negociantes matriculados, 63, 63% eram comissários.167
Embora a Diretoria creditou à crise do banco “a boa fé sorprehendida de uns, e
a ambição inqualificavel de outros (a grafia é da época)”, a mesma reconhece que
exacerbação da crise tem que ser creditada a prática bancária efetuada pelo banco. Os
empréstimos, através dos descontos de Letras e em conta corrente, eram direcionados
principalmente para esses acionistas/clientes. O reconhecimento dessa prática bancária,
embora relevado para segundo plano pela diretoria do banco, vem de encontro com as
observações de David Joslin acerca da atuação dos bancos brasileiros e, principalmente,
ingleses como o London and Brazilian Bank no período168. Tal visão é corroborada por
John Schulz, quando afirma:
“A estrutura das finanças brasileiras tendeu a exacerbar essas crises. Tanto os bancos sociedades anônimas quanto as casas bancárias tinham comerciantes e agentes de fazendeiros, o comissários, como seus principais clientes. Esses dois tipos de mutuários inclinaram-se à não liquidez, na medida que se viram forçados a conceder crédito a longo prazo para os fazendeiros. Práticas bancárias prudentes como as conhecidas na Inglaterra ensinaram que se deve emprestar a prazo de até 90 dias sobre saques aceitos. Esses saques eram de responsabilidade tanto do comprador quanto do devedor de um produto como café ou tecido. Quando eles financiavam mercadorias não-vendidas, os bancos não emprestavam mais do que dois terços do valor dos produtos em garantia, também para períodos não superiores a noventa dias.(...) Os bancos ingleses, quando estabeleceram operações no Brasil em 1863, descobriram que não poderiam seguir no Rio de Janeiro a prática de Londres. Viram-se renovando indefinidamente créditos que raramente poderiam ser quitados. Muitos empréstimos, embora feitos para comerciantes, dependiam, no final das contas, dos fazendeiros. Os bancos tinham dificuldades em vender ou mesmo apropriar-se dos bens dos agricultores (...).
Quanto a seus passivos, os bancos ingleses descobriram que no Brasil os banqueiros pagavam juros até mesmo para depósitos à vista Na Inglaterra , os depósitos à vista não recebiam juros como compensação para que o banqueiro os guardasse e pagasse os cheques emitidos. Com pouco capital os banqueiros brasileiros concordavam em pagar juros, freqüentemente de até 4% ao ano, sobre o dinheiro à vista. Os bancos
166 Alguns negociantes eram comissários e ensacadores ao mesmo tempo. Capitalistas, no Almanach Laemmert, tem o sentido de usurário e rentista, principalmente de prédios urbanos. 167 Esse trabalho contou com a ajuda do bolsista Deidson M. Carline. BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 15 de Julho de 1861. Rio de Janeiro, Typographia do Diario do Rio de Janeiro, 1861. BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 15 de Julho de 1865. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1865. Pp. 5-13 168 JOSLIN, David. A Century of Banking in Latin America. London: Oxford University Press, 1963.
136
brasileiros também pagavam juros maiores que os pagos pelos bancos pelos bancos ingleses sobre seus depósitos a prazo. (...)”.169
A crise do Souto repercutiu fortemente sobre o BRHRJ. Consoante com a Tabela
5 (Anexos), o banco teve que recorrer ao Banco do Brasil para fazer frente à corrida
sobre seus depósitos. A respeito dessa situação do BRHRJ, analisando o Relatório da
Diretoria de 1865, percebemos que as dificuldades do banco estavam relacionadas com
as relações comerciais com as casas bancárias. Essas, ao serem liquidadas, deixaram de
honrar seus compromissos, e o BRHRJ, sendo um dos maiores credores, não teve outra
saída a não ser de recorrer ao redesconto e a caução do Banco do Brasil. O montante
total requerido pelo BRHRJ ao Banco do Brasil chegou a quantia de 13.226 contos de
réis, ou seja, além dos 5.870 contos de réis de setembro de 1864, o banco tomou
emprestada a quantia de 7.356 contos de réis.170
Outro fato que chamou atenção foi o Banco do Brasil ter se tornado no maior
acionista em 1866, segundo em 1865 e terceiro em 1869 e 1870. Além do Banco do
Brasil, outros bancos estavam entre os dez maiores acionistas do BRHRJ. O Banco
Comercial do Rio de Janeiro, organizado em 1865, constituiu-se no segundo maior
acionista em 1870 e, dois bancos ingleses viraram grandes acionistas: Brazilian and
Portugues Bank, sétimo em 1866, e o Union Bank of London, um importante banco na
City. o maior acionista em 1865, e quarto em 1866. A respeito desse último banco
inglês, James Gilbart destaca que começou a funcionar em 4/02/1838, em Moorgate
Street, nº 8, com um capital de L 5.000.000 (cinco milhões de libras).171. Além dos
bancos, negociantes portugueses de grosso (importação e exportação) e capitalistas
(Proprietários de Prédios) encontravam-se como grandes acionistas, como foram os
casos de Antonio Joaquim Dias Braga, que também era Diretor, e Manoel Joaquim da
Rocha. Dois negociantes portugueses tinham títulos da nobreza portuguesa, Antonio
José Leite Guimarães/Barão da Glória e Sebastião Pinto Leite/Visconde de Gandarinha.
Outros como José Antonio de Oliveira Bastos e Victor Resse eram Consignatário e Casa
169 SCHULZ, op. cit., pp. 34-35 170 BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 15 de Julho de 1865. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1865. p.8 171 Segundo James Gilbart, a maioria dos fundadores era de origem escocesa. GILBART, James W. Tratado Practico dos Bancos. 3 tomos. Rio de Janeiro: Livraria de B. L. garnier Ed., 1859. A respeito de James Gilbart, conferir GUIMARÃES, op. cit.
137
de Comissão de Gêneros de importação e exportação (comissário) e Negociante de
ouro, prata e pedras preciosas (ourives) respectivamente. _Tabela 4.172
172 Almanach ..... 1865, 1866.
Tabela 4: Lista dos dez (10) maiores acionistas do BRHRJ 1865/1870*
1865 1866 1869 1870
Nome N.º de Ações Nome N.º de Ações Nome N.º de Ações Nome N.º de Ações
Union Bank of London
3660 Banco do Brasil 3527 Rodrigues filho & Lengruber
1060 Manoel Joaquim da Rocha
1000
Banco do Brasil 1387 Manoel Joaquim da Rocha
986 Manoel Joaquim da Rocha
1000 Banco Comercial do Rio de Janeiro
970
Candida de Paiva Oliveira
900 Candida de Paiva Oliveira
900 Banco do Brasil 996 Banco do Brasil 540
Claudio José da Silva 720 Union Bank of London
760 Candida de Paiva Oliveira
900 Antonio Gomes Guerra de Aguiar
532
Antonio Gomes Guerra de Aguiar
(Dr.)
532 Claudio José da Silva 720 José Gonçalves de Carvalho
590 Visconde de Gandarinha
506
Antonio José Leite Guimarães/Barão da
Glória (Portugal)
500 Antonio Gomes Guerra de Aguiar
532 Antonio Gomes Guerra de Aguiar
532 Claudio José da Silva
500
Antonio Joaquim Dias Braga
450 Brazilian and Portugues Bank
511 Sebastião Pinto Leite/Visconde de
Gandarinha (Portugal)
506 Antonio Joaquim Dias Braga
450
Victor Resse 440 Barão da Glória 500 Claudio José da Silva
500 Victor Resse 40
Manoel de Mattos Vieira
400 Amaro da silva Guimarães
484 Antonio Joaquim Dias Braga
450 José Antonio de Lemos
400
José A de Oliveira Bastos
400 Victor Resse 440 José Antonio de Lemos
415 Manoel de Mattos Vieira
400
Obs: As listas dos acionistas de 1867 e 1868 não foram encontradas. Fonte: BRHRJ. Relatórios .
A eclosão da Guerra da Paraguai e a política monetária implementada pelo
governo imperial fizeram com que o BRHRJ atuasse de forma ainda mais conservadora.
Analisando os balanços do banco de 1865 até 1870, Anexo 1, percebemos que a
atividade bancária desenvolvida pelo BRHRJ estava de acordo com a política
governamental adotada. No tocante ao ativo, na conta Empréstimos, houve uma
diminuição significativa das letras descontadas com penhor, de mais de 55% no período
1865-1870. Com relação às letras caucionadas e hipotecadas, as primeiras tiveram um
aumento significativo de 198% de 1865 até 1867, caindo depois até 1870, uma baixa de
71%; as letras hipotecadas, mesmo com a nova Lei de Hipotecas de 1864, que dava
novas garantias para os credores173, tiveram uma queda de 25% entre 1865 e 1867, e um
aumento de 4% de 1868 até 1870. O comportamento dos descontos das letras está no
gráfico 2. Quanto aos empréstimos em conta corrente, houve uma queda de 10% no
período de 1865 a 1867, um aumento significativo em 1868 de 145% e, novamente,
uma queda de 30% até 1870.
A análise da política dos empréstimos do BRHRJ ficou mais clara com a leitura
dos Relatórios da Diretoria. No Relatório de 1868174, embora não ficou explícito o por
que do banco em não aumentar os empréstimos à propriedade rural, privilegiando
principalmente a propriedade urbana, a falta de garantias, mesmo com a nova Lei de
Hipotecas, e a alta taxa de desconto envolvendo as hipotecas dificultavam o acesso ao
desconto de tais letras. Enquanto nessas, o desconto girava entre 10 a 12% ao ano, nas
demais letras, os descontos giravam em torno de 7 a 10% para as letras com penhor, e 8
a 10% para as letras caucionadas175. No tocante ao aumento do empréstimo em conta
corrente, embora não conste no referido relatório, trabalhamos com a hipótese de que
esteja relacionado às necessidades de crédito por parte dos acionistas-correntistas, na
173 BN. Collecção das Leis do Império do Brasil de 1864. Tomo XXIV. Parte I . Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1864, pp. 69-86. A respeito da Lei para o crédito hipotecário conferir LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História Político-Administrativa da Agricultura Brasileira, 1808/1889. Brasília: Ministério da Agricultura, s.d. pp. 126-127; PELAEZ E SUZIGAN, op. cit.; CALÒGERAS, João Pandiá. Política Monetária do Brasil. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1960; MARCONDES, Renato Leite. O Financiamento Hipotecário da Cafeicultura no Vale do Paraíba Paulista (1865-1887). Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, 56 (1): 147-170, jan-mar, 2002; PIÑEIRO, Theo L. Política e Crédito Agrícola no Brasil do século XIX. América Latina em la Historia Econômica, nº 6, Julio-diciembre de 1996, 41-53. 174 BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 29 de Julho de 1868. Rio de Janeiro, Typographia do Apostolo, 1868. p. 5 175 Segindo Theo L Piñeiro, mesmo com a lei de 1866, o Banco do Brasil só regulamentou sua Careteira de Hipotecas em 1867, e nos quatro primeiros anos da carteira, os empréstimos com hipotecas só representou 2% do total. PIÑEIRO, op. cit, p. 47.
140
sua maioria negociantes (importação e exportação e comissário) e capitalistas, que
deviam aos bancos e outros estabelecimentos.176
Ainda com relação ao ativo, chamou atenção a conta Títulos, Gráfico 4. Após
uma aumento acentuado de 1865 a 1866, a conta apólices da dívida pública manteve o
mesmo valor em 1867 e 1868, desaparecendo em 1869 e 1870. No tocante às letras do
tesouro nacional, essas cresceram em mais de 600% entre 1868-1870. O crescimento
desse título, assim como o da dívida pública em 1871177, que não consta no balanço do
banco, face à nossa delimitação de 1865-1870, demonstrou que o BRHRJ agiu de
acordo com a política do governo de emissão de títulos. Será necessário pesquisar os
demais bancos, entretanto, acreditamos que os maiores detentores dos títulos públicos
foram as instituições bancárias, e não os fazendeiros como destacou Rui Granziera.
Com relação ao passivo do BRHRJ, na conta capital continuou o montante de
8.000:000$000, mesmo com os novos estatutos aprovados pelo governo em 1868, que
permitira elevar o capital para 16.000:000$000. Ocorreu um aumento dos depósitos, que
em 1869 ultrapassou os empréstimos, conforme o Gráfico 3, e destacaram-se nos
depósitos as contas letras a pagar (dinheiro tomado a prêmio), em que o banco
remunerava de 5 ½% a 6% ao ano, e a conta corrente, que também eram remuneradas,
só com taxas menores de 3 a 6%. Outra conta do passivo que chamou atenção foi o
aumento do fundo de reserva em 1869, e da criação de um novo fundo de reserva no
mesmo ano com os novos estatutos. Foi interessante observar que o BRHRJ, ao criar
esse novo fundo de reserva, suspendeu a conta Lucros Suspensos, que era uma conta
onde os lucros eram reservados para fazer frente aos prejuízos, como ocorreu pós-1864.
Ainda no passivo, as emissões foram extintas em 1867, e os juros a receber por
contratos celebrados aumentaram em 80% no período de 1868 e 1870 e os dividendos
dos acionistas aumentaram, passando de 280: 000$000 (8$000 por ação) no período de
1865 e 1866, para 320:000$000 no período 1867 e 1870.
A conjuntura econômica e política da guerra também repercutiram na
organização do BRHRJ.178 Em 1868, o governo imperial, através do decreto nº 4210, de
176 Esses valores foram retirados do Relatório de 1869, já que não constavam nos relatórios anteriores. BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 21 de Julho de 1869. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1869. p. 19, 21, 25 e 27. 177 No ano de 1871, o BRHRJ tinha 12.125:582$000 de apólices da dívida pública. Esse montante demonstra a estratégia desenvolvida pelo banco face à Guerra do Paraguai. 178 A ação do poder moderador do imperador D. Pedro II, que substituiu do ministro da Fazenda liberal-progressita Zacarias de Góes e Vasconcelos pelo conservador Joaquim José Rodrigues Torres (o
141
13/06/1868, aprovou as mudanças nos estatutos do banco encaminhadas pela Diretoria.
Quadro 1. Além das mudanças na composição da direção do banco, desaparecendo os
cargos de presidente e secretário da direção, e diminuindo o número de diretores, que
caiu de cinco para três, o banco foi “convertido” para banco de crédito real, face à
regulamentação das operações com hipotecas conforme a Lei de 24/09/1864. Mesmo
com essa “elevação”, como vimos anteriormente, os empréstimos com hipotecas
continuaram a serem preteridos pelos outros tipos de empréstimos.
Visconde de Itaboraí), provocou um racha na coalizão política de estabilidade no interior da classe senhorial dominante. Sobre a análise política da crise de 1868 conferir CARVALHO, José Murilo de. O Conselho de Estado\; a cabeça do Governo. In: Idem. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro das Sombras: a política imperial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, Relume Dumará, 1996, p.p. 341-342.
Quadro 1: Direção do BRHRJ (1865-1870)
Cargo/Endereço Comercial/Títulos
1865 1866 1867 1868 1869 1870
Presidente Guilherme Pinto de
Magalhães/ Rua da. Direita, 127/ Official da Ordem Imperial do Cruzeiro; Cavalleiro da Ordem de N. S. Jesus Christo
Joaquim Manuel Monteiro/Rua de São Bento, 14/ Visconde
da Estrella (Portugal); Commendador da
Ordem de N. S. Jesus Christo;
Commendador da Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Commendador de A
Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito
Joaquim Manuel Monteiro/Rua de São Bento, 14/ Visconde
da Estrella (Portugal); Commendador da
Ordem de N. S. Jesus Christo;
Commendador da Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Commendador de A
Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito
Joaquim Manuel Monteiro/Rua de São Bento, 14/ Visconde
da Estrella (Portugal); Commendador da
Ordem de N. S. Jesus Christo;
Commendador da Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Commendador de A
Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito
Secretário da Direção/
Dr. Roberto Jorge Haddock Lobo/ Rua do Eng.- Velho, 19/ Commendador da
Ordem de N.S Jesus Christo; Dignatario da
Ordem da Rosa
Dr. Roberto Jorge Haddock Lobo/ Rua do Eng.- Velho, 19/ Commendador da
Ordem de N.S Jesus Christo; Dignatario da
Ordem da Rosa
Dr. Roberto Jorge Haddock Lobo/ Rua do Eng.- Velho, 19/ Commendador da
Ordem de N.S Jesus Christo; Dignatario da
Ordem da Rosa
Dr. Roberto Jorge Haddock Lobo/ Rua do Eng.- Velho, 19/ Commendador da
Ordem de N.S Jesus Christo; Dignatario da
Ordem da Rosa
Diretor Antonio de Araújo Braga; r. do Hospício,
Antonio Joaqm Dias Braga. r. da Princeza,
Antonio Joaqm Dias Braga. r. da Princeza,
Antonio Joaqm Dias Braga. r. da Princeza,
Joaquim Manuel Monteiro/Rua de São
Joaquim Manuel Monteiro/Rua de São
143
esq. Do campo d´Acclamação;
Commendador da Ordem de N.S Jesus
Christo
102 A (Cajueiros.); Commendador da Real
Ordem de N.S Jesus Christo*;
Commendador da Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Cavalleiro de A Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e
Mérito
102 A (Cajueiros.); Commendador da Real
Ordem de N.S Jesus Christo*;
Commendador da Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Cavalleiro de A Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e
Mérito
102 A (Cajueiros.); Commendador da Real
Ordem de N.S Jesus Christo*;
Commendador da Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Cavalleiro de A Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e
Mérito
Bento, 14/ Visconde da Estrella (Portugal);
Commendador da Ordem de N. S. Jesus
Christo; Commendador da
Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Commendador de A
Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito
Bento, 14/ Conde da Estrella (Portugal); Commendador da
Ordem de N. S. Jesus Christo;
Commendador da Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Commendador de A
Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor,
Lealdade e Mérito; Dignitário da Ordem da Rosa; Cavalleiro da Real Ordem de N. S. Jesus Christo
144
Diretor Antonio Joaqm Dias Braga/ Rua da
Princeza, 102 A (Cajueiros)/
Commendador da Real Ordem de N.S Jesus
Christo*; Commendador da
Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa*; Cavalleiro de A Muito Nobre e Antiga Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e
Mérito*
João Gavinho Vianna/ Rua do Ingá (S.
Domingos).
João Gavinho Vianna/ Rua do Ingá (S.
Domingos)
João Gavinho Vianna/ Rua do Ingá (S.
Domingos)
Antonio Gonçalves Guimarães/ Rua do
Sabão, 26/ Commendador da Real
Ordem de N.S Jesus Christo.
José Antonio de Lemos/ Rua da Quitanda, 66/
Commendador da Real Ordem de N.S Jesus Christo (Portugal)
Diretor Antonio da Silva Monteiro/ Rua das
Violas, 34
José Peixoto de Faria Azevedo. R. da
Babylonia (Andarahy). Commendador da
Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa
José Peixoto de Faria Azevedo. R. da
Babylonia (Andarahy). Commendador da
Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa
José Peixoto de Faria Azevedo. R. da
Babylonia (Andarahy). Commendador da
Ordem de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa
Cláudio José da Silva/ Ruar. Direita, 66.
Cláudio José da Silva/ Ruar. Direita, 66
Diretor José Peixoto de Faria Azevedo/ R. da
Babylonia
Antonio Gonçalves Guimarães/ Rua do
Sabão, 26
Antonio Gonçalves Guimarães/ Rua do
Sabão, 26
Antonio Gonçalves Guimarães/ Rua do
Sabão, 26
Diretor - Cláudio José da Silva/
Rua dos Pescadores, 47
Cláudio José da Silva/ Rua dos Pescadores,
47
Cláudio José da Silva/ Rua dos Pescadores,
47
Secretário
João José de Souza Silva Rio/ Rua do
Lavradio,39/Cavalleiro da Ordem de N.S.
Jesus Christo; Official da Ordem da Rosa
José Joaquim de França/ Rio-
Comprido, 48 F/ Cavalleiro da Ordem
de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa
José Joaquim de França/ Rio-
Comprido, 48 F/ Cavalleiro da Ordem
de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa
José Joaquim de França/ Rio-
Comprido, 48 F/ Cavalleiro da Ordem
de N. Sra. da Conceição de Villa
Viçosa
José Justiniano Rodrigues/ Rua das Larangeiras, 103
Manoel da Silva Mello Guimarães/ Rua d´Alfandega, 61
145
Contador
José Joaquim de França. Rio-Comprido,
48 F. Cavalleiro da Ordem de N. Sra. Da Conceição de Villa
Viçosa*
Guarda- Livros Hilário Mariano da Silva Junior/ Rua. dos
Barbonos,35
Hilário Mariano da Silva Junior/ Rua. dos
Barbonos,35
Hilário Mariano da Silva Junior/ Rua. dos
Barbonos,35
Hilário Mariano da Silva Junior/ Rua. dos
Barbonos,35
Hilário Mariano da Silva Junior/ Rua. dos
Barbonos,35 Thesoureiro Henrique José de
Araújo Junior/ Rua do Hospício, esqa do
Campo
Henrique José de Araújo Junior/ Rua do
Hospício, esqa do Campo
Henrique José de Araújo Junior/ Rua do
Hospício, esqa do Campo
Henrique José de Araújo Junior/ Rua do
Hospício, esqa do Campo
Henrique José de Araújo Junior/ Rua do
Hospício, esqa do Campo
Henrique José de Araújo Junior/ Rua do
Hospício, esqa do Campo
Fonte: Almanak Laemmert de 1865, pág.423; Almanak Laemmert, de 1866, pág. 407; Almanak Laemmert 1867, pág. 407; Almanak Laemmert de 1868, pág. 421; Almanak Laemmert de 1869, pág. 440; Almanak Laemmert de 1870, pág. 431.
3. Considerações Finais
A conjuntura econômica e política do Império, particularmente na Praça do
Comércio do Rio de Janeiro, associada à Guerra do Paraguai repercutiram sobre o
BRHRJ. Analisando a documentação primária, os balanços e relatórios de 1865 e 1870,
percebemos uma melhoria da situação do banco, proporcionada pelas estratégias da
diretoria do banco, como também na presença do Banco do Brasil no quadro dos
principais acionistas.
A política desenvolvida pelo BRHRJ estava intimamente ligada à política
econômica do governo. Se essa, para cobrir as despesas com a guerra recorreu ao
endividamento interno e externo, e que repercutiu nos anos posteriores, inclusive sendo
responsável por uma nova crise na década de 1870, a crise de 1875, que levou o Banco
Mauá & Cia. fechar as suas portas, o BRHRJ apropriou-se da situação. Diminui os
empréstimos e aumentou sua carteira de títulos e dos depósitos. Tal política, que muitos
possam achar conservadora, na realidade consistiu na política desenvolvida por um
típico banco comercial, que era de privilegiar o comércio e o curto prazo.
Nesse contexto enquadra-se a questão da pouca relevância nos empréstimos com
hipotecas, se comparado com os outros tipos de empréstimos. Mesmo com a Reforma
das Hipotecas, o aumento dos empréstimos não significou mudanças com relação à
política do banco.
Anexos:
0,000
5.000.000,000
10.000.000,000
15.000.000,000
20.000.000,000
25.000.000,000
30.000.000,000
Valor (contos de réis)
1854 1855 1856 1857 1858 1859 1860 1861 1862 1863 1864 1865
Anos
Gráfico 1: Empréstimos e Depósitos do BRHRJ, 1854/1 865
Empréstimo
Depósito
148
1865
18661867
18681869
1870
0
2.000.000.000
4.000.000.000
6.000.000.000
8.000.000.000
10.000.000.000
12.000.000.000
14.000.000.000
Valor(mil-réis)
Período
Gráfico 2: Desconto de Letras do BRHRJ (1865/1870)
Letras Descontadas
Letras Caucionadas
Letras de Hipoteca
149
Gráfico 3: Empréstimos e Depósitos do BRHRJ, 1865/1 870
0
5000000000
10000000000
15000000000
20000000000
25000000000
1865 1866 1867 1868 1869 1870
Anos
Val
or (
mil-
réis
)
Empréstimo
Depósito
150
Gráfico 4: Títulos e Depósitos do BRHRJ, 1865/1870
0
5000000000
10000000000
15000000000
20000000000
25000000000
1.865 1.866 1.867 1.868 1.869 1.870
Anos
Val
or (
mil-
réis
)
Títulos
Depósitos
151
Tabela 5: Balanços do Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro (1865-1870)
Jun/1865 Jun/1866 Jun/1867 Jun/1868 Jun/1869 Jun/1870 Ativo 1. Títulos: 1.1 Apólice da dívida pública 600$000 313:000$000 26:700$000 26:700$000 - 1.2 Títulos em Liquidação 2539:103$963 1973:867$528 1854:915$858 2235:188$933 2210:643$996 3066:991$439 1.3 Títulos em garantia de operação de crédito
516:710$000 56:350$000 - -
1.4 Ações da Cia. Brasileira de Paquete a vapor
- 137:400$000 -
1.5 Letras do Tesouro Nacional - 1825:600$000 6573:460$000 10016:724$000 2. Empréstimo: 2.1 Letras descontadas 12670:957$583 11751:875$516 9900:661$380 8288:606$192 8443:778$686 5598:362$305 2.2 Letras Caucionadas 1169:880$000 2481:861$000 3398:103$400 2621:357$326 2433:330$000 2410:650$000 2.3 Letras de Hipotecas 1996:462$430 1343:032$080 1585:672$020 1605:993$441 1546:591$898 1657:906$247 2.4 Letras a receber (por concordatas e outras)
812:231$371 766:016$567 618:773$686 614:730$092 390:994$272 220:961$845
2.5 Conta corrente (por empréstimo e adiantamentos feitos pelo banco com garantia)
3047:069$697 2431:634$094 2803:267$767 6885:338$906 5089:296$795 5501:692$932
3. Encaixe: 3.1 Caixa Geral: 539:438$474 960:397$969 2130:996$631 746:454$501 1675:974$848 1505:820$115 3.1.1 em moeda de ouro de 22 q. 3:220$210 3.1.2 em moeda de cobre 18$264 7$969 - - - 3.1.3 em notas do Banco do Brasil 536:200$000 960:390$000 - - - 3.2 Caixa de depósitos 2:520$000 120$000 2:861$120 - - - 4. Edifício do banco e benfeitoria 1888:484$859 188:484$859 194:017$693 191:815$693 188:215$693 248:849$093 5. Prédio do banco 109:315$498 1:383$250 - - - 6. Prédios abjudicados ao banco 90:302$931 112:151$191 89:527$499 81:798$469 78:145$423 86:977$450 7. Mobília 22:535$500 22:535$500 22:535$500 21:902$000 22.470$330 22:470$330 8. Juros a receber de conta própria 18$000 9:390$000 900$000 14:640$000 31:380$000 435$000 9. Juros (pertencem ao semestre Seguinte) 28:776$451 21:830$303 16:823$830 - - - Total 23217:696$757 22924:289$892 22702:116$364 25297:525$553 28684:281$941 30337:840$756
152
Jun/1865 Jun/1866 Jun/1867 Jun/1868 Jun/1869 Jun/1870
Passivo
1. Capital 8000:000$000 8000:000$000 8000:000$000 8000:000$000 8000:000$000 8000:000$000 2. Fundo de reserva 1000:000$000 1000:000$000 1000:000$000 1000:000$000 1317:410$988 1478:072$248 3 Novo fundo de reserva - - - 74:819$541 141:945$781 4. Lucros suspensos* 606: 167$399 394:242$793 470:098$294 516:374$794 - - 5. Depósitos: 5.1 Letras a pagar (dinheiro tomado a prêmio)
2176:806$964 172:874$847 1929:660$707 1786:806$907 2373:952$097 2560:950$903
5.2 Conta corrente (saldo a favor de diversos)
10692:398$003 10604:540$163 10508:138$625 13250:485$347 16060:074$570 17380:044$698
5.3 Saques a pagar 5:130$172 18:837$$711 55:580$097 6:501$615 12:989$760 23:906$455 5.4 Valores depositados 2:683$000 283$000 3:024$120 3:024$120 3:024$120 13:314$620 6. Emissão (valor em circulação) 10:800$000 8:600$000 8:100$000 - - - 7. Selo 936$500 1:075$800 1:721$800 1:626$000 - - 8. Juros a receber (por contratos celebrados) 113:663$988 113:663$$998 113:663$988 124:215$578 189:840$456 223:148$721 9. Descontos (para o próximo semestre) 297:066$213 247:984$720 196:570$276 192:513$807 138:168$391 10. Comissão da diretoria 17:203$974 16:838$252 23:301$315 19:986$168 26:303$902 22:429$898 11. Div. 8º, 10º, 11º, 13º, 19ª e 22º 8:736$900 12. Dividendo 23º 280:000$000 13. Div. 8º, 10º, 11º, 13º, 19º e 24º 7:115$900 - - - - 14. Dividendo de 8º a 26º 8:726$400 - - 15. Dividendo 25º (8$ por ação) 280:000$000 - - - - 16. Dividendo 27º (8$ por ação) - 320:000$000 - - - 17. Dividendo 10º a 28º - - 7:973$400 - - 18. Dividendo 10º a 30º - - - 9:160$800 19. Dividendo 10º a 32 - - - - 15:332$300 20. Dividendo 29º (8$ por ação) 320:000$000 - 21. Dividendo 31º (8$ por ação) 320:000$000 22. Dividendo 33º (8$ por ação) - - 320:000$000 23. Dividendos de cauções 9:916$220 9:151$220 9:391$220 9:631$220 11:881$220 10:021$220 24. Juros (para o próximo semestre) 48:622$110 63:421$213 5:910$143 25. Lucros e perdas (próximo semestre) - 2:625$078 5:708$000 8:889$467 4:595$378
153
Jun/1865 Jun/1866 Jun/1867 Jun/1868 Jun/1869 Jun/1870 Total 23217:696$757 22924:289$892 22702:116$364 25297:525$553 28684:281$220 30337:840$756
Obs.: * Lucros reservados para fazer face aos prejuízos Fonte: BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 15 de Julho de 1865. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1865. BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 16 de Julho de 1866. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1866. Commercio. Balanço do BRHRJ, 30/06/1867. Jornal do Commercio, 8/07/1867, p. 3. BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 29 de Julho de 1868. Rio de Janeiro, Typographia do Apostolo, 1868. BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 21 de Julho de 1868. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 1869. BRHRJ. Relatório apresentado pela directoria do Banco Rural e Hypothecario do Rio de Janeiro em assembléa geral dos accionistas aos 18 de Julho de 1870. Rio de Janeiro, Typographia Perseverança, 18